Música do tempo presente e intenção de escuta
Carlos Palombini *
CNPq
Revolucionário será quem possa revolucionar-se.
(Ludwig Wittgenstein, 1944)1
Refaço, através da exposição diacrônica de excertos sobre a percepção aural escritos por
Pierre Schaeffer entre 1938 e 1969, a trajetória que me leva da música eletroacústica ao
estudo musical do funk carioca. Ela implica uma pedagogia baseada na reflexão sobre a
escuta, que poderia tomar para si o antigo moto empirista: nihil est in intellectu quod non sit
prius in sensu — na formulação de Tomás de Aquino. Confluem ao funk carioca
problemas de nosso tempo: as culturas da diáspora africana nas Américas, a análise da
música eletrônica dançante, a história das técnicas de produção musical, as garantias
individuais, a segurança pública, a criminalização da pobreza, o racismo estrutural, a
financeirização do espaço urbano. E “a massa [ainda] é a matriz onde se engendra hoje a
atitude nova frente à obra de arte” (Benjamin 1936: 63). Como compreendê-la?
Metodologia
Embora os termos musicologia e história da música sejam frequentemente empregados
como sinônimos, “musicologia” aqui remete a uma prática interdisciplinar cujo ponto de
convergência é a música,2 tomada por qualquer coisa de sonoro que se entenda como tal.
Um dos componentes dessa interdisciplina é a história — “do tempo presente” não
apenas porque as origens da música em questão se possam localizar na Segunda Guerra
Mundial3 ou porque sua referência de análise date do mesmo período, mas sobretudo
porque procura desmascarar “a boa consciência das elites constituídas, em política como
na Universidade” (Lagrou 2013: 101).4 O modelo de interdisciplinaridade utilizado é o
agonístico/antagonístico descrito por Georgina Born (2010: 211): diante dos limites
intelectuais, estéticos, éticos ou políticos das disciplinas estabelecidas ou do estatuto da
pesquisa acadêmica em geral, colocamo-nos em relação de diálogo autoconsciente, de
crítica ou de oposição. Essa musicologia relacional busca abrir “um novo espectro
epistemológico e ler as cores que nossos preconceitos haviam previamente apagado”
(Serres 1980: 23–24). Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como
ele de fato foi”, mas apropriar-se de uma reminiscência tal qual relampeia no momento
de um perigo, Walter Benjamin escreve em 1940 (Benjamin 1985: 224; 2010). Esse
momento é o presente.
Se antropologia, relatos orais e etnografia desempenham seus papeis nessa
pesquisa, e se um de seus objetivos é estabelecer relações entre morfologia sonora e
*
Sou grato a Igor Reyner pela leitura e crítica deste ensaio.
Exceto nos casos indicados nas referências bibliográficas, textos em língua estrangeira são dados em
traduções do autor, mantidos os grifos originais.
2 Assim concebida, a musicologia não deixa de filiar-se, em outro espírito, à Musikwisschenschaft de Guido
Adler (1885); ver Mugglestone e Adler (1981) para contexto histórico e tradução inglesa do artigo de Adler;
ver Dudeque (2004) para uma tradução brasileira da tabela de Adler; ver Kerman (1985: 11–12) para
etimologia e pragmática do termo musicology.
3 Mais precisamente, no rhythm and blues afro-norte-americano (Burnim e Maultsby 2006: 245–269).
4 Sobre história do tempo presente, ver Garcia (2003), Lagrou (2003, 2013), Maranhão Filho (2009),
Readman (2011), e Droit e Reichherzer (2013); para um estudo exemplar, ver o livro de Rousso (1990).
1
organização social — pergunta análoga àquela formulada por Steven Feld em 19845 —,
por que a não realizar sob o signo da etnomusicologia? Para responder essa pergunta
abandono a primeira pessoa do plural. Entendo ser mais produtivo desenvolver
colaborações com antropólogos comprometidos com pesquisas musicais6 enquanto
mantenho-me sob a égide da disciplina definida nos termos do parágrafo anterior. Em
outras palavras, enquanto mantenho a diferença: “Suprimimos os prazeres agonísticos de
continuar diálogos intersubdisciplinares?” (Born 2010: 206).
Ponto de partida
Minha pesquisa originou-se, na segunda metade dos anos 1980, de uma pergunta de
compositor: de que modo as possibilidades de controle da forma e da matéria7 de uma nota
musical oferecidas pelo sintetizador polifônico programável Roland Juno-60 se
traduziriam em procedimentos de organização de sons? Na primeira metade dos anos
1980, Willy Corrêa de Oliveira analisava Estudos de Chopin segundo critérios
eletroacústicos8 no departamento de música da USP. Todavia minha interrogação não
encontrava eco no meio acadêmico. Em palestra no Espaço N.O9 em 1979, o
compositor Bruno Kiefer (1923–1987),10 professor do departamento de música da
UFRGS, dizia da música eletroacústica: “não se usa mais, pois desumaniza a música”.11
Entretanto o início dos anos 1980 via a popularização de instrumentos
eletrônicos. Diferentemente do aparato dos estúdios de estações de rádio (RTF, WDR,
RAI), universidades (Columbia-Princeton) e instituições como o Bell Labs, o GRM e o
Ircam,12 acessível a grupos restritos de compositores,13 e diferentemente do Synclavier
(1977), do Fairlight CMI (1979) ou da Linn LM-1 (1980), disponíveis para artistas com
amplos recursos de produção, em geral vinculados à grande indústria fonográfica, a
Roland TR-808 (1980) e o Roland TB-303 (1981) eram adquiridos, muitas vezes de
segunda mão, por jovens, em sua maioria sem treino formal em música, para criarem os
primeiros gêneros de música eletrônica dançante: a house e a acid house em Chicago; o
electrofunk e o electro em Nova York; o techno em Detroit (Brewster e Broughton 2000).
Essas músicas e sua descendência chegariam ao Rio de Janeiro na forma de discos de
vinil para alimentar um circuito de bailes proletários que se tornaria conhecido por mundo
funk (Vianna 1988).
5 “Existem padrões de co-evolução, ecológicos e estéticos, a ligar o ambiente a padrões sonoros,
materiais e situações?” (Feld 1984: 38). Para uma tradução brasileira, ver Feld (2015), que parte de uma
discussão iniciada por Lomax (1962).
6 Nomeadamente, Adriana Facina, professora do programa de pós-graduação em antropologia social do
Museu Nacional da UFRJ, e Dennis Novaes, doutorando no mesmo programa; ver Facina e Palombini
(2017) e Novaes e Palombini (2017).
7 “Imaginemos ser possível ‘parar’ um som para ouvir o que ele é em dado instante de nossa escuta: o
que captamos é o que denominaremos sua matéria, complexa, situada na tessitura e nas relações matizadas
da contextura sonora. Escutemos agora a história do som: tomamos consciência do desenvolvimento, na
duração, do que fora fixado por um instante; de um trajeto que dá forma a essa matéria” (Schaeffer 1966: 400).
Ver também Chion (1983: 116).
8 Procedimento aplicado à Sonata Opus 57 de Beethoven por André Boucourechliev em 1963 e por
Oliveira em 1979.
9 Sobre o Centro Alternativo de Cultura Espaço N.O (1979–1999), ver Carvalho (2004).
10 Sobre Bruno Kiefer, ver Mariz (2000: 495).
11 Sobre o problema da academização das vanguardas, ver Adorno (1988) e McClary (1989).
12 Para uma etnografia do Ircam, ver Born (1995).
13 O Composers’ Desktop Project teria início em 1986.
2
Artes-relé
Em meados dos anos 1970 os manuais de Robin Maconie (1976: 98–99) e Michael
Nyman (1974: 40–41) apresentavam Pierre Schaeffer como o perdedor, técnica e
intelectualmente subdotado, da contenda entre musique concrète e elektronische Musik. Em
1986 Macmillan Press lançou, organizada por Simon Emmerson, a primeira coletânea em
língua inglesa de artigos sobre estética da música eletroacústica. O segundo, o terceiro e o
quarto capítulos consistiam em trabalhos de compositores nascidos ou sediados na
Inglaterra que se remetiam a Traité des objets musicaux em função de suas práticas
composicionais, mas não levavam em conta a diacronia do pensamento de Schaeffer,
exposta por Sophie Brunet em 1977.
Ele se muda de Estrasburgo para Paris em 1936 a fim de trabalhar na rádio
estatal, notoriamente defasada em relação a suas congêneres germânica e britânica
(Pierret 1969: 133). Desde as primeiras décadas da radiodifusão na França (Huc e Robin
1938; Descaves 1962; Jeanneney 2001), os temas da arte radiofônica e da fidelidade das
transmissões mobilizavam debates nas crônicas, artigos e livros de Pierre Cusy e Gabriel
Germinet (1926), Paul Deharme (1928, 1930), André Cœuroy (1930), Alex Virot (1930),
Éric Sarnette (1934), Carlos Larronde (1936) e Paul Dermée (1938). Em abril de 1938 o
“ex-aluno da Escola Politécnica” e “Engenheiro de Correios, Telégrafos e Telefones”
(Schaeffer 1938B: 322) estreia na seção “Crônica do rádio” da Revue musicale. E se
pergunta: “Quais são os recursos reais da radiodifusão? Ela propicia o nascimento de
uma arte original? Deve, ao contrário, ser capaz apenas de realizar à perfeição a tarefa de
mensageira fiel das obras clássicas?” (Schaeffer 1938B: 317). Para o autor:
A radiodifusão se acha, por assim dizer, “entre dois fogos”. Ela deve ser admiravelmente fiel à
música que se incumbe de transmitir, mas, ao mesmo tempo, tanto mais original no exercício de
seus próprios meios, tal qual o cinema, porquanto está a ponto de estragar tudo no embaraço
extremo em que a colocam essas exigências contraditórias.
Na realidade, a única saída é ver as coisas com clareza, lidar frontalmente com a
contradição e tomar as duas vias divergentes: uma conduz à eclosão de uma arte propriamente
radiofônica, que seria para o som aquilo que o cinema é para a imagem; a outra, embora mais
humilde, teria a nobre missão de transmitir da melhor forma possível a música tradicional aos
ouvintes do mundo inteiro, e seu único alvo não seria uma perfeição inatingível, mas a mais alta
fidelidade realizável. (Schaeffer 1938B: 321)
A segunda crônica, “Vérités premières”, aparece em junho. O título remete ao ato
original de sua investigação: constatar as diferenças perceptivas entre as audições do som
direto e do som transmitido por alto-falantes. Essas diferenças são ilustradas por
exemplos extraídos da transmissão sinfônica. Uma orquestra ocupa um espaço
significativo no palco: os violinos não se mesclam com os trompetes e o contrabaixo não
ocupa o mesmo lugar que a corneta de pistões. Já o alto-falante, caixa inclusa, toma o
espaço de um executante, no máximo: no fundo de seu cone exíguo, o contrabaixo e a
corneta de pistões coincidem. Ademais, qualquer que seja o número de microfones
utilizados, há apenas um aparelho receptor, o que equivale a escutar com um único
ouvido. Por fim, quando a recebermos em casa, nem os vizinhos nem os aparelhos
toleram o volume sonoro e a gama de matizes da orquestra real — do piano mais sutil ao
forte mais extremo — e essa dinâmica é comprimida.
Ensaio sobre o rádio e o cinema: estética e técnica das artes-relé, um manuscrito começado
em 1941 e abandonado em 1942, tornou-se conhecido através de excertos publicados
por Marc Pierret (1969: 87–96) e Sophie Brunet (1977: 19–23), mas só foi dado à luz em
2010. Uma sucessão de infortúnios faz do período em que trabalhou nesse texto o mais
nefasto da existência do autor: não bastasse a derrota militar na Batalha da França e o
armistício de 22 de junho de 1940, em 19 de junho de 1941 Schaeffer perde a esposa em
circunstâncias dramáticas, e o endurecimento do regime de Vichy, anunciado pelo
3
discurso “Sinto soprar um vento mau” do Marechal Pétain, em 12 de agosto de 1941,
leva à liquidação, em março de 1942, da associação Jeune France, que ele fundara em 22
de novembro de 1940 (Chabrol 1990; Nord 2007), e da qual foi afastado em dezembro
de 1941. Schaeffer refugia-se em Marselha,14 onde lê,15 faz anotações,16 e discursa diante
de uma secretária que lhe datilografa a elocução. O termo arte-relé contrapõe-se a arte
direta e pode ter sido tomado de uma conferência escrita por Paul Valéry17 em fevereiro
de 1937:
A arte literária, derivada da linguagem e da qual a linguagem por sua vez se ressente, é portanto,
entre as artes, aquela em que a convenção desempenha o papel mais importante; em que a
memória intervém a cada instante, através de cada palavra; que age sobretudo por relé, e não pela
sensação direta, e coloca em jogo simultaneamente, e mesmo concorrentemente, as faculdades
intelectuais abstratas e as propriedades emotivas e sensitivas. Ela é, de todas as artes, a que
envolve e utiliza maior número de partes independentes (som, sentido, formas sintáticas, conceitos,
imagens...). (Valéry 1938: 13–14)
Essa ideia embasa o quadro abaixo, extraído do Ensaio (73),18 no qual Schaeffer sumariza
as possibilidades e deficiências do cinema e do rádio em comparação com a linguagem:
Domínio concreto19
Domínio abstrato
Linguagem
Expressão20 difícil
Sugestão inadequada
Expressão adequada
Sugestão fácil
Cinema e rádio
Expressão adequada
Sugestão ilimitada
Expressão impossível
Sugestão lacunar
Por outro lado, em crônica sobre o teatro radiofônico publicada no vespertino
L’Intransigeant em primeiro de abril de 1930 e citada no Ensaio (48), Alex Virot utiliza o
termo relai21 para se referir a um aparelho de mixagem. O que é um relé? Segundo o
Dictionnaire historique de la langue française de Alain Rey (2004: 3158), o verbo relayer se aplica
a “um satélite de telecomunicações, a uma estação de rádio ou de televisão que
retransmite uma emissão do emissor principal a outro emissor”. Rey data essa acepção de
1933. De acordo com o Oxford English Dictionary (OUP 2017), o verbo to relay foi usado
desde a segunda metade do século XIX com o sentido de “passar ou retransmitir (sinais
telefônicos ou de rádio recebidos de outro local)”. Mas por que Schaeffer escolheria
associar o rádio e o cinema a um termo que sublinha a concepção transmissiva que ele irá
contestar?
14
Sobre a vida cultural em Marselha durante a ocupação, ver Guiraud (1990).
Muitos dos conceitos desenvolvidos em Traité des objets musicaux explicitam suas fontes no Ensaio: as
noções de tema e versão (Bonald 1802: 139–140); a de concreto (Poucel 1940: iii); a de fenomenologia (Claudel
1904: 8; Souriau 1929: 163–164).
16 Para uma amostra dessas notas, ver Schaeffer (2010 : 173–176).
A
17 A primeira seção do Ensaio cita duas conferências de Valéry: “Le bilan de l’intelligence” (1936: 267–
305) e “La Politique de l’esprit” (1936: 202–242).
18 Os números de página correspondem à tradução brasileira.
19 Sobre a noção de concreto, ver Schaeffer (2010 : 69, n. 17).
A
20 O contraste entre “expressão” e “sugestão” deriva das noções de linguagem-signo e linguagem-sugestão de
Paulhan (1929: 17–18): “em determinada sociedade, determinada época, há palavras e frases cujo destino
preferencial é exprimir com precisão um fato, transmitir com exatidão uma ideia, uma impressão ou uma
imagem, e cuja função deve geralmente parar aí. Outras palavras, outros arranjos de palavras, ao contrário,
vão despertar longas séries de impressões, de ideias, de sentimentos e de atos”.
21 A Academia Francesa recomendava a grafia antiga, relai, ainda em 1976 (Rey 2004: 3158).
15
4
Formada no final do século XIII pela combinação do prefixo re com o verbo
picardo, valão e loreno laier (deixar, abandonar),22 a palavra relaier designou originalmente
o ato de “substituir os cães fatigados por cães descansados” na caça equestre. A partir do
século XVI ela foi empregada intransitivamente para “trocar os cães durante a caçada” e,
por analogia, “trocar de cavalos”. No século XVII a construção transitiva assumiu o
sentido estendido de “substituir (alguém) num trabalho, numa ocupação”, e passou a ser
usada também na forma pronominal.
Do início do século XV ao início do século XIX na Grã-Bretanha, o substantivo
relay foi utilizado para “um conjunto de cães de caça (e ocasionalmente cavalos)
descansados, a postos para assumirem seus papéis na caça a um cervo, em substituição
àqueles já cansados”. Do início do século XVII ao último quartel do século XIX, um relé
podia ser “um conjunto de cavalos descansados obtido ou mantido de prontidão em
vários estágios de uma rota para acelerar a viajem”. No final do século XVII o termo
começou a associar-se a “um conjunto de pessoas escolhidas para se revezarem com
outras na execução de certas tarefas”. A partir de meados do século XVIII um relé podia
ser “uma série de veículos designados para cobrir uma rota prescrita (geralmente em
sequência)”.
Assim, por mais de meio milhar de anos, o substantivo relé foi sinônimo de
atividades executadas de modo mais efetivo através da substituição de uma força-tarefa
— animal, humana, motiva ou automotiva — exausta por outra nova. No segundo
quartel do século XIX, concomitante com a domesticação da eletricidade, ocorre um
deslocamento semântico. O novo relé é “um instrumento usado na telegrafia de longa
distância a fim de fornecer a uma corrente elétrica que é muito fraca para influenciar os
instrumentos de gravação ou transmitir uma mensagem à distância necessária a
possibilidade de que o faça indiretamente por meio de uma bateria local colocada em
contato com essa corrente” (OUP 2017). Ao invés da substituição de unidades exaustas
por outras novas, o ingresso de energia passa a acarretar o reforço de um agente (elétrico)
por meio de um suprimento extrínseco. No uso atual, um relé se torna “qualquer
dispositivo elétrico [...] por meio do qual uma corrente ou sinal em um circuito pode
abrir ou fechar outro circuito”. No Oxford, o exemplo mais antigo desta acepção data de
1907. Embora esse relé não passe de um botão de ligar e desligar, uma relação com os
sentidos anteriores subsiste: o circuito controlador pode afetar um circuito de saída de
potência maior que a própria, e isso o habilita a ser considerado uma espécie de
amplificador elétrico. Duas propriedades presidem a todos esses sentidos: potenciação e
ruptura. Schaeffer define a relação entre artes diretas e artes-relé numa alegoria:23
Vemos assim, nessa corrida em que competem a arte direta, em plena forma, e a arte-relé, em
pleno ensaio, várias etapas, que geralmente definem três fases:
Primeira fase: o instrumento deforma a Arte.
Segunda fase: o instrumento transmite a Arte.
Terceira fase: o instrumento informa a Arte.
Na primeira fase perdoa-se tudo ao instrumento, porque lhe admiramos a novidade sem
levá-lo a sério. Não se tem medo de sua concorrência. Aliás, é tão evidente ser-lhe impossível
lutar que lhe admiramos sobretudo a boa vontade. Na segunda fase o instrumento aperfeiçoa-se e,
longe de admirar tais aperfeiçoamentos, reclamamos de não ocorrerem com suficiente rapidez,
porque é precisamente quando a imagem se assemelha ao modelo que defeitos e deformações
aparecem. A arte direta espera ser escrupulosamente servida por esse relé, que poderá fornecerlhe difusão inimaginável, facilidades inéditas. Pede-se agora ao instrumento não só mais do que
ele pode dar, mas também aquilo que, por sua própria natureza, ele não pode dar. Vem por fim
uma fase clássica, que o cinema está por atingir, mas da qual o rádio ainda dista bastante. Essa
fase torna-se possível pelo conhecimento do instrumento, pela discriminação entre seus limites e
22
23
Sobre a controvérsia acerca da etimologia e da semântica de laier, ver Rey (2004: 3158).
Citada na redação sintética de 1969.
5
suas possibilidades, e também entre seus dois papéis: retransmitir de certo modo o que tínhamos
o hábito de ver e ouvir diretamente; exprimir de certo modo o que não tínhamos o hábito de ver
e ouvir. (Pierret 1969: 91–92)
O duplo papel do instrumento das artes-relé ilustra a dupla função da reprodução
mecanizada de Walter Benjamin:
Por volta de 1900 a reprodução mecanizada havia atingido um estágio tal que não só começava a fazer das obras
de arte do passado seu objeto e a transformar assim a ação das mesmas, mas chegava também a uma situação
autônoma entre os procedimentos artísticos. (Benjamin 1936: 41)
Benjamin enviou cópias de “L’Œuvre d’art à l’époque de sa reproduction mécanisée” a
bom número de intelectuais parisienses em 1935, entre os quais André Malraux (Palmier
2006: 285), que o mencionou em Londres perante a Associação Internacional dos
Escritores em Defesa da Cultura em 21 de junho de 1936 (Malraux 1936), antes de citá-lo
em “Esquisse d’une psychologie du cinéma”, em 1940:
No século XX, pela primeira vez, criaram-se artes inseparáveis de um meio mecânico de
expressão; não suscetíveis de reprodução, mas expressamente destinadas à reprodução.24 Os mais
belos desenhos já podem ser reproduzidos de modo satisfatório; certamente ocorrerá o mesmo
com as pinturas bem antes do fim do século. Mas nem desenhos nem pinturas foram feitos para
serem reproduzidos. Eles constituem em si mesmos seu próprio fim (ver a esse respeito o
trabalho notável do senhor Walter Benjamin). (Malraux 1940: 71)
Schaeffer encontra a ideia de Benjamin no ensaio de Malraux, que ele cita: “essas artes do
século XX, cuja natureza é de serem ‘inseparáveis de um meio mecânico de expressão’”
(Schaeffer 2010A: 32). E nota em seu diário: “artes de reprodução e artes consideradas
em si; desenhos e quadros não feitos para serem reproduzidos (cf. Walter Benjamin)”.25
O período em que trabalhou no Ensaio foi de passagens: de Vichy para Paris via
Marselha; do luto ao gozo erótico pela mediação da secretária datilógrafa; da radiofonia à
pesquisa sobre ruídos pela prática da arte radiofônica; dos movimentos de juventude
católica ao cristianismo esotérico pela intercessão de George Gurdjieff (Pierret 1969:
112–119). Assim, quando Marc Pierret o interroga, em 1969:
Seria então exato e judicioso incorporar esse quarto de século de suas experimentações sonoras
no tecido de um pensamento de escritor, de filósofo, se o senhor preferir? Em outras palavras,
esses longos anos de experiência radiofônica e depois musical devem colocar-se entre as aspas de
dois textos: o texto premonitório das Artes-Relé, inacabado, inédito, e o relato definitivo,
meditado, publicado, de Traité, vinte e cinco anos depois? (Pierret 1969: 91)
Ele responde:
Creio que seja correto dizê-lo. Creio que em ambos os casos a linguagem (entenda-se também sua
lógica, o traço que ela forma de um pensamento contínuo, os andaimes que fornece à imaginação,
como a equação ao físico) serviu-me de notação e de baliza: voltada para o conhecimento
adquirido, de modo a precisar-lhe a problemática; voltada para o desconhecido, de modo a
vislumbrar-lhe o plano. (Pierret 1969: 91)
Depois de precisar a problemática do rádio, Schaeffer dedica-se à prática da arte
radiofônica na Paris ocupada.
24
“O filme fornece o exemplo de uma forma de arte cujo caráter é pela primeira vez integralmente
determinado por sua reprodutibilidade” (Benjamin 1936: 49).
25
Diário, caixa “J3: Fin 41→ 47 après E”, caderno “P 24, P 25, P 26: fin 1941–1945, Occupation”,
fascículo “P 24: Journal du Studio d’essai et notes philo et esthétique, janvier 42 à printemps 44”,
consultado na residência de Jacqueline Schaeffer; transcrição de Jacqueline Schaeffer.
6
Música concreta
Em 1948 ele contava oito livros publicados, entre biografia (1934), teatro (1939, 1941,
1946B, 1947A, 1947B, 1948) e ensaio (1946A), e preparava-se para lançar seu primeiro
romance (1949). Naquela primavera, a pesquisa sobre ruídos dá início a uma produção
musical que terá na infância seu fastígio. Formulada num misto de diário e ensaio, essa
pesquisa assume o caráter paradoxal de uma liberação em face da escrita:
Há um ano não faço mais que escrever. Tenho vontade de mudar. Sempre se escreve para dizer
algo. De repente se descobre que seria necessário escrever para não dizer mais nada. Sou mesmo
obrigado, se escrevo, a ser moral ou imoral, cômico ou trágico, simbólico ou naturalista. É aí que
me invade a nostalgia da música, que Roger-Ducasse26 diz amar “porque ela não quer dizer nada”.
(Schaeffer 1950: 31)
“Introduction à la musique concrète” situa-se no tempo e em seu espírito:
Convidamos o leitor a partilhar do diário de bordo de um cruzeiro solitário. Solitário quando se
trata dessa música que denominamos “concreta” para que etimologia e embriologia coincidam.
Bem pouco solitário, de fato, quando se trata de uma atitude, de um procedimento do espírito e de
uma tomada de partido diante do evento.27 O que se passa conosco quanto à música concreta é
uma aventura corrente neste semi-século de claridade, neste século de semiclaridade em que
metade do quebra-cabeça ainda está toda embaralhada em sua caixa de surpresas. (Schaeffer 1950:
30)
Há alusão a Igor Stravinsky (31), citação de Jean Roger-Ducasse (31), menção às
colaborações de Pierre Billard (41)28 e Jean-Jacques Grunenwald,29 e declaração de
independência quanto a John Cage (42), mas um ledo engano: a música concreta não é a
que se faz com sons gravados. Concreto é o que “diz respeito aos sentidos e não ao sentido”
(Schaeffer 1950: 51). Ela se define na inversão de sua conduta: “ao contrário do
procedimento tradicional, que vai da partitura à execução, o procedimento concreto vai
do material sonoro à organização” (Pierret 1969: 51):
MÚSICA HABITUAL
(dita abstrata)
—
FASE I. Concepção (mental);
FASE II. Expressão (notada);
FASE III. Execução (instrumental).
(do abstrato ao concreto)
MÚSICA NOVA
(dita concreta)
—
FASE III. Composição (material);
FASE II. Esboços (experimentação);
FASE I.
Materiais (fabricação)
(do concreto ao abstrato)
Essa inversão encontra contrapartida na transgressão do funcionário público:
Eu não poderia exagerar a importância dessa transigência que o leva a apoderar-se de três dúzias
de objetos para fazer barulho sem a menor justificativa dramática, sem a menor ideia
preconcebida, sem a menor esperança. E mais, com o secreto despeito de fazer o que não se deve,
de perder seu tempo numa época séria em que o próprio tempo nos é medido. (Schaeffer 1950:
32)
26 Jean Jules Aimable Roger-Ducasse (1873–1954), compositor francês, aluno dileto de Gabriel Fauré e
sucessor de Paul Dukas no Conservatório de Paris (1936–1946).
