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ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 1-266, jan.-abr. 2008
7
Interface Fonologia-Poesia-Música: Uma análise do ritmo lingüístico do Português
Arcaico, a partir da notação musical das Cantigas de Santa Maria
Gladis Massini-Cagliari
Universidade Estadual Paulista - UNESP-Araraquara / CNPq
Departamento de Lingüística – Faculdade de Ciências e Letras
Rodovia Araraquara-Jaú km 1 – 14800-901 Araraquara - SP
gladis@fclar.unesp.br
RESUMO: Estudo do ritmo lingüístico em Português Arcaico, período
trovadoresco, com base na abstração da estrutura prosódica de um período
passado da língua a partir da análise dos ritmos poético e musical das
cantigas religiosas escritas em galego-português. A exemplificação é feita a
partir da Cantigas de Santa Maria 100, Santa Maria, Strela do Dia, atribuída a
Afonso X, rei de Castela (1121-1284).
ABSTRACT: This paper aims to present a study of linguistic rhythm in Archaic
Portuguese, based on the abstraction of the phonological prosodic structure of
an ancient period of the language from its remaining written poetry and its
musical notation. To exemplify, I consider the Cantiga de Santa Maria 100,
Santa Maria, Strela do Dia, composed at the Court of King Alfonso X of
Castile.
PALAVRAS-CHAVE: ritmo, Fonologia, música, prosódia, Cantigas de Santa
Maria
KEY WORDS: rhythm, Phonology, Music, prosody, Cantigas de Santa Maria
1. Introdução
Este trabalho objetiva apresentar um estudo do ritmo lingüístico em Português
Arcaico, período trovadoresco, com base na abstração da estrutura prosódica de um
período passado da língua a partir da análise dos ritmos poético e musical das cantigas
religiosas escritas em galego-português. Para exemplificar a adequação da nova
metodologia aqui proposta, considera-se a Cantiga de Santa Maria 100, Santa Maria,
Strela do Dia, de Afonso X (1121-1284). As Cantigas de Santa Maria (de agora em
diante, CSM) são uma coleção de cantigas religiosas em louvor da Virgem Maria, com
notação musical, mandadas compilar pelo Rei Sábio de Castela na segunda metade do
século XIII, que sobreviveram em quatro códices: o de Toledo (To), o menor e o mais
antigo; o códice rico de El Escorial (T), o mais rico em conteúdo artístico, que forma
um conjunto (os chamados códices das histórias) com o manuscrito de Florença (F); e
o mais completo, o códice dos músicos – El Escorial (E) (cf. Parkinson, 1998, p. 180).
Na presente análise, faz-se indispensável uma interface com a Música, já que as
poesias medievais galego-portuguesas eram cantigas, isto é, peças poético-musicais
feitas para serem cantadas. O objetivo principal é extrair elementos da notação musical
que possam se constituir em argumentos para a realização fonética das cantigas quanto à
sua estrutura silábica e ao seu ritmo lingüístico. Neste sentido, a estrutura musical pode
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008
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providenciar pistas para a análise de processos lingüísticos como a paragoge, por
exemplo, a partir da observação de “acertos” e “desacertos” entre a quantidade de notas
e de sílabas a serem cantadas. A constatação de processos de reforço dessa natureza
(que acrescentam vogais – e, conseqüentemente, sílabas) têm sido constantemente
vinculada a línguas de ritmo silábico. Além disso, a análise dos “acertos” e “desacertos”
entre proeminências musicais e lingüísticas pode fornecer pistas para os limites de
ocorrência do acento secundário.
Desta forma, este trabalho procura trazer evidências para a classificação do ritmo
lingüístico do Português Arcaico, a partir da análise de processos de reforço (como a
paragoge) e das coincidências e não-coincidências entre os acentos musicais, poéticos e
lingüísticos.
2. Estudos anteriores a respeito da prosódia do Português Arcaico
Por muito tempo, acreditou-se ser impossível o estudo do ritmo lingüístico de
períodos passados da língua, porque esses sobreviveram apenas em registros escritos.
No entanto, estudos mais recentes (entre eles, Halle & Keyser, 1971, para o inglês, e
Massini-Cagliari, 1995, 1999a, 2005, para o Português Arcaico – de agora em diante,
PA) têm mostrado que a escolha de textos poéticos para se estudar fenômenos
prosódicos (e, em especial, o ritmo) de uma língua, inclusive e principalmente em seus
estágios passados, já se provou adequada e eficaz, sobretudo quando se toma a
descrição em um nível “mais abstrato” (fonológico e não fonético).
Massini-Cagliari (1995, 1999a) foi a primeira a elaborar um estudo do acento
lexical do PA, ao propor uma metodologia que enfoca os itens lexicais em posição de
rima, proeminência principal do verso, para estabelecer os padrões acentuais do PA –
período da língua para o qual não sobreviveram registros orais.
No entanto, a metodologia adotada nesses trabalhos, mesmo abrindo novos
horizontes para estudos de fenômenos prosódicos como silabação, sândi e acento
lexical, mostrou-se limitada para a determinação do padrão prosódico de itens lexicais
que não aparecem em posição de rima e para a determinação da tipologia rítmica da
língua (como silábica e acentual). Por exemplo, há padrões acentuais que são apontados
como existentes pelos estudiosos desde a tradição filológica oitocentista, mas que nunca
comparecem no corpus em posição de rima. É o caso das proparoxítonas. No entanto,
há controvérsias quanto à existência desse padrão no período arcaico da língua
portuguesa. Os poucos autores que tratam do assunto concordam em relação ao fato de
que o PA possuía uma grande quantidade de palavras paroxítonas e oxítonas, mas
discordam quanto à existência de proparoxítonas. Os que trataram de corpora fechados
(como NUNES, 1972, 1973, por exemplo), principalmente compostos de textos
poéticos, só puderam encontrar paroxítonos e oxítonos. Já os que fazem afirmações
mais generalizantes, admitem a existência de proparoxítonos, porém raros - Michaëlis
de Vasconcelos (1912-13[s/d]: 62), Teyssier (1987: 24). A este respeito, Michaëlis de
Vasconcelos (1904[1990]: XXV) afirma:
Não verifiquei ainda, quantas palavras esdrúxulas entraram no vocabulário dos
trovadores. Em todo o caso devem ser poucas, se abstrairmos dos tipos com semivogal i
(sábya, rávya, cámbyo; na ortografia do sec. XIV sabha, ravha, cambho, e
posteriormente saiba, raiva, caimbo; êste último regressou a cámbio) que eu contaria á
maneira espanhola, entre os parocsítonos.
10
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008
Dada essa limitação da metodologia anterior, no desejo de prosseguir com as
investigações a respeito da prosódia do PA de maneira mais ampla, o presente trabalho
propõe a avaliação das contribuições que uma interface com a Música das cantigas pode
trazer para o conhecimento do ritmo do PA, a partir da comparação da notação musical
de algumas cantigas e da “letra” que ela acompanhava.
Embora todas as cantigas medievais galego-portuguesas (profanas e religiosas)
tenham sido escritas para serem cantadas, poucas foram as partituras remanescentes de
cantigas profanas. Conhecemos apenas as partituras de sete cantigas de amigo de
Martim Codax (na verdade, seis; para a última das sete cantigas da folha volante, consta
apenas a anotação do texto), que sobreviveram no Pergaminho Vindel (cf. Ferreira,
1986; Monteagudo, 1998), e de sete cantigas de amor de D. Dinis, registradas no
Pergaminho Sharrer (cf. Sharrer, 1991), um fólio mutilado e muito danificado da última
década do século XIII.
Melhor sorte tiveram as cantigas medievais religiosas. As 420 Cantigas de Santa
Maria, de Afonso X (1121-1284), mandadas compilar pelo Rei Sábio de Castela na
segunda metade do século XIII, sobreviveram, com notação musical, em quatro códices,
o que permitiu aos seus editores, na maior parte das vezes, a comparação entre dois
registros da mesma cantiga (às vezes, até três, porém, outras vezes, apenas um) – o que
dá maior fidedignidade à interpretação da sua “letra” e música.
Com base na análise da notação musical da CSM 100, este trabalho mostra como
esta pode atuar como um meio adicional de informação sobre a prosódia da língua (que
dá suporte aos versos que são cantados), a partir da análise de dois fenômenos: paragoge
(que traz importantes esclarecimentos sobre a silabação da língua na época) e ritmo (a
partir da consideração da possibilidade de localização de acentos secundários –
rítmicos).
3. Paragoge na CSM 100
A paragoge é um processo fonológico que acrescenta uma vogal neutra /e/ após
sílabas terminadas por codas consonantais, a fim de transformar essas sílabas em
estruturas canônicas do tipo CVCV. A realização fonética da vogal epentética pode ser
comprovada a partir da notação musical, que prevê uma nota correspondente à sílaba
criada a partir do acréscimo da vogal epentética, que muitas vezes é também registrada
na escrita.
Em relação ao universo das cantigas medievais religiosas escritas em galegoportuguês, a paragoge rítmica já foi estudada por Wulstan (1993). Considerando todo o
conjunto das 420 Cantigas de Santa Maria, o autor identifica oito cantigas em que
ocorreria esse fenômeno: 10, 17, 76, 100, 102, 180, 197 e 350. Partindo do
levantamento de Wulstan (1993), Massini-Cagliari (2005) mostrou que a ocorrência da
paragoge nas cantigas medievais galego-portuguesas não cumpre apenas a função
poética de igualar os versos agudos (terminados em oxítonas) aos graves (terminados
em paroxítonas) (padrão), acompanhando a música (o que a tornaria um processo
unicamente do domínio da poesia - estilístico, portanto) - mesmo porque essa igualdade
não acontece em todos os casos. Ao contrário, a ocorrência da paragoge se constitui em
uma utilização estilística de um processo fonológico presente na língua da época (a
epêntese vocálica, que ocorria para corrigir estruturas silábicas “anômalas”); em outras
palavras, a ocorrência da paragoge se estrutura sobre possibilidades abertas pelo próprio
sistema da língua.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008
11
No Português Brasileiro (PB) atual, são casos de paragoge1 (definida como um
subtipo de epêntese) as ocorrências de epêntese que “corrigem”, na pronúncia,
empréstimos e abreviaturas, que podem conter sílabas “anômalas” – exemplos: VARIG
([varigi]), clube ([klubi]) - citados desde Câmara Jr. (1973: 162-163), retomados por
Lee (1993: 847). No entanto, por serem motivados por restrições fonotáticas (o PB
proíbe a ocorrência de consoantes oclusivas em posição de coda), concordamos com
Lee (1993), ao classificá-los como casos de epêntese (e não paragoge), agrupando-os
com os outros exemplos de inserção de vogal, independentemente da posição em que
esta é inserida. Exemplos desse tipo também já eram encontrados no PA. Correspondem
a ocorrências como a do verso 5 da CSM289: Desto direi un miragre grande que cabo
Madride - em que a vogal epentética aparece para resolver a estrutura silábica anômala
de uma palavra estrangeira (o nome da cidade Madrid), que possuía uma consoante
oclusiva em posição de coda (estrutura proibida em PA).
Na CSM100, em (1), conforme a edição de Mettmann (1986: 304), a paragoge
considerada por Wulstan (1993: 18) ocorre em posição medial de verso2, já que a
música das estrofes revela rimas internas envolvendo paragoge. As rimas internas são,
segundo Wulstan, enfatizadas por notas mais longas, sendo que a pista para a paragoge
é a nota breve que ocorre em cada verso na posição apropriada.
(2)
Santa Maria,
Strela do dia,
mostra-nos via
pera Deus e nos guia.
Ca veer faze-los errados
que perder foran per pecados
entender de que mui culpados
son; mais per ti son perdõados
da ousadia
que lles fazia
fazer folia
mais que non deveria.
Santa Maria...
Amostrar-nos deves carreira
por gãar en toda maneira
a sen par luz e verdadeira
que tu dar-nos podes senlleira;
ca Deus a ti a
outorgaria
e a querria
por ti dar e daria.
Santa Maria...
Guiar ben nos pod' o teu siso
mais ca ren pera Parayso
u Deus ten senpre goy' e riso
pora quen en el creer quiso;
e prazer-m-ia
se te prazia
que foss' a mia
alm' en tal compannia.
Santa Maria...
12
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008
Figura 1. Interpretação de Wulstan (1993: 18) da música da CSM100.
Além da CSM100, em todos os outros casos considerados por Wulstan (1993)
(CSMs 10, 17, 76, 102, 180, 197 e 350), a ocorrência da paragoge sustenta-se na
ocorrência de melismas na notação musical, que exigiriam uma silabação, na realização
cantada, apoiada na existência de uma sílaba a mais, gerada a partir do acréscimo de
uma vogal paragógica, sobretudo em final de verso e de hemistíquios. Trata-se
exatamente do mesmo fenômeno já verificado por Ferreira (1986: 139), para as cantigas
de amigo de Martim Codax presentes no Pergaminho Vindel (N1, N5 e N7).3
As pistas fornecidas pela notação musical das CSM podem consideradas como
evidências suficientes da ocorrência de paragoges rítmicas, confirmando as hipóteses da
existência desse fenômeno na língua formuladas anteriormente por estudiosos (Cunha,
1982, Massini-Cagliari, 1999b), com base na notação de vogais epentéticas na escrita de
cantigas profanas específicas: B721/V322, B903/V488, B1153/V755 e B1553 (Cunha,
1982: 246); à lista de Cunha (1982), Massini-Cagliari (1999b) acrescenta a cantiga
B1199/V804.
As evidências provindas de diferentes origens (notação escrita e notação
musical) reforçam a consideração da paragoge no PA como um fenômeno estilístico de
silabação, cuja motivação é rítmica, já que se caracteriza por transformar estruturas nãocanônicas possíveis quanto à silabação (CVC) e ao acento (oxítonas) em estruturas
canônicas, nesses dois níveis (sílabas CVCV e padrão acentual paroxítono).
A constatação de processos de reforço dessa natureza (que acrescentam vogais –
e, conseqüentemente, sílabas) têm sido constantemente vinculada a línguas de ritmo
silábico (Abaurre-Gnerre, 1981; Tenani, 2006). Desta forma, pode-se dizer que a análise
da notação musical das cantigas dessa época pode também fornecer pistas para a
classificação tipológica do ritmo lingüístico do galego-português, porque deixa entrever
a ocorrência desse tipo de fenômeno.
4. Acentos rítmicos na CSM100
Este trabalho objetiva mostrar que uma análise em paralelo do texto poético e da
notação musical das cantigas trovadorescas se constitui em um instrumento auxiliar para
a análise lingüística do acento e do ritmo (lingüísticos) do PA.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008
13
A idéia que subjaz a esta metodologia é a de as proeminências musicais devem
se combinar preferencialmente com proeminências nos níveis poético e lingüístico.
Desta forma, a divisão dos compassos musicais das cantigas e a localização dos tempos
fortes das batidas musicais podem auxiliar, por exemplo, na determinação de
proeminência principal de palavras que não tenham ocorrido em posição de rima no
corpus (a sílaba que ocorre em posição de proeminência musical tem muito mais chance
de ser tônica do que a que não ocorre); ou na determinação do status prosódico (átono
ou tônico) de clíticos (que geralmente não ocorrem em posição tônica final de verso). O
estudo-piloto de Costa (2007, em preparação), em direção à sua tese de Doutorado sobre
o assunto, feito a partir da análise de uma amostra de cinco CSM, mostrou que, de um
total de 178 palavras contidas na amostra, o acento lexical coincidia com a posição de
proeminência musical em 139 casos (78,09%, portanto).
A coincidência entre sílabas tônicas e proeminências musicais pode ser
exemplificada a partir da análise da interpretação que Anglés (1943: 109) faz da notação
musical do refrão da CSM100 (figura 2), cantiga registrada em ToXo, T100 e E100
(figuras 3, 4 e 5).
Figura 2. Interpretação de Anglés (1943: 109) da música da CSM100.
14
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008
Figura 3. CSM100, em ToXo (edição fac-similada de 2003, fólio 156r).
A partir da divisão em compassos proposta por Anglés (1943), pode-se verificar
uma tendência de sílabas proeminentes no nível lingüístico caírem em posição de
proeminência musical: a tabela 1 mostra que, somados os casos em que sílabas tônicas
de polissílabos e monossílabos tônicos caem no início do compasso (acento musical),
tem-se um total de 68.8% de coincidência entre proeminências. No entanto, o exemplo
mostra que, da mesma forma como ocorre com as canções atuais em PB e em outras
línguas, há a possibilidade de sílabas com outra pauta prosódica, átonas finais,
pretônicas ou monossílabos átonos (clíticos), caírem na posição proeminente em nível
musical.
Na CSM100, há alguns casos em que a proeminência cai sobre monissílabos
considerados tônicos (ca, que e son); outros, no entanto, sobre os quais também recai a
proeminência musical principal do compasso, são normalmente considerados átonos: de
(e contrações com o artigo, da), per, ti e lles. Esta é uma pista de que, naquela época, os
clíticos talvez pudessem assumir proeminência – o que os torna subornidados
prosodicamente, ms não completamente átonos, portanto, não tão “clíticos”. Nesse
sentido, a consideração da notação musical pode trazer pistas importantíssimas quanto à
identificação dos verdadeiros clíticos prosódicos e sintáticos, naquela época.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008
15
Figura 4. CSM100, em T100 (microfilme, fólio 144v).
A tabela 1, abaixo, faz um resumo da relação entre proeminência musical e pauta
prosódica das palavras que caem nessa posição, com relação à notação da CSM100:
Tabela 1. Pauta prosódica das sílabas em posição inicial do compasso musical – CSM100.
Pauta prosódica da sílaba em posição inicial do
compasso musical
tônica
monossílabo tônico
monossílabo possivelmente tônico
pretônica
átona final
TOTAL
16
quantidade de unidades de tempo
(≅
≅ compassos)
19 (59.4%)
3 (9.4%)
5 (15.6%)
3 (9.4%)
2 (6.2%)
32 (100%)
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008
Figura 5. CSM100, em E100 (Anglés, 1964: fólios 110v-111r).
Nesta cantiga em particular, quase não há sílabas átonas finais ocupando as
proeminências iniciais de compasso; isto ocorre em um único caso, em que a sílaba
aparece alongada (tem duração maior): veja-se figuras musical equivalente à sílaba la de
strela. Em um trabalho anterior, pude mostrar que esse alongamento das átonas é típico,
sobretudo em posição final de verso – obviamente uma posição limítrofe de constituinte
prosódico, o que não é o caso aqui. De qualquer forma, o alongamento (de átonas e de
tônicas) é uma marca recorrente de limite de constituinte musical e prosódico: vejam-se
as figuras musicais correspondentes às sílabas da palavra dia e guia (finais categóricos
de verso) e veer, perder, entender e da expressão mais per (limites de constituinte
interno, segundo Wulstan (1993). A observação de fatos desta natureza mostra que a
notação musical pode também servir para dirimir dúvidas quanto à delimitação de
constituintes prosódicos em posição final e interna de verso.
A observação da notação musical pode também fornecer pistas da localização de
proeminências secundárias ou rítmicas. Em outras palavras, em palavras longas, com
mais de uma sílaba pretônica, a notação musical pode indicar qual delas era realizada,
em termos musicais, com maior proeminência. Nesta cantiga 100, as palavras
perdõados, ousadia e deveria aparecem com uma notação musical semelhante, que
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008
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favorece a interpretação de um acento secundário sobre as sílabas per, ou e de,
respectivamente.
A partir da notação musical de outras cantigas, abrem-se ainda outras
possibilidades: por exemplo a observação da notação musical pode trazer contribuições
para a solução de dúvidas quanto à posição do acento em palavras. A notação musical
do refrão da cantiga CSM294 (abaixo) traz evidências a favor da consideração da
existência de proparoxítonas em PA, uma vez que, na palavra angeos, a sílaba que
coincide com a posição de acento musical é a antepenúltima; além disso, a notação
musical traz também evidências da silabação dessa musica, no sentido de que à
seqüência e-os correspondem grupos distintos de figuras musicais (trata-se, portanto, de
hiato e não de ditongo).
Figura 6. Interpretação de Anglés (1958: 37) da música do refrão da CSM294.
Conclusão
A partir da aplicação de uma metodologia totalmente nova à análise da CSM100
de Afonso X, foi possível mostrar que a interface Música-Lingüística pode trazer
contribuições para a análise lingüística da prosódia de línguas do passado, das quais não
se tem registros orais. O exemplo focalizado mostra que é possível extrair elementos da
notação musical que podem se constituir em argumentos para a realização fonética das
cantigas, quanto à sua estrutura silábica e ao seu ritmo lingüístico (no que diz respeito à
ocorrência de acentos secundários, à identificação do padrão prosódico de palavras
específicas e à delimitação de constituintes prosódicos mais altos). Desta forma, a
observação da notação musical pode ser considerada uma fonte secundária de
informações relativas à prosódia de línguas “mortas”, um instrumento auxiliar, que pode
ser aproveitado para confirmar ou infirmar hipóteses levantadas com base nas fontes
primárias (registros escritos das cantigas) e dirimir dúvidas.
Notas
1
Também chamada de epítese (Câmara Jr., 1973: 162).
Wulstan (1993), ao contrário de Cunha (1982), que considera apenas a paragoge final, também
considera a possibilidade de paragoges mediais.
3
Cunha (2004: 104) considera a análise de Ferreira (1986) uma “importante comprovação, pelo
testemunho da música, do que vínhamos afirmando desde 1949 com relação à obrigatoriedade do –e
paragógico nos versos das paralelísticas terminados ou cesurados em palavras agudas”.
2
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ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008
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20
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008
O comportamento fonológico das vogais médias em posição
pretônica no dialeto de Belo Horizonte
Marlúcia Maria Alves
Faculdade de Letras – Universidade Federal de Minas Gerais (FALE – UFMG)
marlucia-alves@uol.com.br
Abstract. Belo Horizonte dialect shows quite complex behavior of vowels in
pre-stressed-syllable position, including the following ‘c[o]brança’,
‘pr[ç]jeto’ and ‘m[u]tivo’. The same manifestations are found for the fronted
mid-height pre-stressed vowel: ‘s[e]mana’, ‘[E]xcesso’ and ‘[i]scola’. For a
single lexical item, it is possible to identify variations, such as: ‘p[e]squisa’ ~
‘p[i]squisa’ or ‘c[o]légio’ ~ ‘c[ç]légio’. Thus having identified such
possibilities in the dialect of Belo Horizonte, the logical next step is wider and
more extensive research in order to understand the behavior of these vowels.
Optimality Theory can provide the tools needed to elucidate such variation, as
it relies on analysis of linguistic phenomena through actual output.
Keywords. mid vowels; linguistic variation; optimality theory
Resumo. O dialeto de Belo Horizonte apresenta o comportamento das vogais
médias em posição pretônica de forma bem complexa, pois é possível
encontrar três realizações: ‘m[o]delo’, ‘pr[ç]jeto’ e ‘g[u]verno’. O mesmo
ocorre para a realização da vogal média anterior pretônica: ‘r[e]torno’,
‘[E]xcesso’ e ‘[i]scola’. Também ocorre variação em ‘p[e]squisa’ ~
‘p[i]squisa’ ou ‘c[o]légio’ ~ ‘c[ç]légio’. Tendo em vista esta possibilidade de
casos encontrados no dialeto de Belo Horizonte, é necessário que se faça uma
pesquisa mais aprofundada para entender o comportamento destas vogais em
posição pretônica. Através da Teoria da Otimalidade, podemos encontrar
meios de elucidar os fenômenos relacionados à variação lingüística.
Palavras-chave.vogais médias; variação lingüística; teoria da otimalidade
1. Introdução
As vogais médias no sistema vocálico do português brasileiro constituem em
posição tônica quatro fonemas, /e, o, E, ç/, que se reduzem a dois, /e, o/, em posição
pretônica, devido ao processo de neutralização. No dialeto de Belo Horizonte, há a
tendência destas vogais serem fechadas. Contudo, é observado que as vogais médias são
pronunciadas neste dialeto de três formas diferentes. Ou ocorre a vogal média fechada,
‘r[e]boco’, ou ocorre a vogal média aberta, ‘r[E]lógio’, ou ainda acontece a vogal alta,
‘m[i]nino’. Além disso, são observados dois tipos de variação: a) a variação
condicionada por processos fonológicos, como em ‘s[e]mana’ (neutralização),
‘[E]xc[E]sso’ (harmonia vocálica) e ‘[i]scola’ (redução vocálica) e b) a variação livre,
como em ‘m[e]rcado’ ~ ‘m[E]rcado’, ou ainda, ‘p[e]squisa’ ~ ‘p[i]squisa’.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 21-29, jan.-abr. 2008
21
A partir destas informações, julgamos que as vogais médias no dialeto de Belo
Horizonte devem ser investigadas mais detalhadamente, a fim de esclarecer melhor que
fatores motivam a variação destas vogais em posição pretônica. Além disso, é
importante explicar esta variação conforme uma teoria lingüística e a Teoria da
Otimalidade (doravante OT) parece ser a melhor opção para descrever e analisar os
casos relacionados à variação. Esta teoria postula que a análise dos dados e
propriamente do fenômeno lingüístico deve partir do output e permite que as restrições
possam ser violadas.
Desta forma, os principais objetivos deste estudo são analisar os fatores lingüísticos
relacionados à variação das vogais médias em posição pretônica no dialeto de Belo
Horizonte e explicar a variação lingüística encontrada segundo a OT, destacando o
ranqueamento parcial de restrições, proposto por Anttila e Cho (1998).
2. As vogais médias e o dialeto de Belo Horizonte
As vogais médias em posição pretônica no dialeto de Belo Horizonte foram
analisadas conforme três corpora distintos: a) corpus POBH (Magalhães, 2000); b)
corpus extraído de Alves (1999) e c) corpus extraído a partir da observação de fala
espontânea. Este procedimento é necessário para se verificar um número considerável
de ocorrências das vogais médias nesta posição. Em comum, os corpora apresentam
informantes nascidos e criados em Belo Horizonte, com 3º grau completo e faixa etária
de 20 a 38 anos. A diferença entre os corpora reside no fato de a gravação dos dados
não ter sido feita da mesma forma. O corpus POBH apresenta uma entrevista entre o
informante e o documentador, o corpus de Alves (1999) mostra uma leitura de frases e o
corpus de fala espontânea mostra uma gravação sem o informante perceber que estava
sendo gravado. Apesar desta diferença, os dados mostram uma uniformidade com
relação aos fatores lingüísticos observados e a variação encontrada.
Os resultados obtidos mostram que neste dialeto há três formas fonéticas distintas da
vogal média em posição pretônica, como mostra (1) abaixo.
(1)
Vogais anteriores
[e]: c[e]rteza
[E]: [E]xc[E]sso
[i]: m[i]n[i]no
Vogais posteriores
[o]: m[o]delo
[ç]: pr[ç]j[E]to
[u]: m[u]tivo
Conforme os três corpora analisados,observou-se que a tendência dos falantes do
dialeto de Belo Horizonte é pela realização da vogal média fechada em posição
pretônica. A grande maioria dos resultados apresentou a vogal média fechada nesta
posição, tanto na série anterior como na série posterior. Com relação à elevação da
vogal média, observa-se que os contextos lingüísticos favorecedores mostram-se
diferenciados para as vogais anteriores e posteriores.
A vogal alta anterior ocorre motivada pelos fatores lingüísticos apresentados em (2).
(2) Fatores favorecedores à elevação da vogal média anterior em posição pretônica
a) Posição inicial de sílaba associada ao travamento silábico por /S/ – [i]scola
b) Posição inicial de sílaba associada à nasalidade – [i]nsino
c) Presença de vogal alta na sílaba tônica ou contígua – m[i]nino, [i]strutura
d) Presença da consoante nasal precedente – gam[i]leira
22
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 21-29, jan.-abr. 2008
Os dois primeiros fatores, ou seja, a posição inicial de palavra associada ao
travamento silábico por /S/ e a posição inicial de palavra formando uma sílaba
nasalizada se mostram categóricos para a realização da vogal alta em posição pretônica.
Entretanto, o corpus de Alves (1999) mostra itens lexicais contendo estes fatores e
podendo ser realizados ora com a vogal alta ora com a vogal média fechada. Neste
caso, a realização da vogal média fechada se deve mais à preocupação pela pronúncia
“correta” das palavras no momento da leitura feita em cabine acústica1. Os dois últimos
fatores apresentados em (2) mostram que a presença da vogal alta em posição tônica ou
na sílaba imediatamente seguinte e da consoante nasal precedente favorecem a
realização da vogal alta em posição pretônica. Estes contextos não são categóricos
porque permitem a realização da vogal média fechada também.
Com relação às vogais posteriores, observou-se os seguintes fatores.
(3) Fatores favorecedores à elevação da vogal média posterior em posição pretônica
a) Vogal alta em posição tônica ou contígua – m[u]tivo, p[u]licial
b) Consoante velar precedente – g[u]verno
c) Consoante labial precedente – b[u]nito
Estes fatores favorecem a realização da vogal alta em posição pretônica. Entretanto,
o falante pode optar pela realização da vogal média fechada nestes mesmos contextos.
Os fatores lingüísticos que favorecem o abaixamento da vogal média anterior e da
vogal média posterior são os mesmos, como pode ser visto em (4).
(4) Fatores favorecedores ao abaixamento da vogal média em posição pretônica
a) Vogal média aberta na sílaba tônica ou contígua – [E]xc[E]sso, c[ç]l[E]gas
b) Vogal baixa na sílaba tônica ou contígua – m[E]rcado, f[ç]rmação
Estes contextos são considerados apenas favorecedores porque a vogal média
fechada também pode ser realizada nestes ambientes.
Sobre os processos fonológicos envolvidos, observou-se que a maioria das palavras
que possui a vogal média em posição pretônica é realizada com a vogal média fechada.
Este fato reforça o processo de neutralização presente no português brasileiro. Segundo
Mattoso Câmara (1970), em posição pretônica, há uma redução do número de fonemas.
A oposição entre as vogais médias fechadas e a vogais médias abertas não existe nesta
posição, e apenas as vogais médias fechadas ocorrem fonemicamente.
Além do processo de neutralização, outros dois processos atuam na realização das
vogais médias pretônicas: a harmonia vocálica e a redução vocálica.
O processo de harmonia vocálica tem como gatilho a vogal presente em posição
tônica. A vogal em posição pretônica assimila os traços característicos da vogal tônica.
Assim, pode-se relacionar três tipos de harmonia vocálica encontrados no dialeto de
Belo Horizonte: a) a harmonia vocálica pelo traço [-ATR]2, como em ‘pr[ç]j[E]to’; b) a
harmonia vocálica pelo traço [+ATR], como em ‘m[o]d[e]lo’, e c) a harmonia vocálica
pelo traço [alto], como em ‘m[i]n[i]no’.
O processo de redução vocálica está mais fortemente relacionado aos casos
categóricos da realização da vogal alta em posição pretônica, como a posição inicial de
palavra associada ao travamento silábico por /S/ ou formando sílaba nasalizada.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 21-29, jan.-abr. 2008
23
Entretanto, foi visto que a consoante labial precedente e a consoante velar precedente
também favorecem a elevação da vogal média posterior.
Especificamente sobre o fenômeno da variação lingüística, observaram-se dois
formatos de variação, como pode ser visto em (5).
(5) Variação das vogais médias em posição pretônica
a) Variação entre a vogal média fechada e a vogal média aberta: c[o]l[E]gio ~
c[ç]l[E]gio
b) Variação entre a vogal média fechada e a vogal alta: p[e]squisa ~ p[i]squisa
É bom ressaltar que são poucas as palavras que apresentam variação. Além disso, o
mesmo falante varia a vogal média de algumas palavras, evidenciando a variação
intradialetal. Neste caso específico, os informantes apresentam a variação em posição
pretônica de modo diferenciado. Isto é, há falantes que tendem para a variação apenas
entre a vogal média fechada e a vogal média aberta, outros já apresentam os dois
formatos de variação apresentados acima.
Sobre a variação interindividual, notou-se que o falante tende a realizar a vogal
média fechada. Caso ocorra um ambiente favorecedor da realização da vogal alta ou da
vogal média aberta, o falante também pode optar por estes timbres em posição
pretônica.
Portanto, observa-se que as vogais médias, apesar de mostrarem um comportamento
complexo em posição pretônica no dialeto de Belo Horizonte, em alguns contextos
lingüísticos bem definidos, podem ser produzidas de forma diferenciada pelos falantes,
que podem optar pela vogal média fechada, pela vogal média aberta ou pela vogal alta.
A partir do que foi exposto sobre o dialeto de Belo Horizonte surgem algumas
questões: a) Como estudar a variação das vogais médias em posição pretônica neste
dialeto? b) É possível a gramática da língua adequar a variação apresentada?
É possível tentar responder estas questões conforme a Teoria da Otimalidade.
Primeiro porque, nesta teoria, é possível explicar casos específicos de variação como
esta encontrada no dialeto de Belo Horizonte. Segundo porque é uma teoria que trata de
restrições que podem ser violadas, conforme o fenômeno estudado e seu comportamento
na gramática da língua. Por último, é uma teoria que lida com as formas de superfície
(output) e da sua relação com a forma subjacente (input).
3. Teoria da Otimalidade e variação lingüística
A Teoria da Otimalidade é um modelo de análise gramatical e os principais
objetivos desta teoria são estabelecer as propriedades universais da linguagem e
caracterizar os limites possíveis de variação lingüística entre as línguas naturais. Este
modelo teórico analisa as formas de superfície e permite a presença de restrições que
podem ser violadas. Os primeiros estudos que abordam esta teoria datam de 1993, com
os trabalhos publicados por Prince e Smolensky e por McCarthy e Prince.
Segundo Kager (1999), é nas formas de superfície de uma dada língua que é possível
encontrar soluções para os conflitos entre as restrições que competem entre si. Uma
forma de superfície é considerada ótima se ela apresenta menos violações graves,
considerando-se um conjunto de restrições ranqueadas conforme a hierarquia de uma
língua específica. As restrições são universais e diretamente codificadas por critérios de
marcação e princípios que reforçam a preservação de contrastes.
24
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 21-29, jan.-abr. 2008
Os componentes da Gramática OT são o léxico, o gerador e o avaliador. Segundo
Archangelli (1997), a relação entre o input e o output é mediada por dois mecanismos
formais, o gerador (generator – GEN) e o avaliador (evaluator – EVAL). O primeiro
cria estruturas lingüísticas e verifica suas relações de fidelidade com a estrutura
subjacente. O segundo usa a hierarquia de restrições da língua para selecionar o melhor
candidato entre todos criados. Além destes dois mecanismos, é necessário considerar
também o grupo universal de restrições (CON) no qual o avaliador usa o ranqueamento
específico de restrições deste conjunto.
Este teoria é adequada para estudar os fenômenos relacionados à variação
lingüística, uma vez que considera a forma de superfície, o output. Entretanto, o
principal desafio ao estudar a variação nesta teoria é que é necessário interferir em um
de seus pilares: a dominação estrita. Quando se trata de variação, temos mais de um
candidato escolhido como ótimo. Autores como Anttila e Cho (1998), Boersma (1997),
Coetzee (2005) e outros estudam a variação com base na Teoria da Otimalidade,
buscando alternativas de explicação deste fenômeno lingüístico, e partem de uma
abordagem não-clássica da teoria.
Dentre estas alternativas, será analisada a de Anttila e Cho (1998) que trata do
ordenamento parcial de restrições. No modelo proposto por Antilla e Cho o
ranqueamento parcial de restrições permite exibir os fenômenos de invariância e
variáveis na mesma estrutura e derivar as predições estatísticas. Combinando o
ordenamento parcial com as restrições universais e as hierarquias de restrições, é
possível derivar as tipologias de dialetos com variação dentro da abordagem OT.
Segundo os autores, um ordenamento parcial oferece uma nova perspectiva sobre a
hipótese de que a variação ocorre graças a gramáticas que competem na comunidade ou
no indivíduo.
4. Teoria da Otimalidade e o dialeto de Belo Horizonte
O dialeto de Belo Horizonte será considerado, em nossa análise, como uma língua
específica, possuindo uma gramática particular que pode fornecer indícios para explicar
os casos de variação encontrados nesta língua.
Em termos de OT, e pelo comportamento das vogais médias pretônicas neste dialeto,
será estabelecida a existência de um único input, representado pela vogal média
fechada, sendo mapeado por dois ou mais outputs.
Para a análise dos dados do dialeto de Belo Horizonte conforme a OT, julgamos que
cinco restrições são necessárias: duas restrições de fidelidade e três de marcação,
apresentadas em (6) abaixo.
(6) a) IDENT [alto]: O traço [alto] do output deve ser idêntico ao do input.
b) IDENT [ATR]: O traço [ATR] do output deve ser idêntico ao do input.
c) AGREE [ATR]: O traço [ATR] da posição pretônica é idêntico ao da vogal
contígua.
d) AGREE [alto]: O traço [alto] da posição pretônica é idêntico ao da vogal
contígua.
e) *MID: As vogais médias devem ser evitadas.
As restrições eleitas para esta análise partem do estudo do processo mais recorrente
neste dialeto, a neutralização. Para isto foi seguida a tipologia de contrastes de altura em
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 21-29, jan.-abr. 2008
25
relação ao acento, apresentada por McCarthy (1999: 24). É necessária esta tipologia
para diferenciar o sistema de 7 vogais em posição tônica e a sua redução para 5 vogais
em posição pretônica. Além disso, foi considerado o quadro de traços vocálicos
referentes ao português brasileiro, em (7) abaixo.
(7) Traços vocálicos [alto] e [ATR]
/i, u/ /e, o/ /E, ç/ /a/
[alto]
+
[ATR] +
+
Estes traços são os mais relevantes porque distinguem as vogais médias fechadas das
médias abertas e as vogais médias das vogais altas. As vogais médias fechadas são
consideradas [-alto, +ATR], as vogais médias abertas [-alto, -ATR] e as vogais altas
[+alto, +ATR].
Especificamente sobre as restrições, as restrições de fidelidade IDENT[alto] e
IDENT[ATR] são ranqueadas em uma posição superior na hierarquia para preservar a
presença da vogal média fechada em posição pretônica. As restrições de marcação
AGREE[ATR] e AGREE[alto] são específicas e se ranqueadas acima das restrições de
fidelidade conseguem explicar os casos de harmonia vocálica no dialeto de Belo
Horizonte. Com relação à restrição *MID, é possível verificar que posicionando esta
hierarquia em uma posição superior acima das restrições de fidelidade, os casos
relacionados à redução vocálica ocorrem, mostrando que apenas a vogal alta poderia
aparecer em posição pretônica.
Sobre a proposta de Anttila e Cho (1998), verifica-se que se trata de casos
relacionados à co-fonologia, isto é, cada co-fonologia corresponde a uma hierarquia de
restrições que seleciona o candidato ótimo pelo seu próprio ranqueamento estipulado. É
possível também afirmar que há variação porque há várias gramáticas que competem na
comunidade ou no indivíduo. No caso específico do dialeto de Belo Horizonte, pode-se
definir este dialeto como uma única gramática com vários ordenamentos parciais.
Conforme a proposta do ordenamento parcial, parte-se da noção de que no input
tem-se as formas subjacentes concernentes aos segmentos fonológicos relevantes no
português brasileiro. Por isso, as vogais médias fechadas serão consideradas as formas
de input.
Em (8), são apresentados os tableaux referentes à produção da vogal média em
posição pretônica no dialeto de Belo Horizonte.
(8) Produção das vogais médias em posição pretônica
Tableau 1: Neutralização
c/e/rteza
IDENT [alto] IDENT[ATR] AGREE[ATR] AGREE [alto]
☞ 1. c[e]rteza
*!
*
2. c[E]rteza
3. c[i]rteza
*!
*
Tableau 2: Harmonia vocálica
AGREE[ATR] AGREE[alto] IDENT [alto]
/e/xc/E/sso
*!
1. [e]xc[E]sso
26
IDENT[ATR]
*MID
*
*
*MID
*
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 21-29, jan.-abr. 2008
☞2. [E]xc[E]sso
3. [i]xc[E]sso
*
*!
*
*
*
Tableau 3: Redução vocálica
/e/scola
*MID IDENT[alto] IDENT[ATR] AGREE[ATR] AGREE[alto]
1. [e]scola
*!
*
*!
*
2. [E]scola
*
*
*
☞ 3. [i]scola
O tableau 1 mostra a hierarquia de restrições para os casos voltados ao processo de
neutralização. Para que o candidato que contém a vogal média fechada se torne o
candidato ótimo, é necessário que as restrições de fidelidade estejam posicionadas
acima das restrições de marcação. Assim, somente o candidato 1, ‘c[e]rteza’, é
escolhido como o melhor candidato, pois viola apenas a restrição *MID ranqueada na
posição mais abaixo nesta hieraquia.
Com relação ao tableau 2, as restrições de marcação AGREE estão ranqueadas em
uma posição superior na hierarquia. Neste caso específico, haverá um acordo entre as
vogais em posição tônica e pretônica, garantindo que o processo de harmonia vocálica
ocorra. Desta forma, o candidato 2, ‘[E]xc[E]sso’, é selecionado como o candidato ótimo
porque viola apenas a restrição de fidelidade e a restrição *MID ranqueadas na posição
inferior na hierarquia.
No tableau 3, observa-se um caso de redução vocálica. Para que o candidato
realizado com a vogal alta seja escolhido como o melhor candidato é necessário que a
restrição *MID ocorra acima das restrições de fidelidade. Neste caso, as vogais médias
não ocorrem em posição pretônica. Assim, o candidato ‘[i]scola’ é selecionado como o
candidato ótimo porque viola a restrição de fidelidade ranqueada abaixo da restrição
*MID.
Com relação aos casos de variação propriamente dito, verifica-se que são
necessários dois tableaux, um para cada candidato selecionado como ótimo.
(9) Variação das vogais médias em posição pretônica
Tableau 4
IDENT [alto] IDENT[ATR] AGREE[ATR] AGREE [alto]
pr/o/j/E/to
*
☞1.pr[o]j[E]to
*!
2.pr[ç]j[E]to
*!
*
*
3.pr[u]j[E]to
*MID
*
*
Tableau 5
AGREE[ATR] AGREE[alto] IDENT [alto]
pr/o/j/E/to
*!
1. pr[o]j[E]to
☞2. pr[ç]j[E]to
*!
*
*
3. pr[u]j[E]to
*MID
*
*
IDENT[ATR]
*
Os tableaux 4 e 5 apresentam um caso de variação entre vogal média fechada e a
vogal média aberta. No tableau 4, o candidato selecionado como ótimo é o candidato 1,
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 21-29, jan.-abr. 2008
27
‘pr[o]j[E]to’, pois satisfaz as restrições de fidelidade ranqueadas acima das restrições de
marcação. Já no tableau 5, o candidato escolhido como ótimo é o canididato 2,
‘pr[ç]j[E]to’, porque viola as restrições IDENT[ATR] e *MID ranqueadas na posição
inferior na hierarquia.
A alternativa de análise proposta por Anttila e Cho (1998) sobre o ordenamento
parcial de restrições é interessante por destacar uma hierarquia para cada caso de
produção das vogais médias em posição pretônica no dialeto de Belo Horizonte, além de
mostrar os candidatos ótimos nos casos de variação de modo separado. Contudo, esta
fragmentação da gramática em vários ordenamentos parciais pode enfraquecer a noção
de língua.
5. Considerações finais
A variação encontrada no dialeto de Belo Horizonte é bastante complexa. A variação
das médias pretônicas ocorre devido a processos fonológicos diferentes, como
neutralização, harmonia vocálica e redução vocálica. Além disso, há a variação que
ocorre em um mesmo item lexical.
A Teoria da Otimalidade fornece alternativas de análise para a explicação da
variação lingüística intradialetal. O ordenamento parcial de restrições explica de modo
apropriado a variação das vogais pretônicas no dialeto de Belo Horizonte, levando-se
em conta os processos fonológicos e os contextos favorecedores à elevação e ao
abaixamento da vogal média.
Notas
1
O corpus de Alves (1999) foi obtido por meio de uma leitura de frases, para se
observar a produção das vogais médias em posição tônica nos nomes no dialeto de Belo
Horizonte.
2
[ATR] é um traço articulatório que mostra o avanço da raiz da língua na produção do
som.
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concentração: Fonologia) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas
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ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 21-29, jan.-abr. 2008
29
Métodos na Pesquisa de uso de dicionários
Magali Sanches Durani
PPG em Estudos Lingüísticos (doutorado) Universidade Estadual Paulista - UNESP São
José do Rio Preto E-mail: magali.duran@uol.com.br
Abstract. This paper discusses methods in dictionary use research. Under this
perspective, it comments on some works to evidence weakness and strengths
of techniques they adopted. It also presents suggestions of methods applicable
to this kind of research but not used yet. Such discussion may contribute for
methodological decisions in future research projects.
Keywords.
dictionary
metalexicográfica.
use
research;
metalexicografia;
pesquisa
Resumo. Este artigo discute a questão dos métodos na pesquisa sobre o uso
dos dicionários. Alguns estudos são comentados sob essa perspectiva a fim de
evidenciar algumas vantagens e limitações de técnicas utilizadas. Apresentamse também sugestões de métodos aplicáveis a esse tipo de pesquisa, mas ainda
não empregados. Essa discussão pode contribuir para decisões metodológicas
de projetos de pesquisa futuros.
Palavras-chave. pesquisa sobre uso do dicionário; metalexicografia; pesquisa
metalexicográfica.
1. Introdução
As pesquisas sobre o uso do dicionário são fundamentais para o
desenvolvimento da Lexicografia Pedagógica e por isso inicio este artigo revendo
algumas questões relacionadas a essa área da Lexicografia.
Devido em grande parte ao processo de globalização, o ensino de idiomas
apresentou um crescimento sem igual no último século. Isso fomentou o
desenvolvimento de todo um mercado, provocando a proliferação de escolas, de
métodos e de ferramentas para ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras (LE). Há
pouco mais de 30 anos, os dicionários, que sempre foram um importante acessório para
o aprendiz de idiomas, começaram a refletir mais fortemente a preocupação de atender
adequadamente as necessidades desse usuário (o “cliente” do lexicógrafo). A
especialização da Lexicografia para essa finalidade cresceu tanto que passou a ter
denominação própria: Lexicografia Pedagógica. Hoje essa área passou a abarcar
também os dicionários monolíngües para falantes nativos que, embora já apresentassem
alguns critérios de segmentação de público-alvo, não observavam com rigor as
necessidades de seus usuários.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008
31
A principal distinção, portanto, entre a Lexicografia tradicional e a Lexicografia
Pedagógica (LP) é o fato de que o foco da primeira é o inventário do léxico em seus
mais diversos aspectos, enquanto o foco da segunda é o atendimento das necessidades
do usuário de dicionário. A LP procura selecionar as informações que vão integrar o
dicionário baseada nas necessidades do público-alvo, enquanto a Lexicografia
tradicional utiliza outros critérios de seleção e, não raro, procura colocar no dicionário
tantas informações quanto possível, sem preocupar-se com a utilidade que elas possam
ter para usuários específicos. Essa distinção fica clara quando pensamos a avaliação dos
dicionários.
Um critério predominante na avaliação da qualidade de um dicionário
tradicional é a quantidade de verbetes, de expressões, de exemplos, ou seja, elementos
intrínsecos às obras. Já a qualidade de um dicionário pedagógico é avaliada a partir do
julgamento de sua adequação às necessidades dos usuários: nesse tipo de dicionário nem
sempre mais significa melhor.
Tomemos, por exemplo, parte de um verbete extraído de um dicionário
português-inglês que diz em seu prefácio ter selecionado e adaptado os verbetes para
brasileirosii:
Casa [k´az ] sf 1 house. 2 home. (…)
Pergunta-se: qual a função da informação sobre gênero dos substantivos de
português nesse dicionário? E a função da transcrição fonética dos itens lexicais em
português? Se o usuário é brasileiro e está consultando um dicionário português-inglês,
presume-se que ele conheça o gênero dos substantivos e a pronúncia dos itens lexicais
de sua língua materna. Tais informações seriam muito relevantes para estrangeiros, mas
deveriam ser suprimidas em um dicionário pedagógico português-inglês dirigido a
brasileiros, já que não agregam nenhum valor para esse público-alvo.
Esses fatos ainda ocorrem em dicionários que declaram terem sido feitos para
um público específico e mostram que a demanda por dicionários pedagógicos acabou
ditando o lançamento de publicações antes que os preceitos da LP tivessem sido
devidamente assimilados pelos respectivos autores e editores.
O desenvolvimento da LP é relativamente recente. Seus primórdios estão ligados
à lexicografia monolíngüe, notadamente de língua inglesa, que tinha a preocupação de
descrever o léxico sob o ponto de vista de quem se dirige a uma audiência de aprendizes
estrangeiros (o primeiro capítulo de COWIE, 1999, é um excelente relato dessa
história). Quando a LP passou a influenciar também as obras bilíngües, o público que
era “estrangeiro” passou a ser especificado com uma nacionalidade. Assim, por
exemplo, um dicionário monolíngüe de inglês para aprendizes estrangeiros
transformou-se em dicionário bilíngüe de inglês-português para brasileiros, dicionário
inglês-francês para franceses, dicionário inglês-espanhol para espanhóis etciii. Dessa
forma, as dificuldades típicas de cada nacionalidade em relação ao léxico de uma língua
estrangeira começaram a ser contempladas nos dicionários pedagógicos. Os usuários,
que anteriormente constituíam uma massa indistinta para os lexicógrafos, passaram a
ganhar identidade. Diversos tipos de segmentação surgiram: além da nacionalidade,
32
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008
passou-se a adequar as obras à faixa etária, ao nível de aprendizado e ao tipo de
atividade dos usuários.
Como o usuário pluralizou-se, constituindo diversos públicos-alvo, o dicionário
também deixou de ser singular. Como observou Ilson (1985), começou-se a falar de
dicionários no plural.
Além de especificarem um público-alvo, os dicionários pedagógicos especificam
(ou deveriam) o tipo de função que se propõem a apoiar. Isso porque não basta
perguntar se uma informação é relevante para um determinado público-alvo, mas
também em que situação essa informação é relevante.
A função do dicionário está diretamente ligada à direção. Dicionários bilíngües
que pretendem apoiar a decodificação nas atividades de leitura ou de tradução, por
exemplo, apresentam as entradas em língua estrangeira (a incógnita nessas situações é o
significado dessas entradas). Já os dicionários bilíngües que pretendem apoiar a
codificação nas atividades de escrita em LE (redação e versão) devem apresentar as
entradas em língua materna (LM), já que a incógnita nessas situações são os itens
lexicais que possam expressar o mesmo significado expresso pela entrada em LM.
Diante desses desafios, a LP precisa tanto de pesquisas lexicográficas
tradicionais, que produzam matéria para constituir os dicionários, quanto de pesquisas
que investiguem o uso do dicionário e cujos resultados possam subsidiar decisões de
projetos lexicográficos pedagógicos. Essas últimas pesquisas estão enquadradas no que
se chama de Metalexicografia.
Assim como a LP, as pesquisas sobre o uso do dicionário são relativamente
recentes. Segundo Boogards (1999), em 1986 havia pouco mais de meia dúzia delas.
Em 1996, embora esse número tenha crescido dez vezes, o autor relata que os resultados
muitas vezes se mostravam contraditórios, evidenciando que a heterogeneidade de
métodos de investigação utilizados dificultavam conclusões. Embora as pesquisas nessa
área venham crescendo expressivamente, a carência de um paradigma de pesquisas com
métodos consagrados ainda se faz sentir.
Diante desse cenário, julgamos oportuno discutir esse assunto e comentar alguns
relatos de pesquisa sobre o uso do dicionário, focando não os resultados, mas os
métodos empregados.
2. Pesquisas sobre uso do dicionário
Como as necessidades dos usuários de dicionários não são homogêneas, para
descobrir como deve ser um dicionário adequado a um determinado segmento de
público que se pretende atender, são necessárias pesquisas que investiguem a interação
de representantes desse segmento com as obras lexicográficas. Eis alguns tipos de
perguntas que podem orientar pesquisas com esse foco:
Que tipo de dicionário é mais adequado a cada tipo de atividade?
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008
33
O que promove melhor a compreensão de significado em LE: a definição
ou o exemplo?
Em que tipo de atividade o aprendiz consulta mais o dicionário?
Que forma de organização dos elementos de um verbete facilita mais a
consulta?
Quanto do verbete os aprendizes lêem e em que ordem?
Que elementos de formatação conferem maior clareza ao texto
lexicográfico?
Quais as estratégias do aprendiz quando não obtém o resultado desejado
na consulta inicial?
Que cores devem ser utilizadas no texto para facilitar a retenção dos itens
lexicais?
Quais os enganos que o aprendiz comete, mesmo utilizando o dicionário,
por falta ou incompletude de informações lexicográficas?
O que falta aos dicionários, ou melhor: que tipo de informação o aprendiz
busca, mas não encontra nos dicionários?
Que tipo de habilidade de consulta o aprendiz necessita para fazer melhor
uso dos dicionários?
O ensino do uso do dicionário melhora o desempenho dos aprendizes?
Para responder a essas e a uma infinidade de outras questões, o pesquisador deve
escolher um método e um instrumento de pesquisa. A priori, não existe método melhor
ou pior. O que se pode discutir é qual o método mais adequado para levantar
determinada informação.
Os desenhos das pesquisas sobre o uso de dicionários variam muito no que diz
respeito à metodologia e aos instrumentos de coleta de dados. Em 1996 Dolezal &
McCreary publicaram uma vasta relação de trabalhos sobre LP. Tono (2001), numa
resenha sobre a obra de Dolezal & McCreary, criticou o fato de os trabalhos não
estarem classificados pelo método utilizado, além de misturarem resultados de
pesquisas empíricas com artigos de opinião de especialistas. Essa deficiência foi
superada por Welker (2006), que reuniu e comentou o resultado de 200 pesquisas
empíricas sobre o uso do dicionário em todo o mundo. Welker classificou as pesquisas
por diversos critérios, permitindo aos leitores interessados que comparem os resultados
dessas pesquisas.
Há duas instâncias para conhecer o uso dos dicionários: uma é o processo do uso
e a outra é o efeito do uso no produto de uma atividade. Já empreguei a expressão
“produto do uso” para nomear essa segunda instância, mas passei a adotar a expressão
utilizada por Welker (2006) efeito do uso, pois me pareceu mais apropriada.
O processo do uso, (as consultas durante uma atividade) pode ser acessado por
meio de perguntas dirigidas ao usuário ou por meio de técnicas introspectivas que
permitam revelar aspectos do comportamento do usuário dos quais nem ele mesmo tem
consciência.
Já o efeito do uso pode ser observado nos seguintes produtos: exercícios de
interpretação de texto (uso do dicionário na leitura); redações; textos traduzidos e textos
34
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008
vertidos. A análise do efeito do uso do dicionário normalmente é guiada pela relação de
itens lexicais que foram motivo de consulta. Isso é importante, pois muito do que se
observa nos produtos da leitura, da escrita, da tradução e da versão não tem nenhuma
relação com o uso dos dicionários. É o caso, por exemplo, de conhecimentos prévios, de
processos de inferências etc.
Verificam-se nesses produtos:
Erros que poderiam ter sido evitados com um melhor uso do dicionário,
ou seja, o dicionário tinha a informação necessária, mas o aprendiz não soube aproveitála;
Erros que poderiam ter sido evitados se o dicionário fornecesse mais
informações ou as apresentasse de outro modo.
A análise do efeito do uso é objetiva (empírica) e revela conseqüências do uso
do dicionário (erros e acertos), mas não revela as causas dos erros. Para chegar a essas
causas temos que fazer suposições ou procurá-las no processo do uso.
3. Pergunta de pesquisa e escolha do método.
A questão da escolha do método e dos instrumentos de pesquisa deve ser
pautada pela pergunta de pesquisa:
A partir do momento em que a pesquisa centra-se em um problema específico, é
em virtude desse problema específico que o pesquisador escolherá o procedimento mais
apto, segundo ele, para chegar à compreensão visada. Poderá ser um procedimento
quantitativo, qualitativo, ou uma mistura de ambos. O essencial permanecerá: que a
escolha da abordagem esteja a serviço do objeto de pesquisa, e não o contrário, com o
objetivo de daí tirar, o melhor possível, os saberes desejados. (LAVILLE & DIONNE,
1999, p.43)
Portanto, algumas perguntas de pesquisa requerem uma abordagem qualitativa,
outras requerem uma abordagem quantitativa. Faço uma analogia com a fotografia para
comparar essas duas abordagens: a qualitativa seria um close (revela o detalhe) e a
quantitativa uma foto panorâmica ou aérea (dá visão de conjunto), ou seja, cada uma
delas mostra o que a outra não mostra.
4. Abordagem qualitativa
A abordagem qualitativa é indicada quando o assunto é muito complexo ou
desconhecido. Ela propicia ao pesquisador a oportunidade de explorar novos campos,
aprofundar o conhecimento acerca do assunto pesquisado e elaborar hipóteses e, por
isso, é também chamada de pesquisa em profundidade. Nesse tipo de pesquisa, a
descrição do contexto é muito importante para que se possam interpretar os resultados.
Vamos supor, por exemplo, a seguinte pergunta de pesquisa: “Quais são as
estratégias de busca lexical utilizadas no processo de escrita em LE?”. Se não sabemos
de antemão quais são as possíveis estratégias de busca lexical, se não temos uma
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008
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tipologia de estratégias como referência, é por meio da abordagem qualitativa de
pesquisa que poderemos elucidar algumas dessas estratégias.
No entanto, essa mesma pesquisa não nos dirá se as estratégias levantadas são as
únicas possíveis nem se são as mesmas utilizadas por outros usuários, de contexto
semelhante ou não ao contexto pesquisado. A pesquisa qualitativa não tem o propósito
de conhecer o todo pela parte, o universo pela amostra: não permite generalizações. Sua
aplicação é na elucidação de questões complexas onde muitas variáveis são
desconhecidas. Gordon & Langmaid (1988) dizem que a pesquisa qualitativa é aquela
que responde a perguntas como O quê?, Por quê? e Como?, mas não consegue
responder a pergunta Quantos?
Pesquisas qualitativas podem preceder pesquisas quantitativas. O pesquisador
pode utilizar o conhecimento adquirido na pesquisa em profundidade (verticalidade)
para elaborar perguntas de pesquisa quantitativa adequadas para descobrir se
determinado comportamento é observado em uma amostra de usuários
(horizontalidade).
As técnicas mais utilizadas nas pesquisas de abordagem qualitativa sobre o uso
do dicionário são as técnicas introspectivas (v. WALLACE, 1998): o pensar em voz
alta, a auto-reflexão e a auto-observação, mas há também estudos que utilizaram a
observação e a entrevista em profundidade. Os instrumentos utilizados nessas técnicas
são o diário, as gravações e os protocolos verbal e escrito.
O diário é utilizado tanto para o registro das observações do pesquisador quanto
para registro da auto-observação ou auto-reflexão do sujeito de pesquisa. O pesquisador
pode solicitar ao usuário de dicionário que anote no diário qual a dúvida que deu origem
à consulta ao dicionário, qual o resultado da consulta, quais as consultas subseqüentes
relacionadas à mesma dúvida, os pensamentos que lhe ocorreram durante as consultas e
sugestões que lhe ocorreram no momento do uso para melhorar a qualidade dos
dicionários. Há de se ressaltar que no diário existe uma defasagem entre o ato de pensar
e agir e o ato de relatar pensamentos e ações. Essa defasagem pode representar tempo
suficiente para que o usuário “filtre” o que deseja relatar, podendo suprimir informações
importantes.
Wiegand (apud WELKER, 2006) cita a técnica do protocolo escrito e subdivideo em protocolo escrito durante as consultas e protocolo retrospectivo dizendo que
ambos podem ser estruturados, não estruturados e semi-estruturados. O protocolo
escrito, quando não estruturado, corresponde ao que estou chamando de diário. Mas no
caso de protocolos escritos estruturados ou semi-estruturados, o diário é substituído por
formulários.
Já no protocolo verbal, o pesquisador solicita ao usuário que verbalize seu
raciocínio e registra por meio de gravação de som e às vezes também de imagem, todas
as ações do usuário durante o processo de consulta. Às vezes o protocolo verbal é
utilizado durante a atividade que gerou as consultas ao dicionário e aí é chamado de
“pensar em voz alta”, mas outras vezes ele é aplicado após essa atividade, fazendo com
que o usuário reconstrua por meio de relato seu raciocínio durante as consultas. É
36
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008
desejável que a defasagem de tempo seja a menor possível, pois quanto mais “fresca”
estiver a experiência, maior a probabilidade de o relato corresponder ao verdadeiro
percurso do raciocínio do usuário.
Os protocolos verbais exigem transcrição para posterior análise. Tanto a
transcrição quanto a impossibilidade de padronizar a análise dos dados tornam essa
técnica trabalhosa e, portanto, mais apropriada para aplicação em pequenos grupos.
Uma combinação de diário de observação e protocolo verbal foi desenvolvida
por Atkins & Varantola (1997): orientado por um formulário, o observador registra por
escrito determinadas ações e pensamentos verbalizados pelos usuários (Wiegand, apud
WELKER, 2006, chamaria isso de protocolo escrito semi-estruturado). Esse
instrumento tem como vantagens:
1. eliminar a fase de transcrição dos protocolos verbais;
2. substituir a auto-observação pela observação, eliminando as interrupções
de atividade exigidas para registro do diário pelo próprio sujeito de pesquisa;
3. moderar a influência do ponto de vista do observador.
Os protocolos verbais guardam uma relação de fidelidade maior com o processo
de uso do que o diário e do que o instrumento desenvolvido por Atkins & Varantola
(1997), pois nesse último o usuário e o registrador atuam como “filtro” dos eventos.
