COMPLEXIDADE NARRATIVA E ESTÉTICA DE DISTORÇÃO TEMPORAL
EM HOW TO GET AWAY WITH MURDER1
Melina MEIMARIDIS, (UFF)2
Daniel RIOS, (UFF)3
Resumo: O atual cenário televisivo americano é marcado pela intensa competição entre
produções ficcionais seriadas. Essa característica tem estimulado a produção de narrativas
complexas. Aqui, abordamos uma forma específica de complexidade narrativa, a estética de
distorção temporal proposta por Paul Booth (2011). Analisamos, portanto, a construção da
estrutura narrativa da primeira temporada de How To Get Away With Murder, tendo em vista
especificamente o contraste entre passado e futuro e o entrelaçamento de ambas temporalidades.
Compreendemos que esse entrelaçamento, através de recursos como flashbacks e flash forwards,
proporciona densidade à tessitura narrativa da série.
Palavras-chave: Complexidade Narrativa; Séries Televisivas; Temporalidade.
Abstract: The current television landscape in America is plagued by intense competition
between fictional shows. This fact has intensified the production of narratively complex series.
In this paper, we address a specific form of narrative complexity, the aesthetics of temporal
distortion proposed by Paul Booth (2011). We analyzed the narrative structure of the first
season of How to Get Away with Murder, considering specifically the contrast between past and
future and the intertwining of both temporal logics. We understand that this entanglement,
through features such as flashbacks and flash forwards, provides density to the narrative’s
structure.
Keywords: Narrative Complexity; Television Series; Temporality
INTRODUÇÃO
As produções ficcionais seriadas televisivas têm se popularizado nos últimos
anos como um dos modelos narrativos dominantes no Brasil e no mundo. Para Silva,
(2014) a apreciação pelo formato é tanta que vivemos hoje uma “Cultura das Séries”.
Nesse cenário, a televisão americana tem se destacado com produções reconhecidas por
sua qualidade estética e narrativa. Apenas no ano de 2015 mais de 400 séries foram
produzidas e exibidas na televisão aberta e fechada americana, e em serviços de
streaming4. Esse aumento se deve em parte aos avanços tecnológicos, que têm também
1
Trabalho apresentado ao Grupo de Pesquisa SÉRIECLUBE, durante a II Jornada Internacional
GEMInIS, na Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, de 17 a 19 de maio de 2016.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense.
Coordenadora adjunta do grupo de pesquisa Série Clube. melmaridis@hotmail.com
3
Graduando do curso de Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense.
danrios302@hotmail.com
4
http://www.vox.com/2015/9/14/9301867/peak-tv
garantido uma maior acessibilidade às produções ficcionais seriadas em diversos
dispositivos e plataformas. O aumento no número de produções, aliado a uma maior
acessibilidade tem oferecido um maior leque de possibilidades aos espectadores, que
agora podem escolher quando, onde e o que querem consumir (LOTZ, 2007; SPIGEL,
2004; MATRIX, 2014). Essa combinação de fatores tem contribuído para gerar o
cenário mais competitivo da história do meio televisivo americano.
A competição por espectadores sempre fez parte das lógicas de produção e
circulação de séries televisivas nos Estados Unidos, país onde a televisão possui uma
forte natureza industrial (KELSO, 2008; HILMES, 2011). As séries, portanto, precisam
ser analisadas como produtos industriais que possuem dois principais objetivos: entreter
(O’DONNELL, 2011) e fornecer consumidores aos anunciantes (GITLIN, 1985;
MAGDER, 2004). Na tentativa de cumprir esses objetivos, os canais e veículos
produtores têm apostado em diferentes estratégias para atrair e fidelizar público. Dentre
as principais estratégias encontram-se as séries produzidas na lógica de repetição de
temas e fórmulas previamente bem-sucedidas, enquanto outras séries são produzidas
numa lógica de distinção (ALBUQUERQUE & MEIMARIDIS, 2016).
Em linhas gerais, a televisão aberta americana busca “evitar correr riscos” com suas
produções (KELSO, 2008, p.46, tradução nossa). Igualmente, Bellamy et al afirmam
que os executivos dos canais acreditam na existência de uma maior probabilidade do
espectador “investir tempo em algo que ele conhece do que em algo novo” (2009, p.284,
tradução nossa). Assim, os canais frequentemente optam por repetir fórmulas e
estruturas bem-sucedidas no passado, apostando em gêneros e formatos de sucesso
(GITLIN, 1985), como, por exemplo, as séries inspiradas nos heróis da DC Comics,
Arrow (CW, 2012-Presente), Flash (CW, 2014-Presente) e DC’s Legends of Tomorrow
(CW, 2016-Presente), todas do showrunner5 Greg Berlanti e exibidas na CW Network.