27 Em 19 de maio de 1942, Francis Ponge havia lançado o livro Le Parti pris des choses, sobre o qual JeanPaul Sartre publicou um ensaio em 1944.
28 “Pierre Biard” no original (Schaeffer 1950: 41), “Pierre Billard” na coletânea de Brunet (1977: 50), que
provavelmente tenha em mente o realizador de teatro radiofônico (1921–2012).
29 Compositor, organista e improvisador (1911–1982), foi professor de órgão da Schola Cantorum e do
Conservatório de Genebra, autor de trilhas de filmes de André Bresson.
7
Embora os Cinco estudos de ruídos (Mâche e Gorne 1980: 16–17) decorram, cada
um, de um problema de realização, o tema da dissociação entre a percepção de
qualidades sonoras e a percepção do evento produtor do som protagoniza o debate no
papel de requisito da abstração musical. Entrementes, a escuta se afirma e problematiza a
criação:
Por um lado, do momento em que um disco está num prato, uma força mágica me conduz, me
obriga a escutá-lo por monótono que seja. Será que a gente se deixa levar porque estamos envolvidos?
Não ignoro o quanto esses discos são maçantes e impossíveis de serem irradiados como tal. Mas
sei que são extraordinários para escutar num estado de espírito especial, e sei também que os prefiro
em estado bruto ao estado de vaga composição (decomposição) no qual terminei por isolar
penosamente oito pseudocompassos de um pseudo-ritmo.
Baixo a agulha no início de determinado grupo rítmico. Levanto-a bem no fim, encadeio
a outro e assim por diante. A imaginação tem tanta força quando isolamos mentalmente determinado
elemento sonoro e nos esforçamos para realizar essa tomada de matéria pela agulha que, na hora,
nos deixamos levar. Na realidade, quando se reescuta a frio o composto obtido após longas horas
de paciência, não se acha mais que uma fragmentação grosseira de grupos rítmicos rebeldes a
qualquer compasso. Você acredita lembrar que o trem bate um três por quatro, um seis por oito.
O trem bate seu próprio compasso, perfeitamente definido, mas perfeitamente irracional. O mais
monótono dos trens varia sem cessar, jamais toca no compasso. Transforma-se numa sucessão de
isótopos singularmente gêmeos. É aí que, para um ouvido exercitado, estaria o prazer musical.
Esse prazer consistiria não em fazer o trem tocar no compasso, nos compassos de
nossos solfejos elementares, por uma satisfação afinal bem vulgar, mas em aprender a escutar, a
amar esse Czerny de um novo gênero, e sem a ajuda de nenhuma melodia, de nenhuma harmonia,
desfrutar, em monotonia das mais mecânicas, o jogo de alguns átomos de liberdade, as
improvisações imperceptíveis do acaso. Diabolus in mecanica. (Schaeffer 1950: 38)
Um companheiro incógnito de viagem era Francis Ponge (1899–1988), que, na
Argélia, escrevia em 31 de janeiro de 1948:
A cada instante do trabalho de expressão, à medida que escrevo, a linguagem reage, propões suas
próprias soluções, incita, suscita ideias, ajuda a formação do poema.
Nenhuma palavra é empregada que não seja logo considerada uma pessoa. Que a
claridade que ela carrega consigo não seja utilizada; e a sombra que carrega também.
Quando aceito uma palavra na saída, quando deixo sair uma palavra, imediatamente
devo tratá-la não como um elemento qualquer, um pedaço de madeira, uma peça de quebracabeça, mas como um peão ou uma figura, uma pessoa de três dimensões etc., e não posso dispor
dela exatamente como bem entenda. (Cf. a frase de Picasso sobre minha poesia).30
Cada palavra se impõe a mim (e ao poema) em toda a sua espessura, com todas as
associações de ideias que comporta (que comportaria se estivesse só sobre fundo escuro). E
todavia é necessário transpô-la... (Ponge 1961: 33–34)
O excerto integra “My Creative Method”,31 publicado em Zurique em 1949, e em Paris
em 1961, já como parte do livro Méthodes, segundo volume de Le Grand Recueil (Ponge
1999: 441–809). Em junho de 1948, “Le Lézard” (Ponge 1999: 745–748), do terceiro
volume do Grand Recueil, foi lido numa emissão do mesmo Club d’Essai (Ponge 1999:
lxxiii) onde se criava a música concreta. Em 1966 Traité des objets musicaux prestará tributo
à escrita de Ponge, da qual Schaeffer dirá: “não obra de autor que tem a dizer, mas
trabalho sobre as palavras que terminam por dizer mais que o autor sabia, e por
encaminhá-lo a sentidos que ele próprio não reconhece senão em retrospecto” (Schaeffer
1966: 658).
30
“O senhor, suas palavras, são como pequenos peões, o senhor sabe, pequenas estatuetas, elas giram e
têm várias faces, cada palavra, e se iluminam umas às outras” (Ponge 1999: 684).
31 O título deriva de um artigo de de Betty Miller (1947); ver Ponge (1999: 1089).
8
Tratado
As teorizações da música concreta prosseguem numa série de textos dos anos 1950, em
particular no livro Introduction à la musique concrète (1952) e nos artigos “Vers une musique
expérimentale” (1957), “Lettre à Albert Richard” (1957) e “Situation actuelle de la
musique expérimentale” (1959). Este aparece em volume da Revue musicale que anuncia
um Acousmatique, ou traité des objets musicaux, em resposta aos “principais enigmas lançados
em 1952 por sua primeira obra” (Schaeffer 1959: 72). O autor dispendeu quinze anos na
elaboração de Traité, “objeto de três, quatro, cinco redações inicialmente informes,
aproximativas” (Pierret 1969: 97). A versão final começa a tomar corpo por volta de
1960.32 Na introdução, “Situação histórica da música”, ele coloca em evidência “três fatos
novos” (Schaeffer 1966: 16–18) e os “três impasses da musicologia” decorrentes:
Um desses impasses é o das noções musicais. Não são apenas a escala e a tonalidade que as músicas
mais aventurosas de nossa época, como as mais primitivas, terminam por negar, mas a primeira
dessas noções: a de nota musical, arquétipo do objeto musical, fundamento de toda a notação,
elemento de toda a estrutura, melódica ou rítmica. Nenhum solfejo, nenhuma harmonia, seja
atonal, pode dar conta de certa generalidade de objetos musicais, e principalmente daqueles que a
maioria das músicas africanas ou asiáticas utilizam.
O segundo impasse é o das fontes instrumentais. Independente da tendência dos
musicólogos a referirem os instrumentos arcaicos ou exóticos a nossas normas, eles se viram
subitamente desarmados diante das fontes novas de sons concretos ou eletrônicos que —
surpresa! — às vezes se entendiam bem com instrumentos africanos ou asiáticos. Ainda mais
inquietante era a possível desaparição da noção de instrumento. Instrumentos polivalentes ou
sintéticos, tais seriam os ornamentos de nossas salas de concerto, a menos que um despojamento
total consagrasse a ausência de qualquer instrumento. Assistiríamos ao desaparecimento da
orquestra e do regente, evidentemente ameaçados pelo desaparecimento das partituras, em via de
serem substituídas por fitas magnéticas lidas por alto-falantes?
O terceiro impasse é o do comentário estético. Em seu conjunto, a abundante literatura
devotada às sonatas, aos quartetos e às sinfonias soa oca. Só o hábito nos pode mascarar a
pobreza e o caráter bizarro dessas análises. Quando se descartam, a montante e a jusante da obra,
as considerações complacentes sobre o estado de espírito do compositor ou do exegeta, fica-se
reduzido à mais seca das enumerações, em termos de tecnologia musical, de seus procedimentos
de fabricação ou, na melhor das hipóteses, ao estudo de sua sintaxe. Mas nada de verdadeira
explicação de texto. Talvez não haja razão para espanto? Talvez a boa música, por ser ela mesma
linguagem, e linguagem específica, escape radicalmente de toda descrição e de toda explicação por
meio de palavras?33 Em todo caso, nos limitaremos a reconhecer que o problema é
suficientemente importante para não poder camuflar-se, e a dificuldade não foi nem
resolutamente confrontada nem claramente tratada.
A análise é indubitavelmente severa, mas um dia ou outro necessitaremos tomar ciência
do esgotamento musicológico que ela denuncia. Se toda a explicação se esquiva, seja ela nocional,
instrumental ou estética, mais valeria confessar que, ao fim e ao cabo, não sabemos grande coisa da
música. E pior, que o que sabemos está propenso a nos desnortear ao invés de orientar-nos.
(Schaeffer 1966: 19–20)
Traité des objets musicaux: essai interdisciplines se organiza num “percurso em
ziguezague, em sete saltos denominados ‘livros’” (Schaeffer 1966: 11). O primeiro,
“Fazer música”, trata da origem do instrumento e de suas relações com o
desenvolvimento das linguagens musicais. O segundo, “Ouvir” (entendre), expõe o sistema
das “quatro funções da escuta”.34 O terceiro, “Correlações entre sinal físico e objeto
musical”, analisa as percepções de altura, duração, intensidade e timbre em suas relações
32 Sophie Brunet, que começara a trabalhar com Schaeffer em 1959, recebe então a oferta de um
adiantamento para escrever seu segundo romance (o primeiro seria publicado em 1962) e a rejeita “para
obrigar Schaeffer a escrever seu livro” (comunicação verbal de Brunet).
33 A esse respeito, ver a abertura do artigo “Le Grain de la voix”, de Roland Barthes (1972).
34 Enganosamente vertidas ao inglês por modes of listening.
9
com as mensurações de frequência, tempo, amplitude e espectro para caracterizá-las em
termos de anamorfoses (deformações). O quarto, “Objetos e estruturas”, busca referências
na filosofia, na fenomenologia, na Gestalt, na linguística, na fonética e na fonologia. O
quinto, “Morfologia e tipologia dos objetos sonoros”, e o sexto, “Solfejo dos objetos
musicais”, definem as cinco operações do solfejo do objeto sonoro, das quais apenas as
duas primeiras — morfologia e tipologia — são efetivamente realizadas. O sétimo, “A
música como disciplina”, depõe “a título mais pessoal” (12).
Escutar
Schaeffer parte do Dictionnaire de la langue française de Émile Littré para desenvolver a
semântica dos verbos ouïr, écouter, entendre e comprendre. Ele dirá mais tarde:
Insisti, ao final do Tratado, neste aspecto que praticara anos a fio, um pouco à maneira de Ponge.
Não foi a palavra pré35 ou verre d’eau36 que explorei, mas, graças a Littré,37 as palavras chave:
entendre, comprendre, ouïr. Essas palavras, esses seixos38 gastos pelo uso, serviram-me de laboratório.
Que digo eu, de Conselheiros, Ancestrais, Palavras Mestras! (Pierret 1969: 91)
A argumentação se desenvolve em sete etapas. A primeira sintetiza o verbete
entendre (Littré 1874: 1419–1421):
Entendre: dirigir seu ouvido a, por onde, receber impressões de sons. Ouvir (entendre)39 barulho.
Ouço (j’entends) falar na peça ao lado, ouço (j’entends) que me dizes novidades.
1. Entendre-écouter: ouvir (entendre) é ser suscetível a sons; escutar é dar ouvidos para ouvilos (entendre). Às vezes não se ouve (entend), embora se escute, e frequentemente se ouve (entend)
sem escutar.
2. Entendre-ouïr: essas duas palavras, muito diferentes na origem, são hoje completamente
sinônimas. Ouïr era a palavra correta, pouco a pouco substituída por entendre, que é a figurada. Ouïr
é perceber pelo ouvido; entendre é, propriamente, prestar atenção. Só o uso lhe deu o sentido
desviado de ouvir. A única diferença é que ouïr tornou-se verbo defectivo de uso restrito. Quando
o significado pode ser ambíguo, deve-se empregar ouïr sem hesitação. Assim, neste dito de
Pacuvius sobre os astrólogos: Il vaut mieux les ouïr que les écouter (melhor ouvi-los que escutá-los).40
Entendre contrariaria o sentido da frase.
3. Etimologicamente: tender a, por onde, ter a intenção, o desígnio. Comment l’entendez vous?
(Qual é sua intenção?).
4. Entendre-concevoir-comprendre: entender e compreender significam captar o sentido. Isso
os distingue de conceber, que significa apreender mentalmente. Entendo ou compreendo esta
frase, e não eu a concebo. Ao contrário, no verso de Boileau, “o que se concebe bem, se enuncia
claramente”,41 entender ou compreender não conviriam. A diferença de matiz entre entender e
compreender é outra: a ideia de entender é prestar atenção, ser versado em, ao passo que a de
compreender é tomar para si. Entendo o alemão, eu o sei, sou versado nele. “Compreendo o
alemão” diria menos. (Schaeffer 1966: 103–104)
Entendre carrega consigo uma ambiguidade fundamental: termo marcado no par
oposicional entendre/ouïr, onde significa “prestar atenção”, em contraste com “perceber
pelo ouvido”; termo não marcado no par oposicional écouter/entendre, onde significa “ser
35
Cf. “Le Pré”, Nouveau Recueil (Ponge 2002: 340–344).
Cf. “Le Verre d’eau”, Méthodes (Ponge 1961: 115–173).
37 Sobre a mística do Littré em contraposição ao Robert, ver Ponge (1961: 19).
38 Cf. Tcholakian (1989).
39 Toda a vez que o verbo entendre se traduza por outro termo que não “entender”, ele aparecerá,
flexionado, após a tradução.
40 Magis audiendum quam auscultandum censeo, frase de Marcus Pacuvius (220 a.C. – 130 a.C.), poeta,
dramaturgo e pintor romano, citada por Michel de Montaigne (1595: 24).
41 Ce que l’on conçoit bien s’énonce clairement, Et les mots pour le dire arrivent aisément (1674), versos de Nicolas
Boileau (1636 – 1711), poeta, escritor e crítico (Boileau 1808: 24).
36
10
suscetível a sons”, em contraste com “dar ouvidos para ouvi-los”. A segunda etapa
especializa a lexicografia:
1. Escutar é prestar ouvido, interessar-se por. Dirijo-me ativamente a alguém ou a alguma coisa
que me é descrita ou indicada por um som.
2. Ouvir é perceber pelo ouvido. Em oposição a escutar, que corresponde à atitude mais
ativa, ouço o que me é dado na percepção.
3. De entendre reteremos o sentido etimológico: “ter uma intenção”. O que entendo
[ouço], o que me é manifesto, é função dessa intenção.
4. Compreender, tomar consigo, mantém relação dupla com escutar e entender [ouvir].
Compreendo o que visava em minha escuta graças àquilo que escolhi entender [ouvir]. Mas
reciprocamente, o que já compreendi dirige minha escuta, informa o que entendo [ouço].
(Schaeffer 1966: 104)
“Entender” pareceria traduzir entendre no excerto acima, mas seria necessário que
se pudesse ler também “o que ouço, o que me é manifesto, é função dessa intenção”. A
terceira etapa ilustra a lexicografia através de exemplos que delineiam uma
fenomenologia.
OUVIR
Para ser preciso, jamais deixo de ouvir. Vivo num mundo que não cessa de ser-aí para mim, e esse
mundo é sonoro, tanto quanto tátil e visual. Desloco-me numa “ambiência” como numa
paisagem. O silêncio mais profundo é ainda um fundo sonoro como outro qualquer, do qual se
destacam então, com solenidade incomum, o ruído de minha respiração e o ruído de meus
batimentos cardíacos (cf. relatos de cosmonautas sobre o “silêncio espacial”). O que seria para
nós a estranheza de um mundo subitamente privado dessa dimensão, o podemos entrever graças
a um incidente técnico, quando a faixa sonora de um filme é bruscamente interrompida, ou em
certos sonhos. Lembremos o de Baudelaire e sua “móveis maravilhas”, sobre as quais “pairava —
terrível novidade — tudo para o olho, nada para o ouvido — um silêncio de eternidade”.42 Como
se o rumor contínuo que impregna até nosso sono43 se confundisse com o sentimento de nossa
própria duração.
Nem por isso ouvir é “ser suscetível a sons” que chegariam a meu ouvido sem atingir
minha consciência. É de fato em relação a ela que o fundo sonoro adquire realidade. A ele me
adapto instintivamente, sem me dar conta sequer, ao elevar a voz quando seu nível aumenta. Ele
se associa para mim ao espetáculo, aos pensamentos e às ações que acompanhava sem que eu me
apercebesse, e às vezes por si só bastará para evocá-las. A música de um filme, à qual eu não havia
prestado nenhuma atenção, tão absorto estava nas peripécias dramáticas, despertará, quando a
escute (entendrai) ao rádio, as emoções que o filme havia provocado, antes mesmo que a tenha
identificado formalmente. Sou por fim imediatamente alertado quanto a uma modificação brusca
ou inusitada desse fundo sonoro do qual não estava ciente: sabe-se do caso de pessoas que
moram perto de uma estação ferroviária e despertam quando o trem não passa no horário.
Mas é verdade ser sempre indiretamente, por reflexão ou memória, que posso tomar
ciência do fundo sonoro. Escuto (j’entends) soar o relógio de pêndulo. Sei que já soou. Apressado,
reconstituo mentalmente as duas primeiras batidas, que havia ouvido, e situo a que escutei (j’ai
entendu) como a terceira, antes mesmo que soe a quarta. Não houvesse tentado saber a hora, eu
ignoraria efetivamente que as duas primeiras haviam chegado a minha consciência. Falam comigo,
penso em outra coisa. Meu interlocutor, ofendido, se cala. Escuto (j’entends) esse silêncio de mau
agouro. Consigo extrair do fundo sonoro, antes de lá perder-se para sempre, a última metade da
frase que ele pronunciara, e com um pouco de sorte conseguirei dar-lhe a réplica e persuadi-lo de
que a distração era apenas aparente.
42
Et sur ces mouvantes merveilles Planait (terrible nouveauté! Tout pour l’œil, rien pour les oreilles!) Un silence d’éternité,
Charles Baudelaire (1975: 103), “Rêve parisien”, Les Fleurs du mal (1861), originalmente publicado na Revue
contemporaine em 15 de maio de 1860 (Baudelaire 1975: 1040). Baudelaire explica: “O movimento implica
geralmente o ruído, a tal ponto que Pitágoras atribuía uma música às esferas em movimento. Mas o sonho,
que separa e decompõe, cria a novidade” (Baudelaire 1975: 1043).
43 Cf. o conhecido excerto sobre os ruídos de Paris na abertura des La Prisonnière, de Marcel Proust
(1923: 9–10); sobre a escuta em Proust, ver Reyner (2017).
11
ESCUTAR
Suponhamos agora que eu escute esse interlocutor. É dizer que não escuto ao mesmo tempo o
som de sua voz. Volto-me para ele submisso a sua intenção de comunicar-me algo, pronto para
ouvir, do que ele oferece a minha audição, somente aquilo que tenha valor de indicação
semântica. Ele tem um sotaque do Midi que pode ter-me divertido quando o conheci, que noto
ainda quando o reencontro depois de algum tempo, mas negligencio agora. (Todavia, quando
lembre essa conversa, não intelectualmente, para recapitular os pontos trocados ou extrair-lhes
conclusões, mas espontaneamente, ao retornar depois ao local onde ocorreu, reencontrarei não
apenas as ideias trocadas, mas também aquele sotaque de certo Midi, aquele fraseado particular,
aquela voz que reconheço sem hesitação entre tantas outras, a um conjunto de caracteres que não
havia cessado pois de ouvir, embora possa ser completamente incapaz de analisá-lo).
Escutar, acabamos de ver, não é necessariamente interessar-se por um som. Não é
mesmo senão excepcionalmente interessar-se por ele, mas, por seu intermédio, visar outra coisa.
No limite, chega-se ao ponto de esquecer essa passagem pela audição. Escutar alguém
torna-se então praticamente sinônimo de obedecer (“Escuta teu pai!”) ou de dar crédito (assim,
Pacuvius recomenda não escutar os astrólogos, mesmo que não possamos dispensar-nos de ouvilos). Ao escutar o que me dizem, tendo, através das palavras, mas também ao largo de uma
formulação talvez imperfeita, às ideias que me esforço para compreender.
Escuto um carro. Eu o situo, localizo sua distância, eventualmente reconheço-lhe a
marca. Que sei do ruído que me forneceu esse conjunto de informações? A descrição que faria, se
solicitado, seria tanto mais pobre quanto mais segura e rapidamente tenha-me informado.
Ao contrário, é precisamente ao ruído do carro que presto ouvido se esse carro é o meu
e me parece que o motor “faz um ruído esquisito”. Mas minha escuta permanece utilitária, pois
procuro inferir informações quanto ao funcionamento do motor: incerto das causas, forçoso é
passar primeiro por uma análise dos efeitos.
Posso, finalmente, escutar, como me havia proposto de início, com o objetivo exclusivo
de ouvir melhor (mieux entendre). Essa análise, que até há pouco se impunha como etapa, torna-se
alvo em si mesma. Voltado para o evento, eu aderia a minha percepção, eu a utilizava sem o saber.
Agora tomei distância, cesso de utilizá-la, estou desinteressado. Ela pode finalmente aparecer, tornarse objeto. Escutar assim ainda é visar, através do som, ele mesmo instantâneo, outra coisa que não o
som: uma espécie de “natureza sonora” que se dá na íntegra de minha percepção.
ENTENDRE
Podemos agora definir entendre em relação aos dois verbos precedentes.
a) Ouïr-entendre
Começo por observar ser-me praticamente impossível não fazer seleção naquilo que ouço. O
fundo sonoro não é antecedente: ele só existe como tal num conjunto organizado onde
efetivamente desempenhe esse papel. Enquanto esteja ocupado com o que olho, penso ou faço,
vivo realmente numa ambiência indiferenciada, sem perceber mais que uma qualidade global. Mas
se permaneço imóvel, de olhos fechados, mente vazia, é bem provável que não mantenha uma
escuta imparcial por mais de um instante. Situo os ruídos, separo-os em próximos ou distantes,
externos ou internos, e fatalmente começo a privilegiar uns em detrimento de outros. O tiquetaque do relógio de pêndulo impõe-se, me obceca, apaga todo o resto. Involuntariamente
imponho-lhe um ritmo: tempo fraco, tempo forte. Incapaz de destruí-lo, tento ao menos
substituí-lo. Chego a me perguntar como pude um dia dormir no mesmo quarto que esse relógio
irritante. Mas basta um carro frear bruscamente lá fora para que eu esqueça. Pelo que sei agora,
meu quarto bem poderia ser uma ilha de silêncio açoitada por rumores externos. Mas escuto
(j’entends) baterem à porta; e o conjunto dessas organizações cambiantes mergulha de vez no
fundo sonoro enquanto abro os olhos e me levanto para abrir.
Graças a essas mudanças, pude ao menos inventariar, por fragmentos e por surpresa, o
pano de fundo sobre os qual se desenrolavam, e ainda dar-me conta de ser responsável por essas
intermináveis variações. Quando minha intenção seja mais firme, a organização correspondente
será tanto mais forte, e é aí que, paradoxalmente, terei a impressão de que se imponha do exterior.
Assim, ao participar de uma conversa familiar entre várias pessoas, passarei de um tema e de um
interlocutor a outro sem imaginar por um instante sequer a extravagante confusão de vozes,
ruídos e risos a partir da qual realizo uma composição única, diferente daquela que cada um de
meus companheiros realiza por conta própria. Para revelá-la, será preciso um registro
frequentemente indecifrável, pois o gravador não escolhe nada.
12
b) Écouter-entendre
Que acontecerá caso, pelo contrário, eu escute para ouvir (entendre), seja porque ignore a
proveniência do objeto sonoro, o que me obriga a passar por sua descrição, seja porque a quero
ignorar e interessar-me exclusivamente por ele? Seria um erro acreditar que ele vá revelar-se a
mim com todas as suas qualidades porque o extraí do plano de fundo ao qual o relegara:
continuarei a praticar seleções sucessivas, a considerar este ou aquele aspecto um após outro.
Assim, quando olho uma casa, eu a situo na paisagem. Mas se continuo a interessar-me
por ela, examinarei ora a cor da pedra, sua matéria, ora a arquitetura, ora o detalhe de uma
escultura sobre a porta; logo retornarei à paisagem em função da casa para constatar que esta
desfruta “uma bela vista”, e a verei de novo em seu conjunto, como o fizera de início, mas minha
percepção estará enriquecida de minhas investigações precedentes. Ademais, está quase fora de
minhas possibilidades enxergá-la com os mesmos olhos com que enxergaria um rochedo ou uma
nuvem. Trata-se de uma casa, de uma obra humana concebida para abrigar humanos. É em
função desse sentido que a vejo e aprecio. E minha investigação, bem como minha apreciação,
serão também distintas a depender de serem meus olhos os de um futuro proprietário, os de um
arqueólogo ou os de um esquimó especialista em iglus.
Encontraremos no próximo capítulo um tratamento detalhado do processo de escuta
qualificada, cuja diversidade decorre de uma lei fundamental da percepção, que é a de proceder por
“esboços sucessivos”, sem jamais esgotar o objeto; da multiplicidade de nossos conhecimentos e
de nossas experiências anteriores (em função dos quais o objeto imediatamente se apresenta com
diferentes sentidos ou significados); e da variedade de nossas intenções de escuta, daquilo ao qual
tendemos. Contento-me aqui com um exemplo característico que tomo de um romance de Max
Frisch, Homo faber.44
“Todos os dias de manhã, um ruído esquisito me acordava, meio industrial, meio
musical, um rumor que não conseguia explicar, não forte, mas frenético como grilos, metálico,
monótono, provavelmente uma mecânica, mas não adivinhava qual, e depois, quando íamos
tomar café-da-manhã na vila, acabara-se, não se via nada.”
“Fizemos as malas domingo. E o estranho ruído que me acordara todas as manhãs
revelou-se música, algazarra de uma marimba antiga, martelagem sem timbre, uma música
horrível, absolutamente epilética. Tratava-se de alguma festa relacionada à lua cheia. Todas as
manhãs, antes dos trabalhos do campo, eles haviam ensaiado para acompanhar a dança, cinco
nativos que, com pequenos martelos, batiam furiosamente em seu instrumento, uma espécie de
xilofone do comprimento de uma mesa.”
As duas descrições evidentemente se correspondem. Frenesi, monotonia e martelagem,
rumor e ausência de timbre, ruído metálico e golpes de martelo num xilofone. De sua cama, todas
as manhãs, depois lá fora, no momento de partir, Walter Faber praticamente ouviu a mesma coisa.
Não diremos o mesmo do que ele escutou (a entendu). No primeiro caso ele escutava
(entendait) um ruído cuja causa procurava explicar; no segundo, informado das causas, ele aprecia uma
música. O que era apenas “esquisito” torna-se de repente “horrível”. O “frenesi”, que no primeiro
caso aparecia como simples analogia descritiva (nosso herói não imaginando imputá-lo
diretamente aos grilos), é percebido com maior intensidade ao revelar-se resultado de furiosa
atividade instrumental, e torna-se então “absolutamente epilético”. Após conseguir qualificar a
escuta, Walter Faber começou a ouvir (entendre) e depois a compreender em função de uma
significação precisa.
