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Música do tempo presente e intenção de escuta

2019, Perspectivas para a pesquisa e o ensino em história da música na contemporaneidade, org. Mónica Vermes e Marcos Holler

Refaço, através da exposição diacrônica de excertos sobre a percepção aural escritos por Pierre Schaeffer entre 1938 e 1969, a trajetória que me leva da música eletroacústica ao estudo musical do funk carioca. Ela implica uma pedagogia baseada na reflexão sobre a escuta, que poderia tomar para si o antigo moto empirista: nihil est in intellectu quod non sit prius in sensu — na formulação de Tomás de Aquino. Confluem ao funk carioca problemas de nosso tempo: as culturas da diáspora africana nas Américas, a análise da música eletrônica dançante, a história das técnicas de produção musical, as garantias individuais, a segurança pública, a criminalização da pobreza, o racismo estrutural, a financeirização do espaço urbano. E “a massa [ainda] é a matriz onde se engendra hoje a atitude nova frente à obra de arte” (Benjamin 1936: 63). Como entendê-la?

Música do tempo presente e intenção de escuta Carlos Palombini * CNPq Revolucionário será quem possa revolucionar-se. (Ludwig Wittgenstein, 1944)1 Refaço, através da exposição diacrônica de excertos sobre a percepção aural escritos por Pierre Schaeffer entre 1938 e 1969, a trajetória que me leva da música eletroacústica ao estudo musical do funk carioca. Ela implica uma pedagogia baseada na reflexão sobre a escuta, que poderia tomar para si o antigo moto empirista: nihil est in intellectu quod non sit prius in sensu — na formulação de Tomás de Aquino. Confluem ao funk carioca problemas de nosso tempo: as culturas da diáspora africana nas Américas, a análise da música eletrônica dançante, a história das técnicas de produção musical, as garantias individuais, a segurança pública, a criminalização da pobreza, o racismo estrutural, a financeirização do espaço urbano. E “a massa [ainda] é a matriz onde se engendra hoje a atitude nova frente à obra de arte” (Benjamin 1936: 63). Como compreendê-la? Metodologia Embora os termos musicologia e história da música sejam frequentemente empregados como sinônimos, “musicologia” aqui remete a uma prática interdisciplinar cujo ponto de convergência é a música,2 tomada por qualquer coisa de sonoro que se entenda como tal. Um dos componentes dessa interdisciplina é a história — “do tempo presente” não apenas porque as origens da música em questão se possam localizar na Segunda Guerra Mundial3 ou porque sua referência de análise date do mesmo período, mas sobretudo porque procura desmascarar “a boa consciência das elites constituídas, em política como na Universidade” (Lagrou 2013: 101).4 O modelo de interdisciplinaridade utilizado é o agonístico/antagonístico descrito por Georgina Born (2010: 211): diante dos limites intelectuais, estéticos, éticos ou políticos das disciplinas estabelecidas ou do estatuto da pesquisa acadêmica em geral, colocamo-nos em relação de diálogo autoconsciente, de crítica ou de oposição. Essa musicologia relacional busca abrir “um novo espectro epistemológico e ler as cores que nossos preconceitos haviam previamente apagado” (Serres 1980: 23–24). Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”, mas apropriar-se de uma reminiscência tal qual relampeia no momento de um perigo, Walter Benjamin escreve em 1940 (Benjamin 1985: 224; 2010). Esse momento é o presente. Se antropologia, relatos orais e etnografia desempenham seus papeis nessa pesquisa, e se um de seus objetivos é estabelecer relações entre morfologia sonora e * Sou grato a Igor Reyner pela leitura e crítica deste ensaio. Exceto nos casos indicados nas referências bibliográficas, textos em língua estrangeira são dados em traduções do autor, mantidos os grifos originais. 2 Assim concebida, a musicologia não deixa de filiar-se, em outro espírito, à Musikwisschenschaft de Guido Adler (1885); ver Mugglestone e Adler (1981) para contexto histórico e tradução inglesa do artigo de Adler; ver Dudeque (2004) para uma tradução brasileira da tabela de Adler; ver Kerman (1985: 11–12) para etimologia e pragmática do termo musicology. 3 Mais precisamente, no rhythm and blues afro-norte-americano (Burnim e Maultsby 2006: 245–269). 4 Sobre história do tempo presente, ver Garcia (2003), Lagrou (2003, 2013), Maranhão Filho (2009), Readman (2011), e Droit e Reichherzer (2013); para um estudo exemplar, ver o livro de Rousso (1990). 1 organização social — pergunta análoga àquela formulada por Steven Feld em 19845 —, por que a não realizar sob o signo da etnomusicologia? Para responder essa pergunta abandono a primeira pessoa do plural. Entendo ser mais produtivo desenvolver colaborações com antropólogos comprometidos com pesquisas musicais6 enquanto mantenho-me sob a égide da disciplina definida nos termos do parágrafo anterior. Em outras palavras, enquanto mantenho a diferença: “Suprimimos os prazeres agonísticos de continuar diálogos intersubdisciplinares?” (Born 2010: 206). Ponto de partida Minha pesquisa originou-se, na segunda metade dos anos 1980, de uma pergunta de compositor: de que modo as possibilidades de controle da forma e da matéria7 de uma nota musical oferecidas pelo sintetizador polifônico programável Roland Juno-60 se traduziriam em procedimentos de organização de sons? Na primeira metade dos anos 1980, Willy Corrêa de Oliveira analisava Estudos de Chopin segundo critérios eletroacústicos8 no departamento de música da USP. Todavia minha interrogação não encontrava eco no meio acadêmico. Em palestra no Espaço N.O9 em 1979, o compositor Bruno Kiefer (1923–1987),10 professor do departamento de música da UFRGS, dizia da música eletroacústica: “não se usa mais, pois desumaniza a música”.11 Entretanto o início dos anos 1980 via a popularização de instrumentos eletrônicos. Diferentemente do aparato dos estúdios de estações de rádio (RTF, WDR, RAI), universidades (Columbia-Princeton) e instituições como o Bell Labs, o GRM e o Ircam,12 acessível a grupos restritos de compositores,13 e diferentemente do Synclavier (1977), do Fairlight CMI (1979) ou da Linn LM-1 (1980), disponíveis para artistas com amplos recursos de produção, em geral vinculados à grande indústria fonográfica, a Roland TR-808 (1980) e o Roland TB-303 (1981) eram adquiridos, muitas vezes de segunda mão, por jovens, em sua maioria sem treino formal em música, para criarem os primeiros gêneros de música eletrônica dançante: a house e a acid house em Chicago; o electrofunk e o electro em Nova York; o techno em Detroit (Brewster e Broughton 2000). Essas músicas e sua descendência chegariam ao Rio de Janeiro na forma de discos de vinil para alimentar um circuito de bailes proletários que se tornaria conhecido por mundo funk (Vianna 1988). 5 “Existem padrões de co-evolução, ecológicos e estéticos, a ligar o ambiente a padrões sonoros, materiais e situações?” (Feld 1984: 38). Para uma tradução brasileira, ver Feld (2015), que parte de uma discussão iniciada por Lomax (1962). 6 Nomeadamente, Adriana Facina, professora do programa de pós-graduação em antropologia social do Museu Nacional da UFRJ, e Dennis Novaes, doutorando no mesmo programa; ver Facina e Palombini (2017) e Novaes e Palombini (2017). 7 “Imaginemos ser possível ‘parar’ um som para ouvir o que ele é em dado instante de nossa escuta: o que captamos é o que denominaremos sua matéria, complexa, situada na tessitura e nas relações matizadas da contextura sonora. Escutemos agora a história do som: tomamos consciência do desenvolvimento, na duração, do que fora fixado por um instante; de um trajeto que dá forma a essa matéria” (Schaeffer 1966: 400). Ver também Chion (1983: 116). 8 Procedimento aplicado à Sonata Opus 57 de Beethoven por André Boucourechliev em 1963 e por Oliveira em 1979. 9 Sobre o Centro Alternativo de Cultura Espaço N.O (1979–1999), ver Carvalho (2004). 10 Sobre Bruno Kiefer, ver Mariz (2000: 495). 11 Sobre o problema da academização das vanguardas, ver Adorno (1988) e McClary (1989). 12 Para uma etnografia do Ircam, ver Born (1995). 13 O Composers’ Desktop Project teria início em 1986. 2 Artes-relé Em meados dos anos 1970 os manuais de Robin Maconie (1976: 98–99) e Michael Nyman (1974: 40–41) apresentavam Pierre Schaeffer como o perdedor, técnica e intelectualmente subdotado, da contenda entre musique concrète e elektronische Musik. Em 1986 Macmillan Press lançou, organizada por Simon Emmerson, a primeira coletânea em língua inglesa de artigos sobre estética da música eletroacústica. O segundo, o terceiro e o quarto capítulos consistiam em trabalhos de compositores nascidos ou sediados na Inglaterra que se remetiam a Traité des objets musicaux em função de suas práticas composicionais, mas não levavam em conta a diacronia do pensamento de Schaeffer, exposta por Sophie Brunet em 1977. Ele se muda de Estrasburgo para Paris em 1936 a fim de trabalhar na rádio estatal, notoriamente defasada em relação a suas congêneres germânica e britânica (Pierret 1969: 133). Desde as primeiras décadas da radiodifusão na França (Huc e Robin 1938; Descaves 1962; Jeanneney 2001), os temas da arte radiofônica e da fidelidade das transmissões mobilizavam debates nas crônicas, artigos e livros de Pierre Cusy e Gabriel Germinet (1926), Paul Deharme (1928, 1930), André Cœuroy (1930), Alex Virot (1930), Éric Sarnette (1934), Carlos Larronde (1936) e Paul Dermée (1938). Em abril de 1938 o “ex-aluno da Escola Politécnica” e “Engenheiro de Correios, Telégrafos e Telefones” (Schaeffer 1938B: 322) estreia na seção “Crônica do rádio” da Revue musicale. E se pergunta: “Quais são os recursos reais da radiodifusão? Ela propicia o nascimento de uma arte original? Deve, ao contrário, ser capaz apenas de realizar à perfeição a tarefa de mensageira fiel das obras clássicas?” (Schaeffer 1938B: 317). Para o autor: A radiodifusão se acha, por assim dizer, “entre dois fogos”. Ela deve ser admiravelmente fiel à música que se incumbe de transmitir, mas, ao mesmo tempo, tanto mais original no exercício de seus próprios meios, tal qual o cinema, porquanto está a ponto de estragar tudo no embaraço extremo em que a colocam essas exigências contraditórias. Na realidade, a única saída é ver as coisas com clareza, lidar frontalmente com a contradição e tomar as duas vias divergentes: uma conduz à eclosão de uma arte propriamente radiofônica, que seria para o som aquilo que o cinema é para a imagem; a outra, embora mais humilde, teria a nobre missão de transmitir da melhor forma possível a música tradicional aos ouvintes do mundo inteiro, e seu único alvo não seria uma perfeição inatingível, mas a mais alta fidelidade realizável. (Schaeffer 1938B: 321) A segunda crônica, “Vérités premières”, aparece em junho. O título remete ao ato original de sua investigação: constatar as diferenças perceptivas entre as audições do som direto e do som transmitido por alto-falantes. Essas diferenças são ilustradas por exemplos extraídos da transmissão sinfônica. Uma orquestra ocupa um espaço significativo no palco: os violinos não se mesclam com os trompetes e o contrabaixo não ocupa o mesmo lugar que a corneta de pistões. Já o alto-falante, caixa inclusa, toma o espaço de um executante, no máximo: no fundo de seu cone exíguo, o contrabaixo e a corneta de pistões coincidem. Ademais, qualquer que seja o número de microfones utilizados, há apenas um aparelho receptor, o que equivale a escutar com um único ouvido. Por fim, quando a recebermos em casa, nem os vizinhos nem os aparelhos toleram o volume sonoro e a gama de matizes da orquestra real — do piano mais sutil ao forte mais extremo — e essa dinâmica é comprimida. Ensaio sobre o rádio e o cinema: estética e técnica das artes-relé, um manuscrito começado em 1941 e abandonado em 1942, tornou-se conhecido através de excertos publicados por Marc Pierret (1969: 87–96) e Sophie Brunet (1977: 19–23), mas só foi dado à luz em 2010. Uma sucessão de infortúnios faz do período em que trabalhou nesse texto o mais nefasto da existência do autor: não bastasse a derrota militar na Batalha da França e o armistício de 22 de junho de 1940, em 19 de junho de 1941 Schaeffer perde a esposa em circunstâncias dramáticas, e o endurecimento do regime de Vichy, anunciado pelo 3 discurso “Sinto soprar um vento mau” do Marechal Pétain, em 12 de agosto de 1941, leva à liquidação, em março de 1942, da associação Jeune France, que ele fundara em 22 de novembro de 1940 (Chabrol 1990; Nord 2007), e da qual foi afastado em dezembro de 1941. Schaeffer refugia-se em Marselha,14 onde lê,15 faz anotações,16 e discursa diante de uma secretária que lhe datilografa a elocução. O termo arte-relé contrapõe-se a arte direta e pode ter sido tomado de uma conferência escrita por Paul Valéry17 em fevereiro de 1937: A arte literária, derivada da linguagem e da qual a linguagem por sua vez se ressente, é portanto, entre as artes, aquela em que a convenção desempenha o papel mais importante; em que a memória intervém a cada instante, através de cada palavra; que age sobretudo por relé, e não pela sensação direta, e coloca em jogo simultaneamente, e mesmo concorrentemente, as faculdades intelectuais abstratas e as propriedades emotivas e sensitivas. Ela é, de todas as artes, a que envolve e utiliza maior número de partes independentes (som, sentido, formas sintáticas, conceitos, imagens...). (Valéry 1938: 13–14) Essa ideia embasa o quadro abaixo, extraído do Ensaio (73),18 no qual Schaeffer sumariza as possibilidades e deficiências do cinema e do rádio em comparação com a linguagem: Domínio concreto19 Domínio abstrato Linguagem Expressão20 difícil Sugestão inadequada Expressão adequada Sugestão fácil Cinema e rádio Expressão adequada Sugestão ilimitada Expressão impossível Sugestão lacunar Por outro lado, em crônica sobre o teatro radiofônico publicada no vespertino L’Intransigeant em primeiro de abril de 1930 e citada no Ensaio (48), Alex Virot utiliza o termo relai21 para se referir a um aparelho de mixagem. O que é um relé? Segundo o Dictionnaire historique de la langue française de Alain Rey (2004: 3158), o verbo relayer se aplica a “um satélite de telecomunicações, a uma estação de rádio ou de televisão que retransmite uma emissão do emissor principal a outro emissor”. Rey data essa acepção de 1933. De acordo com o Oxford English Dictionary (OUP 2017), o verbo to relay foi usado desde a segunda metade do século XIX com o sentido de “passar ou retransmitir (sinais telefônicos ou de rádio recebidos de outro local)”. Mas por que Schaeffer escolheria associar o rádio e o cinema a um termo que sublinha a concepção transmissiva que ele irá contestar? 14 Sobre a vida cultural em Marselha durante a ocupação, ver Guiraud (1990). Muitos dos conceitos desenvolvidos em Traité des objets musicaux explicitam suas fontes no Ensaio: as noções de tema e versão (Bonald 1802: 139–140); a de concreto (Poucel 1940: iii); a de fenomenologia (Claudel 1904: 8; Souriau 1929: 163–164). 16 Para uma amostra dessas notas, ver Schaeffer (2010 : 173–176). A 17 A primeira seção do Ensaio cita duas conferências de Valéry: “Le bilan de l’intelligence” (1936: 267– 305) e “La Politique de l’esprit” (1936: 202–242). 18 Os números de página correspondem à tradução brasileira. 19 Sobre a noção de concreto, ver Schaeffer (2010 : 69, n. 17). A 20 O contraste entre “expressão” e “sugestão” deriva das noções de linguagem-signo e linguagem-sugestão de Paulhan (1929: 17–18): “em determinada sociedade, determinada época, há palavras e frases cujo destino preferencial é exprimir com precisão um fato, transmitir com exatidão uma ideia, uma impressão ou uma imagem, e cuja função deve geralmente parar aí. Outras palavras, outros arranjos de palavras, ao contrário, vão despertar longas séries de impressões, de ideias, de sentimentos e de atos”. 21 A Academia Francesa recomendava a grafia antiga, relai, ainda em 1976 (Rey 2004: 3158). 15 4 Formada no final do século XIII pela combinação do prefixo re com o verbo picardo, valão e loreno laier (deixar, abandonar),22 a palavra relaier designou originalmente o ato de “substituir os cães fatigados por cães descansados” na caça equestre. A partir do século XVI ela foi empregada intransitivamente para “trocar os cães durante a caçada” e, por analogia, “trocar de cavalos”. No século XVII a construção transitiva assumiu o sentido estendido de “substituir (alguém) num trabalho, numa ocupação”, e passou a ser usada também na forma pronominal. Do início do século XV ao início do século XIX na Grã-Bretanha, o substantivo relay foi utilizado para “um conjunto de cães de caça (e ocasionalmente cavalos) descansados, a postos para assumirem seus papéis na caça a um cervo, em substituição àqueles já cansados”. Do início do século XVII ao último quartel do século XIX, um relé podia ser “um conjunto de cavalos descansados obtido ou mantido de prontidão em vários estágios de uma rota para acelerar a viajem”. No final do século XVII o termo começou a associar-se a “um conjunto de pessoas escolhidas para se revezarem com outras na execução de certas tarefas”. A partir de meados do século XVIII um relé podia ser “uma série de veículos designados para cobrir uma rota prescrita (geralmente em sequência)”. Assim, por mais de meio milhar de anos, o substantivo relé foi sinônimo de atividades executadas de modo mais efetivo através da substituição de uma força-tarefa — animal, humana, motiva ou automotiva — exausta por outra nova. No segundo quartel do século XIX, concomitante com a domesticação da eletricidade, ocorre um deslocamento semântico. O novo relé é “um instrumento usado na telegrafia de longa distância a fim de fornecer a uma corrente elétrica que é muito fraca para influenciar os instrumentos de gravação ou transmitir uma mensagem à distância necessária a possibilidade de que o faça indiretamente por meio de uma bateria local colocada em contato com essa corrente” (OUP 2017). Ao invés da substituição de unidades exaustas por outras novas, o ingresso de energia passa a acarretar o reforço de um agente (elétrico) por meio de um suprimento extrínseco. No uso atual, um relé se torna “qualquer dispositivo elétrico [...] por meio do qual uma corrente ou sinal em um circuito pode abrir ou fechar outro circuito”. No Oxford, o exemplo mais antigo desta acepção data de 1907. Embora esse relé não passe de um botão de ligar e desligar, uma relação com os sentidos anteriores subsiste: o circuito controlador pode afetar um circuito de saída de potência maior que a própria, e isso o habilita a ser considerado uma espécie de amplificador elétrico. Duas propriedades presidem a todos esses sentidos: potenciação e ruptura. Schaeffer define a relação entre artes diretas e artes-relé numa alegoria:23 Vemos assim, nessa corrida em que competem a arte direta, em plena forma, e a arte-relé, em pleno ensaio, várias etapas, que geralmente definem três fases: Primeira fase: o instrumento deforma a Arte. Segunda fase: o instrumento transmite a Arte. Terceira fase: o instrumento informa a Arte. Na primeira fase perdoa-se tudo ao instrumento, porque lhe admiramos a novidade sem levá-lo a sério. Não se tem medo de sua concorrência. Aliás, é tão evidente ser-lhe impossível lutar que lhe admiramos sobretudo a boa vontade. Na segunda fase o instrumento aperfeiçoa-se e, longe de admirar tais aperfeiçoamentos, reclamamos de não ocorrerem com suficiente rapidez, porque é precisamente quando a imagem se assemelha ao modelo que defeitos e deformações aparecem. A arte direta espera ser escrupulosamente servida por esse relé, que poderá fornecerlhe difusão inimaginável, facilidades inéditas. Pede-se agora ao instrumento não só mais do que ele pode dar, mas também aquilo que, por sua própria natureza, ele não pode dar. Vem por fim uma fase clássica, que o cinema está por atingir, mas da qual o rádio ainda dista bastante. Essa fase torna-se possível pelo conhecimento do instrumento, pela discriminação entre seus limites e 22 23 Sobre a controvérsia acerca da etimologia e da semântica de laier, ver Rey (2004: 3158). Citada na redação sintética de 1969. 5 suas possibilidades, e também entre seus dois papéis: retransmitir de certo modo o que tínhamos o hábito de ver e ouvir diretamente; exprimir de certo modo o que não tínhamos o hábito de ver e ouvir. (Pierret 1969: 91–92) O duplo papel do instrumento das artes-relé ilustra a dupla função da reprodução mecanizada de Walter Benjamin: Por volta de 1900 a reprodução mecanizada havia atingido um estágio tal que não só começava a fazer das obras de arte do passado seu objeto e a transformar assim a ação das mesmas, mas chegava também a uma situação autônoma entre os procedimentos artísticos. (Benjamin 1936: 41) Benjamin enviou cópias de “L’Œuvre d’art à l’époque de sa reproduction mécanisée” a bom número de intelectuais parisienses em 1935, entre os quais André Malraux (Palmier 2006: 285), que o mencionou em Londres perante a Associação Internacional dos Escritores em Defesa da Cultura em 21 de junho de 1936 (Malraux 1936), antes de citá-lo em “Esquisse d’une psychologie du cinéma”, em 1940: No século XX, pela primeira vez, criaram-se artes inseparáveis de um meio mecânico de expressão; não suscetíveis de reprodução, mas expressamente destinadas à reprodução.24 Os mais belos desenhos já podem ser reproduzidos de modo satisfatório; certamente ocorrerá o mesmo com as pinturas bem antes do fim do século. Mas nem desenhos nem pinturas foram feitos para serem reproduzidos. Eles constituem em si mesmos seu próprio fim (ver a esse respeito o trabalho notável do senhor Walter Benjamin). (Malraux 1940: 71) Schaeffer encontra a ideia de Benjamin no ensaio de Malraux, que ele cita: “essas artes do século XX, cuja natureza é de serem ‘inseparáveis de um meio mecânico de expressão’” (Schaeffer 2010A: 32). E nota em seu diário: “artes de reprodução e artes consideradas em si; desenhos e quadros não feitos para serem reproduzidos (cf. Walter Benjamin)”.25 O período em que trabalhou no Ensaio foi de passagens: de Vichy para Paris via Marselha; do luto ao gozo erótico pela mediação da secretária datilógrafa; da radiofonia à pesquisa sobre ruídos pela prática da arte radiofônica; dos movimentos de juventude católica ao cristianismo esotérico pela intercessão de George Gurdjieff (Pierret 1969: 112–119). Assim, quando Marc Pierret o interroga, em 1969: Seria então exato e judicioso incorporar esse quarto de século de suas experimentações sonoras no tecido de um pensamento de escritor, de filósofo, se o senhor preferir? Em outras palavras, esses longos anos de experiência radiofônica e depois musical devem colocar-se entre as aspas de dois textos: o texto premonitório das Artes-Relé, inacabado, inédito, e o relato definitivo, meditado, publicado, de Traité, vinte e cinco anos depois? (Pierret 1969: 91) Ele responde: Creio que seja correto dizê-lo. Creio que em ambos os casos a linguagem (entenda-se também sua lógica, o traço que ela forma de um pensamento contínuo, os andaimes que fornece à imaginação, como a equação ao físico) serviu-me de notação e de baliza: voltada para o conhecimento adquirido, de modo a precisar-lhe a problemática; voltada para o desconhecido, de modo a vislumbrar-lhe o plano. (Pierret 1969: 91) Depois de precisar a problemática do rádio, Schaeffer dedica-se à prática da arte radiofônica na Paris ocupada. 24 “O filme fornece o exemplo de uma forma de arte cujo caráter é pela primeira vez integralmente determinado por sua reprodutibilidade” (Benjamin 1936: 49). 25 Diário, caixa “J3: Fin 41→ 47 après E”, caderno “P 24, P 25, P 26: fin 1941–1945, Occupation”, fascículo “P 24: Journal du Studio d’essai et notes philo et esthétique, janvier 42 à printemps 44”, consultado na residência de Jacqueline Schaeffer; transcrição de Jacqueline Schaeffer. 6 Música concreta Em 1948 ele contava oito livros publicados, entre biografia (1934), teatro (1939, 1941, 1946B, 1947A, 1947B, 1948) e ensaio (1946A), e preparava-se para lançar seu primeiro romance (1949). Naquela primavera, a pesquisa sobre ruídos dá início a uma produção musical que terá na infância seu fastígio. Formulada num misto de diário e ensaio, essa pesquisa assume o caráter paradoxal de uma liberação em face da escrita: Há um ano não faço mais que escrever. Tenho vontade de mudar. Sempre se escreve para dizer algo. De repente se descobre que seria necessário escrever para não dizer mais nada. Sou mesmo obrigado, se escrevo, a ser moral ou imoral, cômico ou trágico, simbólico ou naturalista. É aí que me invade a nostalgia da música, que Roger-Ducasse26 diz amar “porque ela não quer dizer nada”. (Schaeffer 1950: 31) “Introduction à la musique concrète” situa-se no tempo e em seu espírito: Convidamos o leitor a partilhar do diário de bordo de um cruzeiro solitário. Solitário quando se trata dessa música que denominamos “concreta” para que etimologia e embriologia coincidam. Bem pouco solitário, de fato, quando se trata de uma atitude, de um procedimento do espírito e de uma tomada de partido diante do evento.27 O que se passa conosco quanto à música concreta é uma aventura corrente neste semi-século de claridade, neste século de semiclaridade em que metade do quebra-cabeça ainda está toda embaralhada em sua caixa de surpresas. (Schaeffer 1950: 30) Há alusão a Igor Stravinsky (31), citação de Jean Roger-Ducasse (31), menção às colaborações de Pierre Billard (41)28 e Jean-Jacques Grunenwald,29 e declaração de independência quanto a John Cage (42), mas um ledo engano: a música concreta não é a que se faz com sons gravados. Concreto é o que “diz respeito aos sentidos e não ao sentido” (Schaeffer 1950: 51). Ela se define na inversão de sua conduta: “ao contrário do procedimento tradicional, que vai da partitura à execução, o procedimento concreto vai do material sonoro à organização” (Pierret 1969: 51): MÚSICA HABITUAL (dita abstrata) — FASE I. Concepção (mental); FASE II. Expressão (notada); FASE III. Execução (instrumental). (do abstrato ao concreto) MÚSICA NOVA (dita concreta) — FASE III. Composição (material); FASE II. Esboços (experimentação); FASE I. Materiais (fabricação) (do concreto ao abstrato) Essa inversão encontra contrapartida na transgressão do funcionário público: Eu não poderia exagerar a importância dessa transigência que o leva a apoderar-se de três dúzias de objetos para fazer barulho sem a menor justificativa dramática, sem a menor ideia preconcebida, sem a menor esperança. E mais, com o secreto despeito de fazer o que não se deve, de perder seu tempo numa época séria em que o próprio tempo nos é medido. (Schaeffer 1950: 32) 26 Jean Jules Aimable Roger-Ducasse (1873–1954), compositor francês, aluno dileto de Gabriel Fauré e sucessor de Paul Dukas no Conservatório de Paris (1936–1946). 