A distinção, por sua vez, se dá de inúmeras formas, podendo ser através de elevados
investimentos e produções esmeradas (SANTO, 2008; LEVINSON, 2002), como em
House of Cards (Netflix, 2013-Presente); ou também pela associação dessas produções
com meios tradicionalmente mais prestigiados que a televisão, como o cinema (FEUER,
2008) em The Sopranos (HBO, 1999-2009) e a literatura (ROSE, 2008) em The Wire
(HBO, 2002-2008). Outra forma, ainda, é a elaboração de narrativas consideradas mais
5
Produtor executivo encarregado do dia-a-dia da produção, muitas vezes o próprio criador da série.
densas e sofisticadas que exigem mais atenção do espectador (MITTELL, 2006; 2015;
NEWMAN, 2006). O autor Jason Mittell (2006; 2015), vem investigando essa
sofisticação narrativa na ficção seriada televisiva, processo que autor denomina
“Complexidade Narrativa”.
Neste trabalho buscamos analisar uma forma específica de complexidade narrativa,
as séries que apresentam uma estética de distorção temporal (BOOTH, 2011). Para
Booth (2011), as narrativas que se utilizam dessa estética vêm se popularizando nos
últimos anos na televisão americana, como, por exemplo, How I Met Your Mother (CBS,
2005-2014), Lost (ABC, 2004-2010), Dollhouse (FOX, 2009-2010). Aqui, optamos por
examinar o drama jurídico How To Get Away with Murder (ABC, 2014-Presente),
produção da showrunner Shonda Rhimes.
A série estreou em 2014 com uma das maiores audiências do ano6, e gira em torno
da vida da advogada e professora de direito criminal Annalise Keating. Apesar de
apresentar uma temática já comum no universo dos workplace dramas jurídicos, em que
uma advogada lida com os problemas de seus clientes, como em The Good Wife (CBS,
2009-2016) e Drop Dead Diva (Lifetime, 2009-2014), a produção inova ao possuir uma
estrutura temporal peculiar que não apresenta linearidade. O modelo temporal da série é
estruturado em torno de duas lógicas: uma que se passa no passado e outra que se passa
no futuro. Nossa hipótese é de que o entrelaçamento de ambas as lógicas e a forma com
que elas se relacionam com o tempo presente, através do uso de recursos como
flashbacks e flash forwards, proporciona densidade à tessitura narrativa, e, portanto,
promove a sofisticação narrativa indicada por Mittell (2006; 2015).
O presente paper foi dividido da seguinte maneira: primeiro apresenta-se
brevemente o atual cenário televisivo americano, que tem contribuído para o surgimento
de narrativas complexas. Em seguida, exploramos a questão da complexidade narrativa
na ficção seriada televisiva, tendo em vista a estética da distorção temporal proposta por
Paul Booth (2011). Por fim, apresentamos e discutimos a questão do deslocamento
temporal como um elemento estruturador em How to Get Away With Murder,
analisando a construção da primeira temporada da série. Nossa aposta é que o atual
http://deadline.com/2014/09/how-to-get-away-with-murder-scandal-ratings-greys-anatomy-shondarhimes-parenthood-bones-841637/
6
cenário televisivo tem exigido uma maior gama de sofisticação das narrativas seriadas
da televisão aberta americana, e, assim, essas produções têm se utilizado de
deslocamentos temporais como forma de proporcionar a complexificação das narrativas
e promover um maior engajamento dos espectadores.
CENÁRIO TELEVISIVO AMERICANO CONTEMPORÂNEO
Para compreender o processo de complexificação das narrativas ficcionais
seriadas, primeiro é necessário apresentar o atual cenário televisivo, visto que o
surgimento dessas narrativas está diretamente relacionado com a competição entre os
veículos produtores de séries televisivas. A televisão americana passou por inúmeros
processos de transformação desde sua popularização nas décadas de cinquenta e
sessenta. O circuito televisivo foi inicialmente pensado na lógica do broadcasting, visto
que ele derivou do rádio (ROMAN, 2005). O início da televisão nos Estados Unidos foi
marcado pela presença de três principais emissoras, a American Broadcasting Company
(ABC), a National Broadcasting Company (NBC) e a Columbia Broadcasting Company
(CBS). Essas três grandes redes são até hoje conhecidas como as grandes Networks,
juntamente com a Fox, criada em 1986 e a CW, que surgiu da fusão da UPN e da The
WB em 2006.