O primeiro pesquisador a utilizar o protocolo verbal na investigação do uso do
dicionário foi Ard (1982). O artigo em que Ard relatou sua pesquisa deixa lacunas na
descrição de detalhes de sua pesquisa. Não se sabe, por exemplo, quantos eram os
sujeitos da pesquisa. Ele comenta os resultados de dois sujeitos para cada uma das duas
fases de atividades propostas e muitos leitores acreditam que os casos comentados
representam a totalidade de sujeitos de pesquisa. Apesar disso, o pioneirismo de Ard
inspirou outros pesquisadores do uso do dicionário a utilizarem o protocolo verbal como
método. Embora seus sucessores tenham ampliado o número de sujeitos de pesquisa,
nenhum reproduziu o mesmo tipo de registro de Ard, que aliou imagens de uma câmera
posicionada logo acima da cabeça do sujeito pesquisado, mostrando a folha de papel em
que era feita a tarefa, à gravação das falas do “pensar em voz alta”. Com isso, Ard pôde
observar as pausas na escrita e percebeu que elas não ocorrem apenas quando o sujeito
consulta o dicionário, mas também por outros motivos desconhecidos. Isso levou o
autor a concluir que a consulta ao dicionário não é a única responsável pelas pausas no
processo de redação em LE. Em sua análise, Ard pôde confrontar três fontes de dados:
as imagens, os sons e a própria redação resultante.
Christianson (1997), que pesquisou o uso de dicionários na redação em LE,
alega ter se inspirado em Ard (1982) e aplicado o protocolo verbal. Contudo, pela
descrição contida em seu artigo, deduz-se que o autor pediu aos sujeitos de pesquisa que
descrevessem seu processo cognitivo seis meses após a realização da tarefa. Se a
defasagem de horas já representa um prejuízo para o “pensar em voz alta”, acredito que
uma defasagem de meses compromete demais a confiabilidade dos resultados. No
Brasil, Höfling (2006) utilizou protocolo verbal para pesquisar o uso do dicionário na
leitura em língua estrangeira.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008
37
No caso dos protocolos, a quantidade de sujeitos de pesquisa influencia, mas não
é determinante para a qualidade dos resultados.
A entrevista em profundidade, também utilizada nas pesquisas de abordagem
qualitativa sobre o uso do dicionário, possui um roteiro flexível e exige que o
entrevistador conheça o assunto e os objetivos da pesquisa. Ela é dirigida no sentido de
obter do entrevistado o máximo de informação sobre determinadas questões.
As pesquisas qualitativas foram muito criticadas no passado pelo fato de
envolverem poucos sujeitos de pesquisa, o que, na visão daqueles que estavam
acostumados com o paradigma das pesquisas quantitavas, comprometia a validade e a
confiabilidade de seus resultados. No entanto hoje esse tipo de pesquisa tem seu valor
reconhecido em várias áreas científicas, pois por meio delas podemos ter acesso ao
sujeito real de pesquisa, ao passo que nas pesquisas quantitativas aspectos da
individualidade são apagados no processo de mensuração.
5. Abordagem quantitativa:
A abordagem quantitativa é adequada quando se deseja obter resultados que
possam ser generalizados da amostra para a população. A fim de permitir sua aplicação
em larga escala, a pesquisa quantitativa utiliza instrumentos que facilitam a tabulação
dos dados e a análise em blocos. Uma característica desse tipo de pesquisa é definir
sistematicamente que dados serão levantados e os critérios para análise destes dados já
na fase de projeto da pesquisa. Os resultados são traduzidos em números e estatísticas
(percentuais, médias, desvio-padrão, variância etc.). Nesse tipo de pesquisa é importante
definir as variáveis controladas, pois assim outros pesquisadores poderão reproduzi-la a
fim de comparar seus resultados. Aqui comentarei três técnicas utilizadas na pesquisa
sobre o uso de dicionário por meio da abordagem quantitativa: o questionário, os
experimentos e o registro de logs.
5.1.
Questionário
Uma das principais técnicas utilizadas nas pesquisas quantitativas sobre uso do
dicionário é o questionário. O questionário pode ser aberto (sem alternativas de
respostas) ou fechado (com alternativas de respostas). O questionário fechado foi o
instrumento das primeiras pesquisas sobre o uso dos dicionários. Essas pesquisas
misturavam perguntas objetivas com perguntas subjetivas. Perguntas objetivas como:
quantos dicionários você possui? que dicionário você possui?, só podem ser
respondidas dessa forma. Portanto, questionários podem ser um instrumento de pesquisa
muito adequado para avaliar quantos e quais dicionários são possuídos por uma
determinada amostra e extrapolar esses dados para toda uma população.
As perguntas subjetivas, por sua vez, estão relacionadas a outro tipo de
finalidade a que se prestam os questionários: as pesquisas de opinião e as pesquisas
sobre comportamento. No entanto, é muito importante elaborar bem as perguntas, pois
quando elas são mal interpretadas as respostas podem ficar prejudicadas.
38
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008
Quando se trata de questionário fechado, ou seja, quando as alternativas de
resposta são pré-determinadas, aspectos não previstos pelos pesquisadores não têm a
oportunidade de se revelar. Por exemplo, Hartmann (1999), utilizou um questionário
fechado para investigar várias questões envolvendo dicionários. Uma de suas
conclusões foi de que as características que mais influenciam o aprendiz na compra do
dicionário são, respectivamente: relevância para as necessidades, número de unidades
lexicais, número de exemplos, preço e reputação da editora. No entanto, outras
características que poderiam ser relevantes não apareceram como opção: durabilidade
(material resistente), portabilidade (peso e volume) e potencial de aproveitamento em
estágios mais avançados.
Nos questionários fechados o respondente pode assinalar uma resposta que não
corresponda à sua verdade se a resposta que gostaria de dar não estiver contemplada
dentre as alternativas apresentadas. Perguntar, por exemplo: Qual o tipo de dicionário
que você mais utiliza? e dar como alternativas de resposta dicionário monolíngue e
dicionário bilíngüe impede que se conheça qual o tipo de dicionário mais utilizado em
cada tipo de situação, qual a direção mais consultada e, ainda, ignora a possibilidade de
distinção entre o uso do dicionário monolíngue de LM e o uso do dicionário
monolíngüe de LE. Esse tipo de pergunta poderia obter respostas mais aproveitáveis se
fosse elaborado da seguinta forma:
Em cada uma das situações abaixo, qual o tipo de dicionário você mais utiliza?
Preencha os parênteses com números de 1 a 4 por ordem de prioridade: 1 para o
dicionário mais utilizado até 4 para o menos utilizado.
LEITURA DE TEXTO EM LE
(
(
(
(
) dicionário monolíngüe de língua estrangeira;
) dicionário monolíngüe de língua materna;
) dicionário bilíngüe na direção língua estrangeira-língua materna
) dicionário bilíngüe na direção língua materna-língua estrangeira
TRADUÇÃO DE TEXTO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA
( ) dicionário monolíngüe de língua estrangeira;
( ) dicionário monolíngüe de língua materna;
( ) dicionário bilíngüe na direção língua estrangeira-língua materna
( ) dicionário bilíngüe na direção língua materna-língua estrangeira
REDAÇÃO EM LÍNGUA ESTRANGEIRA
( ) dicionário monolíngüe de língua estrangeira;
( ) dicionário monolíngüe de língua materna;
( ) dicionário bilíngüe na direção língua estrangeira-língua materna
( ) dicionário bilíngüe na direção língua materna-língua estrangeira
VERSÃO DE TEXTO PARA LÍNGUA ESTRANGEIRA
( ) dicionário monolíngüe de língua estrangeira;
( ) dicionário monolíngüe de língua materna;
( ) dicionário bilíngüe na direção língua estrangeira-língua materna
( ) dicionário bilíngüe na direção língua materna-língua estrangeira
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Perguntas como essa são mais complexas, mas podem fornecer muitas
informações sobre a opinião dos pesquisados acerca do próprio comportamento.
Em pesquisas com um grande número de participantes, os questionários são
enviados por e-mail ou correio e respondidos à distância. Mas eles podem também ser
aplicados com a presença do pesquisador ou de um representante, possibilitando que
eventuais dúvidas sobre as questões sejam acolhidas e esclarecidas.
Quando as questões são mais complexas e requerem a presença do pesquisador
junto a cada sujeito de pesquisa, utiliza-se a entrevista. Na entrevista, o questionário
guia as perguntas do entrevistador e pode fornece alternativas de resposta que devem ser
assinaladas pelo entrevistador a partir de sua interpretação da resposta do entrevistado.
O contato individualizado do pesquisador com os sujeitos de pesquisa pode ser
proveitoso, trazendo à luz aspectos ignorados anteriormente e que poderão ser
aproveitados em pesquisas futuras. A entrevista sobre o uso de dicionários realizada por
Ibrahim e Zalessky (1989), por exemplo, utilizou um questionário com questões abertas
e fechadas. Nas conclusões, podemos observar que, se por um lado a ferramenta foi
muito adequada para investigar alguns aspectos (quantos e quais dicionários possui,
quantas vezes consulta o dicionário por semana, foi ou não instruído sobre como utilizar
o dicionário etc.), mas não permitiu conclusões importantes em aspectos
comportamentais como, por exemplo, “o que você faz quando o dicionário não lhe
fornece uma resposta?”. Nesse último caso, as autoras verificaram que inúmeras
variáveis influíam no comportamento dos aprendizes, dentre as quais a nacionalidade e
a escolaridade. Relataram também que algumas respostas são tão complexas que “não
se pode identificar uma resposta dominante” em determinado grupo de usuários
(IBRAHIM; ZALESSKY, 1989, p. 28).
Tanto nos questionários respondidos à distância quanto nas entrevistas simples, é
preciso não confundir opinião com fato. Sempre que utilizamos questionários temos que
ter em mente a possibilidade de que:
a. O sujeito de pesquisa responda o que pensa que o pesquisador espera que ele
responda. Esse problema deve ser considerado, principalmente nos casos de
pesquisas conduzidas por professores com seus próprios alunos como
sujeitos de pesquisa, pois é provável que os alunos já conheçam a opinião
dos professores acerca dos assuntos abordados nas perguntas.
b. O sujeito de pesquisa responda o que pensa que faz, mas que na realidade
não faz. Esse problema ocorre principalmente quando se trata de
comportamentos automatizados, dos quais se tem pouca consciência.
Diante desses riscos, resultados de pesquisa baseados em questionários deveriam
ter o cuidado de deixar claro que se baseiam na opinião ou na declaração dos
respondentes. Assim, não se deveria dizer, por exemplo, que a pesquisa mostrou que tal
ou tal dicionário é mais útil, mas sim que, na opinião dos respondentes, tal ou tal
dicionário é mais útil.
5.2.
40
Experimentos
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Nessa categoria de pesquisa enquadro todas as atividades concebidas para testar
determinadas hipóteses (cf. WELKER, 2006, p. 32 que diferencia experimento de teste).
Nos experimentos procura-se controlar as variáveis consideradas mais
relevantes. Por exemplo, para avaliar se um dicionário é melhor que outro, uma mesma
atividade é proposta a dois grupos pretensamente homogêneos de aprendizes, cada um
utilizando um dos dois tipos de dicionário testados. É considerado melhor o dicionário
que foi utilizado pelo grupo que apresentou melhor desempenho.
Ao considerarem apenas algumas variáveis, os experimentos simplificam a
realidade e podem conduzir a conclusões equivocadas. Sobre eles, Nesi & Haill dizem
que “...exigem que os usuários consultem palavras que eles poderiam não desejar,
necessariamente, consultar, em dicionários que eles não iriam normalmente consultar,
para fins que eles podem não entender ou com os quais eles podem não concordar”
(NESI & HAILL, 2002, p. 277, tradução minha).
Vejamos um exemplo de como o experimento pode levar a conclusões
equivocadas.
Laufer (1993) queria testar a hipótese de que os exemplos são mais importantes
que as definições em um dicionário. Para isso, propôs atividades de leitura, seguida de
teste de compreensão de texto, e de formulação de frases em LE. Ambas as atividades
continham palavras consideradas difíceis e com baixa probabilidade de já serem
conhecidas pelos sujeitos de pesquisa (para isso foram testadas em um grupo de
controle). O resultado das atividades foi avaliado estatisticamente, definindo o
percentual de sucessos obtidos somente com exemplos, somente com definições e com
exemplos e definições juntos. O resultado na atividade de leitura foi tratado
separadamente do resultado na atividade de elaboração de frases (que a autora chamou
de atividade de produção).
Ora, em uma atividade de produção em LE raramente ou nunca se utiliza o
dicionário para conhecer o significado de uma palavra, pois é difícil conceber que
alguém queira expressar-se por meio de palavras cujo significado desconhece. Além
disso, nesse experimento existe a possibilidade de que os exemplos do dicionário sejam
copiados ou ligeiramente alterados na sentença que os aprendizes têm que produzir.
Como em ambas as atividades desse experimento (leitura e produção de
sentenças), o aprendiz utilizou o dicionário para entender o significado de palavras
desconhecidas, as conclusões podem até aplicar-se ao uso receptivo do dicionário (na
decodificação), mas não no uso ativo (codificação).
Nesi (1994), Nesi & Meara (1994) e Nesi (1996) também propuseram a
elaboração de sentenças com palavras consideradas raras ou difíceis para medir o efeito
de certas variáveis na produção escrita (a língua materna do aprendiz, definições,
exemplos). Para eliminar a possibilidade de cópia dos exemplos, em Nesi (1996) foi
solicitado que o sujeito de pesquisa combinasse cada uma das palavras raras com outra
palavra dada, mas não rara. No entanto, o mesmo equívoco de Laufer (1993)
permaneceu: não se mediu o efeito do dicionário na produção, mas sim na compreensão.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008
41
Portanto, a atividade de formular frases utilizando palavras dadas parece ser
inadequada para verificar o efeito do uso do dicionário na produção.
5.3.
Registro de logs
Em se tratando do uso de dicionários em mídia eletrônica, o percurso da consulta
pode ser analisado por meio do registro de logs, que representam os comandos que o
usuário deu no computador. Ao final da atividade, o pesquisador obtém um relatório
com a seqüência desses logs e pode analisar quais as opções consultadas pelos usuários.
Os logs substituem o observador sem afetar a espontaneidade do consulente. A mudança
de mídia é uma variável a ser considerada, pois afeta a motivação. Porém, também esse
tipo de pesquisa tem suas limitações: por não se saber, por exemplo, dentro de uma série
de consultas registradas por logs, quais foram motivadas por dúvidas, quais foram
motivadas por simples curiosidade e quais foram resultado de um erro na escolha da
opção de acesso. Não se sabe também se toda informação acessada foi realmente lida e
interpretada. Esse instrumento foi utilizado, por exemplo, por Laufer & Hill (2000) e
considero um bom recurso a ser utilizado na triangulação com outros dados de pesquisa.
6. Métodos promissores ainda não utilizados.
6.1.
Pesquisa-ação
Considero interessante a possibilidade de o pesquisador ser o próprio sujeito de
pesquisa nessa área, pois os pesquisadores são freqüentemente também grandes usuários
de dicionários. Essa modalidade de pesquisa é análoga à pesquisa-ação tão utilizada
pelos professores para observar a própria prática (v. WALLACE, 1998). O fato de não
envolver outras pessoas pode facilitar a execução da pesquisa e os resultados podem
revelar ao pesquisador e a toda comunidade científica aspectos não observados em
outros tipos de investigação. Os instrumentos utilizados nessa pesquisa são os mesmos
já expostos na pesquisa de abordagem qualitativa: o diário e o protocolo verbal. A
diferença é que o pesquisador vai analisar seu próprio comportamento, fazendo uma
auto-observação e uma auto-reflexão.
6.2.
Corpus Computadorizado de Aprendizes
Ainda não encontrei nenhuma pesquisa que tenha utilizado corpus de aprendizes
computadorizado para investigar o efeito do uso de dicionários, mas considero essa uma
boa idéia para avaliar a correlação entre diversas variáveis como gênero textual;
dicionários utilizados; idade do sujeito, nível de instrução etc. e a quantidade e os tipos
de erros cometidos.
Esse tipo de corpus é constituído de redações de aprendizes. Poder-se-ia, por
exemplo, comparar um corpus de redações feitas com o uso de dicionários a um corpus
de redações sem o uso do dicionário.
Controlando-se as variáveis mais relevantes para a pesquisa do uso do
dicionário, podem-se levantar padrões que mereçam ser investigados mais a fundo.
Essas variáveis são: tipo de dicionário utilizado durante a escrita; condição do aprendiz
em relação ao ambiente no momento da escrita (nativo ou estrangeiro); tipo de atividade
42
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008
(codificação ou decodificação). Isso não dispensa, no entanto, o controle das variáveis
relacionadas à biografia do sujeito de pesquisa, como idade, língua materna, tempo de
estudo de LE, conhecimento de outras línguas etc.
A análise automatizada de corpora de aprendizes, contudo, ainda está se
desenvolvendo, pois depende da etiquetação automática de tipos de erros e a tipologia
de erros é ainda um assunto controverso (cf. Tono, 2003).
7. Dados secundários
A possibilidade de aproveitar dados já levantados para outras finalidades deve
sempre ser considerada pelo pesquisador que investiga o uso do dicionário, embora
sejam raras essas oportunidades. Nesi & Haill (2002), por exemplo, aproveitaram
trabalhos realizados em uma disciplina sobre uso de recursos de biblioteca e que
continham um tópico referente ao uso de dicionários. O uso de corpus de aprendizes
também pode ser uma forma de utilizar dados secundários. Sempre que isso for feito, no
entanto, é preciso declarar todas as possíveis conseqüências sobre os resultados.
8. Considerações finais
Procurei mostrar como diferentes perguntas de pesquisa sobre o uso de
dicionário podem requerer a adoção de diferentes abordagens metodológicas. Isso me
pareceu mais produtivo do que defender a abordagem qualitativa ou a quantitativa, já
que cada uma delas serve a propósitos diferentes e leva a resultados que se
complementam na construção do conhecimento.
Até hoje a grande maioria das pesquisas sobre o uso do dicionário utilizou
questionário e vimos exemplos de perguntas de pesquisa que podem e que não podem
ser adequadamente investigadas por meio dessa técnica.
Vimos também como técnicas introspectivas de pesquisa mostram-se adequadas
para investigar questões ligadas ao comportamento do usuário no processo de uso do
dicionário.
Comentários críticos sobre os métodos utilizados nas pesquisas sobre o uso do
dicionário podem alertar outros pesquisadores sobre aspectos que devam ser
considerados nos projetos de pesquisa desta natureza.
Acredito que o uso do dicionário ainda será muito pesquisado e por isso sugeri
formas de aplicar métodos conhecidos, mas ainda não utilizados para investigar esse
assunto.
Muitas das terminologias utilizadas para designar as técnicas e os instrumentos
de pesquisa aqui discutidos não são de consenso geral. Mas não era meu propósito
argumentar sobre essas questões neste espaço.
Ainda são poucas as pesquisas sobre o uso do dicionário no Brasil. No
levantamento de Welker (2006), elas somavam 17. Espero que esta discussão sobre os
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008
43
métodos empregados em pesquisas sobre o uso do dicionário representem uma
contribuição àqueles que desejem realizar projetos visando à ampliação do
conhecimento sobre o usuário brasileiro de dicionários.
Conhecer o uso que os aprendizes fazem dos dicionários abre diversas
possibilidades para o aperfeiçoamento das obras lexicográficas, além de revelar a
necessidade e a oportunidade de promover o ensino do uso do dicionário.
i
Bolsista CAPES
Michaelis Dicionário Escolar Inglês. São Paulo: Melhoramentos, 2001.
iii
Refiro-me às diversas obras de bilingualização do Oxford Advanced Learner’s Dictionary pela
Kernerman Dictionaries, uma das quais é o Password English Dictionary for Speakers of Portuguese,
editado no Brasil pela Martins Fontes.
ii
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61
ASPECTOS DA FONOLOGIA SEGMENTAL MEHINÁKU
(ARUÁK)
Angel Corbera Mori
Departamento de Lingüística-Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Caixa Postal 6045 - 13083-970 – Campinas - SP – Brasil.
Abstract. In this paper we describe some aspects of the segmental phonology
of Mehinaku, an indigenous language of the Aruak or Arawak family spoken in
the Xingu National Park, Mato Grosso, Brazil. We analyze the distribution of
the vowel and consonant phonemes, and, in contrast to Silva’s previous study
(Silva, 1990), we do not classify [ ] and [ ] as separate phonemes and we
classify [o] and [u] as realizations of the phoneme /u/. In addition, we assume
that there are two affricates phonemes in Mehinaku, / / and / /.
Keywords. Indigenous languages; arawak family; phonology; mehinaku
language; Alto Xingu languages.
Resumo. Este trabalho descreve alguns aspectos da fonologia segmental do
Mehináku, uma língua indígena da família lingüística aruák ou arawák,
falada no parque indígena do Xingu, no estado do Mato Grosso. É
apresentada a distribuição dos fonemas vocálicos e consonantais da língua. À
diferença de um trabalho anterior (Silva, 1990), neste trabalho assume-se que
as fricativas [ ] e [ ] são variações fonéticas do fonema fricativo / /, assim
como os fones [o] e [u] são tratados como variações do fonema vocálico /u/.
Considera-se também que há dois fonemas africados em Mehináku, / / e / /.
Palavras-Chave. Línguas indígenas; família arawák; fonologia; língua
mehináku; línguas do Alto Xingu.
0. Introdução
O Mehináku é uma língua indígena da família aruák ou arawák, falada por
aproximadamente 250 pessoas que habitam a região do rio Kurisevo, no Parque
Indígena do Alto Xingu, Mato Grosso, Brasil. A população distribui-se em duas aldeias,
Uyaipiyuku, conduzida pelo cacique Yumui Mehináku, e Utawana, dirigida pelo
cacique Yahati Mehináku.
No presente trabalho apresenta-se um avanço preliminar dos resultados obtidos
na análise da fonologia segmental dessa língua, considerando o inventário dos fonemas
vocálicos e consonantais. Logo depois, incluem-se uma breve descrição do padrão
silábico, os processos morfofonêmicos de palatalização dos segmentos oclusivos /p/, /k/,
nasais /m/, /n/ e a africação de /t/ em / /, demonstra-se que esses processos ocorrem em
fronteira de morfemas.Uma seção final trata da nasalidade das vogais. Levanta-se a
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008
63
hipótese que não há vogais nasais em Mehináku, ao contrário do que tinha sugerido,
inicialmente, Silva (1990).
1. Fonologia
Esta seção trata da organização básica do sistema fonológico, com exemplos de
dados que mostram os segmentos postulados como fonemas da língua.
1.1. Consoantes
Há treze fonemas consonantais que contrastam em sete pontos de articulação. A
distinção entre as oclusivas se dá nos pontos bilabial /p/, alveolar /t/ e velar /k/. As
africadas, nos pontos alveolar / / e pós-alveolar / /, as fricativas nos pontos
retroflexo/ / e glotal /h/. As nasais nos pontos bilabial /m/ e alveolar /n/. Já as líquidas
opõem-se pelos modos lateral /l/ e tepe / /, respectivamente. As aproximantes, por sua
vez, diferenciam-se pelos pontos bilabial /w/ e palatal /j/. A tabela (1) mostra o
inventário das consoantes em consonância com os pontos e modos de articulação.
Plosiva
Africada
Bilabial
p
Alveolar Pós-alveolar
t
Retroflexa Palatal Velar Glotal
k
Fricativa
Nasal
Lateral
Tepe
h
m
n
l
Aproximante
w
Tabela 1.
j
1.1.1. Contraste das consoantes
Os dados de (1) a (15) mostram as ocorrências das consoantes interpretadas
como fonemas. Elas são apresentadas em pares de palavras com base na sua
aproximação articulatória, tratando de evidenciar seu comportamento funcional na
língua.
(1)
(2)
(3)
64
/p/
pa pa
‘pai’
/m/
ma ma
‘mãe’
pa lawa
‘órfã’
mapa palu
‘borboleta’
e pula
‘verde’
temu kai
‘poeira’
/p/
pa:ka
‘cará’
/w/
wa kala
‘jaburu’, ‘garça’
p hk
‘assado de mutum’
w kh
‘copaíba’
na pi
‘osso (não possuído)’
ti wi
‘cabeça (não possuído)’
‘anta’
/w/
i- tewe
‘dente dele’
/m/
teme
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008
(4)
(5)
(6)
(7)
(8)
(9)
(10)
(11)
mapa
‘mel’
kam
‘sol’
ala mai
‘cipó’
ja wai
‘machado’
/t/
ata
‘árvore’
/n/
ana
‘pilão’
tulu i
‘orelha (não possuído)’
nu- na:p
‘minhas costas’
t n u
‘mulher’
n
‘irmã da mãe’
/t/
wa papa
w
‘mergulhão’
‘afiado’
u
//
kuju ti
‘testículos (não possuído)’
ki i
‘nariz ’( não possuído)
atu
‘avô’
a ui
‘arroz’
natau ki
‘azarado’
a au kumã
‘frango’
/n/
//
wa nãi
‘braço (não possuído)’
heki a i
‘testa (não possuído)’
enu na:ku
‘céu’
jami uka
‘relâmpago’
auki i
‘narigudo’
ni ai
‘ovos’
/l/
//
wa hulu
‘mão esquerda’
n-i u ta u
‘minha filha’
wajala pi
‘veias (não possuído)’
n-ata tãi a
‘minha frutinha’
wa:lu
‘caramujo’
we u já
‘amarelo’
/l/
leke pe
‘rede de pescar’
/n/
ne tei
‘piolho (não possuído)’
i kipiu lulu
‘besouro’
ja nunu
‘irmão mais velho’
kula t
‘sabiá’
ma na
‘peneira’
/m/
ma pi
‘pele (não possuído)’
/n/
na pi
‘osso (não possuído)’
ata mai
‘embira’
uwala nai
‘isca’
kam
‘sol’
un
‘chuva’
/t/
/ /
temu kai
‘poeira’
etu i
‘joelho (não possuído)’
a tat
‘galho’
a waka
‘ontem’
ti wi
‘cabeça (não possuído)’
enu i a
‘trovão’
/t/
/ /
pu ti
‘perna (não possuído)’
a tsi
‘avó’
wa: tipi
‘colar de tucum’
au i i
‘bonito’
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008
65
a tai
(12)
‘febre’
/ /
i u ti
‘cu (não possuído)’
i ula
‘martim-pescador
i i ap
‘está costurando’
mai ki i
‘grão de milho’
‘joelho (não possuído)’
i tsei
‘fogo’
//
/h/
he et
(14)
‘amendoim’
he he
‘beijuzeira’
a kalu
‘piranha preta’
h kumã
‘peixe estragado’
a kalu
‘papagaio (esp.)’
hauka
‘bebê’
//
/ /
ai
u au
u'la
(15)
‘semelhante’
/ /
etu i
(13)
i a ku
‘sangue (não possuído)’
ki a pai
‘pé (não possuído)’
‘papagaio (esp.)’
i tsau ta:ku
‘lugar de palmeiras’
‘lagartixa’
uku jalu
//
‘mulher grávida’
/ /
a kalu
‘papagaio (esp.)’
ute
na t a
a waka
‘ontem’
‘mosquito’
i una
‘timbó’
‘eles/as’
he i' a
‘velho’
1.1.2. As aproximantes /w/ e /j/
O padrão silábico da língua é (C)V, ao ocorrer uma consoante no Ataque da
sílaba, ela deverá ser simples, ou seja, não há grupos consonantais na posição de
Ataque, nem ocorrência de consoantes na posição de Coda. Assim sendo, os segmentos
[w] e [j] podem ser analisados como fonemas consonantais que ocupam as posições de
Ataque no padrão silábico, tanto em posição inicial da palavra como no interior dela,
como se vê nos dados de (16)
(16)
/w/
wa tuku
‘borduna’
/j/
japa
‘paca’
ti wi
‘cabeça (não possuído)’
a jupe
‘algodão’
we e: e
‘perereca’
je e ti
‘nádegas (não possuído)’
nu-w
‘minha mão’
kuju wi
‘jacu’
ku
Uma evidência a favor dessa interpretação encontra-se na morfologia da língua.
Especificamente, em construções de possessão nominal, os marcadores de primeira e
segunda pessoas ocorrem com o padrão silábico CV- quando a base nominal começa
com consoante, e apenas como C-, quando essas bases se iniciam com vogal.
Paralelamente, os nomes que começam com /w/ ou com /j/ no início da palavra, em
construções de possessão, são interpretados como consoantes pelos falantes, como se
pode ver comparando os exemplos em (17a) e (17b).
(17)
66
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008
a)
b)
pa lata
‘pente’
e tene
‘remo’
nu-pala ta
‘meu pente’
n-e tene
‘meu remo’
pi-p ula ta
‘teu pente’
p-e tene
‘teu remo’
w ku- i
‘mão’
juhiamepe- i
‘sobrancelha’
nu-w
ku
‘minha mão’ nu-juhia mepe
‘minha sobrancelha’
pu-w
ku
‘tua mão’
‘tua sobrancelha’
pu-juhia mepe
1.2. Vogais
Foram identificadas cinco vogais orais como fonemas. Elas são apresentadas na
tabela (2) de acordo com a posição mais alta da língua em sentido horizontal (Anterior,
Central, Posterior) e na direção vertical para indicar a abertura das mesmas (Fechadas,
Média Fechadas, Aberta). Embora se encontrem também vogais foneticamente
nasalizadas, elas são interpretadas como o resultado do espalhamento do traço nasal de
uma consoante nasal sem ponto de articulação, pois essa consoante não estaria sendo
licenciada para ocupar a posição da Coda dentro do Padrão Silábico da língua. Nesse
sentido, assume-se que em Mehináku existem fonologicamente apenas cinco vogais
orais e suas correspondentes nasalizadas são derivadas via espalhamento do traço da
consoante nasal. Essa interpretação se diferencia daquela assumida por Silva (1990),
que reconhece cinco vogais orais e cinco nasais como fonemas, a saber: /i, e, u, o, a/ vs.
/ , , , ã/, respectivamente.
Anterior
i
Fechada
Média Fechada
Aberta
Tabela 2.
Central
Posterior
u
e
a
Da mesma forma como foram apresentados os dados para mostrar a ocorrências
das consoantes, segue-se o mesmo padrão de correlação de pares de palavras para
evidenciar o rendimento funcional das vogais, como se mostra nos exemplos de (18) a
(22).
(18)
(19)
/i/
upi
‘pato’
/e/
jupe
‘tamanduá’
imi
‘óleo de pequi’
emu
‘beiju torrado’
ti wi
‘cabeça (não possuído)’
te wei
‘dente (não possuído)’
/i/
i nipiu
(20)
//
‘rabo’
en a
‘homem’
e pi
‘banco’
kama lup
‘panela’
i a
‘canoa’
/u/
e u
ai
‘sangue (não possuído)’
//
‘cigarra’
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008
ke
‘lua’
67
(21)
(22)
uhu
‘batata’
hu
‘sal’
hu luki
‘moitará’
h ka
‘fumo’
/e/
//
e tene
‘remo’
t u tapa
‘arara’
tutu me
‘bico de jaca’
kam
‘sol’
nu- me
‘meu marido’
wene m
‘lago’
/a/
//
ka ti
‘perna (não possuído)’
k hu
‘faca’
ata
‘árvore’
t
‘caroço’
wa a jute
‘feijão’
w
:pu
‘sonolento’
2. Estrutura silábica.
O padrão silábico em Mehináku é (C)V, ou seja, o núcleo silábico é preenchido
obrigatoriamente por uma vogal. Além disso, esse vogal pode ou não estar
acompanhada por uma consoante em Ataque, porém a Coda da sílaba ficará sempre
vazia. O Ataque da sílaba, em posição inicial absoluta e interna à palavra, é coberto
pelas consoantes oclusivas /p, t, k/, as africadas e fricativas / , , , h/, as nasais /m, n/,
a lateral /l/ e as aproximantes /w, j/. O tepe / / apenas ocorre no Ataque da sílaba interna
da palavra, mas não em Ataque da sílaba inicial absoluta de palavra. Em (23) exemplos
dos tipos de sílaba.
(23)
a.ta
V. CV
‘árvore’
u.a.p .h
V.V. CV.CV
‘urubus’
e. te.ne
V.CV.CV
‘remo’
ni. e.tu
CV.CV.CV
‘meu joelho’
m . a. ki
CV.CV.CV
‘calor do sol’
wa.ja.la. pi
CV.CV.CV.CV.
‘veias’
u.i
V.V
‘cobra’
2.1. As seqüências CV e V$C no padrão silábico
Na seqüência fonotática CV as consoantes /p/, /t/, /k/, / /, / /, /m/, /n/, /h/ e /j/
podem ser seguidas por qualquer das cinco vogais /i, , u, e, a/. Já as consoantes / /, /l/,
/ / e /w/ não foram encontradas nas combinações: * i, *l , * e,*
e *wu. Da mesma
forma, na combinação heterossilábica V$C as consoantes /p/, /t/, /k/, /m/,/n/, / /, /h/, /l/,
/ / e /w/ podem ser precedidas pelas vogais /i, , u, e, a/. Contudo, não foram
encontradas as seqüências: * $ , * $ , *e$ e * $j.
2.2. As seqüências vocálicas
68
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008
Seqüências de duas vogais são poucas, reduzindo-se tão só aos casos de: ai, ei,
eu, ue, ie, au, u, iu, ia, como se vê nos seguintes dados:
(24)
/ai/
maiki
‘milho’
/ei/
i ei
‘fogo’
/au/
u au
‘papagaio’
/eu/
neu'ne
‘pessoa’
/ u/
hu
‘sal’
/iu/
nete piu t
‘clavícula’
/ie/
i pieh
‘capivara’
/ia/
ulu kialu
‘andorinha’
/ue/
pi ue leke
‘rápido!’
Numa primeira aproximação, seria fatível assumir que essas seqüências de
vogais representam ditongos. Assim, elas ficariam sob o domínio de um único núcleo
contendo duas unidades temporais. Embora essa interpretação seja plausível, ela viola o
padrão estrutural $(C)V$ da língua, pois se estaria criando, sem motivo, sílabas do tipo
$VV$. A outra alternativa, também plausível, seria tratar o grupo dessas vogais como
núcleos dissilábicos, sem o Ataque preenchido. Uma evidência para optar por essa
segunda alternativa é encontrada em outro conjunto de dados, contendo as mesmas
seqüências. Nesse conjunto, a intensidade fica às vezes na primeira vogal da seqüência e
em outras na segunda vogal à direita, sendo silabado pelo falante como emissões
dissilábicas, como se pode ver a seguir.
(25)
a. pi.a
‘queixada’
i. a. i.ku
‘semelhante’
e. tu.i
‘joelho’
t .pu.lu. i
‘calcanhar’
wa. u. a
‘Waurá’
u.a
‘urubu’
u.i
‘cobra’
ju.hi.a.me.pe. i
‘sobrancelha’
a.ta. u. a
‘nome próprio’
pi. u.e.'le.ke
‘rápido!’
3. Processos morfofonêmicos
Um processo morfofonêmico que ocorre no Mehináku é a palatização das
consoantes oclusivas /p, k /, as nasais /m, n/ e a aproximante /w/. Outro processo se
relaciona com a africação da obstruinte coronal /t/. Esses dois processos se dão quando
ditos segmentos ocupam o Ataque em posição inicial da palavra, sendo precedidos pelo
prefixo marcador de segunda pessoa cuja estrutura CV contém a vogal coronal /i/.
3.1. Palatalização de oclusivas
A palatalização das consoantes /p/ e /k/ pode-se ver nos seguintes exemplos.
(26)
a)
pa lata
‘pente’
nu-pala ta
b)
kana ti
‘boca’
‘meu pente’
nu-ka nat
‘minha boca’
pi-p ula ta
‘teu pente’
pi- a nat
‘tua boca’
ji-p ula ta
‘pente de vocês’
i- a nat
‘boca de vocês’
Como se observa as consoantes /p/ e /k/ ocorreram palatalizadas ao serem
precedidas pela vogal/i/, núcleo do padrão CV dos prefixos de segunda pessoa. Pelos
dados encontrados, poderia assumir-se que em todos os casos onde se apresenta a
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008
69
palatalização dessas consoantes elas estão precedidas pela vogal /i/, como parece
evidenciar os seguintes dados.
(27)
i piuluku mã ‘abelha’
ukuki pia
i piana ‘feitiço’
‘pacu grande’ i pieh
‘capivara’
ikipiu lula
‘iguana’
mi piama
‘dois
Contudo, dados como aqueles em (28), a seguir, evidenciam uma palatalização
sem terem uma vogal /i/ precedente. Se for correta essa observação, então, é possível
assumir que palavras como as da lista (27) contêm uma vogal /i/ subjacente.
(28)
piunaku i
‘garganta’
piu luma
‘piranha’
pia latu ‘caranguejo’
Por outro lado, a obstruinte /k/ não se palatiza se a sílaba CV inicial da palavra
contiver como núcleo a coronal /i/, como se mostra nos seguintes exemplos.
(29)
a)
ki i
‘nariz’
nu- ki i
b)
ki a pai
‘pé’
‘meu nariz’
ni-ki apa
‘meu pé’
pi- ki i
‘teu nariz’
pi-ki apa
‘teu pé’
i- ki i
‘nariz de vocês’
ji-ki apa
‘pés de vocês’
3.2. Palatalização das nasais /m, n/ e da aproximante /w/
Como foi dito, essas consoantes também sofrem o processo de palatalização
quando funcionam como ataques da sílaba inicial da palavra e sendo precedidos pelo
prefixo de pessoa, cuja estrutura CV inclui a vogal palatal /i/, como evidenciam os
seguintes dados.
(30)
nu-ma t u
‘minha sogra’
pi-m a t u
‘tua sogra’
nu- nete
‘meu piolho’
pi- ete
‘teu piolho’
nu- wana
‘meu braço’
pi- jana
‘teu braço’
a-ma t u
‘nossa sogra’
i-m a t u
‘sogra de vocês’
nete
‘nosso piolho’
i-' ete
‘piolho de vocês’
a-'wana
‘nosso braço’
ji- jana
‘braço de vocês’
3.3. Africação de /t/
Outro processo bastante produtivo no Mehináku relaciona-se com a africação da
obstruinte /t/. Ela é afetada, igualmente, no mesmo contexto mencionado para os
segmentos citados anteriormente.
(31)
a)
te wei
‘dente’
b)
ti wi
‘cabeça’
nu- tewe
‘meu dente’
nu- t u
pi- ewe
‘teu dente’
pi-
u
‘tua cabeça’
ji- ewe
‘dente de vocês’
ji-
u
‘cabeça de vocês’
‘minha cabeça’
Aqui também se poderia argumentar que a modificação de /t/ para / / independe
da fronteira morfêmica, como parecem corroborar os seguintes dados.
(32)
70
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008
i tsei
‘fogo’
itsa
‘canoa’
i ula
‘martim-pescador’
i i
‘pênis’
wi ei
‘lagarta’
ki a lai i
‘forte’
Nesse conjunto de dados, todas as ocorrências são palavras sem fronteira
morfológica. Daí se concluiria que toda vez que uma vogal /i/ precede o segmento
oclusivo, ele torna-se / /. Contudo, nos dados de (11, p. 3), viu-se que os segmentos /t/
e / / funcionam como fonemas diferentes. Além disso, nos dados elicitados até o
presente encontrou-se palavras com a vogal /i/ precedendo /t/, sem apresentar o
processo de africação. Conclui-se, então, que a presença de / / em dados como os de
(32) representa um fonema subjacente, não sendo, portanto, a realização morfofonêmica
de /t/.
4. As vogais e o traço nasal
Como ocorre no Waurá, outra língua arawák, falada no parque indígena do
Xingu, em Mehináku também se encontra a nasalidade de vogais, como mostram os
seguintes exemplos.
(33)
a kai
‘pequi’
apapa' jei
‘bichos’
auna ki
‘história’
e' u
‘cigarra’
tu lui
‘orelha’
ki jeiki
‘escorregadio’
nu'hu
‘mamilo’
'k h
‘facão’
at p 'ku
‘curto’
ipu' ulu
‘namorada dele’
Como o padrão silábico do Mehináku é (C)V, sem consoantes na Coda, não há
consoantes nasais nessa posição. Sendo assim, não haveria problema em supor que na
Coda da sílaba está presente um segmento nasal subjacente sem ponto de articulação
[N]. Como essa consoante não é licenciada foneticamente por seu núcleo, a única
maneira de aparecer é espalhar seu traço nasal sobre a vogal correspondente.
Fundamenta-se essa hipótese pelo fato que não há licenciamento da Coda nessa língua
4.1. Domínio da nasalidade
Os elementos alvos da nasalidade são as vogais. Ela não apenas se projeta sobre
uma vogal, mas também se espalha por uma seqüência de vogais até encontrar um
segmento opaco que seja fronteira à propagação da nasalidade. Operam como
segmentos opacos as consoantes oclusivas /p, t, k/, as africadas / , /, a fricativa / /, as
nasais /m, n/ e as líquidas /l, /. As aproximantes /w, j/ e a fricativa /h/, ao contrário, são
transparentes ao espalhamento.
A direção do processo é da direita para a esquerda, primeiramente afeta a vogal
que se localiza mais a direita da palavra. A partir dessa vogal, a nasalidade se propaga
para as outras vogais localizadas à esquerda da vogal alvo da nasalidade. Os seguintes
exemplos mostram o processo correspondente.
(34)
nu taiN
[nu'tai]
nu pijuN [nu'pi
‘meu filho’
]
m h aN [m h ' a]
' uNte
‘meu pescoço’ a haN
[ ' ute] ‘mosquito’
[ ahá ]
‘ele/a’
‘vermelho’ t 'n u nauN [t 'n u'nau] ‘mulheres’
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008
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kaju'malaN [kaju'mala]
‘verdade’
wajuN ['waju]
a kaiNpiehe [a'kai'p ehe] ‘caldo de pequi’ i wiN i
‘chocoalho’
[ iwi i] ‘coração’
Finalmente, a aproximante palatal /j/ ao ser afetada pelo espalhamento da
nasalidade pode realizar-se opcionalmente como a nasal palatal [ ], como se mostra a
seguir.
(35)
ka kãjã
ka ka a
‘gaivota’
ketu laja
ketu la a
‘pelota’
hekuja wiku
heku a wiku
‘antigamente’
kana uja
kana u a
‘cana’
5. Conclusões
Foi apresentada uma análise preliminar da fonologia do Mehináku focalizando a
distribuição dos fonemas consonantais e vocálicos, a estrutura silábica, alguns processos
morfonêmicos, como a palatalização das consoantes oclusivas /p, k/, das nasais /m, n/ e
da aproximante /w/, e a africação do segmento coronal /t/. Além disso, levantou-se a
hipótese que não se justifica a distinção entre vogais orais e vogais nasais. Estas últimas
seriam o resultado da absorção do traço nasal de uma soante nasal debucalizada que se
projeta sobre uma vogal ou por uma série de segmentos que permitem o espalhamento
da nasalidade. Estudos mais aprofundados sobre a fonologia da língua poderão
corroborar ou refutar essa hipótese. No trabalho não foi discutido o comportamento do
acento de intensidade, o alongamento de vogais e nasalização das vogais em contato
com as consoantes nasais. Esses temas ainda precisam ser abordados com maior
sistematicidade.
Referências
GREGOR, Thomas. Mehinaku. The Drama of Daily Life in a Brazilian Indian Village.
Chicago: Chicago University Press, 1977
JACKSON, E.; RICHARDS, J. Waurá tentative phonemics statement. Arquivo
Lingüístico 104. Brasília, DF: SIL, 1996.
PIGGOTT, G.L. Variability in feature dependency: the case of nasality. Natural
Language and Linguistic Theory n.10, p. 33-77. 1992.
SILVA, Teresa Cristina de Souza. Estudo preliminar da fonologia da língua mehináku.
1990. 49 f. (Dissertação de Mestrado em Lingüística). Departamento de Lingüística,
Línguas Clássicas e Vernácula, UnB, Brasília.
VELLEMAN, Shelley L. Making phonology functional. What Do I do first? Woburn,
Ma.: Butterworth-Heinemann, 1998.
72
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008
Elaboração de um Dicionário Bilíngüe Tapajúna – Português
Nayara da Silva Camargo
nayssofia@yahoo.com.br
nayssofia@gmail.com
Instituto de Estudos da linguagem (IEL) – Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) – Barão Geraldo - Campinas, São Paulo, BrasilCep 13083-970
Abstract: Tapajuna Language can be considered at an endangered language
due to 2 main reasons: (1) the low number of speakers and (2) to the fact that
the language is being spoken in a place where there is a major language,
which is genectty related to it the goal as this study is to develope a study that
will help the description of the language. Inorder to do this, we elaborated
and prepared material containing terms flora and fauna from tapajúna
language. The chice of moking this type of material turns possible the
production of descriptive study on phonetics, phonology, morphology, sintaxe,
semantics, amorg other aspects.
Keywords: tapajúna; dictionary; flora; fauna
RESUMO: A língua Tapajúna pode ser considerada uma línguas em perigo
de extinção devido a dois principais motivos: o baixo número de falantes e a
língua está sendo falada em um local onde há uma língua majoritária e a ela
geneticamente relacionada. O objetivo do trabalho em questão é realizar
estudos para a descrição da língua. Para isso foi iniciada a elaboração de um
banco de dados com termos relacionados à fauna e a flora da língua do
Tapajúna esse trabalho é importante, pois, além de documentar a língua,
possibilita a realização de estudos descritivos sobre fonética, fonologia,
morfologia, sintaxe,semânticos, dentre outros aspectos.
1. Introdução: línguas indígenas; tapajúna; dicionário; fauna; flora
Os tapajúna-goronã habitam a aldeia Metyktyre (situada ao Norte do Estado do
Mato Grosso), juntamente com os Mebengôkrê (mais conhecidos como Kayapó), em
uma região fronteiriça com o Estado do Pará.
A língua tapajúna-goronã é classificada como pertencente à família Jê, a qual faz
parte do agrupamento lingüístico Macro-Jê e, atualmente, é falada apenas na aldeia dos
Metyktyre pelos índios tapajúna que são, aproximadamente, apenas quarenta falantes1
. A língua se encontra em uma situação de atrito lingüístico, ou seja, é falada em um
espaço onde já existe uma língua majoritária, o mebengôkrê (kayapó), como essas são
línguas geneticamente assemelhadas e estruturalmente parecidas (pois fazem parte da
mesma família lingüística), o mebengôkrê influencia, diretamente, os falantes da língua
tapajúna, esses, por sua vez, ou sabem falar as duas línguas ou compreendem o
mebengôkrê. Além disso, observa-se também a presença da língua portuguesa, pois os
professores indígenas saem para estudar fora e têm o contato direto com um ambiente
em que prioritariamente é falada a nossa língua materna. Por estes motivos a língua
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008
73
tapajúna é uma das línguas indígenas da Amazônia que se encontra em perigo de
extinção.
Existem alguns estudos esparsos sobre o tapajúna-goronã como o de Santos (1994),
em que se verifica um breve estudo da fonologia da língua e o de Seki (1988), que
apresenta um estudo diacrônico comparando dados da língua tapajúna com dados do
suyá aos do Proto Jê, reconstruídos por Davis (1966). Além de relatos históricos
realizados por missionários em meados de 1967. Outros estudos existentes são: o artigo
de PEREIRA, publicado na revista de antropologia entre 1967 e 1968, estudos
realizados por BOSSI (1863) que dizem respeito às tribos que se encontram no Mato
Grosso, SEGER (1980) realizou estudos sobre as sociedades tribais brasileiras, entre
outros estudos de cunho antropológico.
2. Corpus e metodologia utilizada para a confecção do dicionário:
O conjunto de dados de que disponho, foram coletados por FERREIRA2
em momentos distintos de seu trabalho de pesquisa de campo com falantes da língua
tapajúna-goronã. Tive a oportunidade de participar da sua última viagem a campo em
julho de 2005, a qual foi importante para o andamento da pesquisa com a língua. Além
dos dados coletados pela orientadora do projeto fiz pesquisas bibliográficas sobre
teorias básicas de lingüística, assuntos referentes ao estudo do léxico de línguas
naturais, estudos sobre a estruturação de dicionários, estudos realizados sobre a
montagem de banco de dados, entre outros.
A metodologia utilizada na elaboração do dicionário inicia com aquela utilizada nos
trabalhos de descrição lingüística: (i) a pesquisa de campo, que inclui viagens ao local
onde a língua é falada, momento em que se realiza a coleta de dados, base para o
trabalho; (ii) a análise do material obtido nessa coleta – sua organização e comparação
com outras línguas do tronco, utilizando-se os trabalhos existentes como os de Santos
(1994), Seki (1988), os dados de FERREIRA (2003-2005). Após este momento iniciouse a inserção do material já transcrito e analisado no programa computacional Toolbox,
o qual é, atualmente, utilizado por vários lingüistas para a organização dos dados de sua
pesquisa.
3. Considerações sobre lexicologia e lexicografia
No que tange a conceitualização da lexicologia e da lexicografia, vê-se o confronto
de alguns lingüistas ao tentar definir as mesmas. Em sua tese Ferreira3 (2005) cita as
afirmações de Zgusta (1971), nas quais o autor afirma que a lexicografia é uma esfera
muito difícil da atividade lingüística, pois, além da estrutura da língua o lexicógrafo
deve considerar a cultura da respectiva comunidade lingüística em todos os seus
aspectos, Ferreira (2005) afirma que dessa forma a lexicografia é conectada a todas as
disciplinas que estudam o sistema lexical como, por exemplo, a semântica e a
lexicologia.
De acordo com Dapena4 (2002) alguns estudiosos afirmam que a lexicologia e a
lexicografia são como as “faces de uma moeda”, nas quais suas diferenças
corresponderiam às suas extensões e a uma diversidade de pontos de vista. Porém, outros
afirmam que a Lexicologia e a Lexicografia utilizam-se de objetos completamente
distintos.
Ao relacionarmos essas duas disciplinas tomaremos como base a definição de Dapena
(2002), que, comparando estas com outros pares de ciências, como por exemplo, a
Geografia-Geologia, Cosmografia-Cosmologia, Etnografia- Etnologia, etc, afirma que elas
74
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008
aparentam obter a mesma identidade em relação ao seu objeto de estudo. Neste caso a
lexicografia viria a ser, literalmente, ‘a descrição do léxico’, frente à lexicologia, que, por
outro lado, representaria ‘o tratado do léxico’. Ambas as disciplinas teriam posse de um
objeto comum, o ‘léxico’, porém com enfoques e perspectivas diferenciadas.
Seguindo precisamente esta linha de pensamento, Matoré5 (1953) busca a distinção de
lexicografia e lexicologia de um ponto de vista analítico para a primeira, frente ao
sincretismo da segunda. Para ele, a lexicografia estuda o vocabulário, palavra por palavra,
enquanto a lexicologia preocupa-se com os princípios e leis gerais que regem o
vocabulário. Sendo assim, a lexicografia tem um caráter concreto e particular, ao passo
que a lexicologia é responsável por um caráter abstrato e geral. Ambas estudam o léxico,
porém em níveis diferentes.
De acordo com R.Werner (apud, DAPENA 2002), a lexicografia, juntamente, com a
lexicologia serão descrições do léxico de um sistema lingüístico individual ou coletivo,
porém, a primeira se ocuparia das unidades lexicais individuais ou concretas, isto é, sem
fazer referência ao paradigma do qual elas fazem parte. Enquanto, a lexicologia estudaria
as regularidades formais referentes ao significante e ao significado, constando de parte
claramente diferenciadas: morfologia léxica e a semântica léxica, as quais fazem parte
deste plano.
Ainda seguindo a esta mesma idéia temos os lingüistas, A. Mel’c◊uk, A. Clas e A.
Polguère6, os quais defendem a hipótese de que a lexicologia e a lexicografia estão no
mesmo patamar que a física e a engenharia, pois, caracterizam-se, por apresentarem um
conhecimento científico frente à aplicação do mesmo, articulando-se cada uma em seu
espaço e em seu momento de aplicação de seus objetivos, tendo na lexicologia sua base
teórica e na lexicografia sua parte prática ou experimental. Com este pensamento, o
resultado da lexicologia seria um dicionário de ‘caráter abstrato’, ideal, ao passo que o
dicionário de cunho lexicográfico corresponderia a uma ‘obra concreta tradicional’7.
Com isso, podemos afirmar que para estes últimos estudiosos a lexicografia,
igualmente à antiga gramática, viria a ser a “arte”, frente à lexicologia, que de acordo com
a gramática moderna, representaria uma autêntica disciplina científica.
Levarei em consideração a idéia de que a lexicologia seria a disciplina responsável
pelo estudo do léxico de uma maneira geral e abstrata, uma autêntica disciplina científica,
enquanto a lexicografia seria a disciplina responsável pela confecção de dicionários, a qual
se preocupa com estudo lexical mais particular e concreto, e com a arte de confecção dos
mesmos.
4. Tipologias e classificações dos dicionários
De acordo com Landau (apud Ferreira 2005), os dicionários são diferenciados por
três categorias: variedades, perspectivas e apresentação. Ela afirma que a variedade de
um dicionário seria o ‘tamanho’ e o escopo de tal obra (trata-se de cobrir ou não todo o
léxico da língua). A categoria variedade é chamada pelo autor de “qualidade da
densidade”. Quando temos um dicionário que abrange todo o léxico de uma língua se
torna dificultoso saber sua variedade, já que é impossível conhecer sua extensão total.
Porém, quando temos um léxico limitado a um trabalho específico, de parte do léxico da
língua, como o dicionário da fauna e flora da língua tapajúna, por exemplo, se torna
mais fácil estabelecer sua variedade.
Um outro aspecto da variedade é o número de línguas envolvidas no trabalho
lexicográfico: o dicionário pode ser monolíngüe, bilíngüe, trilíngüe ou multilingüe (os
dicionários que compreendem mais de duas línguas são também denominados de
plurilíngües). Um outro aspecto da variedade é sua extensão na concentração nos dados
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008
75
lexicais, ou seja, se ele tem caráter enciclopédico. Como os dicionários indígenas
carregam muitas informações em torno de um lexema este pode apresentar
características de obras enciclopédicas.
A ‘perspectiva’ refere-se a como o lexicógrafo visualiza seu trabalho, se ele é
diacrônico ou sincrônico; como ele organiza sua obra: se a mesma for organizada em
ordem alfabética, por sons, ou por conceitos; se o nível é de tom destacado, de uma obra
didática ou informal.
A ‘apresentação’ refere-se ao modo como o material de uma dada perspectiva é
apresentado, como são suas definições. Um exemplo que Ferreira cita é o dicionário
monolíngüe o qual tende a ter uma definição mais ampla do que o bilíngüe. É neste
momento também que se verifica como a obra será apresentada, se haverá ilustrações na
mesma, etc. Um exemplo: é o dicionário bilíngüe tapajúna-português sobre a fauna e a
flora, em que foi propícia a entrada de ilustrações por se tratar o tema de animais e
plantas, por este motivo verificou-se a necessidade de se confeccionar um dicionário
ilustrado, visto que as ilustrações facilitam o reconhecimento dos dados ali selecionados
tornando a pesquisa mais proveitosa para o consultor.
5. Alguns exemplos sobre a compilação do léxico da língua tapajúna-goronã
A macroestrutura corresponde à organização das palavras-entradas no dicionário.
Na compilação do dicionário bilíngüe tapajúna-português, apresentamos uma seqüência
de entradas que são unidades lexicais organizadas em ordem alfabética, segundo o
alfabeto tapajúna, cuja ordem alfabética segue, basicamente, o mesmo padrão do
português.
As microestruturas, de acordo com Ferreira (2005), diz respeito às construções internas
dos verbetes, neles são compilados o uso das entradas, do ponto de vista gramatical,
semântico e pragmático. Os verbetes são constituídos das entradas seguidas de várias
informações. As microestruturas dos verbetes no dicionário tapajúna-português estão
inseridas em fichas no programa computacional toolbox. Essas fichas correspondem todas
as informações que o produtor do dicionário queira expor sobre os verbetes.
O toolbox é um programa computacional que auxilia lingüistas de campo e
antropólogos em seus trabalhos de armazenamento de dados. Ele integra vários tipos de
dados em seus arquivos além de selecioná-los e organizá-los. O programa trabalha com
dados lexicais, culturais, gramaticais, etc. Ele oferece opções flexíveis para selecionar,
classificar e indicar esses dados e é especialmente, utilizado, pelos lingüistas, para a
construção de dicionários e para interlinearização de textos. Este programa apresenta
múltiplas ferramentas em seus arquivos, como por exemplo, uma base de dados para itens
lexicais e para a interlinearização dos textos. E, para a maioria dos lingüistas e
antropólogos esse instrumento é muito útil em sua pesquisa, pois permite um
armazenamento de dados de forma rápida e completa.
A ficha presente no Toolbox é programada de acordo com a necessidade de cada banco
de dados são as microestruturas lexicais de todos os verbetes. Estas são, mais claramente,
as características ou informações dos itens lexicais inseridos no dicionário. As
microestruturas que estão sendo utilizadas na elaboração do banco de dados para o
dicionário tapajúna-português serão expostas abaixo.
O dicionário tapajúna apresenta as seguintes microestruturas: Lexema (\lx): é utilizado
para nomear a entrada do dicionário a língua vernacular, ou seja, a língua em que está
sendo elaborado o dicionário; Homônimo (\hm) utilizado para quantificar o número de
palavra que apresentam formas equivalentes, porém com significados diferentes; Forma
fonética (\ph) nos informa a transcrição fonética das palavras que consta como entrada do
76
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008
respectivo dicionário; Glosa (n) (\gn) responsável pela denominação em português (visto
que o dicionário é Tapajúna – Português), este marcador ilustrará a “tradução” do item da
língua em questão para a língua portuguesa; Referência (\rf): este marcador nos informa a
origem do lexema inserido no dicionário, ou seja, o nome do responsável pela coleta da
palavra que foi inserida nos arquivos do programa; Morfologia (\mr): responsável pela
morfologia do item lexical inserido no banco de dados; Picture (\pc) refere-se às imagens
de animais e plantas cujos nomes foram inseridos no banco de dados, já que o dicionário
refere-se a fauna e a flora da língua; Nota (\nt): este marcador está à disposição do
produtor do banco para que ele possa relatar alguma informação à respeito do item por ele
inserido. Por fim temos a Data (\dt) para informar o dia que o lexema foi inserido nos
arquivos do programa.
No momento da classificação das microestruturas do dicionário bilíngüe sobre a fauna
e a flora tapajúna-português foram observados alguns casos de homonímia e polissemia
que merecem destaque neste momento.
De acordo com o dicionário de lingüística8, a polissemia é aquele item lexical que
possui uma variedade de significações:
“Termo usado na análise semântica para caracterizar um item lexical com uma
variedade de significações diferentes, como manga = ‘parte da camisa’, ‘parte de um
abajur’(...)”.
Borba9 (2003) afirma que, tendo o signo, a característica de arbitrariedade, a
polissemia explicaria a pluralidade de traços sêmicos presente no mesmo. Por esta razão,
este signo pode expandir seu significado provocando sua pluralidade de significações.
Podemos afirmar também que a polissemia é uma propriedade do item lexical, porém a
polissemia é constituída de caráter discursivo, pois, para que a mesma se realize o contexto
e a situação em que está inserida terão um papel crucial. Primeiramente, um item que pode
ser um bom exemplo deste traço semântico seria em tapajúna a palavra ngô [Ngo], a qual
originalmente refere-se à água, mas também, em outros contextos, a rio, líquido em geral.
Não acontece diferente com os outros exemplos do léxico da língua que estão abaixo:
(1) hwi))tôtôk = folha; folha de papel; caderno; dinheiro e cartolina
(2) hwyka = terra; chão; piso e solo.
(3) ika
= ‘minha pele’ e ‘minha roupa’
O conceito de homonímia presente no dicionário de lingüística de Crystal (2000)
afirma que a homonímia, de acordo com análises semânticas, indica o signo que possui a
mesma forma fonética, porém representa significados distintos10:
“Termo usado na análise semântica para indicar os itens lexicais com a mesma forma
nas significações diferentes. A homonímia é ilustrada pelos muitos significados de
bear, no inglês (= animal, carregar) ou de quarto, no português (local de dormir,
numeral ordinal)(..)”.
A ambigüidade entre homônimos citada no dicionário de Crystal (2000) diz respeito
ao emprego de palavras dentro de um determinado contexto que possuem a mesma grafia,
porém com significados distintos e isso possibilita o entendimento equivocado da situação
– a ambigüidade dentro de um contexto – é um bom exemplo deste acontecimento.
A homonímia, para o Borba (2003), assim como a polissemia, também pertence a uma
unidade significativa do significante. Por não visar a relação dos itens lexicais com os
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008
77
campos semânticos semelhantes, esta os distinguiu, denominando cada item de acordo com
seu significado, havendo assim, uma grande quantidade de itens lexicais dentro de um
mesmo campo semântico, o que dificulta o trabalho do lexicógrafo no momento da
confecção do dicionário.
É neste momento que entra em voga a discussão da elaboração do dicionário, pois,
agora, é propicio analisar o que seria mais prático e econômico para a sua produção.
Quando um dicionarista resolve levar em consideração o conceito de homônimos em sua
obra, cada novo significado constituirá um novo signo e cada um desses signos deverá
constituir uma entrada independente no dicionário. E, conseqüentemente, a busca de
acepções não seria horizontal e sim vertical o que prejudicaria a economia na organização
da obra. Com isso encontra-se a solução na consideração dos itens lexicais polissêmicos,
pois, quando as acepções particulares tiverem um traço semântico em comum, essas são
apresentadas em seqüências numeradas dentro de uma mesma entrada no dicionário.
Podemos exemplificar um caso de itens homônimos nos seguintes itens da língua
tapajúna11:
(4) hwàtxi = tamanduá-bandeira.
(6) hwyka-khré = buraco-da-terra
(5) hwàtxi = rei-congo.
(7) hwyka-khré = cavar
6. Conclusão
O trabalho de elaboração de um banco de dados da língua indígena tapajúna-goronã
tem como objetivo principal a descrição e documentação da mesma, v isto que ela se
encontra em meio das línguas indígenas brasileiras em perigo de extinção, pois, como já
foi dito, a língua tapajúna hoje, apresenta apenas cerca de quarenta falantes12, além de
se encontrar em meio ao fenômeno de atrito lingüístico. Por estes motivos, esse trabalho
propõe uma continuidade no estudo sobre o léxico da língua tapajúna tendo como a
finalidade principal dar continuidade na elaboração do dicionário tapajúna - português.
