Revista Crítica de Ciências
Sociais
109 (2016)
Culturas musicais contemporâneas
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Lucas Waltenberg
Novas configurações do álbum de
música na cultura digital: O caso do
aplicativo “Biophilia”
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Referência eletrônica
Lucas Waltenberg, « Novas configurações do álbum de música na cultura digital: O caso do aplicativo “Biophilia” »,
Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 109 | 2016, colocado online no dia 18 Maio 2016, criado a 24 Maio
2016. URL : http://rccs.revues.org/6276 ; DOI : 10.4000/rccs.6276
Editor: Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
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Este documento é o fac-símile da edição em papel.
Creative Commons – CC BY 3.0
Revista Crítica de Ciências Sociais, 109, Maio 2016: 185-202
LUCAS WALTENBERG*
Novas configurações do álbum de música na
cultura digital: O caso do aplicativo “Biophilia”
Este artigo aborda o processo de reestruturação da indústria fonográfica, com foco no
formato “álbum de música”. Adotando uma perspectiva que considera a importância
das materialidades dos suportes de reprodução musical, analisa o álbum-aplicativo
“Biophilia”, lançado por Björk em 2011, guiado por questões sobre a materialidade
da música e a remediação do álbum musical através de novos protocolos de escuta.
Argumentamos que o formato álbum – supostamente ameaçado pelas novas práticas
de consumo nas tecnologias digitais – mostra sinais de que pode ser repensado para
acompanhar o processo de reestruturação da indústria musical, incentivando novas
maneiras de os consumidores e os próprios artistas lidarem com a música.
Palavras-chave: álbum aplicativo; álbum de música; Biophilia, Björk; indústria fonográfica; música eletrónica.
Eu lembro de ir a um cybercafe – com muita, muita ressaca –
e escrever o manifesto: esta música sobre relâmpago está ensinando você sobre
arpejos, cristais estão ensinando você sobre estrutura,
DNA sobre ritmos, e assim por diante...
BJÖRK (2011)1
Introdução
Entre os desafios enfrentados pela indústria da música em seu processo
de reconfiguração, podemos destacar a queda na venda de fonogramas,
o compartilhamento irrestrito de ficheiros musicais e a pressuposição de
que o álbum estaria com os dias contados, uma vez que os consumidores
* Doutorando do PPGCOM/UFF (Brasil), onde desenvolve pesquisa sobre a reconfiguração do
formato álbum na cultura digital. Integrante do LabCULT, grupo de pesquisa coordenado pela
Professora Doutora Simone Pereira de Sá.
1
Entrevista para a revista Dazed & Confused, em agosto de 2011, edição para iPad (tradução do
autor).
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teriam mais interesse em algumas das músicas do que no “pacote completo”
oferecido pelo formato. Nos últimos anos, entretanto, vemos despontar algumas tendências que dão a esse cenário contornos mais complexos. Os discos
de vinil, por exemplo, um suporte tido como ultrapassado, vêm ganhando
uma força renovada no mercado, mostrando que as “velhas” mídias ainda
possuem seu lugar frente a aparelhos de reprodução musical modernos e
portáteis (Guerra, 2011; Bartmanski e Woodward, 2013; Gauziski, 2013).
Sobre a morte anunciada do álbum (Carvalho e Rios, 2009), mesmo que os
ouvintes possam descarregar somente uma ou outra música oferecida no
pacote, o formato ainda figura como um dos principais produtos da indústria fonográfica, seja em vinil, CD, MP3 ou até mesmo em fita cassete, que
circula em alguns nichos.
A partir disso, este artigo objetiva refletir, de uma maneira geral, sobre o
processo de reestruturação da indústria fonográfica. Mais especificamente,
adotando uma perspectiva que dê conta da importância das materialidades
dos suportes de reprodução musical, discutimos como o álbum de música
também é reconfigurado nesse processo. Como estudo de caso, apresentamos e analisamos o álbum-aplicativo (app album) “Biophilia”, lançado
pela artista islandesa Björk no fim de 2011, que traz o álbum homônimo
em um aplicativo para dispositivos da Apple,2 inserindo o ouvinte em uma
experiência imersiva de escuta musical.
Assim, as questões que guiarão nossa análise são: quais os papéis das
materialidades dos dispositivos (iPads, iPhones, etc.) e dos suportes (aplicativos) nessa recriação do álbum? Como são ressignificados os protocolos
de escuta (Straw, 2012) do álbum nesse novo formato? Por fim, como
o álbum-aplicativo faz a “remediação” (Bolter e Grusin, 2000) do álbum
de música?