COMPREENDER
De fato, informado não diretamente pelo objeto sonoro, que permanecia incerto, “meio
industrial, meio musical”, mas pelo recurso da vista, ele compreendeu tratar-se de música.
Do mesmo modo que o herói de Max Frisch, posso entender a causa exata do que ouvi
(j’ai entendu) ao colocá-lo em relação com outras percepções, ou através de um conjunto mais ou
menos complexo de deduções. Ou ainda, posso compreender, por meio de minha escuta, algo
que não tenha senão um vínculo indireto com o que ouço (j’entends): constato simultaneamente
que os pássaros se calam, que o céu está baixo, que o calor é sufocante, e compreendo que haverá
tempestade.
Compreendo ao termo de um trabalho, de uma atividade consciente do espírito, que já
não se contenta em acolher um significado, mas abstrai, compara, deduz, relaciona informações
de fonte e natureza diversas; trata-se de precisar um significado inicial ou de extrair um significado
suplementar.
44 Max Rudolf Frisch (1911–1991), escritor e arquiteto suíço. Homo faber foi publicado em Frankfurt em
1957, em Paris em 1961, e no Rio de Janeiro em 1986.
13
Para a dona de casa, este ruído que lhe chega da sala ao lado e a faz sobressaltar-se está
prenhe de sentido: é um ruído de queda ou de quebra. Ela o ouve (entend) como tal. Dá-se conta,
ademais, de que o filho não está perto, lembra-se de que o vaso de porcelana chinesa está
imprudentemente colocado numa mesa a seu alcance, e compreende facilmente que a criança
acaba de quebrá-lo.
Escuto e entendo o que me dizem, mas, ao identificar contradições no relato e comparálo a certos fatos que, aliás, conheço, compreendo também que meu interlocutor mente. De súbito,
minha desconfiança atiçada passa a orientar diferentemente minha escuta, e compreendo também
hesitações, certas mudanças no timbre da voz, e até “olhares que creríeis mudos”.45
Como o último exemplo permite antever, às vezes se emprega indistintamente entender
e compreender na acepção em que são sinônimos: captar o sentido. Tal ocorre quando afirmamos
indiferentemente que “te compreendo” ou “te entendo”, ou quando nos queixamos de não
compreender (ou entender) a música moderna. De fato, em ambos os casos, o ato de
compreensão coincide exatamente com a atividade da escuta: todo o trabalho de dedução,
comparação e abstração é integrado e ultrapassado bem além do conteúdo imediato, do “dado a
entender”. (Schaeffer 1966: 104–111)
A quarta etapa efetua a terceira síntese lexical:
1. Escuto o que me interessa.
2. Ouço, se não for surdo, o que se passa de sonoro a meu redor, quaisquer que sejam,
aliás, minhas atividades e meus interesses.
3. Entendo em função do que me interessa, do que já sei e do que busco compreender.
4. Ao termo do entender, compreendo o que buscava compreender, aquilo em virtude
do qual escutava. (Schaeffer 1966: 113)
A quinta etapa desenvolve essa síntese e generaliza a fenomenologia:
1. O silêncio, supostamente universal, é perturbado por um evento sonoro. Pode ser evento natural
(pedra que rola, cata-vento que guincha) ou emissão voluntária de som por instrumentista. Seja
como for, o que escutamos espontaneamente neste nível é a anedota energética traduzida pelo
som.
2. Correspondente ao evento objetivo, encontramos no ouvinte o evento subjetivo
representado pela percepção bruta do som, ligada em parte a sua natureza física, em parte a leis gerais
da percepção, que estamos autorizados a supor, grosso modo, serem as mesmas para todos os
seres humanos (como o fazem as descrições dos gestaltistas).
3. Relacionada a experiências passadas, a interesses dominantes, atuais, essa percepção dá
lugar a uma seleção e a uma apreciação. Diremos que tenha sido qualificada.
4. As percepções qualificadas orientam-se para uma forma particular de conhecimento, e
o sujeito chega finalmente a significados, abstratos em relação ao próprio concreto sonoro. De modo
geral, o ouvinte compreende neste nível certa linguagem dos sons. (Schaeffer 1966: 114)
A sexta etapa desenvolve essa generalização:
1. Escuto o evento, procuro identificar a fonte sonora: “O que é? O que aconteceu?” Não me
detenho então no que percebo, dele me sirvo inadvertidamente. Trato o som como um índice que
me assinala algo. É certamente o caso mais comum porque corresponde a nossa atitude mais
espontânea, ao papel mais primitivo da percepção: prevenir um perigo, guiar uma ação. Essa
identificação do evento sonoro com seu contexto causal geralmente é instantânea. Mas é possível
também que, os índices sendo incertos, ela só se produza após diversas comparações e deduções.
A curiosidade científica, embora coloque em jogo conhecimentos altamente elaborados, persegue
um objetivo fundamentalmente semelhante ao da percepção espontânea do evento.
2. Ao contrário, posso voltar-me para essa percepção, que há pouco utilizava, e é a esse
som diretamente que endereçarei a pergunta: “O que é?” Quer dizer que o trato como objeto. É o
que denominamos objeto sonoro bruto. (Esse tema será amplamente desenvolvido no livro IV). Ele é
aquilo que permanece idêntico através tanto do “fluxo de impressões” diversas e sucessivas que
45
Conforme a fala de Nero para Júnia na terceira cena do segundo ato do Britannicus, de Jean Racine
(1670: 27): j’entendrai des regards que vous croirez muets (ouvirei olhares que crereis mudos).
14
tenho dele quanto de minhas diferentes intenções a seu respeito. A segunda característica
essencial de um objeto percebido é não se oferecer senão por esboços: no objeto sonoro que
escuto há sempre mais para ouvir (entendre), ele é uma fonte inexaurível de potencialidades. Assim,
a cada repetição de um som gravado, escuto o mesmo objeto: bem que jamais o ouça (entende)
igualmente, que ele passe de desconhecido a familiar, que perceba sucessivamente diversos de
seus aspectos, que ele não seja pois jamais idêntico, sempre o identifico como este objeto preciso.
3. É igualmente o mesmo objeto sonoro o que escutam diversos ouvintes reunidos em
torno de um gravador magnético. Mas eles não ouvem (entendent) todos a mesma coisa, não
selecionam e não apreciam igualmente, e na medida em que sua escuta toma assim partido por
este ou aquele aspecto particular do som, ela dá lugar a esta ou àquela qualificação do objeto. Essas
qualificações variam, como o ouvir (entendre), em função de cada experiência anterior e de cada
curiosidade. Todavia, o objeto sonoro único, que torna possível essa multiplicidade de aspectos
qualificados do objeto, subsiste na forma, digamos, de um halo de percepções, às quais as
qualificações explícitas fazem referência implícita. Desse modo, quando concentro minha
percepção qualificada no detalhe de uma casa — janela, escultura acima da porta —, nem por isso
a casa está menos presente, e vejo essa janela ou essa escultura como partes dela.
4. Posso, por fim, tratar o som como um signo que me introduz em certo domínio de
valores, e posso me interessar por seu sentido. O exemplo mais característico é certamente o da
fala. Trata-se aqui de uma escuta semântica, centrada em signos semânticos. Entre as diversas
escutas “significantes” possíveis, naturalmente nos interessamos em particular pela escuta musical,
que se refere a valores musicais e dá acesso a um sentido musical. Note-se que os valores dos
quais falamos são, no limite, destacáveis de seu contexto sonoro, reduzido assim ao papel de
suporte. Geralmente concordamos que a comunicação opere uma junção de espíritos. Nessa
perspectiva, é natural que, nas duas extremidades do circuito, e notoriamente nesta, a da recepção,
se abandone a contingência do veículo sonoro no interesse de seu conteúdo significante. Os
valores musicais tradicionais não se excetuam na medida em que os signos da música precedem
sua realização sonora. É esta que nos esforçamos por melhorar em vista daqueles, e não o inverso.
Eis por que pudemos falar, neste ponto 4, de significações abstratas; neste nível, o abstrato se
opõe ao concreto material do nível 1. (Schaeffer 1966: 114–117)
A sétima etapa apresenta a síntese final:
4. COMPREENDER
1. ESCUTAR
— para mim: signos
— diante de mim: valores (sentidolinguagem)
— para mim: índices
— diante de mim: eventos
exteriores (agente-instrumento)
Emergência de um conteúdo do
som e referência a noções extrasonoras, confrontação com elas.
Emissão do som.
3. ENTENDRE
— para mim: percepções
qualificadas
— diante de mim: objeto
sonoro qualificado
Seleção de certos aspectos
particulares do som.
3 e 4: abstrato
1 e 4:
objetivo
2. OUVIR
— para mim: percepções
brutas, esboços do objeto
— diante de mim: objeto
sonoro bruto
2 e 3:
subjetivo
Recepção do som.
1 e 2: concreto
15
Esse “caminho de pensamento” (Heidegger 1997: 41; 2001: 11) desenha uma
espiral de sentido duplo: centrífugo, em desenvolvimentos fenomenológicos que partem
de exemplos para generalizações; centrípeto, em sínteses lexicais flexionadas pela
fenomenologia. Temos assim, em sístoles e diástoles sucessivas: (1) síntese lexical; (2)
especialização da primeira síntese; (3) desenvolvimento fenomenológico ilustrado; (4)
terceira síntese lexical; (5) desenvolvimento da terceira síntese por generalização da
fenomenologia; (6) terceiro desenvolvimento; (7) síntese final. Mais tarde, Schaeffer
apresentará a versão existencial desse caminho de escuta:
Uma criança comunga. Ela se recolhe, faz silêncio, espera alguma coisa surgir de si ou de seu
Visitante, coisa nem comum nem excessiva que aumente o sentimento recíproco da presença de
mim para Ele e d’Ele para mim. Despojada de palavras, a adoração, antes de ser intenção,
geralmente é atenção, mobilização da consciência.
Um homem se concentra (como emissários de outras civilizações ensinaram). Sem
visitante externo, sem sacramento, sem signo sensível, é ainda um chamado por forças latentes, e
também pela presença — daí a parada possível (esperemos), mas improvável, da agitação
costumeira, do ruído de fundo da mente e suas infindáveis associações. Não falemos das receitas
incertas, dos comentários ociosos, dos mal-entendidos prováveis.
Por fim, um ouvinte escuta um som (e não um discurso sonoro de dormir em pé nem
uma música para sonhar, dançar, chorar ou sorrir). Colocamos à disposição de sua escuta certo
fragmento de som que se repete, ao qual ele se dedica como se fixasse uma luz, uma maçaneta ou
a linha do horizonte. Ele não recebe nem Deus nem o fluxo de seu corpo, mas um sinal do
mundo exterior cuja imagem sonora se forma em sua consciência. Para considerá-lo, é necessário
também prestar atenção e fazer silêncio, e paradoxalmente, para assimilá-lo, é necessário ainda
despojar-se de tudo o que até então se sabia dele, descartar os sentidos, os índices e qualquer
sugestão relativa ao sinal. Se o reescutarmos agora ou em algumas horas, em alguns dias, mais
aprenderemos, não apenas sobre o objeto que consideramos, mas também sobre as faculdades do
sujeito que somos, nos observando observar. Exatamente em que consiste o ensinamento? Faço
pesquisa musical? Decifro-me a mim mesmo? Vou contar prosa, dizer-me psicólogo, musicólogo,
semiólogo? Diante da experiência íntima, do verdadeiro proveito, míseras especialidades. (Brunet
1969: 211–212)
Esses parágrafos sumarizam três grandes períodos da vida de Schaeffer: o dos
movimentos de juventude católica, que culminam na experiência de Jeune France no
início dos anos 1940; o da “cristandade esotérica” de Gurdjieff, correspondente à
primavera da música concreta em 1948; e o da pesquisa musical, associado ao Groupe de
Recherches Musicales (GRM) e à criação do Service de la Recherche na passagem dos
anos 1950 aos anos 1960. Reencontramos aqui Francis Ponge tal qual Ítalo Calvino o
entendia em 1979:
Tomar um objeto dos mais humildes, um gesto dos mais quotidianos, e procurar considerá-lo
fora de todo o hábito perceptivo, descrevê-lo fora de todo o mecanismo verbal gasto pelo uso.
Eis que uma coisa indiferente e quase amorfa como uma porta revela uma riqueza inesperada;
ficamos subitamente felizes de encontrar-nos num mundo cheio de portas para abrir e fechar. E
isso não por qualquer razão estranha ao fato em si (como o poderia ser uma razão simbólica, ou
ideológica ou estetizante), mas apenas porque reestabelecemos uma relação com as coisas como
coisas, com a diversidade entre uma coisa e outra, e com a diversidade entra cada coisa e nós.
Inadvertidamente descobrimos que existir poderia ser uma experiência muito mais intensa e
interessante e verdadeira que o corre-corre distraído no qual nossa mente calejou-se. (Calvino 1995:
253)
Seja na versão lexicográfico-fenomenológica ou na existencial, o objeto sonoro
assume aspecto distinto do restritivo-normativo sob o qual costuma apresentar-se nos
trabalhos sobre música eletroacústica, vulgarmente definido como “o som em si”, sem
referência ao evento que o origina nem a seu significado. sSchaeffer afirma:
Enquanto reste uma incerteza na percepção quanto ao objeto final da escuta, em qualquer setor
que se encontre, a investigação consistirá em colocar em evidência e a referir uns aos outros os
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objetos “parciais” do conjunto da atividade auditiva; assim, uma série de escutas, ao aprofundar o
fenômeno, precisará os resultados simultaneamente nas quatro direções. (Schaeffer 1966: 118)
Conclusão
Essa poética de escuta pode contribuir para dissipar a doxologia do funk carioca ao
promover uma limpeza da situação aural. Ela pode contrabalançar o número crescente de
estudos históricos, antropológicos, sociológicos, jurídicos, linguísticos e psicológicos
sobre o tema ao dirigir o foco da investigação para a forma e a matéria sonoras. E ela
permite que se coloquem problemas de história, antropologia, sociologia, direito,
linguística e psicologia em relação com características de sonoridade, como procurei
mostrar em outros trabalhos (Caceres, Ferrari e Palombini: 2014; Palombini 2016).
“Meu papel essencial é o de comunicar uma forma de compreender, de sentir e
de agir que pode parecer, do exterior, terrivelmente pessoal; na verdade, eu mesmo sou
apenas um relé”, diz Schaeffer (apud Brunet 1969: 19). “Dizes que o alimento, o lugar, o
ar e a sociedade te transformam e condicionam? Ora, tanto mais o fazem tuas opiniões,
pois são elas que te determinam em tua escolha de alimento, lugar, ar e sociedade”,
escreve Nietzsche (2017). “A capacidade que um sistema político tenha para tolerar e
recuperar a reformulação de seus mitos fundadores constitui uma função crucial de sua
adaptação, e portanto, de sua sobrevivência”, afirma Pieter Lagrou (2013: 102).
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22
PERSPECTIVAS PARA A PESQUISA E O
ENSINO EM HISTÓRIA DA MÚSICA
NA CONTEMPORANEIDADE
Mónica Vermes
Marcos Holler
(Organizadores)
ANPPOM
PERSPECTIVAS PARA O ENSINO E
PESQUISA EM HISTÓRIA DA MÚSICA NA
CONTEMPORANEIDADE
2019
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
Diretoria 2017-2019
Presidente: Sonia Regina Albano de Lima (UNESP)
Primeiro secretário: Márcio Guedes Corrêa (UNESP)
Segundo secretário: Alexandre Zamith (UNICAMP)
Tesoureiro: Marcos Fernandes Pupo Nogueira (UNESP)
Conselho Fiscal
José Augusto Mannis (UNICAMP)
Angela Elisabeth Lühning (UFBA)
Sonia Ray (UFG)
Lucyanne de Melo Afonso (UFAM)
João Gustavo Kienen (UFAM)
José Soares de Deus (UFU)
Editor de publicações da ANPPOM
Marcos Holler (UDESC)
ANPPOM
Série Pesquisa e Ensino em Música no Brasil
Vol. 1
PERSPECTIVAS PARA A PESQUISA E
O ENSINO EM HISTÓRIA DA MÚSICA NA
CONTEMPORANEIDADE
Mónica Vermes
Marcos Holler
(Organizadores)
1ª edição
ANPPOM
São Paulo
2019
Projeto gráfico
Marcos Holler
Revisão de texto
Priscilla Morandi
Imagem de capa
Baude Cordier, Tout par compas suy composés. Codex de Chantilly, Museu Condé de
Chantilly, MS 564.
SUMÁRIO
Prefácio
Marcos Holler
6
Apresentação
Mónica Vermes
7
Raízes da crise no ensino de história da música: o caso de São Paulo
Paulo Castagna
9
História como gênero retórico em Historische Beschreibung der edelen
Ton- und Singkunst [“descrição histórica da nobre arte dos sons e do
canto”, 1690] de Wolfgang Printz
59
Mônica Lucas
Música do tempo presente e intenção de escuta
77
Carlos Palombini
“A palavra cantada não é a palavra falada”: a canção popular no
ensino de história
Rainer Gonçalves Sousa
110
La enseñanza de Historia de la Música en América de habla
castellana: desafíos teóricos, estrategias en el aula
129
Marita Fornaro Bordolli
MÚSICA DO TEMPO PRESENTE
E INTENÇÃO DE ESCUTA1
Carlos Palombini2
“Revolucionário será quem possa revolucionar-se.”
(Ludwig Wittgenstein, 1941-1944)3
Refaço, através da exposição diacrônica de excertos sobre a percepção
aural escritos por Pierre Schaeffer entre 1938 e 1969, a trajetória que me leva da
música eletroacústica ao estudo musical do funk carioca. Ela implica uma
pedagogia baseada na reflexão sobre a escuta que poderia tomar para si o
antigo moto empirista: nihil est in intellectu quod non sit prius in sensu – na
formulação de Tomás de Aquino (2017). Confluem ao funk carioca problemas de
nosso tempo: as culturas da diáspora africana nas Américas, a análise da música
eletrônica dançante, a história das técnicas de produção musical, as garantias
individuais, a segurança pública, a criminalização da pobreza, o racismo
estrutural, a financeirização do espaço urbano. E “a massa [ainda] é a matriz
onde se engendra hoje a atitude nova frente à obra de arte” (BENJAMIN, 1936, p.
63). Como entendê-la?
Metodologia
Embora os termos musicologia e história da música (musicologia
histórica) sejam frequentemente empregados como sinônimos, “musicologia”
aqui remete a uma prática interdisciplinar cujo ponto de convergência é a
música,4 tomada por qualquer coisa de sonoro que se entenda como tal. Um dos
componentes dessa interdisciplina é a história – “do tempo presente” não
apenas porque as origens da música em questão, o funk carioca, possam ser
localizadas na Segunda Guerra Mundial5 ou porque sua referência de análise, a
música concreta, date do mesmo período, mas sobretudo porque procura
desmascarar “a boa consciência das elites constituídas, em política como na
1
Sou grato a Igor Reyner pela leitura e crítica deste ensaio.
Universidade Federal de Minas Gerais / CNPq
3
Conforme a datação de Pichler (1991, p. 26); aforismo publicado em Vermischte Bemerkungen
(WITTGENSTEIN, 1977). Exceto quando indicado em rodapé ou nas referências bibliográficas,
excertos em língua estrangeira são dados em traduções do autor, mantidos os grifos originais.
4
Assim concebida, a musicologia não deixa de filiar-se, em outro espírito, à Musikwisschenschaft de
Guido Adler (1885). Ver Mugglestone e Adler (1981) para contexto histórico e tradução inglesa do
artigo de Adler; ver Dudeque (2004) para uma tradução brasileira da tabela de Adler; ver Kerman
(1985, p. 11-12) para etimologia e pragmática do termo musicology.
5
Nomeadamente, no rhythm and blues afro-norte-americano (BURNIM; MAULTSBY, 2006, p. 245269).
2
77
Universidade” (LAGROU, 2013, p. 101). 6 O modelo de interdisciplinaridade
utilizado é o agonístico/antagonístico descrito por Georgina Born (2010, p. 211):
diante dos limites intelectuais, estéticos, éticos ou políticos das disciplinas
estabelecidas ou do estatuto da pesquisa acadêmica em geral, colocamo-nos em
relação de diálogo autoconsciente, de crítica ou de oposição. Essa musicologia
relacional busca abrir “um novo espectro epistemológico e ler as cores que
nossos preconceitos haviam previamente apagado” (SERRES, 1980, p. 23-24).
Articular historicamente o passado, Walter Benjamin (1985, p. 224) escreve em
1940, não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”, mas apropriar-se de uma
reminiscência tal qual relampeia no momento de um perigo. Esse momento é o
presente.
Se antropologia, relatos orais e etnografia desempenham seus papéis
nessa pesquisa, e se um de seus objetivos é estabelecer relações entre
morfologia sonora e organização social – pergunta análoga àquela formulada
por Steven Feld em 1984 7 –, por que não a realizar sob o signo da
etnomusicologia? Para responder a essa pergunta, abandono a primeira pessoa
do plural. Entendo ser mais produtivo desenvolver colaborações com
antropólogos comprometidos com pesquisas musicais8 enquanto mantenho-me
no campo da disciplina definida nos termos do parágrafo anterior. Em outras
palavras, enquanto mantenho a diferença: “Suprimimos os prazeres agonísticos
de continuar diálogos intersubdisciplinares?” (BORN, 2010, p. 206).
Ponto de partida
Minha pesquisa originou-se, na segunda metade dos anos 1980, de uma
pergunta de compositor: de que modo as possibilidades de controle da forma e
da matéria 9 de uma nota musical oferecidas pelo sintetizador polifônico
programável Roland Juno-60 se traduziriam em procedimentos de organização
de sons? Na primeira metade dos anos 1980, Willy Corrêa de Oliveira analisava
Estudos de Chopin segundo critérios eletroacústicos 10 no Departamento de
Música da USP. Ainda assim, minha interrogação não encontrava eco no meio
6
Sobre história do tempo presente, ver Garcia (2003), Lagrou (2003, 2013), Maranhão Filho (2009),
Readman (2011) e Droit e Reichherzer (2013); para um estudo exemplar, ver o livro de Rousso
(1990).
7
“Existem padrões de co-evolução, ecológicos e estéticos, a ligar o ambiente a padrões sonoros,
materiais e situações?” (FELD, 1984, p. 38). Para uma tradução brasileira, ver Feld (2015), que parte
de uma discussão entabulada por Lomax (1962).
8
Nomeadamente, Adriana Facina, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da UFRJ, e Dennis Novaes, doutorando no mesmo programa; ver Facina
e Palombini (2017) e Novaes e Palombini (2019).
9
“Imaginemos ser possível ‘parar’ um som para ouvir o que ele é em dado instante de nossa
escuta: o que captamos é o que denominaremos sua matéria, complexa, situada na tessitura e nas
relações matizadas da contextura sonora. Escutemos agora a história do som: tomamos
consciência do desenvolvimento, na duração, do que fora fixado por um instante; de um trajeto
que dá forma a essa matéria” (SCHAEFFER, 1966, p. 400). Ver também Chion (1983, p. 116).
10
Procedimento aplicado à Sonata Opus 57 de Beethoven por André Boucourechliev em 1963 e
por Oliveira em 1979.
78
acadêmico. Em palestra no Espaço N.O11 em 1979, o compositor Bruno Kiefer
(1923-1987),12 professor do Departamento de Música da UFRGS, dizia da música
eletroacústica: “Não se usa mais, pois desumaniza a música”.13
Entretanto, o início dos anos 1980 via a popularização de instrumentos
eletrônicos. Diferentemente do aparato dos estúdios de emissoras (RTF, WDR,
RAI), universidades (Columbia-Princeton) e instituições como o Bell Labs, o GRM
e o Ircam,14 acessível a grupos restritos de compositores,15 e diferentemente do
Synclavier (1977), do Fairlight CMI (1979) ou da Linn LM-1 (1980), disponíveis
para artistas com amplos recursos de produção, em geral vinculados à
fonografia corporativa, a Roland TR-808 (1980) e o Roland TB-303 (1981) eram
adquiridos, muitas vezes de segunda mão, por jovens, em sua maioria sem
treino formal em música, para criarem os primeiros gêneros de música
eletrônica dançante: a house e a acid house em Chicago; o electrofunk e o electro
em Nova York; e o techno em Detroit (BREWSTER; BROUGHTON, 2000). Essas
músicas e sua descendência chegariam ao Rio de Janeiro na forma de discos de
vinil para animar um circuito de bailes proletários que se tornaria conhecido por
mundo funk (VIANNA, 1988). Elas podem ser consideradas experimentais de
acordo com os critérios definidos por Schaeffer no “Livro I” de Traité des objets
musicaux; isto é, na medida em que se constroem na prática de um
instrumentário novo.16
Artes-relé
Em meados dos anos 1970, os manuais de Robin Maconie (1976, p. 98-99)
e Michael Nyman (1974, p. 40-41) apresentavam Pierre Schaeffer como o
perdedor, técnica e intelectualmente subdotado, da contenda entre musique
concrète e elektronische Musik. Em 1986 Macmillan Press lançou, organizada por
Simon Emmerson, a primeira coletânea em língua inglesa de artigos sobre
estética da música eletroacústica. O segundo, o terceiro e o quarto capítulos
consistiam em trabalhos de compositores nascidos ou domiciliados na Inglaterra
que remetiam a Traité des objets musicaux em função de suas práticas
composicionais, mas não consideravam a diacronia do pensamento de
Schaeffer, exposta por Sophie Brunet em 1977.
Ele se muda de Estrasburgo para Paris em 1936 a fim de trabalhar na
rádio estatal, notoriamente defasada em relação a suas congêneres germânica e
britânica (PIERRET, 1969, p. 133). Desde as primeiras décadas da radiodifusão na
França (HUC; ROBIN, 1938; DESCAVES, 1962; JEANNENEY, 2001), os temas da arte
radiofônica e da fidelidade das transmissões mobilizavam debates em crônicas,
artigos e livros de Pierre Cusy e Gabriel Germinet (1926), Paul Deharme (1928,
1930), André Cœuroy (1930), Alex Virot (1930), Éric Sarnette (1934), Carlos
11
Sobre o Centro Alternativo de Cultura Espaço N.O (1979-1999), ver Carvalho (2004).
Sobre Bruno Kiefer, ver Mariz (2000, p. 495).
13
Sobre o problema da academização das vanguardas, ver Adorno (1988) e McClary (1989).
14
Para uma etnografia do Ircam, ver Born (1995).
15
O Composers’ Desktop Project teria início em 1986.
16
Sobre a noção de música experimental, ver ainda Schaeffer (1957b).