27 Em 19 de maio de 1942, Francis Ponge havia lançado o livro Le Parti pris des choses, sobre o qual JeanPaul Sartre publicou um ensaio em 1944. 28 “Pierre Biard” no original (Schaeffer 1950: 41), “Pierre Billard” na coletânea de Brunet (1977: 50), que provavelmente tenha em mente o realizador de teatro radiofônico (1921–2012). 29 Compositor, organista e improvisador (1911–1982), foi professor de órgão da Schola Cantorum e do Conservatório de Genebra, autor de trilhas de filmes de André Bresson. 7 Embora os Cinco estudos de ruídos (Mâche e Gorne 1980: 16–17) decorram, cada um, de um problema de realização, o tema da dissociação entre a percepção de qualidades sonoras e a percepção do evento produtor do som protagoniza o debate no papel de requisito da abstração musical. Entrementes, a escuta se afirma e problematiza a criação: Por um lado, do momento em que um disco está num prato, uma força mágica me conduz, me obriga a escutá-lo por monótono que seja. Será que a gente se deixa levar porque estamos envolvidos? Não ignoro o quanto esses discos são maçantes e impossíveis de serem irradiados como tal. Mas sei que são extraordinários para escutar num estado de espírito especial, e sei também que os prefiro em estado bruto ao estado de vaga composição (decomposição) no qual terminei por isolar penosamente oito pseudocompassos de um pseudo-ritmo. Baixo a agulha no início de determinado grupo rítmico. Levanto-a bem no fim, encadeio a outro e assim por diante. A imaginação tem tanta força quando isolamos mentalmente determinado elemento sonoro e nos esforçamos para realizar essa tomada de matéria pela agulha que, na hora, nos deixamos levar. Na realidade, quando se reescuta a frio o composto obtido após longas horas de paciência, não se acha mais que uma fragmentação grosseira de grupos rítmicos rebeldes a qualquer compasso. Você acredita lembrar que o trem bate um três por quatro, um seis por oito. O trem bate seu próprio compasso, perfeitamente definido, mas perfeitamente irracional. O mais monótono dos trens varia sem cessar, jamais toca no compasso. Transforma-se numa sucessão de isótopos singularmente gêmeos. É aí que, para um ouvido exercitado, estaria o prazer musical. Esse prazer consistiria não em fazer o trem tocar no compasso, nos compassos de nossos solfejos elementares, por uma satisfação afinal bem vulgar, mas em aprender a escutar, a amar esse Czerny de um novo gênero, e sem a ajuda de nenhuma melodia, de nenhuma harmonia, desfrutar, em monotonia das mais mecânicas, o jogo de alguns átomos de liberdade, as improvisações imperceptíveis do acaso. Diabolus in mecanica. (Schaeffer 1950: 38) Um companheiro incógnito de viagem era Francis Ponge (1899–1988), que, na Argélia, escrevia em 31 de janeiro de 1948: A cada instante do trabalho de expressão, à medida que escrevo, a linguagem reage, propões suas próprias soluções, incita, suscita ideias, ajuda a formação do poema. Nenhuma palavra é empregada que não seja logo considerada uma pessoa. Que a claridade que ela carrega consigo não seja utilizada; e a sombra que carrega também. Quando aceito uma palavra na saída, quando deixo sair uma palavra, imediatamente devo tratá-la não como um elemento qualquer, um pedaço de madeira, uma peça de quebracabeça, mas como um peão ou uma figura, uma pessoa de três dimensões etc., e não posso dispor dela exatamente como bem entenda. (Cf. a frase de Picasso sobre minha poesia).30 Cada palavra se impõe a mim (e ao poema) em toda a sua espessura, com todas as associações de ideias que comporta (que comportaria se estivesse só sobre fundo escuro). E todavia é necessário transpô-la... (Ponge 1961: 33–34) O excerto integra “My Creative Method”,31 publicado em Zurique em 1949, e em Paris em 1961, já como parte do livro Méthodes, segundo volume de Le Grand Recueil (Ponge 1999: 441–809). Em junho de 1948, “Le Lézard” (Ponge 1999: 745–748), do terceiro volume do Grand Recueil, foi lido numa emissão do mesmo Club d’Essai (Ponge 1999: lxxiii) onde se criava a música concreta. Em 1966 Traité des objets musicaux prestará tributo à escrita de Ponge, da qual Schaeffer dirá: “não obra de autor que tem a dizer, mas trabalho sobre as palavras que terminam por dizer mais que o autor sabia, e por encaminhá-lo a sentidos que ele próprio não reconhece senão em retrospecto” (Schaeffer 1966: 658). 30 “O senhor, suas palavras, são como pequenos peões, o senhor sabe, pequenas estatuetas, elas giram e têm várias faces, cada palavra, e se iluminam umas às outras” (Ponge 1999: 684). 31 O título deriva de um artigo de de Betty Miller (1947); ver Ponge (1999: 1089). 8 Tratado As teorizações da música concreta prosseguem numa série de textos dos anos 1950, em particular no livro Introduction à la musique concrète (1952) e nos artigos “Vers une musique expérimentale” (1957), “Lettre à Albert Richard” (1957) e “Situation actuelle de la musique expérimentale” (1959). Este aparece em volume da Revue musicale que anuncia um Acousmatique, ou traité des objets musicaux, em resposta aos “principais enigmas lançados em 1952 por sua primeira obra” (Schaeffer 1959: 72). O autor dispendeu quinze anos na elaboração de Traité, “objeto de três, quatro, cinco redações inicialmente informes, aproximativas” (Pierret 1969: 97). A versão final começa a tomar corpo por volta de 1960.32 Na introdução, “Situação histórica da música”, ele coloca em evidência “três fatos novos” (Schaeffer 1966: 16–18) e os “três impasses da musicologia” decorrentes: Um desses impasses é o das noções musicais. Não são apenas a escala e a tonalidade que as músicas mais aventurosas de nossa época, como as mais primitivas, terminam por negar, mas a primeira dessas noções: a de nota musical, arquétipo do objeto musical, fundamento de toda a notação, elemento de toda a estrutura, melódica ou rítmica. Nenhum solfejo, nenhuma harmonia, seja atonal, pode dar conta de certa generalidade de objetos musicais, e principalmente daqueles que a maioria das músicas africanas ou asiáticas utilizam. O segundo impasse é o das fontes instrumentais. Independente da tendência dos musicólogos a referirem os instrumentos arcaicos ou exóticos a nossas normas, eles se viram subitamente desarmados diante das fontes novas de sons concretos ou eletrônicos que — surpresa! — às vezes se entendiam bem com instrumentos africanos ou asiáticos. Ainda mais inquietante era a possível desaparição da noção de instrumento. Instrumentos polivalentes ou sintéticos, tais seriam os ornamentos de nossas salas de concerto, a menos que um despojamento total consagrasse a ausência de qualquer instrumento. Assistiríamos ao desaparecimento da orquestra e do regente, evidentemente ameaçados pelo desaparecimento das partituras, em via de serem substituídas por fitas magnéticas lidas por alto-falantes? O terceiro impasse é o do comentário estético. Em seu conjunto, a abundante literatura devotada às sonatas, aos quartetos e às sinfonias soa oca. Só o hábito nos pode mascarar a pobreza e o caráter bizarro dessas análises. Quando se descartam, a montante e a jusante da obra, as considerações complacentes sobre o estado de espírito do compositor ou do exegeta, fica-se reduzido à mais seca das enumerações, em termos de tecnologia musical, de seus procedimentos de fabricação ou, na melhor das hipóteses, ao estudo de sua sintaxe. Mas nada de verdadeira explicação de texto. Talvez não haja razão para espanto? Talvez a boa música, por ser ela mesma linguagem, e linguagem específica, escape radicalmente de toda descrição e de toda explicação por meio de palavras?33 Em todo caso, nos limitaremos a reconhecer que o problema é suficientemente importante para não poder camuflar-se, e a dificuldade não foi nem resolutamente confrontada nem claramente tratada. A análise é indubitavelmente severa, mas um dia ou outro necessitaremos tomar ciência do esgotamento musicológico que ela denuncia. Se toda a explicação se esquiva, seja ela nocional, instrumental ou estética, mais valeria confessar que, ao fim e ao cabo, não sabemos grande coisa da música. E pior, que o que sabemos está propenso a nos desnortear ao invés de orientar-nos. (Schaeffer 1966: 19–20) Traité des objets musicaux: essai interdisciplines se organiza num “percurso em ziguezague, em sete saltos denominados ‘livros’” (Schaeffer 1966: 11). O primeiro, “Fazer música”, trata da origem do instrumento e de suas relações com o desenvolvimento das linguagens musicais. O segundo, “Ouvir” (entendre), expõe o sistema das “quatro funções da escuta”.34 O terceiro, “Correlações entre sinal físico e objeto musical”, analisa as percepções de altura, duração, intensidade e timbre em suas relações 32 Sophie Brunet, que começara a trabalhar com Schaeffer em 1959, recebe então a oferta de um adiantamento para escrever seu segundo romance (o primeiro seria publicado em 1962) e a rejeita “para obrigar Schaeffer a escrever seu livro” (comunicação verbal de Brunet). 33 A esse respeito, ver a abertura do artigo “Le Grain de la voix”, de Roland Barthes (1972). 34 Enganosamente vertidas ao inglês por modes of listening. 9 com as mensurações de frequência, tempo, amplitude e espectro para caracterizá-las em termos de anamorfoses (deformações). O quarto, “Objetos e estruturas”, busca referências na filosofia, na fenomenologia, na Gestalt, na linguística, na fonética e na fonologia. O quinto, “Morfologia e tipologia dos objetos sonoros”, e o sexto, “Solfejo dos objetos musicais”, definem as cinco operações do solfejo do objeto sonoro, das quais apenas as duas primeiras — morfologia e tipologia — são efetivamente realizadas. O sétimo, “A música como disciplina”, depõe “a título mais pessoal” (12). Escutar Schaeffer parte do Dictionnaire de la langue française de Émile Littré para desenvolver a semântica dos verbos ouïr, écouter, entendre e comprendre. Ele dirá mais tarde: Insisti, ao final do Tratado, neste aspecto que praticara anos a fio, um pouco à maneira de Ponge. Não foi a palavra pré35 ou verre d’eau36 que explorei, mas, graças a Littré,37 as palavras chave: entendre, comprendre, ouïr. Essas palavras, esses seixos38 gastos pelo uso, serviram-me de laboratório. Que digo eu, de Conselheiros, Ancestrais, Palavras Mestras! (Pierret 1969: 91) A argumentação se desenvolve em sete etapas. A primeira sintetiza o verbete entendre (Littré 1874: 1419–1421): Entendre: dirigir seu ouvido a, por onde, receber impressões de sons. Ouvir (entendre)39 barulho. Ouço (j’entends) falar na peça ao lado, ouço (j’entends) que me dizes novidades. 1. Entendre-écouter: ouvir (entendre) é ser suscetível a sons; escutar é dar ouvidos para ouvilos (entendre). Às vezes não se ouve (entend), embora se escute, e frequentemente se ouve (entend) sem escutar. 2. Entendre-ouïr: essas duas palavras, muito diferentes na origem, são hoje completamente sinônimas. Ouïr era a palavra correta, pouco a pouco substituída por entendre, que é a figurada. Ouïr é perceber pelo ouvido; entendre é, propriamente, prestar atenção. Só o uso lhe deu o sentido desviado de ouvir. A única diferença é que ouïr tornou-se verbo defectivo de uso restrito. Quando o significado pode ser ambíguo, deve-se empregar ouïr sem hesitação. Assim, neste dito de Pacuvius sobre os astrólogos: Il vaut mieux les ouïr que les écouter (melhor ouvi-los que escutá-los).40 Entendre contrariaria o sentido da frase. 3. Etimologicamente: tender a, por onde, ter a intenção, o desígnio. Comment l’entendez vous? (Qual é sua intenção?). 4. Entendre-concevoir-comprendre: entender e compreender significam captar o sentido. Isso os distingue de conceber, que significa apreender mentalmente. Entendo ou compreendo esta frase, e não eu a concebo. Ao contrário, no verso de Boileau, “o que se concebe bem, se enuncia claramente”,41 entender ou compreender não conviriam. A diferença de matiz entre entender e compreender é outra: a ideia de entender é prestar atenção, ser versado em, ao passo que a de compreender é tomar para si. Entendo o alemão, eu o sei, sou versado nele. “Compreendo o alemão” diria menos. (Schaeffer 1966: 103–104) Entendre carrega consigo uma ambiguidade fundamental: termo marcado no par oposicional entendre/ouïr, onde significa “prestar atenção”, em contraste com “perceber pelo ouvido”; termo não marcado no par oposicional écouter/entendre, onde significa “ser 35 Cf. “Le Pré”, Nouveau Recueil (Ponge 2002: 340–344). Cf. “Le Verre d’eau”, Méthodes (Ponge 1961: 115–173). 37 Sobre a mística do Littré em contraposição ao Robert, ver Ponge (1961: 19). 38 Cf. Tcholakian (1989). 39 Toda a vez que o verbo entendre se traduza por outro termo que não “entender”, ele aparecerá, flexionado, após a tradução. 40 Magis audiendum quam auscultandum censeo, frase de Marcus Pacuvius (220 a.C. – 130 a.C.), poeta, dramaturgo e pintor romano, citada por Michel de Montaigne (1595: 24). 41 Ce que l’on conçoit bien s’énonce clairement, Et les mots pour le dire arrivent aisément (1674), versos de Nicolas Boileau (1636 – 1711), poeta, escritor e crítico (Boileau 1808: 24). 36 10 suscetível a sons”, em contraste com “dar ouvidos para ouvi-los”. A segunda etapa especializa a lexicografia: 1. Escutar é prestar ouvido, interessar-se por. Dirijo-me ativamente a alguém ou a alguma coisa que me é descrita ou indicada por um som. 2. Ouvir é perceber pelo ouvido. Em oposição a escutar, que corresponde à atitude mais ativa, ouço o que me é dado na percepção. 3. De entendre reteremos o sentido etimológico: “ter uma intenção”. O que entendo [ouço], o que me é manifesto, é função dessa intenção. 4. Compreender, tomar consigo, mantém relação dupla com escutar e entender [ouvir]. Compreendo o que visava em minha escuta graças àquilo que escolhi entender [ouvir]. Mas reciprocamente, o que já compreendi dirige minha escuta, informa o que entendo [ouço]. (Schaeffer 1966: 104) “Entender” pareceria traduzir entendre no excerto acima, mas seria necessário que se pudesse ler também “o que ouço, o que me é manifesto, é função dessa intenção”. A terceira etapa ilustra a lexicografia através de exemplos que delineiam uma fenomenologia. OUVIR Para ser preciso, jamais deixo de ouvir. Vivo num mundo que não cessa de ser-aí para mim, e esse mundo é sonoro, tanto quanto tátil e visual. Desloco-me numa “ambiência” como numa paisagem. O silêncio mais profundo é ainda um fundo sonoro como outro qualquer, do qual se destacam então, com solenidade incomum, o ruído de minha respiração e o ruído de meus batimentos cardíacos (cf. relatos de cosmonautas sobre o “silêncio espacial”). O que seria para nós a estranheza de um mundo subitamente privado dessa dimensão, o podemos entrever graças a um incidente técnico, quando a faixa sonora de um filme é bruscamente interrompida, ou em certos sonhos. Lembremos o de Baudelaire e sua “móveis maravilhas”, sobre as quais “pairava — terrível novidade — tudo para o olho, nada para o ouvido — um silêncio de eternidade”.42 Como se o rumor contínuo que impregna até nosso sono43 se confundisse com o sentimento de nossa própria duração. Nem por isso ouvir é “ser suscetível a sons” que chegariam a meu ouvido sem atingir minha consciência. É de fato em relação a ela que o fundo sonoro adquire realidade. A ele me adapto instintivamente, sem me dar conta sequer, ao elevar a voz quando seu nível aumenta. Ele se associa para mim ao espetáculo, aos pensamentos e às ações que acompanhava sem que eu me apercebesse, e às vezes por si só bastará para evocá-las. A música de um filme, à qual eu não havia prestado nenhuma atenção, tão absorto estava nas peripécias dramáticas, despertará, quando a escute (entendrai) ao rádio, as emoções que o filme havia provocado, antes mesmo que a tenha identificado formalmente. Sou por fim imediatamente alertado quanto a uma modificação brusca ou inusitada desse fundo sonoro do qual não estava ciente: sabe-se do caso de pessoas que moram perto de uma estação ferroviária e despertam quando o trem não passa no horário. Mas é verdade ser sempre indiretamente, por reflexão ou memória, que posso tomar ciência do fundo sonoro. Escuto (j’entends) soar o relógio de pêndulo. Sei que já soou. Apressado, reconstituo mentalmente as duas primeiras batidas, que havia ouvido, e situo a que escutei (j’ai entendu) como a terceira, antes mesmo que soe a quarta. Não houvesse tentado saber a hora, eu ignoraria efetivamente que as duas primeiras haviam chegado a minha consciência. Falam comigo, penso em outra coisa. Meu interlocutor, ofendido, se cala. Escuto (j’entends) esse silêncio de mau agouro. Consigo extrair do fundo sonoro, antes de lá perder-se para sempre, a última metade da frase que ele pronunciara, e com um pouco de sorte conseguirei dar-lhe a réplica e persuadi-lo de que a distração era apenas aparente. 42 Et sur ces mouvantes merveilles Planait (terrible nouveauté! Tout pour l’œil, rien pour les oreilles!) Un silence d’éternité, Charles Baudelaire (1975: 103), “Rêve parisien”, Les Fleurs du mal (1861), originalmente publicado na Revue contemporaine em 15 de maio de 1860 (Baudelaire 1975: 1040). Baudelaire explica: “O movimento implica geralmente o ruído, a tal ponto que Pitágoras atribuía uma música às esferas em movimento. Mas o sonho, que separa e decompõe, cria a novidade” (Baudelaire 1975: 1043). 43 Cf. o conhecido excerto sobre os ruídos de Paris na abertura des La Prisonnière, de Marcel Proust (1923: 9–10); sobre a escuta em Proust, ver Reyner (2017). 11 ESCUTAR Suponhamos agora que eu escute esse interlocutor. É dizer que não escuto ao mesmo tempo o som de sua voz. Volto-me para ele submisso a sua intenção de comunicar-me algo, pronto para ouvir, do que ele oferece a minha audição, somente aquilo que tenha valor de indicação semântica. Ele tem um sotaque do Midi que pode ter-me divertido quando o conheci, que noto ainda quando o reencontro depois de algum tempo, mas negligencio agora. (Todavia, quando lembre essa conversa, não intelectualmente, para recapitular os pontos trocados ou extrair-lhes conclusões, mas espontaneamente, ao retornar depois ao local onde ocorreu, reencontrarei não apenas as ideias trocadas, mas também aquele sotaque de certo Midi, aquele fraseado particular, aquela voz que reconheço sem hesitação entre tantas outras, a um conjunto de caracteres que não havia cessado pois de ouvir, embora possa ser completamente incapaz de analisá-lo). Escutar, acabamos de ver, não é necessariamente interessar-se por um som. Não é mesmo senão excepcionalmente interessar-se por ele, mas, por seu intermédio, visar outra coisa. No limite, chega-se ao ponto de esquecer essa passagem pela audição. Escutar alguém torna-se então praticamente sinônimo de obedecer (“Escuta teu pai!”) ou de dar crédito (assim, Pacuvius recomenda não escutar os astrólogos, mesmo que não possamos dispensar-nos de ouvilos). Ao escutar o que me dizem, tendo, através das palavras, mas também ao largo de uma formulação talvez imperfeita, às ideias que me esforço para compreender. Escuto um carro. Eu o situo, localizo sua distância, eventualmente reconheço-lhe a marca. Que sei do ruído que me forneceu esse conjunto de informações? A descrição que faria, se solicitado, seria tanto mais pobre quanto mais segura e rapidamente tenha-me informado. Ao contrário, é precisamente ao ruído do carro que presto ouvido se esse carro é o meu e me parece que o motor “faz um ruído esquisito”. Mas minha escuta permanece utilitária, pois procuro inferir informações quanto ao funcionamento do motor: incerto das causas, forçoso é passar primeiro por uma análise dos efeitos. Posso, finalmente, escutar, como me havia proposto de início, com o objetivo exclusivo de ouvir melhor (mieux entendre). Essa análise, que até há pouco se impunha como etapa, torna-se alvo em si mesma. Voltado para o evento, eu aderia a minha percepção, eu a utilizava sem o saber. Agora tomei distância, cesso de utilizá-la, estou desinteressado. Ela pode finalmente aparecer, tornarse objeto. Escutar assim ainda é visar, através do som, ele mesmo instantâneo, outra coisa que não o som: uma espécie de “natureza sonora” que se dá na íntegra de minha percepção. ENTENDRE Podemos agora definir entendre em relação aos dois verbos precedentes. a) Ouïr-entendre Começo por observar ser-me praticamente impossível não fazer seleção naquilo que ouço. O fundo sonoro não é antecedente: ele só existe como tal num conjunto organizado onde efetivamente desempenhe esse papel. Enquanto esteja ocupado com o que olho, penso ou faço, vivo realmente numa ambiência indiferenciada, sem perceber mais que uma qualidade global. Mas se permaneço imóvel, de olhos fechados, mente vazia, é bem provável que não mantenha uma escuta imparcial por mais de um instante. Situo os ruídos, separo-os em próximos ou distantes, externos ou internos, e fatalmente começo a privilegiar uns em detrimento de outros. O tiquetaque do relógio de pêndulo impõe-se, me obceca, apaga todo o resto. Involuntariamente imponho-lhe um ritmo: tempo fraco, tempo forte. Incapaz de destruí-lo, tento ao menos substituí-lo. Chego a me perguntar como pude um dia dormir no mesmo quarto que esse relógio irritante. Mas basta um carro frear bruscamente lá fora para que eu esqueça. Pelo que sei agora, meu quarto bem poderia ser uma ilha de silêncio açoitada por rumores externos. Mas escuto (j’entends) baterem à porta; e o conjunto dessas organizações cambiantes mergulha de vez no fundo sonoro enquanto abro os olhos e me levanto para abrir. Graças a essas mudanças, pude ao menos inventariar, por fragmentos e por surpresa, o pano de fundo sobre os qual se desenrolavam, e ainda dar-me conta de ser responsável por essas intermináveis variações. Quando minha intenção seja mais firme, a organização correspondente será tanto mais forte, e é aí que, paradoxalmente, terei a impressão de que se imponha do exterior. Assim, ao participar de uma conversa familiar entre várias pessoas, passarei de um tema e de um interlocutor a outro sem imaginar por um instante sequer a extravagante confusão de vozes, ruídos e risos a partir da qual realizo uma composição única, diferente daquela que cada um de meus companheiros realiza por conta própria. Para revelá-la, será preciso um registro frequentemente indecifrável, pois o gravador não escolhe nada. 12 b) Écouter-entendre Que acontecerá caso, pelo contrário, eu escute para ouvir (entendre), seja porque ignore a proveniência do objeto sonoro, o que me obriga a passar por sua descrição, seja porque a quero ignorar e interessar-me exclusivamente por ele? Seria um erro acreditar que ele vá revelar-se a mim com todas as suas qualidades porque o extraí do plano de fundo ao qual o relegara: continuarei a praticar seleções sucessivas, a considerar este ou aquele aspecto um após outro. Assim, quando olho uma casa, eu a situo na paisagem. Mas se continuo a interessar-me por ela, examinarei ora a cor da pedra, sua matéria, ora a arquitetura, ora o detalhe de uma escultura sobre a porta; logo retornarei à paisagem em função da casa para constatar que esta desfruta “uma bela vista”, e a verei de novo em seu conjunto, como o fizera de início, mas minha percepção estará enriquecida de minhas investigações precedentes. Ademais, está quase fora de minhas possibilidades enxergá-la com os mesmos olhos com que enxergaria um rochedo ou uma nuvem. Trata-se de uma casa, de uma obra humana concebida para abrigar humanos. É em função desse sentido que a vejo e aprecio. E minha investigação, bem como minha apreciação, serão também distintas a depender de serem meus olhos os de um futuro proprietário, os de um arqueólogo ou os de um esquimó especialista em iglus. Encontraremos no próximo capítulo um tratamento detalhado do processo de escuta qualificada, cuja diversidade decorre de uma lei fundamental da percepção, que é a de proceder por “esboços sucessivos”, sem jamais esgotar o objeto; da multiplicidade de nossos conhecimentos e de nossas experiências anteriores (em função dos quais o objeto imediatamente se apresenta com diferentes sentidos ou significados); e da variedade de nossas intenções de escuta, daquilo ao qual tendemos. Contento-me aqui com um exemplo característico que tomo de um romance de Max Frisch, Homo faber.44 “Todos os dias de manhã, um ruído esquisito me acordava, meio industrial, meio musical, um rumor que não conseguia explicar, não forte, mas frenético como grilos, metálico, monótono, provavelmente uma mecânica, mas não adivinhava qual, e depois, quando íamos tomar café-da-manhã na vila, acabara-se, não se via nada.” “Fizemos as malas domingo. E o estranho ruído que me acordara todas as manhãs revelou-se música, algazarra de uma marimba antiga, martelagem sem timbre, uma música horrível, absolutamente epilética. Tratava-se de alguma festa relacionada à lua cheia. Todas as manhãs, antes dos trabalhos do campo, eles haviam ensaiado para acompanhar a dança, cinco nativos que, com pequenos martelos, batiam furiosamente em seu instrumento, uma espécie de xilofone do comprimento de uma mesa.” As duas descrições evidentemente se correspondem. Frenesi, monotonia e martelagem, rumor e ausência de timbre, ruído metálico e golpes de martelo num xilofone. De sua cama, todas as manhãs, depois lá fora, no momento de partir, Walter Faber praticamente ouviu a mesma coisa. Não diremos o mesmo do que ele escutou (a entendu). No primeiro caso ele escutava (entendait) um ruído cuja causa procurava explicar; no segundo, informado das causas, ele aprecia uma música. O que era apenas “esquisito” torna-se de repente “horrível”. O “frenesi”, que no primeiro caso aparecia como simples analogia descritiva (nosso herói não imaginando imputá-lo diretamente aos grilos), é percebido com maior intensidade ao revelar-se resultado de furiosa atividade instrumental, e torna-se então “absolutamente epilético”. Após conseguir qualificar a escuta, Walter Faber começou a ouvir (entendre) e depois a compreender em função de uma significação precisa. COMPREENDER De fato, informado não diretamente pelo objeto sonoro, que permanecia incerto, “meio industrial, meio musical”, mas pelo recurso da vista, ele compreendeu tratar-se de música. Do mesmo modo que o herói de Max Frisch, posso entender a causa exata do que ouvi (j’ai entendu) ao colocá-lo em relação com outras percepções, ou através de um conjunto mais ou menos complexo de deduções. Ou ainda, posso compreender, por meio de minha escuta, algo que não tenha senão um vínculo indireto com o que ouço (j’entends): constato simultaneamente que os pássaros se calam, que o céu está baixo, que o calor é sufocante, e compreendo que haverá tempestade. Compreendo ao termo de um trabalho, de uma atividade consciente do espírito, que já não se contenta em acolher um significado, mas abstrai, compara, deduz, relaciona informações de fonte e natureza diversas; trata-se de precisar um significado inicial ou de extrair um significado suplementar. 