1. O problema do álbum na cultura digital
Entendemos o álbum de música como aquele produto da indústria fonográfica que circunscreve sonora e tematicamente a criação dos músicos e
apresenta uma série de características, tais como: a ordem predeterminada
das faixas, a incorporação de elementos gráficos, como fontes e imagens para
compor a capa, contracapa, encarte e uma certa unidade sonora ou “continuidade lógica” (Shuker, 1999; Dantas, 2005; De Marchi, 2005; Sá, 2009;
Carvalho e Rios, 2009). A arte da capa, um de seus elementos fundamentais,
2
Em 2013, o aplicativo foi disponibilizado também para dispositivos móveis com o sistema operacional do Google, Android. Consultado a 20.07.2015, em http://www.theverge.
com/2013/7/17/4529964/bjork-biophilia-hits-google-play-android.
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possui um papel primordial ao articular as canções no álbum com a imagem
que o artista quer passar. Segundo a reflexão de Shuker (1999), por exemplo, artistas que colocam as letras de suas músicas na embalagem apontam
para uma certa “seriedade” e “a iconografia das capas muitas vezes conota
características do gênero da gravação” (ibidem: 45), agregando, inclusive,
valor artístico ao álbum.
No cenário atual, porque se acredita que esse formato cultural estaria
ameaçado? A resposta a essa pergunta, ainda que precise de uma boa dose
de relativização, pode ser dada, em parte, pelo crescente uso dos ficheiros
digitais de áudio. Na internet, seja em redes operadas por tecnologias
peer-to-peer, em sites de hospedagem de ficheiros ou até mesmo em lojas
virtuais, é possível descarregar músicas desagregadas do “pacote fechado”
materializado pelo álbum. Ou seja, se antes estivéssemos interessados
somente em uma ou outra faixa específica, era necessário pagar pelo álbum
inteiro, mesmo que o produto oferecesse músicas que não eram do nosso
interesse. Com a possibilidade de fazermos o download somente das faixas
de nossa escolha, o formato álbum estaria perdendo importância frente à
realidade praticada pelos ouvintes. Além disso, os elementos gráficos e textuais do álbum, como a capa, o encarte, as letras impressas e as informações
relativas à produção daquele material perderiam espaço nesses canais de
circulação, nos ficheiros MP3 e nos dispositivos reprodutores que pouco
privilegiariam os elementos não musicais.
Na verdade, a suposição de que o álbum, tal como o conhecemos, estaria
com os dias contados não surge com os ficheiros digitais. Carvalho e Rios
(2009: 81) sugerem que desde os anos 1970, com a introdução da fita cassete
no mercado fonográfico, já se percebia certa “insatisfação” com o modelo
do álbum, “como ele é preparado e imposto pelas gravadoras” – afinal,
as fitas possibilitavam aos consumidores gravar suas próprias compilações.
No entanto, tecnologias como o CD e, sobretudo, o MP3, ampliaram essa
suposta sensação de incômodo, pois a escuta do álbum estaria sendo substituída por uma escuta unitária. Carvalho e Rios (2009) chamam de “ditadura
do álbum comercial” tal imposição de artistas, produtores e gravadoras
em oferecer um produto fechado, onde só uma parte seria de interesse do
público. Por conta do uso crescente dos novos suportes musicais, os autores
ainda apostam numa volta à estética do single, ou seja, as músicas voltariam
a ser consumidas individualmente, separadas do álbum.
Ainda nessa direção, Herschmann e Kischinhevsky (2011: 24), levantam
alguns pontos para contextualizar o processo de reconfiguração da indústria fonográfica. Entre eles, os autores citam “a crise da noção de álbum
(vários músicos vêm repensando a relevância de gravá-los e/ou lançá-los)
188 | Lucas Waltenberg
que vai deixando de ser o objetivo central desta indústria ou a mercadoria
mais valorizada nesta dinâmica de produção e consumo”.
Discutindo as novas materialidades da música, Bødker postula que:
se cada vez mais um número crescente de consumidores (que não fazem parte da
geração do LP) vir o álbum não como um formato definido com referência a preocupações estéticas mas, ao invés disso, como uma forma de ‘compra forçada’ através
de conteúdo adicional que precisa ser adquirido para que seja possível obter as partes
desejadas (e há indicação disso), as novas possibilidades digitais podem, de fato,
colocar o álbum sob forte tensão. (2004: 13, tradução do autor)
Sim, as novas tecnologias trouxeram problemas para o álbum da forma
que ele estava pensado. Porém, isso não quer dizer que o formato tenha os
seus dias contados. Defendemos que adotar uma perspectiva que pensa a
materialidade dos diferentes suportes fonográficos nesse debate nos permite
trilhar um caminho que dê não somente conta das rupturas, mas também
da permanência do álbum, mesmo frente a esses desafios.