12
79
Larronde (1936) e Paul Dermée (1938). Em abril de 1938, o “ex-aluno da Escola
Politécnica” e “Engenheiro de Correios, Telégrafos e Telefones” (SCHAEFFER,
1938b, p. 322) estreia na seção “Crônica do rádio” da Revue musicale. E se
pergunta: “Quais são os recursos reais da radiodifusão? Ela propicia o
nascimento de uma arte original? Deve, ao contrário, ser capaz apenas de
realizar, à perfeição, a tarefa de mensageira fiel das obras clássicas?”
(SCHAEFFER, 1938b, p. 317). Para o autor,
A radiodifusão se acha, por assim dizer, “entre dois fogos”. Ela
deve ser admiravelmente fiel à música que se incumbe de
transmitir, mas, ao mesmo tempo, tanto mais original no
exercício de seus próprios meios, tal qual o cinema, por quanto
está a ponto de estragar tudo no embaraço extremo em que a
colocam essas exigências contraditórias.
Na realidade, a única saída é ver as coisas com clareza,
lidar frontalmente com a contradição e tomar as duas vias
divergentes: uma conduz à eclosão de uma arte propriamente
radiofônica, que seria para o som aquilo que o cinema é para a
imagem; a outra, embora mais humilde, teria a nobre missão de
transmitir da melhor forma possível a música tradicional aos
ouvintes do mundo inteiro, e seu único alvo seria não uma
perfeição inatingível, mas a mais alta fidelidade realizável.
(SCHAEFFER, 1938b, p. 321).
A segunda crônica, “Vérités premières”, aparece em junho. O título
remete ao ato fundador de sua investigação sobre a escuta: constatar as
diferenças perceptivas entre as audições do som direto e do som transmitido
por alto-falantes. Essas diferenças são ilustradas por exemplos extraídos da
transmissão sinfônica. Uma orquestra ocupa um espaço significativo no palco:
os violinos não se mesclam com os trompetes, e o contrabaixo não ocupa o
mesmo lugar que a corneta de pistões. Já o alto-falante, caixa inclusa, toma o
espaço de um executante, no máximo: no fundo de seu cone exíguo, o
contrabaixo e a corneta de pistões coincidem. Ademais, qualquer que seja o
número de microfones utilizados, há apenas um aparelho receptor, o que
equivale a escutar com um único ouvido.17 Por fim, quando a recebemos em
casa, nem os vizinhos nem os aparelhos toleram o volume sonoro e a gama de
matizes da orquestra real – do piano mais sutil ao forte mais extremo –, e essa
dinâmica é comprimida.
Ensaio sobre o rádio e o cinema: estética e técnica das artes-relé, um
manuscrito começado em 1941 e abandonado em 1942, tornou-se conhecido
através de excertos publicados, primeiro, por Marc Pierret em 1969 (p. 87-96), e
depois, por Sophie Brunet em 1977 (p. 19-23), mas só foi dado à luz em 2010.
Uma sucessão de infortúnios fez do período em que trabalhou nesse texto o
mais nefasto da existência do autor: não bastasse a derrota militar na Batalha da
França e o armistício de 22 de junho de 1940, em 19 de junho de 1941 Schaeffer
17
Essas observações são anteriores ao uso generalizado da estereofonia.
80
perde a esposa em circunstâncias dramáticas, e o endurecimento do regime de
Vichy, anunciado pelo discurso “Sinto soprar um vento mau” do Marechal Pétain,
em 12 de agosto de 1941, leva à liquidação, em março de 1942, da Associação
Jeune France, que ele fundara em 22 de novembro de 1940 (CHABROL, 1990;
NORD, 2007) e da qual foi afastado em dezembro de 1941. Schaeffer refugia-se
em Marselha,18 onde lê,19 faz anotações20 e discursa diante de uma secretária,
que lhe datilografa a elocução. O termo arte-relé contrapõe-se ao termo arte
direta e pode ter sido tomado da conferência “De l’Enseignement de la poétique
au Collège de France”, escrita por Paul Valéry, em fevereiro de 1937:
A arte literária, derivada da linguagem e da qual a linguagem por
sua vez se ressente, é portanto, entre as artes, aquela em que a
convenção desempenha o papel mais importante; em que a
memória intervém constantemente, através de cada palavra;
que age sobretudo por relé, e não pela sensação direta, e coloca
em jogo simultaneamente, e mesmo concorrentemente, as
faculdades intelectuais abstratas e as propriedades emotivas e
sensitivas. Ela é, de todas as artes, a que envolve e utiliza maior
número de partes independentes (som, sentido, formas sintáticas,
conceitos, imagens...). (VALÉRY, 1938, p. 13-14).
Essa ideia embasa o Quadro 1, extraído do Ensaio (73),21 no qual Schaeffer
sumariza as possibilidades e limitações do cinema e do rádio em comparação
com a linguagem:
Domínio concreto
Linguagem
Cinema e rádio
Expressão
23
22
difícil
Domínio abstrato
Expressão adequada
Sugestão inadequada
Sugestão fácil
Expressão adequada
Expressão impossível
Sugestão ilimitada
Sugestão lacunar
Quadro 1: O cinema e o rádio se comparam à linguagem propriamente dita em função
de seus recursos de expressão e sugestão nos domínios concreto e abstrato.
18
Sobre a vida cultural em Marselha durante a ocupação, ver Guiraud (1990).
Muitos dos conceitos desenvolvidos em Traité des objets musicaux explicitam suas fontes no
Ensaio: as noções de tema e versão (BONALD, 1802, p. 139-140); a noção de concreto (POUCEL,
1940, p. iii); e a de fenomenologia (CLAUDEL, 1904, p. 8; SOURIAU, 1929, p. 163-164).
20
Para uma amostra dessas notas, ver Schaeffer (2010a, p. 173-176).
21
Os números de página correspondem à tradução brasileira.
22
Sobre a noção de concreto, ver Schaeffer (2010a, p. 69, n. 17).
23
O contraste entre “expressão” e “sugestão” deriva das noções de linguagem-signo e linguagemsugestão de Frédéric Paulhan (1929, p. 17-18): “Em determinada sociedade, determinada época, há
palavras e frases cujo destino preferencial é exprimir com precisão um fato, transmitir com
exatidão uma ideia, uma impressão ou uma imagem, e cuja função deve geralmente parar aí.
Outras palavras, outros arranjos de palavras, ao contrário, vão despertar longas séries de
impressões, de ideias, de sentimentos e de atos”.
19
81
Por outro lado, em crônica sobre o teatro radiofônico publicada no
vespertino L’Intransigeant em primeiro de abril de 1930 e citada no Ensaio (48),
Alex Virot utiliza o termo relai24 para se referir a um aparelho de mixagem. O que
é um relé? Segundo o Dictionnaire historique de la langue française de Alain Rey
(2004, p. 3158), o verbo relayer se aplica “a um satélite de telecomunicações, a
uma estação de rádio ou de televisão que retransmite uma emissão do emissor
principal a outro emissor”. Rey data essa acepção de 1933. De acordo com o
Oxford English Dictionary, o verbo to relay – em parte, um empréstimo do francês,
em parte, formado no inglês, por conversão (OUP, 2017) – foi usado desde a
segunda metade do século XIX com o sentido de “passar ou retransmitir (sinais
telefônicos ou de rádio recebidos de outro local)”. Mas por que Schaeffer
escolheria associar o rádio e o cinema a um termo que sublinha a concepção
transmissiva que ele contestará?
Formada no final do século XIII pela combinação do prefixo re com o
verbo picardo, valão e loreno laier (deixar, abandonar), 25 a palavra relaier
designou originalmente o ato de “substituir os cães fatigados por cães
descansados” na caça equestre. A partir do século XVI, ela foi empregada
intransitivamente para “trocar os cães durante a caçada” e, por analogia, “trocar
de cavalos”. No século XVII, a construção transitiva assumiu o sentido estendido
de “substituir (alguém) num trabalho, numa ocupação” e passou a ser usada
também na forma pronominal.
Do início do século XV ao início do século XIX, na Grã-Bretanha, o
substantivo relay foi utilizado para “um conjunto de cães de caça (e
ocasionalmente cavalos) descansados, a postos para assumirem seus papéis na
caça a um cervo, em substituição àqueles já cansados”. Do início do século XVII
ao último quartel do século XIX, um relé podia ser “um conjunto de cavalos
descansados obtido ou mantido de prontidão em vários estágios de uma rota
para acelerar a viajem”. No final do século XVII, o termo começou a associar-se a
“um conjunto de pessoas escolhidas para se revezarem com outras na execução
de certas tarefas”. A partir de meados do século XVIII, um relé podia ser “uma
série de veículos designados para cobrir uma rota prescrita (geralmente em
sequência)”.
Assim, por mais de meio milhar de anos, o substantivo relé foi sinônimo
de atividades executadas de modo mais efetivo através da substituição de uma
força-tarefa – animal, humana, motiva ou automotiva – exausta por outra nova.
No segundo quartel do século XIX, concomitante com a domesticação da
eletricidade, ocorre um deslocamento semântico. O novo relé é “um instrumento
usado na telegrafia de longa distância a fim de fornecer, a uma corrente elétrica
que é muito fraca para influenciar os instrumentos de gravação ou transmitir
uma mensagem à distância necessária, a possibilidade de que o faça
indiretamente por meio de uma bateria local colocada em contato com essa
corrente” (OUP, 2017). Ao invés da substituição de unidades exaustas por outras
novas, o ingresso de energia passa a acarretar o reforço de um agente (elétrico)
24
25
A Academia Francesa recomendava a grafia antiga, relai, ainda em 1976 (REY, 2004, p. 3158).
Sobre a controvérsia acerca da etimologia e da semântica de laier, ver Rey (2004, p. 3158).
82
por meio de um suprimento extrínseco. No uso atual, um relé se torna “qualquer
dispositivo elétrico […] por meio do qual uma corrente ou sinal em um circuito
pode abrir ou fechar outro circuito”. No Oxford, o exemplo mais antigo desta
acepção data de 1907. Embora esse relé não passe de um botão de ligar e
desligar, uma relação com os sentidos anteriores subsiste: o circuito controlador
pode afetar um circuito de saída de potência maior que a própria, e isso o
habilita a ser considerado uma espécie de amplificador elétrico. Duas
propriedades presidem a todos esses sentidos: potenciação e ruptura. Schaeffer
define a relação entre artes diretas e artes-relé numa alegoria:26
Vemos assim, nessa corrida em que competem a arte direta, em
plena forma, e a arte-relé, em pleno ensaio, várias etapas, que
geralmente definem três fases:
Primeira fase: o instrumento deforma a Arte.
Segunda fase: o instrumento transmite a Arte.
Terceira fase: o instrumento informa a Arte.
Na primeira fase perdoa-se tudo ao instrumento, porque lhe
admiramos a novidade sem levá-lo a sério. Não se tem medo de
sua concorrência. Aliás, é tão evidente ser-lhe impossível lutar
que lhe admiramos sobretudo a boa vontade. Na segunda fase
o instrumento aperfeiçoa-se e, longe de admirar tais
aperfeiçoamentos, reclamamos de não ocorrerem com
suficiente rapidez, porque é precisamente quando a imagem se
assemelha ao modelo que defeitos e deformações aparecem. A
arte direta espera ser escrupulosamente servida por esse relé,
que poderá fornecer-lhe difusão inimaginável, facilidades
inéditas. Pede-se agora ao instrumento não só mais do que ele
pode dar, mas também aquilo que, por sua própria natureza, ele
não pode dar. Vem por fim uma fase clássica, que o cinema está
por atingir, mas da qual o rádio ainda dista bastante. Essa fase
torna-se possível pelo conhecimento do instrumento, pela
discriminação entre seus limites e suas possibilidades, e
também entre seus dois papéis: retransmitir de certo modo o
que tínhamos o hábito de ver e ouvir diretamente; exprimir de
certo modo o que não tínhamos o hábito de ver e ouvir.
(PIERRET, 1969, p. 91-92).
O duplo papel do instrumento das artes-relé ilustra a dupla função da
reprodução mecanizada de Walter Benjamin: “Por volta de 1900 a reprodução
mecanizada havia atingido um estágio tal que não só começava a fazer das obras de
arte do passado seu objeto e a transformar assim a ação das mesmas, mas chegava
também a uma situação autônoma entre os procedimentos artísticos.” (BENJAMIN,
1936, p. 41).
Em 1935, Benjamin enviou cópias de “L’œuvre d’art à l’époque de sa
reproduction mécanisée” a bom número de intelectuais parisienses, entre os
quais André Malraux (PALMIER, 2006, p. 285), que o mencionou em Londres
perante a Associação Internacional dos Escritores em Defesa da Cultura, em 21
26
Citada na redação sintética de 1969.
83
de junho de 1936 (MALRAUX, 1936), antes de citá-lo em “Esquisse d’une
psychologie du cinéma”, em 1940:
No século XX, pela primeira vez, criaram-se artes inseparáveis de
um meio mecânico de expressão; não suscetíveis de
27
reprodução, mas expressamente destinadas à reprodução. Os
mais belos desenhos já podem ser reproduzidos de modo
satisfatório; certamente ocorrerá o mesmo com as pinturas bem
antes do fim do século. Mas nem desenhos nem pinturas foram
feitos para serem reproduzidos. Eles constituem em si mesmos
seu próprio fim (ver a esse respeito o trabalho notável do
senhor Walter Benjamin). (MALRAUX, 1940, p. 71).
Schaeffer encontra a ideia de Benjamin no ensaio de Malraux, que ele
cita: “essas artes do século XX, cuja natureza é de serem ‘inseparáveis de um
meio mecânico de expressão’” (SCHAEFFER, 2010a, p. 32). E nota em seu diário:
“artes de reprodução e artes consideradas em si; desenhos e quadros não feitos
para serem reproduzidos (cf. Walter Benjamin)”.28 O período em que trabalhou
no Ensaio foi de passagens: de Vichy para Paris via Marselha; do luto ao prazer
erótico pela mediação da secretária datilógrafa; da radiofonia à pesquisa sobre
ruídos pela prática da arte radiofônica; dos movimentos de juventude católica ao
cristianismo esotérico pela intercessão de George Gurdjieff (PIERRET, 1969, p.
112-119). Assim, quando Marc Pierret o interroga, em 1969:
Seria então exato e judicioso incorporar esse quarto de século
de suas experimentações sonoras no tecido de um pensamento
de escritor, de filósofo, se o senhor preferir? Em outras palavras,
esses longos anos de experiência radiofônica e depois musical
devem colocar-se entre as aspas de dois textos: o texto
premonitório das Artes-Relé, inacabado, inédito, e o relato
definitivo, meditado, publicado, de Traité, vinte e cinco anos
depois? (PIERRET, 1969, p. 91).
Ele responde:
Creio que seja correto dizê-lo. Creio que em ambos os casos a
linguagem (entenda-se também sua lógica, o traço que ela
forma de um pensamento contínuo, os andaimes que fornece à
imaginação, como a equação ao físico) serviu-me de notação e
de baliza: voltada para o conhecimento adquirido, de modo a
precisar-lhe a problemática; voltada para o desconhecido, de
modo a vislumbrar-lhe o plano. (PIERRET, 1969, p. 91).
27
“O filme fornece o exemplo de uma forma de arte cujo caráter é pela primeira vez integralmente
determinado por sua reprodutibilidade” (BENJAMIN, 1936, p. 49).
28
Diário, caixa “J3: Fin 41→ 47 après E”, caderno “P 24, P 25, P 26: fin 1941-1945, Occupation”,
fascículo “P 24: Journal du Studio d’essai et notes philo et esthétique, janvier 42 à printemps 44”,
consultado na residência de Jacqueline Schaeffer; transcrição de Jacqueline Schaeffer.
84
Depois de precisar a problemática do rádio, Schaeffer dedica-se à prática
da arte radiofônica na Paris ocupada.
Música concreta
Em 1948 ele contava oito livros publicados, entre biografia (1934), teatro
(1939, 1941, 1946b, 1947a, 1947b, 1948) e ensaio (1946a), e preparava-se para
lançar seu primeiro romance (1949). Naquela primavera, a pesquisa sobre ruídos
dá início a uma produção musical que terá na infância seu fastígio. Formulada
num misto de diário e ensaio, essa pesquisa assume o caráter paradoxal de uma
liberação em face da escrita:
Há um ano não faço mais que escrever. Tenho vontade de
mudar. Sempre se escreve para dizer algo. De repente se
descobre que seria necessário escrever para não dizer mais
nada. Sou mesmo obrigado, se escrevo, a ser moral ou imoral,
cômico ou trágico, simbólico ou naturalista. É aí que me invade a
29
nostalgia da música, que Roger-Ducasse diz amar “porque ela
não quer dizer nada”. (SCHAEFFER, 1950, p. 31).
“Introduction à la musique concrète” situa-se no tempo e em seu espírito:
Convidamos o leitor a partilhar do diário de bordo de um
cruzeiro solitário. Solitário quando se trata dessa música que
denominamos “concreta” para que etimologia e embriologia
coincidam. Bem pouco solitário, de fato, quando se trata de uma
atitude, de um procedimento do espírito e de uma tomada de
30
posição diante do evento. O que se passa conosco quanto à
música concreta é uma aventura corrente neste semi-século de
claridade, neste século de semiclaridade em que metade do
quebra-cabeça ainda está toda embaralhada em sua caixa de
surpresas. (SCHAEFFER, 1950, p. 30).
Há alusão a Igor Stravinsky (31), citação de Jean Roger-Ducasse (31),
menção às colaborações de Pierre Billard (41)31 e Jean-Jacques Grunenwald,32 e
declaração de independência quanto a John Cage (42), mas os passageiros de
além-música embarcam sob anonimato. Desfaçamos de antemão um ledo
engano: a música concreta não é a que se faz com sons gravados. Concreto é o
29
Jean Jules Aimable Roger-Ducasse (1873-1954), compositor francês, aluno dileto de Gabriel Fauré
e sucessor de Paul Dukas no Conservatório de Paris (1936-1946).
30
Em 19 de maio de 1942, Francis Ponge havia lançado o livro Le Parti pris des choses, sobre o qual
Jean-Paul Sartre publicaria um ensaio em 1944.
31
“Pierre Biard” no original (SCHAEFFER, 1950, p. 41), “Pierre Billard” na coletânea de Brunet (1977,
p. 50), que possivelmente se refira ao realizador de teatro radiofônico (1921-2012).
32
Compositor, organista e improvisador (1911-1982), foi professor de órgão da Schola Cantorum e
do Conservatório de Genebra, autor de trilhas de filmes de André Bresson.
85
que “diz respeito aos sentidos e não ao sentido” (SCHAEFFER, 1950, p. 51).33 Essa
escolha corresponde a uma inversão: “ao contrário do procedimento tradicional,
que vai da partitura à execução, o procedimento concreto vai do material sonoro
à organização” (PIERRET, 1969, p. 51):
MÚSICA HABITUAL
MÚSICA NOVA
(dita abstrata)
(dita concreta)
—
—
FASE I.
Concepção (mental);
FASE III. Composição (material);
FASE II.
Expressão (notada);
FASE II.
Esboços (experimentação);
FASE I.
Materiais (fabricação)
FASE III. Execução (instrumental).
(do abstrato ao concreto)
(do concreto ao abstrato)
A “música nova” é também um ato de transgressão do funcionário
público:
Eu não poderia exagerar a importância dessa transigência que o
leva a apoderar-se de três dúzias de objetos para fazer barulho
sem a menor justificativa dramática, sem a menor ideia
preconcebida, sem a menor esperança. E mais, com o secreto
despeito de fazer o que não se deve, de perder seu tempo numa
época séria em que o próprio tempo nos é medido. (SCHAEFFER,
1950, p. 32).
Embora os Cinco estudos de ruídos (MÂCHE; GORNE, 1980, p. 16-17)
decorram, cada um, de um problema de realização, o tema da dissociação entre
a percepção de qualidades sonoras e a percepção do evento produtor do som
protagoniza o debate no papel de requisito da abstração musical. Nesse
processo, a escuta se afirma e problematiza a criação:
Por um lado, do momento em que um disco está num prato,
uma força mágica me conduz, me obriga a escutá-lo, por
monótono que seja. Será que a gente se deixa levar porque
estamos envolvidos? Não ignoro o quanto esses discos são
maçantes e impossíveis de serem irradiados como tal. Mas sei
que são extraordinários para escutar num estado de espírito
especial, e sei também que os prefiro em estado bruto ao estado
de vaga composição (decomposição) no qual terminei por isolar
penosamente oito pseudocompassos de um pseudo-ritmo.
Baixo a agulha no início de determinado grupo rítmico. Levantoa bem no fim, encadeio a outro e assim por diante. A
33
Schaeffer retoma uma formulação do Ensaio de 1941-1942: “O uso que faço aqui da palavra
‘concreto’ é necessariamente mais restrito. Ela designa o que diz respeito aos sentidos, e não ao
sentido.” (SCHAEFFER, 2010a, p. 69, n. 17).
86
imaginação tem tanta força quando isolamos mentalmente
determinado elemento sonoro e nos esforçamos para realizar
essa tomada de matéria pela agulha que, na hora, nos deixamos
levar. Na realidade, quando se reescuta a frio o composto
obtido após longas horas de paciência, não se acha mais que
uma fragmentação grosseira de grupos rítmicos rebeldes a
qualquer compasso. Você acredita lembrar que o trem bate um
três por quatro, um seis por oito. O trem bate seu próprio
compasso, perfeitamente definido, mas perfeitamente
irracional. O mais monótono dos trens varia sem cessar, jamais
toca no compasso. Transforma-se numa sucessão de isótopos
singularmente gêmeos. É aí que estaria, para um ouvido
exercitado, o prazer musical.
Esse prazer consistiria não em fazer o trem tocar no compasso,
nos compassos de nossos solfejos elementares, por uma
satisfação afinal bem vulgar, mas em aprender a escutar, a amar
esse Czerny de um novo gênero, e sem a ajuda de nenhuma
melodia, de nenhuma harmonia, desfrutar, em monotonia das
mais mecânicas, o jogo de alguns átomos de liberdade, as
improvisações imperceptíveis do acaso. Diabolus in mecanica.
(SCHAEFFER, 1950, p. 38).
Um companheiro incógnito de viagem era Francis Ponge (1899-1988),
que, na Argélia, escrevia em 31 de janeiro de 1948:
A cada instante do trabalho de expressão, à medida que
escrevo, a linguagem reage, propõe suas próprias soluções,
incita, suscita ideias, ajuda a formação do poema.
Nenhuma palavra é empregada que não seja logo considerada
uma pessoa. Que a claridade que ela carrega consigo não seja
utilizada; e a sombra que carrega também.
Quando aceito uma palavra na saída, quando deixo sair uma
palavra, imediatamente devo tratá-la não como um elemento
qualquer, um pedaço de madeira, uma peça de quebra-cabeça,
mas como um peão ou uma figura, uma pessoa de três
dimensões etc., e não posso dispor dela exatamente como bem
34
entenda. (Cf. a frase de Picasso sobre minha poesia).
Cada palavra se impõe a mim (e ao poema) em toda a sua
espessura, com todas as associações de ideias que comporta
(que comportaria se estivesse só sobre fundo escuro). E todavia
é necessário transpô-la... (PONGE, 1961, p. 33-34).
O excerto integra “My Creative Method”,35 publicado em Zurique em 1949
e em Paris em 1961, já como parte do livro Méthodes, segundo volume de Le
Grand Recueil (PONGE, 1999, p. 441-809). Em junho de 1948, “Le Lézard” (PONGE,
34
“O senhor, suas palavras, são como pequenos peões, o senhor sabe, pequenas estatuetas, elas
giram e têm várias faces, cada palavra, e se iluminam umas às outras” (PONGE, 1999, p. 684).
35
O título deriva de um artigo de Betty Miller (1947); ver Ponge (1999, p. 1089).
87
1999, p. 745-748), do terceiro volume do Grand Recueil, foi lido numa emissão do
mesmo Club d’Essai (PONGE, 1999, p. lxxiii) onde se criava a música concreta. Em
1966 Traité des objets musicaux prestará tributo à escrita de Ponge, da qual
Schaeffer dirá: “não obra de autor que tem a dizer, mas trabalho sobre as
palavras que terminam por dizer mais que o autor sabia, e por encaminhá-lo a
sentidos que ele próprio não reconhece senão em retrospecto” (SCHAEFFER,
1966, p. 658).
Tratado
As teorizações da música concreta prosseguem numa série de textos dos
anos 1950, em particular no livro À la Recherche d’une musique concrète (1952) e
nos artigos “Vers une Musique expérimentale” (1957), “Lettre à Albert Richard”
(1957) e “Situation actuelle de la musique expérimentale” (1959). Este aparece
em volume da Revue musicale que anuncia um Acousmatique, ou traité des objets
musicaux, em resposta aos “principais enigmas lançados em 1952 por sua
primeira obra” (SCHAEFFER, 1959, p. 72). O autor despendeu quinze anos na
elaboração de Traité, “objeto de três, quatro, cinco redações inicialmente
informes, aproximativas” (PIERRET, 1969, p. 97). A versão final começa a tomar
corpo por volta de 1960.36 Na introdução, “Situação histórica da música”, ele
coloca em evidência “três fatos novos” (SCHAEFFER, 1966, p. 16-18) e “os três
impasses da musicologia” decorrentes:
Um desses impasses é o das noções musicais. Não são apenas a
escala e a tonalidade que as músicas mais aventurosas de nossa
época, como as mais primitivas, terminam por negar, mas a
primeira dessas noções: a de nota musical, arquétipo do objeto
musical, fundamento de toda a notação, elemento de toda a
estrutura, melódica ou rítmica. Nenhuma teoria e solfejo,
nenhuma harmonia, seja atonal, pode dar conta de certa
generalidade de objetos musicais, e principalmente daqueles
que a maioria das músicas africanas ou asiáticas utilizam.
O segundo impasse é o das fontes instrumentais. Afora a
inclinação dos musicólogos a referirem os instrumentos arcaicos
ou exóticos a nossas normas, eles se viram subitamente
desarmados diante das fontes novas de sons concretos ou
eletrônicos que – surpresa! – se entendiam às vezes muito bem
com instrumentos africanos ou asiáticos. Mais inquietante ainda
era a possível desaparição da noção de instrumento.
Instrumentos polivalentes ou sintéticos, tais seriam os
ornamentos de nossas salas de concerto, a menos que um
despojamento total sacramentasse a ausência de qualquer
instrumento. Assistiríamos ao desaparecimento da orquestra e
do regente, evidentemente ameaçados pelo sumiço das
36
Sophie Brunet, que começara a trabalhar com Schaeffer em 1959, recebe então a oferta de um
adiantamento para escrever seu segundo romance (o primeiro seria publicado em 1962) e a rejeita
“para obrigar Schaeffer a escrever seu livro” (comunicação verbal de Brunet).
88
partituras, em via de serem substituídas por fitas magnéticas
lidas por alto-falantes?