44 Max Rudolf Frisch (1911–1991), escritor e arquiteto suíço. Homo faber foi publicado em Frankfurt em 1957, em Paris em 1961, e no Rio de Janeiro em 1986. 13 Para a dona de casa, este ruído que lhe chega da sala ao lado e a faz sobressaltar-se está prenhe de sentido: é um ruído de queda ou de quebra. Ela o ouve (entend) como tal. Dá-se conta, ademais, de que o filho não está perto, lembra-se de que o vaso de porcelana chinesa está imprudentemente colocado numa mesa a seu alcance, e compreende facilmente que a criança acaba de quebrá-lo. Escuto e entendo o que me dizem, mas, ao identificar contradições no relato e comparálo a certos fatos que, aliás, conheço, compreendo também que meu interlocutor mente. De súbito, minha desconfiança atiçada passa a orientar diferentemente minha escuta, e compreendo também hesitações, certas mudanças no timbre da voz, e até “olhares que creríeis mudos”.45 Como o último exemplo permite antever, às vezes se emprega indistintamente entender e compreender na acepção em que são sinônimos: captar o sentido. Tal ocorre quando afirmamos indiferentemente que “te compreendo” ou “te entendo”, ou quando nos queixamos de não compreender (ou entender) a música moderna. De fato, em ambos os casos, o ato de compreensão coincide exatamente com a atividade da escuta: todo o trabalho de dedução, comparação e abstração é integrado e ultrapassado bem além do conteúdo imediato, do “dado a entender”. (Schaeffer 1966: 104–111) A quarta etapa efetua a terceira síntese lexical: 1. Escuto o que me interessa. 2. Ouço, se não for surdo, o que se passa de sonoro a meu redor, quaisquer que sejam, aliás, minhas atividades e meus interesses. 3. Entendo em função do que me interessa, do que já sei e do que busco compreender. 4. Ao termo do entender, compreendo o que buscava compreender, aquilo em virtude do qual escutava. (Schaeffer 1966: 113) A quinta etapa desenvolve essa síntese e generaliza a fenomenologia: 1. O silêncio, supostamente universal, é perturbado por um evento sonoro. Pode ser evento natural (pedra que rola, cata-vento que guincha) ou emissão voluntária de som por instrumentista. Seja como for, o que escutamos espontaneamente neste nível é a anedota energética traduzida pelo som. 2. Correspondente ao evento objetivo, encontramos no ouvinte o evento subjetivo representado pela percepção bruta do som, ligada em parte a sua natureza física, em parte a leis gerais da percepção, que estamos autorizados a supor, grosso modo, serem as mesmas para todos os seres humanos (como o fazem as descrições dos gestaltistas). 3. Relacionada a experiências passadas, a interesses dominantes, atuais, essa percepção dá lugar a uma seleção e a uma apreciação. Diremos que tenha sido qualificada. 4. As percepções qualificadas orientam-se para uma forma particular de conhecimento, e o sujeito chega finalmente a significados, abstratos em relação ao próprio concreto sonoro. De modo geral, o ouvinte compreende neste nível certa linguagem dos sons. (Schaeffer 1966: 114) A sexta etapa desenvolve essa generalização: 1. Escuto o evento, procuro identificar a fonte sonora: “O que é? O que aconteceu?” Não me detenho então no que percebo, dele me sirvo inadvertidamente. Trato o som como um índice que me assinala algo. É certamente o caso mais comum porque corresponde a nossa atitude mais espontânea, ao papel mais primitivo da percepção: prevenir um perigo, guiar uma ação. Essa identificação do evento sonoro com seu contexto causal geralmente é instantânea. Mas é possível também que, os índices sendo incertos, ela só se produza após diversas comparações e deduções. A curiosidade científica, embora coloque em jogo conhecimentos altamente elaborados, persegue um objetivo fundamentalmente semelhante ao da percepção espontânea do evento. 2. Ao contrário, posso voltar-me para essa percepção, que há pouco utilizava, e é a esse som diretamente que endereçarei a pergunta: “O que é?” Quer dizer que o trato como objeto. É o que denominamos objeto sonoro bruto. (Esse tema será amplamente desenvolvido no livro IV). Ele é aquilo que permanece idêntico através tanto do “fluxo de impressões” diversas e sucessivas que 45 Conforme a fala de Nero para Júnia na terceira cena do segundo ato do Britannicus, de Jean Racine (1670: 27): j’entendrai des regards que vous croirez muets (ouvirei olhares que crereis mudos). 14 tenho dele quanto de minhas diferentes intenções a seu respeito. A segunda característica essencial de um objeto percebido é não se oferecer senão por esboços: no objeto sonoro que escuto há sempre mais para ouvir (entendre), ele é uma fonte inexaurível de potencialidades. Assim, a cada repetição de um som gravado, escuto o mesmo objeto: bem que jamais o ouça (entende) igualmente, que ele passe de desconhecido a familiar, que perceba sucessivamente diversos de seus aspectos, que ele não seja pois jamais idêntico, sempre o identifico como este objeto preciso. 3. É igualmente o mesmo objeto sonoro o que escutam diversos ouvintes reunidos em torno de um gravador magnético. Mas eles não ouvem (entendent) todos a mesma coisa, não selecionam e não apreciam igualmente, e na medida em que sua escuta toma assim partido por este ou aquele aspecto particular do som, ela dá lugar a esta ou àquela qualificação do objeto. Essas qualificações variam, como o ouvir (entendre), em função de cada experiência anterior e de cada curiosidade. Todavia, o objeto sonoro único, que torna possível essa multiplicidade de aspectos qualificados do objeto, subsiste na forma, digamos, de um halo de percepções, às quais as qualificações explícitas fazem referência implícita. Desse modo, quando concentro minha percepção qualificada no detalhe de uma casa — janela, escultura acima da porta —, nem por isso a casa está menos presente, e vejo essa janela ou essa escultura como partes dela. 4. Posso, por fim, tratar o som como um signo que me introduz em certo domínio de valores, e posso me interessar por seu sentido. O exemplo mais característico é certamente o da fala. Trata-se aqui de uma escuta semântica, centrada em signos semânticos. Entre as diversas escutas “significantes” possíveis, naturalmente nos interessamos em particular pela escuta musical, que se refere a valores musicais e dá acesso a um sentido musical. Note-se que os valores dos quais falamos são, no limite, destacáveis de seu contexto sonoro, reduzido assim ao papel de suporte. Geralmente concordamos que a comunicação opere uma junção de espíritos. Nessa perspectiva, é natural que, nas duas extremidades do circuito, e notoriamente nesta, a da recepção, se abandone a contingência do veículo sonoro no interesse de seu conteúdo significante. Os valores musicais tradicionais não se excetuam na medida em que os signos da música precedem sua realização sonora. É esta que nos esforçamos por melhorar em vista daqueles, e não o inverso. Eis por que pudemos falar, neste ponto 4, de significações abstratas; neste nível, o abstrato se opõe ao concreto material do nível 1. (Schaeffer 1966: 114–117) A sétima etapa apresenta a síntese final: 4. COMPREENDER 1. ESCUTAR — para mim: signos — diante de mim: valores (sentidolinguagem) — para mim: índices — diante de mim: eventos exteriores (agente-instrumento) Emergência de um conteúdo do som e referência a noções extrasonoras, confrontação com elas. Emissão do som. 3. ENTENDRE — para mim: percepções qualificadas — diante de mim: objeto sonoro qualificado Seleção de certos aspectos particulares do som. 3 e 4: abstrato 1 e 4: objetivo 2. OUVIR — para mim: percepções brutas, esboços do objeto — diante de mim: objeto sonoro bruto 2 e 3: subjetivo Recepção do som. 1 e 2: concreto 15 Esse “caminho de pensamento” (Heidegger 1997: 41; 2001: 11) desenha uma espiral de sentido duplo: centrífugo, em desenvolvimentos fenomenológicos que partem de exemplos para generalizações; centrípeto, em sínteses lexicais flexionadas pela fenomenologia. Temos assim, em sístoles e diástoles sucessivas: (1) síntese lexical; (2) especialização da primeira síntese; (3) desenvolvimento fenomenológico ilustrado; (4) terceira síntese lexical; (5) desenvolvimento da terceira síntese por generalização da fenomenologia; (6) terceiro desenvolvimento; (7) síntese final. Mais tarde, Schaeffer apresentará a versão existencial desse caminho de escuta: Uma criança comunga. Ela se recolhe, faz silêncio, espera alguma coisa surgir de si ou de seu Visitante, coisa nem comum nem excessiva que aumente o sentimento recíproco da presença de mim para Ele e d’Ele para mim. Despojada de palavras, a adoração, antes de ser intenção, geralmente é atenção, mobilização da consciência. Um homem se concentra (como emissários de outras civilizações ensinaram). Sem visitante externo, sem sacramento, sem signo sensível, é ainda um chamado por forças latentes, e também pela presença — daí a parada possível (esperemos), mas improvável, da agitação costumeira, do ruído de fundo da mente e suas infindáveis associações. Não falemos das receitas incertas, dos comentários ociosos, dos mal-entendidos prováveis. Por fim, um ouvinte escuta um som (e não um discurso sonoro de dormir em pé nem uma música para sonhar, dançar, chorar ou sorrir). Colocamos à disposição de sua escuta certo fragmento de som que se repete, ao qual ele se dedica como se fixasse uma luz, uma maçaneta ou a linha do horizonte. Ele não recebe nem Deus nem o fluxo de seu corpo, mas um sinal do mundo exterior cuja imagem sonora se forma em sua consciência. Para considerá-lo, é necessário também prestar atenção e fazer silêncio, e paradoxalmente, para assimilá-lo, é necessário ainda despojar-se de tudo o que até então se sabia dele, descartar os sentidos, os índices e qualquer sugestão relativa ao sinal. Se o reescutarmos agora ou em algumas horas, em alguns dias, mais aprenderemos, não apenas sobre o objeto que consideramos, mas também sobre as faculdades do sujeito que somos, nos observando observar. Exatamente em que consiste o ensinamento? Faço pesquisa musical? Decifro-me a mim mesmo? Vou contar prosa, dizer-me psicólogo, musicólogo, semiólogo? Diante da experiência íntima, do verdadeiro proveito, míseras especialidades. (Brunet 1969: 211–212) Esses parágrafos sumarizam três grandes períodos da vida de Schaeffer: o dos movimentos de juventude católica, que culminam na experiência de Jeune France no início dos anos 1940; o da “cristandade esotérica” de Gurdjieff, correspondente à primavera da música concreta em 1948; e o da pesquisa musical, associado ao Groupe de Recherches Musicales (GRM) e à criação do Service de la Recherche na passagem dos anos 1950 aos anos 1960. Reencontramos aqui Francis Ponge tal qual Ítalo Calvino o entendia em 1979: Tomar um objeto dos mais humildes, um gesto dos mais quotidianos, e procurar considerá-lo fora de todo o hábito perceptivo, descrevê-lo fora de todo o mecanismo verbal gasto pelo uso. Eis que uma coisa indiferente e quase amorfa como uma porta revela uma riqueza inesperada; ficamos subitamente felizes de encontrar-nos num mundo cheio de portas para abrir e fechar. E isso não por qualquer razão estranha ao fato em si (como o poderia ser uma razão simbólica, ou ideológica ou estetizante), mas apenas porque reestabelecemos uma relação com as coisas como coisas, com a diversidade entre uma coisa e outra, e com a diversidade entra cada coisa e nós. Inadvertidamente descobrimos que existir poderia ser uma experiência muito mais intensa e interessante e verdadeira que o corre-corre distraído no qual nossa mente calejou-se. (Calvino 1995: 253) Seja na versão lexicográfico-fenomenológica ou na existencial, o objeto sonoro assume aspecto distinto do restritivo-normativo sob o qual costuma apresentar-se nos trabalhos sobre música eletroacústica, vulgarmente definido como “o som em si”, sem referência ao evento que o origina nem a seu significado. sSchaeffer afirma: Enquanto reste uma incerteza na percepção quanto ao objeto final da escuta, em qualquer setor que se encontre, a investigação consistirá em colocar em evidência e a referir uns aos outros os 16 objetos “parciais” do conjunto da atividade auditiva; assim, uma série de escutas, ao aprofundar o fenômeno, precisará os resultados simultaneamente nas quatro direções. (Schaeffer 1966: 118) Conclusão Essa poética de escuta pode contribuir para dissipar a doxologia do funk carioca ao promover uma limpeza da situação aural. Ela pode contrabalançar o número crescente de estudos históricos, antropológicos, sociológicos, jurídicos, linguísticos e psicológicos sobre o tema ao dirigir o foco da investigação para a forma e a matéria sonoras. E ela permite que se coloquem problemas de história, antropologia, sociologia, direito, linguística e psicologia em relação com características de sonoridade, como procurei mostrar em outros trabalhos (Caceres, Ferrari e Palombini: 2014; Palombini 2016). “Meu papel essencial é o de comunicar uma forma de compreender, de sentir e de agir que pode parecer, do exterior, terrivelmente pessoal; na verdade, eu mesmo sou apenas um relé”, diz Schaeffer (apud Brunet 1969: 19). “Dizes que o alimento, o lugar, o ar e a sociedade te transformam e condicionam? Ora, tanto mais o fazem tuas opiniões, pois são elas que te determinam em tua escolha de alimento, lugar, ar e sociedade”, escreve Nietzsche (2017). “A capacidade que um sistema político tenha para tolerar e recuperar a reformulação de seus mitos fundadores constitui uma função crucial de sua adaptação, e portanto, de sua sobrevivência”, afirma Pieter Lagrou (2013: 102). Referências Adler, Guido. 1885. “Umfang, Methode und Ziel der Musikwissenschaft.” Leipzig, Vierteljahrsschrift für Musikwissenschaft 1: 5–20. Disponível em: <http://goo.gl/Mms7nP>. Acesso em: 27 jun. 2017. Adorno, Theodor. 1988. “The Aging of the New Music”. Trad. Robert Hullot-Kentor e Frederic Will. Candor (NY), Telos: Critical Theory of the Contemporary 77: 95–116. DOI 10.3817/0988077095. Aquino, São Tomás de. 2017. Quaestiones disputatae de veritate: a quaestione II ad quaestionem IV. Pamplona: Universidade de Navarra. Disponível em: <http://goo.gl/KWj88q>. Acesso em: 14 jul. 2017. 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PERSPECTIVAS PARA A PESQUISA E O ENSINO EM HISTÓRIA DA MÚSICA NA CONTEMPORANEIDADE Mónica Vermes Marcos Holler (Organizadores) ANPPOM PERSPECTIVAS PARA O ENSINO E PESQUISA EM HISTÓRIA DA MÚSICA NA CONTEMPORANEIDADE 2019 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA Diretoria 2017-2019 Presidente: Sonia Regina Albano de Lima (UNESP) Primeiro secretário: Márcio Guedes Corrêa (UNESP) Segundo secretário: Alexandre Zamith (UNICAMP) Tesoureiro: Marcos Fernandes Pupo Nogueira (UNESP) Conselho Fiscal José Augusto Mannis (UNICAMP) Angela Elisabeth Lühning (UFBA) Sonia Ray (UFG) Lucyanne de Melo Afonso (UFAM) João Gustavo Kienen (UFAM) José Soares de Deus (UFU) Editor de publicações da ANPPOM Marcos Holler (UDESC) ANPPOM Série Pesquisa e Ensino em Música no Brasil Vol. 1 PERSPECTIVAS PARA A PESQUISA E O ENSINO EM HISTÓRIA DA MÚSICA NA CONTEMPORANEIDADE Mónica Vermes Marcos Holler (Organizadores) 1ª edição ANPPOM São Paulo 2019 Projeto gráfico Marcos Holler Revisão de texto Priscilla Morandi Imagem de capa Baude Cordier, Tout par compas suy composés. Codex de Chantilly, Museu Condé de Chantilly, MS 564. SUMÁRIO Prefácio Marcos Holler 6 Apresentação Mónica Vermes 7 Raízes da crise no ensino de história da música: o caso de São Paulo Paulo Castagna 9 História como gênero retórico em Historische Beschreibung der edelen Ton- und Singkunst [“descrição histórica da nobre arte dos sons e do canto”, 1690] de Wolfgang Printz 59 Mônica Lucas Música do tempo presente e intenção de escuta 77 Carlos Palombini “A palavra cantada não é a palavra falada”: a canção popular no ensino de história Rainer Gonçalves Sousa 110 La enseñanza de Historia de la Música en América de habla castellana: desafíos teóricos, estrategias en el aula 129 Marita Fornaro Bordolli MÚSICA DO TEMPO PRESENTE E INTENÇÃO DE ESCUTA1 Carlos Palombini2 “Revolucionário será quem possa revolucionar-se.” (Ludwig Wittgenstein, 1941-1944)3 Refaço, através da exposição diacrônica de excertos sobre a percepção aural escritos por Pierre Schaeffer entre 1938 e 1969, a trajetória que me leva da música eletroacústica ao estudo musical do funk carioca. Ela implica uma pedagogia baseada na reflexão sobre a escuta que poderia tomar para si o antigo moto empirista: nihil est in intellectu quod non sit prius in sensu – na formulação de Tomás de Aquino (2017). Confluem ao funk carioca problemas de nosso tempo: as culturas da diáspora africana nas Américas, a análise da música eletrônica dançante, a história das técnicas de produção musical, as garantias individuais, a segurança pública, a criminalização da pobreza, o racismo estrutural, a financeirização do espaço urbano. E “a massa [ainda] é a matriz onde se engendra hoje a atitude nova frente à obra de arte” (BENJAMIN, 1936, p. 63). Como entendê-la? Metodologia Embora os termos musicologia e história da música (musicologia histórica) sejam frequentemente empregados como sinônimos, “musicologia” aqui remete a uma prática interdisciplinar cujo ponto de convergência é a música,4 tomada por qualquer coisa de sonoro que se entenda como tal. Um dos componentes dessa interdisciplina é a história – “do tempo presente” não apenas porque as origens da música em questão, o funk carioca, possam ser localizadas na Segunda Guerra Mundial5 ou porque sua referência de análise, a música concreta, date do mesmo período, mas sobretudo porque procura desmascarar “a boa consciência das elites constituídas, em política como na 1 Sou grato a Igor Reyner pela leitura e crítica deste ensaio. Universidade Federal de Minas Gerais / CNPq 3 Conforme a datação de Pichler (1991, p. 26); aforismo publicado em Vermischte Bemerkungen (WITTGENSTEIN, 1977). Exceto quando indicado em rodapé ou nas referências bibliográficas, excertos em língua estrangeira são dados em traduções do autor, mantidos os grifos originais. 4 Assim concebida, a musicologia não deixa de filiar-se, em outro espírito, à Musikwisschenschaft de Guido Adler (1885). Ver Mugglestone e Adler (1981) para contexto histórico e tradução inglesa do artigo de Adler; ver Dudeque (2004) para uma tradução brasileira da tabela de Adler; ver Kerman (1985, p. 11-12) para etimologia e pragmática do termo musicology. 5 Nomeadamente, no rhythm and blues afro-norte-americano (BURNIM; MAULTSBY, 2006, p. 245269). 2 77 Universidade” (LAGROU, 2013, p. 101). 6 O modelo de interdisciplinaridade utilizado é o agonístico/antagonístico descrito por Georgina Born (2010, p. 211): diante dos limites intelectuais, estéticos, éticos ou políticos das disciplinas estabelecidas ou do estatuto da pesquisa acadêmica em geral, colocamo-nos em relação de diálogo autoconsciente, de crítica ou de oposição. Essa musicologia relacional busca abrir “um novo espectro epistemológico e ler as cores que nossos preconceitos haviam previamente apagado” (SERRES, 1980, p. 23-24). Articular historicamente o passado, Walter Benjamin (1985, p. 224) escreve em 1940, não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”, mas apropriar-se de uma reminiscência tal qual relampeia no momento de um perigo. Esse momento é o presente. Se antropologia, relatos orais e etnografia desempenham seus papéis nessa pesquisa, e se um de seus objetivos é estabelecer relações entre morfologia sonora e organização social – pergunta análoga àquela formulada por Steven Feld em 1984 7 –, por que não a realizar sob o signo da etnomusicologia? Para responder a essa pergunta, abandono a primeira pessoa do plural. Entendo ser mais produtivo desenvolver colaborações com antropólogos comprometidos com pesquisas musicais8 enquanto mantenho-me no campo da disciplina definida nos termos do parágrafo anterior. Em outras palavras, enquanto mantenho a diferença: “Suprimimos os prazeres agonísticos de continuar diálogos intersubdisciplinares?” (BORN, 2010, p. 206). Ponto de partida Minha pesquisa originou-se, na segunda metade dos anos 1980, de uma pergunta de compositor: de que modo as possibilidades de controle da forma e da matéria 9 de uma nota musical oferecidas pelo sintetizador polifônico programável Roland Juno-60 se traduziriam em procedimentos de organização de sons? Na primeira metade dos anos 1980, Willy Corrêa de Oliveira analisava Estudos de Chopin segundo critérios eletroacústicos 10 no Departamento de Música da USP. Ainda assim, minha interrogação não encontrava eco no meio 6 Sobre história do tempo presente, ver Garcia (2003), Lagrou (2003, 2013), Maranhão Filho (2009), Readman (2011) e Droit e Reichherzer (2013); para um estudo exemplar, ver o livro de Rousso (1990). 7 “Existem padrões de co-evolução, ecológicos e estéticos, a ligar o ambiente a padrões sonoros, materiais e situações?” (FELD, 1984, p. 38). Para uma tradução brasileira, ver Feld (2015), que parte de uma discussão entabulada por Lomax (1962). 8 Nomeadamente, Adriana Facina, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ, e Dennis Novaes, doutorando no mesmo programa; ver Facina e Palombini (2017) e Novaes e Palombini (2019). 9 “Imaginemos ser possível ‘parar’ um som para ouvir o que ele é em dado instante de nossa escuta: o que captamos é o que denominaremos sua matéria, complexa, situada na tessitura e nas relações matizadas da contextura sonora. Escutemos agora a história do som: tomamos consciência do desenvolvimento, na duração, do que fora fixado por um instante; de um trajeto que dá forma a essa matéria” (SCHAEFFER, 1966, p. 400). Ver também Chion (1983, p. 116). 10 Procedimento aplicado à Sonata Opus 57 de Beethoven por André Boucourechliev em 1963 e por Oliveira em 1979. 78 acadêmico. Em palestra no Espaço N.O11 em 1979, o compositor Bruno Kiefer (1923-1987),12 professor do Departamento de Música da UFRGS, dizia da música eletroacústica: “Não se usa mais, pois desumaniza a música”.13 Entretanto, o início dos anos 1980 via a popularização de instrumentos eletrônicos. Diferentemente do aparato dos estúdios de emissoras (RTF, WDR, RAI), universidades (Columbia-Princeton) e instituições como o Bell Labs, o GRM e o Ircam,14 acessível a grupos restritos de compositores,15 e diferentemente do Synclavier (1977), do Fairlight CMI (1979) ou da Linn LM-1 (1980), disponíveis para artistas com amplos recursos de produção, em geral vinculados à fonografia corporativa, a Roland TR-808 (1980) e o Roland TB-303 (1981) eram adquiridos, muitas vezes de segunda mão, por jovens, em sua maioria sem treino formal em música, para criarem os primeiros gêneros de música eletrônica dançante: a house e a acid house em Chicago; o electrofunk e o electro em Nova York; e o techno em Detroit (BREWSTER; BROUGHTON, 2000). Essas músicas e sua descendência chegariam ao Rio de Janeiro na forma de discos de vinil para animar um circuito de bailes proletários que se tornaria conhecido por mundo funk (VIANNA, 1988). Elas podem ser consideradas experimentais de acordo com os critérios definidos por Schaeffer no “Livro I” de Traité des objets musicaux; isto é, na medida em que se constroem na prática de um instrumentário novo.16 Artes-relé Em meados dos anos 1970, os manuais de Robin Maconie (1976, p. 98-99) e Michael Nyman (1974, p. 40-41) apresentavam Pierre Schaeffer como o perdedor, técnica e intelectualmente subdotado, da contenda entre musique concrète e elektronische Musik. Em 1986 Macmillan Press lançou, organizada por Simon Emmerson, a primeira coletânea em língua inglesa de artigos sobre estética da música eletroacústica. O segundo, o terceiro e o quarto capítulos consistiam em trabalhos de compositores nascidos ou domiciliados na Inglaterra que remetiam a Traité des objets musicaux em função de suas práticas composicionais, mas não consideravam a diacronia do pensamento de Schaeffer, exposta por Sophie Brunet em 1977. Ele se muda de Estrasburgo para Paris em 1936 a fim de trabalhar na rádio estatal, notoriamente defasada em relação a suas congêneres germânica e britânica (PIERRET, 1969, p. 133). Desde as primeiras décadas da radiodifusão na França (HUC; ROBIN, 1938; DESCAVES, 1962; JEANNENEY, 2001), os temas da arte radiofônica e da fidelidade das transmissões mobilizavam debates em crônicas, artigos e livros de Pierre Cusy e Gabriel Germinet (1926), Paul Deharme (1928, 1930), André Cœuroy (1930), Alex Virot (1930), Éric Sarnette (1934), Carlos 11 Sobre o Centro Alternativo de Cultura Espaço N.O (1979-1999), ver Carvalho (2004). Sobre Bruno Kiefer, ver Mariz (2000, p. 495). 