Em primeiro lugar, é importante colocar que, ainda que a ideia de um
álbum musical possa ter origem nos primórdios da indústria da música,3
interessa-nos aqui aquele que remonta ao surgimento do disco de vinil de
33⅓ r.p.m. Pois, tal como Bartmanski e Woodward (2013), entendemos que
as histórias de ambos estão entrelaçadas. Assim, como configura a introdução dos discos long-play novas práticas de escuta musical? Discutindo a
materialidade da música, Straw (2012), no caso desse suporte, fala de um “protocolo de escuta”, o qual relaciona as faixas do álbum com seus paratextos:4
3
Sanjek (1988: 134, tradução do autor) aponta “Bix Beiderbecke Memorial Album” como o
primeiro álbum “contendo várias gravações de música popular por um artista ou grupo particular
ou construído em torno de um tema central.” Lançado em 1936 pela RCA-Victor, o produto consistia em um pacote com seis discos de dez polegadas e um encarte de doze páginas, cuja proposta
era prestar uma homenagem ao trompetista Leon Bismarck “Bix” Beiderbeck, falecido em 7 de
agosto de 1931, aos 26 anos. Sobre a denominação “álbum”, Jones e Sorger (1999: 71, tradução do
autor) sugerem que o “empacotamento” de músicas sob o nome de álbum estabelece uma relação
direta com álbuns de fotografia. Por causa da longa duração de peças de música clássica e a baixa
capacidade de armazenamento dos discos de 78 r.p.m., as obras precisavam ser comercializadas em
vários discos, arrumados em pesadas caixas de papelão: “[a] similaridade, em aparência e função,
dessas caixas com os álbuns de foto, as levaram a ser conhecidas como álbuns”.
4
Genette (2001) entende paratexto como “aquilo que permite a um texto transformar-se em um livro e
ser oferecido como tal aos seus leitores e, mais genericamente, ao público”. Para o autor, os paratextos
expandem e envolvem o texto principal com o objetivo de presentificá-lo, ou seja, torná-lo presente
“para garantir a presença do texto do mundo”. Da forma como é construído, o conceito de paratexto
permite uma série de desdobramentos que vão além do livro. Aqui, tratamos como paratexto qualquer
elemento que expande, envolve e presentifica o álbum musical. Consideraremos, então, o encarte,
as imagens, o título, a capa, a ordem das faixas, textos presentes e outros elementos constitutivos.
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as imagens da capa, do encarte e os textos de apresentação.5 Tal “protocolo de
escuta”, no entanto, não se restringe ao disco de vinil. O próprio Straw, noutra ocasião, também fala como essa forma intensa de escuta aparece nos CD,
“no qual um ouvinte se debruçaria lentamente pelo encarte que acompanha
[o CD] enquanto um trabalho musical é revelado, cada um iluminando o outro
dentro de uma interconexão necessária” (Straw, 2009: 86, tradução do autor).
No entanto, como sugerimos acima, a materialidade do álbum em CD traz
consigo um problema que não aparecia no vinil: o facto de ele ser leve e mais
facilmente portátil ajudava a distanciar a música da “embalagem, da anotação
e do design intencionados a garantir o valor e a integridade do CD enquanto
uma forma cultural distinta” (Straw, 2009: 82, tradução do autor). No caso
do MP3, esse problema ganha contornos mais complexos, uma vez que,
no ambiente on-line, a música é mais facilmente afastada de tais paratextos
que materializam o álbum.
Dessa forma, entendemos que o formato “álbum de música” deve necessariamente ser pensado em diálogo com a materialidade do suporte onde
ele é registado. Diferentes suportes – discos de vinil, CDs ou MP3 – evocam
diferentes práticas, uma vez que possuem “protocolos de escuta” particulares; e também problematizam o formato. Aqui, vamos focar em uma nova
configuração do álbum musical, o álbum-aplicativo, entendendo-o “como
um software desenvolvido para dispositivos móveis, que traz um álbum
específico envolto em elementos complementares às músicas, invocando
um protocolo de escuta direcionado pelos recursos interativos utilizados
pelos desenvolvedores do app” (Polivanov e Waltenberg, 2015: 268).