Trabalhos desta ordem levam como principal objetivo a descrição e a documentação da
língua, visto que a mesma necessita de estudos mais abrangentes, no que diz respeito à
fonética-fonologia, morfologia, sintaxe, semântica e pragmática. A produção deste
material poderá também subsidiar estudos histórico-comparativos e, principalmente,
auxiliar a comunidade indígena na promoção do uso da língua, já que esta se encontra,
atualmente, em situação de risco de extinção.
7. Anexo
ANEXO alguns exemplos dos dados que somam, aproximadamente 350 itens da
fauna e da flora presentes no dicionário bilíngüe Tapajúna-Português em seu formato
preliminar
A - a
ajaptôtxi1 [
] n. camarão. Trichodactylus fluviatilis. Ref: Ferreira, 2004.
27/Aug/2005.
amdy1 [
] n. marimbondo. Ref: Ferreira,2004. Bentuk lain:
. 23/Aug/2005.
amdyhô1 [
] n. marimbondo-chapéu; marimbondo-vaqueiro. Ref: Ferreira,
2004. Morf:
. 17/Oct/2005.
amdytanetxi1 [
] n. marimbondo-de-carne. Ref: Ferreira, 2004.
78
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008
17/Oct/2005.
amdy-wêatêtxi1 (dari:
[
] n. marimbondo-tatu.
ι)
Ref: Ferreira, 2004. Morf:
. [Cat: a casa do marimbondo é igual à
casa do tatu] 17/Oct/2005.
amgô1 [
] n. lagarto-do-inajá. Ref: Ferreira,2004. 17/Oct/2005.
amnôty1 [
] n. tipo de maribondo. Ref: Ferreira, 2005 17/Oct/2005.
amàrà1 [
] n. piranha pequena. Ref: Ferreira, 2004. Morf:
18/Oct/2005.
amtô1 [
] n. rato. Rattus norvegicus. Ref: Ferreira,2004. 23/Aug/2005.
amàtakakôjangôrô1 [
] n. piranhazinha. Ref: Ferreira; 2004.
18/Oct/2005.
amtômy1 [
] n. parece esquilo. Ref: Ferreira, 2005 19/Sep/2005.
amàtìrera1 [
] n. piranha menor que a pequena. Ref: Ferreira, 2004.
18/Oct/2005.
amtôtxi1 [
] n. coelho. Cavea aperea (Erxleben). Ref: Ferreira, 2004.
23/Aug/2005.
amàtytxi1 [
] piranha-preta. Serrasalmus rhombeus. Ref: Ferreira, 2004.
05/Oct/2005.
anghrê1 [
] n. jaratataca (tipo de tatu muito pequeno); tatu bola. Tolypeutes
tricinctus. Ref: Ferreira,2004. 23/Aug/2005.
anghrô1 [
] n. porco-queixada. Tayassu albirostris (Illiger), Tayassu pecari.
Ref: Ferreira, 2004. Morf:
. 05/Oct/2005.
.
athoro1 [
] n. sururina. Crypturellus soui. Ref: Ferreira,2004. Morf:
23/Sep/2005.
D - d
dzujtamytôtjaka1 [
Ref: Ferreira, 2005. Morf:
] n. asa-de-sabre. Campylopterus largipennis.
. 23/Sep/2005.
G - g
gâgârâtxi1 [
] n. Ref: Ferreira,2005. Morf:
. 18/Oct/2005.
H - h
hôhô1 [
] n. coruja-do-campo. Speotyto cunicularia (Molina). Ref: Ferreira,2004.
05/Oct/2005.
hõhõ1 [
] n. socó. Ref: Ferreira, 2005 17/Oct/2005.
hotxi1 [
] n. taquara. Ref: Ferreira, 2004 17/Oct/2005.
hõrõtxi1 [
] n. coco; coqueiro. Ref: Ferreira, 2005. 19/Sep/
H - h
hôhô1 [
] n. coruja-do-campo. Speotyto cunicularia (Molina). Ref: Ferreira,2004.
05/Oct/2005.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008
79
hõhõ1 [
] n. socó. Ref: Ferreira, 2005 17/Oct/2005.
hotxi1 [
] n. taquara. Ref: Ferreira, 2004 17/Oct/2005.
hõrõtxi1 [
] n. coco; coqueiro. Ref: Ferreira, 2005. 19/Sep/2005.
hurugatutxi1 [
] n. gralha can-can (pássaro preto). Cyanocorax
cyanopogon(Wied). Ref: Ferreira,2004. 26/Sep/2005.
hutu1 [
] n. maruim (pium). Culicoides(Latnielle). Ref: Ferreira,2004.
17/Oct/2005.
hututxi1 [
] n. mutuca. Tabanidae. Ref: Ferreira,2004. 17/Oct/2005.
hwa1 [
] n. galho. Ref: Ferreira, 2005 war wa hwìhwa kwã eu quebrei o galho da
árvore 17/Oct/2005.
hwiritxi1 [
] n. pacu grande. Ref: Ferreira,2004. [Cat: igual à uma piranha]
19/Sep/2005.
hwàkutàtxi1 [ηωΑκυτΑτΣι] n. tamanduá de cheiro forte (gambá). Cyclopes
ditactylus (Linnaeus). Ref: Ferreira,2004. Morf:
. 17/Oct/2005.
hwìnì1 [
! !] n. piqui. Ref: Ferreira, 2005. 19/Sep/2005.
hwìrã1 [
! )] n. flor. Ref: Ferreira,2003. 17/Oct/2005.
hwàt1 [
"] n. preguiça de dois dedos. Choloepus ditactylus (Linnaeus). Ref:
Ferreira,2004. Morf:
".
" Bentuk lain: wát. 05/Oct/2005.
hwàtkatàk-txi1 (dari:
"
] n. preguiça de três dedos
#
# $) [
(macaco-preguiça). Bradypus tridactylus (Linnaeus). Ref: Ferreira,2004. Bentuk
lain: wuàt gaykti - wátkatáktxi. 19/Sep/2005.
hwàtxi1 [
] n. tamanduá-bandeira. Myrmecophaga tridactyla (Linnaeus). Ref:
Ferreira,2004. Bentuk lain: wátxi. 17/Aug/2005.
hwàtxi2 [
] n. rei-congo. Psarocolius decumanus. Ref: Ferreira,2004.
17/Oct/2005
hwàty1 [
] n. pulga. Ref: Ferreira, 2005. 24/Aug/2005.
hwìty1 [
! ] n. fruto. Ref: Ferreira,2003. kukryti na hwìty ku A anta comeu fruta.
17/Oct/2005.
hwìty2 [
] n. manga. Ref: Ferreira, 2005 17/Oct/2005.
hwy1 [
] n. urucum. Ferreira,2003. 26/Aug/2005.
hwyndaj1 [!
] n. micróbio. Ref: Ferreira,2005. Morf:
. 17/Oct/2005.
hwyndìj1 [
! ]n.berne. Dermatobia hominis(Linnaeus). Ref: Ferreira,2004.
17/Oct/2005.
hwyty1 [
] n. pulga. Ref: Ferreira,2004. 17/Oct/2005.
hwyty2 [
] n. semente de urucum. Ref: Ferreira,2003.
K - k
kahrãm-ghre1 (dari: kahrãm-ghre)
[
] n. ovo de tracajá. Ref:
Ferreire, 2005. 17/Oct/2005.
kahrãmhotxi1 [
!
] n. tartaruga. Podecnemis expansa(Schweiger). Ref:
Ferreira,2004. 17/Oct/2005.
kahrãmtxi1 [
] n. tracajá. Podecnemis infilis(Troschel). Ref: Ferreira,2004.
19/Sep/2005.
kambrikgatàktxi1 [
% "
] n. socó-boi. Tigrisoma lineatum. Morf:
80
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008
%
"
. 23/Sep/2005.
W - w
wà3 [ ] n. tamanduá. Tamandua tetradactyla. Ref: Ferreira, 2004. Morf:
19/Sep/2005.
wewe1 [
] n. borboleta. Rhopalocera. Ref: Ferreira, 2004. 27/Aug/2005
wiri1 [
] n. sapo. Bufo marinus (Linnaeus). Ref: Ferreira, 2004 27/Aug/2005.
wiritxi1 [
] n. pacuzinho. Ref: Ferreira,2004. 27/Aug/2005.
wàtyty1 [
] n. piaba-comprida. Ref: Ferreira, 2004. 18/Oct/2005.
wyty1 [
] n. milho. Ref: Ferreira, 2004 18/Oct/2005.
.
Tapajúna-Português: 351
Notas
Censo realizado pela profa. Dra. Marília Ferreira com o auxílio dos tapajúna, no ano
de 2004, durante sua pesquisa de campo na aldeia M tykytíre onde eles vivem.
2
Sua coleta foi-me cedida gentilmente, para que eu pudesse realizar estes estudos, as
coletas de material lingüístico realizada por FERREIRA ocorreram em momentos
distintos, no período entre os anos de 2003a 2005.
3
FERREIRA, Vitória Regina Spanghero. Estudo Lexical da língua Matis – subsídios
para um dicionário bilíngüe/ Vitória Regina Spanghero Ferreira. – Campinas – SP:
[s.n.], 2005.
4
DAPENA, José-Alvaro Porto. Manual de Técnica Lexicográfica. Ed. Arco/ Libros, S.
L., 2002.
5
G. Matoré, La methode em Lexicologie, Paris, 1953, pág. 88.
6
J. A. Clas y Polguère, Introductión à la lexicoloxie explicative et combinatoire,
Éditions Duculot, Louvain-la-Neuve, 1995, págs, 26-27.
7
O “caráter abstrato” e “obra concreta tradicional”, segundo Polguère (1995),
referem-se, primeiramente, aos estudos teóricos paradigmáticos do conceito geral do
léxico, bem como suas características, classificações, etc. Já a segunda definição denota
um estudo particular de um determinado léxico de uma determinada língua que se está
estudando com o intuito de confeccionar uma obra lexicográfica (um dicionário).
8
CRYSTAL, David. Dicionário de lingüística e fonética/ David Crystal; tradução de
adaptação [da 2ª ed. Inglesa rev. e ampliada, publicada em 1985], Maria Carmelita
Pádua Dias. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. Pgs. 202-203.
9
BORBA, Francisco da Silva. Organização de dicionários: uma introdução à
lexicografia. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
10
CRYSTAL, David. Dicionário de lingüística e fonética/ David Crystal; tradução de
adaptação [da 2ª ed. Inglesa rev. e ampliada, publicada em 1985], Maria Carmelita
Pádua Dias. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. Pgs. 140-141.
11
Algumas das informações para que esses itens serem considerados como homônimos
seriam: os dois primeiros representarem animais com características distintas e os dois
últimos fazerem parte de classes gramaticais diferentes, pois o primeiro refere-se a um
nome enquanto que o segundo a um verbo.
12
Censo realizado por FERREIRA em 2004.
1
8. Referências Bibliográficas
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008
81
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BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Teoria Lingüística. Teoria Lexical e Lingüística
Computacional.. 2 ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. v. 1. 261 p.
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São Paulo: Editora UNESP, 2003.
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CRYSTAL, David. Dicionário de lingüística e fonética. – tradução e adaptação [da 2ª ed.
Inglesa ver. E ampliada, publicada em 1985], Maria Carmelita Pádua Dias. – Rio de
Janeiro: José Zahar Ed. 2000.
DAPENA, José-Alvaro Porto. Manual de Técnica Lexicográfica. Ed. Arco/ Libros, S. L.,
2002.
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FERREIRA, Vitória Regina Spanghero. Estudo léxical da língua Matis – subsídios para
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PEREIRA, Adalberto Holanda. “A pacificação dos Tapayunas”. In: Revista de
Antropologia. Vol. 15-16\SP. (1967\1968).
ULLMANN, S. Semântica. Introducción a la ciencia del significado, Madrid, 1965.
STEINER, Karl von den. Entre os aborígenes do Brasil Central. Departamento de Cultura.
SP. 1940.
SEEGER, Anthony. Os índios e nós: estudos sobre sociedades tribais brasileiras. Ed.
Campus. RJ. 1980.
Coletânea de Textos dos Povos Tapajúna, Panará e Membegôkre.
82
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008
PARA UM DISTINÇÃO ENTRE RADICAL E PREFIXO
será não-composto um composto ou um derivado?1
Pâmella Alves Pereira
Universidade Federal de Minas Gerais (UFRJ). Av. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha Belo Horizonte – MG – CEP 31270-901
Resumo. Este trabalho propõe uma distinção entre os processos de derivação
prefixal e composicão, seguindo a proposta teórica de Matthews (1991). Para
isso foram analisadas as formas contra, mal e não em exemplos como
REVOLUÇÃO, MALFERIDO
e
NÃO-ALINHADO.
CONTRA-
Em termos morfológicos, tais elementos
foram classificados como radicais, e suas respectivas formacões como
compostas, e não derivadas.
Palavras-chave. radical; prefixo; composição; derivação
Abstract. This work proposes a distinction between the processes of prefixal
derivation and compounding, following Matthews`(1991) theoretical proposal.
For that, the elements contra, mal and não were analysed in examples as
CONTRA-REVOLUÇÃO, MALFERIDO
and
NÃO-ALINHADO.
In morphological terms, the
elements contra, mal and não were classified as word, and
MALFERIDO
CONTRA-REVOLUÇÃO,
and NÃO-ALINHADO were analysed as compounds.
Keywords. word; prefix; compounding; derivation
1. Introdução
Este artigo retoma uma questão controversa no estudo da morfologia, no âmbito
da estrutura e da formação de palavras: a distinção entre derivação prefixal e composição.
Busca-se diferenciar formações prefixais de formações compostas, uma vez que ambas
levam em conta a noção de um radical que é modificado, embora por processos
morfológicos distintos. Objetiva-se, portanto, compreender o uso dos termos radical e
83
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008
prefixo na morfologia baseada em lexemas (Matthews, 1991) e caracterizar composição
face à derivação nessa proposta teórica.
Os dados para a discussão do tema são formações portuguesas que entrem contra,
mal e não em exemplos como CONTRA-REVOLUÇÃO, MAL-AMADO e NÃO-ALINHADO. Trata-se de
formações que se apresentam na literatura ora como compostas, ora como derivadas por
prefixo, como aponta Alves (1993:383).
Este estudo centra-se na noção de negação apresentada por J. Payne (1985), T.
Payne (1997) e Aronoff & Fuhrhop (2002), que ressaltam a idéia de que, na morfologia
derivacional, a negação é representada a partir de elementos que carregam a noção de
contrário, como em
ENGRAÇADO
MAL-ARRUMADO,
e a idéia de contraditório, como nos exemplos MAL-
e NÃO-FICÇÃO, que apresentam uma relação de exclusão entre ENGRAÇADO e MAL-
ENGRAÇADO, FICÇÃO
e NÃO-FICÇÃO.
Como este trabalho considera a análise de palavras na língua que possuam as
formas iniciais contra, mal e não, e não está voltado para índices de freqüëncia com que
elas ocorrem em textos, o corpus foi elaborado a partir da coleta de dados do dicionário,
que apresenta exemplos suficientes para a análise pretendida.
2. A estrutura interna do lexema
Estudar a diferença entre um composto e uma formação prefixal pressupõe lidar
com questões que dizem respeito à estrutura interna da palavra. Dentre as propostas, aqui
se toma a de Matthews (1974;1991) para a caracterização da estrutura do lexema.
Matthews (1991:24-36) propõe três noções diferentes para o termo palavra:
forma de palavra, lexema e palavra propriamente dita. A primeira (ou sentido 1, na sua
exposição) está relacionada à idéia de uma palavra descrita em termos de unidades
fonológicas. Nesse sentido as formas tenho e tinha, por exemplo, são duas formas de
palavras, porque cada uma reúne conjuntos diferentes de fonemas, e nenhuma das duas é
classificada como Verbo ou qualquer outra classe e tampouco tem significado. O sentido
2, denominado lexema e grafado em caixa-alta, diz respeito a uma noção abstrata de
palavra. Assim, tenho e tinha são formas do mesmo lexema TER. E para o terceiro sentido,
Matthews reserva o termo palavra, que leva em conta o nível gramatical, ou primeira
articulação. Cada forma do lexema
TER
(tenho, tinha, terá, teremos etc.) é uma forma de
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008
84
palavra distinta, mas também é uma palavra gramatical distinta: diferem entre si em
Número/Pessoa, Tempo/Modo.
Em termos de sua estrutura, um lexema pode ser simples ou complexo. Simples,
conforme define Matthews (1991:37), é aquele cuja estrutura não pode ser analisada em
mais elementos morfológicos. É complexo na medida em que pode ser analisado em mais
de um elemento morfológico. A composição e a formação de palavras por prefixos
pertencem, segundo o autor, respectivamente, a uma área da morfologia que diz respeito
às relações entre um lexema complexo (COUVE-FLOR;
lexemas simples (COUVE +
FLOR)
um lexema complexo (INFELIZ;
TERCEIRO-MUNDISTA )
ou mais simples (TERCEIRO +
INFELICIDADE)
MUNDISTA);
e dois ou mais
e à relação entre
e um lexema simples (FELIZ) ou mais simples
(INFELIZ).
Raiz, como define Matthews (1991:64), “é a forma que subjaz, no mínimo, um
paradigma ou um paradigma parcial, e é, ela mesma, morfologicamente simples”. Nesse
sentido, a raiz coraj- está presente em formas como corajosa e corajosas com o
acréscimo do formativo lexical –oso e dos formativos flexionais -a e -s. Uma forma como
corajoso está na base do paradigma desse adjetivo que, por si só, é complexo, na medida
em que podemos fragmentá-lo em duas outras formas menores: coraj- e –oso. Por esse
motivo, trata-se não de uma raiz, mas de um radical. O radical é também uma forma que
serve como base para um paradigma ou parte de um paradigma e, diferentemente da raiz,
pode ser dividido em formas menores. Assim corajoso associa-se à raiz coraj-, que
também pode ser um radical. E corajosamente associa-se ao radical corajoso.
Nesse sentido, composição e derivação apresentam-se como dois modos possíveis
de formalizar a relação entre o que se considera um conceito básico e um conceito
secundário do radical (Sapir, 1921:67). No entanto, a questão da prefixação é complexa,
pois não é consenso entre gramáticos e lingüístas a distinçào entre esse processo e a
composição.
3. A controvérsia da prefixação
A derivação pode ocorrer por prefixação ou por sufixação. No entanto nem todos
partilham a mesma opinião no que se refere à classificação de palavras formadas com
acréscimo de prefixos. Em Monteiro (1987:127-8) encontra-se uma lista de gramáticos e
85
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008
lingüistas que incluem a prefixação no mecanismo da derivação (cerca de 60% dos
autores consultados), e outra lista com os que consideram formações prefixais como um
processo de composição.
Os prefixos, no português, não apresentam a função de relacionar a palavra ao
restante da frase (não indicam as marcas flexionais) e modificam o sentido do radical a
que se adjungem, o que torna a prefixação um processo de criação de novos vocábulos
semelhante à composição. O que diferencia a composição da prefixação é o fato de a
primeira apresentar a união de elementos radicais, e de a segunda estruturar-se a partir de
um afixo mais um radical.
No português, no entanto, o afixo, ou seja, o formativo lexical, pode se apresentar
como forma presa ou como forma livre (Bloomfield, 1926:21). Assim, para caracterizar o
método formal em CONTRA-REVOLUÇÃO, MALFERIDO e NÃO-ALINHDO é preciso determinar se as
formas contra, mal e não podem ser classificadas como afixos ou são estritamente
radicais.
4. Análise
4.1 Critério fonológico
Tendo em vista as características prosódicas, em especial a questão do acento, das
formações do tipo prefixo + radical e radical + radical, encontra-se uma semelhança
que impossibilita o uso desse critério fonológico para a distinção entre esses dois tipos de
formação. Palavras como
MALFERIDO, NÃO-ALINHADO
e
CONTRA-REVOLUÇÃO
além do acento
primário, apresentam também um acento secundário. Trata-se de uma característica
presente em formações tipicamente compostas, como COUVE-FLOR,
GUARDA-CHUVA
e
TERÇA-
FEIRA.
Em contrapartida, em formações classificadas como prefixais, tais como
AMORAL, DESLEAL,
INFELIZ,
os prefixos in-, a- e des- apresentam-se como verdadeiras formas átonas
antepostas à esquerda do radical e funcionado como uma sílaba pretônica. É possivel
encontrar, porém, uma formaçào composta como PLANALTO, que se assemelha, em termos
acentuais, a uma palavra prefixal como
DESFEITO.
Ou, ainda, uma palavra claramente
formada por prefixo, como ANTIINFLAMATÓRIO, que apresenta um acento principal na sílaba
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008
86
-tó- e um acento secundário na sílaba inicial an-, e em nada difere de um composto como
GUARDA-CHUVA.
A pauta acentual de palavras formadas pela anteposiçào de contra, mal e não é,
portanto, insuficiente para se afirmar se tais elementos são radicais ouprefixos.
4.2 Critério semântico
Ao se considerar aspectos semânticos, verifica-se que tanto a prefixação como a
composição são processos de formação de palavras que têm, primordialmente, uma
função semântica, e não sintática. São processos que preenchem, em primeira análise,
necessidades semânticas de nomeação, e não utilizam o sentido de uma palavra já
existente em outra classe gramatical, como ocorre na derivação sufixal. Embora uma
formação com prefixo possa mudar a classe gramatical do vocábulo, este não é um fato
comum e nem a função primeira das formações prefixais.
4.3 Critério morfológico
Foram encontradas em Ferreira (1986) 99 palavras antecedidas pelo elemento
contra com este carregando a idéia negativa de oposição ou contradição, conforme
propõem J. Payne (1985), T. Payne (1997) e Aronoff e Fuhrhop (2002), como
CONTRA-
ATAQUE, CONTRA-REVOLUÇÃO, CONTRADIZER.
Góes (1938:44), Alves (1992:107) e Cunha & Cintra (2001:85) estão entre os
autores que analisam o contra como prefixo que exprime, entre outros sentidos, a idéia de
oposição. Trata-se de uma forma que se antepõe a bases substantivas (CONTRA-PLANO),
adjetivas (CONTRANATURAL) e verbais (CONTRA-ARGUMENTAR).
Na proposta de Câmara Jr. (1977) e Pereira (1940), embora o contra também seja
classificado como prefixo, as formações com tal elemento são tidas como formações
compostas. Segundo a definição de Câmara Jr. para prefixo, este é uma variante presa das
preposições e, portanto, um prefixo quando presente em compostos como
CONTRA-REVOLUÇÃO
CONTRADIZER,
e CONTRA-ATAQUE.
Basílio (1974:93), por seu turno, embora também considere composição uma
formação como CONTRAPOR, e não uma derivação prefixal, não analisa o elemento contra,
87
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008
nesse caso, como prefixo, mas como radical. Segundo a autora, um composto caracterizase por apresentar dois núcleos. O núcleo é o elemento central básico de uma construção
morfológica e contrário a ele estão os elementos periféricos. Dessa forma, em uma
palavra como RACIONALIZAÇÃO, racionaliza- será o núcleo e –ção a periferia; e na palavra
RACIONAL,
racion- será o núcleo e –al a periferia. O núcleo mínimo, portanto, será também
a raiz. Ao definir raiz, Basílio apresenta que “Em geral, a raiz é definida como parte da
palavra que contém o significado lexical ou o significado principal da palavra” (Basílio,
1974:89). Nesse sentido, a autora afirma que, em uma formação como
CONTRAPOR,
o
contra poderia ser considerado não-raiz, já que, como preposição, teria um significado
gramatical. Mas, comparando formas como CONTRÁRIO e OPOSTO, a autora afirma não haver
motivo para considerar a existência de raiz na segunda, e não considerar a existência de
raiz na primeira.
Então, segundo Basílio (1974:93-4), se o elemento contra é uma forma livre na
língua e pode ocorrer como raiz em construções como CONTRÁRIO, ele deve ser considerado
membro de um composto, e não um prefixo.
Da mesma forma o elemento mal em MAL-AMADO, MALCHEIROSO, MAL-FELIZ pode ser
classificado como radical, e não como prefixo, ao se considerar que se trata, também, de
uma forma livre que ocorre como raiz em MALÉFICO e MALÍCIA, por exemplo.
No dicionário pesquisado, encontram-se 53 palavras iniciadas pela forma mal, e
esta carregando uma idéia negativa. O elemento mal é classificado por Pereira (1940 :
194) como prefixo que traz a idéia de mau êxito. O gramático cita, entre outros exemplos,
as palavras MALTRATAR, MALFAZER, MALQUISTO, MALDIZER. Nesses exemplos, o mal é anteposto
aos lexemas
TRATAR, FAZER, QUISTO
e
DIZER
e não estabelece uma relação de oposição ou
contradição com tais palavras, mas apenas acrescenta uma informação que especifica seus
significados. Assim,
MALTRATAR
MALDIZER não é o contrário de
não é o oposto de TRATAR, mas é o mesmo que tratar mal.
DIZER,
mas blasfemar. Por esse motivo tais palavras não
foram incluídas na análise.
Ao se considerar, no entanto, os exemplos que compõem o corpus deste trabalho,
como MAL-AMADO, MALFELIZ, verifica-se que a relação de sentido entre o elemento mal e a
palavra a que ele se adjunge é diferente, uma vez que se pode afirmar que o mal apresenta
a idéia negativa de contrário em
MAL-AMADO
e de contraditório em
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008
MALFELIZ.
Verifica-se,
88
nesses casos, que a posição do elemento mal é fixa, isto é, as inversões amado mal, infeliz
mal não são aceitas.
O que torna complexa a classificação de tais formações com mal é,
principalmente, o fato desta palavra ser classificada, no dicionário, ora como substantivo,
ora como advérbio, ou seja, trata-se de um lexema, segundo Matthews (1991). Nesse
sentido, a forma de palavra males refere-se ao lexema simples MAL, que pode se estruturar
como lexema complexo: MALÉFICO,
MALINIDADE.
Já as formações
MALCONFIAR, MALCHEIROSO
estruturam-se a partir de um lexema simples (MAL) mais um outro lexema que pode ser
simples (CONFIAR) ou complexo (CHEIROSO).
Quanto ao elemento não, considerando os dados retirados de Ferreira (1986) e que
compõem o corpus deste trabalho, as formações com a anteposição do não a um radical
são em menor número, apresentando 31 ocorrências. Segundo Alves (1992;1993), essas
formações compreendem o paradigma dos prefixos negativos do português, ao negar o
sentido expresso por uma base adjetiva (NÃO-VERBAL,
AGRESSÃO).
NÃO-ILUMINADO)
ou substantiva (NÃO-
Para a autora, trata-se de uma forma que deve ser analisada como prefixo
derivacional porque constitui um morfema fixo e recorrente, já consolidado na língua
como elemento de formação de palavra. Assim, o não tem o mesmo valor de elementos
como des-, dis- e in- em exemplos como DESLEAL, DISSEMELHANTE e INCULTO.
No entanto, no “Dicionário de affixos e desinências”, de Góes (1938:135), o não é
definido como um “elemento vernáculo de composição”. Ao se considerar, também, que
Cunha & Cintra (2001 : 106-7) apresentam entre as classes gramaticais dos elementos de
um composto advérbio + adjetivo e advérbio + verbo, pode-se, então, incluir formações
como NÃO-ESSENCIAL e NÃO-LINEAR entre as formações compostas.
Tendo em vista, porém, essa informação dada pelos gramáticos, uma palavra
como NÃO-VIOLÊNCIA, formada por um advérbio mais um substantivo não seria classificada
como palavra composta. Além da dúvida quanto ao status gramatical do elemento não,
surge, a partir de um exemplo como esse, outra questão: se não é característica do
advérbio, no Português, fazer referência a substantivo, como se explicam formações
como NÃO-AGRESSÃO e NÃO-VIOLÊNCIA? Essa é uma questão para ser tratada futuramente.
Por enquanto, independente da classe gramatical das palavras a que o elemento
não se agrega, será considerada, apenas, a noção de que há uma relação entre lexemas, a
mesma relação existente em uma composição, conforme Matthews (1991). A palavra NÃO-
89
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008
COMPOSTO,
por exemplo, é tida, aqui, como um lexema complexo que se relaciona a dois
lexemas mais simples,
NÃO
e
COMPOSTO.
Nesse sentido, o não, assim como os elementos
mal e contra, é classificado, por enquanto, como radical, e não como prefixo, e as
formações com tais elementos (CONTRA-ATAQUE, MALCONTENTE, NÃO-ENGAJADO) são analisadas
como formaçòes compostas, e não derivações prefixais.
5. Conclusão
Um prefixo é semelhante ao radical quando se considera o significado lexical que
ambos apresentam. A diferença entre um e outro fica evidente no momento em que se têm
formações como
PRÉ-HISTÓRICO, INFELIZ, DESFEITO,
em que os prefixos são facilmente
identificados como as formas presas pré-, in- e des-, e os radicais são a parte lexical de
cada vocábulo, aqui, expandidos pelos prefixos. Essa diferença, no entanto, anula-se
quando o termo anteposto não é uma forma presa, mas uma palavra livre na língua, como
contra, mal e não.
Das análises feitas, podem-se estabelecer as seguintes conclusões:
Em se tratando da pauta acentual entre as formações com contra, mal e não,
comparadas às formações indubitavelmente prefixais (DESFAZER,
VESTIBULAR)
e, ainda, às formaçòes compostas (GUARDA-CHUVA,
INFELIZ, ANTI-ATAQUE, PRÉ-
PLANALTO),
verificou-se que
esse critério fonológico não é suficiente para se classificar as formações como
ATAQUE, MAL-AMADO
CONTRA-
e NÃO-VERBAL como prefixais ou compostas.
O critério semântico também não é suficente, uma vez que os elementos contra,
mal e não, classificados seja como radicais, seja como prefixos, apresentam uma função
semântica de nomeação.
Morfologicamente, as formaçòes em análise foram tidas como palavras
compostas. Segundo Matthews (1991), uma composição estrutura-se a partir da junção de
um lexema a outro lexema. Assim, considerando contra, mal e não como lexemas
simples, formas livres com entrada no dicionário, as formações
AMADO
e
NÃO-VERBAL
CONTRA-REVOLUÇÃO, MAL-
estrutram-se a partir da junção de dois lexemas, ou seja, são
formações compostas, e não derivações prefixais.
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90
Nota
1
Este trabalho é uma parte da dissertação de mestrado de Pereira (2006).
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91
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ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008
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A expressão da evidencialidade: uma análise do discurso
político
Izabel Larissa Lucena1
1
Mestranda do Curso de Pós-Graduação em Lingüística – Universidade Federal do
Ceará (UFC)
Izabel_larissa@yahoo.com.br
Abstract. This essay mainly aims to analyze the consequences of meaning
produced by the category evidentiality in the construction of argumentation in
political speeches made in Assembléia Legislativa do Ceará (2006). It takes as
basic theoretical support the studies developed by Dall’Aglio-Hattnher (1995),
Dik (1989; 1997), Galvão (2001), Hengeveld (1988; 2001) e Nuyts (1993;
2001). Through our analysis, we can verify that evidential marks act in an
interpersonal level of language, since they determine the extent of
(un)commitment of the politician to values assumed by himself behind
citizenry.
Keywords. evidentiality; evidential marks; interpersonal level; funcional
grammar; extent of (un)commitment.
Resumo. O presente artigo tem por objetivo principal analisar os efeitos de
sentido produzidos pela categoria evidencialidade na construção da
argumentação em discursos políticos proferidos na Assembléia Legislativa do
Ceará (2006). Toma como suporte teórico básico os estudos desenvolvidos
por Dall’Aglio-Hattnher (1995), Dik (1989; 1997), Galvão (2001), Hengeveld
(1988; 2001) e Nuyts (1993). Em nossa análise, podemos verificar que as
marcas evidenciais atuam em um nível interpessoal da linguagem, uma vez
que determinam o grau de (des)comprometimento do político com os valores
por ele assumidos diante da instância cidadã.
Palavras-chave. Evidencialidade; marcas evidenciais; nível interpessoal;
Gramática Funcional; graus de (des)comprometimento.
1. Introdução
Além de informações a respeito da fonte do conhecimento asseverado, as marcas
evidenciais também informam/indicam os graus de comprometimento do sujeitoenunciador com o valor de verdade da proposição. A par das diferentes concepções
sobre a categoria evidencialidade, reconhecemos, juntamente com Nuyts (1993; 2001),
que a evidencialidade determina a qualificação epistêmica, uma vez que o sujeitoenunciador só procede à avaliação da probabilidade de um estado-de-coisas quando
possui evidências para reconhecer a estimativa de ele ocorrer ou não no mundo,
podendo explicitá-las ou não, segundo seus propósitos enunciativos. Embora haja
dificuldades quanto à delimitação, análise e descrição dessa categoria, objetivamos, no
presente estudo, empreender uma análise de como as expressões evidenciais atuam na
construção da argumentação do discurso político. Focamos nosso interesse nos efeitos
de sentido produzidos pelas expressões evidenciais na construção da persuasão do
discurso político, procurando identificar e analisar, a partir da perspectiva funcionalista,
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008
93
dez (10) discursos proferidos na Assembléia Legislativa do Estado do Ceará, durante o
ano de 2006. Para tal fim, a evidencialidade foi analisada sob os aspectos sintáticos
(meio lingüístico, posição da expressão evidencial no enunciado), semânticos (natureza
da evidência) e pragmático-discursivos (graus de comprometimento do político com o
conteúdo do seu discurso, as imagens por ele suscitadas no processo argumentativo).
2. Pressupostos teóricos funcionalistas para o estudo da categoria evidencialidade
O presente trabalho se enquadra dentro de uma orientação funcionalista nos
estudos da linguagem. Neste paradigma, a linguagem é compreendida a partir de uma
perspectiva instrumental, teleológica. Sendo assim, a expressão lingüística passa a ser
vista dentro de um contexto do qual fazem parte, pelo menos, dois participantes, suas
intenções comunicativas, seus papéis e estatutos definidos na interação social (DIK,
1989, 1997). Desta feita, a pesquisa lingüística de orientação funcionalista pode tomar
como objeto de análise uma categoria de item ou construção e, a partir daí, identificar os
processos cognitivos e discursivos que estão relacionados a essa categoria, a fim de
verificar a sua atuação e as funções que realiza dentro de uma língua natural. Como
podemos perceber, a análise funcionalista da linguagem se opõe à formalista na medida
em que define o sistema lingüístico como uma rede de significado paradigmático
potencial (HALLIDAY, 1985), não-linear, que sofre transformações decorrentes do uso
e dos propósitos enunciativos de seus usuários.
No modelo teórico funcionalista, o usuário assume papel central, já que o
objetivo da investigação lingüística é explicitar como falantes e ouvintes comunicam-se
entre si, de modo eficiente, por meio da expressão lingüística (DIK, 1989). Sendo
assim, as unidades lingüísticas assumem um caráter de mediação, não no sentido de
reproduzir o mundo empírico, tal como se apresenta aos nossos olhos, mas como um
instrumento que relaciona, como uma “ponte”, a intenção do falante e a interpretação do
ouvinte, sendo esta mediação “imperfeita”, na medida em que o significado codificado
na mensagem pelo falante não se confunde com a sua intenção e nem se iguala à
interpretação final dada pelo ouvinte. Outro aspecto importante da orientação
funcionalista consiste na proposta de integração dos níveis de análise, ou seja, da
existência de uma sistematização entre os domínios da sintaxe, da semântica e da
pragmática. Segundo Dik (1989; 1997), a pragmática é vista como um quadro
abrangente na qual a semântica e a sintaxe devem ser estudadas. A semântica é
instrumental em relação à pragmática, e a sintaxe, instrumental em relação à semântica.
É nesse sentido que o funcionalismo se caracteriza como uma teoria pragmática, visto
que o estudo da sintaxe e da semântica se desenvolve dentro de um quadro da
pragmática, o que significa dizer que toda a situação de comunicação deve ser avaliada,
isto é, o propósito enunciativo, seus participantes e o contexto no qual se dá essa
interação.
3. Aspectos conceituais da evidencialidade
A evidencialidade é uma categoria que designa a origem do conhecimento
epistêmico, ou seja, do conhecimento que o falante tem a respeito dos estados-de-coisas
possíveis de ocorrer em dado mundo. Tal afirmação é justificada pelo fato de que todo
conhecimento epistêmico se assenta em evidências, o que leva à concepção de que a
evidencialidade é hierarquicamente superior à modalidade epistêmica. Desta feita, as
unidades evidenciais, codificadas nas línguas, refletem a interação entre o componente
94
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008
conceptual e o contextual (HENGEVELD, 2001), ou seja, são o resultado da relação
entre as decisões comunicativas do falante e o contexto de interação social.
Segundo Nuyts (1993; 2001), a evidencialidade está relacionada ao caráter
“performativo” da linguagem, ou seja, o sujeito-enunciador, ao utilizar uma expressão
evidencial, assim o faz porque deseja realizar certo “ato comunicativo”. Para Dik
(1997), inspirado na noção de Austin (1962 apud Dik, 1989), a linguagem se dá a partir
de atos de fala, compreendidos pelo ouvinte como instruções do falante para que realize
certas ações mentais. Sendo assim, sustentamos que a evidencialidade está diretamente
relacionada ao grau de envolvimento/comprometimento do sujeito-enunciador com o
conteúdo expresso na proposição. Por essa razão, acreditamos que as expressões
evidenciais fornecem ao co-enunciador “pistas” para que ele interprete o enunciado,
sendo esta interpretação realizada com base em uma escala de graus (Alto > Médio >
Baixo) comprometimento.
3.1. Os parâmetros sintáticos, semânticos e pragmático-discursivos para a análise
da evidencialidade em discursos políticos: uma proposta de análise
Para que possamos analisar em que medida as expressões evidenciais estão a
serviço da persuasão em discursos políticos, buscamos fatores sintáticos, semânticos e
pragmático-discursivos capazes de caracterizar o uso de tais itens. Para a orientação
teórica da análise proposta, utilizamos os estudos desenvolvidos por Willet (1988),
Hengeveld (1988) e Dall’Aglio-Hattnher (1995). A seguir, expomos os critérios
utilizados e a codificação usada na identificação de cada parâmetro. Lembramos, no
entanto, que a separação dessas categorias consiste apenas em uma opção metodológica
para uma melhor compreensão dos aspectos envolvidos na constituição da
evidencialidade como categoria lingüística.
a) Parâmetros sintáticos
Para a caracterização da evidencialidade em discursos políticos, é necessário que
façamos uma investigação de critérios relativos à sua manifestação morfossintática.
Para tal fim, utilizamos as seguintes classes: v (Verbo); s (Substantivo); a (Adjetivo); p
(Preposição ou Locução Prepositiva). Em relação à localização no enunciado, a marca
evidencial pode se apresentar na posição: a (Anteposta); t (Intercalada); o (Posposta).
b) Parâmetros semânticos
Como dissemos anteriormente, a evidencialidade diz respeito à explicitação da
fonte da informação contida em um enunciado. Essa fonte da informação pode ser de
três tipos (WILLET, 1988; DALL’AGLIO-HATTNHER, 2001): e (Sujeito-enunciador);
d (Domínio comum); u (Outro). Em outras palavras, a informação asseverada em uma
proposição pode ter como fonte o próprio falante ou pode ser um conhecimento
amplamente conhecido, verdadeiro e incontestável, independentemente do modo de
obtenção dessa informação, ou seja, um conhecimento compartilhado pelos
interlocutores. Ou ainda, pode ser uma informação obtida por meio de um relato. Com
respeito à evidência relatada, o falante pode explicitar a fonte da informação ou apenas
indicar a sua existência sem, no entanto, codificá-la.
A fonte da informação pode ser também definida em termos da natureza da
experiência evidencial ou cognitiva, a qual o sujeito produtor do discurso teve em
relação à informação por ele fornecida. Sendo assim, de acordo com Galvão (2001),
com base nos estudos empreendidos por Willet (1988), a evidencialidade pode ser do
tipo D (Direta); M (Menos direta); I (Indireta). Compreendemos esses tipos de
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008
95
experiências evidenciais da seguinte maneira: i) o tipo direto diz respeito à informação
atestada pelo falante por meio de uma experiência pessoal relacionada aos sentidos; ii) o
tipo menos direto é definido em termos de algum tipo de experiência cognitiva
(inferência) realizada pelo sujeito produtor do discurso na geração de um conhecimento;
ii) o tipo indireto, ao contrário dos dois primeiros, está relacionado à informação à qual
o falante teve acesso apenas de modo indireto, seja por meio de uma segunda-pessoa,
terceira-pessoa, mito etc. Em relação ao grau de envolvimento do falante com a situação
por ele descrita na interação, o que está diretamente relacionado à natureza cognitiva da
experiência evidencial, consideramos os seguintes níveis de envolvimento, cada um
deles com seus respectivos subdomínios:
i) X (Experiencial): 1 (visual), 2 (auditiva), 3 (outros meios físicos);
ii) F (Inferencial): 4 (observável), 5 (raciocínio);
iii) R (Relatada): 6 (citativa) e 7 (indefinida): k (mito), y (boato) e z (especulativa).
Como podemos observar, a evidência experiencial é subdividida em três
subtipos: i) visual, quando o falante afirma ter visto a situação descrita; ii) auditiva
quando assevera ter ouvido e iii) obtida por outros sentidos, quando diz ter percebido a
situação por alguma outra experiência física, diferente da visão e audição.
Em relação ao tipo inferencial, temos, basicamente, dois subtipos, sendo cada
um a expressão de uma atitude mental do próprio sujeito-produtor do discurso: i) o tipo
observável é definido como sendo aquela informação derivada por meio de evidências
disponíveis; ii) o tipo raciocínio se caracteriza como sendo um conhecimento derivado
por meio da intuição, da lógica ou, até mesmo, de sonhos ou experiências prévias do
sujeito-enunciador. Esse tipo de evidência está relacionado a um médio ou alto grau de
abstração.
A expressão evidencial do tipo relatada se caracteriza como sendo uma
informação reportada. Pode ser de dois subtipos: i) citativa, que diz respeito a uma
informação derivada de uma segunda-pessoa ou terceira-pessoa. Ela se caracteriza como
sendo um conhecimento passível de ser definido em termos de sua fonte, uma vez que o
sujeito-enunciador explicita qual é a fonte de sua informação; ii) indefinida é, por sua
vez, uma informação relatada, cuja fonte existe, mas não é explicitada. Pode ser uma
informação tida como conhecida e aceita por uma comunidade (mito); pode ser um
conhecimento marcado discursivamente pela sua indefinitude (boato); e pode se
caracterizar com sendo uma informação derivada apenas pelo enunciador, ou seja, só
existe na mente do falante, que exterioriza essa informação para gerar uma situação
negativa em relação a outro indivíduo envolvido direta ou indiretamente na situação de
interação (especulação) (GALVÃO, 2001).
A evidencialidade pode também ser caracterizada, segundo Dall’Aglio-Hattnher
(1995; 2001), de acordo com o nível de compartilhamento da fonte oferecida pelo
sujeito-enunciador ao co-enunciador. Essa autora propõe dois tipos de
compartilhamento: i) f (explícita só do falante); ii) c (explícita compartilhada). Ou seja,
se a fonte é o falante, ele assume a responsabilidade em relação à informação
apresentada. Se ele indica uma fonte diferente dele, ele oferece, ao seu co-enunciador, a
possibilidade de avaliar, por si próprio, a confiabilidade dessa informação.
c) Parâmetros pragmático-discursivos
O nível de comprometimento é definido, para Dall’Aglio-Hattnher (2001), como
sendo um tipo de estratégia discursiva indicadora do grau de tensão entre os
96
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interlocutores em termos do nível de comprometimento do sujeito-enunciador com o
discurso. Esse parâmetro pode ser subdivido em: L (Alto comprometimento); E (Médio
comprometimento); B (Baixo comprometimento). O alto comprometimento determina
uma atitude de apropriação do sujeito-enunciador, que se apresenta como a fonte do
conteúdo asseverado. O médio comprometimento indica uma atenuação de
responsabilidade por parte do sujeito-enunciador. Por sua vez, o baixo
comprometimento estabelece um maior grau de distanciamento do falante no que diz
respeito ao conteúdo por ele asseverado.
4. Constituição do corpus de análise
Para a análise dos efeitos de sentido produzidos pelas expressões evidenciais em
discursos políticos, trabalhamos com um total de 10 discursos proferidos no Pequeno
Expediente de Sessões Ordinárias da Assembléia Legislativa do Ceará, durante o ano de
2006. Os temas debatidos nos textos selecionados são relativos à vinda da refinaria para
o Ceará e à transposição do Rio São Francisco, identificados, respectivamente, pelas
codificações [DR] e [DF].
5. Análise da evidencialidade em discursos políticos
A evidencialidade reflete a relação entre os propósitos enunciativos dos sujeitos
e o contexto comunicativo dentro do qual se dá uma interação. As marcas evidenciais,
por sua vez, caracterizam-se por aspectos sintáticos, semânticos e pragmáticodiscursivos. Como já nos dedicamos, na seção 3, a explicação de cada parâmetro de
análise, vejamos, agora, de que forma esses aspectos caracterizam a expressão dessa
categoria lingüística em discursos políticos, bem como de que maneira os itens
evidenciais “contribuem” na construção das estratégias de persuasão desse gênero de
discurso.
A evidencialidade, tal como constatado por Dall’Aglio-Hattnher (2001) e
Galvão (2001), manifesta-se, principalmente, por meio de expressões lexicais. Nos
exemplos (01) e (02) a seguir, podemos verificar que a evidencialidade pode se
manifestar por meio das categorias morfossintáticas verbo e substantivo:
(01) É bom a gente por bem vivo em nossos ouvidos essa frase do Deputado L. C.1, que
diz de uma forma espontânea, clara, transparente por demais, que o Estado tem hoje
condições com o Porto, com a malha viária, com adequação de infra-estrutura que foi
implantada nos últimos 10, 15 e 20 anos. (v, t, u, I, R 6, c, B) [DR]
(02) O segundo ponto é que para mim ficou muito claro com a declaração da Ministra
R. D. que não é política, é técnica... dela dizendo que o protocolo estava assinado e que
a Refinaria viria para Pernambuco em parceria com a Companhia Petrolífera da
Venezuela. (s, a, u, I, R6, c, B) [DR]
No exemplo (01), temos o verbo dizer (em posição intercalada). Esse tipo de
predicado é denominado verbo discendi ou, de acordo com Neves (2000), verbos
introdutores do discurso direto ou indireto. No exemplo (02), temos uma ocorrência de
evidencialidade indireta (declaração) expressa por meio de um substantivo, que,
segundo está mesma autora, é usado para que possamos nos referir às entidades do
mundo (coisas, pessoas, fato, etc). Como podemos ver em (02), o item de valor
metadiscursivo a declaração (em posição anteposta) indica um tipo de ação realizada
por um sujeito reportado na enunciação, caracterizando-se, a exemplo da ilustração (01),
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008
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como uma evidência indireta relatada-citativa. Esses itens evidenciais demonstram
baixo comprometimento dos políticos com o conteúdo dos seus discursos. Em (01),
percebemos que o orador reporta a fala de um terceiro com o objetivo de garantir um
certo distanciamento em relação ao seu discurso, deixando ao seu co-enunciador a
função de interpretar, por si mesmo, conforme a credibilidade da fonte, a veracidade da
informação. Por sua vez, no exemplo (02), o político faz uso das palavras da ministra
para mostrar aos seus adversários que o conteúdo proposicional não pode ser mais
negado, pelo seu caráter factual.
Nas ilustrações (03), (04) e (05) a seguir, podemos verificar marcas evidenciais
que sinalizam como fontes da informação, respectivamente, o próprio sujeitoenunciador, um outro (terceira-pessoa) identificável contextualmente, e uma fonte que
se configura como um conhecimento do domínio-comum:
(03) Mas eu vi ontem, na Folha de São Paulo, um artigo do Professor M. V., que
inclusive esteve aqui, na Assembléia Legislativa, divulgando um livro sobre Getúlio
Vargas, que estou inclusive concluindo a leitura. (v, a, e, D, X1, f, L) [DF]
(04) E ontem o Senador J. T. dizia que isso era coisa do PT. Eu acho que ele
compreendeu que não se trata da Refinaria ser de um Partido da situação ou oposição,
mas uma coisa que interessa a todo o Nordeste, particularmente ao Estado do Ceará, e
eu reconheço que ele quando Governador, ajudou muito nesse sentido. (v, t, u, I, R6, c,
B) [DF]
(05) Sabemos nós todos, Deputado J. O., que a Refinaria já estava acordada e que a
Ministra, eu vou fazer um Requerimento parabenizando-a pela coragem de não mentir,
ela, ou abriu a boca antes do tempo, ou de uma forma que eu prefiro acreditar, corajosa,
disse. (v, a, d, I, R7k, c, B) [DR]
No exemplo (03), o político se apresenta como a fonte da informação. Essa
estratégia pode ser utilizada para tornar o seu argumento incontestável em relação aos
seus opositores, sobretudo porque ele afirma ter vivenciado a experiência descrita na
enunciação. Esse tipo de estratégia discursiva é muito usado quando o político deseja
mostrar-se como homem atento aos acontecimentos/fatos sociais, políticos etc. Já no
exemplo (04), temos um item evidencial (verbo dizer) que o sujeito enunciador utiliza
para vincular a informação a uma terceira-pessoa, com o objetivo de provocar no seu
co-enunciador um efeito de distanciamento ou baixo comprometimento em relação ao
tema por ele debatido. Ele apresenta o seu argumento por meio de um relato para
mostrar que o assunto discutido é de interesse não apenas da instância da situação (ou
seja, aquela que está no poder), mas também da oposição. Em relação ao exemplo (05),
o parlamentar constrói sua argumentação com base em um conhecimento compartilhado
por todos os presentes no Plenário ou, pelo menos, assim o faz parecer. Esse tipo de
marca evidencial é usado como estratégia de diluição de responsabilidade. Além disso,
pode também indicar um “chamado”, por parte do orador, para que a platéia participe de
sua exposição, uma vez que “todos compartilham” os mesmos interesses políticos.
As ilustrações (06), (07) e (08) apresentam itens evidenciais de natureza
semântica direta, menos direta e indireta, respectivamente:
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ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008
(06) eu estou no Maracanã, olho para o placar, está lá: “A Refinaria é nossa. É do Rio
de Janeiro”. Olhamos pela produção de petróleo nacional que é 80 % para ser refinado,
é na Bacia do Rio de Janeiro! Merece uma reflexão. (v, a, e, D, X1, f, L) [DR]
(07) me parece que o Deputado J. O. e o Deputado H. F. estão na contramão do
Governador, no que diz respeito à refinaria. O Deputado J. O. e H. F. querem a guerra,
para não vir a Refinaria para o Ceará ou nem para o Nordeste. O Governador está
tratando de um jeito e eles estão tratando de outro, aqui dentro. (v, a, e, M, F4, c, E)
[DR]
(08) Ministro G. C. fez uma declaração hoje no Jornal. Diz que há um equívoco na
forma de luta por esta Refinaria. Todos brigam pela obra que não existe. Depois dessa
música do Severino Chic Chic em Brasília, eu acho que vai servir para o Presidente
despertar alguma coisa. (v, a, u, I, R6, c, B) [DR]
No exemplo (06), o sujeito-enunciador apresenta a informação como obtida de
modo direto, mostrando-se ele mesmo como a fonte do conhecimento. O político
fundamenta a argumentação do seu discurso a partir dessa marca evidencial, porque
deseja imprimir, na situação de interação, um alto nível de engajamento em relação às
informações por ele apresentadas. Argumentos construídos com base em marcas
evidenciais diretas caracterizam o conhecimento como sendo supostamente algo que
não pode ser negado ou refutado pelos adversários do político, uma vez que a
informação foi obtida diretamente pelo orador.
No exemplo (07), temos uma evidência do tipo menos direta. A informação nos é
apresentada como sendo um conhecimento derivado por meio de pistas captadas na
situação de interação. O objetivo é desqualificar a instância adversária, mostrando, ao
auditório2, que a bancada da oposição está contra os interesses da platéia. Trata-se,
portanto, de uma avaliação, de uma interpretação do orador, e não de um fato
experienciado.
Em relação ao exemplo (08), a expressão diz que imprime, claramente, um
conhecimento derivado de uma terceira-pessoa. Percebamos que a marca diz que não
constitui uma evidência do tipo boato (não especificada), mas uma expressão cuja fonte
está no sujeito do verbo dizer, correferencial ao da oração anterior (Ministro G. C.).
Parece-nos que esse tipo de fundamentação é apresentado porque o orador acredita que
a opinião desse ministro tem credibilidade perante o seu auditório. Portanto, constitui
um argumento forte para mobilizar as emoções dos que constituem essa platéia.
No que diz respeito ao grau de envolvimento do falante com a situação por ele
descrita na interação, os exemplos (09), (10) e (11) trazem, respectivamente, marcas
evidenciais experiencial, inferencial e relatada indefinida:
(09) a declaração da Ministra R. D., que não é política, é técnica, quando declarou e eu
vi, assisti, estava casualmente assistindo o jornal da Globo, quando ouvi a declaração
dela dizendo que o protocolo estava assinado e que a Refinaria viria para Pernambuco
em parceria com a Companhia Petrolífera da Venezuela. (v, a, e, D, X1/2, f, L) [DR]
(10) Agora também querer pré-julgar o Presidente Lula por essa decisão parece que é
esquecer que em 1985, o candidato a Presidente da República era o Fernando Henrique
Cardoso. (v, a, e, M, F4, f, E) [DR]
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008
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(11) Todo mundo sabe que desde 1985 venho lutando por esta questão da Refinaria. Era
vereador e Cid Gomes, Presidente desta Casa, quando foi formada uma comissão. (v, a,
d, I, R7k, c, B) [DR]
No exemplo (09), o político reforça a argumentação do seu discurso mediante
uma marca evidencial experiencial, que caracteriza a situação relatada como vivida por
ele, uma vez que o orador viu, assistiu e ouviu que um protocolo foi assinado,
garantindo a Pernambuco a refinaria de petróleo. Esse tipo de estratégia fornece o efeito
de sentido de alto comprometimento, causando a impressão de que os argumentos do
político não podem ser contestáveis pelos seus adversários. A imagem que ele deseja
construir é de um político comprometido com a verdade dos fatos.
Em relação ao exemplo (10), o item parece que (verbo factivo)3 exprime uma
relação de projeção de idéias, configurando-se como inferência do orador. O político
infere, por meio de evidências disponíveis, que não é justo pré-julgar o Presidente Lula,
mostrando, ao auditório, que se trata, na verdade, de forças políticas da oposição
capazes de frear as ações do Governo. Embora esse item não seja experiencial
“corporal”, ela não pode ser considerada um tipo de evidência indireta, já que se
caracteriza por sua natureza cognitiva. Por essa razão, as marcas evidenciais com esse
caráter cognitivo são classificadas como evidências menos diretas (GALVÃO, 2001).
Ao utilizar esse tipo de item, o político parece diluir o seu nível de responsabilidade,
apresentando-se como um orador menos engajado com o seu discurso (médio grau de
comprometimento). Essa estratégia é utilizada como uma tentativa desse sujeito de
acalmar os ânimos dos parlamentares da oposição ou, até mesmo, desqualificar as
acusações levantadas contra o Governo Lula.
No exemplo (11), por sua vez, o orador constrói seu discurso tendo como base
uma evidência do tipo relatada – natureza indireta. Seu argumento ganha o estatuto de
conhecimento compartilhado, causando a impressão de que o político se distancia do
conteúdo por ele asseverado (baixo grau de comprometimento). Ele assim o faz, porque
deseja construir uma imagem de defensor incansável dos direitos do povo; imagem esta,
possivelmente, identificada como sendo aquela que evoca o desejo4 do auditório. Como
vimos no item 3. 1 deste artigo, a evidencialidade pode ser caracterizada de acordo com
o nível de compartilhamento da fonte oferecida pelo sujeito-enunciador ao coenunciador. Os exemplos (12) e (13) mostram, respectivamente, marcas evidenciais
explícita só do falante e explícita compartilhada:
(12) [...] Eu acredito, Deputado G. J., que você nascido no Encantado, centro do Estado
do Ceará, que chegou aqui com luta e trabalho próprio, se V. Exa. estiver sabendo dessa
marmota, dessa mutreta, dessa maracutáia enganatória do Governo Federal, ficando a
pentear a Refinaria, é na Paraíba, é no Maranhão, é no Rio Grande do Norte ... (v, a, e,
M, F4, f, L) [DR]
(13) Nós sabemos que só temos água para trinta anos, e esse Projeto vai dar
oportunidades para netos e bisnetos, inclusive para resolver esse problema de uma vez
por todas, a questão do Semi-árido aqui no Ceará. (v, a, d, I, R7k, c, B) [DF]
No exemplo (12), o político veicula a informação como tendo sido concebida ou
concluída apenas por ele; ao contrário do que ocorre no exemplo (13), em que o orador
faz parecer que é um conhecimento compartilhado por todos os parlamentares,
100
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008
promovendo maior envolvimento e interação com o auditório. Essa estratégia de
compartilhamento muito tem a ver com o nível de comprometimento do sujeitoenunciador em relação ao conteúdo asseverado em seu discurso. Sendo assim, quanto
mais diluída a informação em termos de compartilhamento, menos comprometido com
a informação esse político estará.
6. Considerações finais
Sendo a evidencialidade uma categoria lingüística que diz respeito à fonte da
informação de um conteúdo proposicional, podemos afirmar que essa categoria constitui
importante estratégia discursiva na construção da argumentação do discurso político,
uma vez que as marcas evidenciais demonstram o grau de comprometimento do político
com o seu discurso. Os itens diretos, por deflagrarem um alto grau de
comprometimento, “contribuem” para a construção de imagens que façam o político
parecer preocupado com os interesses ou estados de espírito de seu auditório. Os itens
menos diretos, por sua vez, por apresentarem a informação como produto de uma
elaboração cognitiva, o que está relacionado com um médio grau de comprometimento,
são muito utilizados quando o político deseja atenuar a responsabilidade em relação ao
que diz ou indicar uma reflexão/avaliação sua a respeito do estado-de-coisas. No que diz
respeito às marcas evidenciais indiretas, verificamos que elas são utilizadas quando o
político quer se descomprometer totalmente com o conteúdo dos enunciados, garantindo
um certo distanciamento no que diz respeito a sua fala, já que permite ao auditório a
avaliação, por si mesmo, das informações asseveradas no discurso, de acordo com a
fonte externa apresentada. Além disso, pode configurar-se também como uma tentativa
de construir imagens que o mostrem como diferente ou contrário, em termos
ideológicos, sociais e políticos, dos seus adversários, pois, ao reportar a voz do seu
opositor, assim o faz porque deseja se opor a ela.
Notas
1
Não identificaremos nenhum dos sujeitos da interação.
O termo “platéia” e “auditório” estão sendo usados como sinônimos. Trata-se de um
conceito muito amplo, que diz respeito a todos os indivíduos a quem o político deseja
influenciar mediante a construção de uma determinada imagem. (PERELMAN &
OLBRECHTS-TYTECA , 2005)
3
Segundo Neves (2006) predicados factivos indicam que, por parte do falante, a
proposição completiva é factual, ou seja, verdadeira.
4
Para Charaudeau (2006), esse termo é justificado, uma vez que a atração das imagens
é explicada apenas pela força do desejo. O ethos (imagem do ser que fala) é um espelho
que reflete os desejos do político e do seu auditório.
2
Referências
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Cruz. São Paulo: Editora Contexto, 2006.
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In: Studies in Language, v. 1, n. 12, 1988.
102
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008
A multifuncionalidade semântico-pragmática de “agora que”:
diferentes estágios de Gramaticalização1
Maura Elisa Galbiatti
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara – UNESP
E-mail: maura.elisa@ig.com.br
Abstract. The aim of this work is to analyze the “agora que” semanticpragmatic multifunctionality, following the grammaticalization theoretical
postulates. It purposes to investigate the grammaticalization pathway of this
conjunctional periphrasis – from more concrete use to more abstract functions
– examining if its emergence exemplifies the kind of semantic change whereby
uses with causal/explanatory meaning are derived from temporal expressions,
in linguistics contexts in which the cause/explanation concepts are
conversational implicatures.
Keywords. Linguistic change; grammaticalization; conjunctional periphrasis.
Resumo. O objetivo do presente trabalho é analisar a multifuncionalidade
semântico-pragmática de “agora que”, de acordo com os pressupostos
teóricos da gramaticalização. Procura-se investigar a trajetória de
gramaticalização dessa perífrase conjuncional – desde o seu uso mais
concreto até o seu emprego mais abstrato – examinando se o seu surgimento
exemplifica o tipo de mudança semântica pelo qual os seus empregos com
sentidos causal/explicativo são derivados de expressões temporais, em
contextos lingüísticos em que as noções de causa/explicação estão implicadas
conversacionalmente.
Palavras-chave.
conjuncional.
Mudança
lingüística;
gramaticalização;
perífrase
1. Introdução
De modo geral, a gramaticalização é entendida como um processo de mudança
lingüística pelo qual uma unidade lexical assume uma função gramatical, ou se já
gramatical assume uma função ainda mais gramatical. O termo gramaticalização foi
usado pela primeira vez por Meillet (1965[1912]), que caracterizou o fenômeno como
uma das maneiras pelas quais novos construtos gramaticais são formados. A “atribuição
de um caráter gramatical para uma palavra anteriormente autônoma” é descrita pelo
autor como um continuum unidirecional, uma vez que a transição é gradual e a mudança
possui um único sentido: lexical > gramatical.
Segundo Meillet, a gramaticalização tem uma motivação específica: a constante
busca dos falantes por serem expressivos. O uso freqüente de uma palavra leva ao
desgaste e à diminuição do seu valor expressivo; o falante tende a reagir contra essa
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 103-111, jan.-abr. 2008
103
automatização, recrutando formas lingüísticas já existentes para desempenhar novas
funções ou criando novas colocações.