13 Sobre o problema da academização das vanguardas, ver Adorno (1988) e McClary (1989). 14 Para uma etnografia do Ircam, ver Born (1995). 15 O Composers’ Desktop Project teria início em 1986. 16 Sobre a noção de música experimental, ver ainda Schaeffer (1957b). 12 79 Larronde (1936) e Paul Dermée (1938). Em abril de 1938, o “ex-aluno da Escola Politécnica” e “Engenheiro de Correios, Telégrafos e Telefones” (SCHAEFFER, 1938b, p. 322) estreia na seção “Crônica do rádio” da Revue musicale. E se pergunta: “Quais são os recursos reais da radiodifusão? Ela propicia o nascimento de uma arte original? Deve, ao contrário, ser capaz apenas de realizar, à perfeição, a tarefa de mensageira fiel das obras clássicas?” (SCHAEFFER, 1938b, p. 317). Para o autor, A radiodifusão se acha, por assim dizer, “entre dois fogos”. Ela deve ser admiravelmente fiel à música que se incumbe de transmitir, mas, ao mesmo tempo, tanto mais original no exercício de seus próprios meios, tal qual o cinema, por quanto está a ponto de estragar tudo no embaraço extremo em que a colocam essas exigências contraditórias. Na realidade, a única saída é ver as coisas com clareza, lidar frontalmente com a contradição e tomar as duas vias divergentes: uma conduz à eclosão de uma arte propriamente radiofônica, que seria para o som aquilo que o cinema é para a imagem; a outra, embora mais humilde, teria a nobre missão de transmitir da melhor forma possível a música tradicional aos ouvintes do mundo inteiro, e seu único alvo seria não uma perfeição inatingível, mas a mais alta fidelidade realizável. (SCHAEFFER, 1938b, p. 321). A segunda crônica, “Vérités premières”, aparece em junho. O título remete ao ato fundador de sua investigação sobre a escuta: constatar as diferenças perceptivas entre as audições do som direto e do som transmitido por alto-falantes. Essas diferenças são ilustradas por exemplos extraídos da transmissão sinfônica. Uma orquestra ocupa um espaço significativo no palco: os violinos não se mesclam com os trompetes, e o contrabaixo não ocupa o mesmo lugar que a corneta de pistões. Já o alto-falante, caixa inclusa, toma o espaço de um executante, no máximo: no fundo de seu cone exíguo, o contrabaixo e a corneta de pistões coincidem. Ademais, qualquer que seja o número de microfones utilizados, há apenas um aparelho receptor, o que equivale a escutar com um único ouvido.17 Por fim, quando a recebemos em casa, nem os vizinhos nem os aparelhos toleram o volume sonoro e a gama de matizes da orquestra real – do piano mais sutil ao forte mais extremo –, e essa dinâmica é comprimida. Ensaio sobre o rádio e o cinema: estética e técnica das artes-relé, um manuscrito começado em 1941 e abandonado em 1942, tornou-se conhecido através de excertos publicados, primeiro, por Marc Pierret em 1969 (p. 87-96), e depois, por Sophie Brunet em 1977 (p. 19-23), mas só foi dado à luz em 2010. Uma sucessão de infortúnios fez do período em que trabalhou nesse texto o mais nefasto da existência do autor: não bastasse a derrota militar na Batalha da França e o armistício de 22 de junho de 1940, em 19 de junho de 1941 Schaeffer 17 Essas observações são anteriores ao uso generalizado da estereofonia. 80 perde a esposa em circunstâncias dramáticas, e o endurecimento do regime de Vichy, anunciado pelo discurso “Sinto soprar um vento mau” do Marechal Pétain, em 12 de agosto de 1941, leva à liquidação, em março de 1942, da Associação Jeune France, que ele fundara em 22 de novembro de 1940 (CHABROL, 1990; NORD, 2007) e da qual foi afastado em dezembro de 1941. Schaeffer refugia-se em Marselha,18 onde lê,19 faz anotações20 e discursa diante de uma secretária, que lhe datilografa a elocução. O termo arte-relé contrapõe-se ao termo arte direta e pode ter sido tomado da conferência “De l’Enseignement de la poétique au Collège de France”, escrita por Paul Valéry, em fevereiro de 1937: A arte literária, derivada da linguagem e da qual a linguagem por sua vez se ressente, é portanto, entre as artes, aquela em que a convenção desempenha o papel mais importante; em que a memória intervém constantemente, através de cada palavra; que age sobretudo por relé, e não pela sensação direta, e coloca em jogo simultaneamente, e mesmo concorrentemente, as faculdades intelectuais abstratas e as propriedades emotivas e sensitivas. Ela é, de todas as artes, a que envolve e utiliza maior número de partes independentes (som, sentido, formas sintáticas, conceitos, imagens...). (VALÉRY, 1938, p. 13-14). Essa ideia embasa o Quadro 1, extraído do Ensaio (73),21 no qual Schaeffer sumariza as possibilidades e limitações do cinema e do rádio em comparação com a linguagem: Domínio concreto Linguagem Cinema e rádio Expressão 23 22 difícil Domínio abstrato Expressão adequada Sugestão inadequada Sugestão fácil Expressão adequada Expressão impossível Sugestão ilimitada Sugestão lacunar Quadro 1: O cinema e o rádio se comparam à linguagem propriamente dita em função de seus recursos de expressão e sugestão nos domínios concreto e abstrato. 18 Sobre a vida cultural em Marselha durante a ocupação, ver Guiraud (1990). Muitos dos conceitos desenvolvidos em Traité des objets musicaux explicitam suas fontes no Ensaio: as noções de tema e versão (BONALD, 1802, p. 139-140); a noção de concreto (POUCEL, 1940, p. iii); e a de fenomenologia (CLAUDEL, 1904, p. 8; SOURIAU, 1929, p. 163-164). 20 Para uma amostra dessas notas, ver Schaeffer (2010a, p. 173-176). 21 Os números de página correspondem à tradução brasileira. 22 Sobre a noção de concreto, ver Schaeffer (2010a, p. 69, n. 17). 23 O contraste entre “expressão” e “sugestão” deriva das noções de linguagem-signo e linguagemsugestão de Frédéric Paulhan (1929, p. 17-18): “Em determinada sociedade, determinada época, há palavras e frases cujo destino preferencial é exprimir com precisão um fato, transmitir com exatidão uma ideia, uma impressão ou uma imagem, e cuja função deve geralmente parar aí. Outras palavras, outros arranjos de palavras, ao contrário, vão despertar longas séries de impressões, de ideias, de sentimentos e de atos”. 19 81 Por outro lado, em crônica sobre o teatro radiofônico publicada no vespertino L’Intransigeant em primeiro de abril de 1930 e citada no Ensaio (48), Alex Virot utiliza o termo relai24 para se referir a um aparelho de mixagem. O que é um relé? Segundo o Dictionnaire historique de la langue française de Alain Rey (2004, p. 3158), o verbo relayer se aplica “a um satélite de telecomunicações, a uma estação de rádio ou de televisão que retransmite uma emissão do emissor principal a outro emissor”. Rey data essa acepção de 1933. De acordo com o Oxford English Dictionary, o verbo to relay – em parte, um empréstimo do francês, em parte, formado no inglês, por conversão (OUP, 2017) – foi usado desde a segunda metade do século XIX com o sentido de “passar ou retransmitir (sinais telefônicos ou de rádio recebidos de outro local)”. Mas por que Schaeffer escolheria associar o rádio e o cinema a um termo que sublinha a concepção transmissiva que ele contestará? Formada no final do século XIII pela combinação do prefixo re com o verbo picardo, valão e loreno laier (deixar, abandonar), 25 a palavra relaier designou originalmente o ato de “substituir os cães fatigados por cães descansados” na caça equestre. A partir do século XVI, ela foi empregada intransitivamente para “trocar os cães durante a caçada” e, por analogia, “trocar de cavalos”. No século XVII, a construção transitiva assumiu o sentido estendido de “substituir (alguém) num trabalho, numa ocupação” e passou a ser usada também na forma pronominal. Do início do século XV ao início do século XIX, na Grã-Bretanha, o substantivo relay foi utilizado para “um conjunto de cães de caça (e ocasionalmente cavalos) descansados, a postos para assumirem seus papéis na caça a um cervo, em substituição àqueles já cansados”. Do início do século XVII ao último quartel do século XIX, um relé podia ser “um conjunto de cavalos descansados obtido ou mantido de prontidão em vários estágios de uma rota para acelerar a viajem”. No final do século XVII, o termo começou a associar-se a “um conjunto de pessoas escolhidas para se revezarem com outras na execução de certas tarefas”. A partir de meados do século XVIII, um relé podia ser “uma série de veículos designados para cobrir uma rota prescrita (geralmente em sequência)”. Assim, por mais de meio milhar de anos, o substantivo relé foi sinônimo de atividades executadas de modo mais efetivo através da substituição de uma força-tarefa – animal, humana, motiva ou automotiva – exausta por outra nova. No segundo quartel do século XIX, concomitante com a domesticação da eletricidade, ocorre um deslocamento semântico. O novo relé é “um instrumento usado na telegrafia de longa distância a fim de fornecer, a uma corrente elétrica que é muito fraca para influenciar os instrumentos de gravação ou transmitir uma mensagem à distância necessária, a possibilidade de que o faça indiretamente por meio de uma bateria local colocada em contato com essa corrente” (OUP, 2017). Ao invés da substituição de unidades exaustas por outras novas, o ingresso de energia passa a acarretar o reforço de um agente (elétrico) 24 25 A Academia Francesa recomendava a grafia antiga, relai, ainda em 1976 (REY, 2004, p. 3158). Sobre a controvérsia acerca da etimologia e da semântica de laier, ver Rey (2004, p. 3158). 82 por meio de um suprimento extrínseco. No uso atual, um relé se torna “qualquer dispositivo elétrico […] por meio do qual uma corrente ou sinal em um circuito pode abrir ou fechar outro circuito”. No Oxford, o exemplo mais antigo desta acepção data de 1907. Embora esse relé não passe de um botão de ligar e desligar, uma relação com os sentidos anteriores subsiste: o circuito controlador pode afetar um circuito de saída de potência maior que a própria, e isso o habilita a ser considerado uma espécie de amplificador elétrico. Duas propriedades presidem a todos esses sentidos: potenciação e ruptura. Schaeffer define a relação entre artes diretas e artes-relé numa alegoria:26 Vemos assim, nessa corrida em que competem a arte direta, em plena forma, e a arte-relé, em pleno ensaio, várias etapas, que geralmente definem três fases: Primeira fase: o instrumento deforma a Arte. Segunda fase: o instrumento transmite a Arte. Terceira fase: o instrumento informa a Arte. Na primeira fase perdoa-se tudo ao instrumento, porque lhe admiramos a novidade sem levá-lo a sério. Não se tem medo de sua concorrência. Aliás, é tão evidente ser-lhe impossível lutar que lhe admiramos sobretudo a boa vontade. Na segunda fase o instrumento aperfeiçoa-se e, longe de admirar tais aperfeiçoamentos, reclamamos de não ocorrerem com suficiente rapidez, porque é precisamente quando a imagem se assemelha ao modelo que defeitos e deformações aparecem. A arte direta espera ser escrupulosamente servida por esse relé, que poderá fornecer-lhe difusão inimaginável, facilidades inéditas. Pede-se agora ao instrumento não só mais do que ele pode dar, mas também aquilo que, por sua própria natureza, ele não pode dar. Vem por fim uma fase clássica, que o cinema está por atingir, mas da qual o rádio ainda dista bastante. Essa fase torna-se possível pelo conhecimento do instrumento, pela discriminação entre seus limites e suas possibilidades, e também entre seus dois papéis: retransmitir de certo modo o que tínhamos o hábito de ver e ouvir diretamente; exprimir de certo modo o que não tínhamos o hábito de ver e ouvir. (PIERRET, 1969, p. 91-92). O duplo papel do instrumento das artes-relé ilustra a dupla função da reprodução mecanizada de Walter Benjamin: “Por volta de 1900 a reprodução mecanizada havia atingido um estágio tal que não só começava a fazer das obras de arte do passado seu objeto e a transformar assim a ação das mesmas, mas chegava também a uma situação autônoma entre os procedimentos artísticos.” (BENJAMIN, 1936, p. 41). Em 1935, Benjamin enviou cópias de “L’œuvre d’art à l’époque de sa reproduction mécanisée” a bom número de intelectuais parisienses, entre os quais André Malraux (PALMIER, 2006, p. 285), que o mencionou em Londres perante a Associação Internacional dos Escritores em Defesa da Cultura, em 21 26 Citada na redação sintética de 1969. 83 de junho de 1936 (MALRAUX, 1936), antes de citá-lo em “Esquisse d’une psychologie du cinéma”, em 1940: No século XX, pela primeira vez, criaram-se artes inseparáveis de um meio mecânico de expressão; não suscetíveis de 27 reprodução, mas expressamente destinadas à reprodução. Os mais belos desenhos já podem ser reproduzidos de modo satisfatório; certamente ocorrerá o mesmo com as pinturas bem antes do fim do século. Mas nem desenhos nem pinturas foram feitos para serem reproduzidos. Eles constituem em si mesmos seu próprio fim (ver a esse respeito o trabalho notável do senhor Walter Benjamin). (MALRAUX, 1940, p. 71). Schaeffer encontra a ideia de Benjamin no ensaio de Malraux, que ele cita: “essas artes do século XX, cuja natureza é de serem ‘inseparáveis de um meio mecânico de expressão’” (SCHAEFFER, 2010a, p. 32). E nota em seu diário: “artes de reprodução e artes consideradas em si; desenhos e quadros não feitos para serem reproduzidos (cf. Walter Benjamin)”.28 O período em que trabalhou no Ensaio foi de passagens: de Vichy para Paris via Marselha; do luto ao prazer erótico pela mediação da secretária datilógrafa; da radiofonia à pesquisa sobre ruídos pela prática da arte radiofônica; dos movimentos de juventude católica ao cristianismo esotérico pela intercessão de George Gurdjieff (PIERRET, 1969, p. 112-119). Assim, quando Marc Pierret o interroga, em 1969: Seria então exato e judicioso incorporar esse quarto de século de suas experimentações sonoras no tecido de um pensamento de escritor, de filósofo, se o senhor preferir? Em outras palavras, esses longos anos de experiência radiofônica e depois musical devem colocar-se entre as aspas de dois textos: o texto premonitório das Artes-Relé, inacabado, inédito, e o relato definitivo, meditado, publicado, de Traité, vinte e cinco anos depois? (PIERRET, 1969, p. 91). Ele responde: Creio que seja correto dizê-lo. Creio que em ambos os casos a linguagem (entenda-se também sua lógica, o traço que ela forma de um pensamento contínuo, os andaimes que fornece à imaginação, como a equação ao físico) serviu-me de notação e de baliza: voltada para o conhecimento adquirido, de modo a precisar-lhe a problemática; voltada para o desconhecido, de modo a vislumbrar-lhe o plano. (PIERRET, 1969, p. 91). 27 “O filme fornece o exemplo de uma forma de arte cujo caráter é pela primeira vez integralmente determinado por sua reprodutibilidade” (BENJAMIN, 1936, p. 49). 28 Diário, caixa “J3: Fin 41→ 47 après E”, caderno “P 24, P 25, P 26: fin 1941-1945, Occupation”, fascículo “P 24: Journal du Studio d’essai et notes philo et esthétique, janvier 42 à printemps 44”, consultado na residência de Jacqueline Schaeffer; transcrição de Jacqueline Schaeffer. 84 Depois de precisar a problemática do rádio, Schaeffer dedica-se à prática da arte radiofônica na Paris ocupada. Música concreta Em 1948 ele contava oito livros publicados, entre biografia (1934), teatro (1939, 1941, 1946b, 1947a, 1947b, 1948) e ensaio (1946a), e preparava-se para lançar seu primeiro romance (1949). Naquela primavera, a pesquisa sobre ruídos dá início a uma produção musical que terá na infância seu fastígio. Formulada num misto de diário e ensaio, essa pesquisa assume o caráter paradoxal de uma liberação em face da escrita: Há um ano não faço mais que escrever. Tenho vontade de mudar. Sempre se escreve para dizer algo. De repente se descobre que seria necessário escrever para não dizer mais nada. Sou mesmo obrigado, se escrevo, a ser moral ou imoral, cômico ou trágico, simbólico ou naturalista. É aí que me invade a 29 nostalgia da música, que Roger-Ducasse diz amar “porque ela não quer dizer nada”. (SCHAEFFER, 1950, p. 31). “Introduction à la musique concrète” situa-se no tempo e em seu espírito: Convidamos o leitor a partilhar do diário de bordo de um cruzeiro solitário. Solitário quando se trata dessa música que denominamos “concreta” para que etimologia e embriologia coincidam. Bem pouco solitário, de fato, quando se trata de uma atitude, de um procedimento do espírito e de uma tomada de 30 posição diante do evento. O que se passa conosco quanto à música concreta é uma aventura corrente neste semi-século de claridade, neste século de semiclaridade em que metade do quebra-cabeça ainda está toda embaralhada em sua caixa de surpresas. (SCHAEFFER, 1950, p. 30). Há alusão a Igor Stravinsky (31), citação de Jean Roger-Ducasse (31), menção às colaborações de Pierre Billard (41)31 e Jean-Jacques Grunenwald,32 e declaração de independência quanto a John Cage (42), mas os passageiros de além-música embarcam sob anonimato. Desfaçamos de antemão um ledo engano: a música concreta não é a que se faz com sons gravados. Concreto é o 29 Jean Jules Aimable Roger-Ducasse (1873-1954), compositor francês, aluno dileto de Gabriel Fauré e sucessor de Paul Dukas no Conservatório de Paris (1936-1946). 30 Em 19 de maio de 1942, Francis Ponge havia lançado o livro Le Parti pris des choses, sobre o qual Jean-Paul Sartre publicaria um ensaio em 1944. 31 “Pierre Biard” no original (SCHAEFFER, 1950, p. 41), “Pierre Billard” na coletânea de Brunet (1977, p. 50), que possivelmente se refira ao realizador de teatro radiofônico (1921-2012). 32 Compositor, organista e improvisador (1911-1982), foi professor de órgão da Schola Cantorum e do Conservatório de Genebra, autor de trilhas de filmes de André Bresson. 85 que “diz respeito aos sentidos e não ao sentido” (SCHAEFFER, 1950, p. 51).33 Essa escolha corresponde a uma inversão: “ao contrário do procedimento tradicional, que vai da partitura à execução, o procedimento concreto vai do material sonoro à organização” (PIERRET, 1969, p. 51): MÚSICA HABITUAL MÚSICA NOVA (dita abstrata) (dita concreta) — — FASE I. Concepção (mental); FASE III. Composição (material); FASE II. Expressão (notada); FASE II. Esboços (experimentação); FASE I. Materiais (fabricação) FASE III. Execução (instrumental). (do abstrato ao concreto) (do concreto ao abstrato) A “música nova” é também um ato de transgressão do funcionário público: Eu não poderia exagerar a importância dessa transigência que o leva a apoderar-se de três dúzias de objetos para fazer barulho sem a menor justificativa dramática, sem a menor ideia preconcebida, sem a menor esperança. E mais, com o secreto despeito de fazer o que não se deve, de perder seu tempo numa época séria em que o próprio tempo nos é medido. (SCHAEFFER, 1950, p. 32). Embora os Cinco estudos de ruídos (MÂCHE; GORNE, 1980, p. 16-17) decorram, cada um, de um problema de realização, o tema da dissociação entre a percepção de qualidades sonoras e a percepção do evento produtor do som protagoniza o debate no papel de requisito da abstração musical. Nesse processo, a escuta se afirma e problematiza a criação: Por um lado, do momento em que um disco está num prato, uma força mágica me conduz, me obriga a escutá-lo, por monótono que seja. Será que a gente se deixa levar porque estamos envolvidos? Não ignoro o quanto esses discos são maçantes e impossíveis de serem irradiados como tal. Mas sei que são extraordinários para escutar num estado de espírito especial, e sei também que os prefiro em estado bruto ao estado de vaga composição (decomposição) no qual terminei por isolar penosamente oito pseudocompassos de um pseudo-ritmo. Baixo a agulha no início de determinado grupo rítmico. Levantoa bem no fim, encadeio a outro e assim por diante. A 33 Schaeffer retoma uma formulação do Ensaio de 1941-1942: “O uso que faço aqui da palavra ‘concreto’ é necessariamente mais restrito. Ela designa o que diz respeito aos sentidos, e não ao sentido.” (SCHAEFFER, 2010a, p. 69, n. 17). 86 imaginação tem tanta força quando isolamos mentalmente determinado elemento sonoro e nos esforçamos para realizar essa tomada de matéria pela agulha que, na hora, nos deixamos levar. Na realidade, quando se reescuta a frio o composto obtido após longas horas de paciência, não se acha mais que uma fragmentação grosseira de grupos rítmicos rebeldes a qualquer compasso. Você acredita lembrar que o trem bate um três por quatro, um seis por oito. O trem bate seu próprio compasso, perfeitamente definido, mas perfeitamente irracional. O mais monótono dos trens varia sem cessar, jamais toca no compasso. Transforma-se numa sucessão de isótopos singularmente gêmeos. É aí que estaria, para um ouvido exercitado, o prazer musical. Esse prazer consistiria não em fazer o trem tocar no compasso, nos compassos de nossos solfejos elementares, por uma satisfação afinal bem vulgar, mas em aprender a escutar, a amar esse Czerny de um novo gênero, e sem a ajuda de nenhuma melodia, de nenhuma harmonia, desfrutar, em monotonia das mais mecânicas, o jogo de alguns átomos de liberdade, as improvisações imperceptíveis do acaso. Diabolus in mecanica. (SCHAEFFER, 1950, p. 38). Um companheiro incógnito de viagem era Francis Ponge (1899-1988), que, na Argélia, escrevia em 31 de janeiro de 1948: A cada instante do trabalho de expressão, à medida que escrevo, a linguagem reage, propõe suas próprias soluções, incita, suscita ideias, ajuda a formação do poema. Nenhuma palavra é empregada que não seja logo considerada uma pessoa. Que a claridade que ela carrega consigo não seja utilizada; e a sombra que carrega também. Quando aceito uma palavra na saída, quando deixo sair uma palavra, imediatamente devo tratá-la não como um elemento qualquer, um pedaço de madeira, uma peça de quebra-cabeça, mas como um peão ou uma figura, uma pessoa de três dimensões etc., e não posso dispor dela exatamente como bem 34 entenda. (Cf. a frase de Picasso sobre minha poesia). Cada palavra se impõe a mim (e ao poema) em toda a sua espessura, com todas as associações de ideias que comporta (que comportaria se estivesse só sobre fundo escuro). E todavia é necessário transpô-la... (PONGE, 1961, p. 33-34). O excerto integra “My Creative Method”,35 publicado em Zurique em 1949 e em Paris em 1961, já como parte do livro Méthodes, segundo volume de Le Grand Recueil (PONGE, 1999, p. 441-809). Em junho de 1948, “Le Lézard” (PONGE, 34 “O senhor, suas palavras, são como pequenos peões, o senhor sabe, pequenas estatuetas, elas giram e têm várias faces, cada palavra, e se iluminam umas às outras” (PONGE, 1999, p. 684). 35 O título deriva de um artigo de Betty Miller (1947); ver Ponge (1999, p. 1089). 87 1999, p. 745-748), do terceiro volume do Grand Recueil, foi lido numa emissão do mesmo Club d’Essai (PONGE, 1999, p. lxxiii) onde se criava a música concreta. Em 1966 Traité des objets musicaux prestará tributo à escrita de Ponge, da qual Schaeffer dirá: “não obra de autor que tem a dizer, mas trabalho sobre as palavras que terminam por dizer mais que o autor sabia, e por encaminhá-lo a sentidos que ele próprio não reconhece senão em retrospecto” (SCHAEFFER, 1966, p. 658). Tratado As teorizações da música concreta prosseguem numa série de textos dos anos 1950, em particular no livro À la Recherche d’une musique concrète (1952) e nos artigos “Vers une Musique expérimentale” (1957), “Lettre à Albert Richard” (1957) e “Situation actuelle de la musique expérimentale” (1959). Este aparece em volume da Revue musicale que anuncia um Acousmatique, ou traité des objets musicaux, em resposta aos “principais enigmas lançados em 1952 por sua primeira obra” (SCHAEFFER, 1959, p. 72). O autor despendeu quinze anos na elaboração de Traité, “objeto de três, quatro, cinco redações inicialmente informes, aproximativas” (PIERRET, 1969, p. 97). A versão final começa a tomar corpo por volta de 1960.36 Na introdução, “Situação histórica da música”, ele coloca em evidência “três fatos novos” (SCHAEFFER, 1966, p. 16-18) e “os três impasses da musicologia” decorrentes: Um desses impasses é o das noções musicais. Não são apenas a escala e a tonalidade que as músicas mais aventurosas de nossa época, como as mais primitivas, terminam por negar, mas a primeira dessas noções: a de nota musical, arquétipo do objeto musical, fundamento de toda a notação, elemento de toda a estrutura, melódica ou rítmica. Nenhuma teoria e solfejo, nenhuma harmonia, seja atonal, pode dar conta de certa generalidade de objetos musicais, e principalmente daqueles que a maioria das músicas africanas ou asiáticas utilizam. O segundo impasse é o das fontes instrumentais. Afora a inclinação dos musicólogos a referirem os instrumentos arcaicos ou exóticos a nossas normas, eles se viram subitamente desarmados diante das fontes novas de sons concretos ou eletrônicos que – surpresa! – se entendiam às vezes muito bem com instrumentos africanos ou asiáticos. Mais inquietante ainda era a possível desaparição da noção de instrumento. Instrumentos polivalentes ou sintéticos, tais seriam os ornamentos de nossas salas de concerto, a menos que um despojamento total sacramentasse a ausência de qualquer instrumento. Assistiríamos ao desaparecimento da orquestra e do regente, evidentemente ameaçados pelo sumiço das 36 Sophie Brunet, que começara a trabalhar com Schaeffer em 1959, recebe então a oferta de um adiantamento para escrever seu segundo romance (o primeiro seria publicado em 1962) e a rejeita “para obrigar Schaeffer a escrever seu livro” (comunicação verbal de Brunet). 