Pensando a materialidade da música, Straw afirma que: “considerada há
muito tempo uma das formas culturais mais etéreas e abstratas, a música
é indiscutivelmente a mais incorporada nas infraestruturas materiais do
nosso cotidiano” (2012: 227). Na análise do álbum-aplicativo “Biophilia”,
usaremos a ideia de “protocolo de escuta” como um recurso metodológico
para investigar novas configurações do álbum de música, com atenção
especial à sua materialidade. Dessa forma, falaremos o álbum como um
artefacto cultural, tal como Sterne (2011; 2012) e Sá (2007) tratam o MP3,
ou seja, “um constructo que produz um conjunto de relações sociais e
materiais específicas” (ibidem: 129). A partir de Magaudda (2011), lembramos que mesmo no contexto da cultura digital é possível falar em
materialidade. Como observa o autor, a digitalização da música não significa
5
Ainda que esse protocolo de escuta sugira uma relação de proximidade idealizada, quase de
imersão, entre ouvinte, artista e suporte material, é importante notar que colecionadores costumam
justificar suas preferências pelo vinil nesses termos (Bartmanski e Woodward, 2013; Gauziski, 2013).
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necessariamente “menos materialidade”; ao contrário, esse processo reconfigura a relação entre materialidade e cultura, onde se nota “um renovado
papel desempenhado por objetos materiais na vida e nas atividades das
pessoas”. Assim, dispositivos móveis podem ser vistos como aparelhos de
reprodução musical, sugerindo novos protocolos de produção e consumo
de álbuns. Partilhamos também da visão de Abreu (2009: 125), para quem
novos dispositivos digitais que atuam na mediação entre a criação e o consumo musical “permitiram uma recriação significativa da cultura musical,
dos processos de constituição de critérios de fruição lúdica e estética da
música e das práticas de uso e manipulação dessa mesma música”. Por fim,
destacamos também nosso alinhamento com Sá e Polivanov (2012: 23),
que articulam um conjunto relevante de reflexões sobre materialidade e
cultura material, seja a ideia de que “todo ato de comunicação exige um
suporte material que exerce influência sobre a mensagem”, seja a vertente
antropológica que nos instiga “a pensar sobre a especificidade, concretude
ou materialidade de cada um dos artefatos técnicos em seus usos cotidianos”.
Interessa-nos, portanto, em primeiro lugar, observar e descrever o objeto
em questão para, em seguida, destacar “protocolos de escuta” que seriam
específicos do álbum-aplicativo.
2. “Biophilia”: Contexto e descrição
A artista islandesa Björk talvez seja uma das personalidades da música que
mais consegue produzir na vertente experimental, sem abrir mão de uma
exposição digna de grandes estrelas da música pop. Envolvida em diversos
projetos musicais desde o início da adolescência, a cantora foi apresentada
ao mundo através de sua banda Sugarcubes, que vivenciou um sucesso
moderado com o lançamento do primeiro álbum, “Life’s too good” (1988).
Três discos depois, a banda acabou e a cantora se lançou em uma nova
carreira solo com o álbum “Debut” (1993).
Com uma discografia que, além dos trabalhos solo, engloba trilhas
sonoras, participações em gravações de outros músicos, composições para
estrelas do porte de Madonna e álbuns de remixes, Björk procura usar
influências diversas em suas produções. De 1993 a 2011, ano de lançamento
de “Biophilia”, Björk procura produzir músicas cada vez mais “estranhas”
– ruídos, grunhidos e produções pouco comprometidas com clichês do
mainstream –, gozando de ainda mais prestígio em seu campo de atuação.
É possível dizer que para cada álbum, são acionados sonoridades e temas
diversos, de forma que a sua discografia se torna um grande caleidoscópio
musical. Para citar apenas alguns discos, “Debut” (1993) e “Post” (1995)
são talvez os registos mais pop, sonoramente falando, com músicas dançantes
Novas configurações do álbum de música na cultura digital | 191
e videoclipes de ampla exposição em emissoras de televisão, como a MTV.
Em “Vespertine” (2001), Björk apostou em ruídos mais delicados, contando
com a destreza da harpista Zeena Parkins e os sons inusitados da dupla de
música eletrônica experimental Matmos. “Medúlla” (2004) foi gravado
em quase sua totalidade usando apenas vozes, recorrendo pontualmente
a recursos eletrônicos para dar corpo a algumas faixas. O álbum seguinte,
“Volta” (2007), trouxe uma Björk mais eclética e pop, estabelecendo parcerias com Antony Hegarty, da banda Antony and the Johnsons, e o produtor
de hip hop Timbaland, que já colaborou com artistas como Madonna,
Justin Timberlake, Nelly Furtado e Missy Elliot.