Para Hopper (1987, 1991), o processo de gramaticalização está diretamente
relacionado à natureza dinâmica da gramática, que está em constante mudança, sendo
transformada continuadamente. Assim, Hopper afirma que não existe “gramática”, mas
apenas “gramaticalização”, caracterizada pelo movimento em direção à estrutura.
É relevante ressaltar que, nesta pesquisa, a gramaticalização não é tratada no
sentido estrito de evolução diacrônica, mas como a investigação da multiplicidade de
significados de um determinado item, que podem ser acionados, concomitantemente, e
representam uma gradualidade sincrônica.
1. Mudança semântico-pragmática
A concepção de gramaticalização lançada por Traugott (1982) e Traugott &
König (1991) é formulada em termos distintos dos propostos por Meillet e Hopper, pois
os autores empenham-se em identificar os tipos de mudança de significado que ocorrem
nos processos de gramaticalização, isto é, eles privilegiam a análise dos aspectos
semânticos e pragmáticos relacionados a esse fenômeno de mudança lingüística.
Traugott & König (1991) definem a gramaticalização como um processo histórico,
dinâmico e unidirecional pelo qual itens lexicais, no curso do tempo, adquirem um novo
status, como formas gramaticais e morfossintáticas, e passam a ter significados que não
eram codificados ou que eram de forma diferente.
De acordo com Traugott (1982) e Traugott & König (1991), o processo de
gramaticalização envolve uma pragmatização crescente do significado, por englobar
mecanismos de inferência pragmática e estratégias metafóricas de aumento de
abstração. A referida mudança lingüística é compreendida como um processo gradual e
unidirecional, que parte de significados referenciais, passando por significados fundados
na marcação textual, em direção a significados centrados na atitude ou crença do falante
a respeito do que é dito.
Eles chegaram à formulação de que as mudanças semânticas que acompanham
os processos de gramaticalização seguem uma trajetória que aponta para o crescente
fortalecimento da expressão subjetiva do falante. Esse percurso é ilustrado na figura
abaixo:
Significados identificáveis nas situações extralingüísticas > Significados
fundados na marcação textual > Significados fundados na atitude
ou crença do falante a respeito do que é dito
Subjacente a esse fortalecimento, Traugott e König ressaltam que está o
princípio de informatividade ou relevância, fator capaz de conduzir os falantes a maior
clareza e especificidade e de orientar os ouvintes para a seleção da interpretação mais
informativa ou relevante. A idéia de que os falantes, em uma dada comunicação, tendem
a ser cooperativos é coerente com a proposta de Lehmann, para quem “todo falante quer
104
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 103-111, jan.-abr. 2008
fornecer a expressão mais completa para aquilo que deseja dizer” (1985, apud
TRAUGOTT & KÖNIG, 1991, p.191).
Eles afirmam que os itens referenciais, que sofrem gramaticalização, possuem
significados identificáveis nas situações extralingüísticas e são pressionados a codificar
significados cada vez mais pragmáticos. Em outras palavras, de acordo com os autores,
os significados mudam “do que é dito para o que se queria dizer, mas não vice-versa”. A
fim de evidenciar o fortalecimento de informatividade na polissemia entre tempo e
causa, Traugott e König (1991) apresentam os exemplos (01) e (02):
(01) After we heard the lecture we felt greatly inspired. (+ > because of the lecture
we felt greatly inspired)
Depois de assistir a palestra, nós ficamos imensamente inspirados. (+ > por
causa da palestra nós nos sentimos imensamente inspirados)
(02) The minute John joined our team, things started to go wrong. (+ > because
John joined out team, things started to go wrong)
No momento em que John se uniu ao nosso time, as coisas começaram a dar
errado. (+ > porque John se uniu ao nosso time, as coisas começaram a dar
errado)
Segundo os pesquisadores, as inferências conversacionais acima são fortalecidas
de informatividade, pois licenciam noções de causa a partir de fatos temporais. Bybee
(2003) afirma que a mudança de uma seqüência temporal para uma seqüência causal
indica que os usuários da língua estão propensos a inferir causas, motivos.
Traugott e König (1991) também consideram relevante a afirmação de que as
polissemias tempo-causa podem surgir por meio de implicaturas conversacionais. Um
caso de gramaticalização envolvendo a polissemia entre os significados temporal e
causal é o da conjunção since, do inglês:
(03) I have done quite a bit of writing since we last met.
Eu escrevi bem pouco desde a última vez que nos encontramos. (temporal)
(04) Since Susan left him, John has been very miserable.
Desde que Susan o deixou, John tem estado muito triste. (temporal/causal)
(05) Since you are not coming with me, I will have to go alone.
Já que você não vem comigo, vou ter de ir sozinho. (causal)
Em (03), a leitura de since é tipicamente temporal, referencial; já em (05), since
apresenta uma interpretação causal, em que esse significado está convencionalizado e
não pode ser cancelado. A diferença entre esses sentidos é algumas vezes obscurecida,
gerando ambigüidades, como (04), em que since permite duas leituras: uma
convencional (temporal) e outra conversacional (causal).
De uma perspectiva semelhante, Sweetser (1988, 1990) atribui à
gramaticalização um mecanismo unidirecional de mudança semântica, que se realiza
por meio de projeções metafóricas entre os diferentes domínios conceituais: do
conteúdo (sociofísico), epistêmico (raciocínio lógico) e conversacional (atos de fala).
Para ela, existe uma relação entre os domínios, sendo que os conceitos e o vocabulário
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 103-111, jan.-abr. 2008
105
do domínio epistêmico originam-se do domínio do conteúdo, assim como os conceitos e
o vocabulário do domínio conversacional tendem a originar-se do domínio epistêmico.
Essas projeções, que podem ser ilustradas com a figura seguinte, seguem a “tendência
geral de recorrer a conceitos e vocabulários de um domínio mais acessível – mundo
sociofísico – para se referir a domínios menos acessíveis – raciocínio, emoção e
estruturas conversacionais” (SWEETSER, 1990, p.31).
DOMÍNIO DO CONTEÚDO
sociofísico
DOMÍNIO EPISTÊMICO
raciocínio lógico
DOMÍNIO CONVERSACIONAL
atos de fala
Sweetser (1990) ressalta a necessidade de estudos sobre a sistematicidade das
conexões entre os domínios e argumenta que a sobreposição de dois sistemas distintos
de metáforas relaciona o vocabulário de ação/ movimento/ localização física com os
domínios de estados mentais e atos de fala. Em outras palavras, o entendimento da
lógica e o processamento mental são utilizados para compreender o mundo físico e
social, da mesma forma que as expressões lingüísticas não servem apenas como
descrição (um modelo de mundo), mas também como ação (um ato descrito no mundo)
e como entidades epistêmica e lógica (premissa ou conclusão no nosso mundo da
argumentação) (SWEETSER, 1990, p.21).
Em suma, a autora trata de um sistema metafórico particular que direciona o
curso das projeções entre domínios conceituais, os quais determinam diferentes formas
polissêmicas que são interpretadas como etapas em uma trajetória progressiva, em
direção a construções mais gramaticais. Ela argumenta que os itens lingüísticos podem
ser interpretados de diferentes maneiras conforme o funcionamento pragmático de seus
empregos, apresentando usos ambíguos entre os domínios do conteúdo, epistêmico e
conversacional.
Para exemplificar a aplicação nos três diferentes domínios, ela utiliza-se de
conjunções causais e adversativas. Os exemplos seguintes, também da conjunção causal
since, são casos de (06) conjunção do conteúdo; (07) conjunção epistêmica; e (08)
conjunção de atos de fala:
(06) Since John wasn’t there, we decided to leave a note for him.
Já que John não estava aqui, nós decidimos deixar um recado para ele.
(A ausência de John propiciou nossa decisão no mundo real.)
(07) Since John isn’t here, he has (evidently) gone home.
Já que John não está aqui, ele deve ter ido para casa.
(O conhecimento da ausência originou a minha conclusão de que ele foi para
casa.)
(08) Since
we’re on the subject, when was George Washington born?
you’re so smart,
Já que estamos no assunto / Já que você é esperto, quando George Washington
nasceu?
106
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 103-111, jan.-abr. 2008
(O fato de nós estarmos nesse assunto possibilita o ato de fala interrogativo /
Como você é esperto, eu te pergunto quando George Washington nasceu.)
A autora explica que a conjunção causal, no domínio conversacional, indica uma
explicação do ato de fala pronunciado; já no domínio epistêmico a conjunção causal
marca a razão de uma crença ou de uma conclusão, ao passo que no domínio do
conteúdo a conjunção causal assinala uma causalidade de um evento no “mundo-real”.
3. Material da pesquisa:
O material para esta pesquisa, que conjuga as metodologias qualitativa e
quantitativa, é constituído por um corpus sincrônico, que compreende dados de fala e de
escrita:
Dados de fala:
• Amostra mínima do NURC
• Banco de Dados IBORUNA2
Dados de
escrita:
• Base de dados armazenada no Centro de Estudos
Lexicográficos da UNESP, Campus de Araraquara
4. Análise dos Dados
Com base nos pressupostos teóricos apresentados, faz-se um estudo sincrônico
de agora que a fim de analisar os seus empregos no português atual, observando a
abstratização semântica e a crescente pragmatização do significado, que acompanham a
gramaticalização.
As ocorrências a seguir exemplificam a mudança: concreto > abstrato e ilustram
uma possível trajetória de gramaticalização para essa perífrase conjuncional. Nota-se
que, em (09) e (10) – emprego temporal, o significado das perífrases conjuncionais é
mais concreto e referencial, baseado na situação física, extralingüística. Por outro lado,
nos exemplos (11) e (12), as perífrases estão em estágio mais avançado do processo,
pois desempenham funções semânticas mais abstratas, explicitando relações causais /
explicativas entre as orações.
Temporal – significado referencial, mais concreto
(09) ... assim nas hortinhas comuns eu não sei as pessoas que tem UMA
TECNICA [uma técnica] coisas assim...mas agora que chega a época do
frio...como ah:: apesar do sol a água esfria e a terra é fria então a planta a
raiz fica mais à vontade na terra...[sei] então essa época é a época que
quando é frio se consome menos verdura e a verdura dá melhor... (AC-114)3
(10) Acreditava ter sido injusta com ela, recriminando-a pelo fato de ter deixado
de visitá-la, agora que estava certa de que Yolanda iria ajudá-la muito, ser
uma espécie de mãe para ela. (DD)
Causal – significado mais abstrato, fundado na crença do falante a respeito do que é dito
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 103-111, jan.-abr. 2008
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(11) – Feche os olhos. Agora que confia em mim, não precisa vigiar. (CH)
(12) – Agora que entendemos tudo, queremos acabar com isso. (GD)
Entre esses significados temporal e causal, existem inferências conversacionais
que podem ou não se convencionar. Em alguns casos, as orações que expressam tempo
podem ter conotações não-temporais, como nas ocorrências (13) e (14), casos
polissêmicos em que o significado temporal coexiste com o causal. Essas acepções
ambíguas, que compartilham funções de mais de uma etapa, corroboram a mudança por
meio de convencionalização de implicaturas conversacionais (TRAUGOTT & KÖNIG,
1991):
Tempo-Causa – emprego temporal com implicaturas causais / explicativas
(13) – Lamento por mim mesmo. Enquanto todos me reverenciavam, ele me
desafiava, e eu era obrigado a melhorar. Agora que ele se foi, tenho medo de
parar de crescer. (HPP)
(14) Tinha um comigo que todos os dias dizia assim: "antes eu trabalhava muito,
estava sempre ocupado. Agora que eu estou preso, tenho todo o tempo livre!
" Ouvir isso todo dia, enche, né mesmo? (MPF)
A proposta de Sweetser contribui para o exame da pragmatização do significado
de agora que, pois possibilita traçar hipóteses a respeito do percurso de mudança pelo
qual essa locução conjuncional está passando. Para exemplificar a aplicação de agora
que nos três diferentes domínios conceituais, são citados exemplos mais
gramaticalizados de agora que, em que a perífrase explicita relações causais nos
domínios do conteúdo (15); epistêmico (16); e conversacional (17):
(15) Nem de manhã se viam mais, agora que ela tinha inventado essa história de
montar uma academia de ginástica no salão em cima das garagens e ficava
desde as sete horas mandando um batalhão de mulheres de malha abrir as
pernas e dar pulinhos ao som de oito alto-falantes a todo vapor. (SL)
(Eles não se viam porque a mulher estava ocupada na academia – evento no
mundo real)
(16) Agora que havia errado, precisava pagar um preço. E o preço foi beber o
mais cruel dos venenos – a solidão. (BRI)
(O conhecimento do seu erro originou a minha conclusão de que você
precisava pagar um preço – avaliação subjetiva do falante)
(17) – Agora que já pisou em mim, vá lá fora e pise na minha imagem – disse
Jesus.. (HPP)
(Eu ordeno a você que vá lá fora e pise na minha imagem pelo fato de você
já ter pisado em mim – explicação do ato de fala)
Em (15), no domínio do conteúdo, a perífrase assinala uma causalidade de um
evento no “mundo-real”. Já em (16), a unidade é pertencente ao domínio epistêmico,
108
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 103-111, jan.-abr. 2008
uma vez que marcam a razão de uma crença ou de uma conclusão. Por fim, em (17), no
domínio conversacional, a conjunção indica uma explicação do ato de fala pronunciado.
Por meio de uma análise quantitativa, verificou-se que grande parte das
ocorrências de agora que pertencem ao domínio do conteúdo (46%) – conferir na tabela
abaixo – em virtude da preservação do significado temporal, mais concreto, em muitas
ocorrências dessa locução. Além disso, constatou-se que todas as ocorrências temporais
pertencem ao domínio do conteúdo, o que corrobora as postulações de Sweetser (1991),
segundo a qual os eventos do mundo real, as relações mais referenciais estão nesse
domínio mais concreto.
!
Relação Semântica
entre as orações
Tempo
Tempo / Causa
Causa
TOTAL
Conteúdo
24
100%
4
14%
1
10%
29
46%
"
#
Domínios conceituais
Epistêmico Atos de fala
–
–
19
66%
6
60%
25
40%
6
21%
3
30%
9
14%
TOTAL
24
100%
29
100%
10
100%
63
100%
O gráfico seguinte permite visualizar os resultados expressos no Quadro 01,
representando a distribuição das ocorrências de agora que nos três domínios
conceituais:
70
60
50
40
30
20
10
0
$%
Conteúdo
Epistêmico
Conversacional
Total
"
&
Os resultados apresentados na Tabela 1 evidenciam que agora que apresenta
mais ocorrências ambíguas e causais (39 casos, se somadas) do que exemplos temporais
(22 casos), o que significa que essa perífrase está gramaticalizando-se na marcação de
causa, assumindo usos mais abstratos. O gráfico 2 ilustra a classificação semântica dos
empregos de agora que levantados nos corpora.
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109
70
60
50
40
30
20
10
0
$%
Temporal
Tempo / Causa
Causal
Total
'
&
5. Considerações finais
O exame da variedade de empregos da perífrase conjuncional agora que mostra
que as diversas interpretações possíveis sugerem diferentes estágios de mudança, em
que as acepções que veiculam avaliações subjetivas dos falantes, ou aquelas
pertencentes aos domínios epistêmico e conversacional, ocupam um estágio mais
adiantado do processo em relação às acepções mais referenciais, pertencentes ao
domínio conceitual do conteúdo.
Notas
1
Este trabalho faz parte de uma pesquisa de mestrado orientada pela Prof. Dra. Maria Helena de Moura
Neves. O estudo é financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES).
2
Essa amostra de fala é resultante do Projeto “O Português falado na região de São José do Rio Preto:
constituição de um banco de dados anotado para seu estudo”, cujo responsável é o professor Dr. Sebastião
Carlos Leite Gonçalves. Desse banco de dados, foram utilizados, na presente pesquisa, 61 inquéritos.
3
As letras e números, entre parênteses, no final das ocorrências referem-se à obra da qual cada exemplo
foi retirado.
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Argumentação e discurso científico
numa perspectiva pragmática
Kanavillil Rajagopalan1
1
Departamento de Lingüística, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade
Estadual de Campinas, Rua Sérgio Buarque de Holanda, nº. 571
CEP 13083-859 - Campinas - SP – Brasil
rajan@iel.unicamp.br
Abstract: The aim of this paper is to discuss the role of argumentation in
scientific discourse from the perspective of contemporary pragmatics. It
considers all knowledge, including scientific knowledge, as socially
constructed by members of the relevant community. The force of an argument,
it is argued, comes from the socio-historical conditions prevailing at a given
moment, and not from the logical rigour of the argument itself. Among other
things, this implies that (1) an argument that convinces people at one
historical moment may fail to do so at another moment (and vice versa) and
(2) the capacity of an argument to convince others is only relative to the
historical context in which it is produced.
Keywords. argumentation; scientific discourse; rhetoric; pragmatics
Resumo. O objetivo deste trabalho é discutir o papel de argumentação no
discurso científico a partir de uma perspectiva pragmática. Ele considera todo
conhecimento, inclusive o conhecimento científico, como construído
socialmente pelos membros da comunidade em questão. A força de um
argumento advém das condições sócio-históricas presentes num dado
momento e não do rigor lógico do argumento em si. Entre outros aspectos,
isso implica que (1) um argumento que convence as pessoas em um dado
momento histórico pode deixar de fazê-lo em um outro momento (e viceversa) e (2) a capacidade de um argumento de convencer as pessoas é tão
somente relativa ao contexto histórico em que ele é produzido.
Palavras-chave. argumentação; discurso científico; retórica; pragmática
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113
Há uma crença bastante divulgada entre os desavisados de que o progresso da
ciência se dá quando um cientista extraordinariamente dotado consegue propor uma
teoria que explica todos os fenômenos que a teoria até então vigente não explicava e
mais alguns fenômenos que não eram nem sequer vislumbrados pela teoria, agora
superada. Trata-se da concepção linear do progresso da ciência. A despeito de todas as
diferenças entre Popper e Kuhn (que não eram poucas), tanto um como outro aderiam,
ao que parece, a alguma noção de progresso. Hutcheon (1995: 28), no entanto, assinala
que a convergência entre os dois dizia respeito à natureza cumulativa, não
necessariamente das teorias sucessivas, mas dos fatos que elas mobilizariam. Em outras
palavras, ambos acreditavam — ou ao menos não duvidavam — de que houvesse um
aumento de fatos sob a mira de duas teorias sucessivas.
Embora compartilhasse com Popper e Kuhn a idéia de progresso da ciência,
Feyerabend foi contundente ao chamar a atenção para a incapacidade das teorias de
recobrirem todos os fatos. Em suas próprias palavras,
Nenhuma teoria está em concordância com todos os fatos de seu domínio, circunstância nem
sempre
imputável à teoria. Os fatos se prendem a ideologias mais antigas, e um conflito entre
fatos e teorias pode ser evidência do progresso. Esse conflito corresponde, ainda, a um primeiro
passo na tentativa de identificar princípios implícitos em noções observacionais comuns.
(Feyerabend, 1989: 77).
Aos poucos, foi se percebendo também que não há um conjunto permanente de fatos
a serem explicados pelas teorias. Da mesma maneira que nenhuma teoria dá conta de
todos os fatos, não é verdade que diferentes teorias procurem explicar os mesmos fatos.
Os fatos que uma teoria x escolhe explicar nem sempre são os mesmos fatos que outra
teoria y tenta explicar. Afinal, cada teoria tem seus próprios fatos. Isso vem ao encontro
da afirmação de Nelson Goodman (1978: 96-7) de que “os fatos são imbuídos de teoria
(theory-laden); eles são tão imbuídos de teoria quanto gostaríamos que as nossas teorias
fossem imbuídas de fatos”. Por sua vez, Hanson havia proposto que o que vemos e
percebemos não é o que os nossos sentidos captam, mas o que é antes peneirado pelas
informações sensoriais já disponíveis, cujo filtro é constituído pelas nossas crenças e
conhecimentos (HANSON, 1958: 171). Com efeito, Goodman, assim como Hanson,
rompem com qualquer vínculo direto entre uma teoria e os supostos fatos que ela
pretende explicar.
Goodman certamente tinha toda razão a respeito de um detalhe crucial da construção
de teorias. Nenhuma teoria visa a explicar fatos que existem independentes dela.
Podemos dizer que as teorias, por assim dizer, “criam” seus próprios fatos. Ou seja, ao
contrário do que se pensa comumente, quando se passa de uma teoria para outra, o
conjunto de fatos na mira do teórico também sofre um deslocamento em outra direção.
Esse aspecto da ciência foi magistralmente destacado por Arthur Fine (1996).
Na história de Lingüística, isso pode ser facilmente verificado pela chamada
revolução chomskiana. Com a entrada em cena de Chomsky em 1957 (Chomsky, 1957),
mudou-se o horizonte da teoria lingüística. Como resume Vivian Cook (2007: 124):
114
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 113-119, jan.-abr. 2008
Um recado crucial da Syntactic Structures para o futuro foi como o falante individual chega a
apoderar-se das regras gramaticais em primeiro lugar. Os lingüistas estruturalistas acreditavam
nos “procedimentos de descoberta” que pudessem ser aplicados ao input lingüístico a fim de
derivar regras gramaticais. [.....] Chomsky argumentou que tais procedimentos são impossíveis
de serem alcançados; o melhor que os lingüistas poderiam esperar a obter seria um procedimento
para avaliar gramáticas alternativas, não descobri-las.
O que foi realmente notável a partir dessa guinada nas investigações lingüísticas na
época foi que os lingüistas deixaram de se preocupar com dados reais, colhidos
empiricamente. Os dados passaram a ser produzidos a partir da intuição do próprio
investigador. Ou seja, indução cedeu lugar a dedução, o empirismo a favor do
racionalismo. Em seu livro Linguistic Theory in America, Frederick Newmeyer
(1980:36) chega a cobrar do seu correligionário Robert Lees mais ousadia, acusando-o
de uma certa “condescendência” em relação ao uso de indução estatística,
provavelmente resultante do seu envolvimento anterior com o projeto de tradução
mecânica, sediado no MIT. Para Newmeyer, tais tentações mereciam ser
definitivamente banidas da Lingüística, uma vez que, no seu entender, não contribuíam
para uma explanação propriamente dita dos fatos constatados (RAJAGOPALAN, no
prelo).
O fato é que devemos ficar atentos a um aspecto importante nesta mudança de um
paradigma para outro: não é que, com o advento do novo paradigma, um conjunto de
dados muito maior do que no paradigma anterior veio a ser o objeto de análise do
lingüista. Na verdade, o que aconteceu foi que a pergunta preliminar “o que é um dado
lingüístico?” passou a ser respondida de forma diferente. Em outras palavras, muda-se o
paradigma, muda-se também o conjunto de dados a ser “explicado” pela nova teoria.
Esse fato em si cria, com freqüência, uma incomensurabilidade irredutível entre as
diferentes teorias envolvidas.
Ponto crucial é que os argumentos arrolados nos parágrafos anteriores acabam
abalando também a tese inaugural da Lingüística, segundo a qual haveria uma distinção
radical entre o discurso do cientista (no caso, o lingüista) e o do leigo
(RAJAGOPALAN, 2004a, b, 2005, 2006). O argumento a favor de o lingüista manter
uma distância em relação ao leigo tinha como principal sustentáculo a tese de que os
discursos dos dois seriam totalmente incompatíveis. O do primeiro seria a voz da razão
científica; o do segundo estaria cheio de “idéias tão absurdas, preconceitos, miragens,
ficções” nas palavras de ninguém menos que o próprio Saussure, o Pai fundador da
disciplina (SAUSSURE, 1915 [2000]: 14). Assim, o conteúdo da resposta à pergunta
“o que é um dado lingüístico”, além de distinguir de forma irredutível diferentes teorias,
passa a excluir radicalmente a opinião do falante.
Essa questão ganhou ainda mais destaque em um livro recente da autoria do
lingüista Joshua Fishman, intitulado DO NOT Leave Your Language Alone! (Não deixe
sua língua desamparada) (FISHMAN, 2006). Para quem conhece um pouco da história
recente da lingüística, evidentemente trata-se de um trocadilho em cima de um outro
livro — um clássico — chamado Leave Your Language Alone, publicado em 1950 pelo
lingüista Robert Hall Jr. Escrito no auge do Estruturalismo, o livro de Hall pregava a
não-ingerência na língua, sob hipótese alguma. Em nome de um cientificismo de
procedência bastante questionável, Hall pleiteava que o lingüista desistisse de qualquer
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 113-119, jan.-abr. 2008
115
tentatação de interferir nos rumos de uma língua natural. Nas palavras do gramático
Evanildo Bechara (2000) e membro da Academia Brasileira de Letras, o ímpeto por traz
dessa atitude
se baseia na idéia muito divulgada no século XIX, e vigente em alguns lingüistas de hoje,
segundo a qual, sendo a língua um organismo vivo em perpétua mudança, ninguém deve
perturbar essa mudança, mas, ao contrário, deve deixá-la livre em plena liberdade. É o que
insinua, por exemplo, o livro do lingüista norte-americano Robert Hall, em 1950, Leave your
language alone (Deixe sua língua em paz).
Dito de outro modo, a idéia de que ao lingüista cabe apenas observar, descrever e,
na melhor das hipóteses, explicar os fatos da linguagem e jamais interferir neles já não
conta com tantos simpatizantes. O recente interesse crescente em torno da política
lingüística – entendendo-se, como é o caso, que política lingüística implica levar em
conta as opiniões do leigo sobre sua língua – , sintetiza bem o espírito contemporâneo
— haja vista a verdadeira enxurrada de títulos publicados nos últimos anos
(EDWARDS, 2004, WRIGHT, 2004, SHOHAMY, 2006, RICENTO, 2006, CALVET,
2007, JOSEPH, 2007).
O surgimento do campo de estudo que se convencionou chamar de Sociologia do
Conhecimento em oposição ao tradicional Filosofia da Ciência também contribui para a
revisão do papel de argumentação em ciência. Recusando-se a entender a História das
Idéias como algo desvinculado das condições efetivas nas quais surgem tais idéias, os
defensores da Sociologia do Conhecimento (BERGER e LUCKMANN, 1967; BLOOR,
1967; GILBERT e MULKAY, 1984; LATOUR, 1987, LATOUR e WOOLGAR, 1986)
vêm insistindo que a própria realidade é construída sociologicamente, sendo portanto
passível de sofrer transformações substanciais conforme as mudanças que ocorrem no
imaginário científico. Ora, dentro dessa perspectiva, a força de um argumento científico
só pode ser avaliada no interior do próprio arcabouço da ciência e, mesmo nesse caso,
relativa ao paradigma em jogo (RAJAGOPALAN, 1988, 2002a, b). Mais ainda, os
argumentos utilizados por lingüistas em determinados momentos ao longo da história da
disciplina derivam sua força das condições específicas que se obtém naqueles
momentos históricos e não em outros. Daí a pertinência do seguinte comentário de
Itkonen (1996: 471-472) a respeito da sintaxe chomskiana: “Se sua sintaxe tivesse uma
ligação um pouco mais estreita com os dados lingüísticos de verdade, seria uma façanha
monumental”.
Há exemplos de sobra para ilustrar como as condições históricas determinam
argumentos científicos. Pensemos, por exemplo, no famoso argumento utilizado pela
lingüística, desde sua re-inauguração como disciplina científica, digamos, a partir de
Saussure. Trata-se do argumento de que todas as línguas têm o mesmo grau de
complexidade, devendo, portanto, ser consideradas iguais. Podemos dizer que este
argumento, quase uma platitude na lingüística contemporânea, já se transformou numa
espécie de axioma. Pode-se dizer até mesmo que duvidar dele será considerado
politicamente incorreto por muitos. Entretanto, ninguém duvida de que o conhecimento
de diferentes línguas do mundo varia em termos do seu “capital simbólico”, para utilizar
o famoso termo de Bourdieu (1989). O que torna o argumento dos lingüistas crível (ao
menos para seus pares) é que o próprio conceito de língua utilizado é fruto de uma
abstração segundo a qual fatores tais como prestígio (ou desprestígio) de quem fala, ou
116
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diferenças de gênero, etnia, classe social, etc. simplesmente não são levados em conta.
A questão, portanto, não é se uma afirmação do cientista corresponde ou não aos fatos,
ou às percepções. Os fatos da ciência são resultantes de atos performativos praticados
pelos cientistas. E a Lingüística está repleta de exemplos disso. Como diz McCloskey
(1984: 106), “o erro está em pensar que estejamos engajados em atos proposicionais,
que são regidos pela lógica formal, quando na verdade estamos engajados — o tempo
todo — em atos ilocucionários, que são retóricos”.
Em relação a um outro argumento utilizado corriqueiramente, a saber, o de que as
línguas naturais são naturalmente “imunizadas” contra interferência externa (argumento
este que serviu de base para o livro de Robert Hall Jr, conforme vimos anteriormente),
as seguintes palavras de James Milroy (2004: 99-100) são bastante reveladoras:
[.....] muitas das reivindicações “científicas” que os lingüistas defendem não são realmente
científicas. Considere-se, por exemplo, a afirmação de que a língua “pode tomar conta de si
mesma”. Esse fato nunca foi demonstrado por uma análise científica objetiva, e evidências
indiretas parecem favorecer a visão contrária — de que as línguas não conseguem
necessariamente “cuidar de si mesmas”. Por exemplo, há agora toda uma discussão entre os
lingüistas acerca da questão da “morte das línguas”, e o fato de que uma língua pode desaparecer
sugere que ela nem sempre é capaz de tomar conta de si mesma. Além disso, pode-se supor que,
se alguém toma conta de uma língua, esse alguém é o falante e o usuário. Uma língua, sendo
uma entidade abstrata, presumivelmente não pode fazer nada por si mesma: qualquer tipo de
mudança (incluindo empréstimos) requer a interferência dos seus usuários. Conseqüentemente,
são os falantes e usuários que devem fazer algo pela língua. Pessoas leigas normalmente
acreditam que isso é verdadeiro: parece que só os lingüistas supõem o contrário.
Vê-se, portanto, que é a força da retórica que convence o outro, que “constrói” um
argumento como “verdadeiro”. Como dizia Dewey, “as premissas são nada mais que
frutos da análise de uma conclusão às suas justificativas lógicas; não há premissas até
que haja uma conclusão em primeiro lugar” (DEWEY, 1958: 379).
Agradecimento
Sou grato ao CNPq pela concessão da bolsa de produtividade (Nº. de processo:
304557/2006-4). Agradeço a Tatiana Piccardi pela revisão do texto.
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ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 113-119, jan.-abr. 2008
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Relações de sentido entre os diversos usos de MAS: a formação de uma rede
polissêmica motivada metaforicamente
Ana Paula A. Rocha
Universidade Federal de Ouro Preto
apr.letras@ichs.ufop.br
Abstract: This paper focuses on the meaningful relationships that are established
among the diverse uses of MAS in the nowadays Portuguese. The traditional perspective
presents a great difficulty in treating the mentioned conjunction. The model of analysis
that Sweetser (1991) uses to work with the conjunction “but” seems to be efficient in the
description of the diverse uses of MAS and points out that the diverse meanings
attributed to the item are linked by a polisemic net that is formed through metaphorical
motivation.
Keywords: conjunction MAS, polisemy, metaphor
Resumo: O foco deste trabalho são as relações de sentido existentes entre os diversos
usos de MAS no português atual. Os manuais tradicionais apresentam grande
dificuldade no tratamento da referida conjunção. O modelo que Sweetser (1991)
emprega na análise de but (inglês) mostra-se eficiente na descrição de usos de MAS e
indica que os diversos sentidos atribuídos ao item relacionam-se através de uma rede
polissêmica que se forma através de motivação metafórica.
Palavras-chave: conjunção MAS, polissemia, metáfora
1. Apresentação
O objetivo deste texto é apresentar uma reflexão sobre a relação existente entre
os diversos sentidos que a conjunção MAS pode apresentar em português. Uma rápida
consulta às gramáticas do português revela que as adversativas – entre as quais MAS
assume papel prototípico – certamente se constituem como o conjunto de conjunções da
língua mais rico de sentidos.
Neste texto, serão defendidos os seguintes pontos de vista: (i) o modelo proposto
por Sweetser (1991) para descrição do item but (inglês) aplica-se à descrição de MAS e
permite compreender por que, apesar da gama tão variada de sentidos que o item pode
apresentar, mantém-se a gramaticalidade das sentenças em que ocorre; (ii) as relações
de sentido mencionadas formam uma rede polissêmica motivada metaforicamente.
2. Sobre os diversos sentidos da conjunção MAS em português
As gramáticas tradicionais e os manuais de descrição do português mostram
discordância tanto com relação aos itens que devam ser considerados conjunções
adversativas quanto com relação aos sentidos que os mesmos podem apresentar.
Com relação a MAS, há, porém, consenso quanto ao fato de ser uma conjunção
adversativa.. O item ilustra, segundo todos os manuais consultados na execução deste
trabalho, o conjunto das adversativas, sendo mesmo, em alguns casos, o único elemento
citado. O fato de MAS poder ser considerado a adversativa prototípica do português
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deve-se a várias razões. Entre todos os demais elementos que podem constar entre as
adversativas (porém, contudo, todavia, entretanto e no entanto), MAS é notoriamente o
mais utilizado e o único que ocorre categoricamente em fronteira sentencial, posição
típica das conjunções; os demais podem ocorrer em posição diversa da de fronteira.
Embora haja consenso com relação à classificação de MAS como conjunção
adversativa, os sentidos que lhe são atribuídos variam vastamente. A seguir serão
citados os sentidos que alguns autores atribuem ou a MAS ou às adversativas em geral.
Neste último caso, entenda-se que MAS está contemplado.
Oiticica (1940: 61), sobre as adversativas, afirma que elas “justapõem
pensamentos contrários”.
Dias (1933: 256-57) atribui a MAS as seguintes funções: (i) “serve de ordinário
de designar o que contrapõe ao que se disse precedentemente ou o restringe”; (ii)
“quando se contrapõe a um membro negativo, (...) reforça-se com o advérbio sim”; (iii)
“pode omitir-se, quando a antithese já se acha suficientemente demonstrada por outro
modo”. Como adversativas, ainda considera “porém” – mais frouxo do que mas –,
“ora” – que introduziria um pensamento diverso somente do que se enunciou
precedentemente” –, “senão” – que, “na qualidade de adversativa, só tem lugar como
synonyma de mas, quando a um membro negativo se contrapõe um afirmativo” –, e
“pois” – que, como adversativa, “emprega-se nas réplicas, se se quer representar, como
cousa de estranhar o serem ao mesmo tempo verdadeiros os enunciados que se
contrapõem”.
Melo (1970: 175) entende que as adversativas exprimem contraste ou
compensação.
Para Garcia (1992: 18), as adversativas marcam oposição, “às vezes com um
matiz semântico de restrição ou ressalva”.
Conforme Rocha Lima (1994: 185), as adversativas “relacionam pensamentos
contrastantes”.
Cunha & Cintra (1985: 566), por sua vez, afirmam que as adversativas “ligam
dois termos ou duas orações de igual função, acrescentando-lhes, porém, uma idéia de
contraste”.
Já Sacconi (1990: 267-68) entende que o sentido básico das adversativas seja o
de ressalva e que esse se desdobre em diversos outros sentidos: as adversativas
“exprimem essencialmente ressalva de pensamentos, ressalva essa que pode indicar
idéia de de oposição, retificação, restrição, compensação, advertência ou contraste”.
Também Cegalla (1994: 267) apresenta vários sentidos para as adversativas que,
segundo o autor, “exprimem oposição, contraste, ressalva, compensação”.
Luft (2002: 189) afirma que as adversativas “denotam contraste, compensação”.
Bechara (1999: 321) considera que as adversativas “enlaçam unidades
apontando uma oposição entre elas”. Destaca que, “ao contrário das aditivas e
alternativas, que podem enlaçar duas ou mais unidades, as adversativas se restringem a
duas”. Acrescenta ainda que MAS acentua a oposição.
Neves (2000: 755-770), ao tratar das “construções adversativas”, enfoca
especificamente “a coordenação com mas”. Da mesma forma que faz com conjunções
de outros tipos, a autora analisa mas sob três pontos: (i) a natureza da relação, (ii) o
modo da construção e (iii) o valor semântico. Sobre (i), a autora afirma que o item
“marca uma relação de desigualdade entre os segmentos coordenados, e, por essa
característica, não há recursividade na construção com MAS, que fica, pois, restrita a
dois segmentos”. Sobre (ii), Neves afirma que os segmentos coordenados por mas
podem ser sintagmas, orações e enunciados. E sobre (iii), a autora afirma:
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nas relações de desigualdade há aspectos especiais marcados pelo uso do MAS. A desigualdade
é utilizada para a organização da informação e para a estruturação da argumentação. Isso implica
a manutenção (em graus diversos) de um dos membros coordenados (em geral, o primeiro) e
(também em graus diversos) a sua negação (Neves, 2000: 757).
As poucas referências bibliográficas consultadas são suficientes para mostrar o
quanto é problemática a descrição de MAS. Sobre a divergência com relação aos
sentidos do item, podem ser feitas várias observações, a começar com relação à
imprecisão dos termos utilizados.
Oiticica (1940), quando afirma que as adversativas contrapõem pensamentos,
indiretamente afirma que a linguagem representa o pensamento, o que, para uma análise
mais acurada, traz à tona questões epistemológicas sérias.
Dias (1933), ao afirmar que mas serve para designar o que contrapõe ao que se
disse antes, está atribuindo a mas uma função típica dos nomes; é estranho atribuir a
conjunções funções designativas. Afirma também que porém seria “mais frouxo” do
que mas, sem especificar o que se entende por palavra de sentido tão vago quanto
“frouxo”. Da mesma forma, Almeida (1952) não explicita o que significa exatamente
mas ter mais força do que porém.
Garcia (1967), referindo-se a um matiz semântico de restrição ou de ressalva,
parece estar afirmando que tal matiz se encontraria no próprio sentido de oposição e não
que seria um dos sentidos possíveis das adversativas, paralelamente ao de oposição.
Essa é uma questão que se impõe: as adversativas podem apresentar sentidos ambíguos
ou os sentidos que lhe são possíveis se distinguem nitidamente?
Cunha & Cintra (1985), quando afirmam que as adversativas ligam dois termos
de igual função, parece estarem se referindo a função sintática; em seguida, fazem uma
observação de cunho semântico: acrescenta-lhes uma idéia de contraste. A escolha
lexical por “acrescentar” pode deixar subentendido que o contraste não seria expresso
senão pela conjunção.
Já para Rocha Lima (1994), as adversativas relacionam pensamentos
contrastantes. Por mais impreciso que seja, nesse caso, o termo pensamento, o autor
atribui às conjunções a função de relacioná-los, deixando claro que os pensamentos já
são em si contrastantes. A seguir, ao destacar mas como a adversativa por excelência,
deixa subentendido que as referidas características não se encontram em outras palavras
como porém, todavia, contudo, entretanto, no entanto, as quais, segundo o autor,
acentuam uma espécie de concessão atenuada. Pelo uso de “atenuada”, vê-se que
também Rocha Lima (1994), assim como Almeida, entende que mas tem sentido mais
forte do que as outras conjunções. Atente-se para o termo “espécie”, que indica quanto
são imprecisos os apontamentos feitos.
Sacconi (1990) afirma que os sentidos das adversativas têm em comum a
característica de serem ressalva de pensamentos, o que é discutível, mas não deixa de
ser uma tentativa de identificar um traço comum aos sentidos possíveis.
Cegalla (1994), assim como Sacconi (1990), afirma que as adversativas
exprimem alguns sentidos aparentemente estranhos. O uso de exprimir não deixa claro
se a construção de sentido é função exclusiva da conjunção ou se é algo que já se
encontrava entre as partes ligadas. O mesmo se pode dizer de denotar, termo usado por
Luft (2002): as adversativas “denotam contraste, compensação”.
Bechara (1999), por sua vez, ao afirmar que as adversativas “enlaçam unidades
apontando uma oposição entre elas”, deixa subentendido, pelo uso de apontar, que a
oposição já existia entre unidades enlaçadas. O mesmo se depreende da afirmativa de
que mas e porém acentuam a oposição. Veja-se também que Bechara se refere a
unidades enlaçadas, não restringindo a natureza de tais unidades a orações ou termos.
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Neves (2000) distingue três pontos concernentes às adversativas (usados também
para a caracterização de todas as conjunções estudadas na obra) que são, de fato, de
naturezas diversas e foram, pelos trabalhos mencionados anteriormente, ou
negligenciados ou tratados como se fizessem parte de um bloco de questões da mesma
natureza. Quando trata do modo de construção, afirma que as unidades coordenadas por
mas – o elemento que a autora usa para representar as adversativas – podem ser de
diversas naturezas, o que não foi contemplado pelos trabalhos mencionados, com
exceção de Bechara (1999).
Além disso, Neves (2000) aponta a desigualdade como traço fundamental tanto
das relações em que mas se encontra quanto do valor semântico do elemento, o que
consiste em uma proposta de análise bem mais econômica do que a que se viu nos
demais trabalhos referidos.
Nesta seção, viu-se o quanto é ainda problemático o tratamento de MAS. Na
próxima seção, será apresentado o modelo de Sweetser (1991), que posteriormente será
aplicado a alguns exemplos dados pelos próprios autores citados na presente seção.
3. O modelo de Sweetser (1991) para but
Sweetser (1991) propõe um modelo de análise de conjunções segundo o qual as
conjunções são elementos que podem atuar em três domínios: o do conteúdo, o
epistêmico e o conversacional. A respeito de but, a autora entende que o elemento possa
ocorrer somente nos dois últimos domínios, o que se explicará adiante.
Cabe esclarecer os pontos que sustentam o ponto de vista da autora. Sweetser
defende que uma forma lingüística assume novos significados graças a uma projeção
corriqueira existente entre os três domínios da linguagem referidos, sendo que o do
conteúdo refere-se ao mundo físico; o epistêmico ao mundo mental; o conversacional
aos atos de fala.
As mudanças ocorridas com verbos perceptivos do inglês descritas pela autora
são bastante ilustrativas do que ela chama de projeção entre domínios na constituição de
novos significados lingüísticos. O verbo hear (ouvir, escutar), por exemplo, pode ser
usado tanto no domínio do conteúdo (“não escutei a campainha”) quanto no domínio
epistêmico (“não escutei minha mãe e me arrependo”), em que assume metaforicamente
o sentido de obedecer. Aqui se teria uma metáfora de percepção operada no domínio
mental. A manipulação física de um som que é retido oferece motivação semântica para
que o verbo seja usado no sentido em que o que é retido são dados. O sentido básico de
“retenção de estímulos exteriores” mantém-se, todavia.
Analisando questões referentes a conjunções, coordenação e subordinação,
Sweetser discute, entre outros tópicos, os itens and, or e but, os mesmos que já haviam
sido tratados por Lakoff (1971). Também para as conjunções, Sweetser propõe a
existência de três domínios, entre os quais se manifesta uma projeção em sentido
unidirecional, via operações metafóricas, o que permite a (re)elaboração constante de
significados. É importante observar que o domínio do conteúdo remete ao mundo real
não em um sentido representacionista, segundo o qual o mundo real se espelharia nas
expressões lingüísticas. O domínio do conteúdo é aquele a partir do qual, em função de
suas experiências físicas, como as sensório-motoras, o falante elabora novos
significados, graças à capacidade imaginativa de sua mente.
No caso de and, Sweetser sugere que há, entre os três domínios citados, a
manifestação de um sentido básico, que a partir de um domínio fonte se projeta aos
demais: o de se colocar coisas lado-a-lado em um processo de adição. Veja-se:
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(1) John eats apples and pears. (John come maçãs e pêras.)
Nesse caso, a adição de coisas é simples e não obedece a nenhuma ordem nem
de temporalidade nem de causalidade, tanto que os elementos “somados” poderiam ter a
ordem invertida sem danos para a sentença como um todo. A esse tipo de caso em que
se pode inverter a ordem dos elementos ou cláusulas, Sweetser chama simétrico,
terminologia adotada em outros trabalhos, como no de Lakoff (1971).
Já no exemplo seguinte, a inversão não seria cabível sob pena de comprometer a
própria gramaticalidade da sentença. A esse tipo de caso se chama assimétrico:
(2) John took off shoes and jumped in the pool. (John tirou os sapatos e pulou
na piscina.)
Sweetser entende que a assimetria vista acima deve-se à iconicidade da
linguagem, que faz com que a ordem temporal de sucessão que os eventos relatados
seguem no mundo real se reproduza lingüisticamente. O uso narrativo de and comprova
a interação existente entre a linearidade inerente ao uso lingüístico e o conceito geral de
“pôr as coisas lado-a-lado”.
O exemplo seguinte ilustraria, por sua vez, uma linearidade decorrente não do
mundo real, mas sim de um processo lógico, sendo, portanto, um exemplo de and no
domínio epistêmico:
(3) Why don`t you want me to take basketweaving again this quarter?
Answer: Well, Mary got anMA in basketweaving, and she joined a religious cult.
(...so you might go the same way if you take basketweaving). (Por que você não
quer que eu pegue basketweaving de novo esse bimestre? Resposta: Bem, Mary
tem um MA em basketweaving e ela se juntou a um culto religioso. (... assim
você pode ir para o mesmo caminho se você pegar basketweaving.))
Em (3), a ordem das cláusulas não reproduz iconicamente uma ordem de eventos
sucedidos no mundo real, e sim uma ordem de premissas que levam a uma conclusão.
Já o seguinte exemplo mostra and empregado no domínio conversacional:
(4) The Vietnam War was morally wrong, and I´ll gladly discuss the reasons
why I think so. (A Guerra do Vietnã foi moralmente errada e eu terei prazer em
explicar as razões pelas quais penso isso.)
Também para or Sweetser encontra ocorrências nos três domínios citados. Já
para but a autora tece a seguinte objeção: but conecta segmentos que contrastam entre si
ou mesmo “colidem” (clash é o termo usado), mas esse contraste e essa colisão só são
perceptíveis nos níveis espitêmico e conversacional. Um exemplo dado pela autora para
corroborar sua proposta é:
(5) John keeps six boxes of pancake mix on hand, but he never eats pancakes.
(John mantém seis caixas de mistura para panquecas estocadas, mas nunca
come panquecas)
O choque pode dar-se também entre duas conclusões implícitas, suscitadas por
duas premissas conectadas por but, como em:
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(6)“Do you know if Mary will be in by nine this evening?
Answer: Well, she`s nearly always in by then, but (I know) she has a lot of work
to do at the library, so I`m not sure.”
(Você sabe se Mary vai estar em casa às nove esta noite? Resposta: Bem, ela
sempre chega por volta das nove, mas (eu sei) ela tem um monte de trabalho a
fazer na biblioteca, então não tenho certeza.)
O argumento de Sweetser é que as relações de sentido sinalizadas por but nos
dois últimos exemplos não se processam no domínio do conteúdo porque não há nada
no mundo real que impeça a concomitância do fato de John estocar panquecas e o fato
de ele nunca comê-las. Da mesma forma, no mundo real, é possível que Mary sempre
chegue a casa por volta das nove e que em um dia determinado tenha muito trabalho a
fazer na biblioteca. A colisão se dá entre conclusões processadas no nível epistêmico: se
Mary chega a casa sempre até às nove, é possível que chegue hoje também; se Mary
tem muito trabalho a fazer, é possível que não chegue a casa no horário de sempre.
Para Sweetser, mesmo que se argumente ser possível depreender as relações
acima no domínio do conteúdo, é impossível negar seu processamento no domínio
epistêmico. Tipicamente, no entanto, relações que ocorrem no domínio do conteúdo não
ocorrem ao mesmo tempo no domínio epistêmico.
Lakoff (1971) afirma que a gramaticalidade de períodos em que duas sentenças
estejam ligadas por but, se não se construir superficialmente (o que, para Sweetser, não
ocorre), dependerá, então, de uma combinação de pressuposições e deduções que uma
delas ou ambas desencadeiam.
Além disso, Lakoff descreve uma “hierarquia de naturalidade” de
pressuposições e deduções: algumas mais universais (como se vê em “John é alto, mas
não é bom no basquete”); outras menos (como em “John é Republicano, mas você pode
confiar em Bill”); outras idiossincráticas (como em “John detesta sorvete, mas eu
também”). O destaque que Lakoff dá às informações implícitas talvez seja a maior
contribuição de seu trabalho. Um dos exemplos que analisa é:
(7) “John is rich but dumb” (John é rico mas estúpido)
O exemplo só pode ser avaliado, segundo a autora, dentro de algum contexto.
Por exemplo, uma mãe que queira dissuadir a filha de casar-se com João poderia dizer
que ele é rico (uma boa qualidade), mas estúpido (um defeito), não sendo, portanto, um
bom partido. Aqui se teria um caso de oposição semântica. Por outro lado, alguém que
julgue que pessoas ricas não são estúpidas poderia ter empregado but justamente por
haver aí, então, uma quebra de expectativa.
Já Sweetser, embora também reivindique um papel crucial às informações e
conclusões pressupostas e implícitas na análise da gramaticalidade de sentenças com
but, diverge de Lakoff com relação à existência de oposição semântica propriamente
dita nessas estruturas. A ocorrência vista em (7), por exemplo, Sweetser entende como
sendo possível somente no domínio epistêmico ou no conversacional. Enquanto Lakoff
atribui à frase uma quebra de expectativa, Sweetser lhe atribui uma quebra de
expectativa no nível epistêmico. Já a leitura que Lakoff atribui a uma oposição
semântica, Sweetser entende como se processando no domínio conversacional, porque a
mãe hipotética poderia estar, em um ato de fala, dizendo à filha: “eu sugiro que você
não se case com John”, o que anularia a possibilidade de uma leitura desse exemplo no
domínio do conteúdo, até porque, para Sweetser, no mundo real, riqueza e estupidez não
necessariamente se opõem.
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Como se vê, o modelo de Sweetser mostra-se bastante eficiente no tratamento de
but, principalmente por considerar que, na estrutura adversativa, o “choque” não se dá
entre duas proposições lingüisticamente expressas, e sim entre informações suscitadas
por tais proposições. A estrutura adversativa é, na verdade, um tipo de expressão
lingüística altamente sofisticado do ponto de vista cognitivo, o que acarreta dificuldade
à descrição do lingüista. Ao falante, porém, a dificuldade não se impõe, graças à
operações cognitivas que ele realizam no nível epistêmico, conforme defende Sweetser.
4. Análise de ocorrências de MAS segundo a proposta de Sweetser para but
A seguir, serão analisadas algumas ocorrências de MAS retiradas aleatoriamente
das referências bibliográficas utilizadas na seção 2.
Rocha Lima (1994: 185), que, como se viu, afirma que as adversativas
“relacionam pensamentos contrastantes”, exemplifica MAS com a seguinte frase:
(8) Gosto de navio, mas prefiro avião.
Em (8), o que o autor chama de “pensamentos” são, na verdade, declarações,
proposições: “gosto de navio” e “prefiro avião”. Seguindo o raciocínio empreendido por
Sweetser para estudo de but, vê-se que não há nada que impeça alguém de gostar de
navio e preferir avião. O “choque”, a adversidade não se encontra entre as duas
proposições. A frase só poderia ser devidamente analisada se encaixada em um contexto
maior. Trata-se de um tipo de ocorrência muito comum de MAS: um tipo em que se
estabelece uma comparação entre dois objetos, no caso navio e avião. O que se deve
entender, porém, é que os falantes não comparam elementos aleatoriamente, sem
propósitos. A comparação só faz sentido se o contexto a comportar. Imagine-se que um
agente de viagens perguntasse a um cliente suas preferências com relação ao meio de
transporte utilizado em suas viagens. Diante de uma resposta como (8), o agente
entenderia que deveria procurar opções de viagem em avião, e não navio. Assim, (8)
estaria ocorrendo no domínio conversacional. O contraste não se processaria entre
pensamentos e sim entre conclusões a que o agente poderia chegar: se o cliente afirma
gostar de navio, ele pode concluir que deve procurar opções de viagem em navio; se
afirma que prefere avião, o agente anula a primeira conclusão e privilegia a de que deve
procurar opções via avião. Se se entende conclusões como pensamentos, então se
poderia dizer que há pensamentos contrastantes.
Sacconi (1990: 267-68) enumera diversos sentidos para as adversativas. No
exemplo (9), MAS exprime, segundo o autor, oposição. Já o exemplo (10) teria, para o
autor, o sentido de restrição. O exemplo (10) consta na fonte com o item porém. Como a
paráfrase com MAS não adulterará o sentido global da frase, aqui ela será citada com
MAS. Veja-se:
(9) Luís trabalha muito, mas ganha pouco.
(10) Foi ao baile, mas dançou pouco.
Não parece muito clara a distinção que o autor faz entre oposição e restrição. Na
verdade, o que se vê, em ambos os casos, são exemplos de ocorrências nas quais a
adversidade, seja ela manifesta em forma de oposição ou de restrição, dá-se não entre as
proposições ligadas pela conjunção, e sim entre uma das proposições e uma conclusão
pressuposta e não declarada, suscitada pela outra proposição. Nada impede, no mundo,
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que alguém trabalhe muito e ganhe pouco. O que ocorre é que, se se sabe que alguém
trabalha muito, cria-se a expectativa de que não ganhe pouco. Essa expectativa entra em
choque com a afirmativa “ganha pouco”. Trata-se de uma relação descritível somente
no domínio epistêmico. Da mesma forma, não há impedimentos para se ir a um baile e
se dançar pouco. Há, porém, a expectativa de que alguém que vá a um baile dance
muito.
Também Cegalla (1994: 267), como se viu, atribui uma vasta gama de sentidos
às adversativas. Ao contrário de Sacconi, porém, não explicita a qual sentido se ligaria
cada um dos exemplos que dá. Observe-se um de seus exemplos:
(11) Querem ter dinheiro, mas não trabalham.
As afirmativas de que pessoas “querem dinheiro” e de que “não trabalham”
mostram-se contrastantes, para fins descritivos, se se leva em conta que os falantes, por
razões óbvias, têm a expectativa de que trabalhar seja condição para se ter dinheiro. Se
essa condição pressuposta não se cumpre, cria-se então um choque com a afirmativa
anterior. A gramaticalidade de (11) explica-se, então, graças a relações que se
processam no domínio epistêmico. Caso a frase fosse dita por um pai a seus filhos,
poderia ainda ser compreendida como uma ordem para que os filhos trabalhem, ou seja,
como um ato-de-fala, e então estaria se processando no domínio conversacional.
O mesmo raciocínio pode ser empreendido para análise de (12), que foi citado
por Cunha & Cintra (1985: 566):
(12) Apetece cantar, mas ninguém canta.
A concomitância entre o fato de apetecer cantar e o de ninguém cantar pode
gerar o sentido de contraste quando, num dado contexto, observa-se que ninguém canta
e que isso contrasta com a expectativa contrária, gerada pela afirmação anterior de que
cantar apetece.
Mesmo nos exemplos comentados, que são citados nas gramáticas tradicionais
de que foram retirados de forma descontextualizada, só é possível explicar-lhes a
gramaticalidade se se pensa em hipotéticos contextos em que poderiam se encontrar.
Todos os contextos imagináveis acarretam a existência de idéias pressupostas, não
declaradas pelo significante, mas levadas em conta tacitamente pelos falantes.
5. Considerações fnais
Neste trabalho, viu-se o quanto é confusa, senão caótica, a descrição
tradicionalmente feita do item MAS em português. Embora haja consenso com relação à
classificação do item como conjunção adversativa, os sentidos que lhe são atribuídos
são muitos e divergentes. Não há também preocupação em se verificar se tais sentidos
se formam de maneira independente ou se se relacionam entre si, constituindo uma rede
polissêmica.
A proposta de Sweetser (1991) para análise de but mostrou-se eficiente na
aplicação da estrutura adversativa com MAS, porque (i) leva em conta que o “choque”
adversativo não se dá entre segmentos da sentença, e sim entre um desses segmentos e
uma informação pressuposta suscitada pelo outro segmento ou entre informações
pressupostas suscitadas por ambos os segmentos; (ii) localiza essas informações
pressupostas em domínios da linguagem bem definidos teoricamente – o epistêmico ou
o conversacional –, explicitando a complexa elaboração cognitiva que subjaz aos usos
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da estrutura adversativa; (iii) mostra que, por mais se identifiquem nuances de sentido
entre os diversos usos da estrutura adversativa, a gramaticalidade de todos explica-se
em função de todos ocorrerem nos mesmos domínios da linguagem.
Sobre o ponto (iii), vejam-se, por exemplo, os inúmeros sentidos enumerados
por Sacconi (1990) e Cegalla (1994) para as adversativas em geral, o que só expande o
quadro já extenso de sentidos atribuídos a elas pelos autores diversos. As obras referidas
não se preocupam em verificar se todos esses sentidos relacionam-se semanticamente.
Seria, contudo, difícil acreditar que os falantes usassem e compreendessem com
propriedade todos esses sentidos se não houvesse uma base comum entre eles. O
modelo de análise proposto por Sweetser (1991) mostra que o que há em comum entre
esses sentidos é o fato de todos suscitarem informações não expressas lingüisticamente.
Além disso, o modelo baseia-se na idéia de que há uma projeção metafórica
entre os três domínios da linguagem – o do conteúdo, o epistêmico e o conversacional.
Identificar essa projeção implica identificar relações entre os sentidos que se constituem
nesses domínios. Em outras palavras, se MAS assume sentidos aparentemente tão
diversos, isso se dá em função da capacidade do falante de executar projeções
metafóricas entre domínios da linguagem. Essas projeções, por sua vez, só se tornam
possíveis graças à capacidade do falante de criar sentidos mais abstratos a partir de
sentidos mais concretos, levando todos esses sentidos a formarem uma rede
polissêmica.
Buscar compreender quais dos muitos sentidos atribuídos a MAS são mais
abstratos e quais se relacionam com quais pode ser uma tarefa ainda por se cumprir.
Entender, porém, que todos esses sentidos ocorrem em dois domínios da linguagem é
fundamental para se entender a motivação pela qual se criam novos sentidos e para se
verificar que a extensão dos sentidos atribuídos a MAS não se dá de forma aleatória, e
sim motivada.
Neves (2000) defende, conforme se viu, que o valor semântico básico de MAS é
a diferença. Em vez de procurar as nuances semânticas do item, a autora procura
identificar o traço comum que liga tais nuances, o que teoricamente é vantajoso.
Sueetser (1991), por sua vez, mostra que esse traço de diferença não se encontras entre
os dois segmentos entre os quais a conjunção se localiza.
Por último, note-se que, se as informações postas em “choque” não se encontram
expressas, está claro que o sentido adversativo não é expresso pela conjunção. As
adversativas talvez sejam o grupo de conjunções que mais comprove a tese de que o
sentido textual realiza-se de forma global e que, no caso, as conjunções são tão somente
um guia, um sinalizador, um significante que suscita um significado que se encontra
muito além da letra propriamente dita.
6. Referências bibliográficas
BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna,
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ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 131-140, jan.-abr. 2008
O uso de marcadores argumentativos em produções textuais
de alunos do Ensino Médio
Maria Elisaudia de Almeida Pereira 1
1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Lingüística da Universidade Federal do
Ceará – UFC
elisaudia_almeida@yahoo.com.br
Abstract. This essay, the result of a wide research whose focus is the
appropriation of the opinion essay line and argumentative markers, examine
the use of those linguistics aspects and the establishment of discursive
relations for building an argumentative strategy in discursive texts and in
opinion essays by third-year students of high school, participants and nonparticipants of activities of a didactics sequence.
Keywords. Argumentative markers; discursive relations; written texts.
Resumo. O presente artigo, fruto de uma pesquisa mais ampla cujo enfoque é
a apropriação do gênero artigo de opinião e dos marcadores argumentativos,
discute o uso dessas marcas lingüísticas e o estabelecimento das relações
discursivas na construção da estratégia argumentativa em textos dissertativos
e em artigos de opinião por alunos do 3º. ano do Ensino Médio, participantes
e não-participantes das atividades de uma seqüência didática.
Palavras-chave. Marcadores argumentativos; relações discursivas; produção
escrita.
Introdução
Os estudos acerca da argumentação remontam à Antiguidade Clássica e têm
seguido diferentes perspectivas teóricas: Retórica, Lógica, Semântica, Pragmática,
Lingüística Cognitiva, dentre outras. Nossa análise fundamenta-se na Semântica
Argumentativa e na Lingüística Textual, respectivamente, nos estudos de Ducrot (1989)
e Koch (2004a, 2004b) para o enfoque teórico da argumentação e nos de Soares (1999)
e de Schneuwly e Dolz (2004) para a intervenção realizada.
Ao concebermos a língua como processo de interação, propomos uma
abordagem dos marcadores argumentativos, ressaltando-lhes não só a função gramatical
(conjunções, advérbios e/ou palavras denotativas), mas também a função semânticoargumentativa. Com esse intuito e para procedermos à análise do uso dos marcadores
argumentativos e das relações discursivas estabelecidas em produções textuais de alunos
do Ensino Médio, desenvolvemos uma experiência com duas turmas de 3º. ano em uma
escola estadual de Ensino Fundamental e Médio em Fortaleza.
Iniciamos a discussão destacando as contribuições teóricas, prosseguimos com a
descrição metodológica, a análise do corpus e finalizamos com algumas considerações.
Contribuições Teóricas
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 141-149, jan.-abr. 2008
141
Ducrot constata que no valor semântico profundo (significação) de certas
palavras, expressões, ou mesmo de enunciados há indicações de valores que não são de
natureza informativa, porém argumentativa (ANSCOMBRE,1995, p. 16-21). O autor ao
estabelecer um paralelo entre enunciados, fundamentando-se em valores semânticos
(informativos e/ou argumentativos), demonstra a coexistência desses valores na
significação da frase. Assim, pretende que a língua não seja reduzida a um valor
informativo, mas essencialmente argumentativo. Desse ponto de vista, os estudos
ducrotianos propõem que os conceitos fundamentais da argumentação sejam
reconstruídos lingüisticamente e defendem a tese de que a argumentação é um processo
imanente à língua. Tal pressuposto orienta nossa análise, levando-nos a crer que haverá
marcas lingüísticas de argumentação (marcadores argumentativos) em todos os textos
analisados.