88 partituras, em via de serem substituídas por fitas magnéticas lidas por alto-falantes? O terceiro impasse é o do comentário estético. Em seu conjunto, a abundante literatura devotada às sonatas, aos quartetos e às sinfonias soa oca. Só o hábito nos pode mascarar a pobreza e o caráter bizarro dessas análises. Quando se descartam as considerações complacentes, a montante e a jusante da obra, sobre o estado de espírito do compositor ou do exegeta, fica-se reduzido à mais seca das enumerações, em termos de tecnologia musical, de seus procedimentos de fabricação ou, na melhor das hipóteses, ao estudo de sua sintaxe. Nada, porém, de verdadeira explicação de texto. Quem sabe não haja razão para espanto? Quem sabe a boa música, por ser ela mesma linguagem, e linguagem específica, escape radicalmente de toda 37 descrição e de toda explicação por meio de palavras? Em todo caso, nos limitaremos a reconhecer que o problema é suficientemente importante para não poder camuflar-se, e a dificuldade não foi nem resolutamente confrontada nem claramente tratada. A análise é indubitavelmente severa, mas um dia ou outro necessitaremos tomar ciência do esgotamento musicológico que ela denuncia. Se toda explicação se esquiva, seja ela nocional, instrumental ou estética, mais valeria confessar que, ao fim e ao cabo, não sabemos grande coisa da música. E pior, que o que sabemos é propício a nos desnortear ao invés de orientar-nos. (SCHAEFFER, 1966, p. 19-20). Traité des objets musicaux: essai interdisciplines se organiza num “percurso ziguezagueante em sete saltos denominados ‘livros’” (SCHAEFFER, 1966, p. 11). O primeiro, “Fazer música”, trata da origem do instrumento e de suas relações com o desenvolvimento das linguagens musicais. O segundo, “Ouvir” (entendre), expõe o sistema das “quatro funções da escuta”.38 O terceiro, “Correlações entre sinal físico e objeto musical”, analisa as percepções de altura, duração, intensidade e timbre em suas relações com as mensurações físicas de frequência, tempo, amplitude e espectro para caracterizá-las em termos de anamorfoses (deformações). O quarto, “Objetos e estruturas”, busca referências na filosofia, na fenomenologia, na Gestalt, na linguística, na fonética e na fonologia. O quinto, “Morfologia e tipologia dos objetos sonoros”, e o sexto, “Solfejo dos objetos musicais”, definem as cinco operações do solfejo do objeto sonoro, das quais apenas as duas primeiras – morfologia e tipologia – são efetivamente realizadas. O sétimo, “A música como disciplina”, depõe “a título mais pessoal” (12). 37 38 A esse respeito, ver a abertura do artigo “Le Grain de la voix”, de Roland Barthes (1972). Enganosamente vertidas ao inglês por modes of listening (SCHAEFFER, 2017, p. 80-93). 89 Escutar Schaeffer parte do Dictionnaire de la langue française de Émile Littré para desenvolver a semântica dos verbos ouïr, écouter, entendre e comprendre. Ele dirá mais tarde: Insisti, ao final do Tratado, neste aspecto que praticara anos a 39 fio, um pouco à maneira de Ponge. Não foi a palavra pré ou 40 41 verre d’eau que explorei, mas, graças a Littré, as palavras42 chave: entendre, comprendre, ouïr. Essas palavras, esses seixos gastos pelo uso, serviram-me de laboratório. Que digo eu, de Conselheiros, Ancestrais, Palavras Mestras! (PIERRET, 1969, p. 91). A argumentação se desenvolve em sete etapas. A primeira sintetiza o verbete entendre (LITTRÉ, 1874, p. 1419-1421): Entendre: dirigir seu ouvido a, por onde, receber impressões de 43 sons. Ouvir (entendre) barulho. Ouço (j’entends) falar na peça ao lado, percebo (j’entends) que me dizes novidades. 1. Entendre-écouter: ouvir (entendre) é ser suscetível a sons; escutar é dar ouvidos para ouvi-los (entendre). Às vezes não se ouve (entend), embora se escute, e frequentemente se ouve (entend) sem escutar. 2. Entendre-ouïr: essas duas palavras, muito diferentes na origem, são hoje completamente sinônimas. Ouïr era a palavra correta, pouco a pouco substituída por entendre, que é a figurada. Ouïr é perceber pelo ouvido; entendre é, propriamente, prestar atenção. Só o uso lhe deu o sentido desviado de ouvir. A única diferença é que ouïr tornou-se verbo defectivo de uso restrito. Quando o significado pode ser ambíguo, deve-se empregar ouïr sem hesitação. Assim, neste dito de Pacuvius sobre os astrólogos: Il vaut mieux les ouïr que les écouter (mais 44 vale ouvi-los que escutá-los). Entendre contrariaria o sentido da frase. 3. Etimologicamente: tender a, por onde, ter a intenção, o desígnio. Comment l’entendez vous? (Qual é sua intenção?). 4. Entendre-concevoir-comprendre: entendre e compredre significam captar o sentido. Isso os distingue de concevoir, que significa apreender mentalmente. Entendo ou compreendo esta 39 Cf. “Le Pré”, Nouveau Recueil (PONGE 2002, p. 340-344). Cf. “Le Verre d’eau”, Méthodes (PONGE, 1961, p. 115-173). 41 Sobre a mística do Littré em contraposição ao Robert, ver Ponge (1961, p. 19). 42 Cf. Tcholakian (1989). 43 Toda a vez que “entender” não traduza o entendre de Schaeffer – isto é, na maioria dos casos – o termo francês aparecerá flexionado após a tradução. Sobre a impossibilidade de traduzir o verbo francês no “Livro II” de Traité, ver Palombini (1997). 44 Magis audiendum quam auscultandum censeo, frase de Marcus Pacuvius (220 a.C.-130 a.C.), poeta, dramaturgo e pintor romano, citada por Michel de Montaigne em 1595 (p. 24). 40 90 frase, e não eu a concebo. Ao contrário, no verso de Boileau, Ce qui se conçoit bien s’énonce clairement (o que se concebe bem, 45 enuncia-se claramente), entendre ou comprendre não conviriam. A diferença de matiz entre entendre e comprendre é outra: a ideia de entendre é prestar atenção, ser versado em, ao passo que a de comprendre é tomar para si. Entendo alemão, eu o sei, sou versado nele. “Compreendo alemão” diria menos. (SCHAEFFER, 1966, p. 103-104). Entendre carrega consigo uma ambiguidade fundamental: termo marcado no par oposicional entendre/ouïr (escutar/ouvir), onde significa “prestar atenção”, em contraste com “perceber pelo ouvido”; termo não marcado no par oposicional écouter/entendre (escutar/ouvir), onde significa “ser suscetível a sons”, em contraste com “dar ouvidos para ouvi-los”. A segunda etapa especializa a lexicografia: 1. Écouter é prestar ouvido, interessar-se por. Dirijo-me ativamente a alguém ou a alguma coisa que me é descrita ou indicada por um som. 2. Ouïr é perceber pelo ouvido. Em oposição a escutar, que corresponde à atitude mais ativa, ouço o que me é dado na percepção. 3. De entendre reteremos o sentido etimológico: “ter uma intenção”. O que ouço (j’entends), o que me é manifesto, é função dessa intenção. 4. Compreender, tomar consigo, mantém relação dupla com escutar e ouvir (entendre). Compreendo o que visava em minha escuta graças àquilo que escolhi ouvir (entendre). Mas reciprocamente, o que já compreendi dirige minha escuta, informa o que ouço (j’entends). (SCHAEFFER, 1966, p. 104). A terceira etapa ilustra a lexicografia através de exemplos que delineiam uma fenomenologia. OUVIR Para ser exato, nunca deixo de ouvir. Vivo num mundo que não cessa de estar aí para mim, e esse mundo é sonoro, tanto quanto tátil e visual. Desloco-me numa “ambiência” como numa paisagem. O silêncio mais profundo ainda é um fundo sonoro como outro qualquer, do qual se destacam então, com solenidade inusitada, o ruído de minha respiração e o ruído de meus batimentos cardíacos (cf. relatos de cosmonautas sobre o “silêncio espacial”). O que seria para nós a estranheza de um mundo subitamente privado dessa dimensão, podemos entrevêlo graças a um incidente técnico, quando a faixa sonora de um 45 Ce que l’on conçoit bien s’énonce clairement, Et les mots pour le dire arrivent aisément, versos de Nicolas Boileau (1674, p. 108) no “Chant premier” de L’Art poétique. 91 filme é bruscamente interrompida, ou em certos sonhos. Lembremos o de Baudelaire e sua “móveis maravilhas”, sobre as quais “pairava – terrível novidade – tudo para o olho, nada para 46 o ouvido – um silêncio de eternidade”. Como se o rumor 47 contínuo que impregna até nosso sono se confundisse com o sentimento de nossa própria duração. Nem por isso ouvir é “ser suscetível a sons” que chegariam a meu ouvido sem atingir minha consciência. É de fato em relação a esta que o fundo sonoro adquire realidade. Adapto-me a esse fundo instintivamente, sem me dar conta sequer, ao elevar a voz quando seu nível aumenta. Ele se associa para mim ao espetáculo, aos pensamentos e às ações que acompanhava sem que eu me apercebesse, e às vezes bastará por si só para evocálas. A música de um filme, à qual eu não havia prestado nenhuma atenção, tão absorto estava nas peripécias dramáticas, despertará, quando a escute (entendrai) ao rádio, as emoções que o filme havia provocado, antes mesmo que a tenha identificado formalmente. Sou por fim imediatamente alertado quanto a uma modificação brusca ou inusitada desse fundo sonoro do qual não tinha ciência: sabe-se do caso de pessoas que moram perto de uma estação ferroviária e despertam quando o trem não passa no horário. Mas é verdade ser sempre indiretamente, por reflexão ou memória, que posso tomar conhecimento do fundo sonoro. Escuto (j’entends) soar o relógio de pêndulo. Sei que já soou. Apressado, reconstituo mentalmente as duas primeiras batidas, que havia ouvido, e situo a que escutei (j’ai entendu) como a terceira, ainda antes que soe a quarta. Não houvesse tentado saber a hora, eu ignoraria efetivamente que as duas primeiras haviam chegado à minha consciência. Falam comigo, penso em outra coisa. Meu interlocutor, ofendido, se cala. Escuto (j’entends) esse silêncio de mau agouro. Consigo extrair do fundo sonoro, antes de lá perder-se para sempre, a última metade da frase que ele pronunciara, e com um pouco de sorte consigo dar-lhe a réplica e persuadi-lo de que a distração era apenas aparente. ESCUTAR Suponhamos agora que eu escute esse interlocutor. É dizer que ao mesmo tempo não escuto o som de sua voz. Volto-me para ele submisso a sua intenção de comunicar-me algo, pronto para ouvir (entendre), do que ele oferece a minha audição, somente 46 Et sur ces mouvantes merveilles Planait (terrible nouveauté! Tout pour l’œil, rien pour les oreilles!) Un silence d’éternité, Charles Baudelaire (1975, p. 103), “Rêve parisien”, Les Fleurs du mal (1861), originalmente publicado na Revue contemporaine em 15 de maio de 1860 (BAUDELAIRE, 1975, p. 1040). O poeta explica: “O movimento implica geralmente o ruído, a tal ponto que Pitágoras atribuía uma música às esferas em movimento. Mas o sonho, que separa e decompõe, cria a novidade” (BAUDELAIRE, 1975, p. 1043). 47 Cf. o conhecido excerto sobre os ruídos de Paris na abertura de La Prisonnière, de Marcel Proust (1923, p. 9-10). Sobre a escuta em Proust, ver Reyner (2017). 92 aquilo que tenha valor de indicação semântica. Ele tem um sotaque do Midi que pode ter-me divertido quando o conheci, que noto ainda quando o reencontro depois de algum tempo, mas negligencio agora. (Todavia, quando lembre essa conversa, não intelectualmente, para recapitular os pontos trocados ou extrair-lhes conclusões, mas de modo espontâneo, ao retornar depois ao local onde ocorreu, reencontrarei não apenas as ideias trocadas, mas também aquele sotaque de certo Midi, aquele fraseado particular, aquela voz que reconheço sem hesitação entre outras tantas, a um conjunto de caracteres que não havia cessado pois de ouvir, embora possa ser completamente incapaz de analisá-lo). Escutar, acabamos de ver, não é necessariamente interessar-se por um som. Não é mesmo senão excepcionalmente interessarse por ele, mas, por seu intermédio, visar outra coisa. No limite, chega-se ao ponto de esquecer essa passagem pela audição. Escutar alguém torna-se então praticamente sinônimo de obedecer (“Escuta teu pai!”) ou de dar crédito (assim, Pacuvius recomenda não escutar os astrólogos, mesmo que não possamos dispensar-nos de ouvi-los). Ao escutar o que me dizem, tendo, através das palavras, mas também ao largo de uma formulação talvez imperfeita, às ideias que me esforço para compreender. Escuto um carro. Eu o situo, avalio sua distância, eventualmente reconheço-lhe a marca. Que sei do ruído que me forneceu esse conjunto de informações? A descrição que faria, se solicitado, seria tanto mais pobre quanto mais segura e rapidamente tivesse-me informado. Ao contrário, é precisamente ao ruído do carro que presto ouvido se esse carro é o meu e me parece que o motor “faz um ruído esquisito”. Mas minha escuta permanece utilitária, pois procuro inferir informações quanto ao funcionamento do motor: incerto das causas, forçoso é passar primeiro por uma análise dos efeitos. Posso, finalmente, escutar, como me havia proposto de início, com o objetivo único de ouvir melhor (mieux entendre). Essa análise, que até há pouco se impunha como etapa, torna-se alvo em si mesma. Voltado para o evento, eu aderia a minha percepção, eu a utilizava sem o saber. Agora tomei distância, cesso de utilizá-la, estou desinteressado. Ela pode finalmente aparecer, tornar-se objeto. Escutar assim ainda é visar, através do som, instantâneo ele mesmo, outra coisa que não o som: uma espécie de “natureza sonora” que se dá na íntegra de minha percepção. ENTENDRE Podemos agora definir entendre em relação aos dois verbos precedentes. a) Ouïr-entendre 93 Começo por observar ser-me praticamente impossível não fazer seleção naquilo que ouço. O fundo sonoro não vem primeiro: ele só existe como tal num conjunto organizado onde efetivamente desempenha esse papel. Enquanto esteja ocupado com o que olho, penso ou faço, vivo realmente numa ambiência indiferenciada, sem perceber mais que uma qualidade global. Mas se permaneço imóvel, de olhos fechados, a mente vazia, é bem provável que não mantenha uma escuta imparcial por mais de um instante. Situo os ruídos, separo-os em próximos ou distantes, externos ou internos, e fatalmente começo a privilegiar uns em detrimento de outros. O tique-taque do relógio de pêndulo impõe-se, me obceca, apaga todo o resto. Involuntariamente imprimo-lhe um ritmo: tempo fraco, tempo forte. Incapaz de destruí-lo, tento ao menos substituí-lo. Chego a me perguntar como pude dormir um dia no mesmo quarto que esse relógio irritante. Mas basta um carro frear bruscamente lá fora para que eu esqueça. Pelo que sei agora, meu quarto bem poderia ser uma ilha de silêncio açoitada por rumores externos. Mas escuto (j’entends) baterem à porta; e o conjunto dessas organizações cambiantes mergulha de vez no fundo sonoro enquanto descerro os olhos e me levanto para abri-la. Graças a tais mudanças, pude ao menos inventariar, por fragmentos e por surpresa, o pano de fundo sobre o qual se desenrolavam, e ainda dar-me conta de ser responsável por essas variações intermináveis. Quando minha intenção seja mais firme, a organização correspondente será tanto mais forte, e é aí que, paradoxalmente, terei a impressão de ser-me imposta do exterior. Assim, ao participar de uma conversa familiar entre várias pessoas, passarei de um tema e de um interlocutor a outro sem imaginar por um instante sequer a extravagante confusão de vozes, ruídos e risos a partir da qual realizo uma composição única, diferente daquela que cada um de meus companheiros realiza por conta própria. Para revelá-la, será preciso um registro frequentemente indecifrável, já que o gravador não escolhe nada. b) Écouter-entendre Que acontecerá caso eu, pelo contrário, escute para ouvir (entendre), seja porque ignoro a proveniência do objeto sonoro, o que me obriga a passar por sua descrição, seja porque a quero ignorar e interessar-me exclusivamente por ele? Seria um erro acreditar que ele vá revelar-se a mim com todas as suas qualidades porque o extraí do plano de fundo ao qual o relegara: continuarei a praticar seleções sucessivas, a considerar este ou aquele aspecto, um após outro. Assim, quando olho uma casa, eu a situo na paisagem. Mas se continuar a interessar-me por ela, examinarei ora a cor da pedra, sua matéria, ora a arquitetura, ora o detalhe de uma escultura sobre a porta; logo retornarei à paisagem em função da casa para constatar que esta goza de “uma bela vista”, e a 94 verei de novo em seu conjunto, como o fizera de início, mas minha percepção estará enriquecida de minhas investigações precedentes. Ademais, está quase fora de minhas possibilidades enxergá-la com os mesmos olhos com que enxergaria um rochedo ou uma nuvem. Trata-se de uma casa, de uma obra humana concebida para abrigar humanos. É em função desse sentido que a vejo e aprecio. E minha investigação, bem como minha análise, variarão também a depender de serem meus olhos os de um futuro proprietário, os de um arqueólogo ou os de um esquimó especialista em iglus. Encontraremos no próximo capítulo um tratamento detalhado do processo de escuta qualificada, cuja diversidade decorre de uma lei fundamental da percepção, que é a de proceder por “esboços sucessivos”, sem jamais esgotar o objeto; da multiplicidade de nossos conhecimentos e de nossas experiências anteriores (em função dos quais o objeto imediatamente se apresenta com diferentes sentidos ou significados); e da variedade de nossas intenções de escuta, daquilo ao qual tendemos. Contento-me aqui com um exemplo característico tomado de um romance de Max Frisch, Homo 48 faber. “Todas as manhãs despertava-me um barulho estranho, mescla de fábrica e música, um ruído inexplicável para mim, não muito alto, porém alucinante, como grilos. Devia ser um mecanismo qualquer, mas não consegui identificá-lo e, mais tarde, quando nos encaminhávamos à aldeia, para o desjejum, tudo já emudecera e não se via nada. [...]” “Era domingo quando fizemos as malas [...], e verifiquei que o curioso barulho que me acordara todas as manhãs era música, o tinido de uma antiquada marimba, marteladas sem tonalidades, um horror de música, como que epilética. Tratavase de qualquer festa ligada à lua cheia. Todas as manhãs, antes de trabalharem, tinham ensaiado para acompanhar as danças, cinco índios que golpeavam freneticamente o seu instrumento, uma espécie de xilofone de madeira do comprimento de uma mesa.” As duas descrições evidentemente se correspondem. 49 Alucinação, monotonia e marteladas; ruído e ausência de 50 tonalidades; rumor metálico e golpes de martelo num xilofone. De sua cama, todas as manhãs, depois lá fora, no momento de partir, Walter Faber ouviu praticamente a mesma coisa. 48 Max Rudolf Frisch (1911-1991), escritor e arquiteto suíço. Homo faber foi publicado em Frankfurt em 1957, em Paris em 1961, e no Rio de Janeiro em 1986. Cito da tradução brasileira de Herbert Caro (FRISCH, 1986, p. 52 e 59). 49 O termo “monótono” aparece na versão francesa do primeiro parágrafo citado (SCHAEFFER, 1966, p. 109), mas não na brasileira (FRISCH, 1986, p. 52). 50 A expressão “rumor metálico” aparece na versão francesa do primeiro parágrafo citado (SCHAEFFER, 1966, p. 109), mas não na brasileira (FRISCH, 1986, p. 52). 95 Não diremos o mesmo do que ele escutou (a entendu). No primeiro caso ele escutava (entendait) um ruído cuja causa procurava explicar; no segundo, informado das causas, ele aprecia uma música. O que era apenas “estranho” torna-se de repente “um horror”. A “alucinação”, que no primeiro caso aparecia como simples analogia descritiva (nosso herói não imaginando imputá-la diretamente aos grilos), é percebida com maior intensidade ao revelar-se resultado de frenética atividade instrumental, e torna-se então “como que epilética”. Após conseguir qualificar a escuta, Walter Faber começou a escutar (entendre) e depois a compreender em função de uma significação precisa. COMPREENDER De fato, informado não diretamente pelo objeto sonoro, que permanecia incerto, “mescla de fábrica e música”, mas pelo recurso da vista, ele compreendeu tratar-se de música. Do mesmo modo que o herói de Max Frisch, posso compreender a causa exata do que ouvi (j’ai entendu) ao colocálo em relação com outras percepções, ou através de um conjunto mais ou menos complexo de deduções. Ou ainda, posso compreender, por meio de minha escuta, algo que não tenha senão um vínculo indireto com o que ouço (j’entends): constato simultaneamente que os pássaros se calam, que o céu está baixo, que o calor é sufocante, e compreendo que haverá tempestade. Compreendo ao termo de um trabalho, de uma atividade consciente do espírito, que já não se contenta em acolher um significado, mas abstrai, compara, deduz, relaciona informações de fonte e natureza diversas; trata-se de precisar um significado inicial ou de extrair um significado suplementar. Para a dona de casa, este ruído que lhe chega da sala ao lado e a faz sobressaltar-se está prenhe de sentido: é um ruído de queda ou de quebra. Ela o ouve (l’entend) como tal. Dá-se conta, ademais, de que o filho não está perto, lembra-se de que o vaso de porcelana chinesa foi imprudentemente colocado numa mesa a seu alcance, e compreende facilmente que a criança acaba de quebrá-lo. Escuto e entendo o que me dizem, mas, ao identificar contradições no relato e compará-lo a certos fatos que, aliás, conheço, compreendo também que meu interlocutor mente. De súbito, minha desconfiança atiçada passa a orientar diferentemente minha escuta, e compreendo também hesitações, certas mudanças no timbre da voz, e até “olhares 51 que creríeis mudos”. 51 Conforme a fala de Nero para Júnia na terceira cena do segundo ato do Britannicus, de Jean Racine (1670, p. 27): j’entendrai des regards que vous croirez muets (ouvirei olhares que crereis mudos). 96 Como o último exemplo permite antever, às vezes se emprega indistintamente entender e compreender na acepção em que são sinônimos: captar o sentido. Tal ocorre quando afirmamos indiferentemente que “te compreendo” ou “te entendo”, ou quando nos queixamos de não compreender (ou entender) a música moderna. De fato, em ambos os casos, o ato de compreensão coincide exatamente com a atividade da escuta: todo o trabalho de dedução, comparação e abstração é integrado e ultrapassado bem além do conteúdo imediato, do “dado a entender”. (SCHAEFFER, 1966, p. 104-111). A quarta etapa efetua a terceira síntese lexical: 1. Escuto o que me interessa. 2. Ouço, se não for surdo, o que se passa de sonoro a meu redor, quaisquer que sejam, aliás, minhas atividades e meus interesses. 3. Entendo em função do que me interessa, do que já sei e do que busco compreender. 4. Ao termo do entender, compreendo o que buscava compreender, aquilo em virtude do qual escutava. (SCHAEFFER, 1966, p. 113). A quinta etapa desenvolve essa síntese e generaliza a fenomenologia: 1. O silêncio, supostamente universal, é perturbado por um evento sonoro. Pode ser evento natural (pedra que rola, catavento que guincha) ou emissão voluntária de som por instrumentista. Seja como for, o que escutamos espontaneamente neste nível é a anedota energética traduzida pelo som. 2. Correspondente ao evento objetivo, encontramos no ouvinte o evento subjetivo representado pela percepção bruta do som, ligada em parte a sua natureza física, em parte a leis gerais da percepção, que estamos autorizados a supor, grosso modo, serem as mesmas para todos os seres humanos (como o fazem as descrições dos gestaltistas). 3. Relacionada a experiências passadas, a interesses dominantes, atuais, essa percepção dá lugar a uma seleção e a uma apreciação. Diremos que tenha sido qualificada. 4. As percepções qualificadas orientam-se para uma forma particular de conhecimento, e o sujeito chega finalmente a significados, abstratos em relação ao próprio concreto sonoro. De modo geral, o ouvinte compreende neste nível certa linguagem dos sons. (SCHAEFFER, 1966, p. 114). A sexta etapa desenvolve essa generalização: 97 1. Escuto o evento, procuro identificar a fonte sonora: “O que é? O que aconteceu?”. Não me detenho então no que percebo, dele me sirvo inadvertidamente. Trato o som como um índice que me assinala algo. É certamente o caso mais comum porque corresponde a nossa atitude mais espontânea, ao papel mais primitivo da percepção: prevenir um perigo, guiar uma ação. Essa identificação do evento sonoro com seu contexto causal geralmente é instantânea. Mas é possível também que, se os índices forem incertos, ela só se produza após diversas comparações e deduções. A curiosidade científica, embora coloque em jogo conhecimentos altamente elaborados, persegue um objetivo fundamentalmente semelhante ao da percepção espontânea do evento. 2. Ao contrário, posso voltar-me para essa percepção, que há pouco utilizava, e é diretamente a esse som que endereçarei a pergunta: “O que é?”. Quer dizer que o trato como objeto. É o que denominamos objeto sonoro bruto. (Esse tema será amplamente desenvolvido no livro IV.) Ele é aquilo que permanece idêntico através tanto do “fluxo de impressões” diversas e sucessivas que tenho dele quanto de minhas diferentes intenções a seu respeito. A segunda característica essencial de um objeto percebido é não se apresentar senão por esboços: no objeto sonoro que escuto há sempre mais para ouvir (entendre), ele é uma fonte inexaurível de potencialidades. Assim, a cada repetição de um som gravado, escuto o mesmo objeto: bem que jamais o ouça (entende) igualmente, que ele passe de desconhecido a familiar, que perceba sucessivamente diversos de seus aspectos, que ele não seja pois jamais idêntico, sempre o identifico como este objeto preciso. 