O terceiro impasse é o do comentário estético. Em seu conjunto,
a abundante literatura devotada às sonatas, aos quartetos e às
sinfonias soa oca. Só o hábito nos pode mascarar a pobreza e o
caráter bizarro dessas análises. Quando se descartam as
considerações complacentes, a montante e a jusante da obra,
sobre o estado de espírito do compositor ou do exegeta, fica-se
reduzido à mais seca das enumerações, em termos de
tecnologia musical, de seus procedimentos de fabricação ou, na
melhor das hipóteses, ao estudo de sua sintaxe. Nada, porém,
de verdadeira explicação de texto. Quem sabe não haja razão
para espanto? Quem sabe a boa música, por ser ela mesma
linguagem, e linguagem específica, escape radicalmente de toda
37
descrição e de toda explicação por meio de palavras? Em todo
caso, nos limitaremos a reconhecer que o problema é
suficientemente importante para não poder camuflar-se, e a
dificuldade não foi nem resolutamente confrontada nem
claramente tratada.
A análise é indubitavelmente severa, mas um dia ou outro
necessitaremos tomar ciência do esgotamento musicológico que
ela denuncia. Se toda explicação se esquiva, seja ela nocional,
instrumental ou estética, mais valeria confessar que, ao fim e ao
cabo, não sabemos grande coisa da música. E pior, que o que
sabemos é propício a nos desnortear ao invés de orientar-nos.
(SCHAEFFER, 1966, p. 19-20).
Traité des objets musicaux: essai interdisciplines se organiza num “percurso
ziguezagueante em sete saltos denominados ‘livros’” (SCHAEFFER, 1966, p. 11). O
primeiro, “Fazer música”, trata da origem do instrumento e de suas relações com
o desenvolvimento das linguagens musicais. O segundo, “Ouvir” (entendre),
expõe o sistema das “quatro funções da escuta”.38 O terceiro, “Correlações entre
sinal físico e objeto musical”, analisa as percepções de altura, duração,
intensidade e timbre em suas relações com as mensurações físicas de
frequência, tempo, amplitude e espectro para caracterizá-las em termos de
anamorfoses (deformações). O quarto, “Objetos e estruturas”, busca referências
na filosofia, na fenomenologia, na Gestalt, na linguística, na fonética e na
fonologia. O quinto, “Morfologia e tipologia dos objetos sonoros”, e o sexto,
“Solfejo dos objetos musicais”, definem as cinco operações do solfejo do objeto
sonoro, das quais apenas as duas primeiras – morfologia e tipologia – são
efetivamente realizadas. O sétimo, “A música como disciplina”, depõe “a título
mais pessoal” (12).
37
38
A esse respeito, ver a abertura do artigo “Le Grain de la voix”, de Roland Barthes (1972).
Enganosamente vertidas ao inglês por modes of listening (SCHAEFFER, 2017, p. 80-93).
89
Escutar
Schaeffer parte do Dictionnaire de la langue française de Émile Littré para
desenvolver a semântica dos verbos ouïr, écouter, entendre e comprendre. Ele dirá
mais tarde:
Insisti, ao final do Tratado, neste aspecto que praticara anos a
39
fio, um pouco à maneira de Ponge. Não foi a palavra pré ou
40
41
verre d’eau que explorei, mas, graças a Littré, as palavras42
chave: entendre, comprendre, ouïr. Essas palavras, esses seixos
gastos pelo uso, serviram-me de laboratório. Que digo eu, de
Conselheiros, Ancestrais, Palavras Mestras! (PIERRET, 1969, p.
91).
A argumentação se desenvolve em sete etapas. A primeira sintetiza o
verbete entendre (LITTRÉ, 1874, p. 1419-1421):
Entendre: dirigir seu ouvido a, por onde, receber impressões de
43
sons. Ouvir (entendre) barulho. Ouço (j’entends) falar na peça ao
lado, percebo (j’entends) que me dizes novidades.
1. Entendre-écouter: ouvir (entendre) é ser suscetível a sons;
escutar é dar ouvidos para ouvi-los (entendre). Às vezes não se
ouve (entend), embora se escute, e frequentemente se ouve
(entend) sem escutar.
2. Entendre-ouïr: essas duas palavras, muito diferentes na
origem, são hoje completamente sinônimas. Ouïr era a palavra
correta, pouco a pouco substituída por entendre, que é a
figurada. Ouïr é perceber pelo ouvido; entendre é, propriamente,
prestar atenção. Só o uso lhe deu o sentido desviado de ouvir. A
única diferença é que ouïr tornou-se verbo defectivo de uso
restrito. Quando o significado pode ser ambíguo, deve-se
empregar ouïr sem hesitação. Assim, neste dito de Pacuvius
sobre os astrólogos: Il vaut mieux les ouïr que les écouter (mais
44
vale ouvi-los que escutá-los). Entendre contrariaria o sentido da
frase.
3. Etimologicamente: tender a, por onde, ter a intenção, o
desígnio. Comment l’entendez vous? (Qual é sua intenção?).
4. Entendre-concevoir-comprendre: entendre e compredre
significam captar o sentido. Isso os distingue de concevoir, que
significa apreender mentalmente. Entendo ou compreendo esta
39
Cf. “Le Pré”, Nouveau Recueil (PONGE 2002, p. 340-344).
Cf. “Le Verre d’eau”, Méthodes (PONGE, 1961, p. 115-173).
41
Sobre a mística do Littré em contraposição ao Robert, ver Ponge (1961, p. 19).
42
Cf. Tcholakian (1989).
43
Toda a vez que “entender” não traduza o entendre de Schaeffer – isto é, na maioria dos casos – o
termo francês aparecerá flexionado após a tradução. Sobre a impossibilidade de traduzir o verbo
francês no “Livro II” de Traité, ver Palombini (1997).
44
Magis audiendum quam auscultandum censeo, frase de Marcus Pacuvius (220 a.C.-130 a.C.), poeta,
dramaturgo e pintor romano, citada por Michel de Montaigne em 1595 (p. 24).
40
90
frase, e não eu a concebo. Ao contrário, no verso de Boileau, Ce
qui se conçoit bien s’énonce clairement (o que se concebe bem,
45
enuncia-se claramente),
entendre ou comprendre não
conviriam. A diferença de matiz entre entendre e comprendre é
outra: a ideia de entendre é prestar atenção, ser versado em, ao
passo que a de comprendre é tomar para si. Entendo alemão, eu
o sei, sou versado nele. “Compreendo alemão” diria menos.
(SCHAEFFER, 1966, p. 103-104).
Entendre carrega consigo uma ambiguidade fundamental: termo marcado
no par oposicional entendre/ouïr (escutar/ouvir), onde significa “prestar atenção”,
em contraste com “perceber pelo ouvido”; termo não marcado no par
oposicional écouter/entendre (escutar/ouvir), onde significa “ser suscetível a
sons”, em contraste com “dar ouvidos para ouvi-los”. A segunda etapa
especializa a lexicografia:
1. Écouter é prestar ouvido, interessar-se por. Dirijo-me
ativamente a alguém ou a alguma coisa que me é descrita ou
indicada por um som.
2. Ouïr é perceber pelo ouvido. Em oposição a escutar, que
corresponde à atitude mais ativa, ouço o que me é dado na
percepção.
3. De entendre reteremos o sentido etimológico: “ter uma
intenção”. O que ouço (j’entends), o que me é manifesto, é
função dessa intenção.
4. Compreender, tomar consigo, mantém relação dupla com
escutar e ouvir (entendre). Compreendo o que visava em minha
escuta graças àquilo que escolhi ouvir (entendre). Mas
reciprocamente, o que já compreendi dirige minha escuta,
informa o que ouço (j’entends). (SCHAEFFER, 1966, p. 104).
A terceira etapa ilustra a lexicografia através de exemplos que delineiam
uma fenomenologia.
OUVIR
Para ser exato, nunca deixo de ouvir. Vivo num mundo que não
cessa de estar aí para mim, e esse mundo é sonoro, tanto
quanto tátil e visual. Desloco-me numa “ambiência” como numa
paisagem. O silêncio mais profundo ainda é um fundo sonoro
como outro qualquer, do qual se destacam então, com
solenidade inusitada, o ruído de minha respiração e o ruído de
meus batimentos cardíacos (cf. relatos de cosmonautas sobre o
“silêncio espacial”). O que seria para nós a estranheza de um
mundo subitamente privado dessa dimensão, podemos entrevêlo graças a um incidente técnico, quando a faixa sonora de um
45
Ce que l’on conçoit bien s’énonce clairement, Et les mots pour le dire arrivent aisément, versos de
Nicolas Boileau (1674, p. 108) no “Chant premier” de L’Art poétique.
91
filme é bruscamente interrompida, ou em certos sonhos.
Lembremos o de Baudelaire e sua “móveis maravilhas”, sobre as
quais “pairava – terrível novidade – tudo para o olho, nada para
46
o ouvido – um silêncio de eternidade”. Como se o rumor
47
contínuo que impregna até nosso sono se confundisse com o
sentimento de nossa própria duração.
Nem por isso ouvir é “ser suscetível a sons” que chegariam a
meu ouvido sem atingir minha consciência. É de fato em relação
a esta que o fundo sonoro adquire realidade. Adapto-me a esse
fundo instintivamente, sem me dar conta sequer, ao elevar a voz
quando seu nível aumenta. Ele se associa para mim ao
espetáculo, aos pensamentos e às ações que acompanhava sem
que eu me apercebesse, e às vezes bastará por si só para evocálas. A música de um filme, à qual eu não havia prestado
nenhuma atenção, tão absorto estava nas peripécias
dramáticas, despertará, quando a escute (entendrai) ao rádio, as
emoções que o filme havia provocado, antes mesmo que a
tenha identificado formalmente. Sou por fim imediatamente
alertado quanto a uma modificação brusca ou inusitada desse
fundo sonoro do qual não tinha ciência: sabe-se do caso de
pessoas que moram perto de uma estação ferroviária e
despertam quando o trem não passa no horário.
Mas é verdade ser sempre indiretamente, por reflexão ou
memória, que posso tomar conhecimento do fundo sonoro.
Escuto (j’entends) soar o relógio de pêndulo. Sei que já soou.
Apressado, reconstituo mentalmente as duas primeiras batidas,
que havia ouvido, e situo a que escutei (j’ai entendu) como a
terceira, ainda antes que soe a quarta. Não houvesse tentado
saber a hora, eu ignoraria efetivamente que as duas primeiras
haviam chegado à minha consciência. Falam comigo, penso em
outra coisa. Meu interlocutor, ofendido, se cala. Escuto
(j’entends) esse silêncio de mau agouro. Consigo extrair do fundo
sonoro, antes de lá perder-se para sempre, a última metade da
frase que ele pronunciara, e com um pouco de sorte consigo
dar-lhe a réplica e persuadi-lo de que a distração era apenas
aparente.
ESCUTAR
Suponhamos agora que eu escute esse interlocutor. É dizer que
ao mesmo tempo não escuto o som de sua voz. Volto-me para
ele submisso a sua intenção de comunicar-me algo, pronto para
ouvir (entendre), do que ele oferece a minha audição, somente
46
Et sur ces mouvantes merveilles Planait (terrible nouveauté! Tout pour l’œil, rien pour les oreilles!) Un
silence d’éternité, Charles Baudelaire (1975, p. 103), “Rêve parisien”, Les Fleurs du mal (1861),
originalmente publicado na Revue contemporaine em 15 de maio de 1860 (BAUDELAIRE, 1975, p.
1040). O poeta explica: “O movimento implica geralmente o ruído, a tal ponto que Pitágoras
atribuía uma música às esferas em movimento. Mas o sonho, que separa e decompõe, cria a
novidade” (BAUDELAIRE, 1975, p. 1043).
47
Cf. o conhecido excerto sobre os ruídos de Paris na abertura de La Prisonnière, de Marcel Proust
(1923, p. 9-10). Sobre a escuta em Proust, ver Reyner (2017).
92
aquilo que tenha valor de indicação semântica. Ele tem um
sotaque do Midi que pode ter-me divertido quando o conheci,
que noto ainda quando o reencontro depois de algum tempo,
mas negligencio agora. (Todavia, quando lembre essa conversa,
não intelectualmente, para recapitular os pontos trocados ou
extrair-lhes conclusões, mas de modo espontâneo, ao retornar
depois ao local onde ocorreu, reencontrarei não apenas as
ideias trocadas, mas também aquele sotaque de certo Midi,
aquele fraseado particular, aquela voz que reconheço sem
hesitação entre outras tantas, a um conjunto de caracteres que
não havia cessado pois de ouvir, embora possa ser
completamente incapaz de analisá-lo).
Escutar, acabamos de ver, não é necessariamente interessar-se
por um som. Não é mesmo senão excepcionalmente interessarse por ele, mas, por seu intermédio, visar outra coisa.
No limite, chega-se ao ponto de esquecer essa passagem pela
audição. Escutar alguém torna-se então praticamente sinônimo
de obedecer (“Escuta teu pai!”) ou de dar crédito (assim,
Pacuvius recomenda não escutar os astrólogos, mesmo que não
possamos dispensar-nos de ouvi-los). Ao escutar o que me
dizem, tendo, através das palavras, mas também ao largo de
uma formulação talvez imperfeita, às ideias que me esforço para
compreender.
Escuto um carro. Eu o situo, avalio sua distância, eventualmente
reconheço-lhe a marca. Que sei do ruído que me forneceu esse
conjunto de informações? A descrição que faria, se solicitado,
seria tanto mais pobre quanto mais segura e rapidamente
tivesse-me informado.
Ao contrário, é precisamente ao ruído do carro que presto
ouvido se esse carro é o meu e me parece que o motor “faz um
ruído esquisito”. Mas minha escuta permanece utilitária, pois
procuro inferir informações quanto ao funcionamento do
motor: incerto das causas, forçoso é passar primeiro por uma
análise dos efeitos.
Posso, finalmente, escutar, como me havia proposto de início,
com o objetivo único de ouvir melhor (mieux entendre). Essa
análise, que até há pouco se impunha como etapa, torna-se alvo
em si mesma. Voltado para o evento, eu aderia a minha
percepção, eu a utilizava sem o saber. Agora tomei distância,
cesso de utilizá-la, estou desinteressado. Ela pode finalmente
aparecer, tornar-se objeto. Escutar assim ainda é visar, através do
som, instantâneo ele mesmo, outra coisa que não o som: uma
espécie de “natureza sonora” que se dá na íntegra de minha
percepção.
ENTENDRE
Podemos agora definir entendre em relação aos dois verbos
precedentes.
a) Ouïr-entendre
93
Começo por observar ser-me praticamente impossível não fazer
seleção naquilo que ouço. O fundo sonoro não vem primeiro:
ele só existe como tal num conjunto organizado onde
efetivamente desempenha esse papel. Enquanto esteja ocupado
com o que olho, penso ou faço, vivo realmente numa ambiência
indiferenciada, sem perceber mais que uma qualidade global.
Mas se permaneço imóvel, de olhos fechados, a mente vazia, é
bem provável que não mantenha uma escuta imparcial por mais
de um instante. Situo os ruídos, separo-os em próximos ou
distantes, externos ou internos, e fatalmente começo a
privilegiar uns em detrimento de outros. O tique-taque do
relógio de pêndulo impõe-se, me obceca, apaga todo o resto.
Involuntariamente imprimo-lhe um ritmo: tempo fraco, tempo
forte. Incapaz de destruí-lo, tento ao menos substituí-lo. Chego a
me perguntar como pude dormir um dia no mesmo quarto que
esse relógio irritante. Mas basta um carro frear bruscamente lá
fora para que eu esqueça. Pelo que sei agora, meu quarto bem
poderia ser uma ilha de silêncio açoitada por rumores externos.
Mas escuto (j’entends) baterem à porta; e o conjunto dessas
organizações cambiantes mergulha de vez no fundo sonoro
enquanto descerro os olhos e me levanto para abri-la.
Graças a tais mudanças, pude ao menos inventariar, por
fragmentos e por surpresa, o pano de fundo sobre o qual se
desenrolavam, e ainda dar-me conta de ser responsável por
essas variações intermináveis. Quando minha intenção seja
mais firme, a organização correspondente será tanto mais forte,
e é aí que, paradoxalmente, terei a impressão de ser-me
imposta do exterior. Assim, ao participar de uma conversa
familiar entre várias pessoas, passarei de um tema e de um
interlocutor a outro sem imaginar por um instante sequer a
extravagante confusão de vozes, ruídos e risos a partir da qual
realizo uma composição única, diferente daquela que cada um
de meus companheiros realiza por conta própria. Para revelá-la,
será preciso um registro frequentemente indecifrável, já que o
gravador não escolhe nada.
b) Écouter-entendre
Que acontecerá caso eu, pelo contrário, escute para ouvir
(entendre), seja porque ignoro a proveniência do objeto sonoro,
o que me obriga a passar por sua descrição, seja porque a quero
ignorar e interessar-me exclusivamente por ele? Seria um erro
acreditar que ele vá revelar-se a mim com todas as suas
qualidades porque o extraí do plano de fundo ao qual o
relegara: continuarei a praticar seleções sucessivas, a considerar
este ou aquele aspecto, um após outro.
Assim, quando olho uma casa, eu a situo na paisagem. Mas se
continuar a interessar-me por ela, examinarei ora a cor da
pedra, sua matéria, ora a arquitetura, ora o detalhe de uma
escultura sobre a porta; logo retornarei à paisagem em função
da casa para constatar que esta goza de “uma bela vista”, e a
94
verei de novo em seu conjunto, como o fizera de início, mas
minha percepção estará enriquecida de minhas investigações
precedentes. Ademais, está quase fora de minhas possibilidades
enxergá-la com os mesmos olhos com que enxergaria um
rochedo ou uma nuvem. Trata-se de uma casa, de uma obra
humana concebida para abrigar humanos. É em função desse
sentido que a vejo e aprecio. E minha investigação, bem como
minha análise, variarão também a depender de serem meus
olhos os de um futuro proprietário, os de um arqueólogo ou os
de um esquimó especialista em iglus.
Encontraremos no próximo capítulo um tratamento detalhado
do processo de escuta qualificada, cuja diversidade decorre de
uma lei fundamental da percepção, que é a de proceder por
“esboços sucessivos”, sem jamais esgotar o objeto; da
multiplicidade de nossos conhecimentos e de nossas
experiências anteriores (em função dos quais o objeto
imediatamente se apresenta com diferentes sentidos ou
significados); e da variedade de nossas intenções de escuta,
daquilo ao qual tendemos. Contento-me aqui com um exemplo
característico tomado de um romance de Max Frisch, Homo
48
faber.
“Todas as manhãs despertava-me um barulho estranho, mescla
de fábrica e música, um ruído inexplicável para mim, não muito
alto, porém alucinante, como grilos. Devia ser um mecanismo
qualquer, mas não consegui identificá-lo e, mais tarde, quando
nos encaminhávamos à aldeia, para o desjejum, tudo já
emudecera e não se via nada. [...]”
“Era domingo quando fizemos as malas [...], e verifiquei que o
curioso barulho que me acordara todas as manhãs era música,
o tinido de uma antiquada marimba, marteladas sem
tonalidades, um horror de música, como que epilética. Tratavase de qualquer festa ligada à lua cheia. Todas as manhãs, antes
de trabalharem, tinham ensaiado para acompanhar as danças,
cinco índios que golpeavam freneticamente o seu instrumento,
uma espécie de xilofone de madeira do comprimento de uma
mesa.”
As duas descrições evidentemente se correspondem.
49
Alucinação, monotonia e marteladas; ruído e ausência de
50
tonalidades; rumor metálico e golpes de martelo num xilofone.
De sua cama, todas as manhãs, depois lá fora, no momento de
partir, Walter Faber ouviu praticamente a mesma coisa.
48
Max Rudolf Frisch (1911-1991), escritor e arquiteto suíço. Homo faber foi publicado em Frankfurt
em 1957, em Paris em 1961, e no Rio de Janeiro em 1986. Cito da tradução brasileira de Herbert
Caro (FRISCH, 1986, p. 52 e 59).
49
O termo “monótono” aparece na versão francesa do primeiro parágrafo citado (SCHAEFFER,
1966, p. 109), mas não na brasileira (FRISCH, 1986, p. 52).
50
A expressão “rumor metálico” aparece na versão francesa do primeiro parágrafo citado
(SCHAEFFER, 1966, p. 109), mas não na brasileira (FRISCH, 1986, p. 52).
95
Não diremos o mesmo do que ele escutou (a entendu). No
primeiro caso ele escutava (entendait) um ruído cuja causa
procurava explicar; no segundo, informado das causas, ele
aprecia uma música. O que era apenas “estranho” torna-se de
repente “um horror”. A “alucinação”, que no primeiro caso
aparecia como simples analogia descritiva (nosso herói não
imaginando imputá-la diretamente aos grilos), é percebida com
maior intensidade ao revelar-se resultado de frenética atividade
instrumental, e torna-se então “como que epilética”. Após
conseguir qualificar a escuta, Walter Faber começou a escutar
(entendre) e depois a compreender em função de uma
significação precisa.
COMPREENDER
De fato, informado não diretamente pelo objeto sonoro, que
permanecia incerto, “mescla de fábrica e música”, mas pelo
recurso da vista, ele compreendeu tratar-se de música.
Do mesmo modo que o herói de Max Frisch, posso
compreender a causa exata do que ouvi (j’ai entendu) ao colocálo em relação com outras percepções, ou através de um
conjunto mais ou menos complexo de deduções. Ou ainda,
posso compreender, por meio de minha escuta, algo que não
tenha senão um vínculo indireto com o que ouço (j’entends):
constato simultaneamente que os pássaros se calam, que o céu
está baixo, que o calor é sufocante, e compreendo que haverá
tempestade.
Compreendo ao termo de um trabalho, de uma atividade
consciente do espírito, que já não se contenta em acolher um
significado, mas abstrai, compara, deduz, relaciona informações
de fonte e natureza diversas; trata-se de precisar um significado
inicial ou de extrair um significado suplementar.
Para a dona de casa, este ruído que lhe chega da sala ao lado e a
faz sobressaltar-se está prenhe de sentido: é um ruído de queda
ou de quebra. Ela o ouve (l’entend) como tal. Dá-se conta,
ademais, de que o filho não está perto, lembra-se de que o vaso
de porcelana chinesa foi imprudentemente colocado numa
mesa a seu alcance, e compreende facilmente que a criança
acaba de quebrá-lo.
Escuto e entendo o que me dizem, mas, ao identificar
contradições no relato e compará-lo a certos fatos que, aliás,
conheço, compreendo também que meu interlocutor mente. De
súbito, minha desconfiança atiçada passa a orientar
diferentemente minha escuta, e compreendo também
hesitações, certas mudanças no timbre da voz, e até “olhares
51
que creríeis mudos”.
51
Conforme a fala de Nero para Júnia na terceira cena do segundo ato do Britannicus, de Jean
Racine (1670, p. 27): j’entendrai des regards que vous croirez muets (ouvirei olhares que crereis
mudos).
96
Como o último exemplo permite antever, às vezes se emprega
indistintamente entender e compreender na acepção em que
são sinônimos: captar o sentido. Tal ocorre quando afirmamos
indiferentemente que “te compreendo” ou “te entendo”, ou
quando nos queixamos de não compreender (ou entender) a
música moderna. De fato, em ambos os casos, o ato de
compreensão coincide exatamente com a atividade da escuta:
todo o trabalho de dedução, comparação e abstração é
integrado e ultrapassado bem além do conteúdo imediato, do
“dado a entender”. (SCHAEFFER, 1966, p. 104-111).
A quarta etapa efetua a terceira síntese lexical:
1. Escuto o que me interessa.
2. Ouço, se não for surdo, o que se passa de sonoro a meu
redor, quaisquer que sejam, aliás, minhas atividades e meus
interesses.
3. Entendo em função do que me interessa, do que já sei e do
que busco compreender.
4. Ao termo do entender, compreendo o que buscava
compreender, aquilo em virtude do qual escutava. (SCHAEFFER,
1966, p. 113).
A quinta etapa desenvolve essa síntese e generaliza a fenomenologia:
1. O silêncio, supostamente universal, é perturbado por um
evento sonoro. Pode ser evento natural (pedra que rola, catavento que guincha) ou emissão voluntária de som por
instrumentista.
Seja
como
for,
o
que
escutamos
espontaneamente neste nível é a anedota energética traduzida
pelo som.
2. Correspondente ao evento objetivo, encontramos no ouvinte
o evento subjetivo representado pela percepção bruta do som,
ligada em parte a sua natureza física, em parte a leis gerais da
percepção, que estamos autorizados a supor, grosso modo,
serem as mesmas para todos os seres humanos (como o fazem
as descrições dos gestaltistas).
3. Relacionada a experiências passadas, a interesses
dominantes, atuais, essa percepção dá lugar a uma seleção e a
uma apreciação. Diremos que tenha sido qualificada.
4. As percepções qualificadas orientam-se para uma forma
particular de conhecimento, e o sujeito chega finalmente a
significados, abstratos em relação ao próprio concreto sonoro. De
modo geral, o ouvinte compreende neste nível certa linguagem
dos sons. (SCHAEFFER, 1966, p. 114).
A sexta etapa desenvolve essa generalização:
97
1. Escuto o evento, procuro identificar a fonte sonora: “O que é?
O que aconteceu?”. Não me detenho então no que percebo, dele
me sirvo inadvertidamente. Trato o som como um índice que me
assinala algo. É certamente o caso mais comum porque
corresponde a nossa atitude mais espontânea, ao papel mais
primitivo da percepção: prevenir um perigo, guiar uma ação.
Essa identificação do evento sonoro com seu contexto causal
geralmente é instantânea. Mas é possível também que, se os
índices forem incertos, ela só se produza após diversas
comparações e deduções. A curiosidade científica, embora
coloque em jogo conhecimentos altamente elaborados,
persegue um objetivo fundamentalmente semelhante ao da
percepção espontânea do evento.
2. Ao contrário, posso voltar-me para essa percepção, que há
pouco utilizava, e é diretamente a esse som que endereçarei a
pergunta: “O que é?”. Quer dizer que o trato como objeto. É o
que denominamos objeto sonoro bruto. (Esse tema será
amplamente desenvolvido no livro IV.) Ele é aquilo que
permanece idêntico através tanto do “fluxo de impressões”
diversas e sucessivas que tenho dele quanto de minhas
diferentes intenções a seu respeito. A segunda característica
essencial de um objeto percebido é não se apresentar senão por
esboços: no objeto sonoro que escuto há sempre mais para
ouvir (entendre), ele é uma fonte inexaurível de potencialidades.
Assim, a cada repetição de um som gravado, escuto o mesmo
objeto: bem que jamais o ouça (entende) igualmente, que ele
passe de desconhecido a familiar, que perceba sucessivamente
diversos de seus aspectos, que ele não seja pois jamais idêntico,
sempre o identifico como este objeto preciso.
3. É igualmente o mesmo objeto sonoro o que escutam diversos
ouvintes reunidos em torno de um gravador magnético. Mas
eles não ouvem (entendent) todos a mesma coisa, não
selecionam e não apreciam igualmente, e na medida em que
sua escuta toma assim partido por este ou aquele aspecto
particular do som, ela dá lugar a esta ou àquela qualificação do
objeto. Essas qualificações variam, como o ouvir (entendre), em
função de cada experiência anterior e de cada curiosidade.