Ao verificarmos a utilização dos marcadores argumentativos na constituição dos
argumentos no nível dos enunciados, recorremos à concepção de argumentação de
Ducrot: “um enunciado argumentativo apresenta sua enunciação como levando a
admitir tal ou tal conclusão” (DUCROT, 1987, p. 174).
Na teoria ducrotiana, os conceitos de enunciado e frase são cuidadosamente
diferenciados. O enunciado é um segmento de discurso, empírico, observável e não se
repete. Caracteriza-se por apresentar um lugar e uma data, um produtor e um ou vários
ouvintes e um valor semântico de “sentido”. Nas palavras de Ducrot (1989, p. 13): “Se
digo duas vezes seguidas uma coisa que é habitualmente transcrita ‘O tempo está bom’,
produzo dois enunciados diferentes, e isto somente porque o momento de sua
enunciação é diferente”, ou seja, o enunciado é produzido em uma dada situação
comunicativa e esta não pode ser repetida, não podemos estar mais de uma vez numa
mesma data, num mesmo lugar e com as mesmas pessoas de um ato comunicativo. Já a
frase é uma estrutura abstrata, algo totalmente distinto de uma seqüência de palavras
escritas e seu valor semântico é de significação. Ducrot (1989) atribui a cada uma das
frases constitutivas da língua uma significação suscetível de explicar o sentido de seus
enunciados. Consideramos esses conceitos por avaliarmos em um primeiro plano a
utilização dos marcadores argumentativos na construção dos argumentos no nível do
enunciado.
Em nossa pesquisa, concebemos os marcadores argumentativos como
operadores (só, somente, apenas, até, até mesmo etc) e conectores (mas, embora, pois,
ou etc). Desse modo, fazemos um recorte do conceito de operador argumentativo na
perspectiva da Semântica Argumentativa, conforme os estudos de Ducrot e seus
colaboradores (1989, 1995), em que o termo é composto por: operador argumentativo,
em sentido estrito, entendido como partícula da língua que introduz a argumentatividade
na estrutura semântica das frases; conector argumentativo, definido como elemento que
articula duas porções textuais e dá-lhes orientação argumentativa; e modificadores
realizante e derrealizante (adjetivos e advérbios), compreendidos como as palavras cujo
papel é modificar os predicados de uma língua, indicando o topos e a força com que são
aplicados em um determinado contexto.
De acordo com Ducrot (1989), o funcionamento dos marcadores argumentativos
ocorre com base nos conceitos de: classe argumentativa, formada por um conjunto de
enunciados que podem equiparar-se para servir de argumento a uma mesma conclusão
r, ou seja, todos os argumentos reunidos apresentam o mesmo peso; e escala
142
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 141-149, jan.-abr. 2008
argumentativa, constituída quando dois ou mais enunciados de uma classe
argumentativa se apresentam em gradação, aumentando a força no sentido de uma
mesma conclusão.
Os marcadores argumentativos, na medida em que funcionam como elementos
responsáveis pelo direcionamento argumentativo pretendido pelo locutor, constituem
relações discursivas ou argumentativas que delineiam a estratégia argumentativa
escolhida por esse locutor. Com base nos estudos de Koch (1992, 2004a; 2004b)
destacamos as seguintes relações discursivas ou argumentativas: i) conjunção em que
os enunciados são agrupados e direcionados a uma mesma conclusão por meio de
conectores como e, também, não só...mas também, tanto...como, além de, além disso,
ainda, nem (= e não); ii) disjunção argumentativa, estabelecida por argumentos
alternativos, em enunciados distintos, introduzidos por ou, ou então, quer...quer,
seja...seja etc, levando a conclusões diferentes ou opostas; iii) contrajunção, expressa
por marcadores que direcionam a conclusões contrárias: mas (porém, contudo todavia
etc), embora; iv) explicação ou justificativa, relativa ao enunciado anterior, introduzida
por: porque, que, já que, pois etc; v) comparação, manifestada a partir das relações de
inferioridade, superioridade ou igualdade, geralmente, com o uso de: (tanto, tal)...como
(quanto), mais...(do) que, menos (do) que ; vi) especificação/exemplificação,
estabelecida a partir de um enunciado que particulariza ou esclarece uma declaração de
ordem mais geral apresentada, introduzida por: por exemplo, como; vii)
correção/redefinição, um enunciado corrige, ou redefine o conteúdo do primeiro,
atenuando ou reforçando, expressa por: isto é, se, ou, ou melhor, de fato, pelo contrário,
quer dizer; viii) gradação, há o estabelecimento de uma hierarquia dos enunciados
numa escala orientada no sentido da conclusão através de operadores: até, mesmo, até
mesmo, inclusive, ao menos, pelo menos, no mínimo; ix) restrição, manifestada pelo uso
de operadores como: um pouco, pouco, quase, apenas, só, somente, os quais direcionam
à negação ou à exclusão.
Como já referido anteriormente, baseamo-nos no pressuposto da língua como
processo de interação. Dessa forma, inserimo-nos em perspectivas dialógicas e optamos
por uma concepção de escrita que aponta para a formação do sujeito/aprendiz como
elaborador e criador do seu conhecimento.
Soares (1999, p. 4) sugere que sejam criadas situações em sala de aula, nas quais
os alunos reflitam os textos que lêem, escrevam, falem ou ouçam, percebendo, numa
abordagem contextualizada, a gramática da língua, as características de determinados
gêneros e tipos textuais, bem como o efeito das condições de produção do discurso na
construção do texto e de seu sentido.
Nessa perspectiva, no contexto escolar, adotamos para a apropriação do gênero
artigo de opinião e dos marcadores argumentativos uma seqüência didática,
fundamentando-nos em Schneuwly e Dolz (2004). De acordo com os autores, a
seqüência didática é uma unidade de trabalho escolar, composta por um conjunto de
atividades programadas para serem desenvolvidas de forma seqüenciada, em um
número limitado e preciso de objetivos, discutindo-se aspectos relativos à produção de
textos que podem ser sistematizados em um gênero específico. Os teóricos reforçam o
papel dessa metodologia ao afirmarem que uma
seqüência didática tem, precisamente, a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um
gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa
dada situação de comunicação. O trabalho escolar será realizado, evidentemente, sobre gêneros
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 141-149, jan.-abr. 2008
143
que o aluno não domina ou o faz de maneira insuficiente; [...]. (SCHNEUWLY E DOLZ, 2004,
p. 97).
A estrutura básica de uma seqüência didática divide-se em três etapas interrelacionadas, realizadas num espaço de tempo relativamente curto e adaptadas ao ritmo
das possibilidades de aprendizagem do aluno. Na primeira etapa, solicita-se a produção
de um texto, objetivando delimitar as capacidades e as dificuldades do aluno em relação
ao gênero escolhido; na segunda promovem-se oficinas, nas quais diferentes atividades
e exercícios são desenvolvidos com a finalidade de favorecer o (re)conhecimento das
características fundamentais do gênero em foco e na última etapa, propõe-se a produção
final, na qual o aluno avalia e revisa seu texto, ao mesmo tempo em que retoma os
conhecimentos adquiridos ao longo da seqüência.
Procedimentos metodológicos
O processo de coleta do corpus durou cerca de três meses, do mês de outubro de
2006 ao mês de janeiro de 2007, durante o horário das aulas de português, no turno
noturno, da Escola de Ensino Fundamental e Médio José Valdo Ribeiro Ramos em
Fortaleza.
Participaram da pesquisa 36 alunos de duas turmas do 3º. ano do Ensino Médio.
As duas turmas foram distribuídas, de forma aleatória, em dois grupos: controle e
experimental, com a participação de 18 alunos em cada um deles. No primeiro grupo, o
trabalho ficou restrito à produção inicial de um texto dissertativo e à sua
revisão/transformação em um artigo de opinião, tais tarefas foram realizadas em apenas
dois encontros. Já no segundo, foram desenvolvidas atividades com base numa
seqüência didática, organizada em doze encontros, em que visamos não só à
produção/revisão do texto dissertativo, mas também à apropriação do gênero artigo de
opinião e dos marcadores argumentativos.
A proposta de produção inicial dos dois grupos foi extraída de um livro didático
de Ensino Médio. Após a primeira produção, programamos os dez encontros (seqüência
didática) com o grupo experimental, nos quais desenvolvemos: leituras, exposições,
debates e exercícios acerca do gênero artigo de opinião, explorando sua estrutura e
características (questão polêmica, tese, justificativa, conclusão, argumentos
favoráveis/desfavoráveis, propósito comunicativo, condições de produção e de
recepção), além das marcas lingüísticas da argumentação (com ênfase nos marcadores
argumentativos).
No último encontro com os dois grupos, solicitamos a produção de um artigo de
opinião para publicação em um jornal mural a ser colocado no pátio da escola.
Relacionamos ainda na proposta: o tema, os possíveis leitores e o propósito
comunicativo. Acrescentamos à proposta do grupo experimental um roteiro de revisão.
Após essa última etapa, selecionamos o material de análise, considerando
sobretudo a presença nos encontros e a disparidade do número total de alunos
matriculados nas duas turmas, uma com 48 e a outra com 26, esses aspectos
determinaram a redução da quantidade de sujeitos participantes. Assim, do total de 74,
apenas 36 participaram da constituição do corpus. Cada um deles produziu dois textos,
perfazendo um total de 72, os quais foram digitados com a transcrição fiel dos
chamados erros ortográficos e da escrita de cada produtor.
144
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 141-149, jan.-abr. 2008
Na análise do corpus, seguimos procedimentos quantitativos e qualitativos.
Primeiramente, procuramos identificar a utilização dos marcadores argumentativos por
todos os alunos na primeira versão de seus textos, para, em seguida, calcularmos a
freqüência das ocorrências e dos marcadores mais utilizados.
Após a segunda versão, adotamos o mesmo procedimento de análise,
objetivando comparar as ocorrências verificadas nos dois grupos, concentrando-nos nas
relações discursivas estabelecidas com base no uso dos marcadores argumentativos e na
constituição da estratégia argumentativa nos textos produzidos.
Na seção a seguir, apresentamos os dados e a discussão referentes à utilização
dos marcadores, à construção das relações discursivas pelos dois grupos, bem como à
orientação argumentativa estabelecida para a elaboração da estratégia argumentativa dos
textos dissertativos e dos artigos de opinião.
Análise e discussão
Ao considerarmos o pressuposto de que a argumentação é um ato inerente à
língua, buscamos identificar o uso dos marcadores argumentativos em todos os textos
analisados. Na tabela a seguir, que apresenta o número de ocorrências dos marcadores
(Qtd. marc.) e da variação das formas (Qtd. form.) na produção de cada aluno (A.1 a
A.18), nos grupos (controle e experimental) e nas versões (TD – texto dissertativo e AO
– artigo de opinião), obtivemos tal comprovação, pois apenas o aluno A.9 não usou
nenhum marcador argumentativo em sua produção final.
Tabela 1. Freqüência de uso dos marcadores argumentativos
Alunos
A.1
A.2
A.3
A.4
A.5
A.6
A.7
A.8
A.9
A.10
A.11
A.12
A.13
A.14
A.15
A.16
A.17
A.18
Total
Número de marcadores e de formas identificadas
Grupo controle
Grupo experimental
TD
AO
TD
AO
Qtd.marc. Qtd.form. Qtd.marc. Qtd.form. Qtd.marc Qtd.form.
Qtd.marc Qtd.form.
7
5
9
8
6
5
9
7
3
2
6
3
15
8
8
6
18
8
8
4
4
3
5
4
8
4
6
4
3
3
10
9
14
9
8
6
3
3
6
4
4
2
4
4
8
2
11
7
9
5
3
3
6
4
5
5
10
4
10
6
3
3
9
5
5
4
0
0
4
3
6
4
11
9
5
3
5
4
5
5
10
7
5
5
9
8
13
7
6
5
2
2
3
3
5
3
8
8
12
9
4
4
8
6
8
5
5
4
10
7
17
11
7
3
3
3
9
6
12
10
4
4
7
7
4
4
6
3
5
4
4
3
5
4
7
6
4
2
5
5
12
9
12
11
141
90
102
79
113
83
154
113
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145
Na tabela 1, no grupo controle, na produção do TD, podemos verificar que 5
redatores (A.3, A.5, A.8, A.10 e A.11) se sobressaíram, apresentando em suas redações
um razoável número de marcadores e uma relativa variação de formas. Na produção do
AO, apenas dois redatores destacaram-se: o A.8 que manteve a freqüência de uso dos
marcadores e aumentou a variação das formas em relação ao TD e o A.13 que usou
mais marcadores e formas em sua última versão (AO).
Ao determo-nos, na tabela 1, no total da freqüência de uso dos marcadores
argumentativos e das formas, notamos que no grupo controle há uma significativa
redução dessa freqüência da produção do texto dissertativo para a do artigo de opinião.
Como nesse grupo adotamos o planejamento das atividades da escola, que segue os
princípios do ensino predominantemente normativo, supomos que tal resultado deva-se
ao desconhecimento do papel dos marcadores argumentativos como elementos que
instituem força argumentativa aos enunciados e do gênero solicitado (artigo de
opinião), uma vez que no Ensino Médio, de modo geral, o trabalho com a
argumentação restringe-se à dissertação.
Já no grupo experimental, com base na tabela 1, verificamos que ocorre o
inverso: na produção do TD, apenas 3 redatores (A.2, A.14 e A.18) destacam-se em
relação à freqüência de uso dos marcadores e de formas, mas na produção do AO esse
número é elevado para seis (A.6, A.11, A.14, A.15 e A.18), demonstrando que houve
maior utilização no último texto. Além disso, quase todos os alunos desse grupo
aumentaram a freqüência de uso dessas marcas. Desse modo, o número final de
marcadores e formas registrados na produção do AO do grupo experimental é superior
ao do grupo controle, levando-nos a crer que a participação do primeiro grupo nas
atividades da seqüência didática para a apropriação do gênero artigo de opinião e de
suas marcas lingüísticas tenha sido um fator de relevância para o resultado alcançado.
No que concerne às formas dos marcadores mais usadas pelos redatores,
observamos que na escritura do TD, no grupo controle, a maior freqüência de uso foi da
forma e, utilizada por 13 dos 18 alunos desse grupo. Um total de 42 ocorrências foram
registradas, entre elas 10 estão no texto do redator A.3, que em um único parágrafo
concentrou 5 ocorrências:
(1) Bom eu acho que não deveria ser por aí, se às pessoas si unissem e vivesem
todas, demonstrando um pouco de afeto para com o próximo e parar de viver com
competitividade de serem muito modernalistas, capitalistas deviam se ajudar e dar bom
exemplos para todos, e principalmente para as crianças que estão cresendo, e não de
viver competindo, deviam dar um bom exemplo para que cresam fazendo uma
comunidade melhor e um país melhor (§ 2 – GC A.3 -TD).
No parágrafo transcrito, as três primeiras formas e mantêm-se em uma classe
argumentativa. Entretanto, a penúltima seria desnecessária e a última seria substituível
por ao invés, expressando redefinição. Prototipicamente, o marcador e (conector)
estabelece relação de conjunção, ou seja, os argumentos são reunidos em direção a uma
mesma conclusão e formam uma classe argumentativa. Essa foi uma tendência
verificada em grande parte das ocorrências analisadas no TD do grupo controle,
evidenciando a construção da estratégia argumentativa com menor grau de
argumentatividade. Todavia, em alguns textos, identificamos também a forma e,
indicando relações de contrajunção, de finalidade e de conclusão.
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Na produção do TD, ressaltamos ainda as formas: mas (conector), 19
ocorrências, utilizadas para manifestar relação de contrajunção; só (operador), 16
ocorrências, estabelecendo relação de restrição e constituindo escalas argumentativas,
além de pois e porque (conectores) que somam 10 ocorrências e foram usadas para
expressar relações de justificativa. Pudemos assim observar que na versão do TD os
alunos do grupo controle tencionaram variar a construção da estratégia argumentativa.
Na produção do AO em relação ao TD, no grupo controle, constatamos que na
medida em que houve uma redução da freqüência de uso dos marcadores e da
diversidade de formas, as relações discursivas estabelecidas também tiveram menor
variação e a predominância foi da constituição da estratégia argumentativa com base nas
relações de conjunção com a utilização da forma e (conector) e de justificativa, usando
pois e porque. Vejamos um parágrafo do redator A.8 que diferentemente dos demais
sujeitos do seu grupo não fez nenhuma alteração em seu segundo texto e permaneceu
usando 5 formas e, além das demais usadas, do total dos 10 marcadores registrados na
sua produção:
(2) O outro tipo de gente fica mais fácil de fazer uma comunidade e com ela,
cada um pode ter o afeto um com o outro e pode formar até vários grupos com isso,
mais para isso tem que existir o carinho, respeito e afeto (§ 2 –A.8.GC – AO).
Nesse parágrafo, vemos argumentos reunidos em uma classe argumentativa,
introduzidos pela forma e (conector), havendo com a introdução do marcador até
(operador) no segundo a construção de uma escala e da relação de gradação, dessa
forma, tal argumento torna-se mais forte para sustentar a defesa da formação de uma
comunidade. O redator finaliza o parágrafo com o uso da forma mais = mas, inserindo
um argumento que orienta na direção contrária ao que ele vinha desenvolvendo e
estabelecendo relação de contrajunção, podemos ser conduzidos à conclusão de que os
grupos podem ser formados, mas não estão prontos, há ainda uma condição necessária
para isso, que é a existência do carinho, respeito e afeto. Temos nessa produção a
construção da estratégia argumentativa com a instituição de uma maior força
argumentativa. De acordo com os dados, um aspecto raro nas produções do grupo
controle.
Na escritura do TD, no grupo experimental, percebemos que, de modo
semelhante ao grupo controle, a forma e (conector) é a mais utilizada com 35
ocorrências, estabelecendo relação de conjunção e classes argumentativas. Em seguida,
temos: as formas só (operador) com 15 ocorrências, expressando relação de restrição e
pois e porque (conectores), que somam 14 ocorrências e indicam relação de
justificativa.
No grupo experimental, diferentemente do grupo controle, no texto dissertativo,
praticamente, não há o uso da forma mas que estabelece relação de contrajunção, ou
seja, há uma menor variação no estabelecimento das relações para a construção da
estratégia argumentativa. Embora isso ocorra, identificamos já na primeira produção
desse grupo uma tendência a instituir maior força argumentativa aos seus enunciados.
Destacamos a seguir um parágrafo do redator A.6 do grupo experimental, o qual
apresenta em seu texto um total de 8 marcadores e 2 formas: e e só. Esse redator ao
constituir a estratégia argumentativa com base nas relações de conjunção e de restrição,
respectivamente, não se restringe à formação de classes, mas procura também imprimir
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maior força argumentativa aos seus enunciados. No trecho destacado, há predominância
do e (conector) com um total de 4 ocorrências, das 6 verificadas:
(3) Se olhassimos para dentro de nós e reconhecessimos que somos a mais bela
das criaturas criada por Deus e que a nossa missão é amar e ser amado, o mundo seria
diferente e as guerras não existiria (§3 – A.6.GE – TD).
Ao produzir o AO, notamos que os redatores do grupo experimental utilizam
uma maior diversidade de formas, registramos: mas (conector), 10 ocorrências,
indicando contrajunção; até, pelo menos (operadores), 7 ocorrências, estabelecendo
gradação; um pouco, 5 ocorrências e só 20 ocorrências, ambas expressando relação de
restrição. O parágrafo a seguir do redator A.14 do grupo experimental, que apresenta,
conforme a tabela 1, maior freqüência de uso dos marcadores e de formas, 17 e 11,
demonstra a variação de formas e conseqüentemente de relações para a construção da
estratégia argumentativa:
(4) Se cada um fizesse sua parte, pelo menos parasem para refletir, como a
sociedade seria, já era um bom começo. Pra temos uma sociedade unida pois si cada
pessoa fizer alguma coisa já muda. Porque a união é que faz a força e isso é o
suficiente. Temos o direito de vivemos como pessoasdignas e assim todas podem viver
num mundo melhor num mundo que Deus deixou o direitos igual para todos nós. É
assim que devemos viver pois todos somos igual ninguem é melhor doque ninguem.
Mas infelismente vivemos em comunidades que existe pessoas que querem ser melhor
doque o outro (§ 2 – A.14.GE – AO).
O parágrafo transcrito é iniciado com uma relação de gradação, expressa pelo
marcador pelo menos (operador), que ressalta o mínimo a ser feito para uma mudança
na sociedade. O redator prossegue exprimindo relações de justificativa/explicação com
os marcadores pois e porque (conectores). Embora haja problemas com a pontuação, a
relação é manifestada. Constitui então uma classe argumentativa com os enunciados
introduzidos pelas formas e, expressando conjunção, estabelece comparação com o uso
da forma melhor do que e, por último, insere um argumento na direção contrária com a
utilização do marcador mas (conector), estabelecendo relação de contrajunção.
Observamos nesse parágrafo a variação das formas utilizadas e das relações
estabelecidas para a construção da estratégia argumentativa que são respectivamente: 6
e 5.
Considerações finais
Com base na análise dos textos dissertativos e dos artigos de opinião pudemos
identificar a utilização de marcas lingüísticas da argumentação, sobretudo de
marcadores argumentativos, confirmando a hipótese de que a argumentação é um ato
imanente à língua.
No que diz respeito à apropriação e uso dos marcadores argumentativos pelos
redatores do grupo experimental em comparação à apropriação e uso pelos redatores do
grupo controle, verificamos que após o desenvolvimento da seqüência didática, o grupo
experimental apresenta maior freqüência e diversidade da utilização dos
marcadores/formas, demonstrando que a abordagem dessas marcas com ênfase no seu
valor semântico-argumentativo possibilita ao redator utilizá-las como elementos
corroboradores da estratégia argumentativa em direção ao convencimento do leitor.
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No que concerne às relações discursivas estabelecidas, no grupo controle, houve
uma tendência ao estabelecimento de um maior número de relações de conjunção e de
justificativa tanto no texto dissertativo como no artigo de opinião, o que aponta para a
construção argumentativa em classes, dando aos argumentos o mesmo valor; enquanto
no grupo experimental, evidenciam-se as relações de conjunção e de restrição, ou seja,
há construção de classes, mas também de escalas, caracterizando assim estratégias
argumentativas que objetivam instituir maior força argumentativa a determinados
enunciados na direção da conclusão pretendida.
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160
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 151-160, jan.-abr. 2008
Presença de modificador: exigência para
a boa formação de médias?
Morgana Fabiola Cambrussi1
1
Programa de Pós-graduação em Lingüística – Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC) – Campus Universitário – CCE – Trindade – 88040-900 – Florianópolis – SC
morganacambrussi@yahoo.com.br
Abstract. According to Keyser & Roeper (1984), Fagan (1988) and Fellbaum &
Zribi-Hertz (1989), middle constructions like ‘This floor cleans easily’ and
ergative constructions like ‘The door opened’ have some structural differences
starting from its formation. One of the differences pointed by the authors is the
modifier requested in the good semantic and syntactic formation of middle
constructions, besides the fact that in the ergatives the modifier is optional.
However, after analyzing evidences supplied by the authors mentioned, the idea
that middle constructions become grammatical only with a modifier is questioned.
The conclusion is that the structural realization of a modifier is not a restriction
to a good syntactic and semantic formation of middle constructions.
Keywords. middle constructions; ergative constructions; modifier; alternations.
Resumo. Construções médias do tipo ‘Esse piso lava fácil’ e ergativas do tipo ‘A
porta abriu’ guardam entre si diferenças que, sustentadas pelos autores Keyser &
Roeper (1984), Fagan (1988), Fellbaum & Zribi-Hertz (1989), atestariam se
tratar de duas construções distintas desde a formação. Uma das diferenças
apontadas é a exigência de modificador para a boa formação semântica e
sintática de construções médias, enquanto nas construções ergativas o
modificador é opcional. Questiona-se a afirmação de que construções médias são
gramaticais somente sob escopo da modificação, com base em evidências
fornecidas pelos próprios autores citados. Conclui-se que a realização estrutural
de modificação não é restrição para a boa formação dessas construções.
Palavras-chave. Construções médias; construções ergativas; modificadores;
alternâncias.
1. Introdução
Construções médias como Este aipim cozinha fácil e Esta calça veste bem, disponíveis
e produtivas para muitas línguas (entre elas o inglês, o francês, o Português do Brasil),
possuem características bem peculiares. Revisitadas freqüentemente pela literatura (em
especial por Keyser & Roeper (1984); Fagan (1988); Fellbaum & Zribi-Hertz (1989)), são
sempre postas em contraste com construções ergativas do tipo O aipim cozinhou rápido e A
camisa secou devagar.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 161-166, jan.-abr. 2008
161
As razões que motivam o paralelo entre médias e ergativas vêm da proximidade
estrutural entre as duas construções. Em sua configuração sintática, tanto médias quanto
ergativas apresentam tema à esquerda do verbo, ou seja, realizado na posição de sujeito
gramatical da construção. Entretanto, há particularidades guardadas para cada caso.
Segundo Rodrigues (1998, p.8), “na interpretação das estruturas médias, há uma relação de
‘propriedade’ entre o sujeito e o predicado verbal: o que o predicado verbal assevera é uma
propriedade intrínseca da entidade representada pelo sujeito gramatical/objeto lógico.”
Construções ergativas, por outro lado, não contêm interpretação de propriedade intrínseca
disponível para o tema.
Fagan (1988, p.200-201) relaciona a interpretação de propriedade ao caráter genérico
das construções médias, quer dizer, assume a posição de que tal propriedade é indiferente
ao tempo. Para a autora, em uma sentença do tipo This book reads easily, o que se exprime
é o fato de a atividade de leitura do livro geralmente ser realizada facilmente,
independentemente de quem a realize. É o SN pleno This book, tema, que possui a
propriedade de poder ser lido facilmente.
Ao se construir um paralelo de características, das quais certos autores lançam mão para
descrever e opor médias e ergativas, expõem-se as construções em contraste, mas o que se
pode notar é que pouco há de distinto entre elas1 Para uma ergativa como A louça quebrou,
pode-se afirmar: a) há interpretação eventiva; b) não exige a presença de modificador; c) o
tema está na posição de sujeito gramatical; d) não-genérica, é usada para descrever eventos
particulares; e) usada no presente progressivo, no imperativo e possui pretérito com
interpretação pontual; f) não há realização sintática de agente. Para uma construção média
como A louça quebra fácil, pode-se afirmar: a) há interpretação não-eventiva; b) exige a
presença de modificador; c) tema na posição de sujeito; d) é uma declaração genérica que
não descreve eventos particulares no tempo; e) pelo expresso em d), é incompatível com o
presente progressivo, com o imperativo e com o pretérito com interpretação pontual; f) não
há realização sintática do agente.
Quanto à não realização sintática do agente, tanto para as construções médias quanto
para as ergativas, considera-se que faz parte do conjunto de propriedades de estruturas
médias e de estruturas ergativas a propriedade de agente implícito que, embora não na
posição de sujeito da sentença, pode ser sintaticamente realizado, por exemplo, por um
sintagma causativo/agentivo: A roupa secou com o vento.
Neste trabalho, não serão estudadas todas as características anteriormente relacionadas.
O que se intenciona é questionar se a presença de modificador é de fato uma exigência para
a formação de construções médias. Na seção seguinte, far-se-á a discussão que põe em
cheque esta restrição tão fortemente sustentada pela bibliografia disponível sobre o assunto:
A modificação determina a boa formação semântica de construções médias?
2. O Valor da Modificação para a Formação Semântica de Construções Médias
Roberts (1987) destaca que há casos em que se pode formar médias em inglês sem a
exigência de realização sintática do modificador. Esses casos envolvem, na formação: um
do enfático, por exemplo, um acento sobre o tema ou sobre o verbo, um modal epistêmico
como could, uma negação ou tema quantificado negativamente.
162
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 161-166, jan.-abr. 2008
(01a) This book could sell.
(01b) ?Bureaucrats BRIBE.
(01c) ?CHICKENS kill.
(01d) ?This bread DOES cut.
(01e) This bread doesn’t cut.
(01f) Any bureaucrats bribe.
Da mesma forma, Fellbaum & Zribi-Hertz (1989) avaliam que a exigência de
modificador é restrição para a formação de médias do francês, mas há casos, classificados
pelas autoras como um subconjunto das médias, que não exigem realização sintática do
modificador.
(02a) Cette racine se mange.
(02b) Cette chaise se plie.
As autoras consideram que, nos dois exemplos de (02), subentende-se uma divisão
binária entre coisas comestíveis e coisas não-comestíveis, entre coisas pintáveis e coisas
não-pintáveis. Assim, (02a) pode ser enunciada em um contexto no qual se faça uma
classificação binária entre aquelas raízes que são comestíveis e aquelas que não o são; da
mesma maneira, (02b) serviria a um contexto em que se diferencie binariamente tintas que
apagam daquelas que não apagam. Fellbaum & Zribi-Hertz (1989) afirmam, ainda, que
para o inglês a mesma análise é possível em casos como (03), nos quais se subentende uma
divisão entre a classe das paredes pintáveis e a classe das não-pintáveis:
(03) Does this wall paint?
Com tantas possibilidades de se realizarem construções médias sem a presença sintática
de modificador, questiona-se se realmente a modificação é condição para a gramaticalidade
dessas construções. Em se tratando do Português do Brasil, é possível que construções
médias sejam realizadas sem modificação: tanto com acento sobre o tema, com acento
sobre o verbo, com negação, com tema quantificado negativamente, quanto com a leitura de
divisão binária entre duas classes, conforme o que levam em conta, para o francês,
Fellbaum & Zribi-Hertz (1989) e, para o inglês, Roberts (1987).
(04a) Esse piso LIMPA.
(04b) ESSE PISO limpa.
(04c) Esse piso não limpa.
(04d) Nenhum piso limpa.
(05a) Batata doce assa.
(05b) Essa batata doce assa?
Em todos os exemplos acima, características de construções médias como a leitura de
genericidade para agente implícito e a interpretação de propriedade intrínseca para o tema
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 161-166, jan.-abr. 2008
163
são mantidas, o que os diferenciaria de construções ergativas que não possuem nenhuma
dessas características.
A ênfase sobre o verbo em (04a) sugere que o piso referenciado limpa bem,
independentemente de quem o limpe; já a ênfase sobre o tema em (04b) sugere que esse
piso, não outro, possui a propriedade limpa; (04c) destaca a negação da propriedade, ou
melhor, a ausência de uma propriedade que costuma ser intrínseca à classe piso; (04d) é
similar à anterior, com ausência de propriedade marcada na quantificação negativa do tema;
(05a-b) encaixam-se na classificação binária (proposta por Fellbaum & Zribi-Hertz (1989))
entre aquelas batatas que assam e aquelas que não assam.
Desse modo, a realização sintática de modificador é exigência para a formação de um
subtipo de construções médias do Português do Brasil, a saber, para a formação de médias
que, por razões que têm a ver com a natureza da propriedade expressa, não se incluem nos
casos de (04) e (05), como *Essa camisa veste/Essa camisa veste bem. Ainda que fosse a
presença do modificador uma condição para a formação das médias, tal realização sintática
é muito semelhante à configuração estrutural de suas contrapartes ergativas e não serviria
para diferenciar as duas construções, já que as construções ergativas: a) também admitem
modificação; b) recebem modificador em mesma posição que construções médias o
recebem; c) recebem modificadores idênticos aos que construções médias recebem.
Observe-se:
(06a) Essa camisa seca rápido, as demais demoram a secar.
(06b) Essa camisa seca rápido, enquanto eu lavo as outras.
(06c) Esse livro vendia rápido, agora fica parado no estoque.
(06d) Esse livro vendeu rápido, não tem mais nenhum exemplar no estoque.
Com a proximidade entre construções médias e ergativas, sugerida pelo comportamento
semelhante de ambas com a modificação, um certo cuidado é necessário para não confundilas. As sentenças abaixo podem parecer médias, mas são eventivas e essa é a primeira
evidência em favor da ergatividade, pois elimina a interpretação de propriedade intrínseca
do objeto à medida que as sentenças descrevem um evento episódico particular.
(07) Enquanto a mandioca cozinha, separe e pique os ingredientes pedidos na receita.2
(08) Enquanto o feijão cozinha, vamos continuar nossa conversa.3
(09) Há dias que já começam complicados, levantamos atrasados, o café sai fraquinho,
o leite derrama sobre o fogão, o marido com aquele humor negro e os filhos... ah!, os
filhos cobrando... cobrando... cobrando...4
Nos exemplos (07) e (08), a sentença subordinada com enquanto marca um período de
tempo que serve de referência para a sentença principal e, em (09), um fato determinado,
relacionado a outros, é referenciado pela ergativa. Keyser & Roeper (1984) consideram que
a dificuldade encontrada pelos falantes para diferenciar médias de ergativas é resultado da
maleabilidade de alguns verbos que servem a ambas as construções. Essa possivelmente
seja uma das dificuldades, entretanto, há outras razões relacionadas à formação sintática,
em particular à presença/ausência de modificador.
164
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 161-166, jan.-abr. 2008
Em alguns casos de construções médias, em que não se realiza sintaticamente o
modificador, ele pode estar apagado e ser recuperado ou depreendido do contexto
lingüístico que se apresenta e/ou do contexto pragmático de que se dispõe. Essa
“recuperação” do modificador serve à necessidade pragmática de informatividade, já que
falantes tendem a ser cooperativos e dar apenas informações relevantes. Em exemplos
como os seguintes, a explicitação de um conhecimento comum (pelo menos para a cultura
ocidental) só se justifica por meio de um modo, dessa maneira, o que é relevante informar
não é o que o verbo expressa, mas seu conteúdo semântico associado à própria modificação
implícita.
(10) Estou com pressa para sair agora, vou cozinhar o feijão quando voltar, se bem que
esse feijão cozinha.
(11) Faça você as pipocas porque quando eu as faço sobram muitos grãos na panela, se
bem que essa pipoca estoura.
O que (10) diz é que o feijão em questão cozinha rápido, então, é possível cozinhá-lo
em pouco tempo, sem atrasos, mesmo porque feijões em geral cozinham e,
comunicativamente, seria irrelevante informar essa propriedade (assim como há contextos
nos quais é irrelevante informar que pessoas falam, pessoas respiram etc.). Em (11), o que
se diz é que uma determinada pipoca estoura bem, até mesmo alguém que não saiba fazer
pipocas com habilidade pode estourá-la. A exemplo de feijões cozinham, dizer que pipocas
estouram parece ser irrelevante comunicativamente, aliás, é bem provável que, se não
estourasse, o milho não se transformaria em pipoca e dificilmente receberia a denominação
pipoca ainda na forma de grão. O modo (implícito) como estoura o milho é que autoriza
uma construção do tipo essa pipoca estoura.
Com base no quadro que se apresenta para o Português do Brasil e no que se observou
do comportamento de construções médias em outras línguas, pode-se considerar
equivocada a generalização de que construções médias só ocorrem com modificador. Dizer
nesses termos é colocar na agramaticalidade construções de uso corrente na língua, como
Essa pipoca estoura, Essa batata cozinha ou Esse piso escorrega.
3. Algumas Considerações
Apontada pela bibliografia acima como uma forte característica, que serviria de
argumento para a distinção entre médias e ergativas, a exigência de modificador para a boa
formação semântica e sintática de construções médias (ao passo que construções ergativas
poderiam ocorrer com ou sem modificação) não parece se sustentar com força
argumentativa. De partida, na verdade, essa já não parecia ser uma boa característica
diferenciadora entre as duas construções, pois ergativas admitem modificação do mesmo
tipo e em mesma posição que médias a admitem.
Além disso, são tantos os casos em que médias ocorrem sem modificação – com acento
contrastivo sobre o tema, com acento contrastivo sobre o verbo, com negação, com tema
quantificado negativamente, com leitura de divisão binária entre classes – que esta foi
desconsiderada enquanto exigência para a boa formação semântica de construções médias
neste trabalho. Casos como Feijão novo cozinha ou Aipim amarelo derrete são tão bem
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 161-166, jan.-abr. 2008
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formados semântica e sintaticamente quanto Feijão novo cozinha fácil ou Aipim amarelo
derrete fácil, e ainda, parecem ter a mesma interpretação, independentemente da presença
do modificador. Isso implica dizer que, apesar de não realizada na estrutura sintática, a
modificação parece estar imbricada na formação semântica que autoriza a expressão de
uma propriedade intrínseca qualquer contida na construção.
Notas
1
Esse paralelo é formado a partir de Fagan (1988) e Keyser & Roeper (1984). Neste
trabalho, apenas serão analisados casos do Português do Brasil sem marcador medial “se”.
Para um estudo de voz média que leve em conta construções com “se” medial, consultar
Camacho (2003).
2
http://panelinha.ig.com.br/receita.phtml?cod_rec=460, acesso em 21/11/2006.
3
http://www.sec.rj.gov.br/atabaquevirtual/culinaria.html, acesso em 21/11/2006.
4
http://www.riototal.com.br/coojornal/neidemaganhas.htm, acesso em 21/11/2006.
Referências
CAMACHO, R. G. Em defesa da categoria da voz média no português. D.E.L.T.A. n. 19
(1), p. 91–122, 2003.
FAGAN, S. M. B. The English Middle. Linguistic Inquiry. n. 19, p.181–203, 1988.
FELLBAUM, C.; ZRIBI-HERTZ, A. La construction moyenne en français et en anglais:
étude de syntaxe et de sémantique comparées. Recherches Linguistiques. n. 18, p.19–
55, 1989.
KEYSER, S. J.; ROEPER, T. On the Middle and Ergative Constructions in English.
Linguistic Inquiry. n. 15, p. 381–416, 1984.
ROBERTS, I. The representation of implicit and dethematized subjects. Dordrecht: Foris,
1987.
RODRIGUES, C. A. N. Aspectos sintáticos e semânticos das estruturas médias no
Português do Brasil: um estudo comparativo. 1998. 176 f. Dissertação (Mestrado em
Lingüística). Universidade de Brasília, Brasília, 1998.
166
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 161-166, jan.-abr. 2008
Operadores de escala: uma comparação entre chegar e até
1
2
Roberlei Alves Bertucci1, Maria José Foltran2
Universidade Federal do Paraná – Mestrado em Estudos Lingüísticos (PG-UFPR)
roberlei.bertucci@pop.com.br – Curitiba – PR – Brasil
Departamento de Lingüística, Letras Clássicas e Vernáculas - Universidade Federal do
Paraná (UFPR/CNPq)
mfoltran@ufpr.br – Curitiba – PR – Brasil
Abstract. Bertucci (2007), in his work about chegar in Brazilian Portuguese,
arguments that this verb has characteristics of an auxiliary and a scale
operator. After that, the author compares chegar with até and he saw that both
these words can function as scale operators. In this article, (i) we present the
ideas the led the author to this analysis about chegar and (ii) we discuss the
behavior of chegar and até like scale operators.
Keywords: semantics, scale operators
Resumo. Em seu trabalho sobre chegar, Bertucci (2007) argumenta que esse
verbo tem características de auxiliar e de operador de escala. No trabalho
citado, ele compara resumidamente chegar e até, alegando que os dois
funcionam como operadores de escala. Neste artigo, (i) apresentamos as
bases que levaram o autor a uma análise assim sobre o verbo chegar e (ii)
discutimos mais detalhadamente o funcionamento de chegar e até como
operadores de escala.
Palavras-chave: semântica, operadores de escala
1. Introdução
A literatura a respeito da perífrase chegar a+infinitivo em PB é um tanto
confusa. Autores como Almeida (1980) e Neves (2000), aceitam chegar, em tal
contexto, como um auxiliar, enquanto outros – Travaglia (1985) ou Luft (2003) –, não.
Por outro lado, entre os autores que o consideram um auxiliar em casos como (1),
parece haver uma concordância quanto ao papel de chegar: indicar um resultado (uma
conseqüência).
(1) Pedro chegou a esmolar.
Dessa forma, o que Bertucci (2007) fez foi (i) buscar critérios que verificassem
se chegar pode ser considerado um auxiliar quando seguido de infinitivo e (ii) analisar o
papel de tal verbo na perífrase. Em Bertucci & Foltran (2007), já havíamos mostrado
que chegar é um verdadeiro verbo auxiliar no contexto em análise. Agora,
apresentamos dois testes, retirados de Bertucci (2007), para mostrar ao leitor alguns
critérios usados na caracterização de chegar como auxiliar.
O primeiro é relacionado à seleção dos argumentos. Pontes (1973) e Perini
(2001) afirmam que os verbos auxiliares não influenciam na escolha de argumentos de
uma sentença. Quem faz a seleção dos argumentos é o verbo principal. Isso fica claro
nos exemplos (2), (3) e (4).
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008
167
(2)
a. Paulo leu.
b. Paulo vai ler.
(3)
a. #A pedra leu.1
b. #A pedra vai ler.
(4)
a. A pedra caiu.
b. A pedra vai cair.
Este é um critério conhecido como o da detematização. O verbo ler seleciona o
argumento externo em (2) e é ele mesmo que impede a seleção de a pedra em (3). Se o
auxiliar (vai) fosse o responsável pelo bloqueio, não permitiria a seleção de (4b). No
entanto, como em (4a), a seleção de a pedra – em 4b – foi possível porque foi feita pelo
verbo cair, o NdP2. Assim, entendemos que a presença do vai não mudou o critério de
seleção, portanto o verbo ir, aí, funciona como auxiliar. Mioto et alii (2004) propõem o
mesmo teste para a seleção argumental e afirmam que isso faz parte da restrição
semântica (s-seleção) que um determinado núcleo faz com relação aos argumentos que
co-ocorrem com ele na sentença. Os testes com chegar demonstraram que ele não
participa da seleção dos elementos que co-ocorrem na sentença. Isso fica por conta do
verbo chamado principal.
(5)
a. A pedra chegou a rolar.
b. A pedra rolou.
c. #A pedra chegou a chorar.
d. #A pedra chorou.
As sentenças (5a-b) mostram que o sujeito, mesmo inanimado, é aceito em uma
sentença com chegar, pois a seleção desse sujeito é feita pelo verbo principal, no caso,
rolar. Pelo mesmo motivo, (5c-d) não é aceita: o sujeito, a pedra, não é compatível com
chorar, que exige um argumento, no mínimo, animado. Assim, verificamos que chegar,
como auxiliar, não interfere na seleção dos argumentos, que é feita pelo verbo principal.
O segundo critério vem do trabalho de Longo & Campos (2002, p. 447). Elas
mostram que os verbos auxiliares formam com a base um grupo indissociável. Se
pudermos desmembrar o grupo verbal em dois núcleos oracionais, não há auxiliaridade.
(6)
a. Júlia sonhava comprar uma Ferrari.
b. Júlia sonhava que compraria uma Ferrari.
(7)
a. Júlia acabava de comprar uma Ferrari.
b. *Júlia acabava de que compraria uma Ferrari.3
Claramente constatamos que chegar a+infinitivo comporta-se como acabar de.
(8)
a. Júlia chegou a comprar uma Ferrari.
b. *Júlia chegou a que comprava uma Ferrari.
Apontando evidências que comprovam que chegar não é uma auxiliar de voz,
tempo ou modo, o trabalho de Bertucci (2007) dedicou-se a analisar um pouco mais
detalhadamente a questão aspectual. Isso porque o trabalho mais completo sobre o
168
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008
auxiliar chegar – Almeida,1980 – argumenta que esse verbo estaria na lista dos
auxiliares que indicam o aspecto terminativo. No entanto, tal idéia é discutível.
Assim como Travaglia (1985), Almeida (1980) considera o aspecto terminativo
como aquele que mostra a ação do verbo no infinitivo em seu término ou em seus
momentos finais. Se chegar fosse como terminar, ele deveria mostrar que a ação
denotada pelo verbo principal está no fim ou já terminou.
(9)
a. Ivo terminou de pintar a parede.
b. Ivo está terminando de pintar a parede.
(10) a. Ivo chegou a pintar a parede.
b. *Ivo está chegando a pintar a parede.
Em (9), terminar indica o fim da ação de pintar. Daí o aspecto terminativo: o
fim, ou os momentos finais de determinada ação. Em (10), o fim da pintura não é
indicado por chegar. Além disso, um progressivo para indicar os momentos finais da
pintura com o verbo terminar (9b) é perfeitamente gramatical, mas não funciona com o
verbo chegar (10b). Em Bertucci (2007) já se disse que chegar não se insere em
qualquer classe aspectual – ou pelo menos nas mais tradicionais – nem na classe dos
terminativos, como afirma Almeida (1980). No próximo item, portanto, vamos
apresentar o que Bertucci (2007) propõe em sua análise para chegar. No item 3,
comparamos chegar e até e analisamos o papel de ambos na tarefa de projetar escalas.
2. Chegar como um operador de escala
Como já dissemos, chegar não se comporta como um verbo auxiliar clássico,
por não se acomodar nas funções de significar tempo, voz, modo ou aspecto. Por isso,
Bertucci (2007) faz uma proposta de análise para esse verbo em sentenças do PB. A
partir de leituras sobre escalas (Fauconnier, 1975, e Ducrot, 1981), o autor propõe que
tal verbo seja um operador de escala. Neste artigo, apresentamos apenas a análise do
autor sob o ponto de vista das escalas pragmáticas de Fauconnier (1975).
2.1. Escalas pragmáticas
Ao analisar os superlativos, Fauconnier (1975) constata que alguns teriam um
comportamento semelhante a um quantificador universal. Vejamos exemplos do autor.
(11) The faintest noise bothers my uncle.
‘O menor/ mais baixo ruído incomoda meu tio’.
(12) He did not hear the faintest noise.
‘Ele não ouviu o menor/ mais baixo ruído.
O autor entende que, enquanto em (11) o superlativo funciona como um
quantificador universal, em (12) ele pode ser um existencial negado. Nesses casos, o
superlativo estaria no lugar de any e teria as mesmas propriedades desse quantificador.
(13) Any noise bothers my uncle.
‘Qualquer ruído incomoda meu tio’.
(14) He did not hear any noise.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008
169
‘Ele não ouviu qualquer ruído’.
Fauconnier (op. cit., p. 361) assume que os superlativos expressam pontos mais
altos ou mais baixos em uma escala pragmática. Por exemplo, para uma dimensão dada
(ruído), haveria dois extremos (mais alto – mais baixo) e um elemento Y (meu tio/ ele)
participando do predicado (incomodar). Entre os extremos, haveria pontos (x1, x2, x3).
Escala S
ponto mais alto
x1
x2
x3
ponto mais baixo
O autor entende que o ponto mais baixo de uma escala pragmática pressupõe os
demais (x3, x2, x1 e o ponto mais alto). Em uma sentença como (11), o superlativo seria o
ponto mais baixo, indicando que qualquer outro ruído – conseqüentemente mais alto –
também incomodaria o tio. Nesse caso, portanto, os superlativos seriam responsáveis
por serem elementos de maior informatividade: o elemento mais baixo na escala (que é
o mais forte) informa mais que o elemento imediatamente acima dele e assim
sucessivamente, sendo que o mais alto é o menos informativo.
Fauconnier (1975, p. 364) também diz que, em inglês, o even “marca a
existência de uma escala de probabilidade pragmática”.
(15) Even Alceste came to the party.
‘Até Alceste veio à festa’.
Posto: Alceste veio à festa.
Pressuposto: Todos os outros também vieram.
Em (15), o even indicaria que Alceste é o ponto mais baixo da escala de
probabilidade pragmática. Nessa escala, Alceste seria um daqueles com menos chances
de aparecer na festa, mas até ele foi, o que pressupõe que todas as pessoas esperadas
para a festa também apareceram. É novamente uma questão de maior informatividade.
A partir dessas análises, Bertucci (2007) propõe uma leitura semelhante para o
auxiliar chegar. Vejamos o exemplo (16).
(16) Cinco anos antes do previsto, foi anunciado o término do seqüenciamento
do genoma humano. A corrida atrás da identificação de todos os genes do Homo sapiens
envolve laboratórios de 18 países, liderados por instituições dos Estados Unidos e do
Reino Unido, e consumiu estimados US$ 3 bilhões, sem contar a injeção final de
recursos, necessária para apressar o fim dessa primeira etapa e fazer frente a grupos
privados que ameaçavam terminar antes a “façanha do século”. Trata-se, sem dúvida, de
uma primeira etapa, porque o Projeto Genoma Humano representa, na verdade, apenas
uma enorme base de dados, que os cientistas precisam entender em detalhe para um dia
chegar a manipulá-los. Para os geneticistas, há trabalho para mais de um século de
pesquisa. (Ciência Hoje, n. 28, p. 22-3.)
170
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008
Nesse caso, o próprio contexto apresenta a escala. A etapa mais importante, de
acordo com o contexto, é a manipulação dos dados apresentados nos genes. A segunda
etapa é entender essa base de dados e a primeira, que foi alcançada pelos cientistas, é o
seqüenciamento do genoma (que é a base de dados). Na escala, ficaria assim:
1.ª
seqüenciamento dos dados
2.ª
entendimento dos dados
3.ª
manipulação dos dados
Nesta seção, procuramos evidenciar que chegar tem uma leitura semelhante a de
outros operadores de escala, como os superlativos e o até. Deixamos para o próximo
item a comparação entre esses operadores em PB.
3. Operadores de escala
3.1. Análises de even, hasta e até
Para Francescotti (1995, p.172), o even (até) tem sempre a idéia de surpresa, de
inesperado – como acontece em (17) com a reprovação de Albert – e o “até é um termo
escalar, já que o inesperado vem em etapas”. Kay (apud Francescotti, 1995) afirma que
utilizar o even é um modo de oferecer algo mais argumentativo, mais relevante para
uma determinada conclusão, concordando com a teoria de Ducrot (1981).
(17) Even Albert failed the exam.
‘Até Albert reprovou no teste.’
Nessa sentença, só podemos entender que Albert tinha boas condições de passar
no teste e, talvez, que ele fosse o mais apto a passar ou o menos provável de reprovar.
Assim, (17) indica que, se até Albert reprovou, outros também reprovaram. Francescotti
(1995) considera que, se Albert não fosse o mais apto a passar no teste e sua reprovação
fosse praticamente certa, a sentença (17) seria ruim.
Numa comparação entre hasta (espanhol) e até (português), Grolla (2004)
mostra que ambas preposições podem denotar em seus DPs4 os graus de uma escala.
(18) a. A temperatura subia até 90ºC.
b. La temperatura subió hasta (los) 90ºC.
(19) a. O João cresceu até 2m.
b. Juan creció hasta 2m.
A autora explica: “em sentenças como essas, hasta e até tomam os sintagmas 2
metros e 90ºC como argumentos. Tais argumentos são graus de uma escala” (Grolla,
2004, p. 295). E conclui: “[hasta e até] indicam que um elemento atingiu o fim de um
determinado objetivo ou o ponto final de um deslocamento”.(idem, p. 297).
3.2. Chegar e até: comparação entre operadores de escala
Assim como dito para as preposições hasta e até, chegar se estabelece como um
operador de escalaridade na sentença. Se para Francescotti (1995) o até marca a
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008
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surpresa na sentença e para Fauconnier (1975) escolhe o termo mais informativo de uma
escala de probabilidade, vimos que chegar escolhe o termo mais informativo da
sentença. Na mesma direção, Grolla (2004) conclui para hasta e até, que os elementos
posteriores a eles funcionam como ponto final para a escala, o sintagma que segue o
auxiliar chegar é o grau de uma determinada escala, funcionando como um ponto final.
Comparando as sentenças:
(20) a. Evans kissed Mary even before he knew her name.
b. Evans beijou Mary até antes de saber o nome dela.
c. Evans chegou a beijar Mary antes de saber o nome dela.
(21) a. A temperatura subia até 40ºC.
b. La temperatura subió hasta (los) 40ºC.
c. A temperatura chegava a atingir os 40ºC.
d. A temperatura chegava aos 40ºC.
A tradução de (20a) em (20b) é equivalente. Note o leitor que a chamada
“surpresa”, de que já se falou na discussão sobre até (even), é dada por todo o sintagma
posterior em (20c). Já em (21), os exemplos (similares no sentido) mostram o caráter de
escala dado por chegar. Mesmo quando não é auxiliar, mas principal (21d), o verbo
indica que o seu complemento é um grau em uma dada escala, característica encontrada
por Grolla (2004) para as preposições estudadas.
Uma diferença importante está no aspecto sintático, por conta da flutuação na
sentença: enquanto o até pode flutuar, antecedendo sujeito, verbo, objetos e adjuntos,
chegar prende-se à posição que antecede o verbo no infinito, na maioria das vezes,
ligado a este infinitivo por meio da preposição a. Dessa forma, notamos que o falante só
pode utilizar o auxiliar chegar antes de eventualidades, enquanto tem a liberdade de
escolher outros sintagmas para suceder o até. A flutuação de até ocasiona uma mudança
de escopo que faz com que tenhamos diferenças de sentido entre as sentenças.
(22) a. Até Pedro brigou com a Maria.
b. Pedro até brigou com a Maria.
c. Pedro brigou até com a Maria.
Na sentença (22a), o escopo de até recai sobre o sujeito Pedro (NP) e uma
interpretação possível seria a de que todo mundo brigou com Maria, inclusive Pedro,
aquele que provavelmente não o faria. Portanto, ao ter o NP sob seu escopo, o até
projeta uma escala com outros elementos do mesmo tipo. Assim, neste caso, Pedro se
contrapõe a João, ao pai de Maria, a Sílvia etc. Em (22b) o escopo recai sobre brigou
(V) e se entende que dentre várias atitudes que Pedro teve com Maria, a mais relevante
foi que ele brigou, uma atitude talvez pouco provável de acontecer (esperada).Agora, a
escala projetada contém outras eventualidades, como concordar, chamar atenção, etc.
Finalmente, em (22c) o escopo recai sobre o argumento do verbo com a Maria (PP) e a
interpretação é de que Pedro brigou com todo mundo, inclusive com quem era menos
provável: Maria. Novamente, a escala projetada teria elementos da mesma natureza.
Como auxiliar e como verbo, chegar só pode ficar em posição anterior ao
verbo no infinitivo, com a ligação da preposição a. Perceba o leitor que, em outras
172
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008
posições ocupadas pelo até, quando colocamos chegar, geramos uma sentença
agramatical. Portanto, chegar só pode escalonar eventualidades.
(23) a. *Chegou a Pedro brigar com a Maria.
b. Pedro chegou a brigar com a Maria.
c. *Pedro brigar chegou a com a Maria.
Um caso interessante, é que chegar e até podem estar juntos numa mesma
sentença. Nesses casos, dependendo da posição de até, o escopo dos operadores será
diferente, mas eles podem operar sobre um mesmo elemento.
(24) a. Até Pedro chegou a brigar com a Maria.
b. Pedro até chegou a brigar com a Maria.
c. Pedro chegou até a brigar com a Maria.
d. Pedro chegou a brigar até com a Maria.
Na sentença (24a), chegar, cujo escopo é brigar com Maria, indica que entre as
atitudes tomadas contra Maria, a mais alta foi brigarem com ela; o até indica que esse
ato foi praticado por alguém que provavelmente não o faria: Pedro, que é o escopo de
até. Portanto, aí, chegar e até tem sob seu escopo elementos diferentes. O mesmo se
pode dizer para (24d), em que chegar e até funcionam como operadores disjuntos. O
que nos intriga são as sentenças (24b-c), em que chegar e até estão associados. Para
esses casos, levantamos duas hipóteses: a) eles têm o mesmo valor semântico e o papel
de até é de ênfase ou redundância; b) eles têm valores semânticos diferentes e
precisamos explicitar o papel de cada um. Num primeiro momento consideramos os
dois similares, e explicamos a utilização de dois operadores como sendo uma questão de
ênfase. Apesar disso, é preciso dizer que, mesmo juntos, os escopos são diferentes: o de
chegar é brigar com Maria e o de até, chegou a brigar com Maria. A sentença (24d)
tem chegar com escopo sobre brigar e até com escopo sobre com a Maria. A
interpretação é de que Pedro fez uma atitude pouco provável (brigar) contra uma pessoa
com alguém que tinha poucas probabilidades de sofrer tal atitude (Maria).
Na segunda hipótese – a de que eles têm papéis diferentes – levantamos a
possibilidade de até, diferentemente de chegar, levar ao ponto extremo da escala.
Assim, chegar a brigar com a Maria seria o ponto máximo a que Pedro poderia chegar.
Enquanto, só o chegar leva a pressupor que brigar com a Maria é um ponto alto na
escala, mas não se pronuncia em relação ao ponto extremo.
3.3. A negação
Uma abordagem interessante feita por Fauconnier (1975) é com relação à
negação das sentenças em que há os superlativos. Para o autor, se um determinado
superlativo está no ponto mais alto ou mais baixo da tabela a negação fará com que ele
tome a posição extremamente inversa na escala. Observemos um exemplo:
(25) The loudest noise doesn’t bother my uncle.
‘O mais alto ruído não incomoda meu tio’.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008
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Parece claro que, se o ruído mais alto não incomoda o elemento Y, um ruído um
pouco mais baixo também não o incomodaria e o mais baixo ruído, muito menos. A
escala fica assim:
Escala S – negação
ponto mais baixo
x3
x2
x1
ponto mais alto
Fauconnier (1975) afirma que essa possibilidade de derivar uma sentença da
outra vem do fato de a escala ter subpartes em que há acarretamento. Assim, se x3
acarreta x2, que acarreta x1, sendo x3 verdadeira, x2 e x1 também são verdadeiras.
A negação com o auxiliar chegar sugere que o sujeito não atingiu o ponto
mínimo de uma escala marcada pelo infinitivo (com seus complementos e adjuntos),
como vemos em (26).
(26) O principal da língua é a capacidade de expressão, de construir
pensamentos e de transmiti-los, fazendo-os inteligíveis. Esta capacidade é que está se
perdendo progressivamente. A gente conversa com um jovem e vê que o falar é
interrompido a todo o momento. Muitas vezes ele não chega a completar a frase.
(Jornal do Brasil, 28 dez.1996)
Nessa sentença, a discussão é sobre a perda da capacidade de uso da língua de
acordo com a concepção de José Paulo Paes, autor da frase. Ele considera que o ponto
mais alto da língua – que acarreta outros – “é a capacidade de expressão, de construir
pensamentos e de transmiti-los, fazendo-os inteligíveis”. O ponto mínimo é completar a
frase. Observemos, nas escalas a seguir, que a negação inverte esses valores.
Afirmação
(ponto mais baixo) completar a
frase
Negação
(ponto mais baixo) não construir e
transmitir pensamentos
x3
x1
x2 falar não é interrompido
x2 falar é interrompido
x1
x3
(ponto mais alto) construir e
transmitir pensamentos
(ponto mais alto) não completar a
frase
Se o falante for capaz de cumprir com aquilo que afirma José Paulo Paes (o
ponto mais alto da afirmação: construir e transmitir pensamentos) é possível ver na
escala que isso acarreta os outros elementos, ou seja, o falante não interrompe as falas e
completa as frases.
A negação com chegar ainda pode ocorrer por meio do nem, combinado com
outros elementos, como vemos a seguir.
(27) a. Pedro nem chegou a brigar com Maria.
b. Pedro nem sequer chegou a brigar com Maria.
174
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008
c. Pedro nem mesmo chegou a brigar com Maria.
Um fato curioso em PB é que o até não pode ser antecedido por não (28a), ao
contrário do chegar (28b). No entanto, com a negação do verbo, até pode escolher
outras posições (28c-d). Esse fato reitera uma diferença sintática entre os elementos: até
pode escolher diversos elementos como escopo, por causa das diferentes posições que
pode ocupar numa sentença, enquanto chegar, pela posição fixa de anterioridade a um
verbo no infinitivo, só escolhe como escopo eventualidades.
(28)
a. * Pedro não até brigou com Maria.
b. Pedro não chegou a brigar com Maria.
c. Até Pedro não chegou a brigar com Maria.
d. Pedro até não chegou a brigar com Maria, mas olhou feio pra ela.
O que percebemos ainda é que o nem pode fazer o papel de até como um
operador de escala aliado à negação. Ele toma, aparentemente os mesmos escopos de
até. Repetimos aqui as sentenças (24a-b) e formulamos suas negações em (29a-b).
(24) a. Até Pedro chegou a brigar com a Maria.
b. Pedro até chegou a brigar com a Maria.
(29) a. Nem Pedro chegou a brigar com a Maria.
b. Pedro nem chegou a brigar com a Maria.
No caso de (30a-b), parece-nos muito ruim, ou pelo menos pouco produtivo,
fazer a negação e manter o até, mas é possível substituí-lo pelo nem, como em (30c-d).
(30) a. (??) Pedro não chegou até a brigar com a Maria.
b. (??) Pedro não chegou a brigar até com a Maria.
c. Pedro não chegou nem a brigar com a Maria.
d. Pedro não chegou a brigar nem com a Maria.
Como já afirmamos no final do item 2, não sabemos ainda porque é possível
associar dois operadores escalares numa mesma sentença, nem por que o falante faz
isso. Não estamos certos se é questão de ênfase ou de natureza semântica, embora pelos
exemplos analisados, parece-nos ser o segundo caso. O fato é que a presença da
negação faz com que o escopo mude de posição na escala: enquanto na afirmação ele é
o menos informativo, na negação passa a ser o mais informativo, aquele que pressupõe
os demais. E isso é uma semelhança entre os operadores chegar e até.
4. Conclusão
Percebemos que a utilização de chegar como verbo auxiliar tem semelhanças
com até, entre elas, a de ser um operador que indica o ponto mais informativo de uma
determinada escala pragmática. A principal diferença é com relação ao posicionamento
de ambos na sentença, o que ocasiona uma mudança de escopo e, conseqüentemente, de
interpretação da sentença: enquanto até pode anteceder NP, VP, PP e outros sintagmas,
o auxiliar chegar antecede apenas o verbo no infinitivo, sempre ligado pela preposição
a. Com relação à negação, justamente pela flutuação na sentença, até tem mais
restrições quanto à negação e, na maioria das vezes, parece ser substituído pelo nem
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008
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como um operador de negação. Já o chegar, como não muda de posição, pode ser
antecedido por negação, seja pelo não ou outro termo, como nem ou sequer.