Ainda que todos os álbuns de Björk tenham a sua importância e singularidade na variegada discografia da cantora, “Biophilia” (2011) merece um
tratamento especial pela grandeza dos temas abordados e do lugar ocupado
pelo álbum em um projeto multimídia mais amplo. Segundo a cantora:
“Biophilia” começou como uma ideia de uma “casa da música”, uma escola de música/
/museu para crianças em um dos prédios desocupados da Islândia. Depois, virou um
filme 3D; em seguida, um centro de invenção para instrumentos musicais acústicos,
um console de jogo eletrônico e um experimento de controlador touchscreen, e então,
por último, mas não menos importante, uma caixa de aplicativos. (tradução do autor)6
De uma maneira geral, “Biophilia” gira em torno das conexões entre
música, natureza e ciência. Cada canção enfatiza um tema, que é explorado
tanto na letra, quando nas escolhas sonoras e instrumentais. Em ampla matéria publicada na edição britânica da revista Wired,7 aponta-se que o projeto
possui uma “ambição musicológica”, uma vez que cada faixa procura ensinar
algo do fazer musical relacionando-a a um fenómeno da natureza ou um
aspecto científico. “Thunderbolt” por exemplo, enfatiza arpejos enquanto
a sonoridade é inspirada por relâmpagos; “Moon” relaciona sequências ao
ciclo lunar; “Mutual Core” estabelece um diálogo entre acordes e placas
tectônicas, e assim por diante.
Lançado em disco de vinil, CD e MP3, “Biophilia” também foi disponibilizado como um aplicativo móvel para dispositivos da Apple – iPhone,
iPad e iPod Touch –, formato que ficou conhecido como album app ou app
album (aqui, usaremos a expressão álbum-aplicativo). Para essa versão,
Björk reuniu um grupo formado por profissionais de diferentes áreas, como
6
Editorial da revista Dazed & Confused, julho 2011, escrito por Björk, editora convidada nesta
edição.
7
“Music, Nature, Science”, Wired. London: The Condé Nast Publications Ltd, agosto 2011
(edição para iPad).
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musicólogos, programadores, animadores, cientistas e designers. A coordenação do projeto ficou por conta de Scott Snibbe, artista multimídia e
empresário, através do Snibbe Studio. Em entrevista para a revista Dazed
& Confused, Scott aponta:
Eu sempre fui obcecado por fazer do computador uma extensão da mente humana,
tornando-a interativa usando movimento, animação e som. [...] Mais precisamente,
eu acho que ele [o álbum “Biophilia”] é sobre a infinitude da natureza em todas as
suas escalas e como a música se relaciona a isso. As pessoas esquecem que a matemática é uma forma de modelar a natureza e negligenciam a beleza e o prazer disso.
(tradução do autor)8
Sobre a escolha do artista para integrar a equipe, Björk explica que:
Ele compartilhava a minha visão de fundir a música e os aplicativos, fez dois dos
aplicativos, virou o gerente do projeto e vai inspecionar as projeções ao vivo, onde
tentaremos fazer as pessoas se sentirem como se estivessem dentro do iPad, tocando
e ouvindo os apps. (tradução do autor)9
Interessante também foi a negociação com as lojas virtuais da Apple,
através das quais tanto o álbum-aplicativo quanto as músicas podem ser
adquiridas. Conta a artista que o departamento de música – iTunes Store –
e o de aplicativos – App Store – são competitivos e “Biophilia” foi o primeiro
caso de um projeto lançado e comercializado ao mesmo tempo por esses
dois canais. Enquanto na App Store é possível fazer o download do álbum-aplicativo, na iTunes Store ficam disponíveis as músicas do álbum – que
podem ser compradas em separado ou em conjunto.
O aplicativo “Biophilia” é estruturado através de um app “aglutinador”,
que dá acesso a outros dez aplicativos, um para cada faixa do álbum. Ao executar “Biophilia”, o usuário encontra uma galáxia (Figura 1) com nove
estrelas, cada uma com uma cor diferente, representando uma música do
álbum e o convite “swipe a finger to orbit”. A exceção é o aplicativo para a
canção “Cosmogony”, que só pode ser acessado pelo menu, localizado no
canto superior esquerdo.
Com a exceção de “Cosmogony” e “Dark Matter”, os aplicativos apresentam um menu interno, com os botões “play”, “animation”, “score”,
“lyrics” e “credits”, além de uma breve descrição da faixa e uma análise
8
9
“Violently Appy”, Dazed & Confused. London: Waddell Limited, julho 2011 (edição para iPad).