Todavia, o objeto sonoro único, que torna possível essa
multiplicidade de aspectos qualificados do objeto, subsiste na
forma, digamos, de um halo de percepções, às quais as
qualificações explícitas fazem referência implícita. Desse modo,
quando concentro minha percepção qualificada no detalhe de
uma casa – janela, escultura acima da porta –, nem por isso a
casa está menos presente, e vejo essa janela ou essa escultura
como partes dela.
4. Posso, por fim, tratar o som como um signo que me introduz
em certo domínio de valores, e posso me interessar por seu
sentido. O exemplo mais característico é certamente o da fala.
Trata-se aqui de uma escuta semântica, centrada em signos
semânticos. Entre as diversas escutas “significantes” possíveis,
98
naturalmente nos interessamos em particular pela escuta
musical, que se refere a valores musicais e dá acesso a um
sentido musical. Note-se que os valores dos quais falamos são,
no limite, destacáveis de seu contexto sonoro, reduzido assim
ao papel de suporte. Geralmente concordamos que a
comunicação opere uma junção de espíritos. Nessa perspectiva,
é natural que, nas duas extremidades do circuito, e
notoriamente nesta, a da recepção, se abandone a contingência
do veículo sonoro no interesse de seu conteúdo significante. Os
valores musicais tradicionais não se excetuam na medida em
que os signos da música precedem sua realização sonora. É esta
que nos esforçamos por melhorar em vista daqueles, e não o
inverso. Eis por que pudemos falar, neste ponto 4, de
significações abstratas; neste nível, o abstrato se opõe ao
concreto material do nível 1. (SCHAEFFER, 1966, p. 114-117).
A sétima etapa apresenta a síntese final:
4. COMPREENDER
— para mim: signos
— diante de mim: valores
(sentido-linguagem)
Emergência de um conteúdo
do som e referência a noções
extrassonoras, confrontação
com estas.
1. ESCUTAR
— para mim: índices
— diante de mim: eventos
exteriores (agenteinstrumento)
1 e 4:
objetivo
Emissão do som.
3. ENTENDRE
2. OUVIR
— para mim: percepções
qualificadas
— diante de mim: objeto
sonoro qualificado
— para mim: percepções
brutas, esboços do objeto
— diante de mim: objeto
sonoro bruto
Seleção de certos aspectos
particulares do som.
Recepção do som.
3 e 4: abstrato
2 e 3:
subjetivo
1 e 2: concreto
Esse “caminho de pensamento” (HEIDEGGER, 1997, p. 41; 2001, p. 11)
desenha uma espiral de sentido duplo: centrífugo, em desenvolvimentos
fenomenológicos que partem de exemplos para generalizações; centrípeto, em
sínteses lexicais flexionadas pela fenomenologia. Temos, assim, em sístoles e
diástoles sucessivas: (1) síntese lexical; (2) especialização da primeira síntese; (3)
desenvolvimento fenomenológico ilustrado; (4) terceira síntese lexical; (5)
desenvolvimento da terceira síntese por generalização da fenomenologia; (6)
99
terceiro desenvolvimento; (7) síntese final. Mais tarde, Schaeffer apresentará a
versão existencial desse caminho de escuta:
Uma criança comunga. Ela se recolhe, faz silêncio, espera
alguma coisa surgir de si ou de seu Visitante, coisa nem comum
nem excessiva que aumente o sentimento recíproco da
presença de mim para Ele e d’Ele para mim. Despojada de
palavras, a adoração, antes de ser intenção, geralmente é
atenção, mobilização da consciência.
Um homem se concentra (como emissários de outras
civilizações ensinaram). Sem visitante externo, sem sacramento,
sem signo sensível, é ainda um chamado por forças latentes, e
também pela presença – daí a parada possível (esperemos), mas
improvável, da agitação costumeira, do ruído de fundo da mente
e suas infindáveis associações. Não falemos das receitas
incertas, dos comentários ociosos, dos mal-entendidos
prováveis.
Por fim, um ouvinte escuta um som (e não um discurso sonoro
de dormir em pé nem uma música para sonhar, dançar, chorar
ou sorrir). Colocamos à disposição de sua escuta certo
fragmento de som que se repete, ao qual ele se dedica como se
fixasse uma luz, uma maçaneta ou a linha do horizonte. Ele não
recebe nem Deus nem o fluxo de seu corpo, mas um sinal do
mundo exterior cuja imagem sonora se forma em sua
consciência. Para considerá-lo, é necessário também prestar
atenção e fazer silêncio, e paradoxalmente, para assimilá-lo, é
necessário ainda despojar-se de tudo o que até então se sabia
dele, descartar os sentidos, os índices e qualquer sugestão
relativa ao sinal. Se o reescutarmos agora ou em algumas horas,
em alguns dias, mais aprenderemos, não apenas sobre o objeto
que consideramos, mas também sobre as faculdades do sujeito
que somos, nos observando observar. Exatamente em que
consiste o ensinamento? Faço pesquisa musical? Decifro-me a
mim mesmo? Vou contar prosa, dizer-me psicólogo, musicólogo,
semiólogo? Diante da experiência íntima, do verdadeiro
proveito, míseras especialidades. (BRUNET, 1969, p. 211-212).
Esses parágrafos sumarizam três grandes períodos da vida de Schaeffer:
o dos movimentos de juventude católica, que culminam na experiência de Jeune
France no início dos anos 1940; o da “cristandade esotérica” de Gurdjieff,
correspondente à primavera da música concreta em 1948; e o da pesquisa
musical, associado ao Groupe de Recherches Musicales (GRM) e à criação do
Service de la Recherche na passagem dos anos 1950 aos anos 1960. E
reencontramos aqui Francis Ponge tal qual Ítalo Calvino o entendia em 1979:
Tomar um objeto dos mais humildes, um gesto dos mais
quotidianos, e procurar considerá-lo fora de todo o hábito
perceptivo, descrevê-lo fora de todo o mecanismo verbal gasto
pelo uso. Eis que uma coisa indiferente e quase amorfa como
100
uma porta revela uma riqueza inesperada; ficamos subitamente
felizes de encontrar-nos num mundo cheio de portas para abrir
e fechar. E isso não por qualquer razão estranha ao fato em si
(como o poderia ser uma razão simbólica, ou ideológica ou
estetizante), mas apenas porque reestabelecemos uma relação
com as coisas como coisas, com a diversidade entre uma coisa e
outra, e com a diversidade entra cada coisa e nós.
Inadvertidamente descobrimos que existir poderia ser uma
experiência muito mais intensa e interessante e verdadeira que
o corre-corre distraído no qual nossa mente calejou-se.
(CALVINO, 1995, p. 253).
Seja na versão lexicográfico-fenomenológica ou na existencial, o objeto
sonoro assume aspecto distinto do restritivo-normativo sob o qual costuma
apresentar-se nos trabalhos sobre música eletroacústica, vulgarmente definido
como “o som em si” (esse oxímoro), sem referência ao evento que o origina nem
ao seu significado. O próprio Schaeffer desautoriza essa simplificação:
Enquanto reste uma incerteza na percepção quanto ao objeto
final da escuta, em qualquer setor que se encontre, a
investigação consistirá em colocar em evidência e a referir uns
aos outros os objetos “parciais” do conjunto da atividade
auditiva; assim, uma série de escutas, ao aprofundar o
fenômeno, precisará os resultados simultaneamente nas quatro
direções. (SCHAEFFER, 1966, p. 118).
Conclusão
Essa poética de escuta pode contribuir para dissipar a doxologia do funk
carioca ao promover uma limpeza da situação aural. Ela pode contrabalançar
o número crescente de estudos históricos, antropológicos, sociológicos,
jurídicos, criminológicos, linguísticos e psicológicos sobre o tema ao dirigir
o foco da investigação para a forma e a matéria sonoras. E ela permite que se
coloquem problemas de história, antropologia, sociologia, direito, criminologia,
linguística e psicologia em relação com características de sonoridade, como
procurei mostrar em outros trabalhos (CACERES; FERRARI; PALOMBINI, 2014.
FACINA; MOUTINHO; NOVAES; PALOMBINI, 2018. PALOMBINI, 2016, 2019).
“Meu papel essencial é o de comunicar uma forma de compreender, de
sentir e de agir que pode parecer, do exterior, terrivelmente pessoal;
na verdade, eu mesmo sou apenas um relé”, diz Schaeffer (apud BRUNET,
1969, p. 19). “Dizes que o alimento, o lugar, o ar e a sociedade te
transformam e condicionam? Ora, tanto mais o fazem tuas opiniões, pois
são elas que te determinam em tua escolha de alimento, lugar, ar e
sociedade”, escreve Nietzsche (2017). “A capacidade que um sistema político
tenha para tolerar e recuperar a reformulação de seus mitos fundadores
constitui uma função crucial de sua adaptação, e portanto, de sua
sobrevivência”, afirma Pieter Lagrou (2013,p. 102). Concluo com a epígrafe de
Wittgenstein (1980: 45): “Revolucionário será quem possa revolucionar-se.”
101
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109
Música do tempo presente e intenção de escuta
Carlos Palombini *
Universidade Federal de Minas Gerais
CNPq
Revolucionário será quem possa revolucionar-se.
(Ludwig Wittgenstein, 1941-1944)1
Refaço, através da exposição diacrônica de excertos sobre a percepção aural escritos por
Pierre Schaeffer entre 1938 e 1969, a trajetória que me leva da música eletroacústica ao
estudo musical do funk carioca. Ela implica uma pedagogia baseada na reflexão sobre a
escuta que poderia tomar para si o antigo moto empirista: nihil est in intellectu quod non sit
prius in sensu – na formulação de Tomás de Aquino (2017). Confluem ao funk carioca
problemas de nosso tempo: as culturas da diáspora africana nas Américas, a análise da
música eletrônica dançante, a história das técnicas de produção musical, as garantias
individuais, a segurança pública, a criminalização da pobreza, o racismo estrutural, a
financeirização do espaço urbano. E “a massa [ainda] é a matriz onde se engendra hoje a
atitude nova frente à obra de arte” (BENJAMIN, 1936, p. 63). Como compreendê-la?
Metodologia
Embora os termos musicologia e história da música (musicologia histórica) sejam
frequentemente empregados como sinônimos, “musicologia” aqui remete a uma prática
interdisciplinar cujo ponto de convergência é a música,2 tomada por qualquer coisa de
sonoro que se entenda como tal. Um dos componentes dessa interdisciplina é a história –
“do tempo presente” não apenas porque as origens da música em questão, o funk
carioca, possam ser localizadas na Segunda Guerra Mundial3 ou porque sua referência de
análise, a música concreta, date do mesmo período, mas sobretudo porque procura
desmascarar “a boa consciência das elites constituídas, em política como na
Universidade” (LAGROU, 2013, p. 101).4 O modelo de interdisciplinaridade utilizado é o
agonístico/antagonístico descrito por Georgina Born (2010, p. 211): diante dos limites
intelectuais, estéticos, éticos ou políticos das disciplinas estabelecidas ou do estatuto da
pesquisa acadêmica em geral, colocamo-nos em relação de diálogo autoconsciente, de
crítica ou de oposição. Essa musicologia relacional busca abrir “um novo espectro
epistemológico e ler as cores que nossos preconceitos haviam previamente apagado”
(SERRES, 1980, p. 23-24). Articular historicamente o passado, Walter Benjamin (1985, p.
224) escreve em 1940, não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”, mas apropriar-se
de uma reminiscência tal qual relampeia no momento de um perigo. Esse momento é o
presente.
*
Sou grato a Igor Reyner pela leitura e crítica deste ensaio.
Conforme a datação de Pichler (1991, p. 26); aforismo publicado em Vermischte Bemerkungen
(WITTGENSTEIN, 1977). Exceto quando indicado em rodapé ou nas referências bibliográficas, excertos
em língua estrangeira são dados em traduções do autor, mantidos os grifos originais.
2 Assim concebida, a musicologia não deixa de filiar-se, em outro espírito, à Musikwisschenschaft de Guido
Adler (1885). Ver Mugglestone e Adler (1981) para contexto histórico e tradução inglesa do artigo de
Adler; ver Dudeque (2004) para uma tradução brasileira da tabela de Adler; ver Kerman (1985, p. 11-12)
para etimologia e pragmática do termo musicology.
3 Nomeadamente, no rhythm and blues afro-norte-americano (BURNIM; MAULTSBY, 2006, p. 245-269).
4 Sobre história do tempo presente, ver Garcia (2003), Lagrou (2003, 2013), Maranhão Filho (2009),
Readman (2011) e Droit e Reichherzer (2013); para um estudo exemplar, ver o livro de Rousso (1990).
1
Se antropologia, relatos orais e etnografia desempenham seus papéis nessa
pesquisa, e se um de seus objetivos é estabelecer relações entre morfologia sonora e
organização social – pergunta análoga àquela formulada por Steven Feld em 19846 –, por
que não a realizar sob o signo da etnomusicologia? Para responder a essa pergunta,
abandono a primeira pessoa do plural. Entendo ser mais produtivo desenvolver
colaborações com antropólogos comprometidos com pesquisas musicais 7 enquanto
mantenho-me no campo da disciplina definida nos termos do parágrafo anterior. Em
outras palavras, enquanto mantenho a diferença: “Suprimimos os prazeres agonísticos de
continuar diálogos intersubdisciplinares?” (BORN, 2010, p. 206).
Ponto de partida
Minha pesquisa originou-se, na segunda metade dos anos 1980, de uma pergunta de
compositor: de que modo as possibilidades de controle da forma e da matéria8 de uma nota
musical oferecidas pelo sintetizador polifônico programável Roland Juno-60 se
traduziriam em procedimentos de organização de sons? Na primeira metade dos anos
1980, Willy Corrêa de Oliveira analisava Estudos de Chopin segundo critérios
eletroacústicos9 no Departamento de Música da USP. Ainda assim, minha interrogação
não encontrava eco no meio acadêmico. Em palestra no Espaço N.O 10 em 1979, o
compositor Bruno Kiefer (1923-1987), 11 professor do Departamento de Música da
UFRGS, dizia da música eletroacústica: “Não se usa mais, pois desumaniza a música”.12
Entretanto, o início dos anos 1980 via a popularização de instrumentos
eletrônicos. Diferentemente do aparato dos estúdios de emissoras (RTF, WDR, RAI),
universidades (Columbia-Princeton) e instituições como o Bell Labs, o GRM e o Ircam,13
acessível a grupos restritos de compositores,14 e diferentemente do Synclavier (1977), do
Fairlight CMI (1979) ou da Linn LM-1 (1980), disponíveis para artistas com amplos
recursos de produção, em geral vinculados à fonografia corporativa, a Roland TR-808
(1980) e o Roland TB-303 (1981) eram adquiridos, muitas vezes de segunda mão, por
jovens, em sua maioria sem treino formal em música, para criarem os primeiros gêneros
de música eletrônica dançante: a house e a acid house em Chicago; o electrofunk e o electro em
Nova York; e o techno em Detroit (BREWSTER; BROUGHTON, 2000). Essas músicas
e sua descendência chegariam ao Rio de Janeiro na forma de discos de vinil para animar
um circuito de bailes proletários que se tornaria conhecido por mundo funk (VIANNA,
1988). Elas podem ser consideradas experimentais de acordo com os critérios definidos
6 “Existem padrões de co-evolução, ecológicos e estéticos, a ligar o ambiente a padrões sonoros,
materiais e situações?” (FELD, 1984, p. 38). Para uma tradução brasileira, ver Feld (2015), que parte de
uma discussão entabulada por Lomax (1962).
7 Nomeadamente, Adriana Facina, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional da UFRJ, e Dennis Novaes, doutorando no mesmo programa; ver Facina e Palombini
(2017) e Novaes e Palombini (2019).
8 “Imaginemos ser possível ‘parar’ um som para ouvir o que ele é em dado instante de nossa escuta: o
que captamos é o que denominaremos sua matéria, complexa, situada na tessitura e nas relações matizadas
da contextura sonora. Escutemos agora a história do som: tomamos consciência do desenvolvimento, na
duração, do que fora fixado por um instante; de um trajeto que dá forma a essa matéria” (SCHAEFFER, 1966,
p. 400). Ver também Chion (1983, p. 116).
9 Procedimento aplicado à Sonata Opus 57 de Beethoven por André Boucourechliev em 1963 e por
Oliveira em 1979.
10 Sobre o Centro Alternativo de Cultura Espaço N.O (1979-1999), ver Carvalho (2004).
11 Sobre Bruno Kiefer, ver Mariz (2000, p. 495).
12 Sobre o problema da academização das vanguardas, ver Adorno (1988) e McClary (1989).
13 Para uma etnografia do Ircam, ver Born (1995).
14 O Composers’ Desktop Project teria início em 1986.
2
por Schaeffer no “Livro I” de Traité des objets musicaux; isto é, na medida em que se
constroem na prática de um instrumentário novo.15
Artes-relé
Em meados dos anos 1970, os manuais de Robin Maconie (1976, p. 98-99) e Michael
Nyman (1974, p. 40-41) apresentavam Pierre Schaeffer como o perdedor, técnica e
intelectualmente subdotado, da contenda entre musique concrète e elektronische Musik. Em
1986 Macmillan Press lançou, organizada por Simon Emmerson, a primeira coletânea de
artigos sobre estética da música eletroacústica em língua inglesa. O segundo, o terceiro e
o quarto capítulos consistiam em trabalhos de compositores nascidos ou domiciliados na
Inglaterra que remetiam a Traité des objets musicaux em função de suas práticas
composicionais, mas não consideravam a diacronia do pensamento de Schaeffer, exposta
por Sophie Brunet em 1977.
Ele se muda de Estrasburgo para Paris em 1936 a fim de trabalhar na rádio
estatal, notoriamente defasada em relação a suas congêneres germânica e britânica
(PIERRET, 1969, p. 133). Desde as primeiras décadas da radiodifusão na França (HUC;
ROBIN, 1938; DESCAVES, 1962; JEANNENEY, 2001), os temas da arte radiofônica e
da fidelidade das transmissões mobilizavam debates em crônicas, artigos e livros de
Pierre Cusy e Gabriel Germinet (1926), Paul Deharme (1928, 1930), André Cœuroy
(1930), Alex Virot (1930), Éric Sarnette (1934), Carlos Larronde (1936) e Paul Dermée
(1938). Em abril de 1938, o “ex-aluno da Escola Politécnica” e “Engenheiro de Correios,
Telégrafos e Telefones” (SCHAEFFER, 1938b, p. 322) estreia na seção “Crônica do
rádio” da Revue musicale. E se pergunta: “Quais são os recursos reais da radiodifusão? Ela
propicia o nascimento de uma arte original? Deve, ao contrário, ser capaz apenas de
realizar, à perfeição, a tarefa de mensageira fiel das obras clássicas?” (SCHAEFFER,
1938b, p. 317). Para o autor,
A radiodifusão se acha, por assim dizer, “entre dois fogos”. Ela deve ser admiravelmente fiel à
música que se incumbe de transmitir, mas, ao mesmo tempo, tanto mais original no exercício de
seus próprios meios, tal qual o cinema, porquanto está a ponto de estragar tudo no embaraço
extremo em que a colocam essas exigências contraditórias.
Na realidade, a única saída é ver as coisas com clareza, lidar frontalmente com a
contradição e tomar as duas vias divergentes: uma conduz à eclosão de uma arte propriamente
radiofônica, que seria para o som aquilo que o cinema é para a imagem; a outra, embora mais
humilde, teria a nobre missão de transmitir da melhor forma possível a música tradicional aos
ouvintes do mundo inteiro, e seu único alvo seria não uma perfeição inatingível, mas a mais alta
fidelidade realizável. (SCHAEFFER, 1938b, p. 321).
A segunda crônica, “Vérités premières”, aparece em junho. O título remete ao ato
fundador – daí o título – de sua investigação sobre a escuta: constatar as diferenças
perceptivas entre as audições do som direto e do som transmitido por alto-falantes. Essas
diferenças são ilustradas por exemplos extraídos da transmissão sinfônica. Uma orquestra
ocupa um espaço significativo no palco: os violinos não se mesclam com os trompetes, e
o contrabaixo não ocupa o mesmo lugar que a corneta de pistões. Já o alto-falante, caixa
inclusa, toma o espaço de um executante, no máximo: no fundo de seu cone exíguo, o
contrabaixo e a corneta de pistões coincidem. Ademais, qualquer que seja o número de
microfones utilizados, há apenas um aparelho receptor, o que equivale a escutar com um
único ouvido. 16 Por fim, quando a recebermos em casa, nem os vizinhos nem os
aparelhos toleram o volume sonoro e a gama de matizes da orquestra real – do piano
mais sutil ao forte mais extremo –, e essa dinâmica é comprimida.
15
16
Sobre a noção de música experimental, ver ainda Schaeffer (1957b).
Essas observações são anteriores ao uso generalizado da estereofonia.
3
Ensaio sobre o rádio e o cinema: estética e técnica das artes-relé, um manuscrito começado
em 1941 e abandonado em 1942, tornou-se conhecido através de excertos publicados,
primeiro, por Marc Pierret em 1969 (p. 87-96), e depois, por Sophie Brunet em 1977 (p.
19-23), mas só foi dado à luz em 2010. Uma sucessão de infortúnios faz do período em
que trabalhou nesse texto o mais nefasto da existência do autor: não bastasse a derrota
militar na Batalha da França e o armistício de 22 de junho de 1940, em 19 de junho de
1941 Schaeffer perde a esposa em circunstâncias dramáticas, e o endurecimento do
regime de Vichy, anunciado pelo discurso “Sinto soprar um vento mau” do Marechal
Pétain, em 12 de agosto de 1941, leva à liquidação, em março de 1942, da Associação
Jeune France, que ele fundara em 22 de novembro de 1940 (CHABROL, 1990; NORD,
2007) e da qual foi afastado em dezembro de 1941. Schaeffer refugia-se em Marselha,17
onde lê, 18 faz anotações 19 e discursa diante de uma secretária, que lhe datilografa a
elocução. O termo arte-relé contrapõe-se ao termo arte direta e pode ter sido tomado da
conferência “De l’Enseignement de la poétique au Collège de France”, escrita por Paul
Valéry, em fevereiro de 1937:
A arte literária, derivada da linguagem e da qual a linguagem por sua vez se ressente, é portanto,
entre as artes, aquela em que a convenção desempenha o papel mais importante; em que a
memória intervém constantemente, através de cada palavra; que age sobretudo por relé, e não pela
sensação direta, e coloca em jogo simultaneamente, e mesmo concorrentemente, as faculdades
intelectuais abstratas e as propriedades emotivas e sensitivas. Ela é, de todas as artes, a que
envolve e utiliza maior número de partes independentes (som, sentido, formas sintáticas, conceitos,
imagens...). (VALÉRY, 1938, p. 13-14).
Essa ideia embasa o quadro 1, extraído do Ensaio (73),22 no qual Schaeffer sumariza as
possibilidades e limitações do cinema e do rádio em comparação com a linguagem:
Domínio concreto23
Domínio abstrato
Linguagem
Expressão24 difícil
Sugestão inadequada
Expressão adequada
Sugestão fácil
Cinema e rádio
Expressão adequada
Sugestão ilimitada
Expressão impossível
Sugestão lacunar
Quadro 1 – O cinema e o rádio se comparam à linguagem propriamente dita em função de seus
recursos de expressão e sugestão nos domínios concreto e abstrato.
Por outro lado, em crônica sobre o teatro radiofônico publicada no vespertino
L’Intransigeant em primeiro de abril de 1930 e citada no Ensaio (48), Alex Virot utiliza o
termo relai25 para se referir a um aparelho de mixagem. O que é um relé? Segundo o
17
Sobre a vida cultural em Marselha durante a ocupação, ver Guiraud (1990).
Muitos dos conceitos desenvolvidos em Traité des objets musicaux explicitam suas fontes no Ensaio: as
noções de tema e versão (BONALD, 1802, p. 139-140); a noção de concreto (POUCEL, 1940, p. iii); e a de
fenomenologia (CLAUDEL, 1904, p. 8; SOURIAU, 1929, p. 163-164).
19 Para uma amostra dessas notas, ver Schaeffer (2010a, p. 173-176).
22 Os números de página correspondem à tradução brasileira.
23 Sobre a noção de concreto, ver Schaeffer (2010a, p. 69, n. 17).
24 O contraste entre “expressão” e “sugestão” deriva das noções de linguagem-signo e linguagem-sugestão de
Frédéric Paulhan (1929, p. 17-18): “Em determinada sociedade, determinada época, há palavras e frases
cujo destino preferencial é exprimir com precisão um fato, transmitir com exatidão uma ideia, uma
impressão ou uma imagem, e cuja função deve geralmente parar aí. Outras palavras, outros arranjos de
palavras, ao contrário, vão despertar longas séries de impressões, de ideias, de sentimentos e de atos”.
25 A Academia Francesa recomendava a grafia antiga, relai, ainda em 1976 (REY, 2004, p. 3158).
18
4
Dictionnaire historique de la langue française de Alain Rey (2004, p. 3158), o verbo relayer se
aplica “a um satélite de telecomunicações, a uma estação de rádio ou de televisão que
retransmite uma emissão do emissor principal a outro emissor”. Rey data essa acepção de
1933. De acordo com o Oxford English Dictionary, o verbo to relay – em parte, um
empréstimo do francês, em parte, formado no inglês, por conversão (OUP, 2017) – foi
usado desde a segunda metade do século XIX com o sentido de “passar ou retransmitir
(sinais telefônicos ou de rádio recebidos de outro local)”. Mas por que Schaeffer
escolheria associar o rádio e o cinema a um termo que sublinha a concepção transmissiva
que ele contestará?
Formada no final do século XIII pela combinação do prefixo re com o verbo
picardo, valão e loreno laier (deixar, abandonar),26 a palavra relaier designou originalmente
o ato de “substituir os cães fatigados por cães descansados” na caça equestre. A partir do
século XVI, ela foi empregada intransitivamente para “trocar os cães durante a caçada” e,
por analogia, “trocar de cavalos”. No século XVII, a construção transitiva assumiu o
sentido estendido de “substituir (alguém) num trabalho, numa ocupação” e passou a ser
usada também na forma pronominal.
Do início do século XV ao início do século XIX, na Grã-Bretanha, o substantivo
relay foi utilizado para “um conjunto de cães de caça (e ocasionalmente cavalos)
descansados, a postos para assumirem seus papéis na caça a um cervo, em substituição
àqueles já cansados”. Do início do século XVII ao último quartel do século XIX, um relé
podia ser “um conjunto de cavalos descansados obtido ou mantido de prontidão em
vários estágios de uma rota para acelerar a viajem”. No final do século XVII, o termo
começou a associar-se a “um conjunto de pessoas escolhidas para se revezarem com
outras na execução de certas tarefas”. A partir de meados do século XVIII, um relé podia
ser “uma série de veículos designados para cobrir uma rota prescrita (geralmente em
sequência)”.