As Networks durante muitos anos dominaram a programação televisiva
americana, porém ao longo do tempo devido aos avanços tecnológicos que
possibilitaram o surgimento dos canais a cabo, esse domínio das Networks começou a
entrar em declínio (LOTZ, 2007; HILMES, 2011). Além disso, Mittell (2009)
argumenta que a própria lógica do broadcasting começou a enfraquecer com canais
produzindo a partir do final da década de oitenta e principalmente nos anos noventa
cada vez mais conteúdos direcionados a nichos específicos. Assim, o ideal regente do
broadcasting foi suplantado por uma segmentação demográfica do mercado (MITTELL,
2009, p.7). Essa prática de direcionar o conteúdo televisivo a determinados segmentos e
nichos específicos foi denominada “narrowcasting” (WATERMAN, 1992; SMITHSHOMADE, 2004; LOTZ, 2014). Além dos canais a cabo, os últimos anos foram
marcados pelo surgimento de novos veículos produtores de ficção seriada, os serviços
de streaming como Netflix, Amazon Instant Video e Hulu (LADEIRA, 2010; TRYON,
2013; CASTELLANO & MEIMARIDIS, 2016a).
Além do surgimento de novos produtores de ficção seriada e da mudança no
direcionamento da programação, os avanços tecnológicos ainda promoveram mudanças
substanciais no âmbito da espectatorialidade e do consumo. O principal modo de
espectatorialidade estabelecida durante as primeiras décadas da televisão foi o
"Appointment Viewing", prática em que os espectadores reservavam tempo dentro de
suas agendas diárias para verem seus programas favoritos (CASTLEMAN &
PODRAZILK, 2010). Com o surgimento do VHS na década de oitenta e dos boxes de
DVD e aparelhos de TiVo7 nos anos subsequentes, os espectadores puderam consumir a
programação televisiva fora do horário de exibição, processo denominado “TimeShifting” (SODANO, 2012).
A lógica do “Time-Shifting” atrelada ao surgimento de plataformas de streaming
tem contribuído para a popularização da prática do binge-watching. Esse modelo de
consumo pode ser caracterizado como o hábito de assistir diversos episódios de uma
série por um período contínuo de tempo. A prática já tem inúmeros adeptos ao redor do
mundo e segundo Matrix (2014) já influência o circuito de produção de séries
televisivas. Para a autora as emissoras agora estariam buscando séries com um potencial
para binge-watching, visto que a série será vendida para alguma plataforma de
streaming como Netflix, Amazon ou Hulu, após a exibição de sua temporada8.
No cenário marcado por mudanças no âmbito da produção e do consumo televisivo,
as ficções seriadas têm se popularizado como o modelo narrativo dominante na
televisão (HAGERDORN, 1995). Tradicionalmente, essas produções podem ser
divididas em dois grupos, os seriados e as séries (narrativas episódicas) (POTER, et al,
2002; ARONSON, 2000; NDALIANIS, 2005). Os seriados apresentam tramas que
resistem ao fechamento, com um mesmo grupo de personagens tendo “histórias
contínuas de episódio em episódio” (FISKE, 1987, p. 150). Nesse modelo narrativo, o
espectador acompanha o desenvolvimento dos personagens, como a trajetória de Walter
White, de um simples professor de química do ensino médio para chefe do tráfico em
Albuquerque no seriado Breaking Bad (AMC, 2007-2013).
7
Dispositivo popular nos Estados Unidos que armazena conteúdos televisivos num HD.
8
Sobre a prática do binge-watching e os serviços de streaming, ver Castellano & Meimaridis, 2016b.
Em contrapartida, as séries são narrativas episódicas em que “os problemas
levantados no início de um episódio são resolvidos ao término do mesmo” (NEWMAN,
2006, p.18, tradução nossa). As séries com estruturas episódicas geralmente são
sitcoms 9 como Friends (NBC, 1994-2004) e The Big Bang Theory (CBS, 2006-Presente)
ou procedurais10 como CSI (CBS, 2000-2015) e House (FOX, 2004-2012). Apesar
dessas categorias ainda serem utilizadas, a linha que separa esses modelos tem se
tornado mais turva, à medida que as produções televisivas têm mesclado ambas as
lógicas (NELSON, 2006; MITTELL, 2006; NEWMAN, 2006; NDALIANIS, 2005).