3. É igualmente o mesmo objeto sonoro o que escutam diversos ouvintes reunidos em torno de um gravador magnético. Mas eles não ouvem (entendent) todos a mesma coisa, não selecionam e não apreciam igualmente, e na medida em que sua escuta toma assim partido por este ou aquele aspecto particular do som, ela dá lugar a esta ou àquela qualificação do objeto. Essas qualificações variam, como o ouvir (entendre), em função de cada experiência anterior e de cada curiosidade. Todavia, o objeto sonoro único, que torna possível essa multiplicidade de aspectos qualificados do objeto, subsiste na forma, digamos, de um halo de percepções, às quais as qualificações explícitas fazem referência implícita. Desse modo, quando concentro minha percepção qualificada no detalhe de uma casa – janela, escultura acima da porta –, nem por isso a casa está menos presente, e vejo essa janela ou essa escultura como partes dela. 4. Posso, por fim, tratar o som como um signo que me introduz em certo domínio de valores, e posso me interessar por seu sentido. O exemplo mais característico é certamente o da fala. Trata-se aqui de uma escuta semântica, centrada em signos semânticos. Entre as diversas escutas “significantes” possíveis, 98 naturalmente nos interessamos em particular pela escuta musical, que se refere a valores musicais e dá acesso a um sentido musical. Note-se que os valores dos quais falamos são, no limite, destacáveis de seu contexto sonoro, reduzido assim ao papel de suporte. Geralmente concordamos que a comunicação opere uma junção de espíritos. Nessa perspectiva, é natural que, nas duas extremidades do circuito, e notoriamente nesta, a da recepção, se abandone a contingência do veículo sonoro no interesse de seu conteúdo significante. Os valores musicais tradicionais não se excetuam na medida em que os signos da música precedem sua realização sonora. É esta que nos esforçamos por melhorar em vista daqueles, e não o inverso. Eis por que pudemos falar, neste ponto 4, de significações abstratas; neste nível, o abstrato se opõe ao concreto material do nível 1. (SCHAEFFER, 1966, p. 114-117). A sétima etapa apresenta a síntese final: 4. COMPREENDER — para mim: signos — diante de mim: valores (sentido-linguagem) Emergência de um conteúdo do som e referência a noções extrassonoras, confrontação com estas. 1. ESCUTAR — para mim: índices — diante de mim: eventos exteriores (agenteinstrumento) 1 e 4: objetivo Emissão do som. 3. ENTENDRE 2. OUVIR — para mim: percepções qualificadas — diante de mim: objeto sonoro qualificado — para mim: percepções brutas, esboços do objeto — diante de mim: objeto sonoro bruto Seleção de certos aspectos particulares do som. Recepção do som. 3 e 4: abstrato 2 e 3: subjetivo 1 e 2: concreto Esse “caminho de pensamento” (HEIDEGGER, 1997, p. 41; 2001, p. 11) desenha uma espiral de sentido duplo: centrífugo, em desenvolvimentos fenomenológicos que partem de exemplos para generalizações; centrípeto, em sínteses lexicais flexionadas pela fenomenologia. Temos, assim, em sístoles e diástoles sucessivas: (1) síntese lexical; (2) especialização da primeira síntese; (3) desenvolvimento fenomenológico ilustrado; (4) terceira síntese lexical; (5) desenvolvimento da terceira síntese por generalização da fenomenologia; (6) 99 terceiro desenvolvimento; (7) síntese final. Mais tarde, Schaeffer apresentará a versão existencial desse caminho de escuta: Uma criança comunga. Ela se recolhe, faz silêncio, espera alguma coisa surgir de si ou de seu Visitante, coisa nem comum nem excessiva que aumente o sentimento recíproco da presença de mim para Ele e d’Ele para mim. Despojada de palavras, a adoração, antes de ser intenção, geralmente é atenção, mobilização da consciência. Um homem se concentra (como emissários de outras civilizações ensinaram). Sem visitante externo, sem sacramento, sem signo sensível, é ainda um chamado por forças latentes, e também pela presença – daí a parada possível (esperemos), mas improvável, da agitação costumeira, do ruído de fundo da mente e suas infindáveis associações. Não falemos das receitas incertas, dos comentários ociosos, dos mal-entendidos prováveis. Por fim, um ouvinte escuta um som (e não um discurso sonoro de dormir em pé nem uma música para sonhar, dançar, chorar ou sorrir). Colocamos à disposição de sua escuta certo fragmento de som que se repete, ao qual ele se dedica como se fixasse uma luz, uma maçaneta ou a linha do horizonte. Ele não recebe nem Deus nem o fluxo de seu corpo, mas um sinal do mundo exterior cuja imagem sonora se forma em sua consciência. Para considerá-lo, é necessário também prestar atenção e fazer silêncio, e paradoxalmente, para assimilá-lo, é necessário ainda despojar-se de tudo o que até então se sabia dele, descartar os sentidos, os índices e qualquer sugestão relativa ao sinal. Se o reescutarmos agora ou em algumas horas, em alguns dias, mais aprenderemos, não apenas sobre o objeto que consideramos, mas também sobre as faculdades do sujeito que somos, nos observando observar. Exatamente em que consiste o ensinamento? Faço pesquisa musical? Decifro-me a mim mesmo? Vou contar prosa, dizer-me psicólogo, musicólogo, semiólogo? Diante da experiência íntima, do verdadeiro proveito, míseras especialidades. (BRUNET, 1969, p. 211-212). Esses parágrafos sumarizam três grandes períodos da vida de Schaeffer: o dos movimentos de juventude católica, que culminam na experiência de Jeune France no início dos anos 1940; o da “cristandade esotérica” de Gurdjieff, correspondente à primavera da música concreta em 1948; e o da pesquisa musical, associado ao Groupe de Recherches Musicales (GRM) e à criação do Service de la Recherche na passagem dos anos 1950 aos anos 1960. E reencontramos aqui Francis Ponge tal qual Ítalo Calvino o entendia em 1979: Tomar um objeto dos mais humildes, um gesto dos mais quotidianos, e procurar considerá-lo fora de todo o hábito perceptivo, descrevê-lo fora de todo o mecanismo verbal gasto pelo uso. Eis que uma coisa indiferente e quase amorfa como 100 uma porta revela uma riqueza inesperada; ficamos subitamente felizes de encontrar-nos num mundo cheio de portas para abrir e fechar. E isso não por qualquer razão estranha ao fato em si (como o poderia ser uma razão simbólica, ou ideológica ou estetizante), mas apenas porque reestabelecemos uma relação com as coisas como coisas, com a diversidade entre uma coisa e outra, e com a diversidade entra cada coisa e nós. Inadvertidamente descobrimos que existir poderia ser uma experiência muito mais intensa e interessante e verdadeira que o corre-corre distraído no qual nossa mente calejou-se. (CALVINO, 1995, p. 253). Seja na versão lexicográfico-fenomenológica ou na existencial, o objeto sonoro assume aspecto distinto do restritivo-normativo sob o qual costuma apresentar-se nos trabalhos sobre música eletroacústica, vulgarmente definido como “o som em si” (esse oxímoro), sem referência ao evento que o origina nem ao seu significado. O próprio Schaeffer desautoriza essa simplificação: Enquanto reste uma incerteza na percepção quanto ao objeto final da escuta, em qualquer setor que se encontre, a investigação consistirá em colocar em evidência e a referir uns aos outros os objetos “parciais” do conjunto da atividade auditiva; assim, uma série de escutas, ao aprofundar o fenômeno, precisará os resultados simultaneamente nas quatro direções. (SCHAEFFER, 1966, p. 118). Conclusão Essa poética de escuta pode contribuir para dissipar a doxologia do funk carioca ao promover uma limpeza da situação aural. Ela pode contrabalançar o número crescente de estudos históricos, antropológicos, sociológicos, jurídicos, criminológicos, linguísticos e psicológicos sobre o tema ao dirigir o foco da investigação para a forma e a matéria sonoras. E ela permite que se coloquem problemas de história, antropologia, sociologia, direito, criminologia, linguística e psicologia em relação com características de sonoridade, como procurei mostrar em outros trabalhos (CACERES; FERRARI; PALOMBINI, 2014. FACINA; MOUTINHO; NOVAES; PALOMBINI, 2018. PALOMBINI, 2016, 2019). “Meu papel essencial é o de comunicar uma forma de compreender, de sentir e de agir que pode parecer, do exterior, terrivelmente pessoal; na verdade, eu mesmo sou apenas um relé”, diz Schaeffer (apud BRUNET, 1969, p. 19). “Dizes que o alimento, o lugar, o ar e a sociedade te transformam e condicionam? Ora, tanto mais o fazem tuas opiniões, pois são elas que te determinam em tua escolha de alimento, lugar, ar e sociedade”, escreve Nietzsche (2017). “A capacidade que um sistema político tenha para tolerar e recuperar a reformulação de seus mitos fundadores constitui uma função crucial de sua adaptação, e portanto, de sua sobrevivência”, afirma Pieter Lagrou (2013,p. 102). Concluo com a epígrafe de Wittgenstein (1980: 45): “Revolucionário será quem possa revolucionar-se.” 101 Referências ADLER, Guido. Umfang, Methode und Ziel der Musikwissenschaft. Vierteljahrsschrift für Musikwissenschaft, Leipzig, v. 1, p. 5-20, 1885. Disponível em: <http://goo.gl/Mms7nP>. Acesso em: 27 jun. 2017. ADORNO, Theodor. The Aging of the New Music. Tradução de Robert Hullot-Kentor e Frederic Will. Telos: Critical Theory of the Contemporary, Candor (NY), v. 77, p. 95-116, 1988. DOI 10.3817/0988077095. AQUINO, São Tomás de. Quaestiones disputatae de veritate: a quaestione II ad quaestionem IV. Pamplona: Universidade de Navarra, 2017. Disponível em: <http://goo.gl/KWj88q>. Acesso em: 14 jul. 2017. BARTHES, Roland. Le Grain de la voix. Musique en jeu, Paris, v. 9, p. 57-63, 1972. BAUDELAIRE, Charles. Œuvre complètes I. Paris: Gallimard (Pléiade), 1975. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Obras escolhidas I. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. 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Música do tempo presente e intenção de escuta Carlos Palombini * Universidade Federal de Minas Gerais CNPq Revolucionário será quem possa revolucionar-se. (Ludwig Wittgenstein, 1941-1944)1 Refaço, através da exposição diacrônica de excertos sobre a percepção aural escritos por Pierre Schaeffer entre 1938 e 1969, a trajetória que me leva da música eletroacústica ao estudo musical do funk carioca. Ela implica uma pedagogia baseada na reflexão sobre a escuta que poderia tomar para si o antigo moto empirista: nihil est in intellectu quod non sit prius in sensu – na formulação de Tomás de Aquino (2017). Confluem ao funk carioca problemas de nosso tempo: as culturas da diáspora africana nas Américas, a análise da música eletrônica dançante, a história das técnicas de produção musical, as garantias individuais, a segurança pública, a criminalização da pobreza, o racismo estrutural, a financeirização do espaço urbano. E “a massa [ainda] é a matriz onde se engendra hoje a atitude nova frente à obra de arte” (BENJAMIN, 1936, p. 63). Como compreendê-la? Metodologia Embora os termos musicologia e história da música (musicologia histórica) sejam frequentemente empregados como sinônimos, “musicologia” aqui remete a uma prática interdisciplinar cujo ponto de convergência é a música,2 tomada por qualquer coisa de sonoro que se entenda como tal. Um dos componentes dessa interdisciplina é a história – “do tempo presente” não apenas porque as origens da música em questão, o funk carioca, possam ser localizadas na Segunda Guerra Mundial3 ou porque sua referência de análise, a música concreta, date do mesmo período, mas sobretudo porque procura desmascarar “a boa consciência das elites constituídas, em política como na Universidade” (LAGROU, 2013, p. 101).4 O modelo de interdisciplinaridade utilizado é o agonístico/antagonístico descrito por Georgina Born (2010, p. 211): diante dos limites intelectuais, estéticos, éticos ou políticos das disciplinas estabelecidas ou do estatuto da pesquisa acadêmica em geral, colocamo-nos em relação de diálogo autoconsciente, de crítica ou de oposição. Essa musicologia relacional busca abrir “um novo espectro epistemológico e ler as cores que nossos preconceitos haviam previamente apagado” (SERRES, 1980, p. 23-24). Articular historicamente o passado, Walter Benjamin (1985, p. 224) escreve em 1940, não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”, mas apropriar-se de uma reminiscência tal qual relampeia no momento de um perigo. Esse momento é o presente. * Sou grato a Igor Reyner pela leitura e crítica deste ensaio. Conforme a datação de Pichler (1991, p. 26); aforismo publicado em Vermischte Bemerkungen (WITTGENSTEIN, 1977). Exceto quando indicado em rodapé ou nas referências bibliográficas, excertos em língua estrangeira são dados em traduções do autor, mantidos os grifos originais. 2 Assim concebida, a musicologia não deixa de filiar-se, em outro espírito, à Musikwisschenschaft de Guido Adler (1885). Ver Mugglestone e Adler (1981) para contexto histórico e tradução inglesa do artigo de Adler; ver Dudeque (2004) para uma tradução brasileira da tabela de Adler; ver Kerman (1985, p. 11-12) para etimologia e pragmática do termo musicology. 3 Nomeadamente, no rhythm and blues afro-norte-americano (BURNIM; MAULTSBY, 2006, p. 245-269). 4 Sobre história do tempo presente, ver Garcia (2003), Lagrou (2003, 2013), Maranhão Filho (2009), Readman (2011) e Droit e Reichherzer (2013); para um estudo exemplar, ver o livro de Rousso (1990). 1 Se antropologia, relatos orais e etnografia desempenham seus papéis nessa pesquisa, e se um de seus objetivos é estabelecer relações entre morfologia sonora e organização social – pergunta análoga àquela formulada por Steven Feld em 19846 –, por que não a realizar sob o signo da etnomusicologia? Para responder a essa pergunta, abandono a primeira pessoa do plural. Entendo ser mais produtivo desenvolver colaborações com antropólogos comprometidos com pesquisas musicais 7 enquanto mantenho-me no campo da disciplina definida nos termos do parágrafo anterior. Em outras palavras, enquanto mantenho a diferença: “Suprimimos os prazeres agonísticos de continuar diálogos intersubdisciplinares?” (BORN, 2010, p. 206). Ponto de partida Minha pesquisa originou-se, na segunda metade dos anos 1980, de uma pergunta de compositor: de que modo as possibilidades de controle da forma e da matéria8 de uma nota musical oferecidas pelo sintetizador polifônico programável Roland Juno-60 se traduziriam em procedimentos de organização de sons? Na primeira metade dos anos 1980, Willy Corrêa de Oliveira analisava Estudos de Chopin segundo critérios eletroacústicos9 no Departamento de Música da USP. Ainda assim, minha interrogação não encontrava eco no meio acadêmico. Em palestra no Espaço N.O 10 em 1979, o compositor Bruno Kiefer (1923-1987), 11 professor do Departamento de Música da UFRGS, dizia da música eletroacústica: “Não se usa mais, pois desumaniza a música”.12 Entretanto, o início dos anos 1980 via a popularização de instrumentos eletrônicos. Diferentemente do aparato dos estúdios de emissoras (RTF, WDR, RAI), universidades (Columbia-Princeton) e instituições como o Bell Labs, o GRM e o Ircam,13 acessível a grupos restritos de compositores,14 e diferentemente do Synclavier (1977), do Fairlight CMI (1979) ou da Linn LM-1 (1980), disponíveis para artistas com amplos recursos de produção, em geral vinculados à fonografia corporativa, a Roland TR-808 (1980) e o Roland TB-303 (1981) eram adquiridos, muitas vezes de segunda mão, por jovens, em sua maioria sem treino formal em música, para criarem os primeiros gêneros de música eletrônica dançante: a house e a acid house em Chicago; o electrofunk e o electro em Nova York; e o techno em Detroit (BREWSTER; BROUGHTON, 2000). Essas músicas e sua descendência chegariam ao Rio de Janeiro na forma de discos de vinil para animar um circuito de bailes proletários que se tornaria conhecido por mundo funk (VIANNA, 1988). Elas podem ser consideradas experimentais de acordo com os critérios definidos 6 “Existem padrões de co-evolução, ecológicos e estéticos, a ligar o ambiente a padrões sonoros, materiais e situações?” (FELD, 1984, p. 38). Para uma tradução brasileira, ver Feld (2015), que parte de uma discussão entabulada por Lomax (1962). 7 Nomeadamente, Adriana Facina, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ, e Dennis Novaes, doutorando no mesmo programa; ver Facina e Palombini (2017) e Novaes e Palombini (2019). 8 “Imaginemos ser possível ‘parar’ um som para ouvir o que ele é em dado instante de nossa escuta: o que captamos é o que denominaremos sua matéria, complexa, situada na tessitura e nas relações matizadas da contextura sonora. Escutemos agora a história do som: tomamos consciência do desenvolvimento, na duração, do que fora fixado por um instante; de um trajeto que dá forma a essa matéria” (SCHAEFFER, 1966, p. 400). Ver também Chion (1983, p. 116). 9 Procedimento aplicado à Sonata Opus 57 de Beethoven por André Boucourechliev em 1963 e por Oliveira em 1979. 10 Sobre o Centro Alternativo de Cultura Espaço N.O (1979-1999), ver Carvalho (2004). 11 Sobre Bruno Kiefer, ver Mariz (2000, p. 495). 12 Sobre o problema da academização das vanguardas, ver Adorno (1988) e McClary (1989). 13 Para uma etnografia do Ircam, ver Born (1995). 14 O Composers’ Desktop Project teria início em 1986. 2 por Schaeffer no “Livro I” de Traité des objets musicaux; isto é, na medida em que se constroem na prática de um instrumentário novo.15 Artes-relé Em meados dos anos 1970, os manuais de Robin Maconie (1976, p. 98-99) e Michael Nyman (1974, p. 40-41) apresentavam Pierre Schaeffer como o perdedor, técnica e intelectualmente subdotado, da contenda entre musique concrète e elektronische Musik. Em 1986 Macmillan Press lançou, organizada por Simon Emmerson, a primeira coletânea de artigos sobre estética da música eletroacústica em língua inglesa. O segundo, o terceiro e o quarto capítulos consistiam em trabalhos de compositores nascidos ou domiciliados na Inglaterra que remetiam a Traité des objets musicaux em função de suas práticas composicionais, mas não consideravam a diacronia do pensamento de Schaeffer, exposta por Sophie Brunet em 1977. Ele se muda de Estrasburgo para Paris em 1936 a fim de trabalhar na rádio estatal, notoriamente defasada em relação a suas congêneres germânica e britânica (PIERRET, 1969, p. 133). Desde as primeiras décadas da radiodifusão na França (HUC; ROBIN, 1938; DESCAVES, 1962; JEANNENEY, 2001), os temas da arte radiofônica e da fidelidade das transmissões mobilizavam debates em crônicas, artigos e livros de Pierre Cusy e Gabriel Germinet (1926), Paul Deharme (1928, 1930), André Cœuroy (1930), Alex Virot (1930), Éric Sarnette (1934), Carlos Larronde (1936) e Paul Dermée (1938). Em abril de 1938, o “ex-aluno da Escola Politécnica” e “Engenheiro de Correios, Telégrafos e Telefones” (SCHAEFFER, 1938b, p. 322) estreia na seção “Crônica do rádio” da Revue musicale. E se pergunta: “Quais são os recursos reais da radiodifusão? Ela propicia o nascimento de uma arte original? Deve, ao contrário, ser capaz apenas de realizar, à perfeição, a tarefa de mensageira fiel das obras clássicas?” (SCHAEFFER, 1938b, p. 317). Para o autor, A radiodifusão se acha, por assim dizer, “entre dois fogos”. Ela deve ser admiravelmente fiel à música que se incumbe de transmitir, mas, ao mesmo tempo, tanto mais original no exercício de seus próprios meios, tal qual o cinema, porquanto está a ponto de estragar tudo no embaraço extremo em que a colocam essas exigências contraditórias. Na realidade, a única saída é ver as coisas com clareza, lidar frontalmente com a contradição e tomar as duas vias divergentes: uma conduz à eclosão de uma arte propriamente radiofônica, que seria para o som aquilo que o cinema é para a imagem; a outra, embora mais humilde, teria a nobre missão de transmitir da melhor forma possível a música tradicional aos ouvintes do mundo inteiro, e seu único alvo seria não uma perfeição inatingível, mas a mais alta fidelidade realizável. (SCHAEFFER, 1938b, p. 321). A segunda crônica, “Vérités premières”, aparece em junho. O título remete ao ato fundador – daí o título – de sua investigação sobre a escuta: constatar as diferenças perceptivas entre as audições do som direto e do som transmitido por alto-falantes. Essas diferenças são ilustradas por exemplos extraídos da transmissão sinfônica. Uma orquestra ocupa um espaço significativo no palco: os violinos não se mesclam com os trompetes, e o contrabaixo não ocupa o mesmo lugar que a corneta de pistões. Já o alto-falante, caixa inclusa, toma o espaço de um executante, no máximo: no fundo de seu cone exíguo, o contrabaixo e a corneta de pistões coincidem. Ademais, qualquer que seja o número de microfones utilizados, há apenas um aparelho receptor, o que equivale a escutar com um único ouvido. 16 Por fim, quando a recebermos em casa, nem os vizinhos nem os aparelhos toleram o volume sonoro e a gama de matizes da orquestra real – do piano mais sutil ao forte mais extremo –, e essa dinâmica é comprimida. 15 16 Sobre a noção de música experimental, ver ainda Schaeffer (1957b). Essas observações são anteriores ao uso generalizado da estereofonia. 3 Ensaio sobre o rádio e o cinema: estética e técnica das artes-relé, um manuscrito começado em 1941 e abandonado em 1942, tornou-se conhecido através de excertos publicados, primeiro, por Marc Pierret em 1969 (p. 87-96), e depois, por Sophie Brunet em 1977 (p. 19-23), mas só foi dado à luz em 2010. Uma sucessão de infortúnios faz do período em que trabalhou nesse texto o mais nefasto da existência do autor: não bastasse a derrota militar na Batalha da França e o armistício de 22 de junho de 1940, em 19 de junho de 1941 Schaeffer perde a esposa em circunstâncias dramáticas, e o endurecimento do regime de Vichy, anunciado pelo discurso “Sinto soprar um vento mau” do Marechal Pétain, em 12 de agosto de 1941, leva à liquidação, em março de 1942, da Associação Jeune France, que ele fundara em 22 de novembro de 1940 (CHABROL, 1990; NORD, 2007) e da qual foi afastado em dezembro de 1941. Schaeffer refugia-se em Marselha,17 onde lê, 18 faz anotações 19 e discursa diante de uma secretária, que lhe datilografa a elocução. O termo arte-relé contrapõe-se ao termo arte direta e pode ter sido tomado da conferência “De l’Enseignement de la poétique au Collège de France”, escrita por Paul Valéry, em fevereiro de 1937: A arte literária, derivada da linguagem e da qual a linguagem por sua vez se ressente, é portanto, entre as artes, aquela em que a convenção desempenha o papel mais importante; em que a memória intervém constantemente, através de cada palavra; que age sobretudo por relé, e não pela sensação direta, e coloca em jogo simultaneamente, e mesmo concorrentemente, as faculdades intelectuais abstratas e as propriedades emotivas e sensitivas. Ela é, de todas as artes, a que envolve e utiliza maior número de partes independentes (som, sentido, formas sintáticas, conceitos, imagens...). (VALÉRY, 1938, p. 13-14). Essa ideia embasa o quadro 1, extraído do Ensaio (73),22 no qual Schaeffer sumariza as possibilidades e limitações do cinema e do rádio em comparação com a linguagem: Domínio concreto23 Domínio abstrato Linguagem Expressão24 difícil Sugestão inadequada Expressão adequada Sugestão fácil Cinema e rádio Expressão adequada Sugestão ilimitada Expressão impossível Sugestão lacunar Quadro 1 – O cinema e o rádio se comparam à linguagem propriamente dita em função de seus recursos de expressão e sugestão nos domínios concreto e abstrato. Por outro lado, em crônica sobre o teatro radiofônico publicada no vespertino L’Intransigeant em primeiro de abril de 1930 e citada no Ensaio (48), Alex Virot utiliza o termo relai25 para se referir a um aparelho de mixagem. O que é um relé? Segundo o 17 Sobre a vida cultural em Marselha durante a ocupação, ver Guiraud (1990). Muitos dos conceitos desenvolvidos em Traité des objets musicaux explicitam suas fontes no Ensaio: as noções de tema e versão (BONALD, 1802, p. 139-140); a noção de concreto (POUCEL, 1940, p. iii); e a de fenomenologia (CLAUDEL, 1904, p. 8; SOURIAU, 1929, p. 163-164). 19 Para uma amostra dessas notas, ver Schaeffer (2010a, p. 173-176). 22 Os números de página correspondem à tradução brasileira. 23 Sobre a noção de concreto, ver Schaeffer (2010a, p. 69, n. 17). 24 O contraste entre “expressão” e “sugestão” deriva das noções de linguagem-signo e linguagem-sugestão de Frédéric Paulhan (1929, p. 17-18): “Em determinada sociedade, determinada época, há palavras e frases cujo destino preferencial é exprimir com precisão um fato, transmitir com exatidão uma ideia, uma impressão ou uma imagem, e cuja função deve geralmente parar aí. Outras palavras, outros arranjos de palavras, ao contrário, vão despertar longas séries de impressões, de ideias, de sentimentos e de atos”. 25 A Academia Francesa recomendava a grafia antiga, relai, ainda em 1976 (REY, 2004, p. 3158). 