Assim, por mais de meio milhar de anos, o substantivo relé foi sinônimo de
atividades executadas de modo mais efetivo através da substituição de uma força-tarefa –
animal, humana, motiva ou automotiva – exausta por outra nova. No segundo quartel do
século XIX, concomitante com a domesticação da eletricidade, ocorre um deslocamento
semântico. O novo relé é “um instrumento usado na telegrafia de longa distância a fim
de fornecer, a uma corrente elétrica que é muito fraca para influenciar os instrumentos de
gravação ou transmitir uma mensagem à distância necessária, a possibilidade de que o
faça indiretamente por meio de uma bateria local colocada em contato com essa
corrente” (OUP, 2017). Ao invés da substituição de unidades exaustas por outras novas,
o ingresso de energia passa a acarretar o reforço de um agente (elétrico) por meio de um
suprimento extrínseco. No uso atual, um relé se torna “qualquer dispositivo elétrico […]
por meio do qual uma corrente ou sinal em um circuito pode abrir ou fechar outro
circuito”. No Oxford, o exemplo mais antigo desta acepção data de 1907. Embora esse
relé não passe de um botão de ligar e desligar, uma relação com os sentidos anteriores
subsiste: o circuito controlador pode afetar um circuito de saída de potência maior que a
própria, e isso o habilita a ser considerado uma espécie de amplificador elétrico. Duas
propriedades presidem a todos esses sentidos: potenciação e ruptura. Schaeffer define a
relação entre artes diretas e artes-relé numa alegoria:27
Vemos assim, nessa corrida em que competem a arte direta, em plena forma, e a arte-relé, em
pleno ensaio, várias etapas, que geralmente definem três fases:
Primeira fase: o instrumento deforma a Arte.
Segunda fase: o instrumento transmite a Arte.
26
27
Sobre a controvérsia acerca da etimologia e da semântica de laier, ver Rey (2004, p. 3158).
Citada na redação sintética de 1969.
5
Terceira fase: o instrumento informa a Arte.
Na primeira fase perdoa-se tudo ao instrumento, porque lhe admiramos a novidade sem
levá-lo a sério. Não se tem medo de sua concorrência. Aliás, é tão evidente ser-lhe impossível
lutar que lhe admiramos sobretudo a boa vontade. Na segunda fase o instrumento aperfeiçoa-se e,
longe de admirar tais aperfeiçoamentos, reclamamos de não ocorrerem com suficiente rapidez,
porque é precisamente quando a imagem se assemelha ao modelo que defeitos e deformações
aparecem. A arte direta espera ser escrupulosamente servida por esse relé, que poderá fornecerlhe difusão inimaginável, facilidades inéditas. Pede-se agora ao instrumento não só mais do que
ele pode dar, mas também aquilo que, por sua própria natureza, ele não pode dar. Vem por fim
uma fase clássica, que o cinema está por atingir, mas da qual o rádio ainda dista bastante. Essa
fase torna-se possível pelo conhecimento do instrumento, pela discriminação entre seus limites e
suas possibilidades, e também entre seus dois papéis: retransmitir de certo modo o que tínhamos
o hábito de ver e ouvir diretamente; exprimir de certo modo o que não tínhamos o hábito de ver
e ouvir. (PIERRET, 1969, p. 91-92).
O duplo papel do instrumento das artes-relé ilustra a dupla função da reprodução
mecanizada de Walter Benjamin: “Por volta de 1900 a reprodução mecanizada havia atingido um
estágio tal que não só começava a fazer das obras de arte do passado seu objeto e a transformar assim a
ação das mesmas, mas chegava também a uma situação autônoma entre os procedimentos artísticos.”
(BENJAMIN, 1936, p. 41).
Em 1935, Benjamin enviou cópias de “L’Œuvre d’art à l’époque de sa
reproduction mécanisée” a bom número de intelectuais parisienses, entre os quais André
Malraux (PALMIER, 2006, p. 285), que o mencionou em Londres perante a Associação
Internacional dos Escritores em Defesa da Cultura, em 21 de junho de 1936
(MALRAUX, 1936), antes de citá-lo em “Esquisse d’une psychologie du cinéma”, em
1940:
No século XX, pela primeira vez, criaram-se artes inseparáveis de um meio mecânico de
expressão; não suscetíveis de reprodução, mas expressamente destinadas à reprodução.28 Os mais
belos desenhos já podem ser reproduzidos de modo satisfatório; certamente ocorrerá o mesmo
com as pinturas bem antes do fim do século. Mas nem desenhos nem pinturas foram feitos para
serem reproduzidos. Eles constituem em si mesmos seu próprio fim (ver a esse respeito o
trabalho notável do senhor Walter Benjamin). (MALRAUX, 1940, p. 71).
Schaeffer encontra a ideia de Benjamin no ensaio de Malraux, que ele cita: “essas artes do
século XX, cuja natureza é de serem ‘inseparáveis de um meio mecânico de expressão’”
(SCHAEFFER, 2010a, p. 32). E nota em seu diário: “artes de reprodução e artes
consideradas em si; desenhos e quadros não feitos para serem reproduzidos (cf. Walter
Benjamin)”.29 O período em que trabalhou no Ensaio foi de passagens: de Vichy para
Paris via Marselha; do luto ao prazer erótico pela mediação da secretária datilógrafa; da
radiofonia à pesquisa sobre ruídos pela prática da arte radiofônica; dos movimentos de
juventude católica ao cristianismo esotérico pela intercessão de George Gurdjieff
(PIERRET, 1969, p. 112-119). Assim, quando Marc Pierret o interroga, em 1969:
Seria então exato e judicioso incorporar esse quarto de século de suas experimentações sonoras
no tecido de um pensamento de escritor, de filósofo, se o senhor preferir? Em outras palavras,
esses longos anos de experiência radiofônica e depois musical devem colocar-se entre as aspas de
dois textos: o texto premonitório das Artes-Relé, inacabado, inédito, e o relato definitivo,
meditado, publicado, de Traité, vinte e cinco anos depois? (PIERRET, 1969, p. 91).
28
“O filme fornece o exemplo de uma forma de arte cujo caráter é pela primeira vez integralmente
determinado por sua reprodutibilidade” (BENJAMIN, 1936, p. 49).
29
Diário, caixa “J3: Fin 41→ 47 après E”, caderno “P 24, P 25, P 26: fin 1941-1945, Occupation”,
fascículo “P 24: Journal du Studio d’essai et notes philo et esthétique, janvier 42 à printemps 44”,
consultado na residência de Jacqueline Schaeffer; transcrição de Jacqueline Schaeffer.
6
Ele responde:
Creio que seja correto dizê-lo. Creio que em ambos os casos a linguagem (entenda-se também sua
lógica, o traço que ela forma de um pensamento contínuo, os andaimes que fornece à imaginação,
como a equação ao físico) serviu-me de notação e de baliza: voltada para o conhecimento
adquirido, de modo a precisar-lhe a problemática; voltada para o desconhecido, de modo a
vislumbrar-lhe o plano. (PIERRET, 1969, p. 91).
Depois de precisar a problemática do rádio, Schaeffer dedica-se à prática da arte
radiofônica na Paris ocupada.
Música concreta
Em 1948 ele contava oito livros publicados, entre biografia (1934), teatro (1939, 1941,
1946b, 1947a, 1947b, 1948) e ensaio (1946a), e preparava-se para lançar seu primeiro
romance (1949). Naquela primavera, a pesquisa sobre ruídos dá início a uma produção
musical que terá na infância seu fastígio. Formulada num misto de diário e ensaio, essa
pesquisa assume o caráter paradoxal de uma liberação em face da escrita:
Há um ano não faço mais que escrever. Tenho vontade de mudar. Sempre se escreve para dizer
algo. De repente se descobre que seria necessário escrever para não dizer mais nada. Sou mesmo
obrigado, se escrevo, a ser moral ou imoral, cômico ou trágico, simbólico ou naturalista. É aí que
me invade a nostalgia da música, que Roger-Ducasse30 diz amar “porque ela não quer dizer nada”.
(SCHAEFFER, 1950, p. 31).
“Introduction à la musique concrète” situa-se no tempo e em seu espírito:
Convidamos o leitor a partilhar do diário de bordo de um cruzeiro solitário. Solitário quando se
trata dessa música que denominamos “concreta” para que etimologia e embriologia coincidam.
Bem pouco solitário, de fato, quando se trata de uma atitude, de um procedimento do espírito e de
uma tomada de posição diante do evento.31 O que se passa conosco quanto à música concreta é
uma aventura corrente neste semi-século de claridade, neste século de semiclaridade em que
metade do quebra-cabeça ainda está toda embaralhada em sua caixa de surpresas. (SCHAEFFER,
1950, p. 30).
Há alusão a Igor Stravinsky (31), citação de Jean Roger-Ducasse (31), menção às
colaborações de Pierre Billard (41) 32 e Jean-Jacques Grunenwald, 33 e declaração de
independência quanto a John Cage (42), mas os passageiros de além-música embarcam
sob anonimato. Desfaçamos de antemão um ledo engano: a música concreta não é a que
se faz com sons gravados. Concreto é o que “diz respeito aos sentidos e não ao sentido”
(SCHAEFFER, 1950, p. 51).34 Essa escolha corresponde a uma inversão: “ao contrário
do procedimento tradicional, que vai da partitura à execução, o procedimento concreto
vai do material sonoro à organização” (PIERRET, 1969, p. 51):
30 Jean Jules Aimable Roger-Ducasse (1873-1954), compositor francês, aluno dileto de Gabriel Fauré e
sucessor de Paul Dukas no Conservatório de Paris (1936-1946).
31 Em 19 de maio de 1942, Francis Ponge havia lançado o livro Le Parti pris des choses, sobre o qual JeanPaul Sartre publicaria um ensaio em 1944.
32 “Pierre Biard” no original (SCHAEFFER, 1950, p. 41), “Pierre Billard” na coletânea de Brunet (1977,
p. 50), que possivelmente se refira ao realizador de teatro radiofônico (1921-2012).
33 Compositor, organista e improvisador (1911-1982), foi professor de órgão da Schola Cantorum e do
Conservatório de Genebra, autor de trilhas de filmes de André Bresson.
34 Schaeffer retoma uma formulação do Ensaio de 1941-1942: “O uso que faço aqui da palavra ‘concreto’
é necessariamente mais restrito. Ela designa o que diz respeito aos sentidos, e não ao sentido.” (SCHAEFFER,
2010a, p. 69, n. 17).
7
MÚSICA HABITUAL
(dita abstrata)
—
FASE I. Concepção (mental);
FASE II. Expressão (notada);
FASE III. Execução (instrumental).
(do abstrato ao concreto)
MÚSICA NOVA
(dita concreta)
—
FASE III. Composição (material);
FASE II. Esboços (experimentação);
FASE I.
Materiais (fabricação)
(do concreto ao abstrato)
A “música nova” é também um ato de transgressão do funcionário público:
Eu não poderia exagerar a importância dessa transigência que o leva a apoderar-se de três dúzias
de objetos para fazer barulho sem a menor justificativa dramática, sem a menor ideia
preconcebida, sem a menor esperança. E mais, com o secreto despeito de fazer o que não se deve,
de perder seu tempo numa época séria em que o próprio tempo nos é medido. (SCHAEFFER,
1950, p. 32).
Embora os Cinco estudos de ruídos (MÂCHE; GORNE, 1980, p. 16-17) decorram,
cada um, de um problema de realização, o tema da dissociação entre a percepção de
qualidades sonoras e a percepção do evento produtor do som protagoniza o debate no
papel de requisito da abstração musical. Nesse processo, a escuta se afirma e
problematiza a criação:
Por um lado, do momento em que um disco está num prato, uma força mágica me conduz, me
obriga a escutá-lo, por monótono que seja. Será que a gente se deixa levar porque estamos envolvidos?
Não ignoro o quanto esses discos são maçantes e impossíveis de serem irradiados como tal. Mas
sei que são extraordinários para escutar num estado de espírito especial, e sei também que os prefiro
em estado bruto ao estado de vaga composição (decomposição) no qual terminei por isolar
penosamente oito pseudocompassos de um pseudo-ritmo.
Baixo a agulha no início de determinado grupo rítmico. Levanto-a bem no fim, encadeio
a outro e assim por diante. A imaginação tem tanta força quando isolamos mentalmente determinado
elemento sonoro e nos esforçamos para realizar essa tomada de matéria pela agulha que, na hora,
nos deixamos levar. Na realidade, quando se reescuta a frio o composto obtido após longas horas
de paciência, não se acha mais que uma fragmentação grosseira de grupos rítmicos rebeldes a
qualquer compasso. Você acredita lembrar que o trem bate um três por quatro, um seis por oito.
O trem bate seu próprio compasso, perfeitamente definido, mas perfeitamente irracional. O mais
monótono dos trens varia sem cessar, jamais toca no compasso. Transforma-se numa sucessão de
isótopos singularmente gêmeos. É aí que estaria, para um ouvido exercitado, o prazer musical.
Esse prazer consistiria não em fazer o trem tocar no compasso, nos compassos de
nossos solfejos elementares, por uma satisfação afinal bem vulgar, mas em aprender a escutar, a
amar esse Czerny de um novo gênero, e sem a ajuda de nenhuma melodia, de nenhuma harmonia,
desfrutar, em monotonia das mais mecânicas, o jogo de alguns átomos de liberdade, as
improvisações imperceptíveis do acaso. Diabolus in mecanica. (SCHAEFFER, 1950, p. 38).
Um companheiro incógnito de viagem era Francis Ponge (1899-1988), que, na
Argélia, escrevia em 31 de janeiro de 1948:
A cada instante do trabalho de expressão, à medida que escrevo, a linguagem reage, propõe suas
próprias soluções, incita, suscita ideias, ajuda a formação do poema.
Nenhuma palavra é empregada que não seja logo considerada uma pessoa. Que a
claridade que ela carrega consigo não seja utilizada; e a sombra que carrega também.
Quando aceito uma palavra na saída, quando deixo sair uma palavra, imediatamente
devo tratá-la não como um elemento qualquer, um pedaço de madeira, uma peça de quebracabeça, mas como um peão ou uma figura, uma pessoa de três dimensões etc., e não posso dispor
dela exatamente como bem entenda. (Cf. a frase de Picasso sobre minha poesia).35
35 “O senhor, suas palavras, são como pequenos peões, o senhor sabe, pequenas estatuetas, elas giram e
têm várias faces, cada palavra, e se iluminam umas às outras” (PONGE, 1999, p. 684).
8
Cada palavra se impõe a mim (e ao poema) em toda a sua espessura, com todas as
associações de ideias que comporta (que comportaria se estivesse só sobre fundo escuro). E
todavia é necessário transpô-la... (PONGE, 1961, p. 33-34).
O excerto integra “My Creative Method”,36 publicado em Zurique em 1949 e em Paris
em 1961, já como parte do livro Méthodes, segundo volume de Le Grand Recueil (PONGE,
1999, p. 441-809). Em junho de 1948, “Le Lézard” (PONGE, 1999, p. 745-748), do
terceiro volume do Grand Recueil, foi lido numa emissão do mesmo Club d’Essai
(PONGE, 1999, p. lxxiii) onde se criava a música concreta. Em 1966 Traité des objets
musicaux prestará tributo à escrita de Ponge, da qual Schaeffer dirá: “não obra de autor
que tem a dizer, mas trabalho sobre as palavras que terminam por dizer mais que o autor
sabia, e por encaminhá-lo a sentidos que ele próprio não reconhece senão em
retrospecto” (SCHAEFFER, 1966, p. 658).
Tratado
As teorizações da música concreta prosseguem numa série de textos dos anos 1950, em
particular no livro À la recherche d’une musique concrète (1952) e nos artigos “Vers une
musique expérimentale” (1957), “Lettre à Albert Richard” (1957) e “Situation actuelle de
la musique expérimentale” (1959). Este aparece em volume da Revue musicale que anuncia
um Acousmatique, ou traité des objets musicaux, em resposta aos “principais enigmas lançados
em 1952 por sua primeira obra” (SCHAEFFER, 1959, p. 72). O autor despendeu quinze
anos na elaboração de Traité, “objeto de três, quatro, cinco redações inicialmente
informes, aproximativas” (PIERRET, 1969, p. 97). A versão final começa a tomar corpo
por volta de 1960. 37 Na introdução, “Situação histórica da música”, ele coloca em
evidência “três fatos novos” (SCHAEFFER, 1966, p. 16-18) e “os três impasses da
musicologia” decorrentes:
Um desses impasses é o das noções musicais. Não são apenas a escala e a tonalidade que as músicas
mais aventurosas de nossa época, como as mais primitivas, terminam por negar, mas a primeira
dessas noções: a de nota musical, arquétipo do objeto musical, fundamento de toda a notação,
elemento de toda a estrutura, melódica ou rítmica. Nenhuma teoria e solfejo, nenhuma harmonia,
seja atonal, pode dar conta de certa generalidade de objetos musicais, e principalmente daqueles
que a maioria das músicas africanas ou asiáticas utilizam.
O segundo impasse é o das fontes instrumentais. Afora a inclinação dos musicólogos a
referirem os instrumentos arcaicos ou exóticos a nossas normas, eles se viram subitamente
desarmados diante das fontes novas de sons concretos ou eletrônicos que – surpresa! – se
entendiam às vezes muito bem com instrumentos africanos ou asiáticos. Mais inquietante ainda
era a possível desaparição da noção de instrumento. Instrumentos polivalentes ou sintéticos, tais
seriam os ornamentos de nossas salas de concerto, a menos que um despojamento total
sacramentasse a ausência de qualquer instrumento. Assistiríamos ao desaparecimento da orquestra
e do regente, evidentemente ameaçados pelo sumiço das partituras, em via de serem substituídas
por fitas magnéticas lidas por alto-falantes?
O terceiro impasse é o do comentário estético. Em seu conjunto, a abundante literatura
devotada às sonatas, aos quartetos e às sinfonias soa oca. Só o hábito nos pode mascarar a
pobreza e o caráter bizarro dessas análises. Quando se descartam as considerações complacentes,
a montante e a jusante da obra, sobre o estado de espírito do compositor ou do exegeta, fica-se
reduzido à mais seca das enumerações, em termos de tecnologia musical, de seus procedimentos
de fabricação ou, na melhor das hipóteses, ao estudo de sua sintaxe. Nada, porém, de verdadeira
explicação de texto. Qem sabe não haja razão para espanto? Quem sabe a boa música, por ser ela
mesma linguagem, e linguagem específica, escape radicalmente de toda descrição e de toda
36
O título deriva de um artigo de Betty Miller (1947); ver Ponge (1999, p. 1089).
Sophie Brunet, que começara a trabalhar com Schaeffer em 1959, recebe então a oferta de um
adiantamento para escrever seu segundo romance (o primeiro seria publicado em 1962) e a rejeita “para
obrigar Schaeffer a escrever seu livro” (comunicação verbal de Brunet).
37
9
explicação por meio de palavras?38 Em todo caso, nos limitaremos a reconhecer que o problema é
suficientemente importante para não poder camuflar-se, e a dificuldade não foi nem
resolutamente confrontada nem claramente tratada.
A análise é indubitavelmente severa, mas um dia ou outro necessitaremos tomar ciência
do esgotamento musicológico que ela denuncia. Se toda explicação se esquiva, seja ela nocional,
instrumental ou estética, mais valeria confessar que, ao fim e ao cabo, não sabemos grande coisa da
música. E pior, que o que sabemos é propício a nos desnortear ao invés de orientar-nos.
(SCHAEFFER, 1966, p. 19-20).
Traité des objets musicaux: essai interdisciplines se organiza num “percurso
ziguezagueante em sete saltos denominados ‘livros’” (SCHAEFFER, 1966, p. 11). O
primeiro, “Fazer música”, trata da origem do instrumento e de suas relações com o
desenvolvimento das linguagens musicais. O segundo, “Ouvir” (entendre), expõe o sistema
das “quatro funções da escuta”. 39 O terceiro, “Correlações entre sinal físico e objeto
musical”, analisa as percepções de altura, duração, intensidade e timbre em suas relações
com as mensurações físicas de frequência, tempo, amplitude e espectro para caracterizálas em termos de anamorfoses (deformações). O quarto, “Objetos e estruturas”, busca
referências na filosofia, na fenomenologia, na Gestalt, na linguística, na fonética e na
fonologia. O quinto, “Morfologia e tipologia dos objetos sonoros”, e o sexto, “Solfejo
dos objetos musicais”, definem as cinco operações do solfejo do objeto sonoro, das quais
apenas as duas primeiras – morfologia e tipologia – são efetivamente realizadas. O
sétimo, “A música como disciplina”, depõe “a título mais pessoal” (12).
Escutar
Schaeffer parte do Dictionnaire de la langue française de Émile Littré para desenvolver a
semântica dos verbos ouïr, écouter, entendre e comprendre. Ele dirá mais tarde:
Insisti, ao final do Tratado, neste aspecto que praticara anos a fio, um pouco à maneira de Ponge.
Não foi a palavra pré 40 ou verre d’eau 41 que explorei, mas, graças a Littré, 42 as palavras-chave:
entendre, comprendre, ouïr. Essas palavras, esses seixos43 gastos pelo uso, serviram-me de laboratório.
Que digo eu, de Conselheiros, Ancestrais, Palavras Mestras! (PIERRET, 1969, p. 91).
A argumentação se desenvolve em sete etapas. A primeira sintetiza o verbete
entendre (LITTRÉ, 1874, p. 1419-1421):
Entendre: dirigir seu ouvido a, por onde, receber impressões de sons. Ouvir (entendre)44 barulho.
Ouço (j’entends) falar na peça ao lado, percebo (j’entends) que me dizes novidades.
1. Entendre-écouter: ouvir (entendre) é ser suscetível a sons; escutar é dar ouvidos para ouvilos (entendre). Às vezes não se ouve (entend), embora se escute, e frequentemente se ouve (entend)
sem escutar.
2. Entendre-ouïr: essas duas palavras, muito diferentes na origem, são hoje completamente
sinônimas. Ouïr era a palavra correta, pouco a pouco substituída por entendre, que é a figurada. Ouïr
é perceber pelo ouvido; entendre é, propriamente, prestar atenção. Só o uso lhe deu o sentido
desviado de ouvir. A única diferença é que ouïr tornou-se verbo defectivo de uso restrito. Quando
o significado pode ser ambíguo, deve-se empregar ouïr sem hesitação. Assim, neste dito de
38
A esse respeito, ver a abertura do artigo “Le Grain de la voix”, de Roland Barthes (1972).
Enganosamente vertidas ao inglês por modes of listening (SCHAEFFER, 2017, p. 80-93).
40 Cf. “Le Pré”, Nouveau Recueil (PONGE 2002, p. 340-344).
41 Cf. “Le Verre d’eau”, Méthodes (PONGE, 1961, p. 115-173).
42 Sobre a mística do Littré em contraposição ao Robert, ver Ponge (1961, p. 19).
43 Cf. Tcholakian (1989).
44 Toda a vez que “entender” não traduza o entendre de Schaeffer – isto é, na maioria dos casos – o termo
francês aparecerá flexionado após a tradução. Sobre a impossibilidade de traduzir o verbo francês no
“Livro II” de Traité, ver Palombini (1997).
39
10
Pacuvius sobre os astrólogos: Il vaut mieux les ouïr que les écouter (mais vale ouvi-los que escutá-los).45
Entendre contrariaria o sentido da frase.
3. Etimologicamente: tender a, por onde, ter a intenção, o desígnio. Comment l’entendez vous?
(Qual é sua intenção?).
4. Entendre-concevoir-comprendre: entendre e compredre significam captar o sentido. Isso os
distingue de concevoir, que significa apreender mentalmente. Entendo ou compreendo esta frase, e
não eu a concebo. Ao contrário, no verso de Boileau, Ce qui se conçoit bien s’énonce clairement46 (o que
se concebe bem, enuncia-se claramente), entendre ou comprendre não conviriam. A diferença de
matiz entre entendre e comprendre é outra: a ideia de entendre é prestar atenção, ser versado em, ao
passo que a de comprendre é tomar para si. Entendo alemão, eu o sei, sou versado nele.
“Compreendo alemão” diria menos. (SCHAEFFER, 1966, p. 103-104).
Entendre carrega consigo uma ambiguidade fundamental: termo marcado no par
oposicional entendre/ouïr (escutar/ouvir), onde significa “prestar atenção”, em contraste
com “perceber pelo ouvido”; termo não marcado no par oposicional écouter/entendre
(escutar/ouvir), onde significa “ser suscetível a sons”, em contraste com “dar ouvidos
para ouvi-los”. A segunda etapa especializa a lexicografia:
1. Écouter é prestar ouvido, interessar-se por. Dirijo-me ativamente a alguém ou a alguma coisa
que me é descrita ou indicada por um som.
2. Ouïr é perceber pelo ouvido. Em oposição a escutar, que corresponde à atitude mais
ativa, ouço o que me é dado na percepção.
3. De entendre reteremos o sentido etimológico: “ter uma intenção”. O que ouço
(j’entends), o que me é manifesto, é função dessa intenção.
4. Compreender, tomar consigo, mantém relação dupla com escutar e ouvir (entendre).
Compreendo o que visava em minha escuta graças àquilo que escolhi ouvir (entendre). Mas
reciprocamente, o que já compreendi dirige minha escuta, informa o que ouço (j’entends).
(SCHAEFFER, 1966, p. 104).
A terceira etapa ilustra a lexicografia através de exemplos que delineiam uma
fenomenologia.
OUVIR
Para ser exato, nunca deixo de ouvir. Vivo num mundo que não cessa de estar aí para mim, e esse
mundo é sonoro, tanto quanto tátil e visual. Desloco-me numa “ambiência” como numa
paisagem. O silêncio mais profundo é ainda um fundo sonoro como outro qualquer, do qual se
destacam então, com solenidade inusitada, o ruído de minha respiração e o ruído de meus
batimentos cardíacos (cf. relatos de cosmonautas sobre o “silêncio espacial”). O que seria para
nós a estranheza de um mundo subitamente privado dessa dimensão, podemos entrevê-lo graças
a um incidente técnico, quando a faixa sonora de um filme é bruscamente interrompida, ou em
certos sonhos. Lembremos o de Baudelaire e sua “móveis maravilhas”, sobre as quais “pairava –
terrível novidade – tudo para o olho, nada para o ouvido – um silêncio de eternidade”.47 Como se
o rumor contínuo que impregna até nosso sono 48 se confundisse com o sentimento de nossa
própria duração.
Nem por isso ouvir é “ser suscetível a sons” que chegariam a meu ouvido sem atingir
minha consciência. É de fato em relação a esta que o fundo sonoro adquire realidade. Adapto-me
a esse fundo instintivamente, sem me dar conta sequer, ao elevar a voz quando seu nível aumenta.