Notas
Usaremos o sinal #, para representar anomalia semântica.
Núcleo do predicado, conforme Perini (2001).
Os exemplos (6) e (7) são de Longo & Campos (2002).
Determiner Phrases.
2
3
4
Referências
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infinitivo. Assis-SP: ILHPA - Hucitec.
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176
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008
O caráter formalmente complexo das nominalizações1
Roberto Gomes Camacho
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas – Universidade Estadual Paulista
Rua Cristóvão Colombo, 2265, CEP 15054-000- São José do Rio Preto, SP.
camacho@ibilce.unesp.br
Abstract. This paper aims to show that the semantic and pragmatic nature of
argument relations in nominalizations is reflected onto the formal
configuration of the valency expression in terms of overt or non-overt
especification whose effect is a relative notion of grammar autonomy. To do
justice to the semantically and pragmatically complex nature of
nominalizations, the formal representation at the Structural Level, as
conceived by Functional Discourse Grammar, should also include two further
layers of representation which are proposed here as internal and external
syntax in strict correspondence with the same kind of layers at Interpersonal
and Representational Levels.
Keywords. Nominalization; argument structure;
Representational Level; Functional Grammar.
Interpersonal
Level;
Resumo. O objetivo geral deste trabalho é demonstrar que a natureza
semântica e pragmática das relações argumentais das nominalizações produz
reflexos na configuração formal da expressão valencial em termos de
especificação ou não especificação formal, traduzindo um conceito relativo de
autonomia gramatical. Demonstra-se, mais especificamente, que, para fazer
justiça ao caráter semântica e pragmaticamente complexo das
nominalizações, a representação formal, no Nível Estrutural, tal como é
concebido pela Gramática Discursivo-funcional, deve necessariamente conter
também duas camadas de representação, aqui propostas como como sintaxe
interna e sintaxe externa, em correspondência estreita com o mesmo tipo de
camadas nos níveis Interpessoal e Representacional.
Palavras-chave. Nominalização; estrutura argumental; Nível Interpessoal;
Nível Representacional, Gramática Funcional.
1. Introdução
Um dos traços mais marcantes da teoria lingüística é uma refinada divisão social
do trabalho em função da natureza extremamente complexa do objeto de estudo. Tem
sido mais ou menos consensual nos últimos anos que o estudo da gramática seja tarefa a
ser cumprida por dois enfoques alternativos, o funcional e formal. Nesse âmbito, uma
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008
177
questão central no debate entre funcionalistas e formalistas é saber se as gramáticas são
autônomas ou não em relação aos fatores externos. Como, no geral, essa questão é
geralmente simplificada, diante da complexidade dos conceitos de autonomia e
explanação funcional, ela requer um tratamento rigoroso dos termos formal e funcional.
Uma das razões pela qual o uso desses termos não pode ser considerado
esclarecedor, principalmente quando aplicados aos dois paradigmas alternativos, é a
própria ambigüidade no uso do termo formal. Segundo Newmeyer (1998), ele pode
referir-se tanto autonomia da forma ou da estrutura gramatical em oposição ao
significado ou uso, quanto à utilização de um sistema notacional para expressar de
modo preciso e exato as observações e as generalizações lingüísticas.
Ao discutir essa segunda acepção, Nuyts (1992) afirma que qualquer intenção de
modelar um objeto requer formalização, traço metodológico que não pode ser, assim,
restrito às teorias formalistas, já que também os funcionalistas empregam sistemas
matemáticos de notação. A controvérsia em torno dos termos formal e funcional acaba
por ocultar, assim, o fato de que diferenças de formalização não passam de mera
questão de grau, já que alguns modelos funcionalistas mantêm um elevado grau de
formalismo e de explicitude notacional.
Croft (1995) estabelece uma distinção relevante entre dois aspectos da noção de
autonomia, que, ao cruzar-se com o sentido de autonomia sintática, abre caminho para
adicionar ainda mais confusão ao debate: os conceitos de arbitrariedade e autosuficiência. No caso de a autonomia ser aplicada à sintaxe, a arbitrariedade representa a
idéia de que regras ou elementos sintáticos são capazes de predizer corretamente o
comportamento gramatical da língua, por não se derivarem de propriedades semânticas
ou discursivas; já o conceito de auto-suficiência representa o fato de que o sistema
sintático contém elementos e regras que interagem intimamente entre si sem a
interferência de qualquer tipo de propriedade semântica ou discursiva
Dessa discussão, deduz-se que a diferença real entre funcionalistas e formalistas
não reside, assim, na utilização de sistemas notacionais, mas no grau de independência
ou de autonomia das relações formais ou gramaticais em relação ao significado e ao uso
que os falantes fazem delas no contexto comunicativo. É justamente neste sentido
preciso do termo formal que a diferença entre as gramáticas formais e as funcionais
deixa de ser uma questão relativa para ser uma questão absoluta.
Como os formalistas, os funcionalistas também analisam a estrutura gramatical,
mas assumem o compromisso de que ela é, em grande medida, condicionada por fatores
derivados de uma função primordial da linguagem, a de ser instrumento de
comunicação e de interação social. Nesses termos, pode haver uma correspondência não
arbitrária entre forma e função, princípio que é prontamente recusado pelos formalistas
que defendem expressamente a autonomia da gramática.
O objetivo geral deste trabalho é demonstrar que a natureza semântica e
pragmática das relações argumentais das nominalizações produz reflexos na
configuração formal da expressão valencial, em termos de ser ou não formalmente
especificada, traço que acaba por traduzir um conceito relativo de autonomia
gramatical.
Assumindo a perspectiva da Gramática Discursivo-Funcional (HENGEVELD,
2004), demonstro mais especificamente que, para fazer justiça ao caráter semântica e
pragmaticamente complexo das nominalizações, a representação formal, no Nível
Estrutural, deve necessariamente conter duas camadas de representação, aqui propostas
178
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008
como sintaxe interna e sintaxe externa, em correspondência aos níveis Interpessoal e
Representacional.
O trabalho se organiza da seguinte maneira: a seção 2 fornece uma breve
descrição do modelo corrente de Gramática Funcional, a Gramática Discursivofuncional. Na seção 3, eu discuto alguns dados particularmente selecionados de
manifestação argumental nas nominalizações para mostrar o efeito de motivações
pragmáticas e semânticas na explicitação formal da valência. Na seção 4, forneço uma
explicação formal para esses casos e, na seção 5, apresento algumas considerações
finais.
2. O modelo teórico
A Gramática Discursivo-Funcional (doravante GDF), que é, conforme
Hengeveld (2004) e Hengeveld & Mackenzie (2006), uma nova versão da Teoria da
Gramática Funcional de Dik (1989; 1997), caracteriza-se pelas seguintes propriedades:
(1) Como um modelo da competência gramatical de usuários individuais, a GDF visa ao
estudo do componente gramatical, que, constitui, por sua vez, juntamente com um
componente conceitual, um contextual e um componente de saída, um modelo mais
abrangente para explicar o uso de uma língua.
(2) Como a GDF toma como unidade básica de análise o ato discursivo, é uma
gramática do discurso e não uma gramática da sentença, e os atos discursivos de que
trata podem ser maiores ou menores que uma sentença.
(3) A GDF distingue os Níveis Interpessoal, Representacional, Estrutural e Fonológico
de organização lingüística.
(4) A GDF ordena esses níveis em uma direção descendente, que se inicia com a
representação das manifestações lingüísticas que recobrem as intenções
comunicativas do falante no Nível Interpessoal e segue gradualmente com as
representações dos níveis mais baixos até o fonológico.
(5) A GDF organiza os níveis de representação em camadas hierarquicamente
estruturadas.
Ao organizar a gramática desse modo, a GDF assume um posicionamento
nitidamente funcionalista, considerando que, no âmbito da orientação descendente, a
pragmática governa a semântica, e a semântica, por sua vez, governa a morfossintaxe, e
todas governam a fonologia. Além disso, esse modo de organização habilita a GDF a
ser uma gramática discursiva em vez de uma gramática da sentença, na medida em que
o ponto de partida reside justamente nas unidades relevantes de comportamento
comunicativo, não importando se tais unidades são expressas como sentenças ou não.
A GDF é um exemplo de modelo comprometido com a orientação funcional
com o objetivo explícito de construir um sistema de representação formal. Esse sistema
de representação formal, caracterizado pela introdução de variáveis, níveis e módulos de
representação, está diretamente envolvido com a necessidade de caracterizar a função
comunicativa da linguagem, integrando, portanto, aspectos comunicacionais na própria
arquitetura do modelo formal (HENGEVELD, 1998).
O sistema subjacente à construção das expressões lingüísticas é um sistema
funcional. Por princípio, deve ser estudado no marco das regras, princípios e estratégias
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008
179
que regem seu uso comunicativo natural (DIK, 1997).
Como o modelo separa estritamente os níveis de representação de cada ato
discursivo em termos de diferentes níveis e camadas, a interação entre os níveis e
camadas de organização lingüística pode ser estudada sistematicamente. Este trabalho
explora justamente o grau em que essa organização formal conduz a uma compreensão
muito satisfatória de alguns aspectos relacionados à expressão argumental na
nominalização.
A Figura 1 dá uma visão geral do modelo da GDF conforme desenvolvido por
Hengeveld (2004).
Figura 1: Arcabouço geral da GDF (cf. HENGEVELD, 2004, p.371)
A representação da estrutura hierárquica no Nível Interpessoal aparece na Figura
2.
180
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008
(M1: [(A1: [ (F1) (P1)S (P2)A (C1: [...(T1) (R1)...] (C1))] (A1))] (M1))
Figura 2: Nível Interpessoal
A unidade de análise hierarquicamente mais alta nesse nível é o move (M), que
pode conter um ou mais atos de discurso (A). Um ato de discurso se organiza com base
em um esquema ilocucionário (F), que tem os dois participantes do ato de fala (P, o
locutor S e o alocutário A) e o conteúdo comunicado (C), que é evocado pelo falante
como seus argumentos. O conteúdo comunicado, por sua vez, pode conter um número
variável de atos atributivos (T) e atos referenciais (R). Note que as duas últimas
camadas operam no mesmo nível, não havendo, portanto, relação hierárquica entre elas.
No Nível Interpessoal, as unidades são analisadas em termos de sua função estritamente
comunicativa.
No nível representacional, são relevantes as camadas apresentadas na Figura 3.
(ep1: [p1: [(e1: [ (f1) (x1) ] (e1))] (p1))] (ep1))
Figura 3: Nível Representacional
Nesse nível de análise, descrevem-se as unidades lingüísticas em termos do tipo
de entidade semântica que elas designam. Esses tipos de entidades são de diferentes
ordens: entidades de terceira ordem ou conteúdos proposicionais (p), entidades de
segunda ordem ou estados de coisas (e), entidades de primeira ordem ou indivíduos (x)
e, finalmente, entidades de ordem zero, ou propriedades (f). Conteúdos proposicionais
podem ser adicionalmente agrupados em Episódios (ep). Note que entidades de primeira
ordem e de zero ordem pertencem à mesma camada, o que implica não haver relação
hierárquica entre elas.
No Nível Estrutural, as representações da estrutura de constituintes nos níveis da
oração, do sintagma e da palavra são fornecidas como exemplo na Figura 4.
[[[lexemaAdj] AdjS lexemaN]SN [lexemaAdv]AdvS ] SV]OR
Figura 4: Nível Estrutural
Nesse nível, as unidades subjacentes tornam-se menos universais e, portanto,
mais especificamente inerentes a uma língua particular, mas a teoria postula que
diferenças entre as línguas podem ser descritas sistematicamente com base em
parâmetros tipológicos.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008
181
Uma importante propriedade do modelo é a de que os diferentes níveis de
organização são constituídos mediante o uso de diferentes conjuntos de primitivos. O
Nível Interpessoal e o Representacional são estruturados com base em esquemas
pragmáticos e semânticos em que se inserem lexemas e operadores primários, isto é,
definidos em termos de seu significado. O Nível Estrutural, por seu lado, organiza-se
em termos de diferentes esquemas estruturais (templates) em que se inserem palavras
gramaticais e operadores secundários, isto é, operadores que antecipam formas
gramaticais presas ou dependentes.
Finalmente, é importante ressaltar que os níveis são relacionados entre si através
de operações, representadas pelos círculos na Figura 1. Há uma distinção fundamental
entre a Formulação, por um lado, e a Codificação, por outro. O processo de formulação
relaciona-se com a especificação das configurações pragmáticas e semânticas
codificadas na linguagem. O processo de codificação relaciona-se, por seu lado, com a
forma morfológica e fonológica que as configurações pragmáticas e semânticas
assumem. Essa distinção é diretamente relevante para o modo como a pesquisa
tipológica é realizada dentro do arcabouço teórico da GDF, considerando que algumas
diferenças entre as línguas refletem diferenças na formulação enquanto outras podem
ser atribuídas a diferenças na operação de codificação.
2. Motivações semânticas e pragmáticas para a não expressão de valência
A nominalização tem como modelo prototípico o nome comum não-derivado e,
como tal, usa a forma de possuidor (sintagma-de), típica dos nomes comuns, para a
expressão argumental. O modelo prototípico de expressão de um tipo primário de
termo, que se refere a uma entidade de primeira ordem, contém, segundo Dik (1997),
constituintes como determinantes, quantificadores, possuidores, modificadores e, por
definição, um nome como núcleo.
Entretanto, como a nominalização se referere a uma entidade de ordem superior,
como um estado de coisas, a correspondência entre os argumentos do nome e os do
verbo input deve estar representada na estrutura subjacente de ambas as classes de
palavras, conforme está formalizado na regra em (1a) de formação de predicados, para
nomes derivados por sufixação, como, por exemplo, destruição.
(1) a
Formação de nome deverbal em português (em –ção)
Input: pred [V] (x1)Agente (x2) Paciente
Output: pred-ção [N] (x1)Agente (x2)Paciente (cf. Dik, 1997, p.166)
O esquema de predicado verbal em (1b), que serve de base para a nominalização
em (1c), está separadamente especificado no léxico.
(1)
182
b
Destruir [V] (x1)Agente/Força (x2) Paciente
c
Destruição [N] (x1)Agente/Força (x2) Paciente
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008
Mesmo tendo entrada lexical distinta do verbo, a nominalização mantém a
correspondência sintático-semântica com o predicado verbal por herança derivacional.
Como na GF standard o esquema de predicado está fortemente associado com o item
lexical correspondente, a diferença formal entre um predicado verbal e o predicado
nominal derivado não está na estrutura argumental, mas apenas no rótulo categorial que
cada um recebe, como demonstrado em (1b) e (1c). Nesse caso, tanto a valência do
nome quanto do verbo podem estar expressas em algum lugar do enunciado, ou seja,
exterior em relação ao próprio núcleo da predicação.
Se a valência potencial pode ser expressa no exterior do núcleo nominal, é
possível considerar como argumentos alguns tipos de termos não fonologicamente
manifestos na posição de primeiro e de segundo argumento da nominalização, que são
expressos por dois diferentes tipos de zero anafórico.
O primeiro caso de zero anafórico, contido em (2a), representa um participante,
o primeiro argumento, que é semanticamente compartilhado com o predicado da oração
matriz, como mostra (2b). Note-se, de passagem, que (2a) traz especificação, como SN
pleno, apenas do segundo argumento, que aparece sob a forma de sintagma-de (de
frutos... raízes).
(2) a
eles dependiam... da colheita... de frutos... raízes...que eles não plantavam. (EF-SP-405)
b eles colhiam frutos, raízes
A mesma nominalização de (2a) com o primeiro argumento especificado em
(2c) não seria uma construção aceitável por razões de redundância, já que o agente já se
acha mencionado no sujeito de dependiam, que funciona como núcleo da predicação
matriz
(2) c
se eles dependiam... da colheita..(* por eles) de frutos... raízes....que eles não plantavam (EFSP-405)
Vale lembrar que essa condição se sustenta apenas no caso de haver identidade
de participantes entre dois diferentes estados de coisas. Em (2d) o argumento1 da oração
matriz é as mulheres, enquanto o argumento1 da nominalização encaixada é os homens.
Nesse caso, em que não há identidade de participantes, a gramática licencia o agente da
nominalização.
(2) d
as mulheres dependiam... da colheita...pelos homens de frutos... raízes.... que elas não
plantavam (EF-SP-405)
O segundo tipo de zero, que é também anafórico, representa termos que
recuperam alguma entidade dada, já mencionada no texto precedente, não
necessariamente na predicação matriz, como se vê em (3a), cujo predicado verbal
correspondente está representado em (3b).
(3)
a
nessa época ainda não existe preocupação com composição... (EF-SP-405)
b
Nessa época o homem pré-histórico não se preocupa com composição.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008
183
Como o tópico do texto é a arte do paleolítico, há várias menções anteriores ao
homem pré-histórico. É por isso que, em (3c), a mesma nominalização com o
argumento especificado continuaria sendo uma construção aceitável. O outro argumento
é composição, que aparece na forma de oblíquo do predicado verbal input
(3) c
nessa época ainda não existe preocupação do homem pré-histórico com composição... (EF-SP405)
Isso significa que, nesse aspecto, (3a) é diferente de (2a): a manifestação ou não
do primeiro argumento em (3a) é uma escolha real do falante, diferentemente de (2a)
que bloqueia a manifestação do argumento na função semântica de agente.
Passemos, agora, ao exame de casos de zero anafórico na expressão do segundo
argumento, conforme se vê no exemplo contido em (4a-b). O zero anafórico de (4a)
representa um participante semanticamente compartilhado com o predicado da oração
matriz na posição de segundo argumento, o que equivaleria, na predicação verbal de
(4b) ao objeto ou argumento interno de criar.
(4) a ele percebeu que era capaz de CRIAR::... e criar uma imagem... então:: ele vai tentar usar esta
criação... que ele é capaz de fazer... para garantir a caça...(EF-SP-405:52-3)
b
O homem pré-histórico criou uma imagem.
A mesma nominalização com o segundo argumento especificado em (4c) é uma
construção discursivamente menos aceitável por razões de redundância, uma vez que o
paciente já se acha mencionado no objeto de criar, que aparece negritado.
(4) c
ele percebeu que era capaz de CRIAR::... e criar uma imagem... então:: ele vai tentar usar esta
criação (*da imagem)...... para garantir a caça...
Os argumentos de criação, em (4a), que recebem ambos expressão de zero
anafórico na sintaxe interna do predicado nominal, são facilmente recuperáveis no
cotexto: o primeiro argumento é ele (homem pré-histórico) e o segundo é imagem; no
entanto, o licenciamento da especificação formal dos argumentos é bloqueada na
retomada seguinte, o que tornaria estranha a versão com especificação do paciente em
(4c).
Os dados analisados mostram que há, portanto, duas motivações para os
diferentes tipos de zeros na expressão argumental: uma motivação semântica, que
consiste nos casos de identidade de participantes mediante relação anafórica, e uma
motivação pragmática, caso em que a identidade existe, mas a primeira menção da
entidade referida está textualmente distante e pode ser tecuperada mediante expressão
por zero anafórico ou por expressão lexical na segunda menção.
Ambas as motivações são governadas pelo mesmo princípio funcional de
economia que representa uma pressão para a simplificação máxima da expressão. Tratase aqui, de acordo com Haiman (1983), do princípio de economia sintagmática ou
184
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008
discursiva, que explica a tendência pela omissão de informação redundante ou
recuperável no contexto.
A economia representa uma tendência para o mínimo esforço e simplificação
máxima da expressão. A economia sintagmática é a tendência para reduzir o
comprimento ou a complexidade do enunciado, de modo que as expressões mais
freqüentes no uso tendêm a reduzir-se fonologicamente e a informação redundante ou
recuperável no contexto comunicativo tende a ser omitida.
6.Uma proposta de interpretação formal
Como os dados discutidos mostram a plausibilidade da hipótese de preservação
de valência, é óbvio que nomes primários e derivados devem já vir selecionados do
léxico com sua própria estrutura valencial. Conforme demonstrado acima, são as
motivações semânticas e pragmáticas que acionam a forma de expressão no Nível
Estrutural, em termos de especificação ou não especificação formal. Sendo assim, é
preciso considerar, em primeiro lugar, como as nominalizações entram na formulação a
partir de sua organização lexical.
Na análise apresentada neste trabalho, sustenta-se que, se a estrutura argumental
permanece preservada, tanto um predicado verbal, quanto um predicado nominal deve
receber exatamente o mesmo esquema de predicação, no qual é feita a inserção do
lexema respectivo, caso se trate de um nome ou de um verbo2. Para fornecer uma
representação formal simplificada dessa interpretação, considerem-se os exemplos
contidos em (5a) e (6a) e os esquemas de predicação em (5b) e (6b), já com a
interpretação de que as nominalizações são relações (f) no Nível Representacional e
subatos atributivos (T) encaixados em subatos referenciais (R) no Nível Interpessoal. A
valência quantitativa é variável de acordo com a natureza do lexema que for escolhido
no léxico, que permite a expressão de (5a-b) respectivamente, de modo similar à dos
predicados verbais correspondentes:
(5) a. A manifestação dos grevistas causou transtorno no trânsito.
b.
(Ri [ T
Rj
]
(Ri))
(ei: [(fi:
(fi:) (xi)Proc)]
(ei ))
(6) a. A destruição de Bagdá pelo exército americano causou a morte de civis.
b
(Ri [ T
(ei: [(fi:
Rj
Rk
]
(Ri))
(fi:) (xi) Ag (xj)Go)]
(ei))
Esses esquemas expressam que os lexemas manifestação e destruição designam
uma relação (aqui representada pela variável ‘f’) entre duas entidades (representadas
pela variável ‘x’). A presença dessas duas variáveis na representação do lexema do
nome, segundo Garcia Velasco & Hengeveld (2002, p.114), guia o processo de ligação
na direção de um esquema de predicação de um lugar para (5a), e de dois lugares, para
(6a).
Resta agora discutir o modo como os níveis Interpessoal e Representacional
acionam a forma de expressão da estrutura valencial no Nível Estrutural. Para a hipótese
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008
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de preservação de valência, todas as variantes dispõem de estrutura argumental
completa a partir da formulação, licenciando o Nível Estrutural a produzir variantes em
resposta aos níveis Interpessoal e Representacional
Vários graus de interconexão oracional determinam compartilhamento de
marcação de tempo, aspecto modo e também de participantes, fenômeno conhecido por
integração semântica (GIVÓN, 1980; 1990; NOONAN, 1985). Essas evidências de
integração semântica, abundantemente fornecidas na literatura, mostram que o Nível
Representacional age diretamente na formulação, sem qualquer interferência do Nível
Interpessoal, produzindo, portanto, uma explicação para os casos de anáfora zero
motivados por predeterminação semântica.
Entretanto, que explicação dar para os casos de anáfora zero motivados por
seleção consciente do falante em função da acessibilidade presumida de referente na
memória de curto prazo do ouvinte? A resposta mais plausível para essa questão reside
no modo como os níveis interagem no processo de implementação dinâmica.
Dado que a GDF constitui um modelo gramatical da produção, sua eficiência é
diretamente proporcional ao modo como ele se assemelha à produção lingüística;
Assim, Hengeveld (2005) desenvolve a idéia de implementação dinâmica, relacionada
ao aceleramento da implementação da gramática, o que requer dois princípios
relacionados à produção: o Princípio da Profundidade em Primeiro Lugar (Depth First
Principle) e o Princípio da Profundidade Máxima (Maximal Depth Principle).
A Figura 5 representa os percursos possíveis da produção através da gramática.
Segundo Hengeveld (2005), as flechas horizontais 1, 8 e 11 sinalizam o modo como as
várias operações implementam a consulta aos conjuntos de primitivos, enquanto as
linhas verticais sinalizam o modo como a gramática é dinamicamente implementada
durante a produção.
Esquemas,
Lexemas,
Operadores Primários
Formulação
Nível Interpessoal
Nível Representacional
Templates,
Auxiliares,
Operadores Secundários
Codificação
Morfossintática
Nível Estrutural
Padrões Prosódicos,
Morfemas
Operadores Secondários
Codificação
Fonológica
Nível Fonológico
Figura 5: Percursos através da gramática (HENGEVELD, 2005, p. 75)
186
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008
De acordo com o Princípio da Profundidade em Primeiro Lugar, a informação de
um nível da gramática é remetida para um nível mais baixo logo que a informação
input, requerida por esse nível mais baixo, já esteja completada no nível mais alto. A
gramática teria um processamento consideravelmente lento, se as informações
requeridas pelo Nível Interpessoal, que é o mais alto, tivessem que ser completamente
especificadas em primeiro lugar e, em seguida, do mesmo modo, as do Nível
Representacional, de forma que, somente então a configuração morfossintática seria
determinada e, em seguida, projetada sobre configuração fonológica.
O Princípio da Profundidade Máxima afirma que somente os níveis de
representação relevantes para a construção são usados na produção de um dado aspecto
do enunciado. Esse princípio acelera a implementação da gramática por evitar a
especificação vazia de níveis de representação irrelevantes à produção do enunciado em
questão.
Como a GDF representa uma visão modular da gramática, a pragmática, a
semântica, a morfossintaxe e a fonologia são desenvolvidas em níveis completamente
independentes, mas relacionados. A implementação dinâmica fornece um percurso
através do qual informação de curto termo pode ser acessada, enquanto as escolhas
complementares relevantes estão sendo executadas no Nível Representacional.
A análise das motivações de expressão argumental por anáfora zero mostra que,
em relação aos argumentos semanticamente compartilhados, é o Nível Representacional
que exerce o papel relevante na etapa de Formulação, sem qualquer interferência do
Nível Interpessoal.
Conforme prediz o Princípio da Profundidade em Primeiro Lugar, os casos de
anáfora zero motivados por predeterminação semântica, como os contidos em (7), são
produzidos mediante o seguinte percurso através da gramática 1
3
6
8 9
10; nesse caso, o Nível Interpessoal não é acessado.
(7)
e eles conseguem chegar... a é óbvio uma evolução [* deles] certo? (EF-SP-405:57)
Todavia, os casos de anáfora zero, que são pragmaticamente determinados,
como os contidos em (8), são ativados pelo seguinte percurso: 1
2
4
8
9
10; portanto, agora é o Nível Representacional que deixa de ser acessado
(8)
então eles tinham que acompanhar o movimento ∅ [=dos animais] também:: (EF-SP-405)
Após impor a seleção do lexema apropriado com seu respectivo esquema de
predicado a (7), o Nível Representacional determina a forma de zero anafórico para o
primeiro argumento da construção encaixada. Contudo, quanto a (8), a forma de zero
anafórico atribuída ao primeiro argumento não é semanticamente predeterminada, mas é
motivada por razões de natureza pragmática, ou seja, pelo status informacional dos
referentes no discurso
Desse modo, conforme a natureza da motivação, se semântica ou pragmática, o
falante consulta o Componente Contextual para verificar que entidades já estão
disponíveis ao Ouvinte, a fim de prover o Nível Estrutural com a forma mais adequada.
Embora um tipo de decisão se liga ao Nivel Representacional e o outro tipo, ao Nível
Interpessoal, o resultado final pode ser exatamente o mesmo no Nível Estrutural, ou
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008
187
seja, expressão argumental por zero anafórico
Outra questão que se coloca naturalmente é a de como considerar, no arcabouço
da FDG o caráter híbrido das nominalizações, a meio caminho entre a referência a uma
entidade de primeira ordem, como os nomes comuns concretos, e a referência a
entidades de ordem superior, como estados de coisas e proposições. A título de
exemplificação, considere-se o predicado de dois lugares destruição em (9a).
(9) a
A destruição de Bagdá pelo exército americano causou mortes de civis.
Também por efeito de simplificação, considere-se a representação subjacente da
nominalização, encaixada como dependente na posição de sujeito da predicação matriz.
Para dar conta do caráter categorial híbrido da nominalização, é necessário considerar
que ele representa, no Nível Interpessoal, um Subato Atributivo, próprio de uma
predicação, dentro de um Subato Referencial, próprio de uma entidade, tal como se
representa em (9b), e, no Nível Representacional, representa a atribuição de uma
propriedade (f) a duas entidades referenciais (Bagdá e exército americano), que
constitui a predicação encaixada numa proposição em (9c).
A destruição de Bagdá pelo exército americano
(9) b
(Ri [Ti
(Rj)
(Rk)
]
(Ri))
(9) c
(ei [(fi: destruição)N (fi)
(x1: exército americano(xi)Ag (x2: Bagdá (x2)Pat]
(ei))
O modo como os argumentos dessa predicação encaixada são expressos vai
depender, como se viu anteriormente, de processos de predeterminação semântica,
motivados pelo grau de conexidade entre a oração da predicação encaixada e a oração
da predicação matriz, ou por processos pragmáticos, motivados pelo grau de
acessibilidade de informação no discurso corrente. Todos esses processos de expressão
argumental são repercussões diretas dessas motivações funcionais no Nível Estrutural.
Assim, para fazer justiça às motivações funcionais e ao caráter semântica e
pragmaticamente híbrido das nominalizações, a expressão morfossintática deve
respeitar as duas camadas de atuação nos níveis Interpessoal e Representacional e
receber também duas camadas de representação, que poderiam ser denominadas de
sintaxe interna e sintaxe externa, em atenção à proposta de Haspelmath (1995) para
lexemas derivados por flexão. O autor se refere a processos de derivação por flexão
transposicional, muito produtivos num grande número de línguas, que determinam um
caráter morfossintaticamente híbrido para as formas resultantes, conforme sua
representação da forma singende do alemão, que se transcreve em (10).
(10) der
the
im Wald
laut
singV – endeAdj Warderer
in:the forest
loud
sing-PTPC
‘the hiker (who is) singing loud in the forest’
hiker
(Haspelmath, 1995, p. 44)
Parece ser útil aplicar o mesmo padrão a outras formas híbridas como singende,
mas produzidas por processos comuns de derivação por sufixação, do que resultaria a
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ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008
seguinte representação morfossintática para a expressão nominal a destruição deBagdá
pelo exército americano :
(11) [ [d1[destruir]v ção]N [de Bagdá]SP] [pelo exército americano] SP ] SN
O esquema representado em (12) abaixo é uma tentativa de representar o SN de
acordo com os três níveis de organização previstos pela GFD:
(12)
(Ri [(Ti)
(Rj)
(Rk) ](Ri))
(ei [(f1)
(xi)Pat
(xj)Ag] (ei))
[[d1[destruir]v ção]N [de Bagdá]SP] [pelo exército americano] SP ] NP
Uma das razões para nominalizar é a possibilidade que detêm os nomes
derivados de retomar, por substituição lexical, outras predicações já mencionadas no
discurso precedente, como se observa, por exemplo, em (13a-b).
(13) a os animais iam hibernar outros... imigravam para lugares mais quentes eles também precisavam
acompanhar....o a migração da caça se não eles iam ficar sem comer... (EF-SP-405)
b criar uma pessoa...ou criar uma imagem é mais ou menos a mesma coisa... no sentido de que
nós estamos criando uma coisa nova... do nada... eu não tinha nada aqui passo a ter a imagem da
minha mão... e esta idéia de criação é que ainda ( ) é representação... (EF-SP-405)
A mesma relação em dois diferentes níveis morfossintáticos pode representar a
forma dos argumentos na forma de adjetivo, como se pode ver em (14) e (15).
(14)
(...) então nós vamos começar pela Pré-História... hoje exatamente pelo período... do
paleolítico... a arte... no período paleolítico [...] as:: manifestações artísticas começaram a
aparecer no paleolítico superior (EF-SP-405)
(15)
no final das contas toda a evolução humana... não deixa de ser exatamente a evolução do
domínio que o homem tem sobre a natureza... (EF-SP-405)
A forma de manifestação de primeiro argumento como adjetivo mostra que a
representação morfossintática deve acompanhar a recuperação lexical de um nome
mencionado no discurso precedente como em (14); todavia, o adjetivo pode ser
retomado como nome no discurso subseqüente, como (15).
Essas possibilidades de intercâmbio entre as categorias lexicais nas relações de
substituição lexical consistem num forte argumento para considerar os adjetivos como
expressão argumental similar a nomes e não como mero modificadores, relação mais
apropriada para nomes de primeira ordem, como em utensílio humano. Essas evidências
de natureza textual-discursiva sugerem que a ligação entre lexemas e esquemas de
predicação deve ser desenvolvida tanto com base na sintaxe interna quanto com base na
sintaxe externa; na sintaxe interna, um nome deverbal ocupa apenas provisoriamente a
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008
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posição estrutural de um verbo, assim como um adjetivo, a de um nome, enquanto na
sintaxe externa trata-se de nome, na função de núcleo de um sintagma nominal e de um
adjetivo, na função de modificador. O ajuste a que se refere Dik (1985; 1997) dos
nomes derivados de ordem superior ao nome prototípico de primeira ordem se aplica,
portanto, somente à sintaxe externa.
6. Conclusão
Fazendo um balanço final do que pretendia demonstrar, começaria essas
considerações finais, reafirmando o compromisso teórico que assumi com um modelo
funcionalista, que explica a configuração formal das expressões lingüísticas com base
em fatores derivados da função da linguagem como instrumento de interação social com
base no postulado de que a correspondência entre forma e função é de alguma maneira
não-arbitrária e, portanto, a gramática tem uma constituição nem autônoma, nem autosuficiente.
Nesse percurso, enfoquei a estrutura argumental de nominalizações, mostrando
que a não especificação da estrutura valencial é determinada por motivações de ordem
pragmática, ligadas ao Nível Interpessoal e por motivações de ordem semântica, ligadas
ao Nível Representacional.
Nesse caso, ao produzir reflexos evidentes na configuração formal dos nomes
em termos de especificação ou não especificação formal, a natureza semântica e
pragmática das relações argumentais traduz um conceito relativo de autonomia
gramatical.
Além disso, a natureza semântica e pragmaticamente complexa das
nominalizações refletiu-se em sua própria representação formal, no Nível Estrutural, na
medida em que essa configuração conduziu à necessidade de postular duas camadas de
representação, propostas como sintaxe interna e sintaxe externa.
Como o modelo funcional utilizado separa estritamente os níveis de
representação de cada ato discursivo em termos de diferentes níveis e camadas, a
interação entre os níveis e camadas de organização lingüística pode ser estudada
sistematicamente. Este trabalho explorou justamente o grau em que essa organização
formal conduz a uma compreensão muito satisfatória de alguns aspectos semânticos e
pragmáticos relacionados à expressão argumental na nominalização.
Notas
190
1
Este trabalho é um resultado do desenvolvimento do projeto A estrutura argumental dos nomes
deverbais, desenvolvido para o CNPq de 2003 a 2006, na qualidade de Bolsista de Produtividade em
Pesquisa (Processo n° 30118592-1).
2
Santana (2004) apresenta uma solução similar, mas não idêntica à apresentada aqui. Enquanto ela
defende que os predicados não-referenciais teriam um esquema de predicação avalente, minha
interpretação aqui é a de que referencialidade é um traço do Nível Interpessoal, o que produz nãoexpressão de argumentos no Nível Estrutural.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008
Referências Bibliográficas
CROFT, W. (1995) Autonomy and functionalist linguistics. Language, v. 71, p. 490532.
DIK, S.C. Formal and semantic adjustment of derived constructions. In: BOLKSTEIN
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192
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008
Gostava que fizessem este exercício. – Gostava ou gostaria?
Talita de Cássia Marine1, Juliana Bertucci Barbosa1
1
bolsistas CNPq e CAPES/PDEE; doutorandas em Lingüística e Língua Portuguesa
pela Faculdade de Ciências e Letras – Universidade Estadual Paulista (UNESP),
Rodovia Araraquara–Jaú, Km 1– 14800-901 – Araraquara– SP – Brasil
talita.marine@gmail.com, juliananbertucci@gmail.com
Abstract. In this research we analyzed the use of “Pretérito Perfeito” and
“Futuro do Pretérito” with the verb “gostar” in a corpus of the European
Portuguese Contemporary. Results showed that: (i) the form “gostava” have
been replacing the form “gostaria” in modal contexts; (ii) the form “gostava”
have been using to express “wish” and/or “request”.
Keywords. tense; European Portuguese; modality; semantics features.
Resumo. Neste trabalho analisamos o uso do Pretérito Imperfeito e do Futuro
do Pretérito com o verbo “gostar” em um corpus de Português Europeu
Contemporâneo. Os resultados mostraram que: (i) a forma “gostava” está
substituindo a forma “gostaria” em contextos modais; (ii) a forma “gostava”
é empregada para expressar “desejo” ou/e “solicitação”.
Palavras-chave. tempo verbal; Português Europeu; modalidade; traços
semânticos.
1. Introdução
O objetivo deste artigo é fazer uma breve análise sobre a alternância entre o uso do
Pretérito Imperfeito e do Futuro do Pretérito do modo Indicativo com o verbo “gostar”
no Português Europeu (PE) contemporâneo, a fim de verificar em quais situações essas
formas estão sendo utilizadas. Para isso partiremos de um corpus constituído por cartas
informais de leitoras da Revista Ragazza – uma revista feminina portuguesa similar à
Capricho – publicadas entre os anos de 1994 a 2004.
2. Categorias verbais: tempo, modo e aspecto
Para que pudéssemos analisar as formas do Pretérito Imperfeito e do Futuro do
Pretérito do modo Indicativo com o verbo “gostar” encontradas em nosso corpus,
tivemos que buscar embasamento teórico em estudos sobre três categorias verbais:
Tempo, Modo e Aspecto. Essas três noções, segundo Longo (1990), não se relacionam
apenas morfologicamente no Português, mas também estruturalmente, do ponto de vista
semântico, mesmo que, em muitos casos, possamos apontar a predominância de um
deles na realização dos enunciados.
Para fins desta pesquisa, parece-nos pertinente apresentar as seguintes definições
para cada uma dessas categorias verbais:
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008
193
- o Tempo é uma categoria dêitica que expressa relações de anterioridade ou
simultaneidade entre três momentos: Momento da Fala (MF), Momento do Evento
(ME) e o Momento de Referência (MR) (CORÔA, 1985; BARBOSA, 2003);
- o Aspecto é uma categoria não-dêitica, que quantifica o evento expresso pelo verbo
ou exprime a constituição interna de fases, momentos ou intervalos de tempo que se
incluem nesse evento (CORÔA, 1985; BARBOSA, 2003);
- o Modo é a categoria que expressa uma apreciação qualitativa em relação ao
enunciado, uma tomada de posição do sujeito falante ou a manifestação da vontade,
sentimentos ou julgamento do sujeito gramatical (LOBATO, 1971, p.99).
Sobre o Modo – uma das categorias mais relevantes para o desenvolvimento deste
trabalho – é importante mencionarmos que além das modalidades clássicas, que se
referem à própria noção de verdade (aléticas), existem também muitas outras
classificações para a modalidade, como por exemplo, epistêmica, relacionada com o
conhecimento, crença, temporais, deôntica, relacionada com obrigação e permissão,
bulomaica, relacionada com desejo, avaliativa e causal (MATEUS et al., 2003, p,
245).
Esses diferentes tipos de modalidades podem ser expressos por muitos recursos, tais
como: (a) verbos modais (“poder”, “dever”), (b) advérbios (“possivelmente”,
“necessariamente” etc), (c) tempos verbais – como o Imperfeito, Futuro do Pretérito –,
entre outros mecanismos.
2.1. O Pretérito Imperfeito e o Futuro do Pretérito
Partindo desses pressupostos teóricos, para analisarmos os nossos dados,
consideramos a formalização sugerida por Corôa1 (1985, p. 53), que define o morfema
do Pretérito Imperfeito no português como: ME, MR – MF (o traço representa
anterioridade e a vírgula simultaneidade).
As formas do Pretérito Imperfeito (assim como as do Perfeito e Mais-que-perfeito)
localizam o tempo do evento no passado, indicando que o momento do evento (ME)
ocorreu antes do momento da fala (MF): o tempo de ocorrência do evento antecede o
agora do falante/ouvinte.
Além disso, o Imperfeito, levando em consideração a perspectiva de tempo do
falante (MR), remete a eventos que aconteceram em um intervalo de tempo mais ou
menos extenso no passado; trata-se, portanto, de um relato de algo ocorrido no passado
visto de uma perspectiva também passada. O que o falante transmite ao ouvinte com o
uso do Imperfeito é uma visão do evento a partir do próprio momento do evento, e não
de seu fim ou resultado, como acontece quando usamos o Perfeito.
Partilhamos também da definição de Corôa atribuída ao morfema do Futuro do
Pretérito: MR - MF – ME. Nessa formalização podemos observar que o ME é posterior
a MF, ou seja, o evento é previsto como futuro a partir de uma perspectiva passada;
como essa possibilidade é contemplada a partir de um sistema de referência que se
coloca antes da enunciação, MR é anterior a MF.
Depois de estabelecermos as definições temporais não-ambíguas adotadas neste
trabalho para os morfemas-temporais do Pretérito Imperfeito e do Futuro do Pretérito,
194
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008
realizamos uma revisão bibliográfica em gramáticas e em outros estudos lingüísticos
para verificarmos em que situações específicas a substituição do Imperfeito pelo Futuro
do Pretérito no Português é prevista.
Em Cunha e Cintra (2001) e Bechara (2002), por exemplo, encontramos os seguintes
comentários sobre a alternância do Pretérito Perfeito e Futuro do Pretérito:
Tabela 1. A substituição do Futuro do Futuro do Pretérito pelo Imperfeito em
gramáticas tradicionais do Português
Autores
Cunha e Cintra (2001)
Bechara (2002)
Pretérito Imperfeito
no lugar do Futuro do Pretérito para
denotar um fato que seria
conseqüência certa e imediata de
outro e que não ocorreu ou não
poderia ocorrer. (p. 452). Ex: Se eu
fosse mulher, ia também!
pode substituir, principalmente na
conversação, o futuro do pretérito,
quando se quer exprimir fato
categórico ou a segurança do falante:
Se me desprezasses, morreria,
matava-me. (p. 278)
Futuro do Pretérito
o Imperfeito pode substituir o Futuro
do Pretérito: no lugar de “verbos
modais como poder, dever, saber,
desejar, sugerir, etc” (p. 464)Virtual
cubits
(não há comentários)
Como podemos observar, o Imperfeito substituindo o Futuro do Pretérito é previsto
em gramáticas tradicionais da Língua Portuguesa. Porém, os usos relacionados a essa
substituição, apontados pelos gramáticos, corresponderia às encontradas em nosso
corpus, com o verbo “gostar” no Português Europeu (PE)?
Segundo Prista (1966, p.57), autor de uma gramática de Português para estrangeiros,
o Imperfeito é freqüentemente usado no Português, no lugar do Futuro do Pretérito,
como por exemplo:
(01) Desejava ler este livro (PRISTA, 1966, p.57)
Neste exemplo, o verbo “desejar” no Pretérito Imperfeito é utilizado para expressar
uma “solicitação”; Rebello (2005), comentando esta afirmação de Prista, argumenta que
o verbo “gostar” também é usado com sentido similar ao “desejar” no Português, com
exceção do Português Brasileiro:
(02) Gostava de ler este livro.
Hutchinson e Lloyd (1996) também atestam que o Pretérito Imperfeito está sendo
usado pelo Futuro do Pretérito. Acrescentam ainda que o Pretérito Imperfeito é usado
quando o falante quer fazer solicitações de forma polida. Essa consideração nos levou a
outro questionamento: o Imperfeito substituindo o Futuro do Pretérito seria mais
empregado em situações de maior grau de polidez?
Antes de tratarmos essa questão, fomos verificar na gramática de Mateus et al
(2003), que se baseia no Português Europeu (PE), apontamentos sobre a alternância do
Pretérito Imperfeito e Futuro do Pretérito. De acordo com Mateus et al (2003, p. 156), o
Imperfeito recebe a seguinte definição: “é um tempo gramatical com informações de
passado, mas que em muitas construções não apresenta características temporais”.
Observe os exemplos dados pelas autoras (MATEUS et al, 2003, p. 157):
(03) A Maria lia o jornal quando a Joana chegou.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008
195
(04) Ontem a Maria estava doente.
No exemplo (07) verificamos que a chegada da Joana está incluída no tempo de “ler
o jornal”, que pode ter continuado para além da chegada de Joana (MATEUS et al.,
2003, p. 157). No exemplo (08), com verbo de estado “estar”, as autoras apontam que o
advérbio está incluído no intervalo de “estar doente”.
Mateus et al (2003) ressaltam ainda, seguindo essa definição adotada para o
Imperfeito, que esse tempo “nem sempre apresenta características de tempo relativo a
um ponto de perspectiva temporal do passado” (MATEUS et al, 2003, p. 157), como
por exemplo:
(05) Eu, neste momento, bebia um cafezinho.
(06) Estava à tua espera desde ontem.
(07) Se a Rita chegar/chegasse a tempo, íamos ao concerto.
(08) Amanhã ia falar consigo ao escritório, está bem?
Para as autoras, nos exemplos (05) e (06), o ponto de perspectiva temporal é o
momento da fala –, por meio de “neste momento” e “desde ontem” (até agora) -,
entretanto, em (05) temos uma projeção para um futuro “eventualmente articulado com
uma condicional” (p.157), e em (06) o Imperfeito expressa um estado (“estar à espera”)
não importante no momento da fala. Nos exemplos (07) e (08), o ponto de perspectiva
temporal é um tempo posterior ao da enunciação, estabelecido em (07), pela condicional
“se [...]” e, em (08), pelo advérbio “amanhã”.
Mateus et al (2003), a partir desses exemplos, chamam a atenção para o fato do
Imperfeito não denotar sempre um tempo do passado, podendo também expressar
modalidade. Já o Futuro do Pretérito, que recebe o nome de Futuro do Passado ou
Condicional, segundo Mateus et al. (2003, p.158), comporta-se como Futuro do Passado
desde que o ponto de perspectiva temporal seja passado. Se esse ponto for um tempo
futuro, então adquire um valor modal:
(09) Ontem o Rui encontrou a Maria e esta convidá-lo-ia posteriormente para
presidir ao encerramento da sessão.
(10) O Rui e a Maria têm um encontro dentro de dias e esta convidá-lo-ia
(*posteriormente) para presidir à sessão, se não soubesse já que ele recusava.
Para as autoras, em (09) temos um exemplo de Condicional como Futuro do
Passado, devido a presença do advérbio “posteriormente” (relativo ao tempo da frase
anterior), e em (10), por não ser permitido o uso do advérbio, evidencia que não se trata
de um tempo (MATEUS et al, 2003, p. 158); temos o Futuro do Pretérito expressando
modalidade.
Como podemos perceber, o uso do Imperfeito com valor modal está previsto na
gramática do PE, entretanto, a alternância que ocorre entre o Imperfeito e o Futuro do
Pretérito com o verbo “gostar”, expressando valor modal de desejo e/ou pragmático de
“pedido (solicitação)”, como aponta Rebello, não é abordado. Baseando-nos nessas
constatações, resolvemos analisar ocorrências do verbo “gostar” conjugado no Pretérito
Imperfeito e no Futuro do Pretérito do modo Indicativo, no Português Europeu (PE),
para verificar as funções destas duas formas verbais.
196
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008
3. A escolha do corpus
Partindo dos pressupostos teóricos visto até aqui e a fim de cumprirmos com a
proposta de análise que ora estabelecemos neste artigo, lançando nosso olhar para
diferenciados usos das formas “gostava” e “gostaria” no PE, escolhemos um corpus que
acreditamos manifestar uma forma de linguagem intermediária entre a modalidade
falada e a escrita da Língua, denominada por Marine (2004) como “língua oral-escrita”.
Nesta modalidade, vimo-nos diante de um texto escrito profundamente marcado pela
oralidade, inserido num continuum entre a escrita e a fala, no qual a preocupação maior
do interlocutor está no que diz (conteúdo) e não no modo como diz (forma).
Sabemos, evidentemente, que a escrita por muito tempo foi vista como uma
manifestação da linguagem mais formal, ligada às normas da Gramática Tradicional e
que, justamente por isso, os estudos de Variação e Mudança Lingüísticas norteados pela
teoria e metodologia de Labov (1972; 1994), privilegiam o estudo da modalidade falada
da língua, já que esta, em geral, é vista como mais informal, ou seja, menos preocupada
com a norma padrão.
Todavia, é importante salientar que a escrita, com freqüência, utiliza-se de recursos
geralmente associados à linguagem oral, com a intenção de tornar-se mais persuasiva e
aproximar-se assim, mais do leitor. Essa intenção de criar mais intimidade é que vai
determinar um grau maior ou menor de oralidade na escrita.
Assim, podemos afirmar que o maior ou menor grau de formalidade de um texto
está muito mais ligado ao contexto em que é produzido do que à sua modalidade (escrita
ou falada). A esse respeito, Kress (1992) afirma que embora a fala e a escrita
apresentem diferenças retóricas e conceituais bem marcadas, parece que a percepção do
escritor em relação à sua audiência (mais formal / menos formal) é que determina as
diferenças sintáticas formais das sentenças e sua estruturação em textos.
Diante de tais considerações, embora saibamos da predileção pelos textos orais nos
estudos variacionistas, optamos pelo trabalho com um tipo de texto escrito
profundamente marcado por traços de oralidade: as cartas de leitoras de revistas
femininas. Cabe observar que na seção de cartas da maioria dessas revistas, é evidente a
interação entre a revista e suas leitoras, as quais constroem uma verdadeira relação de
confiança e amizade, favorecendo, assim, a produção de um texto escrito mais informal.
Vejamos um exemplo desse tipo de texto:
(11) (...) Era o rapaz mais convencido da escola... e tinha bons motivos para isso!
Era lindo de morrer! Mas eu gosto dos mais banais e ele dava-me cabo dos nervos.
Claro que isto lhe afectava imenso o ego! As minhas amigas aconselharam-me a não ser
parva e aproveitar a oportunidade. Eu já estava quase convencida quando, um dia, ao
sair das aulas, o vi aproximar-se como se fosse o único homem bom à face da Terra. De
um lado os seus amigos observavam a cena, do outro estavam as minhas amigas e no
meio estava eu sem saber o que fazer... Perguntou-me se gostava de passar um bocado
com ele. (...) (Ragazza, Novembro de 1997)
Cabe observar que as cartas das leitoras2 foram extraídas da Revista Ragazza - uma
revista feminina portuguesa da editora Hachette destinada ao público jovem e que se
assemelha ao estilo da revista brasileira Capricho, da Abril – no período de 1994 a
2004.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008
197
4. Análise dos dados: “gostava” vs. “gostaria”
Selecionamos a partir desse corpus do Português Europeu (PE), as ocorrências do
verbo “gostar” flexionadas no Pretérito Imperfeito e no Futuro do Pretérito e
encontramos o seguinte número:
Tabela 2. Número de ocorrências encontradas no corpus
Gostar
Pretérito Perfeito
Futuro do Pretérito
Total
No /%
10 / 13%
66 / 87%
76 / 100%
Considerando a substituição do Imperfeito pelo Futuro do Pretérito no PE,
analisamos essas 76 ocorrências e as dividimos em quatro grupos:
a) Gostar + Futuro do Pretérito (temporal): ocorrências em que o Futuro do Pretérito
expressa estritamente situações em que o evento, sob uma perspectiva passada
(referência do falante), é previsto como futuro, por exemplo:
(12) Carlos disse que estaria melhor se estivesse estudado3.
b) Gostar + Futuro do Pretérito (modal): ocorrências em que o Futuro do Pretérito
expressa, além de valores semânticos e temporais, modalidade (“desejo” / “solicitação
+desejo”), como por exemplo:
(13) Como o Sérgio não era de andar atrás das miúdas, eu não sabia o que é que
havia de fazer para me meter com ele. Aproveitei um dia em que se baldou às aulas e
deixei-lhe um bilhete na carteira. Dizia-lhe que me parecia um rapaz superquerido, que
gostaria muito de ser sua amiga. [...].- “desejo” (Ragazza, Outubro de 1997)
(14) Tenho 15 anos e preciso de informação sobre os estudos que devo fazer para ser
actriz. Além disso, gostaria também de saber se são precisas provas de acesso. “solicitação +desejo” (Ragazza, Abril de 2003)
c) Gostar + Pretérito Imperfeito (temporal/imperfectivo): ocorrências em que o
Pretérito Imperfeito expressa, predominantemente, valor temporal de passado e aspecto
imperfectivo:
(15) O meu primeiro encontro foi demais. Eu gostava do Pedro e ele de mim, por
isso uma amiga comum planeou o nosso ‘arranjinho’. Encontrámo-nos na casa onde
costumava reunir-se o nosso grupo de amigos. [...]. (Ragazza, Novembro de 1996)
d) Gostar + Pretérito Imperfeito (modal): ocorrências em que o Pretérito Imperfeito
expressa, predominantemente, modalidade (“desejo” / “solicitação +desejo”), como
mostram os exemplos a seguir:
(16) Tenho 22 anos e ainda sou virgem. Nunca andei com nenhum rapaz e nunca
beijei ninguém. Sinto-me muito angustiada por causa disso, porque faz com que pareça
um bicho raro ao pé das minhas amigas e da minha irmã. Gostava de encontrar o
homem da minha vida e assim deixar de sofrer desta maneira. [...]. – “desejo” (Ragazza,
Novembro de 1995)
(17) Gostava de saber como é que posso fazer amigos. As minhas amigas
aborrecem-me: não fazem nada divertido! Vivo numa terra pequena e é difícil fazer
198
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008
coisas diferentes. Não quero deixar de andar com elas, só conhecer pessoas novas. [...].“solicitação +desejo” (Ragazza, Novembro de 1998)
Baseando-nos nessa classificação, analisamos as ocorrências e obtivemos o quadro
de resultados a seguir:
Tabela 3. Número de ocorrências encontradas no corpus
Gostava vs. Gostaria
Gostar + Futuro do Pretérito
(temporal)
Gostar + Futuro do Pretérito (modal)
Gostar + Pretérito Imperfeito
(temporal/imperfectivo)
Gostar + Pretérito Imperfeito (modal)
TOTAL
No /%
0/0
10 / 13%
34 / 45%
32 / 42%
76 / 100%
Como podemos observar a partir da Tabela 3, não encontramos ocorrências de
“gostaria” com valor estritamente temporal; todas as ocorrências com Futuro do
Pretérito expressam valor modal:
(18) Ao dobrar meu tronco formam-se-me uns pneuzinhos na cintura, mas a minha
mãe e as minhas amigas dizem para eu não ser paranóica. Odeio a minha cintura; além
DISSO, sendo magra, aquelas gordurinhas são um desastre. Gostaria de perder quatro
centímetros. As minhas medidas são: 90-69-94, tenho 1,75m de altura e peso 57 quilos.
(Ragazza, Abril de 1995)
Além disso, é importante destacar o baixo rendimento do verbo “gostar” no Futuro
do Pretérito, com valor modal, em relação a formas com esse mesmo verbo no Pretérito
Imperfeito.
Por outro lado, entre as ocorrências do verbo “gostar” com Pretérito Perfeito, o
emprego foi equilibrado: 45% (34) apareceram sendo utilizadas apenas com valor
temporal/aspectual, e 42% (32) exprimindo predominantemente modalidade (desejo).
Esses dados parecem evidenciar que no PE, em situações informais, com o verbo
“gostar”,
o
Pretérito
Imperfeito
além
de
expressar
estritamente
temporalidade/imperfectividade pode, em determinados contextos, passar a expressar
valor modal de “desejo” (como veremos a seguir, este valor pode se associar a valores
pragmáticos, de “pedido/solicitação”).
É importante destacar que entre as ocorrências encontradas com a forma “gostava”,
uma foi excluída da nossa análise, pois não conseguimos inseri-la em nenhum dos
nossos quatro grupos de análise – (a) Gostar + Futuro do Pretérito (temporal), (b) Gostar
+ Futuro do Pretérito (modal), (c) Gostar + Pretérito Imperfeito (temporal/imperfectivo)
e (d) Gostar + Pretérito Imperfeito (modal). A ocorrência foi a seguinte:
(19) Ando com um rapaz há seis meses e já tivemos relações sexuais várias vezes.
Da última, disse-me que gostava de fazer sexo oral, mas eu senti nojo, disse-lhe que não
queria e ele ficou muito chateado comigo. E agora, o que é que eu devo fazer pra
resolver isto? Estela-Lisboa. (Ragazza, Fevereiro, 2004)
Como podemos observar, nesse fragmento temos um caso de ambigüidade: podemos
interpretar “gostava” como um evento que ocorreu no passado e perdurou dentro de um
intervalo de tempo ou como um pedido/desejo do falante.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008
199
Para refinarmos a nossa análise baseamo-nos em Rebello (2005), citada
anteriormente, que menciona a possibilidade do verbo “gostar” no Imperfeito expressar
“solicitação”, e em Neves (2000) que – em um artigo sobre a polissemia dos verbos
modais – afirma que a modalização pode ser empregada para complementar funções
ilocutórias4 (indicar, por exemplo, uma promessa, um pedido, uma oferta etc). A partir
dessas constatações, tentamos verificar quais valores ou combinações de valores são
expressos pelas ocorrências dos grupos (b) e (d), respectivamente, Futuro do Pretérito
(modal) e Gostar + Pretérito Imperfeito (modal). Para isso analisamos as ocorrências
desses dois grupos, subdividindo-as em: (i) situações em que o falante expressa somente
“desejo” (modalidade); (ii) situações em que o falante expressa o valor modal de
“desejo” e indica ato ilocutório de “pedido” (solicitação).
Para as formas do grupo do Pretérito Imperfeito (modal)/ “gostava”, os resultados
foram os seguintes:
Tabela 4. Valores expressos pelo “gostava” (modal)
GOSTAR+ Pretérito Imperfeito
“Desejo”
“Solicitação + Desejo”
TOTAL
No / %
21 / 66%
11 / 34%
32 / 100%
Podemos observar por meio desse resultado que das 32 ocorrências de “gostava”
(modal), 21 (66%) foram exprimindo apenas “desejo”, e 11 (34%) expressando valor
modal de “desejo” acompanhado de um “pedido” (solicitação).
Fizemos essa mesma análise com as ocorrências do grupo Gostar + Futuro do
Pretérito (modal)/ “gostaria”, e chegamos a resultados semelhantes ao da forma
“gostava”:
Tabela 5. Valores expressos pelo “gostaria” (modal)
GOSTAR+ Futuro do Pretérito (modal)
“Desejo”
“Solicitação + Desejo”
TOTAL
No / %
6 / 60%
4 / 40%
10 / 100%
Assim como ocorreu com o grupo do “gostava” (modal), o maior número de
ocorrências com a forma “gostaria” exprimi valor modal de “desejo” (60%).
Esses resultados, expressos nas Tabelas 4 e 5, demonstram que a forma “gostava” e
“gostaria” exprimem, em determinados contextos, predominantemente valor modal de
“desejo”. Entretanto, em algumas situações, esse valor pode estar associado a atos
ilocutórios (indicação um “pedido”). Esse segundo tipo de ocorrência se aproxima da
afirmação de Rebello (2005) e do exemplo citado por Neves (2000), em que o verbo de
elocução “perguntar” é modalizado pelo Futuro do Pretérito do verbo “gostar”:
(20) Ouvi atentamente o aparte do nobre Deputado Jorge Arbage, mas GOSTARIA de
perguntar quando foi que S.Exa. teve notícia do último atentado terrorista que ocorreu
em nosso País. (MS-O) (NEVES, 2000, p. 130 / grifo nosso)
É importante ressaltar que entre as ocorrências de Gostar + Futuro do Pretérito
(modal) e de Gostar + Pretérito Imperfeito (modal), que indicam pedido acompanhado
do valor modal de “desejo”, encontramos alta rentabilidade das seguintes construções:
“Gostaria de saber” (03 de 04 ocorrências) e “Gostaria de saber” (09 de 11 ocorrências).
200
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008
Não nos deteremos, neste artigo, ao estudo dessa construção, mas acreditamos que esse
fenômeno merece um estudo aprofundado.
5. Considerações Finais
Com esta breve análise, observamos que a troca do Imperfeito pelo Futuro do verbo
“gostar” em situações modais expressando “desejo” e/ou “desejo + solicitação” é algo
bastante expressivo no corpus que utilizamos para nossa análise, um corpus escrito
fortemente marcado por traços de oralidade.
Constatamos que o verbo “gostar” no Pretérito Imperfeito obteve maior número de
ocorrências e é mais empregado pelos falantes em duas situações: para marcar o tempo
do evento no passado, indicando que o momento do evento (ME) ocorreu antes do
momento da fala (MF); e, substituindo o Futuro do Pretérito, para expressar um
“desejo” e/ou “desejo+solicitação”. Nesses usos é o contexto que determina o sentido
que o falante quer conferir à forma “gostava”.
Outro ponto de nosso trabalho que acreditamos que mereça atenção e um estudo
posterior, diz respeito à questão da polidez, já que, como mencionamos, segundo
Hutchinson e Lloyd (1996), o Pretérito Imperfeito é usado quando o falante quer fazer
solicitações de forma polida. Caso isso esteja realmente ocorrendo no PE, seria
necessário estabelecermos um estudo comparativo entre o PB e o PE, visto que isso
apontaria uma diferença entre ambas modalidades do Português, pois no PB utilizamos
a forma “gostaria” como expressão mais polida de solicitação.
Por fim, cabe ressaltar que faremos um estudo comparativo do PE vs. PB abordando
a troca do Pretérito Imperfeito pelo Futuro do Pretérito do verbo “gostar” levando em
consideração contextos de escrita mais formais e menos formais, visto que acreditamos
que o grau de formalidade seja um fator condicionante para o estudo em questão.
Notas
1
Corôa (1985) procurou atribuir a cada tempo verbal do português uma definição única
e não-ambígua. Fundamentada nos estudos de Reichenbach (1980), suas representações
não levam em conta a interação verbo/adjunto temporal, nem o uso de auxiliares na
expressão do tempo, focalizando-se apenas na interpretação fornecida pelo morfema
modo-temporal do verbo.
2
Caber salientar que nessas cartas não há nenhum processo de edição na maneira como
elas foram escritas. O que há é o “corte” de alguns fragmentos, visto que nem sempre as
cartas são publicadas na íntegra.
3
Esse exemplo foi criado por nós.