Ver nota de rodapé anterior.
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FIGURA 1 – Galáxia de “Biophilia”
Fonte: Wellhart Ltd, retirada do press kit disponível para download em http://www.snibbe.com/apps#/biophilia/
da musicóloga Nicola Dibben. Enquanto no menu de “Cosmogony”,
o botão “play” é suprimido para dar lugar a “intro” (vídeo com uma
narração sobre o projeto “Biophilia”) e “song” (vídeo musical que simula
uma navegação pela galáxia de “Biophilia”), em “Dark Matter” não há
o botão “lyrics”.
Todas as faixas, excetuando “Cosmogony”, possuem uma experiência
interativa, como um jogo, que pode ser acessado pelo botão “play”. Através
desse recurso, enquanto o ouvinte manipula os aplicativos, entra em contato com a sonoridade da canção, podendo explorá-la através de imagens,
de áudio e do tato. O texto de apresentação sobre a canção “Thunderbolt”,
presente no menu interno, explica:
Imagine a força natural mais poderosa e fantástica capaz de gerar som e você provavelmente pensará em tempestade de trovões. Björk usa raios para fazer essa canção
e o aplicativo. A linha de baixo é o som de uma descarga elétrica criada por uma
bobina de tesla formando um padrão musical – o arpejo. Enquanto o arranjo vocal e
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a letra anseiam por milagres, a linha de baixo oscila entre sons musicais e da natureza,
e entre som audível e vibração sentida. (tradução do autor)
No aplicativo de “Thunderbolt” (Figura 2), criamos arpejos posicionando
nossos dedos na tela do dispositivo. Podemos usar somente o som dos
trovões, ou usar o acompanhamento vocal enquanto criamos as trovoadas.
FIGURA 2 – Experiência interativa da música “Thunderbolt”
no aplicativo “Biophilia”
Fonte: Wellhart Ltd, retirada do press kit disponível para download em http://www.snibbe.com/apps#/biophilia/
O aplicativo para a canção “Solstice” (Figura 3) apresenta um “jogo”
bem diferente do descrito acima. O texto de apresentação fala:
Quando Sjón, antigo colaborador e amigo de Björk, foi convidado a escrever um
poema natalino para um jornal islandês, ele compôs essa celebração à luz e às estações do ano. A comparação no poema entre o sistema solar e uma árvore de natal
inspirou o aplicativo da canção: no centro há um sol, do qual você puxa raios de luz
para formar uma harpa circular de cordas tocadas por planetas em órbita; incline
a tela e a imagem muda.
Novas configurações do álbum de música na cultura digital | 195
Björk toca Solstice com uma harpa pendular especialmente encomendada, que incorpora a ideia de gravidade, central para a inspiração da música.
Na experiência interativa em “Solstice”, o ouvinte torna-se usuário e,
de certa forma, cocompositor ao ser convidado a interferir no acompanhamento da música. Enquanto a voz de Björk dá a melodia, o instrumental é
criado à medida que interferimos no “sistema solar” exibido no aplicativo.
FIGURA 3 – Experiência interativa da música “Solstice” no aplicativo “Biophilia”
Fonte: Wellhart Ltd, retirada do press kit disponível para download em http://www.snibbe.com/apps#/biophilia/
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3. A remediação do álbum musical em “Biophilia”: novos protocolos de
escuta
Os dois exemplos apresentados acima são apenas uma amostra da complexidade do projeto, trazendo questões interessantes para pensarmos
a articulação entre os temas abordados e o formato álbum-aplicativo.
Ou seja, as relações entre música, natureza e tecnologia, ainda que
recorrentemente mencionadas nas letras e nas escolhas de sons e instrumentos, ficam ainda mais explícitas quando consideramos que o álbum,
nesse caso, não é somente a reunião de músicas. Ao contrário, é preciso
considerar o conjunto formado por sons, imagens, textos e experiências
interativas para entender com acuidade o recorte sonoro e temático proposto pela artista.
Retomando a noção de “protocolo de escuta”, onde os paratextos são
elementos fundamentais na escuta de álbuns, podemos dizer que as informações paratextuais do álbum-aplicativo de “Biophilia” se apresentam como
recursos importantes para que o projeto seja explorado em sua totalidade.
Em primeiro lugar, a “capa” do aplicativo conecta o programa à identidade
visual do álbum registrado noutros suportes. Na tela de apresentação,
a galáxia, as cores e os títulos das músicas auxiliam na navegação 3D.