Essa combinação de lógicas é um dos elementos fundamentais das chamadas
“Narrativas Complexas” (MITTELL, 2006; 2015).
NARRATIVAS COMPLEXAS, TEMPO E DISTORÇÃO TEMPORAL
A expressão “Narrativa Complexa” proposta pelo autor americano Jason Mittell,
no artigo Narrative Complexity in American Television (2006) revela que as ficções
seriadas americanas têm passado por um processo de complexificação nas últimas
décadas. Para o autor, esse modelo de narrativa surgiu na década de setenta com os
seriados Dallas (CBS, 1979-1991) e Dynasty (ABC, 1981-1989), que apresentavam um
maior grau de serialização em seus episódios. Mittell argumenta que uma narrativa
complexa envolve mais do que apenas a trama serializada, mas sim uma “redefinição de
formas episódicas sob a influência da narração seriada - não necessariamente uma fusão
da forma episódica com a seriada, mas sim um equilíbrio inconstante” (2006, p. 32,
tradução nossa). Nesse sentido, existiria um prolongamento das tramas com o
entrelaçamento de arcos curtos e longos ao longo dos episódios, e inclusive, das
temporadas, dessa forma combinando as lógicas episódicas aos prazeres da narrativa
seriada.
Mittell (2006; 2015) atribui esse processo de sofisticação narrativa aos diversos
avanços tecnológicos das últimas décadas, que permitiram aos espectadores assistir os
9
Abreviação do termo situation comedy, subgênero da comédia.
Procedural é um modelo narrativo em que os episódios da série apresentam narrativas independentes
umas das outras. Cada episódio contém uma situação específica que os personagens principais devem
solucionar até o fim do mesmo. Modelo geralmente associado ao gênero dos Workplace Dramas.
10
episódios com mais atenção, pausando e revendo-os múltiplas vezes de modo a
compreender melhor as pequenas riquezas do roteiro. Embora as séries estejam se
tornando mais serializadas, esta não é a única característica de uma narrativa complexa.
Para Mittell, existiriam várias faces inexploradas do problema. Dentre estas, Paul Booth
(2011) problematiza a popularização de narrativas com deslocamento temporal. Séries
como How I Met Your Mother, Flash Forward (ABC, 2009-2010), Lost e Game of
Thrones (HBO, 2011-Presente) se utilizam de alguma forma de manipulação temporal.
Existem, porém, muitas formas de se utilizar a estética de distorção temporal.
Aqui optamos por ilustrar três principais formas mencionadas por Paul Booth em seu
texto Memories, Temporalities, Fictions: Temporal Displacement in Contemporary
Television” (2011). A primeira se dá através do que Booth chama de “Character
Temporality” e pode ser compreendida como um deslocamento temporal de um
personagem simultâneo a uma distorção espacial (2011, p.381). Um dos modos mais
recorrentes de se utilizar dessa forma é através de viagens no tempo. Narrativas que
abordam a questão da viagem no tempo existem há séculos na mídia. O homem sempre
foi fascinado com a ideia de exercer domínio sobre o tempo, e, embora cientistas já
tenham postulado ser impossível tal feito, diversos físicos já teorizaram sobre como
funcionaria caso fosse possível. Essas teorias deram espaço para diversas representações
ficcionais na literatura, como Memoirs of the Twentieth Century (1773)11, no cinema
com a trilogia Back to The Future (1985)12, e na televisão com Doctor. Who (BBC,
1963-Presente), The Flash e até Game of Thrones.
Nas três séries supracitadas, as viagens no tempo ocorrem de formas variadas.
Na série britânica, o Doctor viaja graças ao uso de uma máquina do tempo e suas ações
influenciam o presente. Em The Flash, Barry Allen é capaz de quebrar a barreira
espaço-temporal e viver momentos no passado por conta da sua velocidade. As ações de
Barry no passado impactam diretamente sua vida no presente. Já Bran Stark, em Game
of Thrones, aprendeu na sexta temporada da série a enviar seu subconsciente para o
passado e acompanhar acontecimentos antes mesmo de seu nascimento. Ainda não está
estabelecido se Bran pode de fato modificar esses acontecimentos, mas devido às
11
Romance em que um anjo da guarda volta no tempo para 1728 com cartas de 1997 e 1998.