18 4 Dictionnaire historique de la langue française de Alain Rey (2004, p. 3158), o verbo relayer se aplica “a um satélite de telecomunicações, a uma estação de rádio ou de televisão que retransmite uma emissão do emissor principal a outro emissor”. Rey data essa acepção de 1933. De acordo com o Oxford English Dictionary, o verbo to relay – em parte, um empréstimo do francês, em parte, formado no inglês, por conversão (OUP, 2017) – foi usado desde a segunda metade do século XIX com o sentido de “passar ou retransmitir (sinais telefônicos ou de rádio recebidos de outro local)”. Mas por que Schaeffer escolheria associar o rádio e o cinema a um termo que sublinha a concepção transmissiva que ele contestará? Formada no final do século XIII pela combinação do prefixo re com o verbo picardo, valão e loreno laier (deixar, abandonar),26 a palavra relaier designou originalmente o ato de “substituir os cães fatigados por cães descansados” na caça equestre. A partir do século XVI, ela foi empregada intransitivamente para “trocar os cães durante a caçada” e, por analogia, “trocar de cavalos”. No século XVII, a construção transitiva assumiu o sentido estendido de “substituir (alguém) num trabalho, numa ocupação” e passou a ser usada também na forma pronominal. Do início do século XV ao início do século XIX, na Grã-Bretanha, o substantivo relay foi utilizado para “um conjunto de cães de caça (e ocasionalmente cavalos) descansados, a postos para assumirem seus papéis na caça a um cervo, em substituição àqueles já cansados”. Do início do século XVII ao último quartel do século XIX, um relé podia ser “um conjunto de cavalos descansados obtido ou mantido de prontidão em vários estágios de uma rota para acelerar a viajem”. No final do século XVII, o termo começou a associar-se a “um conjunto de pessoas escolhidas para se revezarem com outras na execução de certas tarefas”. A partir de meados do século XVIII, um relé podia ser “uma série de veículos designados para cobrir uma rota prescrita (geralmente em sequência)”. Assim, por mais de meio milhar de anos, o substantivo relé foi sinônimo de atividades executadas de modo mais efetivo através da substituição de uma força-tarefa – animal, humana, motiva ou automotiva – exausta por outra nova. No segundo quartel do século XIX, concomitante com a domesticação da eletricidade, ocorre um deslocamento semântico. O novo relé é “um instrumento usado na telegrafia de longa distância a fim de fornecer, a uma corrente elétrica que é muito fraca para influenciar os instrumentos de gravação ou transmitir uma mensagem à distância necessária, a possibilidade de que o faça indiretamente por meio de uma bateria local colocada em contato com essa corrente” (OUP, 2017). Ao invés da substituição de unidades exaustas por outras novas, o ingresso de energia passa a acarretar o reforço de um agente (elétrico) por meio de um suprimento extrínseco. No uso atual, um relé se torna “qualquer dispositivo elétrico […] por meio do qual uma corrente ou sinal em um circuito pode abrir ou fechar outro circuito”. No Oxford, o exemplo mais antigo desta acepção data de 1907. Embora esse relé não passe de um botão de ligar e desligar, uma relação com os sentidos anteriores subsiste: o circuito controlador pode afetar um circuito de saída de potência maior que a própria, e isso o habilita a ser considerado uma espécie de amplificador elétrico. Duas propriedades presidem a todos esses sentidos: potenciação e ruptura. Schaeffer define a relação entre artes diretas e artes-relé numa alegoria:27 Vemos assim, nessa corrida em que competem a arte direta, em plena forma, e a arte-relé, em pleno ensaio, várias etapas, que geralmente definem três fases: Primeira fase: o instrumento deforma a Arte. Segunda fase: o instrumento transmite a Arte. 26 27 Sobre a controvérsia acerca da etimologia e da semântica de laier, ver Rey (2004, p. 3158). Citada na redação sintética de 1969. 5 Terceira fase: o instrumento informa a Arte. Na primeira fase perdoa-se tudo ao instrumento, porque lhe admiramos a novidade sem levá-lo a sério. Não se tem medo de sua concorrência. Aliás, é tão evidente ser-lhe impossível lutar que lhe admiramos sobretudo a boa vontade. Na segunda fase o instrumento aperfeiçoa-se e, longe de admirar tais aperfeiçoamentos, reclamamos de não ocorrerem com suficiente rapidez, porque é precisamente quando a imagem se assemelha ao modelo que defeitos e deformações aparecem. A arte direta espera ser escrupulosamente servida por esse relé, que poderá fornecerlhe difusão inimaginável, facilidades inéditas. Pede-se agora ao instrumento não só mais do que ele pode dar, mas também aquilo que, por sua própria natureza, ele não pode dar. Vem por fim uma fase clássica, que o cinema está por atingir, mas da qual o rádio ainda dista bastante. Essa fase torna-se possível pelo conhecimento do instrumento, pela discriminação entre seus limites e suas possibilidades, e também entre seus dois papéis: retransmitir de certo modo o que tínhamos o hábito de ver e ouvir diretamente; exprimir de certo modo o que não tínhamos o hábito de ver e ouvir. (PIERRET, 1969, p. 91-92). O duplo papel do instrumento das artes-relé ilustra a dupla função da reprodução mecanizada de Walter Benjamin: “Por volta de 1900 a reprodução mecanizada havia atingido um estágio tal que não só começava a fazer das obras de arte do passado seu objeto e a transformar assim a ação das mesmas, mas chegava também a uma situação autônoma entre os procedimentos artísticos.” (BENJAMIN, 1936, p. 41). Em 1935, Benjamin enviou cópias de “L’Œuvre d’art à l’époque de sa reproduction mécanisée” a bom número de intelectuais parisienses, entre os quais André Malraux (PALMIER, 2006, p. 285), que o mencionou em Londres perante a Associação Internacional dos Escritores em Defesa da Cultura, em 21 de junho de 1936 (MALRAUX, 1936), antes de citá-lo em “Esquisse d’une psychologie du cinéma”, em 1940: No século XX, pela primeira vez, criaram-se artes inseparáveis de um meio mecânico de expressão; não suscetíveis de reprodução, mas expressamente destinadas à reprodução.28 Os mais belos desenhos já podem ser reproduzidos de modo satisfatório; certamente ocorrerá o mesmo com as pinturas bem antes do fim do século. Mas nem desenhos nem pinturas foram feitos para serem reproduzidos. Eles constituem em si mesmos seu próprio fim (ver a esse respeito o trabalho notável do senhor Walter Benjamin). (MALRAUX, 1940, p. 71). Schaeffer encontra a ideia de Benjamin no ensaio de Malraux, que ele cita: “essas artes do século XX, cuja natureza é de serem ‘inseparáveis de um meio mecânico de expressão’” (SCHAEFFER, 2010a, p. 32). E nota em seu diário: “artes de reprodução e artes consideradas em si; desenhos e quadros não feitos para serem reproduzidos (cf. Walter Benjamin)”.29 O período em que trabalhou no Ensaio foi de passagens: de Vichy para Paris via Marselha; do luto ao prazer erótico pela mediação da secretária datilógrafa; da radiofonia à pesquisa sobre ruídos pela prática da arte radiofônica; dos movimentos de juventude católica ao cristianismo esotérico pela intercessão de George Gurdjieff (PIERRET, 1969, p. 112-119). Assim, quando Marc Pierret o interroga, em 1969: Seria então exato e judicioso incorporar esse quarto de século de suas experimentações sonoras no tecido de um pensamento de escritor, de filósofo, se o senhor preferir? Em outras palavras, esses longos anos de experiência radiofônica e depois musical devem colocar-se entre as aspas de dois textos: o texto premonitório das Artes-Relé, inacabado, inédito, e o relato definitivo, meditado, publicado, de Traité, vinte e cinco anos depois? (PIERRET, 1969, p. 91). 28 “O filme fornece o exemplo de uma forma de arte cujo caráter é pela primeira vez integralmente determinado por sua reprodutibilidade” (BENJAMIN, 1936, p. 49). 29 Diário, caixa “J3: Fin 41→ 47 après E”, caderno “P 24, P 25, P 26: fin 1941-1945, Occupation”, fascículo “P 24: Journal du Studio d’essai et notes philo et esthétique, janvier 42 à printemps 44”, consultado na residência de Jacqueline Schaeffer; transcrição de Jacqueline Schaeffer. 6 Ele responde: Creio que seja correto dizê-lo. Creio que em ambos os casos a linguagem (entenda-se também sua lógica, o traço que ela forma de um pensamento contínuo, os andaimes que fornece à imaginação, como a equação ao físico) serviu-me de notação e de baliza: voltada para o conhecimento adquirido, de modo a precisar-lhe a problemática; voltada para o desconhecido, de modo a vislumbrar-lhe o plano. (PIERRET, 1969, p. 91). Depois de precisar a problemática do rádio, Schaeffer dedica-se à prática da arte radiofônica na Paris ocupada. Música concreta Em 1948 ele contava oito livros publicados, entre biografia (1934), teatro (1939, 1941, 1946b, 1947a, 1947b, 1948) e ensaio (1946a), e preparava-se para lançar seu primeiro romance (1949). Naquela primavera, a pesquisa sobre ruídos dá início a uma produção musical que terá na infância seu fastígio. Formulada num misto de diário e ensaio, essa pesquisa assume o caráter paradoxal de uma liberação em face da escrita: Há um ano não faço mais que escrever. Tenho vontade de mudar. Sempre se escreve para dizer algo. De repente se descobre que seria necessário escrever para não dizer mais nada. Sou mesmo obrigado, se escrevo, a ser moral ou imoral, cômico ou trágico, simbólico ou naturalista. É aí que me invade a nostalgia da música, que Roger-Ducasse30 diz amar “porque ela não quer dizer nada”. (SCHAEFFER, 1950, p. 31). “Introduction à la musique concrète” situa-se no tempo e em seu espírito: Convidamos o leitor a partilhar do diário de bordo de um cruzeiro solitário. Solitário quando se trata dessa música que denominamos “concreta” para que etimologia e embriologia coincidam. Bem pouco solitário, de fato, quando se trata de uma atitude, de um procedimento do espírito e de uma tomada de posição diante do evento.31 O que se passa conosco quanto à música concreta é uma aventura corrente neste semi-século de claridade, neste século de semiclaridade em que metade do quebra-cabeça ainda está toda embaralhada em sua caixa de surpresas. (SCHAEFFER, 1950, p. 30). Há alusão a Igor Stravinsky (31), citação de Jean Roger-Ducasse (31), menção às colaborações de Pierre Billard (41) 32 e Jean-Jacques Grunenwald, 33 e declaração de independência quanto a John Cage (42), mas os passageiros de além-música embarcam sob anonimato. Desfaçamos de antemão um ledo engano: a música concreta não é a que se faz com sons gravados. Concreto é o que “diz respeito aos sentidos e não ao sentido” (SCHAEFFER, 1950, p. 51).34 Essa escolha corresponde a uma inversão: “ao contrário do procedimento tradicional, que vai da partitura à execução, o procedimento concreto vai do material sonoro à organização” (PIERRET, 1969, p. 51): 30 Jean Jules Aimable Roger-Ducasse (1873-1954), compositor francês, aluno dileto de Gabriel Fauré e sucessor de Paul Dukas no Conservatório de Paris (1936-1946). 31 Em 19 de maio de 1942, Francis Ponge havia lançado o livro Le Parti pris des choses, sobre o qual JeanPaul Sartre publicaria um ensaio em 1944. 32 “Pierre Biard” no original (SCHAEFFER, 1950, p. 41), “Pierre Billard” na coletânea de Brunet (1977, p. 50), que possivelmente se refira ao realizador de teatro radiofônico (1921-2012). 33 Compositor, organista e improvisador (1911-1982), foi professor de órgão da Schola Cantorum e do Conservatório de Genebra, autor de trilhas de filmes de André Bresson. 34 Schaeffer retoma uma formulação do Ensaio de 1941-1942: “O uso que faço aqui da palavra ‘concreto’ é necessariamente mais restrito. Ela designa o que diz respeito aos sentidos, e não ao sentido.” (SCHAEFFER, 2010a, p. 69, n. 17). 7 MÚSICA HABITUAL (dita abstrata) — FASE I. Concepção (mental); FASE II. Expressão (notada); FASE III. Execução (instrumental). (do abstrato ao concreto) MÚSICA NOVA (dita concreta) — FASE III. Composição (material); FASE II. Esboços (experimentação); FASE I. Materiais (fabricação) (do concreto ao abstrato) A “música nova” é também um ato de transgressão do funcionário público: Eu não poderia exagerar a importância dessa transigência que o leva a apoderar-se de três dúzias de objetos para fazer barulho sem a menor justificativa dramática, sem a menor ideia preconcebida, sem a menor esperança. E mais, com o secreto despeito de fazer o que não se deve, de perder seu tempo numa época séria em que o próprio tempo nos é medido. (SCHAEFFER, 1950, p. 32). Embora os Cinco estudos de ruídos (MÂCHE; GORNE, 1980, p. 16-17) decorram, cada um, de um problema de realização, o tema da dissociação entre a percepção de qualidades sonoras e a percepção do evento produtor do som protagoniza o debate no papel de requisito da abstração musical. Nesse processo, a escuta se afirma e problematiza a criação: Por um lado, do momento em que um disco está num prato, uma força mágica me conduz, me obriga a escutá-lo, por monótono que seja. Será que a gente se deixa levar porque estamos envolvidos? Não ignoro o quanto esses discos são maçantes e impossíveis de serem irradiados como tal. Mas sei que são extraordinários para escutar num estado de espírito especial, e sei também que os prefiro em estado bruto ao estado de vaga composição (decomposição) no qual terminei por isolar penosamente oito pseudocompassos de um pseudo-ritmo. Baixo a agulha no início de determinado grupo rítmico. Levanto-a bem no fim, encadeio a outro e assim por diante. A imaginação tem tanta força quando isolamos mentalmente determinado elemento sonoro e nos esforçamos para realizar essa tomada de matéria pela agulha que, na hora, nos deixamos levar. Na realidade, quando se reescuta a frio o composto obtido após longas horas de paciência, não se acha mais que uma fragmentação grosseira de grupos rítmicos rebeldes a qualquer compasso. Você acredita lembrar que o trem bate um três por quatro, um seis por oito. O trem bate seu próprio compasso, perfeitamente definido, mas perfeitamente irracional. O mais monótono dos trens varia sem cessar, jamais toca no compasso. Transforma-se numa sucessão de isótopos singularmente gêmeos. É aí que estaria, para um ouvido exercitado, o prazer musical. Esse prazer consistiria não em fazer o trem tocar no compasso, nos compassos de nossos solfejos elementares, por uma satisfação afinal bem vulgar, mas em aprender a escutar, a amar esse Czerny de um novo gênero, e sem a ajuda de nenhuma melodia, de nenhuma harmonia, desfrutar, em monotonia das mais mecânicas, o jogo de alguns átomos de liberdade, as improvisações imperceptíveis do acaso. Diabolus in mecanica. (SCHAEFFER, 1950, p. 38). Um companheiro incógnito de viagem era Francis Ponge (1899-1988), que, na Argélia, escrevia em 31 de janeiro de 1948: A cada instante do trabalho de expressão, à medida que escrevo, a linguagem reage, propõe suas próprias soluções, incita, suscita ideias, ajuda a formação do poema. Nenhuma palavra é empregada que não seja logo considerada uma pessoa. Que a claridade que ela carrega consigo não seja utilizada; e a sombra que carrega também. Quando aceito uma palavra na saída, quando deixo sair uma palavra, imediatamente devo tratá-la não como um elemento qualquer, um pedaço de madeira, uma peça de quebracabeça, mas como um peão ou uma figura, uma pessoa de três dimensões etc., e não posso dispor dela exatamente como bem entenda. (Cf. a frase de Picasso sobre minha poesia).35 35 “O senhor, suas palavras, são como pequenos peões, o senhor sabe, pequenas estatuetas, elas giram e têm várias faces, cada palavra, e se iluminam umas às outras” (PONGE, 1999, p. 684). 8 Cada palavra se impõe a mim (e ao poema) em toda a sua espessura, com todas as associações de ideias que comporta (que comportaria se estivesse só sobre fundo escuro). E todavia é necessário transpô-la... (PONGE, 1961, p. 33-34). O excerto integra “My Creative Method”,36 publicado em Zurique em 1949 e em Paris em 1961, já como parte do livro Méthodes, segundo volume de Le Grand Recueil (PONGE, 1999, p. 441-809). Em junho de 1948, “Le Lézard” (PONGE, 1999, p. 745-748), do terceiro volume do Grand Recueil, foi lido numa emissão do mesmo Club d’Essai (PONGE, 1999, p. lxxiii) onde se criava a música concreta. Em 1966 Traité des objets musicaux prestará tributo à escrita de Ponge, da qual Schaeffer dirá: “não obra de autor que tem a dizer, mas trabalho sobre as palavras que terminam por dizer mais que o autor sabia, e por encaminhá-lo a sentidos que ele próprio não reconhece senão em retrospecto” (SCHAEFFER, 1966, p. 658). Tratado As teorizações da música concreta prosseguem numa série de textos dos anos 1950, em particular no livro À la recherche d’une musique concrète (1952) e nos artigos “Vers une musique expérimentale” (1957), “Lettre à Albert Richard” (1957) e “Situation actuelle de la musique expérimentale” (1959). Este aparece em volume da Revue musicale que anuncia um Acousmatique, ou traité des objets musicaux, em resposta aos “principais enigmas lançados em 1952 por sua primeira obra” (SCHAEFFER, 1959, p. 72). O autor despendeu quinze anos na elaboração de Traité, “objeto de três, quatro, cinco redações inicialmente informes, aproximativas” (PIERRET, 1969, p. 97). A versão final começa a tomar corpo por volta de 1960. 37 Na introdução, “Situação histórica da música”, ele coloca em evidência “três fatos novos” (SCHAEFFER, 1966, p. 16-18) e “os três impasses da musicologia” decorrentes: Um desses impasses é o das noções musicais. Não são apenas a escala e a tonalidade que as músicas mais aventurosas de nossa época, como as mais primitivas, terminam por negar, mas a primeira dessas noções: a de nota musical, arquétipo do objeto musical, fundamento de toda a notação, elemento de toda a estrutura, melódica ou rítmica. Nenhuma teoria e solfejo, nenhuma harmonia, seja atonal, pode dar conta de certa generalidade de objetos musicais, e principalmente daqueles que a maioria das músicas africanas ou asiáticas utilizam. O segundo impasse é o das fontes instrumentais. Afora a inclinação dos musicólogos a referirem os instrumentos arcaicos ou exóticos a nossas normas, eles se viram subitamente desarmados diante das fontes novas de sons concretos ou eletrônicos que – surpresa! – se entendiam às vezes muito bem com instrumentos africanos ou asiáticos. Mais inquietante ainda era a possível desaparição da noção de instrumento. Instrumentos polivalentes ou sintéticos, tais seriam os ornamentos de nossas salas de concerto, a menos que um despojamento total sacramentasse a ausência de qualquer instrumento. Assistiríamos ao desaparecimento da orquestra e do regente, evidentemente ameaçados pelo sumiço das partituras, em via de serem substituídas por fitas magnéticas lidas por alto-falantes? O terceiro impasse é o do comentário estético. Em seu conjunto, a abundante literatura devotada às sonatas, aos quartetos e às sinfonias soa oca. Só o hábito nos pode mascarar a pobreza e o caráter bizarro dessas análises. Quando se descartam as considerações complacentes, a montante e a jusante da obra, sobre o estado de espírito do compositor ou do exegeta, fica-se reduzido à mais seca das enumerações, em termos de tecnologia musical, de seus procedimentos de fabricação ou, na melhor das hipóteses, ao estudo de sua sintaxe. Nada, porém, de verdadeira explicação de texto. Qem sabe não haja razão para espanto? Quem sabe a boa música, por ser ela mesma linguagem, e linguagem específica, escape radicalmente de toda descrição e de toda 36 O título deriva de um artigo de Betty Miller (1947); ver Ponge (1999, p. 1089). Sophie Brunet, que começara a trabalhar com Schaeffer em 1959, recebe então a oferta de um adiantamento para escrever seu segundo romance (o primeiro seria publicado em 1962) e a rejeita “para obrigar Schaeffer a escrever seu livro” (comunicação verbal de Brunet). 37 9 explicação por meio de palavras?38 Em todo caso, nos limitaremos a reconhecer que o problema é suficientemente importante para não poder camuflar-se, e a dificuldade não foi nem resolutamente confrontada nem claramente tratada. A análise é indubitavelmente severa, mas um dia ou outro necessitaremos tomar ciência do esgotamento musicológico que ela denuncia. Se toda explicação se esquiva, seja ela nocional, instrumental ou estética, mais valeria confessar que, ao fim e ao cabo, não sabemos grande coisa da música. E pior, que o que sabemos é propício a nos desnortear ao invés de orientar-nos. (SCHAEFFER, 1966, p. 19-20). Traité des objets musicaux: essai interdisciplines se organiza num “percurso ziguezagueante em sete saltos denominados ‘livros’” (SCHAEFFER, 1966, p. 11). O primeiro, “Fazer música”, trata da origem do instrumento e de suas relações com o desenvolvimento das linguagens musicais. O segundo, “Ouvir” (entendre), expõe o sistema das “quatro funções da escuta”. 39 O terceiro, “Correlações entre sinal físico e objeto musical”, analisa as percepções de altura, duração, intensidade e timbre em suas relações com as mensurações físicas de frequência, tempo, amplitude e espectro para caracterizálas em termos de anamorfoses (deformações). O quarto, “Objetos e estruturas”, busca referências na filosofia, na fenomenologia, na Gestalt, na linguística, na fonética e na fonologia. O quinto, “Morfologia e tipologia dos objetos sonoros”, e o sexto, “Solfejo dos objetos musicais”, definem as cinco operações do solfejo do objeto sonoro, das quais apenas as duas primeiras – morfologia e tipologia – são efetivamente realizadas. O sétimo, “A música como disciplina”, depõe “a título mais pessoal” (12). Escutar Schaeffer parte do Dictionnaire de la langue française de Émile Littré para desenvolver a semântica dos verbos ouïr, écouter, entendre e comprendre. Ele dirá mais tarde: Insisti, ao final do Tratado, neste aspecto que praticara anos a fio, um pouco à maneira de Ponge. Não foi a palavra pré 40 ou verre d’eau 41 que explorei, mas, graças a Littré, 42 as palavras-chave: entendre, comprendre, ouïr. Essas palavras, esses seixos43 gastos pelo uso, serviram-me de laboratório. Que digo eu, de Conselheiros, Ancestrais, Palavras Mestras! (PIERRET, 1969, p. 91). A argumentação se desenvolve em sete etapas. A primeira sintetiza o verbete entendre (LITTRÉ, 1874, p. 1419-1421): Entendre: dirigir seu ouvido a, por onde, receber impressões de sons. Ouvir (entendre)44 barulho. Ouço (j’entends) falar na peça ao lado, percebo (j’entends) que me dizes novidades. 1. Entendre-écouter: ouvir (entendre) é ser suscetível a sons; escutar é dar ouvidos para ouvilos (entendre). Às vezes não se ouve (entend), embora se escute, e frequentemente se ouve (entend) sem escutar. 2. Entendre-ouïr: essas duas palavras, muito diferentes na origem, são hoje completamente sinônimas. Ouïr era a palavra correta, pouco a pouco substituída por entendre, que é a figurada. Ouïr é perceber pelo ouvido; entendre é, propriamente, prestar atenção. Só o uso lhe deu o sentido desviado de ouvir. A única diferença é que ouïr tornou-se verbo defectivo de uso restrito. Quando o significado pode ser ambíguo, deve-se empregar ouïr sem hesitação. Assim, neste dito de 38 A esse respeito, ver a abertura do artigo “Le Grain de la voix”, de Roland Barthes (1972). Enganosamente vertidas ao inglês por modes of listening (SCHAEFFER, 2017, p. 80-93). 40 Cf. “Le Pré”, Nouveau Recueil (PONGE 2002, p. 340-344). 41 Cf. “Le Verre d’eau”, Méthodes (PONGE, 1961, p. 115-173). 42 Sobre a mística do Littré em contraposição ao Robert, ver Ponge (1961, p. 19). 43 Cf. Tcholakian (1989). 44 Toda a vez que “entender” não traduza o entendre de Schaeffer – isto é, na maioria dos casos – o termo francês aparecerá flexionado após a tradução. Sobre a impossibilidade de traduzir o verbo francês no “Livro II” de Traité, ver Palombini (1997). 39 10 Pacuvius sobre os astrólogos: Il vaut mieux les ouïr que les écouter (mais vale ouvi-los que escutá-los).45 Entendre contrariaria o sentido da frase. 3. Etimologicamente: tender a, por onde, ter a intenção, o desígnio. Comment l’entendez vous? (Qual é sua intenção?). 4. Entendre-concevoir-comprendre: entendre e compredre significam captar o sentido. Isso os distingue de concevoir, que significa apreender mentalmente. Entendo ou compreendo esta frase, e não eu a concebo. Ao contrário, no verso de Boileau, Ce qui se conçoit bien s’énonce clairement46 (o que se concebe bem, enuncia-se claramente), entendre ou comprendre não conviriam. A diferença de matiz entre entendre e comprendre é outra: a ideia de entendre é prestar atenção, ser versado em, ao passo que a de comprendre é tomar para si. Entendo alemão, eu o sei, sou versado nele. “Compreendo alemão” diria menos. (SCHAEFFER, 1966, p. 103-104). Entendre carrega consigo uma ambiguidade fundamental: termo marcado no par oposicional entendre/ouïr (escutar/ouvir), onde significa “prestar atenção”, em contraste com “perceber pelo ouvido”; termo não marcado no par oposicional écouter/entendre (escutar/ouvir), onde significa “ser suscetível a sons”, em contraste com “dar ouvidos para ouvi-los”. A segunda etapa especializa a lexicografia: 1. Écouter é prestar ouvido, interessar-se por. Dirijo-me ativamente a alguém ou a alguma coisa que me é descrita ou indicada por um som. 2. Ouïr é perceber pelo ouvido. Em oposição a escutar, que corresponde à atitude mais ativa, ouço o que me é dado na percepção. 3. De entendre reteremos o sentido etimológico: “ter uma intenção”. O que ouço (j’entends), o que me é manifesto, é função dessa intenção. 4. Compreender, tomar consigo, mantém relação dupla com escutar e ouvir (entendre). Compreendo o que visava em minha escuta graças àquilo que escolhi ouvir (entendre). Mas reciprocamente, o que já compreendi dirige minha escuta, informa o que ouço (j’entends). (SCHAEFFER, 1966, p. 104). A terceira etapa ilustra a lexicografia através de exemplos que delineiam uma fenomenologia. OUVIR Para ser exato, nunca deixo de ouvir. Vivo num mundo que não cessa de estar aí para mim, e esse mundo é sonoro, tanto quanto tátil e visual. Desloco-me numa “ambiência” como numa paisagem. O silêncio mais profundo é ainda um fundo sonoro como outro qualquer, do qual se destacam então, com solenidade inusitada, o ruído de minha respiração e o ruído de meus batimentos cardíacos (cf. relatos de cosmonautas sobre o “silêncio espacial”). O que seria para nós a estranheza de um mundo subitamente privado dessa dimensão, podemos entrevê-lo graças a um incidente técnico, quando a faixa sonora de um filme é bruscamente interrompida, ou em certos sonhos. Lembremos o de Baudelaire e sua “móveis maravilhas”, sobre as quais “pairava – terrível novidade – tudo para o olho, nada para o ouvido – um silêncio de eternidade”.47 Como se o rumor contínuo que impregna até nosso sono 48 se confundisse com o sentimento de nossa própria duração. Nem por isso ouvir é “ser suscetível a sons” que chegariam a meu ouvido sem atingir minha consciência. É de fato em relação a esta que o fundo sonoro adquire realidade. Adapto-me a esse fundo instintivamente, sem me dar conta sequer, ao elevar a voz quando seu nível aumenta. 45 Magis audiendum quam auscultandum censeo, frase de Marcus Pacuvius (220 a.C.-130 a.C.), poeta, dramaturgo e pintor romano, citada por Michel de Montaigne em 1595 (p. 24). 46 Ce que l’on conçoit bien s’énonce clairement, Et les mots pour le dire arrivent aisément, versos de Nicolas Boileau (1674, p. 108) no “Chant premier” de L’Art poétique. 47 Et sur ces mouvantes merveilles Planait (terrible nouveauté! Tout pour l’œil, rien pour les oreilles!) Un silence d’éternité, Charles Baudelaire (1975, p. 103), “Rêve parisien”, Les Fleurs du mal (1861), originalmente publicado na Revue contemporaine em 15 de maio de 1860 (BAUDELAIRE, 1975, p. 1040). O poeta explica: “O movimento implica geralmente o ruído, a tal ponto que Pitágoras atribuía uma música às esferas em movimento. Mas o sonho, que separa e decompõe, cria a novidade” (BAUDELAIRE, 1975, p. 1043). 