4
Austin (1990) argumenta que, ao analisarmos um ato de fala, devemos fazer a
distinção entre locução e ilocução. A locução é a forma real das palavras utilizadas pelo
falante e seu significado semântico. A ilocução (ou força ilocucionária) é o que o falante
está fazendo ao proferir tais palavras: comando, oferta, promessa, ameaça,
agradecimento, pedido, etc.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008
201
Referências
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202
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008
AdvPs aspectualizadores (modalizadores) no português
brasileiro e no italiano e a hierarquia universal de Cinque
Aquiles Tescari Neto1
1
Instituto de Estudos da Linguagem (UNICAMP) – CNPq
Caixa Postal 6045 – CEP 13083-970 SP – Campinas/SP – Brasil
aquilestescari@yahoo.it
Abstract. The study of modal adverbs available in general Linguistics
literature has excluded from the group of modas those which indicate habitual
aspect, such as “usually”, “generally”. Assuming formal theories of Syntax
(Cinque, 1999, 2004), this paper proposes that habitual aspect adverbs are
indeed a sort of modal adverbs, as the epistemic ones, usually considered the
representatives of modal AdvP classes. As a consequence from this study, it is
also claimed that an adequate syntactic analysis of adverbs should take into
account just syntactic devices, without depending on semantic tools.
Keywords. Habitual aspect adverbs, modal adverbs, functional-specifier
theory, adverbial syntax.
Resumo. O estudo dos advérbios modalizadores na literatura lingüística
exclui dos advérbios modalizadores os que indicam aspecto habitual (como
“normalmente” e “geralmente”). O trabalho propõe, ao assumir teorias
formais de sintaxe (Cinque, 1999, 2004), que advérbios habituais constituem
um subgrupo de modalizadores, como os epistêmicos, considerados os
representantes dos AdvPs modais. Como conseqüência, propomos que uma
análise sintática de AdvPs deveria valer-se apenas de critérios sintáticos, sem
a necessidade de recorrer a uma análise semântica.
Palavras-chave. Advérbios aspectuais habituais, advérbios modalizadores,
teoria dos especificadores funcionais, sintaxe adverbial.
1. Introdução*
Teorias de sintaxe adverbial diferem radicalmente no modo como entendem o papel
da semântica (se houver) nas questões de ordenação, escopo, e interpretação do AdvP.
Duas teorias de sintaxe adverbial têm-se destacado nos últimos dez anos: de um lado
a proposta da adjunção (com antecedentes em Jackendoff, 1972), que basicamente
propõe a adjunção livre de AdvPs a diversas projeções e o emprego de princípios
semânticos que restringem a ordenação de AdvPs (ordens não lícitas se devem a
anomalias semânticas) (cf., dentre outros, Ernst, 2002, 2004, 2007; Costa, 2004); de
outro, a proposta defendida por Cinque (1999; 2004), Alexiadou (1997) – conhecida por
location-in-Spec ou proposta dos especificadores funcionais (doravante SFs) –, segundo
a qual advérbios ocupam a posição de especificadores de XPs funcionais, licenciados
pelos núcleos de tais projeções, com os quais compartilham traços.
Em nosso trabalho, assumimos a abordagem teórica defendida em Cinque (1999;
2004), sobre o posicionamento dos AdvPs em Spec – proposta tendencialmente
sintática, a priori –, visando a propor que advérbios (advs, daqui por diante) que
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203
indicam aspecto habitual do tipo de normalmente e geralmente, em português brasileiro
(doravante PB), e normalmente, solitamente, generalmente, di solito, em italiano
(doravante IT), reconhecidos pela literatura lingüística como advs aspectuais (Cinque,
1999; Alexiadou, 1997; Lonzi, 1991; Quirk et al., 1972; Ernst, 2007; Ilari et al., 1990;
Ilari, 1992; Ilari & Basso, s.d.; Castilho, 1993; Chierchia, 1995) e quantificadores
(Chierchia, 1995; Lewis, 1975; Ilari e Basso, s.d.; Castilho, 1993; Cinque, 1999), devem
também ser considerados advs modalizadores (cf. seção 3), por tornarem a proposição
indeterminada em relação a seu estatuto factual (definição de modalização proposta em
Narrog (2005)). À essa proposta central agrega-se outra: o trabalho visa também a
contribuir com o debate ‘sintaxe x semântica adverbial’, no sentido de fornecer
evidências de que uma análise tendencialmente sintática (que assuma a proposta da
alocação dos advs em Spec) é a mais adequada para uma análise de questões de escopo,
posicionamento e interpretação de AdvPs (cf. seção (4)). Propomos também uma
‘reinterpretação’ da proposta de Cinque no que diz respeito ao aproveitamento de
AdvPs altos na zona-direita da sentença (cf. (2.1.)).
2. Fundamentação Teórica
Para comprovar empiricamente sua proposta sobre os SFs, Cinque compara a ordem
e a natureza dos morfemas funcionais livres e de afixos (que correspondem aos X0s das
projeções funcionais por ele propostas) com a ordem e a natureza das diferentes classes
de AdvPs na oração. Há uma relação de correspondência (um a um) entre o AdvP e o X0
do XP do qual o AdvP é Spec: segundo Cinque (1999, p. v), “[...] diferentes classes de
AdvPs entram em uma relação transparente Spec/X0 com diferentes núcleos funcionais
da oração [...]”. Cinque está, pois, a sugerir que os advs são uma manifestação clara das
diferentes projeções funcionais, no sentido de que são os Specs desses XPs.
O autor (cf. 1999, p. 3-4) apresenta alguns pontos que aparentemente poderiam
tornar a sua hipótese sobre os SFs falseável. Trata-se de casos em que os AdvPs
aparecem em mais de uma ordem numa mesma língua ou em ordens diferentes em
línguas diferentes. Tais argumentos poderiam ser tomados pelos adeptos de propostas de
adjunção de AdvPs para argumentar contra a teoria de Cinque. No entanto, Cinque
oferece razões para o porquê de se considerar tais casos apenas como contra-exemplos
aparentes à existência de uma hierarquia única e universal de AdvPs. Os seis pontos
contra location-in-Spec e hierarquia universal são: i) Quando um AdvP modifica
diretamente um outro AdvP, posicionando-se no Spec deste; ii) Quando uma porção
mais baixa da oração (que contém o AdvP) é alçada, por razões de Foco, por sobre um
AdvP alto; iii) Quando um AdvP é wh-movido por sobre outro; iv) Quando um mesmo
AdvP pode ser gerado em duas posições diferentes na oração (sendo uma posição à
esquerda e outra à direita de um outro AdvP); v) Quando um AdvP focalizador “não
inerente” do tipo de probabilmente (‘provavelmente’) é aproveitado como adv
focalizador, do tipo de only (‘só’ ou simply ‘simplesmente’) – nesse caso, o AdvP pode
assumir diferentes posições e diferentes escopos na sentença –; vi) Quando um AdvP é
usado parenteticamente, com entoação diversa da da sentença.
Esses seis casos não afetam a validade universal da hierarquia de projeções
funcionais da oração, nem mesmo a ordenação rigidamente fixa dos AdvPs proposta por
Cinque. Essa ordenação rígida de AdvPs pareados com os núcleos funcionais à direita,
bem como a motivação para a hierarquia universal de projeções funcionais, é
204
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determinada primitivamente: a hierarquia é um construto do sistema computacional da
UG, apenas indiretamente relacionada, portanto, a propriedades lógicas ou semânticas.
2.1. Posições para AdvPs: reinterpretando Cinque (1999; 2004)
Quando se fala em interface sintaxe/semântica na questão da ordenação de advs,
uma das primeiras questões que se levanta tem a ver com o papel de princípios
semânticos na ordenação dos AdvPs (se tais princípios seriam ou não cruciais para a
relação posição/interpretação do AdvP). Em Cinque (1999), propõe-se que os AdvPs
são licenciados numa relação do tipo spec/head agreement, e são rigidamente ordenados
pela UG. Postula-se, em Cinque, uma relação um a um entre posição e interpretação
(i.e., uma interpretação distinta e específica para cada posição de base). Para cada
número de ocorrências n de um dado AdvP com interpretações distintas, haveria um
número n de X0 funcionais. Essa relação um para um é crucial para explicar a ordenação
rígida, posto que, sem essa relação, outros padrões de ordenação seriam possíveis.
Em ocorrências do tipo de (1a-b), em que estamos diante de um mesmo advérbio,
em duas posições distintas – com diferentes significados –, entretanto, Cinque entende
que o adv seja gerado na posição em que aparece, sendo, portanto, licenciado por
diferentes X0 funcionais. A diferença não está no significado lexical do adv, mas no
licenciamento do X0. Segundo Cinque (1999, p. 26), em (1), p.ex., o adv alto, à
esquerda, em (a), quantifica sobre o evento; em (b), sobre o processo:
(1)
a.
b.
Texans often drink beer. (Os texanos freqûentemente bebem cerveja)
Texans drink beer often. (Cinque, 1999, p. 26)
Haveria uma posição alta para o AdvP, na zona esquerda da sentença, em que o item
atuaria como adv de sentença (observação válida não apenas para os quantificadores,
mas para todos os AdvPs altos de Cinque). No espaço à direita de VP, haveria n
posições quantas fossem necessárias para dar conta das diferentes interpretações que,
segundo Cinque, seriam disponíveis a um mesmo AdvP (enquanto item lexical). Em
(2a) o adv à esquerda atua como sentencial, tendo escopo sobre o evento; o adv à direita
(em (2b)) tem escopo sobre o processo e modifica o constituinte à sua direita.
(2)
a.
b.
Habituellement ils regardent fréquemment la télé.
Fréquemment ils ont regardé habituellment la télé. (cf. Cinque, 2004)
A razão para a pertinência de se propor duas posições distintas para o AdvP decorre
do fato de ambas as posições poderem ser preenchidas pelo mesmo item lexical:
(3)
(4)
Geralmente os brasileiros bebem caipirinha geralmente.
Di solito i brasiliani bevono generalmente la capirigna.
Aqui propõe-se, entretanto, uma intepretação mais parcimônica; um pouco distinta
da de Cinque. Tomando por base os dados acima (1-4) e as ocorrências (5-6), a seguir,
(5)
(6)
Freqüentemente, os alunos de Sintaxe se reúnem geralmente de manhã.
Geralmente, os homens primitivos caçavam normalmente de manhã, em grupos de seis
ou sete caçadores geralmente.
sugerimos que AdvPs altos na posição em que são gerados na base, i.e., na zona
esquerda da sentença (até o espaço de vP), apresentam a interpretação default (de AdvPs
sentenciais), no sentido de serem licenciados pelo núcleo de mesma natureza (realizado
ou não foneticamente). Nesse ponto, nossa análise é semelhante a de Cinque: diferentes
posicionamentos na zona esquerda da sentença seriam explicados em virtude do
movimento de constituintes sentenciais por sobre o AdvP. Para os casos em que o adv
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(primitivamente) alto se aloca na zona direita da sentença, i.e., no espaço de VP, zona
ocupada por advs de VP (AdvPs baixos), propomos (contra Cinque, 1999) que não
haveria um núcleo licenciador para o AdvP, por diversas razões – uma delas, bastante
forte, que questiona inclusive a proposta de Cinque (1999), é a ausência de evidências
empíricas para se postular núcleos distintos à direita de V, à medida que se admite
AdvPs de mesma natureza nessas posições (cf. (6), acima) –. Nesses casos, o que na
realidade ocorre é o reaproveitamento do AdvP como (adv) focalizador, na zona direita
da sentença, atuando como uma espécie de adv de constituinte (no sentido de Quirk et
al., 1972). Evidência para a natureza focalizadora desses itens à direita, procede das
paráfrases a seguir, que, na esteira de Quirk et al. (1972), apresentam um focalizador
dentro de uma oração focal, focalizando o item por ele escopado na oração original:
(3a)
(5a)
(6a)
É geralmente a caipirinha que os brasileiros geralmente bebem.
É geralmente de manhã que freqüentemente os alunos de Sintaxe se reúnem.
É normalmente de manhã que geralmente os homens primitivos caçavam em grupos de
seis ou sete caçadores geralmente./ É geralmente em grupo de seis ou sete caçadores que
os homens primitivos geralmente caçavam normalmente de manhã.
Qual seria, portanto, a razão de se apelar a uma leitura focalizadora do AdvP
alocado à direita na sentença, em termos de economia explanatória? A resposta para
esse fato leva em consideração, parcialmente, o trabalho do próprio Cinque (1999). Já
no primeiro capítulo, Cinque (1999) apresenta casos em que um adv alto pode ser
reaproveitado como adv de consitituinte. Um desses é o uso do AdvP alto como
focalizador não inerente: segundo o próprio Cinque, nesses usos, o AdvP pode assumir
diferentes escopos – e, conseqüentemente, diferentes posições – na sentença. Pensandose em termos de aproveitamento focalizador do AdvP alto – em posições mais baixas –,
seria possível eliminar um dos referidos “seis casos de aparente ruptura da hierarquia
universal”, a alínea (iv), acima mencionada: “Quando um mesmo AdvP pode ser gerado
em duas posições diferentes na oração (sendo uma posição à esquerda e outra à direita
de um outro AdvP)”. A motivação para essa nossa proposta procede da interpretação de
dados semelhantes aos anteriores: em nosso trabalho propõe-se que advs altos (sejam
eles aspectuais ou não) têm uma ‘zona de escopo’ que é a sentença, donde deriva-se o
rótulo AdvPs sentenciais; não seria necessário propor que o AdvP teria duas zonas onde
seria gerado, como sugere Cinque, uma nas imediações do Sujeito e outra mais baixa,
próxima de V e de seus complementos. O que Cinque postula dá conta de dados como
(1a,b), acima. Todavia, para casos do tipo de (5-6), dever-se-ia apelar à alínea (iv) –
aproveitamento do AdvP alto como focalizador –, para justificar o posicionamento do
AdvP à direita de V, em posições onde não haveria razão empírica para se postular a
pertinência de um X0 licenciador. Assumindo-se a recursividade da gramática, é mais
atraente – já pela sua natureza parcimônica – assumir a nossa proposta, que dá conta dos
casos (1-6) elegantemente em termos de aproveitamento do AdvP como focalizador.
O debate sintaxe-semântica adverbial, iniciado sobretudo na década de 90, estendese até nossos dias com publicações recentes (cf. Cinque; 2004; Costa, 2004; Ernst,
2004, 2007). Questões comuns de ambos os lados (teóricos dos SFs e teóricos da
adjunção) são pauta freqüente nos trabalhos publicados: como uma teoria trataria de
questões como escopo semântico, conteúdo semântico de um AdvP? Como a
informação semântica relevante teria um efeito sobre a ordenação linear de AdvPs? Para
Ernst (2007, p. 1014), as teorias de sintaxe têm à disposição três caminhos para
explicarem o modo como as informações semânticas relevantes são codificadas: (a) a
entrada lexical do adv; (b) algum elemento local associado na sentença (p. ex., um
206
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núcleo licenciador); (c) regras gerais (não locais). Nenhuma teoria sintática ignoraria a
validade de (a), ao explicar o modo como as informações semânticas relevantes são
codificadas. (b) é a saída encontrada pelos teóricos dos SFs, cuja teoria postula um
licenciamento local do tipo spec/head agreement: cada adv, em Spec, entraria em uma
relação de licenciamento com o X0 funcional da mesma natureza. (c) é utilizado por
teorias de adjunção que se valhem apenas de regras semânticas gerais para explicar o
modo como a sintaxe codifica a informação relevante. A teoria dos SFs dispensa (c),
naturalmente; a do escopo semântico dispensa (b).
Uma vez que em nosso trabalho utilizamos a teoria dos SFs, é natural que, seguindo
Cinque (1999; 2004), vamos assumir que a informação semântica relevante se dá numa
configuração de concordância spec/head. Assumimos, portanto, (b). (a) também é
assumido pela proposta de Cinque, e, conseqüentemente, pela nossa. Diferentemente
dos trabalhos dos pesquisadores do escopo semântico, não assumimos (c), mesmo nos
casos em que um adv alto é reaproveitado em posições baixas como focalizador. Esses
casos não afetam a validade universal da hierarquia funcional, motivo por que não há
necessidade de se recorrer – como recorre Ernst em seus trabalhos (2007, p.ex.) – a
regras de escopo semântico para explicar a ordenação de AdvPs à direita de V em
relação a outros AdvPs. Estando à direita de V, ou seja, em posições que a UG
disponibiliza a advs baixos (“de constituinte”), o adv alto (reaproveitado como
focalizador) não é licenciado por um núcleo funcional. Esse é o ponto de vista que
propusemos e assumimos em nosso trabalho, assunção que difere da de Cinque (1999;
2004), segundo o qual o AdvP à direita de VP seria licenciado por um núcleo funcional
de mesma natureza (cf. discussão acima). A nossa proposta, entretanto, (para os AdvPs
altos reaproveitados como focalizadores à direita de V), assume apenas (a) – a entrada
lexical do advérbio – para explicar a sua informação semântica relevante. Dito deste
modo, abrimos mão de (b,c) para os casos em que um adv alto se aloca à direita de V. A
legitimidade de nossa proposta pode ser testada sintaticamente, já que advs altos
reaproveitados como baixos parecem não obedecer a regras de ordenação:
(7) Os homens primitivos caçavam freqüentemente de manhã, provavelmente em grupos de seis
ou sete caçadores, normalmente vestidos com pele de animais.
Assumindo-se Cinque, é sabido que provavelmente > normalmente >
frequentemente.2 Os focalizadores à esquerda de VP, em (7) não respeitam essa
ordenação, não estando sujeitos, portanto, a (b,c). Não estando os AdvPs, nessa
configuração, sujeitos a (b), a nossa proposta apresenta-se como mais econômica do que
a de Cinque (1999, 2004), por evitar (por falta de evidências da contraparte nuclear) a
multiplicação de XPs funcionais hospedando Specs adverbiais (na zona de AdvPs
baixos). Não assumindo (c) para os focalizadores às órbitas do predicado, lançamos mão
de uma série de princípios semânticos para licenciar a ordenação de AdvPs. Tomamos,
pois, as sentenças de (1-7), acima, como evidência para a nossa proposta. À esquerda de
V, como AdvP alto, o item obedece a (a) – a sua entrada lexical – e (b) – concordância
spec/head –. À direita de V, um AdvP alto, reaproveitado como focalizador, dispensa
(b) e (c): leva-se em conta apenas o significado do adv, i.e., a sua entrada lexical. Este
fato leva-nos a questionar, inclusive, se focalizadores de natureza adverbial seriam, de
fato, AdvPs, pois eles não seguem a ordenação rígida da hierarquia funcional (cf.
sentenças acima). A nossa análise dispensa (c), como também o faz a análise de Cinque
(1999), quer esteja o adv alocado à esquerda de V, na zona dos advs de sentença, quer
esteja alocado à sua direita, posições em que atua como adv de constituinte.
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207
3. Advérbios aspectuais habituais: mais uma subclasse de modalizadores
Bellert (1977) seria indubitavelmente um dos trabalhos mais citados na literatura
lingüística sobre advs sentenciais. Dentro do grupo por ela denominado – tomando
como base o trabalho de Jackendoff (1972) – de “advs sentenciais”, distingue-se o
subgrupo dos modais, cujos representantes seriam itens do tipo de probably, certainly,
surely, evidently, por ela considerados predicados a respeito dos quais o argumento é a
verdade da proposição expressa pela sentença (não o fato, evento ou estado de coisas
descrito pela sentença em questão) (Bellert, 1977, p. 343). Os aspectuais habituais
estariam excluídos do grupo dos modais no trabalho de Bellert e em trabalhos seguintes
– inclusive Cinque (1999) –, que tomaram a análise de Bellert por base.
Em termos de literatura sobre AdvPs, nenhum dos trabalhos consultados – que
constam em nossa bibliografia – tratam do efeito modalizador dos aspectuais habituais.
Os advs que indicam aspecto habitual apenas são mencionados por essa sua função
prototípica e por um valor agregado de quantificador (cf. Lewis, 1975; Ilari & Basso,
s.d.; Castilho, 1993; Chierchia, 1995). Normalmente, em uma sentença do tipo de:
(8)
Normalmente os brasileiros são espertos.
se fosse tratado por um dos autores mencionados nas referências, provavelmente seria
classificado como um adv aspectualizador-quantificador (cf. paráfrase (8b), a seguir, em
que o AdvP quantifica sobre um estado de coisas):
(8b)
Na maioria das vezes, os brasileiros são espertos.
Mas AdvPs de aspecto habitual não desenvolvem apenas essas funções. Se a nossa
argumentação estiver correta, os testes a seguir apresentam razões fidedignas e
pertinentes para o porquê de incluí-los no grupo dos modalizadores. Uma das principais
evidências de que dispomos para a consideração desses itens como adverbiais
modalizadores vem do fato de os habituais não poderem co-ocorrer com outros AdvPs
tratados como modalizadores pela literatura do assunto, a saber, os epistêmicos
(provavelmente), irrealis (talvez) e aléticos de possibilidade (possivelmente), que se
caracterizam por expressarem um descomprometimento/não engajamento do falante em
relação ao valor de verdade por ele veiculado no conteúdo proposicional.
O (des)comprometimento do falante em relação ao que expressa no conteúdo
proposicional – que assumimos como sendo um traço que AdvPs de natureza
epistêmica, irrealis e alética de possibilidade compartilham (se [ engajamento]) – é
uma das extensões da modalização epistêmica (Dall’Aglio-Hattnher, 1996: 171).
Enunciados em que a modalização epistêmica se faz presente podem ser marcados
positiva ou negativamente em relação ao traço [engajamento]. Nos casos em que o
falante apresenta o estado de coisas como verdadeiro, dizemos que o enunciado é
marcado positivamente no que diz respeito a esse traço [engajamento]; enunciados em
que o falante apresenta dúvidas em relação ao que diz, marcam o enunciado
negativamente em relação ao traço. Este traço nos interessa ao estudar os AdvPs
normalmente e geralmente em PB, normalmente, solitamente, generalmente, em IT,
porquanto, em consonância com o que mostraremos a seguir, esses AdvPs, por
compartilharem esse traço ([- engajamento]) com AdvPs do tipo de provavelmente
(AdvP Modalizador Epistêmico), talvez (AdvP Mod. Irrealis) e possivelmente (Mod.
alética de possibilidade), não podem co-ocorrer com esses advs, tradicionalmente
208
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arrolados no paradigma dos modalizadores. Em Cinque (1999), cada um desses AdvPs
apresenta um traço característico, o que justifica, com os testes sintáticos, a pertinência
de mantê-los em Specs de XPs distintos. No entanto, o fato de esses AdvPs não
poderem co-ocorrer entre si, mesmo estando em XPs distintos, faz-nos crer que essa coocorrência não é possível, em virtude de um traço comum ([-engajamento], para opor ao
traço [- comprometimento], dos epistêmicos de Cinque (1999)) por eles compartilhado.
A explicação que temos para a agramaticalidade das ocorrências a seguir acerta a
natureza modalizadora dos AdvPs mencionados: AdvPs habituais, AdvPs epistêmicos,
AdvPs irrealis e AdvPs aléticos de possibilidade compartilham o traço [- engajamento],
inerente a AdvPs modalizadores, o que faz com que um reaja à presença de outro:3
(9)
(10)
(11)
(12)
(13)
a.
b.
a.
b.
a.
b.
a.
b.
a.
b.
(14)
a.
b.
* Probabilmente i brasiliani forse sono buoni giocatori.
* Provavelmente os brasileiros talvez são/sejam bons jogadores.
* Probabilmente i brasiliani possibilmente sono buoni giocatori.
* Provavelmente os brasileiros possivelmente são bons jogadores.
* Forse i brasiliani possibilmente sono buoni giocatori.
* Talvez os brasileiros possivelmente são/sejam bons jogadores.
* Possibilmente i brasiliani forse sono buoni giocatori.
* Possivelmente os brasileiros talvez sejam bons jogadores.
* Probabilmente/*forse/*possibilmente i brasiliani normalmente/di
solito/solitamente sono buoni giocatori.
* Provavelmente/*talvez/*possívelmente os brasileiros
geralmente/normalmente são bons jogadores.
*Normalmente/di solito i brasiliani probabilmente/forse/possibilmente
sono buoni giocatori.
* Normalmente/geralmente os brasileiros provavelmente/talvez/possivelmente
são bons jogadores.
(9-14), acima, apresentam, cada uma, dois AdvPs que compartilham o traço [engajamento], motivo por que reagem entre si. Em (9), p.ex., temos um epistêmico
(probabilmente, provavelmente) co-ocorrendo com um irrealis (forse, talvez); em (10),
um epistêmico e um alético de possibilidade. E assim por diante. (11) apresenta
respectivamente um epistêmico, probabilmente/provavelmente, um irrealis forse/talvez
e um alético de possibilidade, possibilmente/possivelmente, que reagem à presença de
um AdvP aspecto habitual. De acordo com os dados (9-11), AdvPs dubitativos não
podem co-ocorrer entre si pelo fato de compartilharem o traço [- engajamento]. Os
AdvPs das sentenças (9-11) são reconhecidamente modalizadores nos trabalhos da
literatura (cf. Bellert, 1977; Kato & Castilho, 1991; Castilho & Moraes de Castilho,
2002; Lonzi, 1991; Cinque, 1999). Seguindo a definição de Narrog (2005), esses são os
advs verdadeiramente modalizadores. Nesse sentido, modalizadores [- engajamento]
não podem co-ocorrer entre si. Se os AdvPs (9-12) são modalizadores [comprometimento], reagindo um à presença de outro, podemos estender a mesma
observação aos dados (13 e 14), que envolvem epistêmicos, irrealis, aléticos de
possibilidade e habituais. AdvPs habituais, são, portanto, modalizadores: não podem coocorrer com AdvPs (modalizadores) que compartilham o traço [- engajamento]. Sob a
definição de Narrog (2005), esses AdvPs também podem ser considerados
modalizadores, por tornarem a proposição indefinida em relação a seu estatuto factual. 4
Poder-se-ia argumentar contra a validade sintática dessas nossas observações, pelo
fato de a modalidade ser mais bem descrita como uma categoria semântica (cf. Narrog,
2005). Entretanto, assume-se aqui que o efeito modalizador desses AdvPs tem validade
sintática – e, na próxima seção, vamos fornecer razões empíricas para o fato –. Nossa
análise está quites com a proposta da hierarquia universal de Cinque (1999, 2004), por
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 203-212, jan.-abr. 2008
209
respeitar a ordenação de AdvPs ali proposta. Se Cinque (1999) assume que a natureza
da hierarquia é primitivamente sintática, tendo o seu correlato semântico como uma
conseqüência, assumir Cinque (1999) em nosso trabalho e propor uma análise que esteja
quites com essa proposta nos dá a garantia de que o nosso problema pode também ser
explicado em termos sintáticos. E as ocorrências acima validam tais observações.
Diante de ocorrências como a seguinte
(15) Probabilmente gli uomini primitivi cacciavano normalmente di mattina. (Guglielmo Cinque,
com. pessoal) (Provavelmente os homens primitivos caçavam normalmente de manhã)
segundo a qual probabilmente, co-ocorre com um AdvP aspecto habitual, normalmente,
poder-se-ia questionar (como nos fez G. Cinque, em com. pessoal) a validade de nossa
hipótese sobre o traço [- engajamento] que legitimaria a interpretação modalizadora de
AdvPs aspectuais habituais, por reagirem à presença de AdvPs modalizadores que
compartilham o mesmo traço. Entretanto, sugerimos que normalmente, que precede o
PP di mattina, em (15), aí se aloca justamente para focalizar esse PP. Devemos tratar de
normalmente, em (15) como um focalizador, cf. a paráfrase a seguir:
(15a)
Istoricamente non sappiamo perfettamente se cacciavano la mattina o la sera.
(Não sabemos, historicamente, se caçavam de manhã ou de noite).
Estamos, portanto, em (15), diante de um caso de foco contrastivo. Em Cinque (1999), o
aproveitamento de AdvPs como focalizadores é tratado como um caso de aparente
restrição à hierarquia universal. Nesse sentido, apoiando-nos no próprio Cinque (no
caso, Cinque, 1999, 2004) podemos assegurar que a sentença (15) não invalida as
nossas observações. Basta confrontá-la com (15b):
(15b)
??? Probabilmente gli uomini primitivi normalmente cacciavano di mattino.5
(Provavelmente os homens primitivos normalmente caçavam de manhã)
e com (15a), acima. (16), a seguir, também é agramatical: normalmente/di solito
precede o VP e não estamos diante de um caso de focalização.
(16)
*Probabilmente Silvia di solito/normalmente giocava a pallavolo con le sue amiche.
(Provavelmente a Silvia normalmente jogava vôlei com suas amigas.)
À parte esse aparente contra-exemplo, a hipótese do traço [- engajamento] dá conta
de explicar por que os aspectuais habituais também são modalizadores. Além disso, sob
a definição de Narrog (2005), esses AdvPs podem ser considerados modalizadores, já
que a sua presença na oração torna o conteúdo proposicional indeterminado em relação
a seu estatuto factual.
4. A natureza sintática do valor modal dos AdvPs aspectuais habituais
A motivação para a hierarquia universal, rigidamente fixa, de projeções funcionais é
determinada primitivamente: a hierarquia é um construto do sistema computacional da
UG, apenas indiretamente relacionada, portanto, a propriedades lógicas ou semânticas.
Há várias razões apresentadas em Cinque (1999, p. 134 et seq.; 2004, p. 685-689) para
a primazia da análise sintática em relação à semântica no que diz respeito à ordenação
de AdvPs e às relações de escopo entre eles. A principal delas é que a ordem relativa
dos elementos funcionais não pode ser determinada por princípios lógico-semânticos
(Cinque, 1999, seção 6.3; 2004, p. 685, nota 5). Segundo a hierarquia universal, AdvP
Mod Evidential > AdvP Mod Epistemic (cf. (17) e (18)):
(17)
210
a.
b.
Allegedly John will probably give up.
* Probably John will allegedly give up.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 203-212, jan.-abr. 2008
(18)
a.
b.
(?) Evidentemente Gianni ha probabilmente lasciato l’albergo.
* Probabilmente Gianni ha evidentemente lasciato l’albergo. (Cinque, 1999, p. 135)
Se a motivação para a rigidez e universalidade da hierarquia fosse devida a
princípios lógico-semânticos, dever-se-ia esperar a agramaticalidade de (19), a seguir,
em que um predicado evidencial está sob o escopo de um predicado epistêmico e a
agramaticalidade de (20), seguinte, em que um predicado epistêmico precede um
avaliativo (um AdvP epistêmico não pode preceder um AdvP avaliativo (cf. 20a)):
(19)
(20)
(20a)
È probabile che sia evidente che lui è il colpevole (Cinque, 1999, p. 135).
(É provável que seja evidente que ele seja o culpado)
È probabile che sia per me uma sfortuna che Gianni è stato licenziato.
* Probabilmente Gianni è sfortunatamente stato licenziato.
A gramaticalidade de (19) justifica a natureza sintática da hierarquia de projeções
funcionais: se a motivação para as relações de escopo da hierarquia fosse devida a
princípios puramente semânticos, (19) deveria ser agramatical, à semelhança de (18b),
que envolve um modalizador epistêmico tomando um evidencial sob o seu escopo;
igualmente dever-se-ia esperar a agramaticalidade de (20), por (20a) ser inaceitável.
A hipótese do traço [- engajamento] é igualmente legitimada por princípios
sintáticos, o que sugere que os AdvPs de aspecto habitual podem ser tratados como
modalizadores na sintaxe. Segundo os dados (21-22), a seguir, um AdvP epistêmico não
pode co-ocorrer com um AdvP aspecto habitual em nenhuma ordem (* AdvP
epistêmico > AdvP habitual; * AdvP habitual > AdvP epistêmico). Se a motivação para
essa agramaticalidade fosse lógico-semântica (não primitivamente sintática, portanto),
esperar-se-ia que um predicado epistêmico jamais co-ocorreria com um predicado
habitual, o que não é verdade (cf. (21a) e (22a), a seguir), o que ratifica a natureza
sintática, a priori, da hipótese do traço [- engajamento]:
(21)
(22)
(21a)
(22a)
* Provavelmente os ladrões normalmente vão entrar no banco./* Normalmente os
ladrões provavelmente vão entrar no banco...
* Probabilmente i futuri papi solitamente saranno sudamericani./
*Solitamente i futuri papi probabilmente saranno sudamericani.
É provável que vai ser normal a entrada dos ladrões no banco./É normal que vai ser
provável a entrada dos ladrões no banco...
È possibile che sia normale che Tiago giochi a pallavolo con i suoi amici./È normale
che sia possibile che Tiago giochi...
A conclusão de Cinque (1999) para a ordenação sintática dos núcleos funcionais e
para a natureza da hierarquia funcional, pode, portanto, conforme demonstramos acima,
ser estendida à hipótese do traço [- engajamento]. Nesse sentido, “se a ordem sintática
das projecções funcionais não pode ser reduzida a ‘relações de escopo semântico’ entre
os AdvPs” (cf. Cinque, 1999: 136), conseqüentemente a hipótese do traço [engajamento] também encontra uma motivação sintática, a priori.
5. Considerações finais
Propusemos que advs habituais constituem um subgrupo de modalizadores, por
compartilharem com os ‘modalizadores tradicionais’ o traço [- engajamento], motivo
por que não podem co-ocorrer com esses AdvPs. Como conseqüência, mostramos que
uma análise sintática de AdvPs deveria valer-se apenas de critérios sintáticos, sem a
necessidade de se recorrer a uma análise semântica. Assumimos a proposta dos SFs de
Cinque (1999), alterando, entretanto, a sua proposta para AdvPs altos à direita de VP.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 203-212, jan.-abr. 2008
211
Notas
*
Agradeço à prof.a Dra. Sonia Lazzarini Cyrino pela orientação e discussão das propostas.
Cinque fornece a seguinte hierarquia de ordenação de adverbiais (versão adaptada): francamente >
felizmente > evidentemente > provavelmente > [...] talvez > necessariamente > possivelmente >
normalmente > novamente > freqüentemente > intencionalmente > [...] caracteristicamente(?) >
completamente > tudo > bem > rápido > de novo > freqüentemente > completamente. (cf., 1999, p. 106)
3
Omitimos a tradução das ocorrências em (a), pelo fato de as ocorrências em (b.) corresponderem a uma
versão para o PB, já com os julgamentos de gramaticalidade.
4
Apresentamos a Heiko Narrog a nossa proposta de considerar os AdvPs habituais como modalizadores
– tomando como base a definição de modalidade deste autor (cf. Narrog, 2005) –. Narrog (com. pessoal)
concorda com a nossa proposta de considerar esses itens como modais, tendo como base sua definição de
modalidade. Segundo Narrog, os habituais estão muito próximos da modalidade epistêmica.
5
Pedimos o julgamento dessa sentença a Guglielmo Cinque, que a considerou bastante degradada e
concordou com a leitura focalizadora de normalmente.
2
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212
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 203-212, jan.-abr. 2008
A condicionali
t
entativo
áti
:
o
Flávia Bezerra de Meneze Hirata-Vale1
1
Departamento de Letras – Universidade Federal de São Carlos
flaviavale@ufscar.br
Abstract. Conditionality ay exeed in itten Bazilian Pte
diffeent
e, ide the adve al conditional cle
ked the
c tion if iata-Vale, # Patactic ct ti – juxtaposed and
disjunctive and aditive coordinate clauses – constitute one of these means. In this
paper, the use of paratactic constructions with a conditional value is analysed in
five different kinds of texts: theatre plays, romance novels, articles, speeches and
instruction manuals. It is argued that these constructions have an argumentative
use when they expresses a conditional meaning.
Key. condicionality; paratactic constructions, argumentative use.
Resum A condicionalidade pode ser expressa no português escrito do Brasil por
meio de diferentes expedientes além da oração adverbial condicional marcada
pela conjunção se (Hirata-Vale, 2005). As construções paratáticas – orações
justapostas, e orações coordenadas disjuntivas e aditivas – constituem um desses
expedientes. Neste trabalho, analisa-se o uso das construções paratáticas com
valor condicional em cinco tipos de textos: peças de teatro, romances, artigos de
opinião, discursos e manuais técnicos. Acredita-se que essas construções têm um
uso argumentativo quando expressam o valor condicional.
Palavras-chave. condicionalidade; construções paratáticas; uso argumentativo.
1. Introd!
Poucos são os trabalhos, para o português do Brasil que tratam da relação
semântico-pragmática entre construções condicionais e outros tipos de construções
complexas que, em determinados contextos discursivos, podem veicular o valor
condicional. Destacam-se os trabalhos de Neves e Braga (1999) e de Sousa (2003), que
descrevem a relação entre as orações condicionais e as temporais. No que diz respeito à
expressão do valor condicional por meio das orações coordenadas aditivas e disjuntivas,
e das orações justapostas, as análises são ainda mais escassas, o que se constatou em
Hirata-Vale (2005).
Adota-se, neste trabalho, uma perspectiva em relação ao processo de articulação de
orações diferente daquela apresentada nas gramáticas tradicionais, que fazem divisões
discretas entre coordenação e subordinação, e estabelece-se a existência de um
contínuo, que vai da parataxe à subordinação. Além disso, considera-se esse processo
como um fenômeno discursivo.
Nesse sentido, pode-se dizer que este trabalho tem uma base funcionalista, e sendo
assim, deve certamente trazer ocorrências reais das línguas. As ocorrências que
compõem o córpus do trabalho foram encontradas em obras de teatro, em novelas, em
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008
213
romances, em manuais técnicos, em editoriais jornalísticos e em discursos dos últimos
cinqüenta anos. No córpus Principal do Laboratório de Estudos Lexicográficos da
UNESP – Campus de Araraquara, selecionaram-se as ocorrências das literaturas técnica,
oratória, romanesca e dramática. As ocorrências dos textos jornalísticos foram
encontradas na Folha de São Paulo, edições de 1994 a 1999. Além disso, foram também
consultados os sites da Academia Brasileira de Letras (www.academia.org.br), do
Senado
Federal
(www.senado.gov.br)
e
da
Câmara
dos
Deputados
(www.camara.gov.br) em busca de discursos de acadêmicos, de senadores e de
deputados federais, sendo o córpus final composto por duzentos e cinqüenta mil
palavras.
Em seguida, passa-se a uma breve discussão acerca dos pressupostos teóricos deste
trabalho, e logo após, apresenta-se a análise dos dados.
2. F ndamentaç"$ %&órica
Para Harris (1986) na classificação das adverbiais há um contínuo, em que não há
separações discretas entre as construções. Esse contínuo poderia ser de dois tipos: um
primeiro tipo trataria das condicionais com a estrutura 'e ( ent0) 4 que assumem outros
valores, como por exemplo, os de concessão (KÖNIG, 1986), de adversidade
(SCHWENTER,1999) e de causalidade (DANCYGIER E SWEETSER, 2000). Um
outro caminho, o que se adota neste trabalho, considera a ocorrência do sentido
condicional em uma estrutura diferente da canônica 'e ( ent0) 4, as construções
paratáticas, nas quais se incluem as tradicionalmente chamadas coordenadas aditivas e
disjuntivas, e as orações justapostas.
Postular esse contínuo pressupõe, obviamente, adotar uma concepção sobre o
fenômeno de articulação de orações que é diferente daquela proposta nos chamados
estudos tradicionais, em que há uma divisão clara entre subordinação e coordenação.
Esse tipo de divisão discreta também pode ser encontrado na explicação formalista de
Jackendoff e Culicover (1997) sobre as construções paratáticas. Os autores defendem
que nessas construções coexistem estruturas conceitual e sintática distintas, o que
acarreta uma subordinação semântica, apesar da coordenação sintática. Essa separação,
como se sabe, não se sustenta quando se analisa a língua em situações concretas de uso.
Dessa forma, a partir de uma perspectiva funcionalista de descrição de línguas, as
orações a que se chama de paratáticas condicionais têm sido objeto de análise em
muitos trabalhos (HAIMAN, 1983; FILLENBAUM, 1986; DANCYGIER, 1998;
THUMM, 2000; BOOGAART e TRNAVAC, 2004; BOOGAART, 2005). Todos esses
trabalhos tentam explicar as razões para a existência da leitura condicional em
construções que não têm uma conjunção condicional codificada. O que se espera
mostrar é que diferentes fatores lingüísticos e extra-lingüísticos favorecem uma
interpretação condicional, e que é possível dizer que existe algum tipo de motivação no
sistema lingüístico que a faz surgir.
Um primeiro ponto a ser tratado é a existência de um vínculo semântico entre as
orações que compõem uma construção paratática, que pode ser considerado como um
vínculo causal, o qual, por sua vez, está diretamente relacionado a um outro ponto, o da
ordenação das orações na construção paratática. Como se sabe, a ordem de ocorrência
da prótase e da apódose é há muito considerada uma das questões definidoras de um
complexo condicional. Greenberg (1966, *(+, HAIMAN, 1986) aponta que a
ordenação prótase→apódose é um universal lingüístico. Nesse sentido, segundo Haiman
214
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008
(1983, 1986), haveria uma identidade estrutural entre condicionais e paratáticas porque
também nas paratáticas há uma ordem linear a ser seguida entre antecedente e
conseqüente, ou seja, as orações se estruturam de acordo com a ordem em que ocorrem
os eventos. Forma-se nas paratáticas um vínculo causal, o mesmo que se estabelece nas
condicionais.
Assim como nas construções condicionais canônicas, as orações-prótase das
construções paratáticas também desempenham a função de tópico, “dados que
constituem a moldura para o discurso seguinte” (HAIMAN, 1978) o que faz com que
sejam interpretadas como condicionais. Tanto é assim que Haiman (1983) sugere que as
orações-prótase das construções paratáticas condicionais são usadas principalmente
como tópicos resumitivos, em que uma frase começa com o final de outra. Thumm
(2000) acrescenta que as prótases das construções paratáticas condicionais podem
desempenhar função conclusiva, porque são usadas como uma maneira de reformular o
que foi dito na frase antecedente.
O fato de as orações que compõem uma construção paratática condicional não
poderem ser comutadas é um outro ponto de aproximação entre elas e as construções
condicionais canônicas. Este fato relaciona-se ao princípio da iconicidade proposto por
Haiman (1980) e mencionado por Dancygier (1998), Pezatti (1999) e Camacho (1999),
afinal sabe-se que nas condicionais, assim como nas justapostas, nas aditivas e nas
disjuntivas, a primeira oração da construção geralmente expressa uma razão para o que
é dito na segunda oração.
A partir do que foi exposto, pode-se chegar às características definidoras das
construções paratáticas condicionais: para receber uma leitura condicional, as orações
que compõem uma construção justaposta, ou a uma construção coordenada aditiva ou
disjuntiva devem ter, entre si, um tipo de vínculo, a que se pode chamar de causal, que
leva, por sua vez, a uma ordenação icônica, que vai da causa para a conseqüência. A
ordem de realização das orações é exclusiva, ou seja, não existe a possibilidade de
comutação. Em razão dessa ordenação, é possível dizer que a oração-prótase de uma
construção paratática condicional funciona como um tópico, e nesse sentido, pode ser
usada como uma forma de retomada, de exemplificação ou de contraste.
Além disso, as orações justapostas, aditivas e disjuntivas, ao serem usadas para
expressar ameaças e promessas (FILLENBAUM, 1986), podem receber uma
interpretação condicional. São usadas como estratégias de indução ou de intimidação,
por parte do falante, para atingir seus propósitos. Assim, as construções paratáticas
condicionais podem ser consideradas como atos de fala que expressam ordens, ameaças
e promessas. São também usadas para expressar situações habituais ou genéricas, que
podem mesmo se tornar, com o passar do tempo, expressões proverbiais, além de
veicularem um conteúdo “pré-concebido”, no sentido de que foi estabelecido pelas
convenções sociais.
-. /náli1e d21 dad21
No córpus deste trabalho, composto de textos escritos nos últimos 50 anos, foram
encontradas 38 ocorrências de construções paratáticas que podem receber uma
interpretação condicional. Há 21 casos de construções justapostas condicionais, 13
casos de construções disjuntivas condicionais, e 4 ocorrências de construções aditivas
condicionais, que se distribuem pelos tipos de literatura da seguinte maneira:
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008
215
Tabela 1: construções paratáticas condicionais e tipos de literatura
D35678ica J93nal:;tica R96ane;ca Técnica
Oratória Total
Justapostas
13
1
5
2
1
22
Alternativas
3
6
-
4
-
13
Aditivas
3
-
1
-
-
4
Total
19/48,7%
7/17,9%
6/15,3%
6/15,3%
1/2,54%
39
Destaca-se na distribuição dos tipos de construção paratática condicional pelas
literaturas o fato de que quase metade das construções encontradas ocorreu em textos da
literatura dramática. Como se sabe, os textos que compõem a literatura dramática são
escritos para representarem a fala dos personagens em peças teatrais e novelas de
televisão. Assim, acredita-se que a maior freqüência de ocorrências nesse tipo de
literatura decorra do fato de as construções paratáticas condicionais serem
freqüentemente usadas para expressar ameaças, ordens, recomendações e promessas,
que podem ser consideradas como estratégias comunicativas de que os falantes lançam
mão nas situações de interação face a face.
Na ocorrência seguinte, que foi encontrada em uma peça de teatro, o falante usa
a construção justaposta para expressar um tipo de aviso ou recomendação. Um casal
acabava de ver um certo homem, visado pela polícia política, e o marido se esconde
para que o homem não o veja. A mulher questiona a atitude do marido e o acusa de ser
um comunista. Ele, então, a repreende, e fala que se escondeu porque “se a polícia vê a
gente falando com ele é cana na certa”:
(1)
Al: Ah, não! O marido da gente vira comunista e a gente nem sabe?
J: Que ista o que!
Al: Então o que é?
J: Entende, barrigudinha, entende! A polícia está atrás dele. Polícia política que é pior, tudo
americano! Eles vê a gente falando com ele é cana na certa!
Al: Já vi que o moleque vai nascê no xadrez! (AS-LD)
(1a)
Se eles vê a gente falando com ele é cana na certa!
A interpretação dessa construção justaposta deve ser condicional porque o falante a
usa como uma predição acerca dos eventos que podem vir a acontecer no caso de a
polícia perceber algum tipo de relação entre os dois homens.
É também evidente que o fato de os falantes estarem frente a frente tem grande
importância nas ocorrências em que a construção paratática é usada para fazer uma
ameaça, como se pode ver no diálogo seguinte, encontrado em uma novela de televisão:
(2)
Pilar: Eu já lhe avisei que tô chegando ao fim de minha paciência! Não é possível que não
haja meio do senhor se emendar, com os diabos! Não basta toda confusão que já arrumou, continua
ciscando por aí na casa das mulheres casadas!
Jorge Tadeu: Mas eu sou fotógrafo! Essa é a minha cobertura pra...
P: cobertura pra fazer as pesquisas que eu encomendei e não pras suas safadezas! Está há séculos em
Resplendor e cadê os resultados? Pois escute bem: eu já lhe dei um prazo. E a ampulheta está
correndo! Ou me aparece com resultados concretos ou eu lhe mando embora de Resplendor. Inteiro
ou em partes! (PD-LD)
(2a)
Se não me aparece com resultados concretos eu lhe mando embora de Resplendor.
Nessa ocorrência, Pilar reclama do atraso de Jorge Tadeu para fazer a pesquisa que
216
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008
encomendou, e argumenta que ele se dispersa em outras atividades. Pilar dá a Jorge
Tadeu um ultimato: “se não aparecer com resultados, ela o manda embora de
Resplendor”. Acredita-se que a interpretação condicional dessa ocorrência, e
conseqüentemente seu uso como uma estratégia do falante para ameaçar seu ouvinte, se
mostra muito mais relevante porque há toda uma situação de interação face a face
envolvida. Percebe-se claramente que o falante usa um ato de fala condicional para
alcançar determinados efeitos em seu ouvinte, nesse caso, fazer que o ouvinte realize o
serviço pelo qual foi pago. Nesse sentido, acredita-se que esse tipo de construção pode
ser considerado como característico da linguagem falada, ou dos textos que representam
a fala.
Há que se ressaltar, entretanto, que não há ocorrências de construção paratática
condicional na Literatura Oratória, apesar de esse tipo de literatura também se constituir
de textos que são escritos para representar a fala. Imaginava-se que nos discursos
políticos seriam encontrados muitos casos de construções paratáticas condicionais que
expressam promessas, e nos sermões esperava-se encontrar casos em que essas
construções fossem usadas como recomendações, mas isso não ocorreu.
Esse fato sugere que, embora discursos e sermões sejam textos escritos para
serem proferidos, há nesses textos um maior grau de formalidade, que não se encontra
nas interações cotidianas, representadas pelos textos da literatura dramática. Sendo
assim, o fato de não se encontrarem essas ocorrências na literatura oratória mostra-se
importante no córpus deste trabalho, na medida em que revela um aspecto das
construções paratáticas condicionais: seu uso em textos que representam a fala, e que
têm um grau mais baixo de formalidade.
Os outros tipos de literatura tiveram número de ocorrências quase similar, e nada
há que se destacar acerca do uso das construções paratáticas condicionais.
Deve-se destacar, ainda, no que diz respeito às construções disjuntivas, o fato de
que apenas uma das 13 ocorrências encontradas no córpus não apresenta a estrutura
“<=>>><=”. Acredita-se que esse tipo de estrutura, que é comum nos textos jornalísticos,
se revela como um importante mecanismo textual, uma vez que o falante, ao usar as
construções paratáticas alternativas, vai apresentando argumentos para a defesa de uma
determinada questão. Na ocorrência seguinte o jornalista usa construções disjuntivas
para mostrar sua opinião acerca das atitudes que FHC deve tomar no Governo:
(3)
Falastrão, atrapalhado, sem limites, Serjão erra na forma e, vez ou outra, é um problema
político para o governo. Mas é a salvação da Pátria para o PSDB nessas horas de disputa de espaço
com ACM, PFL e seus aliados, tipo Paulo Maluf. Como agora. É por isso que os tucanos estão
preparando a volta de Serjão à cena. Não já, porque ele provocou PMDB, PPB, gregos e troianos e
certamente seria um desastre para a aprovação das reformas administrativa e da Previdência,
transformadas em caso de vida ou morte. Ou FHC aprova as duas ou vai dar a maior demonstração
de fraqueza de seu mandato. (FSP/97)
(3a)
Se FHC não aprova as duas vai dar a maior demonstração de fraqueza de seu mandato.
Na ocorrência, a oração-prótase retoma o informação que é apresentada no
período antecedente, e é usada pelo jornalista como um tipo de argumento conclusivo.
Para ele, há duas opções para FHC: “se não aprovar as medidas, dá demonstração de
fraqueza de seu mandato”. No entanto, o fato de serem apresentadas duas opções, em
duas orações diferentes, não leva o ouvinte a entendê-las separadamente, como se o
falante estivesse simplesmente enumerando alternativas, mas ele as interpreta como se
houvesse um vínculo entre elas, e por isso chega à leitura condicional. Nesse sentido,
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008
217
acredita-se que a interpretação feita pelo ouvinte tem relação com o significado
construcional das paratáticas condicionais e não com o seu significado composicional.
É o que se pode também comprovar na ocorrência seguinte, que é interpretada
como uma construção paratática condicional:
(4)
A: Não é o que você está fazendo, bem?
PM: Fica nas minhas redondezas e você vai ver. É fêmea que parece mato. Eu estou neste morro da
Catacumba não tem dois meses e umas seis cabrochas já fizeram ranger as tábuas daquela cama ali.
(PM-LD)
(4a)
Se fic?@ A?B CiAD?B @edondez?B você vai ver.
É possível argumentar que essa ocorrência poderia ser interpretada como a
simples seqüência de dois eventos, como se houvesse dois atos de fala separados. Nesse
caso, a interpretação do ouvinte partiria do significado composicional dessa construção,
que é decorrente da adição de uma oração diretiva e outra declarativa, [“fique nas
redondezas” + “você verá”]. Na falta da conjunção condicional, que aponta para a
interpretação que o falante quer que seu ouvinte faça, para que ocorrências desse tipo
sejam interpretadas como condicionais faz-se necessário que se leve em conta seu
significado construcional, ou seja, é preciso que se considere a construção como um
único ato de fala condicional (AUWERA, 1986), que, nesse caso, pode ser entendido
como um ato de fala que expressa uma promessa por meio de uma construção aditiva,
que é interpretado como condicional.
Outros fatores de natureza pragmática, assim como fatores de ordem sintática e
semântica estão envolvidos na expressão do valor condicional nessas construções.
No que diz respeito à ordem de ocorrência das orações que compõem uma
construção paratática, foram encontradas 36 ocorrências de construções paratáticas em
que a oração-prótase precede a oração-apódose, e apenas 3 casos em que a oraçãoapódose precede a oração-prótase. As ocorrências seguintes são casos de anteposição:
(5)
- Bom, prá encurtá, o advogado ficô com oitenta conto. Pro pobre sobraram cento e vinte.
Agora, ocê pode fazê a conta: cento e vinte conto prá vivê e pagá remédio... Num durou nem ano e
pouco. Chi! O coitado ficou num desespero. A filha largô dele, foi morá com um garçom!... A
mulher, coitada, já estava mesmo que não podia... morreu faz poucos mês... Mas ele foi se
acostumando. Hoje tá que nem liga.
- É sim; baixô a desgraça, primeira coisa que some é a vergonha! (AS-LD)
(5a)
Se E?FxG ? HIBJ@aça, primeira coisa que some é a vergonha.
(6)
G: Me deixa ver seus olhos.
D: Pra quê?
G: Não posso ver?
G: Chorou a noite inteira, não é?
D: Tchau.
G: Tenho medo. Ou esse amor da Débora acaba em casamento ou acaba em tragédia!
AM: Quer dizer: ou acaba em tragédia ou acaba em tragédia! (FEL-LD)
(6a)
Se esse amor da Débora não acaba em casamento, acaba em tragédia.
(7)
PM: Aí não tem título sobre batida de polícia em morro, tem?
A: Não vejo nada disto, não.
PM: Eu não digo? Uns ceguinhos. A gente vem pra zona sul e tem nada. (PM-LD)
(7a)
Se a gente vem pra zona sul, tem nada.
Na ocorrência (5), a personagem conta uma série de acontecimentos pelos quais
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ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008
um homem passou, e como se fizesse um comentário de tudo o que contou, diz que se
“baixa a desgraça”, “primeira coisa que some é a vergonha!”. Nesse caso, encontra-se a
na oração-prótase uma causa para o evento que se dá na oração-apódose, ou seja, o
falante argumenta que sempre que a desgraça chega, some a vergonha.
Na ocorrência (6), a construção disjuntiva pode ser interpretada como
condicional. Nesses casos em que duas orações estão unidas por duas conjunções KL, a
primeira opção, que é apresentada na oração-prótase, parece ser melhor que a que está
sendo mencionada na oração-apódose, como se houvesse uma gradação. Nessa
ocorrência, o falante argumenta que das duas alternativas apresentadas, sem dúvida, a
primeira “o amor acabar em casamento”, é melhor que a segunda alternativa “o amor
acabar em tragédia”.
Na ocorrência (7) pode-se perceber que existe uma seqüenciação temporal na
ordenação das orações que compõem a construção paratática aditiva. A informação
apresentada na oração-prótase parece preceder temporalmente a informação que é dada
na oração-apódose. O falante afirma que veio para a Zona Sul e depois disso não teve
nada, ou seja, acredita depois que ele foi para a Zona Sul nada mais aconteceu com ele.
Todas essas ocorrências parecem mostrar que nas construções paratáticas a
ordem das orações é iconicamente motivada, porque as orações se ordenam segundo
uma seqüência temporal, ou segundo uma relação de causa e efeito, ou por uma relação
que vai do melhor para o pior. Essa mesma tendência de ordenação icônica das orações
foi encontrada nas condicionais canônicas (HIRATA, 1999), uma vez que nesses casos
a oração condicionante tende a preceder a oração condicionada. Assim como nas
construções condicionais canônicas, a ordem preferida nas construções paratáticas é a
anteposição da oração-prótase à oração-apódose. O fato de as construções paratáticas e
as condicionais canônicas terem o mesmo tipo de ordenação de orações faz com que as
construções paratáticas sejam passíveis de interpretação condicional.
O falante, ao fazer uma escolha pela anteposição da oração-prótase revela seus
propósitos comunicativos. Nesse sentido, pode-se dizer que a ordem das orações que
compõem uma construção paratática também é pragmaticamente motivada. O falante,
ao escolher a ordenação oração-prótase → oração-apódose, confere à oração-prótase a
função pragmática de tópico.
O exame das ocorrências encontradas no córpus mostra que nas construções
paratáticas em que a oração-prótase funciona como tópico, a informação apresentada
serve como uma forma de o falante exeMNOificPQ aquilo que foi dito, de QetKMPQ o que
foi dito anteriormente, ou de eRtPSTleceQ LM contQPRte com a oração precedente. É o que
se pode conferir nas ocorrências seguintes:
(8)
A: Cruzes! Eu só de pensar fico tonta. Não posso com altura. Sinto um enjôo de morte e se
não me agarro caio logo.
PM: Tem disso comigo não. Me dê uma cordinha, três lençóis amarrados, uma percha, qualquer
escada de pano e eu sou homem para qualquer travessura. (PM-LD)
(8a)
PM: Tem disso comigo não. [por exemplo] Se Ue deV WUa cXVdinha, tVês lençóis
amarrados, uma percha, qualquer escada de pano eu sou homem para qualquer travessura.
(9)
É sabido e notório que usar cinto de segurança faz bem à saúde e que mandar as crianças à
escola faz muito bem até à auto-estima. Apesar disso, todo mundo só começou a usar cinto depois
que a lei obrigou. Ou usa, ou lá vem multa. (FSP/97)
(9a)
Apesar disso, todo mundo só começou a usar cinto depois que a lei obrigou. [ou seja] Se
não usa, lá vem multa.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008
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Na ocorrência (8), o falante tenta mostrar que é valente, que pode descer de um
lugar mais alto não importa de que maneira. Ele usa a oração-prótase como tópico
porque ela serve para exemplificar como ele pode ser ousado. O falante parece estar
argumentando: “comigo não é assim, porque [por exemplo] se me der uma corda, ou
três lençóis, ou uma escada de pano, eu faço o que for necessário”.
A ocorrência (9) mostra claramente a função de retomada que a oração-prótase
desempenha. A jornalista está falando sobre o cinto de segurança e do momento em que
seu uso passou a ser obrigatório. A oração-prótase funciona como uma maneira de
retomar essa informação usada como um argumento pela jornalista, como se ela
estivesse pretendendo dizer a mesma coisa de uma outra forma e por isso retoma a idéia
precedente.
Em todas as ocorrências analisadas é possível perceber a existência de um
vínculo entre as orações que compõem a construção paratática, o mesmo tipo de vínculo
que se encontra nas construções condicionais canônicas. Esse fato mostra que a razão de
as construções paratáticas poderem ser interpretadas como condicionais se deve, em
grande parte, a uma relação de conseqüência que se estabelece entre a oração-prótase e
a oração-apódose. A conseqüência, nesses casos, deve ser entendida não apenas em um
nível semântico, como se significasse uma relação de causa e efeito, mas também em
um nível pragmático, uma vez que se pode apreender entre as orações uma relação de
relevância.
Além das ameaças, promessas e recomendações, as construções paratáticas
condicionais encontradas no córpus expressam situações que podem ser descritas como
habituais ou genéricas. Os 27 casos analisados indicam que os falantes expressam uma
situação que já é do seu conhecimento.
Na ocorrência seguinte, a construção justaposta apresenta-se como um contraste
em relação ao que foi dito no período antecedente. Pedro Mico afirma que uma mulher
se torna donzela novamente apenas pelo fato de se pendurar em seu braço. Assim podese entender que a situação descrita por Pedro Mico é por ele considerada como habitual,
porque sempre que uma mulher está com ele sua reputação fica garantida:
(10)
Pedro Mico: Olha, mulher que estiver com Pedro Mico ninguém chama disto não. Nem que
ela tenha passado em revista todo o Corpo dos Fuzileiros Navais. Nem que tenha sido do Mangue no
tempo do cincão. Pendurou no meu braço é moça donzela de novo. (PM-LD)
(10a)
Se YZ[\]^_] [_ `e] a^aço é moça donzela de novo.
A ocorrência (11) também mostra uma situação que o falante parece conhecer
bem, por tê-la vivenciado em outras épocas. Nesse caso, a construção paratática
condicional deve ser entendida como uma generalização, porque o falante expressa uma
verdade absoluta “não pode haver café” se acontece algo que independe de sua vontade
“não chover”:
(11)
Helena: O que foi que você disse ?
Joaquim: Não chove, não pode haver café.
Helena: Hoje, tudo está ficando diferente ! Não compreendo mais nada. De primeiro, tempo de
chuva era tempo de chuva.
Joaquim: Não há mais café como antigamente. (MO-LD)
(11a) Joaquim: Se não chove, não pode haver café.
Na análise das construções paratáticas condicionais também foram encontradas
construções que são usadas de uma maneira “quase proverbial”, no sentido de que se
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ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008
apóiam em conteúdos que são considerados como pré-concebidos. É o que se pode ver
nas ocorrências abaixo:
(12)
Clóvis: Que não o que. Vamos ganhar. E assim tiramos a garganta dele.
Dona Marta: Marido contra mulher não adianta.
Tonico: Adianta, sim. No jogo temos economia separada. Perdeu, pagou. Se não tem dinheiro,
compro as ações dela. Ela tem mais ações na Santa Marta que eu. (SM-LD)
(12a) Se bcddee, pagou.
(13)
Al: Mole ele nasce mesmo...
J: Mole tá bom, mas não mole! Mãe fraca, criança fraca... Quer com leite? Um pingado prá ela e um
cobertor de pobre prá mim. (AS-LD)
(13a) Se f ghc é fraca, a criança é fraca...
Nessas ocorrências, os significados das construções parecem repousar no
conhecimento tácito que se tem das situações, e adquirem um caráter de “dito”, que
pode ser entendido como um tipo de recurso argumentativo, porque o falante se vale da
informação que compartilha com seus ouvintes para alcançar seu objetivo
comunicativo.