Filme que narra a vida de Marty McFly um adolescente que em 1985 viaja no tempo com a ajuda de
um cientista.
12
informações coletadas no passado o personagem pode influenciar o presente13. Nota-se
que as tramas envolvendo viagens no tempo têm se tornado tendência na ficção seriada
mais recentemente, com a NBC, a ABC e a Fox anunciando séries com viagens no
tempo para o período de 2016-201714.
Outra forma popular de deslocamento temporal é através da estrutura de
“Extensive Flashbacks”, que para Booth seriam séries em que a narrativa é presenciada
como um flashback extenso. Um dos principais exemplos dessa estrutura se encontra na
sitcom How I Met Your Mother, em que Ted Mosby em 2030 narra para seus filhos
adolescentes como conheceu a mãe deles em sua juventude. A série é marcada pela
lógica do passado, podendo ser considerada um imenso flashback da vida de Ted e seus
amigos. Booth aponta que algumas séries se utilizam de flash forwards de modo
semelhante ao extensive flashback, como forma de “confundir a localização temporal da
série” (2011, p. 378, nossa tradução).
Por fim, o outro modo de deslocamento temporal nas séries descrito por Booth é
o “Memory Temporality”, em que a série se utiliza de alguma forma de analepses como
espécie de lembrança dos personagens. O conceito de analepse pode ser definido como
“toda a ulterior evocação de um acontecimento anterior ao ponto da história em que se
está” (GENNETTE, 1995, p.38). Para Booth, esse uso muitas vezes é evidenciado
através de mudanças estéticas como a cor da imagem, ou uso de algum recurso sonoro,
dentre outras possibilidades (2011, p.379). Essa lógica pode ser encontrada no seriado
Flash Forward. A trama envolve um evento mundial inexplicável que faz com que os
indivíduos desmaiem e tenham visões sobre suas vidas dali seis meses. As visões seriam
de certa forma flash forwards da vida desses personagens. Após acordarem os
personagens se encontram de certa forma presos aos acontecimentos que virão a
acontecer, e a cada episódio esses personagens relembram as visões que tiveram. A
série, portanto, possui uma proposta peculiar, ao já mostrar para o espectador o que irá
acontecer com os personagens, mas não o como eles chegarão lá. Outros exemplos
podem ser evidenciados nas séries Grey’s Anatomy (ABC, 2005-Presente) e The Good
13
http://www.vox.com/2016/6/10/11901896/game-of-thrones-time-travel
http://blogs.wsj.com/speakeasy/2016/05/17/hot-concepts-for-next-seasons-new-tv-shows-time-traveland-old-franchises/
14
Wife, em que as lembranças de Meredith e Alicia, respectivamente, são inseridas na
narrativa através de flashbacks.
Nota-se que as séries podem se utilizar paralelamente de formas distintas de
deslocamento temporal, como por exemplo em Lost, seriado que não só utiliza da lógica
da Memory Temporality, com personagens relembrando suas vidas antes da queda do
avião, também como da “Character Temporality” em que personagens como Desmond
têm a habilidade de viajar no tempo, como por exemplo no episódio “The Constant”
(t04;ep:05).
Para Booth, a popularização de narrativas com deslocamento temporal surgiram
em resposta ao atual contexto pós-moderno vivido pelos indivíduos no século XXI.
Entretanto, argumentamos que essa popularização também pode ser em resposta ao
cenário televisivo atual, que é marcado por uma intensa competição por espectadores,
novas tecnologias e práticas de consumo televisivo. Nesse sentido, How To Get Away
With Murder se encaixa como uma narrativa complexa ao apresentar uma trama
sofisticada que prende o espectador através do entrelaçamento das lógicas do passado e
do futuro.
A COMPLEXIDADE DE MURDER
O seriado How To Get Away With Murder estreou em 2014 na ABC. A narrativa
se centra em torno da advogada Annalise Keating, que além de cuidar de casos jurídicos
a cada episódio ainda é professora de direito criminal na Middleton University. Enganase quem pensa que a série é apenas um clássico procedural, em que cada episódio
aborda apenas os clientes que Annalise tem de defender. Desde seu piloto, o seriado
apresenta uma proposta diferente de narrativa, começando oito semanas no futuro e
revelando um grupo de estudantes que, após participarem de um assassinato, buscam
desesperadamente desovar o corpo de Sam Keating, marido de Annalise. Logo em
seguida, a narrativa volta para o presente, apresentando o início do semestre de aulas do
curso de direito e introduzindo ao espectador aqueles jovens que estavam na floresta.