48 Cf. o conhecido excerto sobre os ruídos de Paris na abertura de La Prisonnière, de Marcel Proust (1923, p. 9-10). Sobre a escuta em Proust, ver Reyner (2017). 11 Ele se associa para mim ao espetáculo, aos pensamentos e às ações que acompanhava sem que eu me apercebesse, e às vezes bastará por si só para evocá-las. A música de um filme, à qual eu não havia prestado nenhuma atenção, tão absorto estava nas peripécias dramáticas, despertará, quando a escute (entendrai) ao rádio, as emoções que o filme havia provocado, antes mesmo que a tenha identificado formalmente. Sou por fim imediatamente alertado quanto a uma modificação brusca ou inusitada desse fundo sonoro do qual não tinha ciência: sabe-se do caso de pessoas que moram perto de uma estação ferroviária e despertam quando o trem não passa no horário. Mas é verdade ser sempre indiretamente, por reflexão ou memória, que posso tomar conhecimento do fundo sonoro. Escuto (j’entends) soar o relógio de pêndulo. Sei que já soou. Apressado, reconstituo mentalmente as duas primeiras batidas, que havia ouvido, e situo a que escutei (j’ai entendu) como a terceira, ainda antes que soe a quarta. Não houvesse tentado saber a hora, eu ignoraria efetivamente que as duas primeiras haviam chegado à minha consciência. Falam comigo, penso em outra coisa. Meu interlocutor, ofendido, se cala. Escuto (j’entends) esse silêncio de mau agouro. Consigo extrair do fundo sonoro, antes de lá perder-se para sempre, a última metade da frase que ele pronunciara, e com um pouco de sorte consigo dar-lhe a réplica e persuadi-lo de que a distração era apenas aparente. ESCUTAR Suponhamos agora que eu escute esse interlocutor. É dizer que ao mesmo tempo não escuto o som de sua voz. Volto-me para ele submisso a sua intenção de comunicar-me algo, pronto para ouvir (entendre), do que ele oferece a minha audição, somente aquilo que tenha valor de indicação semântica. Ele tem um sotaque do Midi que pode ter-me divertido quando o conheci, que noto ainda quando o reencontro depois de algum tempo, mas negligencio agora. (Todavia, quando lembre essa conversa, não intelectualmente, para recapitular os pontos trocados ou extrair-lhes conclusões, mas de modo espontâneo, ao retornar depois ao local onde ocorreu, reencontrarei não apenas as ideias trocadas, mas também aquele sotaque de certo Midi, aquele fraseado particular, aquela voz que reconheço sem hesitação entre outras tantas, a um conjunto de caracteres que não havia cessado pois de ouvir, embora possa ser completamente incapaz de analisá-lo). Escutar, acabamos de ver, não é necessariamente interessar-se por um som. Não é mesmo senão excepcionalmente interessar-se por ele, mas, por seu intermédio, visar outra coisa. No limite, chega-se ao ponto de esquecer essa passagem pela audição. Escutar alguém torna-se então praticamente sinônimo de obedecer (“Escuta teu pai!”) ou de dar crédito (assim, Pacuvius recomenda não escutar os astrólogos, mesmo que não possamos dispensar-nos de ouvilos). Ao escutar o que me dizem, tendo, através das palavras, mas também ao largo de uma formulação talvez imperfeita, às ideias que me esforço para compreender. Escuto um carro. Eu o situo, avalio sua distância, eventualmente reconheço-lhe a marca. Que sei do ruído que me forneceu esse conjunto de informações? A descrição que dele faria, se solicitado, seria tanto mais pobre quanto mais segura e rapidamente tenha-me informado. Ao contrário, é precisamente ao ruído do carro que presto ouvido se esse carro é o meu e me parece que o motor “faz um ruído esquisito”. Mas minha escuta permanece utilitária, pois procuro inferir informações quanto ao funcionamento do motor: incerto das causas, forçoso é passar primeiro por uma análise dos efeitos. Posso, finalmente, escutar, como me havia proposto de início, com o objetivo único de ouvir melhor (mieux entendre). Essa análise, que até há pouco se impunha como etapa, torna-se alvo em si mesma. Voltado para o evento, eu aderia a minha percepção, eu a utilizava sem o saber. Agora tomei distância, cesso de utilizá-la, estou desinteressado. Ela pode finalmente aparecer, tornarse objeto. Escutar assim ainda é visar, através do som, instantâneo ele mesmo, outra coisa que não o som: uma espécie de “natureza sonora” que se dá na íntegra de minha percepção. ENTENDRE Podemos agora definir entendre em relação aos dois verbos precedentes. a) Ouïr-entendre Começo por observar ser-me praticamente impossível não fazer seleção naquilo que ouço. O fundo sonoro não vem primeiro: ele só existe como tal num conjunto organizado onde efetivamente desempenha esse papel. Enquanto esteja ocupado com o que olho, penso ou faço, vivo realmente numa ambiência indiferenciada, sem perceber mais que uma qualidade global. Mas se permaneço imóvel, de olhos fechados, a mente vazia, é bem provável que não mantenha uma escuta imparcial por mais de um instante. Situo os ruídos, separo-os em próximos ou distantes, externos ou internos, e fatalmente começo a privilegiar uns em detrimento de outros. O tiquetaque do relógio de pêndulo impõe-se, me obceca, apaga todo o resto. Involuntariamente 12 imprimo-lhe um ritmo: tempo fraco, tempo forte. Incapaz de destruí-lo, tento ao menos substituílo. Chego a me perguntar como pude dormir um dia no mesmo quarto que esse relógio irritante. Mas basta um carro frear bruscamente lá fora para que eu esqueça. Pelo que sei agora, meu quarto bem poderia ser uma ilha de silêncio açoitada por rumores externos. Mas escuto (j’entends) baterem à porta; e o conjunto dessas organizações cambiantes mergulha de vez no fundo sonoro enquanto descerro os olhos e me levanto para abri-la. Graças a tais mudanças, pude ao menos inventariar, por fragmentos e por surpresa, o pano de fundo sobre o qual se desenrolavam, e ainda dar-me conta de ser responsável por essas variações intermináveis. Quando minha intenção seja mais firme, a organização correspondente será tanto mais forte, e é aí que, paradoxalmente, terei a impressão de que se imponha do exterior. Assim, ao participar de uma conversa familiar entre várias pessoas, passarei de um tema e de um interlocutor a outro sem imaginar por um instante sequer a extravagante confusão de vozes, ruídos e risos a partir da qual realizo uma composição única, diferente daquela que cada um de meus companheiros realiza por conta própria. Para revelá-la, será preciso um registro frequentemente indecifrável, já que o gravador não escolhe nada. b) Écouter-entendre Que acontecerá caso eu, pelo contrário, escute para ouvir (entendre), seja porque ignoro a proveniência do objeto sonoro, o que me obriga a passar por sua descrição, seja porque a quero ignorar e interessar-me exclusivamente por ele? Seria um erro acreditar que ele vá revelar-se a mim com todas as suas qualidades porque o extraí do plano de fundo ao qual o relegara: continuarei a praticar seleções sucessivas, a considerar este ou aquele aspecto, um após outro. Assim, quando olho uma casa, eu a situo na paisagem. Mas se continuar a interessar-me por ela, examinarei ora a cor da pedra, sua matéria, ora a arquitetura, ora o detalhe de uma escultura sobre a porta; logo retornarei à paisagem em função da casa para constatar que esta goza de “uma bela vista”, e a verei de novo em seu conjunto, como o fizera de início, mas minha percepção estará enriquecida de minhas investigações precedentes. Ademais, está quase fora de minhas possibilidades enxergá-la com os mesmos olhos com que enxergaria um rochedo ou uma nuvem. Trata-se de uma casa, de uma obra humana concebida para abrigar humanos. É em função desse sentido que a vejo e aprecio. E minha investigação, bem como minha análise, variarão também a depender de serem meus olhos os de um futuro proprietário, os de um arqueólogo ou os de um esquimó especialista em iglus. Encontraremos no próximo capítulo um tratamento detalhado do processo de escuta qualificada, cuja diversidade decorre de uma lei fundamental da percepção, que é a de proceder por “esboços sucessivos”, sem jamais esgotar o objeto; da multiplicidade de nossos conhecimentos e de nossas experiências anteriores (em função dos quais o objeto imediatamente se apresenta com diferentes sentidos ou significados); e da variedade de nossas intenções de escuta, daquilo ao qual tendemos. Contento-me aqui com um exemplo característico tomado de um romance de Max Frisch, Homo faber.49 “Todas as manhãs despertava-me um barulho estranho, mescla de fábrica e música, um ruído inexplicável para mim, não muito alto, porém alucinante, como grilos. Devia ser um mecanismo qualquer, mas não consegui identificá-lo e, mais tarde, quando nos encaminhávamos à aldeia, para o desjejum, tudo já emudecera e não se via nada. [...]” “Era domingo quando fizemos as malas [...], e verifiquei que o curioso barulho que me acordara todas as manhãs era música, o tinido de uma antiquada marimba, marteladas sem tonalidades, um horror de música, como que epilética. Tratava-se de qualquer festa ligada à lua cheia. Todas as manhãs, antes de trabalharem, tinham ensaiado para acompanhar as danças, cinco índios que golpeavam freneticamente o seu instrumento, uma espécie de xilofone de madeira do comprimento de uma mesa.” As duas descrições evidentemente se correspondem. Alucinação, monotonia 50 e marteladas; ruído e ausência de tonalidades; rumor metálico51 e golpes de martelo num xilofone. 49 Max Rudolf Frisch (1911-1991), escritor e arquiteto suíço. Homo faber foi publicado em Frankfurt em 1957, em Paris em 1961, e no Rio de Janeiro em 1986. Cito da tradução brasileira de Herbert Caro (FRISCH, 1986, p. 52 e 59). 50 O termo “monótono” aparece na versão francesa do primeiro parágrafo citado (SCHAEFFER, 1966, p. 109), mas não na brasileira (FRISCH, 1986, p. 52). 51 A expressão “rumor metálico” aparece na versão francesa do primeiro parágrafo citado (SCHAEFFER, 1966, p. 109), mas não na brasileira (FRISCH, 1986, p. 52). 13 De sua cama, todas as manhãs, depois lá fora, no momento de partir, Walter Faber ouviu praticamente a mesma coisa. Não diremos o mesmo do que ele escutou (a entendu). No primeiro caso ele escutava (entendait) um ruído cuja causa procurava explicar; no segundo, informado das causas, ele aprecia uma música. O que era apenas “estranho” torna-se de repente “um horror”. A “alucinação”, que no primeiro caso aparecia como simples analogia descritiva (nosso herói não imaginando imputá-la diretamente aos grilos), é percebida com maior intensidade ao revelar-se resultado de frenética atividade instrumental, e torna-se então “como que epilética”. Após conseguir qualificar a escuta, Walter Faber começou a escutar (entendre) e depois a compreender em função de uma significação precisa. COMPREENDER De fato, informado não diretamente pelo objeto sonoro, que permanecia incerto, “mescla de fábrica e música”, mas pelo recurso da vista, ele compreendeu tratar-se de música. Do mesmo modo que o herói de Max Frisch, posso compreender a causa exata do que ouvi (j’ai entendu) ao colocá-lo em relação com outras percepções, ou através de um conjunto mais ou menos complexo de deduções. Ou ainda, posso compreender, por meio de minha escuta, algo que não tenha senão um vínculo indireto com o que ouço (j’entends): constato simultaneamente que os pássaros se calam, que o céu está baixo, que o calor é sufocante, e compreendo que haverá tempestade. Compreendo ao termo de um trabalho, de uma atividade consciente do espírito, que já não se contenta em acolher um significado, mas abstrai, compara, deduz, relaciona informações de fonte e natureza diversas; trata-se de precisar um significado inicial ou de extrair um significado suplementar. Para a dona de casa, este ruído que lhe chega da sala ao lado e a faz sobressaltar-se está prenhe de sentido: é um ruído de queda ou de quebra. Ela o ouve (l’entend) como tal. Dá-se conta, ademais, de que o filho não está perto, lembra-se de que o vaso de porcelana chinesa foi imprudentemente colocado numa mesa a seu alcance, e compreende facilmente que a criança acaba de quebrá-lo. Escuto e entendo o que me dizem, mas, ao identificar contradições no relato e comparálo a certos fatos que, aliás, conheço, compreendo também que meu interlocutor mente. De súbito, minha desconfiança atiçada passa a orientar diferentemente minha escuta, e compreendo também hesitações, certas mudanças no timbre da voz, e até “olhares que creríeis mudos”.52 Como o último exemplo permite antever, às vezes se emprega indistintamente entender e compreender na acepção em que são sinônimos: captar o sentido. Tal ocorre quando afirmamos indiferentemente que “te compreendo” ou “te entendo”, ou quando nos queixamos de não compreender (ou entender) a música moderna. De fato, em ambos os casos, o ato de compreensão coincide exatamente com a atividade da escuta: todo o trabalho de dedução, comparação e abstração é integrado e ultrapassado bem além do conteúdo imediato, do “dado a entender”. (SCHAEFFER, 1966, p. 104-111). A quarta etapa efetua a terceira síntese lexical: 1. Escuto o que me interessa. 2. Ouço, se não for surdo, o que se passa de sonoro a meu redor, quaisquer que sejam, aliás, minhas atividades e meus interesses. 3. Entendo em função do que me interessa, do que já sei e do que busco compreender. 4. Ao termo do entender, compreendo o que buscava compreender, aquilo em virtude do qual escutava. (SCHAEFFER, 1966, p. 113). A quinta etapa desenvolve essa síntese e generaliza a fenomenologia: 1. O silêncio, supostamente universal, é perturbado por um evento sonoro. Pode ser evento natural (pedra que rola, cata-vento que guincha) ou emissão voluntária de som por instrumentista. Seja como for, o que escutamos espontaneamente neste nível é a anedota energética traduzida pelo som. 52 Conforme a fala de Nero para Júnia na terceira cena do segundo ato do Britannicus, de Jean Racine (1670, p. 27): j’entendrai des regards que vous croirez muets (ouvirei olhares que crereis mudos). 14 2. Correspondente ao evento objetivo, encontramos no ouvinte o evento subjetivo representado pela percepção bruta do som, ligada em parte a sua natureza física, em parte a leis gerais da percepção, que estamos autorizados a supor, grosso modo, serem as mesmas para todos os seres humanos (como o fazem as descrições dos gestaltistas). 3. Relacionada a experiências passadas, a interesses dominantes, atuais, essa percepção dá lugar a uma seleção e a uma apreciação. Diremos que tenha sido qualificada. 4. As percepções qualificadas orientam-se para uma forma particular de conhecimento, e o sujeito chega finalmente a significados, abstratos em relação ao próprio concreto sonoro. De modo geral, o ouvinte compreende neste nível certa linguagem dos sons. (SCHAEFFER, 1966, p. 114). A sexta etapa desenvolve essa generalização: 1. Escuto o evento, procuro identificar a fonte sonora: “O que é? O que aconteceu?”. Não me detenho então no que percebo, dele me sirvo inadvertidamente. Trato o som como um índice que me assinala algo. É certamente o caso mais comum porque corresponde a nossa atitude mais espontânea, ao papel mais primitivo da percepção: prevenir um perigo, guiar uma ação. Essa identificação do evento sonoro com seu contexto causal geralmente é instantânea. Mas é possível também que, se os índices forem incertos, ela só se produza após diversas comparações e deduções. A curiosidade científica, embora coloque em jogo conhecimentos altamente elaborados, persegue um objetivo fundamentalmente semelhante ao da percepção espontânea do evento. 2. Ao contrário, posso voltar-me para essa percepção, que há pouco utilizava, e é diretamente a esse som que endereçarei a pergunta: “O que é?”. Quer dizer que o trato como objeto. É o que denominamos objeto sonoro bruto. (Esse tema será amplamente desenvolvido no livro IV.) Ele é aquilo que permanece idêntico através tanto do “fluxo de impressões” diversas e sucessivas que tenho dele quanto de minhas diferentes intenções a seu respeito. A segunda característica essencial de um objeto percebido é não se apresentar senão por esboços: no objeto sonoro que escuto há sempre mais para ouvir (entendre), ele é uma fonte inexaurível de potencialidades. Assim, a cada repetição de um som gravado, escuto o mesmo objeto: bem que jamais o ouça (entende) igualmente, que ele passe de desconhecido a familiar, que perceba sucessivamente diversos de seus aspectos, que ele não seja pois jamais idêntico, sempre o identifico como este objeto preciso. 3. É igualmente o mesmo objeto sonoro o que escutam diversos ouvintes reunidos em torno de um gravador magnético. Mas eles não ouvem (entendent) todos a mesma coisa, não selecionam e não apreciam igualmente, e na medida em que sua escuta toma assim partido por este ou aquele aspecto particular do som, ela dá lugar a esta ou àquela qualificação do objeto. Essas qualificações variam, como o ouvir (entendre), em função de cada experiência anterior e de cada curiosidade. Todavia, o objeto sonoro único, que torna possível essa multiplicidade de aspectos qualificados do objeto, subsiste na forma, digamos, de um halo de percepções, às quais as qualificações explícitas fazem referência implícita. Desse modo, quando concentro minha percepção qualificada no detalhe de uma casa – janela, escultura acima da porta –, nem por isso a casa está menos presente, e vejo essa janela ou essa escultura como partes dela. 4. Posso, por fim, tratar o som como um signo que me introduz em certo domínio de valores, e posso me interessar por seu sentido. O exemplo mais característico é certamente o da fala. Trata-se aqui de uma escuta semântica, centrada em signos semânticos. Entre as diversas escutas “significantes” possíveis, naturalmente nos interessamos em particular pela escuta musical, que se refere a valores musicais e dá acesso a um sentido musical. Note-se que os valores dos quais falamos são, no limite, destacáveis de seu contexto sonoro, reduzido assim ao papel de suporte. Geralmente concordamos que a comunicação opere uma junção de espíritos. Nessa perspectiva, é natural que, nas duas extremidades do circuito, e notoriamente nesta, a da recepção, se abandone a contingência do veículo sonoro no interesse de seu conteúdo significante. Os valores musicais tradicionais não se excetuam na medida em que os signos da música precedem sua realização sonora. É esta que nos esforçamos por melhorar em vista daqueles, e não o inverso. Eis por que pudemos falar, neste ponto 4, de significações abstratas; neste nível, o abstrato se opõe ao concreto material do nível 1. (SCHAEFFER, 1966, p. 114-117). A sétima etapa apresenta a síntese final: 15 4. COMPREENDER — para mim: signos — diante de mim: valores (sentidolinguagem) Emergência de um conteúdo do som e referência a noções extrassonoras, confrontação com estas. 3. ENTENDRE — para mim: percepções qualificadas — diante de mim: objeto sonoro qualificado Seleção de certos aspectos particulares do som. 3 e 4: abstrato 1. ESCUTAR — para mim: índices — diante de mim: eventos exteriores (agente-instrumento) 1 e 4: objetivo Emissão do som. 2. OUVIR — para mim: percepções brutas, esboços do objeto — diante de mim: objeto sonoro bruto 2 e 3: subjetivo Recepção do som. 1 e 2: concreto Esse “caminho de pensamento” (HEIDEGGER, 1997, p. 41; 2001, p. 11) desenha uma espiral de sentido duplo: centrífugo, em desenvolvimentos fenomenológicos que partem de exemplos para generalizações; centrípeto, em sínteses lexicais flexionadas pela fenomenologia. Temos, assim, em sístoles e diástoles sucessivas: (1) síntese lexical; (2) especialização da primeira síntese; (3) desenvolvimento fenomenológico ilustrado; (4) terceira síntese lexical; (5) desenvolvimento da terceira síntese por generalização da fenomenologia; (6) terceiro desenvolvimento; (7) síntese final. Mais tarde, Schaeffer apresentará a versão existencial desse caminho de escuta: Uma criança comunga. Ela se recolhe, faz silêncio, espera alguma coisa surgir de si ou de seu Visitante, coisa nem comum nem excessiva que aumente o sentimento recíproco da presença de mim para Ele e d’Ele para mim. Despojada de palavras, a adoração, antes de ser intenção, geralmente é atenção, mobilização da consciência. Um homem se concentra (como emissários de outras civilizações ensinaram). Sem visitante externo, sem sacramento, sem signo sensível, é ainda um chamado por forças latentes, e também pela presença – daí a parada possível (esperemos), mas improvável, da agitação costumeira, do ruído de fundo da mente e suas infindáveis associações. Não falemos das receitas incertas, dos comentários ociosos, dos mal-entendidos prováveis. Por fim, um ouvinte escuta um som (e não um discurso sonoro de dormir em pé nem uma música para sonhar, dançar, chorar ou sorrir). Colocamos à disposição de sua escuta certo fragmento de som que se repete, ao qual ele se dedica como se fixasse uma luz, uma maçaneta ou a linha do horizonte. Ele não recebe nem Deus nem o fluxo de seu corpo, mas um sinal do mundo exterior cuja imagem sonora se forma em sua consciência. Para considerá-lo, é necessário também prestar atenção e fazer silêncio, e paradoxalmente, para assimilá-lo, é necessário ainda despojar-se de tudo o que até então se sabia dele, descartar os sentidos, os índices e qualquer sugestão relativa ao sinal. Se o reescutarmos agora ou em algumas horas, em alguns dias, mais aprenderemos, não apenas sobre o objeto que consideramos, mas também sobre as faculdades do sujeito que somos, nos observando observar. Exatamente em que consiste o ensinamento? Faço pesquisa musical? Decifro-me a mim mesmo? Vou contar prosa, dizer-me psicólogo, musicólogo, semiólogo? Diante da experiência íntima, do verdadeiro proveito, míseras especialidades. (BRUNET, 1969, p. 211-212). 16 Esses parágrafos sumarizam três grandes períodos da vida de Schaeffer: o dos movimentos de juventude católica, que culminam na experiência de Jeune France no início dos anos 1940; o da “cristandade esotérica” de Gurdjieff, correspondente à primavera da música concreta em 1948; e o da pesquisa musical, associado ao Groupe de Recherches Musicales (GRM) e à criação do Service de la Recherche na passagem dos anos 1950 aos anos 1960. Reencontramos aqui Francis Ponge tal qual Ítalo Calvino o entendia em 1979: Tomar um objeto dos mais humildes, um gesto dos mais quotidianos, e procurar considerá-lo fora de todo o hábito perceptivo, descrevê-lo fora de todo o mecanismo verbal gasto pelo uso. Eis que uma coisa indiferente e quase amorfa como uma porta revela uma riqueza inesperada; ficamos subitamente felizes de encontrar-nos num mundo cheio de portas para abrir e fechar. E isso não por qualquer razão estranha ao fato em si (como o poderia ser uma razão simbólica, ou ideológica ou estetizante), mas apenas porque reestabelecemos uma relação com as coisas como coisas, com a diversidade entre uma coisa e outra, e com a diversidade entra cada coisa e nós. Inadvertidamente descobrimos que existir poderia ser uma experiência muito mais intensa e interessante e verdadeira que o corre-corre distraído no qual nossa mente calejou-se. (CALVINO, 1995, p. 253). Seja na versão lexicográfico-fenomenológica ou na existencial, o objeto sonoro assume aspecto distinto do restritivo-normativo sob o qual costuma apresentar-se nos trabalhos sobre música eletroacústica, vulgarmente definido como “o som em si”, sem referência ao evento que o origina nem ao seu significado. Todavia, o próprio Schaeffer desautoriza essa simplificação: Enquanto reste uma incerteza na percepção quanto ao objeto final da escuta, em qualquer setor que se encontre, a investigação consistirá em colocar em evidência e a referir uns aos outros os objetos “parciais” do conjunto da atividade auditiva; assim, uma série de escutas, ao aprofundar o fenômeno, precisará os resultados simultaneamente nas quatro direções. (SCHAEFFER, 1966, p. 118). Conclusão Essa poética de escuta pode contribuir para dissipar a doxologia do funk carioca ao promover uma limpeza da situação aural. Ela pode contrabalançar o número crescente de estudos históricos, antropológicos, sociológicos, jurídicos, linguísticos e psicológicos sobre o tema ao dirigir o foco da investigação para a forma e a matéria sonoras. E ela permite que se coloquem problemas de história, antropologia, sociologia, direito, linguística e psicologia em relação com características de sonoridade, como procurei mostrar em outros trabalhos (CACERES; FERRARI; PALOMBINI, 2014. FACINA; MOUTINHO; NOVAES; PALOMBINI, 2018. PALOMBINI, 2016, 2019). “Meu papel essencial é o de comunicar uma forma de compreender, de sentir e de agir que pode parecer, do exterior, terrivelmente pessoal; na verdade, eu mesmo sou apenas um relé”, diz Schaeffer (apud BRUNET, 1969, p. 19). “Dizes que o alimento, o lugar, o ar e a sociedade te transformam e condicionam? Ora, tanto mais o fazem tuas opiniões, pois são elas que te determinam em tua escolha de alimento, lugar, ar e sociedade”, escreve Nietzsche (2017). “A capacidade que um sistema político tenha para tolerar e recuperar a reformulação de seus mitos fundadores constitui uma função crucial de sua adaptação, e portanto, de sua sobrevivência”, afirma Pieter Lagrou (2013, p. 102). 17 Referências ADLER, Guido. Umfang, Methode und Ziel der Musikwissenschaft. Vierteljahrsschrift für Musikwissenschaft, Leipzig, v. 1, p. 5-20, 1885. Disponível em: <http://goo.gl/Mms7nP>. Acesso em: 27 jun. 2017. ADORNO, Theodor. The Aging of the New Music. Tradução de Robert Hullot-Kentor e Frederic Will. Telos: Critical Theory of the Contemporary, Candor (NY), v. 77, p. 95-116, 1988. DOI 10.3817/0988077095. AQUINO, São Tomás de. Quaestiones disputatae de veritate: a quaestione II ad quaestionem IV. Pamplona: Universidade de Navarra, 2017. Disponível em: <http://goo.gl/KWj88q>. Acesso em: 14 jul. 2017. 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