Nas telas individuais das faixas, os textos oferecem explicações detalhadas da inspiração por trás de determinada música, além das instruções para
que o usuário desfrute de forma completa a experiência interativa.
Pela aproximação entre música e jogos eletrônicos, cabe retomar a reflexão de Falcão sobre o papel dos paratextos no contexto dos games. Argumenta o autor que:
[...] além de os acontecimentos variarem de acordo com como se joga, que caminhos
se trilha, [...] quando um jogador produz algo a respeito de um jogo – um tutorial,
por exemplo – este tutorial não apenas modifica expectativas, ele modifica o meio em
si. É razoável, portanto, sugerir que a criação destes paratextos [...] guiam nossa mão,
nos ensinam como solucionar complexos enigmas, nos dão pequenos empurrões nas
direções certas. (2013: 126, ênfase no original)
Podemos inferir que as informações paratextuais no álbum-aplicativo
“Biophilia” dão o tom do tipo de interação que se espera do ouvinte. Para
que ele desfrute do programa de maneira completa, são explicadas várias
ferramentas e é necessário ler curtos manuais de instrução. Se, por um lado,
esse tipo de direcionamento tira um pouco da liberdade prometida no convite “swipe a finger to orbit”, por outro, permite ao usuário se aprofundar
nas variadas experiências disponíveis.
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No aplicativo, não há uma ordem para “jogar” as músicas; o ouvinte faz
o seu próprio percurso. E, ainda que as músicas sejam importantes, tão
atrativos quanto elas são os jogos e programas que manipulamos na tela,
o tempo todo pontuados pelos elementos sonoros das canções. “Biophilia”
oferece diferentes experiências de escuta musical, dependendo do instrumento que faz a mediação do álbum. Mesmo que possamos somente ouvir
as músicas, no aplicativo, somos desafiados a encarar de forma diferente o
trabalho musical de Björk, manipulando-o, olhando para ele e investigando
os sons que compõem cada canção. Como apontado por Abreu (2000: 133),
precisamos observar a “densa pluralidade de usos e de práticas que conferem aos instrumentos de mediação um papel central na compreensão
dos consumos musicais contemporâneos”. O álbum registado em suportes
como o disco de vinil e o CD invoca ou estimula certas práticas de escuta,
como a execução das faixas na ordem proposta e o acompanhamento dos
elementos gráficos da capa e do encarte. No aplicativo, o álbum torna-se
uma espécie de game, onde o ouvinte é convidado a adotar um papel mais
participativo, transformando-se em um usuário que brinca com as músicas
e as recria. No aplicativo, tão importante quanto ouvir a música é tocar
nelas com as pontas dos dedos.
Assim, perguntamos, como o álbum-aplicativo “remedeia” o álbum de
música, entendido em um sentido mais tradicional? Bolter e Grusin (2000: 49)
entendem como “remediação” e “representação de um meio em outro”, uma
característica definidora das novas mídias digitais. O conceito é regido por
uma dupla lógica, que aponta para as noções de imediação e hipermediação.
Enquanto a primeira diz respeito à “transparência” do meio, onde o espectador ficaria com a impressão de estar em contato direto com aquilo que é
representado, desenvolvendo uma relação mais íntima e imersiva, a segunda
aponta para um estilo de apresentação que preza pela heterogeneidade.10
Assim, “se a lógica da imediação leva a apagar ou a tornar automático o
ato da representação, a lógica da hipermediação reconhece múltiplos atos
de representação e torna-os visíveis” (ibidem: 33-34, tradução do autor).
Como um álbum, o app de “Biophilia” traz as músicas e o trabalho gráfico
correspondente ao tema abordado, explorando um repertório sonoro e imagético em torno de um produto musical. Entretanto, no aplicativo, não basta
ver as imagens, ler os textos ou ouvir as músicas como se fossem atividades
separadas, pois a experiência só se torna completa quando se conjuga essas
três instâncias. Nesse contexto, ouvir “Biophilia” é usar (ou jogar) “Biophilia”.
10
Para os autores, a navegação on-line seria um exemplo de hipermediação, uma vez que combina
imagens, vídeos, sons e textos em um mesmo espaço.
198 | Lucas Waltenberg
Entendemos que o álbum-aplicativo de “Biophilia” é, portanto, de um ato
de remediar o álbum de música que conjuga a dupla lógica de imediação e
hipermediação. Através de toques na tela, o usuário coloca-se em contato
mais direto com a música, intervindo diretamente nela, como se o meio
fosse apagado. Ao mesmo tempo, há um complexo hipermidiático que traz
animações, imagens, sons, botões, menus e controles, de forma que o ouvinte
possa usufruir a experiência multimidiaticamente.