Ao longo da primeira temporada, descobrimos exatamente quais foram os
acontecimentos que levaram à morte de Sam e as ações dos estudantes para não serem
incriminados pelo assassinato. Além da morte de Sam, que é construída como um dos
principais arcos narrativos da primeira temporada, existe ainda o misterioso caso do
assassinato de Laila Standgard, uma estudante da Middleton University e amante de
Sam Keating. Annalise tem o duro trabalho de defender uma das amigas de Laila,
Rebecca Sutter, que é acusada pelo crime, juntamente com o namorado de Laila, o
jogador de futebol americano Griffin O’Reilly.
Assim, a primeira temporada da série se divide em dois principais arcos
narrativos que, de certa forma, são interconectados, (1) o arco da morte de Sam Keating
e (2) o arco da morte de Laila Stangard. O primeiro é apresentado de forma não linear
com o espectador descobrindo que Sam está morto durante o piloto, mas só
compreendendo as razões que levaram ao seu assassinato durante o 2° e 9° episódio da
série. Adversativamente, a morte da estudante Laila é apresentada de modo linear.
Desde o primeiro episódio a narrativa apresenta o caso da estudante desaparecida no
campus da universidade. Ao longo de toda a primeira temporada surgem mais
informações sobre seu desaparecimento e assassinato.
Enquanto o arco da morte de Laila funciona na lógica do passado, com
flashbacks de sua amizade com Rebecca, seu relacionamento com Griffin e seu
envolvimento com Sam, o arco da morte de Sam é apresentado entre o 1° e 9° episódio
na lógica do futuro com flash forwards para a noite de seu assassinato, e entre o 10° e
13° episódio na lógica do passado com flashbacks para eventos antes não vistos na noite
de seu assassinato. De modo a facilitar a visualização do entrelaçamento desses arcos,
optamos por elaborar uma tabela com informações vindas de uma análise sistemática de
todos os quinze episódios da primeira temporada da série.
Tabela 01
Ep
01
02
03
04
05
06
07
08
09
10
11
12
13
14
15
Lógica
L1
L1
L1
L1
L1
L1
L1
S1
S1
L2
L2
L2
L2
L2
L2
Recurso
FFS
FFS
FFS
FFS
FFS
FFS
FFS
FFS
FFS
FBS
FBS
FBS
FBS
FBL
FBL
FBL
FBL
Na tabela 01 utilizamos a expressão FFS para nos referir a episódios como flash
forwards da morte de Sam Keating. A sigla FBL, por sua vez, demarca os episódios
com flashbacks da morte de Laila. Já FBS se refere aos episódios com flashbacks da
morte de Sam. Ademais, a tabela indica três lógicas regentes ao longo da primeira
temporada. Durante os primeiros sete episódios a lógica regente é do futuro (L1), já nos
seis últimos episódios a lógica regente é do passado (L2). Nos episódios oito e nove
ambas as lógicas são sobrepostas (S1).
Ao analisar cuidadosamente a tabela é possível enxergar mais claramente a
construção temporal da primeira temporada da série. O futuro está presente nos
primeiros dez episódios, e acreditamos que ele serve para levantar perguntas e gerar
curiosidade no espectador. Por que Sam foi morto? Qual dos alunos de Annalise irá
matá-lo? Annalise sabia sobre o crime? Essas e tantas outras perguntas são pequenos
aperitivos que funcionam para instigar o espectador a continuar acompanhando os
episódios, enquanto gradualmente criam tensão e expectativa para o prato principal, que
será servido no nono episódio, quando finalmente futuro e presente se encontram,
revelando os acontecimentos que levaram à morte de Sam.
Em contrapartida, o passado é apresentado a partir do 8° episódio e representado
até o último instante do final de temporada, em um flashback que revela o verdadeiro
assassino de Laila. Diferentemente do tempo futuro, o passado serve para responder as
perguntas e inquietações do espectador, ao demonstrar as resoluções do caso da morte
da estudante e durante o 10° e o 13° episódios revelar outros momentos da noite em que
Sam foi morto, os quais não apareceram nos flash forwards previamente exibidos na
primeira metade da temporada.