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Magis audiendum quam auscultandum censeo, frase de Marcus Pacuvius (220 a.C.-130 a.C.), poeta,
dramaturgo e pintor romano, citada por Michel de Montaigne em 1595 (p. 24).
46 Ce que l’on conçoit bien s’énonce clairement, Et les mots pour le dire arrivent aisément, versos de Nicolas Boileau
(1674, p. 108) no “Chant premier” de L’Art poétique.
47 Et sur ces mouvantes merveilles Planait (terrible nouveauté! Tout pour l’œil, rien pour les oreilles!) Un silence d’éternité,
Charles Baudelaire (1975, p. 103), “Rêve parisien”, Les Fleurs du mal (1861), originalmente publicado na
Revue contemporaine em 15 de maio de 1860 (BAUDELAIRE, 1975, p. 1040). O poeta explica: “O
movimento implica geralmente o ruído, a tal ponto que Pitágoras atribuía uma música às esferas em
movimento. Mas o sonho, que separa e decompõe, cria a novidade” (BAUDELAIRE, 1975, p. 1043).
48 Cf. o conhecido excerto sobre os ruídos de Paris na abertura de La Prisonnière, de Marcel Proust (1923,
p. 9-10). Sobre a escuta em Proust, ver Reyner (2017).
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Ele se associa para mim ao espetáculo, aos pensamentos e às ações que acompanhava sem que eu
me apercebesse, e às vezes bastará por si só para evocá-las. A música de um filme, à qual eu não
havia prestado nenhuma atenção, tão absorto estava nas peripécias dramáticas, despertará, quando
a escute (entendrai) ao rádio, as emoções que o filme havia provocado, antes mesmo que a tenha
identificado formalmente. Sou por fim imediatamente alertado quanto a uma modificação brusca
ou inusitada desse fundo sonoro do qual não tinha ciência: sabe-se do caso de pessoas que moram
perto de uma estação ferroviária e despertam quando o trem não passa no horário.
Mas é verdade ser sempre indiretamente, por reflexão ou memória, que posso tomar
conhecimento do fundo sonoro. Escuto (j’entends) soar o relógio de pêndulo. Sei que já soou.
Apressado, reconstituo mentalmente as duas primeiras batidas, que havia ouvido, e situo a que
escutei (j’ai entendu) como a terceira, ainda antes que soe a quarta. Não houvesse tentado saber a
hora, eu ignoraria efetivamente que as duas primeiras haviam chegado à minha consciência. Falam
comigo, penso em outra coisa. Meu interlocutor, ofendido, se cala. Escuto (j’entends) esse silêncio
de mau agouro. Consigo extrair do fundo sonoro, antes de lá perder-se para sempre, a última
metade da frase que ele pronunciara, e com um pouco de sorte consigo dar-lhe a réplica e
persuadi-lo de que a distração era apenas aparente.
ESCUTAR
Suponhamos agora que eu escute esse interlocutor. É dizer que ao mesmo tempo não escuto o
som de sua voz. Volto-me para ele submisso a sua intenção de comunicar-me algo, pronto para
ouvir (entendre), do que ele oferece a minha audição, somente aquilo que tenha valor de indicação
semântica. Ele tem um sotaque do Midi que pode ter-me divertido quando o conheci, que noto
ainda quando o reencontro depois de algum tempo, mas negligencio agora. (Todavia, quando
lembre essa conversa, não intelectualmente, para recapitular os pontos trocados ou extrair-lhes
conclusões, mas de modo espontâneo, ao retornar depois ao local onde ocorreu, reencontrarei
não apenas as ideias trocadas, mas também aquele sotaque de certo Midi, aquele fraseado
particular, aquela voz que reconheço sem hesitação entre outras tantas, a um conjunto de
caracteres que não havia cessado pois de ouvir, embora possa ser completamente incapaz de
analisá-lo).
Escutar, acabamos de ver, não é necessariamente interessar-se por um som. Não é
mesmo senão excepcionalmente interessar-se por ele, mas, por seu intermédio, visar outra coisa.
No limite, chega-se ao ponto de esquecer essa passagem pela audição. Escutar alguém
torna-se então praticamente sinônimo de obedecer (“Escuta teu pai!”) ou de dar crédito (assim,
Pacuvius recomenda não escutar os astrólogos, mesmo que não possamos dispensar-nos de ouvilos). Ao escutar o que me dizem, tendo, através das palavras, mas também ao largo de uma
formulação talvez imperfeita, às ideias que me esforço para compreender.
Escuto um carro. Eu o situo, avalio sua distância, eventualmente reconheço-lhe a marca.
Que sei do ruído que me forneceu esse conjunto de informações? A descrição que dele faria, se
solicitado, seria tanto mais pobre quanto mais segura e rapidamente tenha-me informado.
Ao contrário, é precisamente ao ruído do carro que presto ouvido se esse carro é o meu
e me parece que o motor “faz um ruído esquisito”. Mas minha escuta permanece utilitária, pois
procuro inferir informações quanto ao funcionamento do motor: incerto das causas, forçoso é
passar primeiro por uma análise dos efeitos.
Posso, finalmente, escutar, como me havia proposto de início, com o objetivo único de
ouvir melhor (mieux entendre). Essa análise, que até há pouco se impunha como etapa, torna-se alvo
em si mesma. Voltado para o evento, eu aderia a minha percepção, eu a utilizava sem o saber.
Agora tomei distância, cesso de utilizá-la, estou desinteressado. Ela pode finalmente aparecer, tornarse objeto. Escutar assim ainda é visar, através do som, instantâneo ele mesmo, outra coisa que não o
som: uma espécie de “natureza sonora” que se dá na íntegra de minha percepção.
ENTENDRE
Podemos agora definir entendre em relação aos dois verbos precedentes.
a) Ouïr-entendre
Começo por observar ser-me praticamente impossível não fazer seleção naquilo que ouço. O
fundo sonoro não vem primeiro: ele só existe como tal num conjunto organizado onde
efetivamente desempenha esse papel. Enquanto esteja ocupado com o que olho, penso ou faço,
vivo realmente numa ambiência indiferenciada, sem perceber mais que uma qualidade global. Mas
se permaneço imóvel, de olhos fechados, a mente vazia, é bem provável que não mantenha uma
escuta imparcial por mais de um instante. Situo os ruídos, separo-os em próximos ou distantes,
externos ou internos, e fatalmente começo a privilegiar uns em detrimento de outros. O tiquetaque do relógio de pêndulo impõe-se, me obceca, apaga todo o resto. Involuntariamente
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imprimo-lhe um ritmo: tempo fraco, tempo forte. Incapaz de destruí-lo, tento ao menos substituílo. Chego a me perguntar como pude dormir um dia no mesmo quarto que esse relógio irritante.
Mas basta um carro frear bruscamente lá fora para que eu esqueça. Pelo que sei agora, meu quarto
bem poderia ser uma ilha de silêncio açoitada por rumores externos. Mas escuto (j’entends) baterem
à porta; e o conjunto dessas organizações cambiantes mergulha de vez no fundo sonoro enquanto
descerro os olhos e me levanto para abri-la.
Graças a tais mudanças, pude ao menos inventariar, por fragmentos e por surpresa, o
pano de fundo sobre o qual se desenrolavam, e ainda dar-me conta de ser responsável por essas
variações intermináveis. Quando minha intenção seja mais firme, a organização correspondente
será tanto mais forte, e é aí que, paradoxalmente, terei a impressão de que se imponha do exterior.
Assim, ao participar de uma conversa familiar entre várias pessoas, passarei de um tema e de um
interlocutor a outro sem imaginar por um instante sequer a extravagante confusão de vozes,
ruídos e risos a partir da qual realizo uma composição única, diferente daquela que cada um de
meus companheiros realiza por conta própria. Para revelá-la, será preciso um registro
frequentemente indecifrável, já que o gravador não escolhe nada.
b) Écouter-entendre
Que acontecerá caso eu, pelo contrário, escute para ouvir (entendre), seja porque ignoro a
proveniência do objeto sonoro, o que me obriga a passar por sua descrição, seja porque a quero
ignorar e interessar-me exclusivamente por ele? Seria um erro acreditar que ele vá revelar-se a
mim com todas as suas qualidades porque o extraí do plano de fundo ao qual o relegara:
continuarei a praticar seleções sucessivas, a considerar este ou aquele aspecto, um após outro.
Assim, quando olho uma casa, eu a situo na paisagem. Mas se continuar a interessar-me
por ela, examinarei ora a cor da pedra, sua matéria, ora a arquitetura, ora o detalhe de uma
escultura sobre a porta; logo retornarei à paisagem em função da casa para constatar que esta goza
de “uma bela vista”, e a verei de novo em seu conjunto, como o fizera de início, mas minha
percepção estará enriquecida de minhas investigações precedentes. Ademais, está quase fora de
minhas possibilidades enxergá-la com os mesmos olhos com que enxergaria um rochedo ou uma
nuvem. Trata-se de uma casa, de uma obra humana concebida para abrigar humanos. É em
função desse sentido que a vejo e aprecio. E minha investigação, bem como minha análise,
variarão também a depender de serem meus olhos os de um futuro proprietário, os de um
arqueólogo ou os de um esquimó especialista em iglus.
Encontraremos no próximo capítulo um tratamento detalhado do processo de escuta
qualificada, cuja diversidade decorre de uma lei fundamental da percepção, que é a de proceder por
“esboços sucessivos”, sem jamais esgotar o objeto; da multiplicidade de nossos conhecimentos e
de nossas experiências anteriores (em função dos quais o objeto imediatamente se apresenta com
diferentes sentidos ou significados); e da variedade de nossas intenções de escuta, daquilo ao qual
tendemos. Contento-me aqui com um exemplo característico tomado de um romance de Max
Frisch, Homo faber.49
“Todas as manhãs despertava-me um barulho estranho, mescla de fábrica e música, um
ruído inexplicável para mim, não muito alto, porém alucinante, como grilos. Devia ser um
mecanismo qualquer, mas não consegui identificá-lo e, mais tarde, quando nos encaminhávamos à
aldeia, para o desjejum, tudo já emudecera e não se via nada. [...]”
“Era domingo quando fizemos as malas [...], e verifiquei que o curioso barulho que me
acordara todas as manhãs era música, o tinido de uma antiquada marimba, marteladas sem
tonalidades, um horror de música, como que epilética. Tratava-se de qualquer festa ligada à lua
cheia. Todas as manhãs, antes de trabalharem, tinham ensaiado para acompanhar as danças, cinco
índios que golpeavam freneticamente o seu instrumento, uma espécie de xilofone de madeira do
comprimento de uma mesa.”
As duas descrições evidentemente se correspondem. Alucinação, monotonia 50 e
marteladas; ruído e ausência de tonalidades; rumor metálico51 e golpes de martelo num xilofone.
49
Max Rudolf Frisch (1911-1991), escritor e arquiteto suíço. Homo faber foi publicado em Frankfurt em
1957, em Paris em 1961, e no Rio de Janeiro em 1986. Cito da tradução brasileira de Herbert Caro
(FRISCH, 1986, p. 52 e 59).
50 O termo “monótono” aparece na versão francesa do primeiro parágrafo citado (SCHAEFFER, 1966,
p. 109), mas não na brasileira (FRISCH, 1986, p. 52).
51 A expressão “rumor metálico” aparece na versão francesa do primeiro parágrafo citado
(SCHAEFFER, 1966, p. 109), mas não na brasileira (FRISCH, 1986, p. 52).
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De sua cama, todas as manhãs, depois lá fora, no momento de partir, Walter Faber ouviu
praticamente a mesma coisa.
Não diremos o mesmo do que ele escutou (a entendu). No primeiro caso ele escutava
(entendait) um ruído cuja causa procurava explicar; no segundo, informado das causas, ele aprecia uma
música. O que era apenas “estranho” torna-se de repente “um horror”. A “alucinação”, que no
primeiro caso aparecia como simples analogia descritiva (nosso herói não imaginando imputá-la
diretamente aos grilos), é percebida com maior intensidade ao revelar-se resultado de frenética
atividade instrumental, e torna-se então “como que epilética”. Após conseguir qualificar a escuta,
Walter Faber começou a escutar (entendre) e depois a compreender em função de uma significação
precisa.
COMPREENDER
De fato, informado não diretamente pelo objeto sonoro, que permanecia incerto, “mescla de
fábrica e música”, mas pelo recurso da vista, ele compreendeu tratar-se de música.
Do mesmo modo que o herói de Max Frisch, posso compreender a causa exata do que
ouvi (j’ai entendu) ao colocá-lo em relação com outras percepções, ou através de um conjunto mais
ou menos complexo de deduções. Ou ainda, posso compreender, por meio de minha escuta, algo
que não tenha senão um vínculo indireto com o que ouço (j’entends): constato simultaneamente
que os pássaros se calam, que o céu está baixo, que o calor é sufocante, e compreendo que haverá
tempestade.
Compreendo ao termo de um trabalho, de uma atividade consciente do espírito, que já
não se contenta em acolher um significado, mas abstrai, compara, deduz, relaciona informações
de fonte e natureza diversas; trata-se de precisar um significado inicial ou de extrair um significado
suplementar.
Para a dona de casa, este ruído que lhe chega da sala ao lado e a faz sobressaltar-se está
prenhe de sentido: é um ruído de queda ou de quebra. Ela o ouve (l’entend) como tal. Dá-se conta,
ademais, de que o filho não está perto, lembra-se de que o vaso de porcelana chinesa foi
imprudentemente colocado numa mesa a seu alcance, e compreende facilmente que a criança
acaba de quebrá-lo.
Escuto e entendo o que me dizem, mas, ao identificar contradições no relato e comparálo a certos fatos que, aliás, conheço, compreendo também que meu interlocutor mente. De súbito,
minha desconfiança atiçada passa a orientar diferentemente minha escuta, e compreendo também
hesitações, certas mudanças no timbre da voz, e até “olhares que creríeis mudos”.52
Como o último exemplo permite antever, às vezes se emprega indistintamente entender
e compreender na acepção em que são sinônimos: captar o sentido. Tal ocorre quando afirmamos
indiferentemente que “te compreendo” ou “te entendo”, ou quando nos queixamos de não
compreender (ou entender) a música moderna. De fato, em ambos os casos, o ato de
compreensão coincide exatamente com a atividade da escuta: todo o trabalho de dedução,
comparação e abstração é integrado e ultrapassado bem além do conteúdo imediato, do “dado a
entender”. (SCHAEFFER, 1966, p. 104-111).
A quarta etapa efetua a terceira síntese lexical:
1. Escuto o que me interessa.
2. Ouço, se não for surdo, o que se passa de sonoro a meu redor, quaisquer que sejam,
aliás, minhas atividades e meus interesses.
3. Entendo em função do que me interessa, do que já sei e do que busco compreender.
4. Ao termo do entender, compreendo o que buscava compreender, aquilo em virtude
do qual escutava. (SCHAEFFER, 1966, p. 113).
A quinta etapa desenvolve essa síntese e generaliza a fenomenologia:
1. O silêncio, supostamente universal, é perturbado por um evento sonoro. Pode ser evento natural
(pedra que rola, cata-vento que guincha) ou emissão voluntária de som por instrumentista. Seja
como for, o que escutamos espontaneamente neste nível é a anedota energética traduzida pelo
som.
52
Conforme a fala de Nero para Júnia na terceira cena do segundo ato do Britannicus, de Jean Racine
(1670, p. 27): j’entendrai des regards que vous croirez muets (ouvirei olhares que crereis mudos).
14
2. Correspondente ao evento objetivo, encontramos no ouvinte o evento subjetivo
representado pela percepção bruta do som, ligada em parte a sua natureza física, em parte a leis gerais
da percepção, que estamos autorizados a supor, grosso modo, serem as mesmas para todos os
seres humanos (como o fazem as descrições dos gestaltistas).
3. Relacionada a experiências passadas, a interesses dominantes, atuais, essa percepção dá
lugar a uma seleção e a uma apreciação. Diremos que tenha sido qualificada.
4. As percepções qualificadas orientam-se para uma forma particular de conhecimento, e
o sujeito chega finalmente a significados, abstratos em relação ao próprio concreto sonoro. De modo
geral, o ouvinte compreende neste nível certa linguagem dos sons. (SCHAEFFER, 1966, p. 114).
A sexta etapa desenvolve essa generalização:
1. Escuto o evento, procuro identificar a fonte sonora: “O que é? O que aconteceu?”. Não me
detenho então no que percebo, dele me sirvo inadvertidamente. Trato o som como um índice que
me assinala algo. É certamente o caso mais comum porque corresponde a nossa atitude mais
espontânea, ao papel mais primitivo da percepção: prevenir um perigo, guiar uma ação. Essa
identificação do evento sonoro com seu contexto causal geralmente é instantânea. Mas é possível
também que, se os índices forem incertos, ela só se produza após diversas comparações e
deduções. A curiosidade científica, embora coloque em jogo conhecimentos altamente
elaborados, persegue um objetivo fundamentalmente semelhante ao da percepção espontânea do
evento.
2. Ao contrário, posso voltar-me para essa percepção, que há pouco utilizava, e é
diretamente a esse som que endereçarei a pergunta: “O que é?”. Quer dizer que o trato como
objeto. É o que denominamos objeto sonoro bruto. (Esse tema será amplamente desenvolvido no
livro IV.) Ele é aquilo que permanece idêntico através tanto do “fluxo de impressões” diversas e
sucessivas que tenho dele quanto de minhas diferentes intenções a seu respeito. A segunda
característica essencial de um objeto percebido é não se apresentar senão por esboços: no objeto
sonoro que escuto há sempre mais para ouvir (entendre), ele é uma fonte inexaurível de
potencialidades. Assim, a cada repetição de um som gravado, escuto o mesmo objeto: bem que
jamais o ouça (entende) igualmente, que ele passe de desconhecido a familiar, que perceba
sucessivamente diversos de seus aspectos, que ele não seja pois jamais idêntico, sempre o
identifico como este objeto preciso.
3. É igualmente o mesmo objeto sonoro o que escutam diversos ouvintes reunidos em
torno de um gravador magnético. Mas eles não ouvem (entendent) todos a mesma coisa, não
selecionam e não apreciam igualmente, e na medida em que sua escuta toma assim partido por
este ou aquele aspecto particular do som, ela dá lugar a esta ou àquela qualificação do objeto. Essas
qualificações variam, como o ouvir (entendre), em função de cada experiência anterior e de cada
curiosidade. Todavia, o objeto sonoro único, que torna possível essa multiplicidade de aspectos
qualificados do objeto, subsiste na forma, digamos, de um halo de percepções, às quais as
qualificações explícitas fazem referência implícita. Desse modo, quando concentro minha
percepção qualificada no detalhe de uma casa – janela, escultura acima da porta –, nem por isso a
casa está menos presente, e vejo essa janela ou essa escultura como partes dela.
4. Posso, por fim, tratar o som como um signo que me introduz em certo domínio de
valores, e posso me interessar por seu sentido. O exemplo mais característico é certamente o da
fala. Trata-se aqui de uma escuta semântica, centrada em signos semânticos. Entre as diversas
escutas “significantes” possíveis, naturalmente nos interessamos em particular pela escuta musical,
que se refere a valores musicais e dá acesso a um sentido musical. Note-se que os valores dos
quais falamos são, no limite, destacáveis de seu contexto sonoro, reduzido assim ao papel de
suporte. Geralmente concordamos que a comunicação opere uma junção de espíritos. Nessa
perspectiva, é natural que, nas duas extremidades do circuito, e notoriamente nesta, a da recepção,
se abandone a contingência do veículo sonoro no interesse de seu conteúdo significante. Os
valores musicais tradicionais não se excetuam na medida em que os signos da música precedem
sua realização sonora. É esta que nos esforçamos por melhorar em vista daqueles, e não o inverso.
Eis por que pudemos falar, neste ponto 4, de significações abstratas; neste nível, o abstrato se
opõe ao concreto material do nível 1. (SCHAEFFER, 1966, p. 114-117).
A sétima etapa apresenta a síntese final:
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4. COMPREENDER
— para mim: signos
— diante de mim: valores (sentidolinguagem)
Emergência de um conteúdo do
som e referência a noções
extrassonoras, confrontação com
estas.
3. ENTENDRE
— para mim: percepções
qualificadas
— diante de mim: objeto
sonoro qualificado
Seleção de certos aspectos
particulares do som.
3 e 4: abstrato
1. ESCUTAR
— para mim: índices
— diante de mim: eventos
exteriores (agente-instrumento)
1 e 4:
objetivo
Emissão do som.
2. OUVIR
— para mim: percepções
brutas, esboços do objeto
— diante de mim: objeto
sonoro bruto
2 e 3:
subjetivo
Recepção do som.
1 e 2: concreto
Esse “caminho de pensamento” (HEIDEGGER, 1997, p. 41; 2001, p. 11)
desenha uma espiral de sentido duplo: centrífugo, em desenvolvimentos
fenomenológicos que partem de exemplos para generalizações; centrípeto, em sínteses
lexicais flexionadas pela fenomenologia. Temos, assim, em sístoles e diástoles sucessivas:
(1) síntese lexical; (2) especialização da primeira síntese; (3) desenvolvimento
fenomenológico ilustrado; (4) terceira síntese lexical; (5) desenvolvimento da terceira
síntese por generalização da fenomenologia; (6) terceiro desenvolvimento; (7) síntese
final. Mais tarde, Schaeffer apresentará a versão existencial desse caminho de escuta:
Uma criança comunga. Ela se recolhe, faz silêncio, espera alguma coisa surgir de si ou de seu
Visitante, coisa nem comum nem excessiva que aumente o sentimento recíproco da presença de
mim para Ele e d’Ele para mim. Despojada de palavras, a adoração, antes de ser intenção,
geralmente é atenção, mobilização da consciência.
Um homem se concentra (como emissários de outras civilizações ensinaram). Sem
visitante externo, sem sacramento, sem signo sensível, é ainda um chamado por forças latentes, e
também pela presença – daí a parada possível (esperemos), mas improvável, da agitação
costumeira, do ruído de fundo da mente e suas infindáveis associações. Não falemos das receitas
incertas, dos comentários ociosos, dos mal-entendidos prováveis.
Por fim, um ouvinte escuta um som (e não um discurso sonoro de dormir em pé nem
uma música para sonhar, dançar, chorar ou sorrir). Colocamos à disposição de sua escuta certo
fragmento de som que se repete, ao qual ele se dedica como se fixasse uma luz, uma maçaneta ou
a linha do horizonte. Ele não recebe nem Deus nem o fluxo de seu corpo, mas um sinal do
mundo exterior cuja imagem sonora se forma em sua consciência. Para considerá-lo, é necessário
também prestar atenção e fazer silêncio, e paradoxalmente, para assimilá-lo, é necessário ainda
despojar-se de tudo o que até então se sabia dele, descartar os sentidos, os índices e qualquer
sugestão relativa ao sinal. Se o reescutarmos agora ou em algumas horas, em alguns dias, mais
aprenderemos, não apenas sobre o objeto que consideramos, mas também sobre as faculdades do
sujeito que somos, nos observando observar. Exatamente em que consiste o ensinamento? Faço
pesquisa musical? Decifro-me a mim mesmo? Vou contar prosa, dizer-me psicólogo, musicólogo,
semiólogo? Diante da experiência íntima, do verdadeiro proveito, míseras especialidades.
(BRUNET, 1969, p. 211-212).
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Esses parágrafos sumarizam três grandes períodos da vida de Schaeffer: o dos
movimentos de juventude católica, que culminam na experiência de Jeune France no
início dos anos 1940; o da “cristandade esotérica” de Gurdjieff, correspondente à
primavera da música concreta em 1948; e o da pesquisa musical, associado ao Groupe de
Recherches Musicales (GRM) e à criação do Service de la Recherche na passagem dos
anos 1950 aos anos 1960. Reencontramos aqui Francis Ponge tal qual Ítalo Calvino o
entendia em 1979:
Tomar um objeto dos mais humildes, um gesto dos mais quotidianos, e procurar considerá-lo
fora de todo o hábito perceptivo, descrevê-lo fora de todo o mecanismo verbal gasto pelo uso.
Eis que uma coisa indiferente e quase amorfa como uma porta revela uma riqueza inesperada;
ficamos subitamente felizes de encontrar-nos num mundo cheio de portas para abrir e fechar. E
isso não por qualquer razão estranha ao fato em si (como o poderia ser uma razão simbólica, ou
ideológica ou estetizante), mas apenas porque reestabelecemos uma relação com as coisas como
coisas, com a diversidade entre uma coisa e outra, e com a diversidade entra cada coisa e nós.
Inadvertidamente descobrimos que existir poderia ser uma experiência muito mais intensa e
interessante e verdadeira que o corre-corre distraído no qual nossa mente calejou-se. (CALVINO,
1995, p. 253).
Seja na versão lexicográfico-fenomenológica ou na existencial, o objeto sonoro
assume aspecto distinto do restritivo-normativo sob o qual costuma apresentar-se nos
trabalhos sobre música eletroacústica, vulgarmente definido como “o som em si”, sem
referência ao evento que o origina nem ao seu significado. Todavia, o próprio Schaeffer
desautoriza essa simplificação:
Enquanto reste uma incerteza na percepção quanto ao objeto final da escuta, em qualquer setor
que se encontre, a investigação consistirá em colocar em evidência e a referir uns aos outros os
objetos “parciais” do conjunto da atividade auditiva; assim, uma série de escutas, ao aprofundar o
fenômeno, precisará os resultados simultaneamente nas quatro direções. (SCHAEFFER, 1966, p.
118).
Conclusão
Essa poética de escuta pode contribuir para dissipar a doxologia do funk carioca ao
promover uma limpeza da situação aural. Ela pode contrabalançar o número crescente de
estudos históricos, antropológicos, sociológicos, jurídicos, linguísticos e psicológicos
sobre o tema ao dirigir o foco da investigação para a forma e a matéria sonoras. E ela
permite que se coloquem problemas de história, antropologia, sociologia, direito,
linguística e psicologia em relação com características de sonoridade, como procurei
mostrar em outros trabalhos (CACERES; FERRARI; PALOMBINI, 2014. FACINA;
MOUTINHO; NOVAES; PALOMBINI, 2018. PALOMBINI, 2016, 2019).
“Meu papel essencial é o de comunicar uma forma de compreender, de sentir e
de agir que pode parecer, do exterior, terrivelmente pessoal; na verdade, eu mesmo sou
apenas um relé”, diz Schaeffer (apud BRUNET, 1969, p. 19). “Dizes que o alimento, o
lugar, o ar e a sociedade te transformam e condicionam? Ora, tanto mais o fazem tuas
opiniões, pois são elas que te determinam em tua escolha de alimento, lugar, ar e
sociedade”, escreve Nietzsche (2017). “A capacidade que um sistema político tenha para
tolerar e recuperar a reformulação de seus mitos fundadores constitui uma função crucial
de sua adaptação, e portanto, de sua sobrevivência”, afirma Pieter Lagrou (2013, p. 102).
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Referências
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