Considerações finais
Em Cibercultura, Lévy (2000: 147) postulou que “os testemunhos artísticos da cibercultura são obras-fluxo, obras-processo, ou mesmo obras-acontecimento pouco adequadas ao armazenamento e à conservação”.
Podemos dizer que o álbum-aplicativo “Biophilia” está posicionado em
um entre-lugar nessa reflexão. Ainda que o projeto considere o ouvinte
(assumindo o papel de usuário) como um coautor da obra no sentindo
de lhe fornecer a ele meios de se colocar como criador e manipulador de
sons, “Biophilia” apresenta um campo de atuação circunscrito à temática
explorada, às características materiais do suporte e aos paratextos, os quais
tornam o álbum presente, aproximam ouvinte e artista e estabelecem as
regras de uso para melhor aproveitamento da interatividade.
Ao mesmo tempo que aponta para uma novidade, “Biophilia” também
recupera certas práticas de escuta musical que, acredita-se, foram enfraquecidas pelas novas tecnologias. Como aponta Snibbe:
Se você pensar bem e tiver, digamos, mais de 40 anos, como eu, o conceito de imersão
na música remonta a um ato bastante simples, que acontecia quando pegávamos um
disco de vinil e o escutávamos, olhando o encarte e lendo as letras, completamente
esquecidos do mundo enquanto nos apaixonávamos pela música [...]. Os formatos
digitais nos tiraram um pouco dessa capacidade. Graças a eles, ouvimos música em
movimento, enquanto escovamos os dentes ou tomamos banho. Não que isso seja
de todo ruim, mas é como se mantivéssemos um relacionamento amoroso superficial
com a música. “Biophilia” é uma experiência em torno daquele conceito de que falei
inicialmente, de nos fazer parar e ouvir a música com profunda atenção. A diferença
é que agora o encarte, as fotos, as imagens, tudo está em movimento, tudo tem vida.
(Albuquerque, 2011)
O aplicativo “Biophilia” mostra que, no atual processo de reconfiguração
da indústria fonográfica, precisamos olhar não somente para as rupturas
de modelos mais tradicionais, mas também para as continuidades. Nesse
sentido, o formato “álbum”, tido como ameaçado pelas novas práticas
Novas configurações do álbum de música na cultura digital | 199
de consumo musical, mostra que pode ser repensado para acompanhar o
processo, incentivando novas maneiras dos consumidores e dos próprios
artistas de lidarem com a música.
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Novas configurações do álbum de música na cultura digital | 201
Artigo recebido a 21.07.2015
Aprovado para publicação a 01.02.2016
Lucas Waltenberg
Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Federal Fluminense
Niterói, RJ. CEP 24210-590, Brasil
Contacto: lwaltenberg@gmail.com
New Forms of the Music Album in
Digital Culture: The Case of the
“Biophilia” App
Nouvelles configurations de l’album
de musique dans la culture digitale:
le cas de l’application “Biophilia”
This article addresses changes in the phonographic industry, focusing on the “music
album” format. Adopting a perspective that
considers the importance of the materiality
of music playback devices, it analyses the
“Biophilia” app-album launched by Björk
in 2011, guided by questions concerning
the materiality of music and the remediation of the music album through new
protocols for listening. It argues that the
album format – supposedly threatened by
new music consumption practices involving
digital technologies – suggests that it can be
remodelled to follow the changing music
industry, encouraging consumers and artists
to respond to music in new ways.
Keywords: app-album; Biophilia, Björk;
electronic music; music album; phonographic industry.
Cet article se penche sur le processus de
restructuration de l’industrie phonographique, avec une particulière attention au
format “album de musique”. En adoptant une perspective qui tient compte de
l’importance des matérialités de supports
de reproduction musicale, nous nous penchons sur l’album-application “Biophilia”,
lancé par Björk en 2011, guidé par des
questions sur la matérialité de la musique et
la remédiation de l’album musical à travers
de nouveaux protocoles d’écoute. Nous
alléguons que le format album – supposément menacé par les nouvelles pratiques
de consommation dans les technologies
digitales – montre ainsi qu’il peut être
repensé afin d’accompagner le processus
de restructuration de l’industrie musicale, en encourageant de nouvelles façons,
de la part des consommateurs autant que des
propres artistes, d’aborder la musique.
Mots-clés: album-application; album de
musique; Biophilia, Björk; industrie phonographique; musique électronique.