Tendo em vista os apontamentos revelados na tabela, argumentamos que a
complexidade de How To Get Away With Murder se dá em dois níveis. Primeiro de
forma mais fiel ao argumento de Mittell (2006), em que uma produção busca o
equilíbrio entre as lógicas seriadas e episódicas. Dos quinze episódios da primeira
temporada encontramos que em treze deles Annelise teve um cliente, na estrutura
episódica de “caso da semana”. Enquanto no 9° e no 15° os problemas envolvendo os
casos da morte de Sam e de Laila tomam conta da trama. Apesar de possuir casos da
semana na maior parte dos episódios da primeira temporada, encontramos que os arcos
da morte de Sam e de Laila são movimentados a partir da utilização dos recursos
temporais, como flashbacks e flash forwards. Assim, os episódios resistem ao
fechamento, com arcos que perduram ao longo de toda temporada.
Por outro lado, a complexidade da primeira temporada da série também se dá
através do entrelaçamento dos arcos e consequentemente das lógicas temporais que
regem a temporada. A série, pode ser inserida na categoria de extensive flashback
proposta por Booth, se utilizando também de flash forwards. O passado e o futuro se
manifestam ao longo da temporada proporcionando longevidade à trama, visto que
servem para gerar curiosidade no espectador e responder suas diversas inquietações. Na
medida em que o passado revela respostas, o futuro levanta outros questionamentos.
Além disso, esse entrelaçamento de lógicas temporais contribui para a construção de
uma narrativa mais densa e que exige do espectador um maior nível de atenção e
engajamento.
Ademais, essa estrutura complexa é facilmente reprodutível, visto que o
espectador sempre terá respostas para os mistérios, e a série constantemente
proporcionará novas perguntas que necessitam de respostas. A estrutura pode ser vista
claramente no final de temporada que revela o assassino de Laila, ao mesmo tempo em
que Rebecca é assassinada. O desenrolar da morte de Rebeca será revelado na segunda
temporada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O atual cenário da produção televisiva americana tem chamado atenção de
espectadores, críticos e acadêmicos ao redor do mundo. A televisão americana e, em
particular, a ficção seriada televisiva, vive um momento de extrema competição com
muitos canais e serviços de streaming produzindo as mais variadas séries. Essas
produções podem ser consumidas em múltiplos dispositivos como celulares, tablets e
notebooks, tendo, assim, o conteúdo televisivo extrapolado para fora da “caixa” (ROSS,
2008). Em resposta a este cenário competitivo, algumas séries são elaboradas numa
lógica de repetição de fórmulas previamente bem-sucedidas, como a franquia de
Chicago na NBC15, ou a de NCIS16 na CBS, enquanto outras séries são estruturadas em
15
Chicago Fire (2012-Presente), Chicago PD (2014-Presente) e Chicago Med (2015-Presente).
torno de uma lógica de distinção.
Dentre as formas de produzir uma série distinta, encontra-se a elaboração de
narrativas mais sofisticadas, com um maior nível de serialização e o equilíbrio entre as
lógicas episódicas e as seriadas. Além disso, as narrativas complexas se utilizam de
outros mecanismos para proporcionar densidade e sofisticação à tessitura narrativa.
Dentre esses mecanismos está a utilização de recursos temporais como flashbacks e
flash forwards, além de outras formas de deslocamento temporal. O emprego desses
mecanismos cria uma estética de distorção temporal que contribui diretamente para o
processo de complexificação narrativa (BOOTH, 2011)
O seriado How To Get Away With Murder se insere numa onda de produções
que fazem proveito dessa estética. A produção apresenta uma estrutura atraente do
ponto de vista da serialização, em que flash forwards levantam perguntas, contribuindo
para gerar curiosidade no espectador e proporcionando mistérios para a narrativa;
enquanto os flashbacks respondem questionamentos, recompensando o espectador que
vem consumindo a série. Assim, a utilização da estética de distorção temporal contribui
para o processo de sofisticação da narrativa, uma vez que o entrelaçamento dos arcos
narrativos do passado e do futuro proporciona densidade e complexidade à história,
exigindo mais do fã e proporcionando um maior nível de engajamento dele na
compreensão da trama, além de trazer uma estrutura narrativa que pode ser reproduzida
por várias temporadas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Melodrama nas Séries Médicas. Revista Fronteiras dos Estudos Midiáticos, 2016.
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