4. Conclijõej
Neste trabalho analisou-se o uso de construções paratáticas – justapostas,
disjuntivas e aditivas – com um valor condicional. Pode-se dizer que a ordem de
apresentação das orações que compõem as construções paratáticas se mostra um fator
importante na interpretação condicional dessas construções. Essas construções têm o
mesmo tipo de comportamento das condicionais canônicas, sintática e pragmaticamente.
Pode-se afirmar, ainda, que as construções paratáticas condicionais constituem uma
importante estratégia discursiva, já que ao usá-las o falante vai apresentando
argumentos para a defesa de seu ponto de vista.
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222
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008
Estrutura retórica e combinação de orações em narrativas
orais e em narrativas escritas do português brasileiro
Juliano Desiderato Antonio
Departamento de Letras – Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Avenida Colombo, 5790 – CEP 87020-900 –· Maringá – · PR
jdantonio@uem.br
Abstract. This paper investigates in oral and written Brazilian Portuguese
Matthiessen & Thompson’s (1988) claim that rhetorical relations held in text
level organize text coherence and clause combining. A taxonomy of the
functions of the rhetorical relations in the narratives of the corpus has been
defined. There are relations which act in text organizing, relations which act
in text organizing and in paratactic clause combining and relations which act
in hypotactic clause combining.
Keywords. Rhetorical Structure Theory; Clause combining.
Resumo. Neste trabalho, procura-se verificar, no português brasileiro, nas
modalidades de língua oral e escrita, a afirmação de Matthiessen &
Thompson (1988) de que as relações retóricas que se estabelecem no nível
discursivo organizam desde a coerência dos textos até a combinação entre
orações. Estabeleceu-se uma taxonomia das funções exercidas pelas relações
retóricas nas narrativas do corpus. Há relações cuja principal função é de
organização textual, relações cuja função é, além de organização textual, de
combinação de orações paratáticas e, por último, relações cuja função é de
combinação de orações hipotáticas.
Palavras-chave. Teoria da Estrutura Retórica do Texto; Combinação de
orações.
1 Introdução
Neste trabalho, procura-se verificar, no português brasileiro, nas modalidades de
língua oral e escrita, a afirmação de Matthiessen & Thompson (1988) de que as relações
retóricas que se estabelecem no nível discursivo organizam desde a coerência dos textos
até a combinação entre orações. Relaciona-se, dessa forma, um fenômeno gramatical, a
articulação de orações, à estrutura organizacional do texto, com base na Teoria da
Estrutura Retórica do Texto. Essa teoria, que está sendo desenvolvida no âmbito do
chamado Funcionalismo da Costa-Oeste, cujo principal campo de estudo é a relação
entre gramática e discurso, tem como objetivo descrever a organização dos textos,
caracterizando as relações que se estabelecem entre as suas partes. O corpus da pesquisa
é constituído de sessenta narrativas, produzidas por informantes do Ensino Superior, do
Ensino Médio e do Ensino Fundamental, após a exibição de um filme mudo. Por meio
da ferramenta RSTTool, foram elaborados os diagramas da estrutura retórica dos
sessenta textos do corpus. Os dados referentes à articulação de orações foram
codificados com a ajuda da ferramenta Systemic Coder. Estabeleceu-se uma taxonomia
das funções exercidas pelas relações retóricas nas narrativas do corpus. Há relações cuja
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008
223
principal função é de organização textual, relações cuja função é, além de organização
textual, de combinação de orações paratáticas e, por último, relações cuja função é de
combinação de orações hipotáticas.
2 Fundamentação teórica
De acordo com a Teoria da Estrutura Retórica dos Textos, além do conteúdo
proposicional explícito veiculado pelas orações de um texto, há proposições implícitas,
chamadas proposições relacionais, que surgem das relações que se estabelecem entre
porções do texto. Para Mann & Thompson (1983), as proposições relacionais permeiam
todo o texto, desde as porções maiores até as relações estabelecidas entre duas orações.
Segundo a teoria, são essas relações que dão coerência ao texto, conferindo unidade e
permitindo que o produtor atinja seus propósitos com o texto que produziu.
Uma lista de aproximadamente vinte e cinco relações foi estabelecida por Mann
e Thompson (1987a), após a análise de centenas de textos, por meio da Teoria da
Estrutura Retórica. Essa lista não representa um rol fechado, mas um grupo de relações
suficiente para descrever a maioria dos textos. Com base na organização, as relações
podem ser divididas em dois tipos:
– Relações núcleo-satélite: uma porção do texto (satélite) é ancilar da outra (núcleo),
como na figura 1, no qual um arco vai da porção que serve de subsídio para a porção
que funciona como núcleo;
– Relações multinucleares: uma porção do texto não é ancilar da outra, sendo cada
porção um núcleo distinto, como na figura 2.
Figura 1 - Esquema de relação núcleo-satélite
Figura 2 - Esquema de relação multinuclear
3 Análise do corpus
3.1 Relações que atuam na organização do texto
3.1.1 Relações que têm como escopo porções de texto maiores do que a oração
Há, no corpus analisado, relações que são estabelecidas primordialmente para
organizar porções de texto maiores do que a oração. Como geralmente estão presentes
nas primeiras camadas da estrutura retórica, essas relações podem caracterizar um
determinado tipo de texto, como acontece no corpus com as relações de background e
de solução. Em todas as narrativas desse corpus, o primeiro nível da estrutura retórica se
apresenta em forma de uma divisão tripartida, como pode ser observado na figura 3.
Figura 3 – Organização do primeiro nível da estrutura retórica dos textos do corpus
A definição da porção de texto considerada o núcleo da narrativa é feita com
base no conceito de nuclearidade, tomado como princípio organizador central da
224
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008
estrutura do texto (Mann e Thompson, 1987; 1988). A porção escolhida como núcleo,
na análise, é aquela que é mais central para os propósitos do produtor do texto. O
julgamento que determina, em um par, qual porção de texto é núcleo e qual é satélite é
feito com base em dois critérios, o da assimetria e o da independência.
As relações são assimétricas, ou seja, a primeira porção de texto serve de
background para a segunda, ao passo que esta nunca serve de background para a
primeira. A terceira porção de texto serve de solução para a segunda, ao passo que esta
nunca serve de solução para a terceira.
No que diz respeito ao critério da independência, pode-se dizer que uma porção
do par (o núcleo) é independente da outra (o satélite), não sendo a recíproca verdadeira,
ou seja, o satélite não é independente do núcleo. Nas narrativas do corpus, o núcleo foi
determinado com base na teoria das partes da narrativa de Labov e Waltezky (1967),
segundo a qual a complicação é considerada a parte central da narrativa,
compreendendo os eventos que tornam intrincadas as ações. Essas ações, no vídeo
utilizado para elicitar as narrativas, têm início quando o rapaz e a moça se encontram,
sendo, logo em seguida, separados pelo pai dela, que a prende no quarto dela. Fazem
parte da complicação, também, a entrada do rapaz no quarto da moça, a chegada do pai
ao quarto, que resulta na briga do pai com o rapaz, e a fuga do rapaz, que quase é
capturado pelos guardas. As duas outras grandes porções de texto das narrativas
(background e solução), exemplificadas na figura 3, são, assim, dependentes dessa
porção central, já que têm a função de introduzir, respectivamente, o pano de fundo e a
solução dos eventos que complicam a narrativa.
A relação de background corresponde à orientação, parte da narrativa que,
segundo Labov e Waletzky, fornece informações sobre o pano de fundo da narrativa, ou
seja, sobre quem são os personagens, sobre onde e quando ocorrem os eventos etc. No
vídeo do Pavão Misterioso, fazem parte do satélite de background a chegada do rapaz à
cidade, a compra de um jornal, a passagem de um cortejo fúnebre, o passeio do rapaz
pela cidade, sua ida ao hotel e sua ida à festa que está acontecendo na cidade. A
apresentação desses elementos permite ao leitor/ouvinte da narrativa compreender
melhor a parte central da narrativa.
A relação de solução também encontra uma parte correspondente nas divisões da
narrativa de Labov e Waletzky. Trata-se da resolução, parte que fornece a solução para
os eventos que complicam a ação. Os eventos apresentados pelo satélite de solução, no
vídeo do Pavão Misterioso, compreendem a ida do rapaz a uma oficina, onde projeta e
constrói, juntamente com o mecânico dessa oficina, uma aeronave na forma de um
pavão. Em seguida, o rapaz vai à casa da moça, desce a aeronave sobre o telhado da
casa, desce pelo forro por uma corda e sobe novamente para o telhado levando sua
amada consigo. Eles fogem, então, voando no pavão misterioso, acenando para os
habitantes da cidade, que saem às ruas para acenar para o casal. O pai da moça fica
furioso. Esses eventos são a solução para o problema apresentado na complicação
(núcleo), ou seja, o casal se encontra, apaixona-se, mas é separado pelo pai da moça.
3.1.2 Relações que têm como escopo desde uma oração até porções de texto
maiores do que a oração
Podem ser encontradas no corpus outras relações que também atuam na
organização do texto, mas que têm como escopo desde uma oração até grandes porções
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008
225
formadas por várias orações. É o caso das relações de elaboração e de resultado. A
primeira exerce importante função na organização do texto, que é a de acrescentar
informações (explicação, maiores detalhes, etc.) a uma outra porção de texto. Pela
definição, a porção de texto contida no satélite deve acrescentar informações a respeito
da porção de texto que forma o núcleo. No exemplo da figura 4, encontrado em uma
narrativa oral, a porção de texto formada pelas unidades de 31 a 33 acrescenta
informações sobre a unidade 30, ou seja, explica como o rapaz foi além da ousadia
presumida pelo pai da moça.
Figura 4 – Relação de elaboração estabelecida entre uma oração e uma porção de texto formada
por várias orações
A relação de resultado é muito semelhante à relação de causa, mas, na verdade,
há uma diferença polar entre essas relações. Ambas trazem uma ação ou situação que
causa outra ação ou situação. A diferença reside na posição em que ocorrem núcleo e
satélite. Na relação de causa, a ação ou situação causadora está no satélite, de forma que
a relação de causa ocorre principalmente na combinação entre a oração causal e sua
oração-núcleo. A relação de resultado, por sua vez, tem a ação ou situação causadora no
núcleo. Na figura 5, encontrada em uma narrativa escrita, a relação de resultado é
empregada no estabelecimento de relações entre porções de texto maiores do que uma
oração.
Figura 5 – Relação de resultado estabelecida entre porções de texto formadas por mais de uma oração
226
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008
3.2 Relações que atuam na organização do texto e na combinação de orações
paratáticas
Há, também, relações que, além atuarem na organização de porções de texto
maiores do que a oração, também são encontradas com muita freqüência nas relações
estabelecidas entre duas orações. É o caso das relações de seqüência, de lista e de
contraste. Atuam na organização de grandes porções de texto e também são empregadas
na combinação de orações aditivas (relações de seqüência e de lista) e na combinação de
orações adversativas (relação de contraste).
Em uma combinação paratática, encontram-se orações de mesmo estatuto, ou
seja, uma oração não modifica a outra (HALLIDAY, 1985). No caso das relações
multinucleares, as porções de texto que se relacionam não são ancilares uma da outra,
isto é, são núcleos distintos (MANN & THOMPSON, 1987a; MANN & THOMPSON,
1987b).
No corpus, entre as orações paratáticas aditivas, estabelecem-se relações
multinucleares de seqüência ou de lista.
Figura 6 – Relação de seqüência estabelecida entre orações aditivas
Figura 7 – Relação de lista estabelecida entre orações aditivas
No exemplo da figura 6, encontrado em uma narrativa escrita, pode-se observar
que os eventos codificados pelas orações se sucedem temporalmente, motivo pelo qual a
relação estabelecida é a de seqüência (relação de sucessão entre as situações nos
núcleos).
Por outro lado, no exemplo da figura 7, encontrado em uma narrativa escrita, as
orações aditivas codificam eventos semelhantes, mas que não necessariamente se
sucedem temporalmente. Assim, a relação estabelecida é a de lista (um item comparável
a outros).
Entre as orações paratáticas adversativas, estabelece-se relação de contraste,
como pode ser observado no exemplo da figura 8, encontrado em uma narrativa escrita.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008
227
Figura 8 – Relação de contraste estabelecida entre orações adversativas
Na relação multinuclear de contraste, as situações e/ou os eventos codificados
pelos núcleos são concebidos como semelhantes em alguns aspectos e divergentes em
outros aspectos, e são comparáveis com base nessas diferenças. A coordenação
adversativa por meio do mas é tratada de forma semelhante por Neves (2000, p. 756):
“[o MAS] coloca o segundo segmento como de algum modo diferente do primeiro”, ou
seja, fica implícito que há semelhança entre as orações, uma vez que a relação
adversativa coloca uma das orações como de algum modo diferente da outra.
3.3 Relações que atuam principalmente na combinação de orações hipotáticas
Podem ser encontradas, também, relações que primordialmente são empregadas
na combinação de uma oração hipotática com a oração-núcleo. É o que acontece, no
corpus, com as relações de evidência, de justificativa, de causa, de concessão, de
propósito, de modo, de meio e de circunstância.
Uma oração hipotática modifica a oração-núcleo à qual está ligada. Ao contrário
do que ocorre com as orações paratáticas, a oração hipotática tem estatuto desigual em
relação à oração-núcleo (HALLIDAY, 1985). Por sua vez, nas relações núcleo-satélite,
a porção de texto que funciona como satélite é ancilar da porção de texto que funciona
como núcleo, sendo dependente dela (MATTHIESSEN & THOMPSON, 1988).
As orações causais estabelecem no corpus relações de evidência, de justificativa
ou de causa com a oração-núcleo à qual estão ligadas.
No caso da relação de evidência, a porção de texto que funciona como satélite (a
oração causal) fornece um argumento com a finalidade de comprovar o conteúdo da
oração-núcleo, como no exemplo da figura 9, encontrado em uma narrativa oral.
Figura 9 – Relação de evidência estabelecida entre a oração causal e a oração-núcleo
228
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008
Na relação de justificativa, a porção de texto que funciona como satélite (a
oração causal) apresenta o motivo que levou o produtor do texto a realizar o ato de fala
veiculado pela oração-núcleo, como pode ser observado no exemplo da figura 10,
encontrado em uma narrativa oral.
Figura 10 – Relação de justificativa estabelecida entre a oração causal e a oração-núcleo
Em ambos os exemplos, a porção de texto que funciona como satélite seria
considerada, pela gramática tradicional, uma oração coordenada explicativa. No
entanto, como pode ser observado, a relação estabelecida é do tipo núcleo-satélite, tendo
em vista que as porções de texto não constituem núcleos distintos, sendo uma porção de
texto ancilar da outra. O que ocorre, na verdade, é que a relação é estabelecida no
domínio dos atos de fala, como aponta Neves (1999), com base no conceito de domínio
semântico de Sweetser (1990). No caso do exemplo 9, a porção de texto que funciona
como satélite tem por função fornecer evidência para o ato de fala realizado pelo
produtor do texto de que “o pai dela deve ser um cara muito importante”. Por sua vez,
no exemplo 10, a porção de texto que funciona como satélite tem a finalidade de
justificar o porquê de o produtor do texto ter dito que o rapaz teve de “dar um jeito de
entrar”.
Na relação de causa, por sua vez, a ação ou situação veiculada pelo conteúdo do
satélite (oração causal) causa a ação ou situação veiculada pelo conteúdo do núcleo,
como pode ser observado no exemplo da figura 11, encontrado em uma narrativa
escrita.
Figura 11 - Relação de causa estabelecida entre a oração causal e a oração-núcleo
Embora a relação de resultado tenha a mesma definição da relação de causa, as
orações causais não estabelecem relações de resultado, uma vez que, nessa relação, a
ação ou situação causadora se encontra no núcleo.
No corpus, a relação de resultado pode ser expressa pelas orações consecutivas,
que denotam o efeito ou o resultado de um evento expresso na oração-núcleo, como
pode ser observado no exemplo da figura 12, encontrado em uma narrativa escrita.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008
229
Figura 12 - Relação de resultado estabelecida entre a oração consecutiva e a oração-núcleo
As orações concessivas estabelecem, no corpus, relações de concessão com a
oração-núcleo à qual estão ligadas. Na proposta da Teoria da Estrutura Retórica dos
Textos, a porção de texto que funciona como satélite (a oração concessiva) traz uma
situação que, mesmo sendo aparentemente inconsistente, é apresentada pelo produtor do
texto. A definição do significado básico do grupo de orações ao qual pertencem as
orações concessivas é semelhante: contrariedade à expectativa (HALLIDAY &
HASAN, 1976), do tipo que pode ser observado no exemplo da figura 13, encontrado
em uma narrativa oral.
Figura 13 - Relação de concessão estabelecida entre a oração concessiva e a oração-núcleo
As orações finais estabelecem, com a oração-núcleo à qual estão ligadas,
relações de propósito. Nessa relação, a porção de texto que funciona como satélite
expressa uma atividade que deverá ser realizada por meio da atividade expressa pela
porção de texto que funciona como núcleo. É o que pode ser observado no exemplo da
figura 14, encontrado em uma narrativa escrita.
Figura 14 - Relação de propósito estabelecida entre a oração final e a oração-núcleo
As orações modais estabelecem relações de modo ou de meio com a oraçãonúcleo à qual estão ligadas. Por meio das orações modais, expressa-se como o evento da
oração-núcleo é realizado. Na definição da relação de modo, a porção de texto que
funciona como satélite é definida de forma semelhante, ou seja, essa porção de texto
apresenta o modo como é realizada a ação expressa pela porção de texto que forma o
núcleo, como pode ser observado no exemplo da figura 15, encontrado em uma
narrativa oral. Por sua vez, na relação de meio, como se observa no exemplo da figura
16, encontrado em uma narrativa oral, a porção de texto que funciona como satélite
apresenta um procedimento ou um instrumento que permite a realização do evento
encontrado na porção de texto que forma o núcleo.
230
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008
Figura 15 - Relação de modo estabelecida entre a oração modal e a oração-núcleo
Figura 16 - Relação de meio estabelecida entre a oração modal e a oração-núcleo
As orações temporais estabelecem, com a oração-núcleo à qual estão ligadas,
relação de circunstância, como pode ser observado no exemplo da figura 17, encontrado
em uma narrativa oral.
Figura 17 - Relação de circunstância estabelecida entre a oração temporal e a oração-núcleo
4 Considerações finais
Neste trabalho, apresentou-se uma classificação das relações da Teoria da
Estrutura Retórica do Texto de acordo com a função que elas exercem nas narrativas do
corpus.
As relações de background, de solução e de resumo exercem função de
organização textual e atuam nas primeiras camadas da estrutura retórica das narrativas,
tendo como escopo porções de texto maiores do que a oração. As relações de avaliação,
de elaboração e de resultado também exercem função de organização textual, mas têm
como escopo tanto uma oração como porções de texto maiores do que a oração.
As relações de seqüência, de lista e de contraste, por sua vez, atuam tanto na
organização textual como na combinação de orações paratáticas. As orações aditivas
estabelecem relações de seqüência ou de lista, ao passo que as orações adversativas
estabelecem relações de contraste.
Por último, há relações que atuam principalmente nas combinações de orações
hipotáticas. Trata-se das relações de evidência, de justificativa, de causa, de concessão,
de propósito, de modo, de meio e de circunstância. Estão ligadas às orações causais as
relações de evidência, de justificativa e de causa. As orações concessivas estabelecem
relações de concessão, as orações finais estabelecem relações de propósito, as orações
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008
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modais estabelecem relações de modo e de meio e, por fim, as orações temporais
estabelecem relações de circunstância.
Essas observações feitas no corpus são, portanto, uma evidência a favor da
afirmação de Matthiessen e Thompson (1988, p. 286) de que “a gramática da
combinação de orações reflete a organização do discurso”, uma vez que, na combinação
de orações, podem ser encontrados os mesmos padrões de organização retórica do texto,
ou seja, relações com um núcleo e um satélite e relações com mais de um núcleo.
Referências
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In: HELM, J. (ed.) Essays on the Verbal and Visual Arts. Washington: University
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SWEETSER, Eve. From Etymology to Pragmatics. Cambridge: Cambridge University
Press, 1990.
232
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008
A perífrase ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio como indício de inovação lingüística
Marcos Rogério Cintra1
Instituto de Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Caixa Postal 6045 – CEP 13083-970 – Campinas – SP – Brasil
marcosrogeriocintra@yahoo.com.br
Abstract. The aim of the present paper is to investigate the types of text which
seem to promote the verbal periphrasis “ir(pres.)+estar+gerund”, often labeled
“gerundismo”, considering its manifestation in the topic progression. We
assume that the increasing use of this periphrastic form is a trace of
innovation in the current spoken Brazilian Portuguese. The data is based on
texts of the language in use, from the IBORUNA database (UNESP-SJPR).
Keywords: verbal periphrasis; futurity; types of text; discourse topic.
Resumo. Neste artigo, investigamos os tipos de texto que parecem favorecer a
emergência da perífrase verbal ir(pres.)+estar+gerúndio, comumente rotulada
como gerundismo, atentando para sua materialização no desenvolvimento
tópico do discurso. Consideramos que o uso crescente dessa forma
perifrástica é um indício de inovação no português brasileiro falado
contemporâneo. O universo de investigação é composto de ocorrências do
banco de dados IBORUNA (UNESP-SJRP).
Palavras-chave: perífrase verbal; futuridade; tipos de texto; tópico discursivo.
0. Palavras iniciais
A criação de perífrases verbais na história de diferentes línguas revela um
processo dinâmico de inovação e renovação constantes. A coexistência de formas
perifrásticas e sintéticas relacionadas à expressão da futuridade, historicamente
comprovadas na evolução das línguas românicas, por exemplo, evidencia a
dinamicidade desse processo, que tem sido considerado, muitas vezes, um padrão
cíclico de formas sintéticas e analíticas que se intercalam: formas sintéticas > formas
perifrásticas > formas sintéticas... (cf. FLEISCHMAN, 1982).
Na passagem do futuro latino às línguas românicas, esse padrão cíclico de
síntese de uma forma perifrástica inicial e substituição por uma forma perifrástica
inovadora representa o que Castilho (1997, p. 35) denomina “continuidade da
inovação”. Assim, muitos verbos auxiliares se morfologizam e são substituídos por
outros, desencadeando um processo de competição entre diferentes formas que, embora
concorrentes, apresentam diferenças funcionais que permitem apontar implicações
discursivas relacionadas a seus usos.
No período arcaico da língua portuguesa, ao lado do futuro do presente
formado do infinitivo de um verbo (principal) seguido de habere (auxiliar) no indicativo
(amare+habeo), o que resultou na forma gramaticalizada amarei
, encontramos
também a perífrase formada por ir+infinitivo (cf. MATTOS E SILVA, 1993;
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 233-241, jan.-abr. 2008
233
COUTINHO, 1976), cuja produtividade no português brasileiro (PB) já foi atestada por
uma série de estudos (cf. BALEEIRO, 1988; SILVA, 2002; OLIVEIRA, 2006; dentre
outros).
No PB contemporâneo, indícios dessa continuidade de inovação podem ser
percebidos pelo crescente uso da forma perifrástica ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio,
comumente rotulada como gerundismo, como se observa na ocorrência seguinte, em que
a entrevistada (professora primária) fala sobre os benefícios de a criança ter contato com
livros desde seus primeiros anos de vida:
(1) então eu posso afirmar com certeza que:: quando essa criança ela possui o contato
com os livros mesmo que ela não esteja ainda na escola ela já vai estar entrando em
contato com o mundo letrado ela vai estar entrando em contato com toda uma
riqueza de vocabulário ela vai estar desenvolvendo toda sua capacidade de
imaginação toda sua capacidade de criatividade ela vai estar criando uma rotina ela
vai estar desenvolvendo né e vai estar adquirindo um go::sto pela leitura que é
fundamental ela vai ter vontade de ler você não vai pedir pra ela ler ela por vontade
própria ela vai procurar os livros... (ALIP-RO-088:544-551)
Nesse trecho, pode-se notar que vai estar entrando, vai estar desenvolvendo, vai
estar criando, vai estar adquirindo co-ocorrem com outras formas perifrásticas, como
vai ter, vai pedir, vai procurar, na expressão da futuridade.
O uso da forma perifrástica ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio tem suscitado muita
controvérsia. Desaconselhada pela norma-padrão, essa perífrase tem sido tratada, muitas
vezes, como anglicismo e até mesmo vício de linguagem. A polêmica em torno de seu
uso, por outro lado, também tem sido abordada em textos de grande divulgação que
apresentam um posionamento mais reflexivo sobre essa forma perifrástica, como o
artigo de Possenti (2005), publicado na revista Discutindo Língua Portuguesa2.
Consideramos aqui a forma perifrástica ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio como um
tipo particular do chamado go-future (cf. FLEISCHMAN, 1982; BYBEE et al., 1991;
HOPPER, 1991; HEINE, 1993), cuja emergência faz parte de um processo mais amplo de
recorrência de formas perifrásticas, na medida em que decresce o uso da forma simples de
futuro, especialmente na língua falada, e se constata um aumento de construções que
envolvem (es)ta(r)+gerúndio no PB contemporâneo. Assumimos a concepção de que o
sistema gramatical de uma língua é sempre emergente (HOPPER, 1991), no sentido de
que estão sempre surgindo novos usos para formas já existentes.
No presente artigo, nosso interesse se centra, contudo, nos tipos de interlocução
verbal que favorecem o uso da forma perifrástica ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio.
Abordamos a materialização dessa perífrase no texto, observando como algumas
ocorrências se atualizam no desenvolvimento do tópico discursivo, nas situações de
interação em que se inserem. Adota-se, para tanto, a noção de tópico como unidade de
análise de estatuto textual-discursivo, recentemente retomada por Jubran (2006a,
2006b), que foi desenvolvida pelo Grupo de Organização Textual-Interativa do Projeto
de Gramática do Português Falado (PGPF).
Nosso universo de investigação se compõe dos inquéritos 018, 022, 024, 036,
042, 045, 047, 110 da amostra censo do banco de dados IBORUNA3, sendo que cada
entrevista se compõe de cinco seções textuais, assim denominadas:
234
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 233-241, jan.-abr. 2008
a) narrativa de experiência (NE);
b) narrativa recontada (NR);
c) descrição de local (DL);
d) relato de procedimento (RP);
e) relato de opinião (RO).
A delimitação das porções textuais, para a investigação do momento do
desenvolvimento tópico em que a perífrase em análise ocorre, pauta-se pelo princípio da
centração tópica (cf. JUBRAN, 2006a, p. 91-92).
O texto se organiza em três seções. Na primeira delas, Tendências em curso: uso
do gerúndio e de formas perifrásticas, apresentamos constatações de estudos recentes
do PB, que sugerem uma inclinação dessa modalidade ao uso de construções
perifrásticas que envolvem gerúndio, contexto que favorece o uso de
ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio. Na segunda, A perífrase ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio e
sua materialização no texto, observamos o efeito de sentido associado a algumas
ocorrências que se atualizam no fecho do tópico discursivo. Finalmente, na última
seção, procuramos alinhavar nossa exposição, argumentando em favor do uso de
ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio como indício de inovação no PB contemporâneo.
1. Tendências em curso: uso do gerúndio e de formas perifrásticas
Estudos recentes apontam duas inclinações da sintaxe do PB contemporâneo que
parecem favorecer a perífrase ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio: o uso cada vez mais
recorrente de formas perifrásticas de futuro (BALEEIRO, 1988; SILVA, 2002;
OLIVEIRA, 2006) e de construções que envolvem gerúndio (VIOTTI & SCHER, 2003
[2001]; LONGO & CAMPOS, 2002; MENDES, 2005). É nesse contexto de tendências
em curso que ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio se insere num processo de reorganização de
usos e funções discursivas das perífrases de futuridade.
É consensual, entre os trabalhos que abordam a expressão da futuridade no PB, a
constatação de que se processa a diminuição gradual da forma sintética e o crescente uso
da forma analítica ir(pres.)+infinitivo, especialmente na modalidade falada.
Ao estudar a expressão da futuridade no PB falado, Baleeiro (1988) e Silva
(2002) concluem que a perífrase ir(pres.)+infinitivo e o presente simples, acompanhado
de adjuntos adverbiais de tempo, são formas muito mais produtivas do que o futuro
sintético. O estudo de Oliveira (2006), que corrobora essas constatações, mostra que a
diminuição do uso da forma sintética de futuro é uma mudança que tem se acelerado.
Ao analisar comparativamente a manifestação das formas sintética e perifrástica de
futuro, em amostras do projeto NURC (especificamente dados de DIDs de Salvador e do
Rio de Janeiro) dos anos 70 e 90, a autora chega aos seguintes resultados percentuais,
que apresentamos na tabela seguinte adaptada:
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 233-241, jan.-abr. 2008
235
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"
#$#
#$#
%
&
%
'
Como podemos perceber, os resultados percentuais na tabela acima mostram que
o decréscimo do futuro simples, cuja ocorrência já é baixa (de 11% para 3%) se
processa na medida em que se intensifica o uso da forma perifrástica (de 73% para
82%), tendo em vista que as formas de presente simples se mantêm estáveis. Assim,
pode-se dizer que a perífrase ir(pres.)+infinitivo tende a se implementar
progressivamente, configurando o que Oliveira (2006, p. 195) define como “um quadro
de mudança em progresso quase concluída” na modalidade falada.
É fato que a forma perifrástica ir(pres.)+infinitivo desempenha papel
determinante na substituição das formas sintéticas de futuro. Por outro lado, supomos
que, na medida em que se processa a diminuição progressiva do futuro sintético,
configura-se um contexto favorável à recorrência também de outras formas perifrásticas,
relacionadas à expressão da futuridade, que passam a ser mais usadas.
Associada a essa inclinação, uma outra tendência em curso parece contribuir
para a emergência de ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio, qual seja, o uso de construções com
estar+gerúndio.
Essa tendência, visualizada por Viotti e Scher (2003), é o que leva as autoras a
considerarem ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio como parte de um contexto mais amplo de
mudanças relacionadas ao aumento significativo do uso do infinitivo perifrástico
(estar+gerúndio). As autoras constatam, tendo por base dados de fala espontânea
coletados de entrevistas em programas de rádio, uma grande recorrência do infinitivo
perifrástico, como notamos em (2), retirado de Viotti e Scher (2003, p. 373):
(2) Aí vai (es)tar dando pra (es)tar atendendo pelo menos quatro alunos de uma vez5.
De acordo com essa interpretação, tanto (es)tar atendendo como vai (es)tar
dando se relacionam ao aumento do infinitivo perifrástico (estar+gerúndio) no
português contemporâneo. As autoras relacionam o uso dessas perífrases de gerúndio a
“uma possível mudança em curso no português do Brasil” (p. 373).
Nesse sentido, também Mendes (2005), ao analisar a variabilidade nos usos de
estar(pres.)+gerúndio (EG) e ter(pres.)+particípio (TP) na expressão dos aspectos
durativo e iterativo (tipos do imperfectivo), conclui que “‘estar + gerúndio’ vem se
tornando a forma preferida nos contextos em que a alternância com ter + particípio é
possível” (p. 173), especialmente entre os falantes mais jovens. O autor constata que o
uso de ter+particípio está se tornando progressivamente mais restrito, tanto lingüística
como socialmente, revelando um processo de mudança em curso, em tempo aparente.
Nesse processo, verifica-se uma ampla preferência pelo emprego da perífrase
estar+gerúndio na fala dos mais jovens, independentemente de fatores lingüísticos (cf.
MENDES, 2005).
236
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 233-241, jan.-abr. 2008
E a essa tendência também fazem referência Longo e Campos (2002, p. 474)
que, ao investigarem as perífrases aspectuais, verificam que as construções com estar +
gerúndio “parecem (...) estar assumindo o papel de outras perífrases, como andar a,
tornar a, voltar a + infinitivo e andar + gerúndio (valor iterativo) e estar a + infinitivo,
seguir e vir + gerúndio (valor cursivo)”.
2. A perífrase ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio e sua materialização no texto
Partindo da concepção de que toda atividade discursiva se realiza por meio de
gêneros (cf. Bakhtin, 1992 [1953]) que, por sua vez, apresentam-se como
tipologicamente heterogêneos; podemos dizer que o discurso se materializa por meio
do texto, sendo os tipos textuais modos de organização desse discurso.
Assim, considerados em sua dimensão qualitativa, os dados selecionados
indicam que as situações em que o falante explica e avalia, apresentando argumentos
que endossam seu posicionamento, são favoráveis à realização da perífrase
ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio. Seu uso está associado a contextos que envolvem as
seguintes situações de interlocução das entrevistas do banco de dados IBORUNA:
relato de opinião (RO) na maior parte das vezes, e relato de procedimento (RP). E
verificamos, em nossas ocorrências, que um dos momentos mais comuns em que a
perífrase investigada se materializa é no fecho do tópico discursivo.
A
extensão
das
seqüências
textuais
em
que
a
perífrase
ir(pres.)+(es)ta(r)+infinitivo se materializa foi delimitada pelo princípio da centração
tópica (cf. JUBRAN, 2006a). Identificada como uma das propriedades
particularizadoras da manifestação tópica, a centração se define, em linhas gerais, pela
referencialidade textual, em que se considera o tópico no sentido geral de algo sobre o
que se fala, isto é, “um conjunto de referentes explícitos e inferíveis concernentes entre
si e em relevância num determinado ponto da mensagem” (JUBRAN, URBANO et al.,
1992, p. 361, apud JUBRAN, 2006b, p. 35), abrangendo os traços de concernência,
relevância e pontualização (cf. JUBRAN, 2006a, p. 92).
Estabelecendo uma aproximação com a tipologia textual-discursiva proposta por
Travaglia (1991), podemos dizer que, no gênero entrevista (amostra IBORUNA), relato
de opinião é um tipo de texto predominantemente dissertativo, em que o entrevistado
(interlocutor) é solicitado a “falar sobre algo”. Para o autor, “na dissertação, busca-se o
refletir, o explicar, o avaliar, o conceituar, expor idéias para dar a conhecer, para fazer
saber, associando-se à análise e à síntese de representações” (p. 50), como notamos no
trecho seguinte, em que a entrevistada, fumante, dá sua opinião a respeito do tabagismo:
(3) Inf.: então eu acho que é melhor às vezes... você fumar um cigarro do que matar um
próprio pai... e uma mãe... como a gente vê ultimamente na televisão...
Doc.: e como vê...
Inf.: então eu acho assim que é um mal que eu to fa/ causando só pra mim... e por
enquanto também porque eu tenho certeza que eu vou me livrar desse mal...
mas pelo menos é um mal que atinge só a mim pelo/ então eu num tô fazendo o
mal pra ninguém... né? [...] e:: enquanto... eu tiver... que eu não conseguir
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 233-241, jan.-abr. 2008
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evitar... eu num vou tá prejudicando ninguém... a não ser a si/ a mim mesma...
(ALIP-RO-036:400-407)
Já relato de procedimento apresenta características do tipo injuntivo
(especialmente o subtipo prescrição) (cf. Travaglia, 1991). De acordo com o autor, “na
injunção, diz-se a ação requerida, desejada; diz-se que e/ou como fazer; incita-se à
realização de uma situação” (p. 50), sendo que na prescrição (subtipo da injunção) o ato
de fala “ensina a fazer ou determina uma forma de fazer” (p. 57). Assim, nesse tipo de
texto, solicita-se ao interlocutor que “fale sobre como algo se realiza ou deve ser
realizado”, embora percebamos que, também nas seqüências injuntivas, o uso da
perífrase ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio se associa à manifestação de uma opinião, como
no segmento textual (4) a seguir, cujo tópico é como proceder ao cozinhar legumes:
(4) Doc.: tem alguma outra coisa que cê aprendeu nesse curso?
Inf.: ah como::... cozinhar... legumes que a gente não pode tuxar água na panela... e
deixar eles lá boiando lá pra cozinhar... porque a vitamina que ele tem solta...
através da água... e aí a gente perde a vitamina que o/ que o legume tem pra gente...
então tem que usar pouca água... pôr na panela de pressão com um mínimo assim
uma pitadinha de sal... fecha a panela... espera um pouquinho depois que começou
fazer aquele barulhinho espera cinco minutos e desliga... aí cê pode abrir... que aí
ele não vai tá nem mole e nem durinho vai tá... uhm:: numa/ na temperatura certa e
vai tá do jeito correto e aí a gente não vai tá perdendo a vitamina que ele tem...
(ALIP-RP-024:267-275)
Nesse relato de procedimento, o entrevistador dispõe da informação de que a
informante fez um curso ministrado por uma nutricionista e, por isso, convoca a
entrevistada a falar sobre assuntos abordados nesse curso. No trecho (4), a apresentação
dos procedimentos (prescrição) adequados ao cozimento de legumes se inclui numa
argumentação fundamentada na confrontação da crença comum (que a gente não pode
tuxar [....] legume tem pra gente...) justificada pelo ponto de vista especializado (então
tem que usar pouca água... [...] vai tá do jeito correto). Da relação que se instaura entre
essas duas seqüências, resulta uma conclusão respaldada (e aí a gente não vai tá
perdendo a vitamina que ele tem) que encaminha o fecho desse tópico. E na seqüência
dessa entrevista, um outro tópico já é proposto pelo documentador Doc.: e alguma outra
coisa assim que cê saiba cozinhar? como que cozinha? (ALIP-RP-024:276), passando a
entrevistada a falar, então, sobre como preparar bife.
Vejamos também a seqüência a seguir, em que a entrevistada fala por que pensa
em cursar Letras:
(5) Doc.: tá certo... éh:: eu queria saber assim... qual é a sua opinião... o que você
espera...(porque...) você disse que cê quer fazer letras né... [Inf.: hum] éh::...
e como você acha que é o curso de letras... o que você espera do curso de
letras?
Inf.: ai... eu acho... que assim... eu pretendo... queria fazer português e inglês
né... que é o que eu mas gosto assim... agora como que é o curso mesmo eu
num tenho muita... muita noção... mas eu... eu tô fazendo com a intenção de
depois... prestar concur::so essas coisa sabe... não muito na área de dar
aula... porque eu acho que eu num... eu num... [num]
238
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 233-241, jan.-abr. 2008
Doc.: [num quer dar aula]
Inf.: tenho o dom assim sabe... num ia saber... mas... também se me aparecer
oportunidade né... mas mais mais... com essa... com essa intenção de prestar
concur::so... por que daí eu vou tá sabendo português né... já é um grande
passo assim
Doc.: tá certo... tá jóia (ALIP-RO-042:279-289)
Nesse trecho, percebemos que a perífrase ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio se insere
no momento enunciativo em que o falante conclui seu raciocínio daí eu vou tá sabendo
português né... já é um grande passo assim, também encaminhando o fecho do tópico.
Em seguida, a entrevista termina.
Como afirma Cervoni (1989), as formas verbais do futuro expressam uma
atitude epistêmica particular do falante, contudo, “as distinções [...] só têm interesse se
pudermos dizer a que diferenças de significado elas correspondem” (p. 57). Daí a
necessidade de compreender a manifestação perifrástica na situação de enunciação. Ao
conduzir justamente o fecho do tópico, por meio da perífrase
ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio, o interlocutor assume uma atitude comprometida com o
seu dizer, como em (4), em que a informante avalia como certa a realização do estado de
coisas, a gente não vai tá perdendo a vitamina que ele tem..., cumpridos os
procedimentos adequados ao cozimento de legumes. De modo semelhante, em (5), daí
eu vou tá sabendo português né, o entrevistado acredita na realização do estado de
coisas, que avalia como certo num momento futuro.
Considerações finais
Neste
trabalho,
consideramos
o
uso
crescente
da
perífrase
ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio como um indício de inovação no quadro das perífrases
relacionadas à expressão da futuridade. Fato que se associa a tendências em curso no PB
contemporâneo, dentre elas, o uso cada vez mais recorrente de construções que
envolvem estar+gerúndio; sendo que, nesse contexto de tendências em curso,
ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio passa a co-ocorrer com mais freqüência ao lado de
ir(pres.)+infinitivo, por exemplo.
Com base em entrevistas do banco de dados IBORUNA, notamos que
ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio tende a se atualizar em textos marcados pelo caráter
opinativo do interlocutor, principalmente aqueles predominantemente dissertativos
(relatos de opinião), em que o falante avalia, conceitua, expõe idéias para dar a
conhecer. Verificamos também que um dos momentos mais comuns em que a perífrase
se atualiza é no fecho do tópico discursivo, o que, nos dados analisados, está
relacionado a uma atitude comprometida do locutor com seu dizer.
Notas
1
Bolsista da Fapesp - DR-1 (Processo 06/51932-7).
No artigo intitulado “Defendendo o gerúndio”, Possenti (2005) argumenta que a
estrutura ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio não corresponde a nenhum ‘desvio’ lingüístico. O
2
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 233-241, jan.-abr. 2008
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autor apresenta três razões, uma de ordem sintática (a regularidade da estrutura), outra
de ordem semântica (o aspecto durativo) e uma outra de ordem pragmática ou
interpessoal (gentileza, deferência, polidez), para justificar a legitimidade dessa forma
perifrástica. Não concordamos com Possenti (2005), no entanto, ao referir-se a algumas
ocorrências de ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio como estranhas (problemáticas), por
considerar que, “se estar é verbo auxiliar durativo, só pode(ria) ocorrer com verbos
durativos” (POSSENTI, 2005, p. 11). Dessa forma, vou estar enviando seu novo cartão
seria uma construção estranha porque enviar não é durativo, mas não vou estar morando
em São Paulo, uma vez que morar é durativo. Não vemos nenhuma impropriedade no
uso dessa perífrase com verbos que não são durativos. Talvez sejam esses os casos em
que o uso dessa perífrase tem se mostrado mais inovador, uma vez que, não raras vezes,
encontramos ocorrências como a seguinte, de uma rádio de S. J. do Rio Preto: “então
pra Ana Carolina nossa aniversariante de hoje eu vô tá colocando a música...” (103.1
FM - 30/07/07).
3
O banco de dados IBORUNA (UNESP-SJRP) se compõe de dois diferentes tipos de
amostra: uma de interação dialógica, que considera diferentes graus de assimetria
social entre os interlocutores, e outra do censo lingüístico da região de São José do Rio
Preto, com o controle de variáveis sociais.
4
Utilizamos os resultados a que chega Oliveira (2006) apenas como evidência
comprobatória de uma mudança em curso: a diminuição progressiva da forma sintética
de futuro. Na análise comparativa que fez da expressão da futuridade na língua escrita,
com base em editoriais de jornais das décadas de 70 e 90, Oliveira (2006, p. 168)
conclui que se verifica também nessa modalidade a tendência à implementação do
futuro sintético pelo analítico ir+infinitivo, ainda que de modo mais gradual (cf.
OLIVEIRA, 2006).
5
É necessário ressaltar que Viotti e Scher (2003) propõem uma distinção entre o uso
canônico e não canônico de ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio, sendo este último o de
ocorrência crescente. O exemplo oferecido pelas autoras como uso canônico é “No ano
de 2004, provavelmente a gente ainda vai estar estudando construções verbais”. Por
isso, em seu estudo, Viotti e Scher (2003) sugerem “uma hipótese para explicar uma das
possíveis interpretações feitas por falantes do português canônico” (p. 370) frente aos
usos não canônicos (cf. VIOTTI & SCHER, 2003).
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ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 233-241, jan.-abr. 2008
241
“Eu peguei e falei: eu vou!”
As noções de movimento e mudança nas contruções com
o verbo pegar
Natália Sathler Sigiliano∗
Mestranda em Lingüística – Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Rua Senador Salgado Filho, 510/501 – Bom Pastor
Juiz de Fora, MG – 36021-660
nataliasigiliano@yahoo.com.br
Abstract. this paper is aimed at demonstrating that the concepts of movement
and change are present in all of the constructions with the verb pegar. Such
constructions are highly productive in the Brazilian Portuguese, revealing, at
first, a vast range of meanings. Through the analysis of linguistic data, we will
attempt to make clear that the various instances of this construction do not
occur occasionally, reinforcing the hypothesis of the existence of a meaning
network.
Keywords. Constructions with the verb pegar; Polysemy; Movement; Change
Resumo. este trabalho visa a demonstrar que as noções de movimento e
mudança perpassam as construções com o verbo pegar. Tais construções são
bastante produtivas no Português do Brasil, revelando, a princípio, uma vasta
gama de significados. Através da análise de dados, buscar-se-á tornar
evidente que as diversas instanciações da construção não ocorrem
ocasionalmente, o que reforça a hipótese da existência de uma rede de
significados.
Palavras-chave. Construções com verbo pegar; Polissemia; Movimento;
Mudança
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008
243
Introdução
As construções com o verbo pegar têm se mostrado muito produtivas no
Português do Brasil (PB). Talvez isso se deva ao fato de essa construção apresentar as
mais diversas instanciações que podem indicar desde o ato concreto de usar as mãos
para segurar algo até noções abstratas como mudança de turno de fala. Vejam-se os
dados da fala mineira, coletados na cidade de Ibitipocai e nas audiências do Procon de
Juiz de Foraii :
(1) não, eu pego um pintor, eu pego um pintor nosso. é porque o pintor é seu ele
vai falar o que ele quer ué.= .. eu pego um pintor (PROCON JF)
(2) INF.- É...mas ieu acho que lá por riba, quando tá pingano, lá também móia
por riba...num desce por causa do forro, né? e a mia cama lá dentro, as menina
fala: “ah, (inint)da mia mãe tá moiano tudo”...pega uma lona, até que alargo ela
até os pé da cama, pá tampá a cama mai...menina essa casa móia, ma móia pa
incardí...cuiz credo...móia demais... (Corpus Conceição de Ibitipoca)
(3) INQ.- Onde trabalha, né?
INF.- Onde nós trabaiava.
INQ.- Então a senhora pegou na enxada, dona Maria? (Corpus Conceição de
Ibitipoca)
(4) INF.- Não sei, não sei... mas deve sê uma figuera, algum tipo assim de
madera, dessa espécie.
INQ.- Será que ela pegô fogo, por isso que ficô oco?
INF.- Possivelmente, né? porque naquela época também aconteciam muitos
incêndios, né? (Corpus Conceição de Ibitipoca
(5) INF.- Tomo... eu tomo um chá, eu faço xaropim de horta, junto no mei do
mato aqueles camarazim, (fruta de loro), vô juntano aqueles punhadim
(prendeno e debaxo aquele lambedô) pra í bebendo pra (cudí) a pedra, pra num
pegá (gripe). (Corpus Conceição de Ibitipoca)
(6) INF.- Foi os padre aí na rua, já tem muitos ano, sabe? aí, benzeu o
coquero...chegô aqui tirei (inint) guardei pa quando (andá) chuva a gente botá
queimá fumacinha é bão, né? (inint) pegô, prantô a muda, falô: “oh...eu vô
prantá essa uma aqui, pruque
às veiz um dia num tem jeito de saí pra ir
levá, nós vem na horta e rebenta e panha, né?”...tá lá, pegô, mas tá um brute de
coquero.
Se pensarmos no sentido atribuído por cada construção nos exemplos acima,
rapidamente perceberemos que não parece, num primeiro olhar, haver algo em comum
entre todos esses usos. Assumimos, porém, uma perspectiva sócio-funcionalcognitivista, a qual:
é representada pelo grupo de teorias mais comumente chamado de lingüística
cognitivo-funcional, mas também conhecido como lingüística baseada no uso, o
que enfatiza sua máxima do processamento central que afirma que as estruturas
da língua emergem dos usos da língua. (...) As teorias baseadas no uso
defendem que a essência da linguagem é a sua dimensão simbólica, enquanto a
gramática é derivada desta. (TOMASELLO, 2003, p.5 [tradução nossa])
244
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008
Essa perpectiva teórica é adotada visando a explicar tamanha produtividade
semântica do verbo e sua possível base comum. Com isso, partindo de dados reais de
fala, procura-se pelos processos figurativos de herança que possibilitaram a polissemia
da construção.
1. Pistas para a análise
Nossa proposta de trabalho se enquadra na tentativa de diálogo entre as
abordagens cognitivistas e funcionalistas americanas para o tratamento da linguagem,
utilizando-nos de dados de amostras do Corpus Conceição de Ibitipoca, Corpus do
Procon Juiz de Fora, e jornais de grande circulação na região. Para tal, lidamos com a
noção de construções conforme definida por Goldberg (1995) como sendo pareamentos
de forma e sentido, tais que há no sentido aspectos não preditíveis pela soma das partes
que compõem a forma. Sendo assim, nos é de muita valia também a Teoria da Metáfora,
proposta por Lakoff e Johnson (1980). Isso porque podemos buscar nas metáforas
propostas por estes lingüistas pistas que apontem para os processos figurativos que
operaram na polissemia das construções com o verbo pegar. Buscando tais pistas,
postulamos alguns aspectos básicos que podem vir a indicar respostas ou caminhos para
uma dissertação de mestrado que vem sendo realizada a respeito do assunto.
Primeiramente, procuramos pelo sentido do verbo conforme indicado no dicionário
Houaiss (2001), a fim de perceber quais são aqueles sentidos mais básicos do verbo –
mais lexicais – além da tentativa de se perceber as semelhanças entre o sentido
etimológico do verbo e seu sentido usual:
(sXIV cf. FichIVPM) 1 t.d.,t.i. segurar; prender segurando <p. a (ou na) xícara>
<pegou o ladrão> <p. pelo pé> 2 t.d.bit.int. e pron. fixar(-se), aderir, colar <é preciso
p. o papel (à parede)> <o feijão pegou (no fundo da panela)> <este papel não pega> <a
roupa pegava-se ao corpo> 3 int. lançar ou criar raízes <a roseira finalmente pegou> 4
int. firmar-se, estabilizar-se, funcionar bem, ter continuidade <a moda pegou> <a chuva
pegou> <a proposta pegou> <o motor pegou> <esta desculpa não pega> 5 int.
começar a funcionar, dar a partida <o carro a álcool custa mais a p.> (…)
ETIM lat. pico,as,ávi,átum,áre 'sujar(-se) com breu ou piche, impregnar(-se) de breu ou
piche; ter em si, trazer para si', der. de pix,ìcis 'pez, piche'; é voc. român. de complexa
ampliação semântica, a partir do signf. restrito de orig. lat.; ver peg-; f.hist. sXIV pegar
'fixar', sXV pegão, sXV peguar 'apanhar' SIN/VAR ver sinonímia de 2colar, colher,
prender, segurar e tomar ANT despegar; ver tb. antonímia de tomar e sinonímia de
libertar e soltar HOM pega(3ªp.s.)/ pega(s.f., s.m., s.2g., interj. e adj.2g.); pega /ê/
(f.part.irreg.)/ pega /ê/ (s.f., s.m. e adj.2g.); pegas(2ªp.s) e pegas /ê/ (f.pl.part.irreg.)/
pegas /ê/ (s.m.2n. e pl.pega /ê/ [s.f.s.m. e adj.2g.] e Pegas /ê/ (antr.); pego(1ªp.s.) e
pego /ê/ (part.irreg.)/ pego /é/ (s.m.) e pego /ê/ (s.m.) iii (HOUAISS, p. 2167, 2001)
Como indicado pela etimologia do verbo, este está ligado à idéia de “sujar(-se)
com breu ou piche, impregnar(-se) de breu ou piche; ter em si, trazer para si”. Esses
sentidos trazem a idéia de que há um movimento (e conseqüente mudança) entre os
participantes da predicação. Isso porque ao trazer para si, quem traz, o que é trazido ou
ambos podem ser movidos na direção desejada, a um container desejado e/ou
específico. A partir dessa noção, analisamos as construções com o verbo pegar do ponto
de vista dos movimentos e/ou mudança entre containers estabelecida entre predicadores
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008
245
ou participantes do discurso. Essa continuidade de sentidos que permeiam os diversos
significados de pegar demonstra o fato de que estamos lidando com um verbo
polissêmico, ou seja, nas palavras de Lyons (1996 [1995]): “a polissemia (o sentido
múltiplo) é uma propriedade dos lexemas específicos, de um mesmo lexema” (LYONS,
1995, p.58 [tradução nossa]).
Lyons comenta que uma diferenciação comumente feita entre polissemia e
homonímia diz respeito à idéia de que a etimologia da palavra determinará se esta é ou
não polissêmica. Tal critério vem, como vê-se na busca feita no dicionário Houaiss,
reforçar a noção de que temos vários sentidos associados aos esquemas de movimento e
relação entre containers. Por um critério de tornar essas idéias “mais didáticas”,
adotaremos “esquemas” que ilustrarão o sentido já comentado que acredita-se perpassar
todas as contruções com o pegar.
2. Esquemas de movimento/mudança do verbo pegar
Os esquemas que ilustram as construções com o verbo pegar são usados de
forma a facilitar a visualização de algo que, na realidade, parece ser intrínseco à nossa
cognição. Esses são demonstrações de esquemas conceptuais de que nos utilizamos sem
sequer notar como estes estão presentes no dia-a-dia. De acordo com Johnson (1987),
Lakoff (1987) e Lakoff e Johnson (2002), as categorias mentais e lingüísticas não são
categorias abstratas, desencarnadas ou independentes dos seres humanos. Essas
categorias são criadas com base em nossas experiências concretas, tendo como limites
os nossos corpos. Sendo assim, esses lingüistas perceberam que os seres humanos
conceptualizam um gigantesco número de atividades em termos de containers. Lakoff,
1987 (apud Lindner, 1982), observa que existem muitas metáforas baseadas no esquema
do container, sendo que elas somente são entendidas devido à nossa percepção
corporalmente baseada. Com isso, um grande número de conceitos abstratos formados a
partir da noção de container podem constituir em inovações lingüísticas, como
defendemos ser o caso do verbo pegar. Desta maneira, os nossos corpos e as coisas
podem funcionar como containers, os quais são estruturados com elementos que
representam o interior, a fronteira e o exterior. Desta mesma maneira, metaforicamente
criamos situações projetamos a noção de movimento e mudança para as mais diversas
instanciações lingüísticas. Como será no presente trabalho abordado, acreditamos que
esta noção de container e de movimento estão presentes, implicitamente, nos momentos
em que utilizamos os mais diversos sentidos do verbo pegar.
Para demonstrar tal fato, apresentaremos os seis esquemas que espelham como
se processa o sentido da construção com o pegar em nossa mente e, em seguida,
disponibilizaremos dados de fala que embasaram a montagem desses esquemas. As
letras A e B, presentes nos esquemas, representam a ordem dos constituintes
participantes com a construção com o verbo pegar, sendo que A espelha o primeiro
constituinte sintático e B, o segundo. As linhas em círculo e quadrado representam uma
noção de container mais abstrato e, por fim, as setas indicam os movimentos realizados
pelos elementos da construção.
2.1 – Esquema 1:
246
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008
Figura 1
Este esquema visa representar o duplo movimento realizado entre os argumentos
A e B, que é indicado pela seta de duas pontas. Esse movimento evolui para que B se
insira no container de A. Acreditamos estar neste esquema a característica do pegar
[+concreto], o que pode ser visto através dos dados:
(7) INF.- Ibitipoca ainda era muito movimentado...num era igual tá hoje
(inint)...começamo a fazê um forró ali...fui em casa, peguei sanfona, uma
motinha...aí começamo a tocá...dali todos os dias...e caiu na rotina aquela mania
de tá sempre encontrano os mesmo pessoal, as mesma coisa, decidimo
nós...decidimo montá uma banda... (Corpus Conceição de Ibitipoca)
Em (7), temos um sujeito “eu” (A) que realiza um movimento em relação à
sanfona (B). Ao alcançar a sanfona (B), o sujeito (A) movimenta o seu corpo em
direção a esse objeto e o aproxima-o de seu corpo. Desta forma, o sujeito inclui a
sanfona em seu container abstrato, que é representado pela idéia de trazer a sanfona
para perto de seu corpo, de seu container.
2.2 – Esquema 2:
Figura 2
O segundo esquema ilustra um movimento único firmado entre os argumentos
da construção com o verbo pegar, em que A “escolhe” B e o encaminha para um
container determinado. Leiamos os exemplos:
(8) [nós não te]mos condições de fazer isso, ué, o resto,eu já tô, já vou pegar
outra firma, entendeu, já vou ligar pra o já vou conversar com a[mazinha ela vai
lá, vai esperar vê o que que eles vão terminar lá pra acabar de dar jeito no resto,
porque não tem jeito, cê viu o estado da minha sala, não tem jeito (Corpus
Procon)
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008
247
Em (8), o constituinte e sujeito “eu” (A) demonstra querer escolher outra firma
(B) para realizar o serviço que não foi terminado em um lugar específico, que é
representado pela circunferência acima. Assim, A escolhe B e o insere no container do
lugar específico – que pode ser, neste caso, uma casa em reforma.
2.3- Esquema 3:
Figura 3
O constituinte (B) vai em direção a (A), caracterizando um movimento único, e
se insere no container de (A). Eis os dados:
(9) INF.- Não sei, não sei... mas deve sê uma figuera, algum tipo assim de
madera, dessa espécie.
INQ.- Será que ela [a madeira] pegô fogo, por isso que ficô oco? (Corpus
Conceição de Ibitipoca)
(10) INF.- Tomo... eu tomo um chá, eu faço xaropim de horta, junto no mei do
mato aqueles camarazim, (fruta de loro), vô juntano aqueles punhadim
(prendeno e debaxo aquele lambedô) pra í bebendo pra (cudí) a pedra, pra num
pegá (gripe)
INQ.-Acudi o que, Dona APA? (Corpus Conceição de Ibitipoca)
Nestes exemplos, temos que o fogo e a gripe (constituintes (B)) realizam um
movimento até os elementos representados pelo constituinte (A) – “madeira”, em (10) e
“eu”, em (11) – e se inserem no container dos mesmos. Assim, o fogo se insere no
container da madeira, queimando-a; e a gripe se insere no container do ser humano, o
corpo humano.
2.4- Esquema 4
Figura 4
248
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008
No esquema 4, o constituinte (A) se movimenta até (B) e se insere no container
do mesmo. Vejamos um exemplo:
(11) INF.- Ah, ali diz que é...mas graças a Deus eu já desci ali uma porção de
veiz, até de noite nóis num tinha condução pra...pra vir, nóis ia as veiz na cidade
fazê consurta pra nós, pras criança, mas ia de caminhão mia fia, pegava lá no
Gerardo de Parma...cê sabe aonde é Gerardo de Parma? ia pegá um caminhão ali
naquele Gerardo de Parma, nós ia a pé...saía de noite ainda daí...pra lá...ah já
passei muito trabaio na mia vida. (Corpus Conceição de Ibitipoca)
Neste caso, “nóis” (A) movimenta-se até o caminhão (B) que se encontra no
“Gerardo de Parma” e se insere nele.
2.5- Esquema 5
Figura 5
Em 5, o constituinte (A) realiza movimento único em direção a (B) e (B) se
insere no container de (A):
(12) então tá que eu te pego de carro porque minha obra é longe, eu te pego de
carro". ele falou assim, "daqui a pouco eu te ligo". meio dia, meio dia e meia,
uma hora, duas horas, pergunta se ele me ligou e eu esperando. eu tinha que tá
na embratel meio dia. ligo eu pra embratel, "olha eu vou atrasar tá mas daqui a
pouco eu tô chegando". até que chegou o ponto que eu liguei pro meu esposo e
falei, "olha ,lucas, são duas e pouca eu tenho que ir embora, eu não posso
esperar mais o carlos" porque a gente foi ao cara do vidro que ele indicou o
cara fez o [ projeto entregou por lucas] (Corpus Procon)
Aqui, “eu” (A) se movimenta até “te”, o falante (B) e o insere no container em
que estava A – o container do carro.
2.6- Esquema 6
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008
249
Figura 6
Neste esquema há um movimento duplo de (A) para (B) e vice-versa e ambos,
realizados os movimentos, compartilham um mesmo container:
(13) Vasco encara pedreira contra o Atlético-PR. Embalado pela vitória de 3 a 1
sobre o Flamengo, o Vasco pega outro Rubro-Negro hoje: o Atlético-PR, em
Curitiba. (Tribuna de Minas – 1 novembro 2006)
Em (13), o Vasco (A) se direciona para o local de encontro com o Atlético (B) e
vice-versa, a fim de se enfrentarem no campo que é o container “englobador” de A e B.
3- Pegar no discurso
Para finalizar, mostraremos que, além dos sentidos apresentados acima, as
construções com o verbo pegar podem estar ligadas a noções discursivas, em que se
associam a uma construção de discurso reportado ou, até, a outros tipos construcionais –
como as resultativas, por exemplo –, sendo que estes últimos serão tratados, dada a
necessidade de análises mais aprofundadas, em trabalhos posteriores. Observem-se os
exemplos abaixo:
(14) aí ele ainda me mostrou, no quarto aonde ela tá falando ali, no projeto que
ela fez com a (gessoteto) teria forro igual cê tá vendo aqui. nós sugerimos (tipo
isso aqui) só que fechando no teto, tá . não é forro liso igual a gesso teto ia fazer
era morrendo no teto lá em cima. eu peguei e falei com ele, "ó eu quebrei aqui
que vou ter que passar a fiação" (Procon/JF)
(15) que na realidade com com com o que eu tinha e com a virada foram
setecentos e quarenta e quatro minutos, que eu perdi, eu fiz as contas, eu peguei
eu falei vou, vou contar. (Procon/JF)
Há quem pense que este pegar no discurso nada mais tem a ver com as noções
postuladas até agora relacionadas a um sentido que perpassa todas as instanciações da
construção estudada. Defendemos, porém, a idéia de que, ainda neste caso, a construção
com o verbo pegar traz o movimento e/ou conseqüente mudança embutida em seu
sentido semântico. Isso porque o que é movimentado/mudado nas construções com o
verbo pegar + verbo dicendi é o turno de fala. Assim, o falante usa a construção para
marcar a mudança de turno em sua fala ou uma mudança de discurso indireto para
direto, o que mostra, mais uma vez, que há um sentido comum, básico, do qual as
demais estruturas derivar-se-ão.
Conclusão
Pudemos demonstrar, por meio deste trabalho, que as construções com o verbo
pegar têm se revelado muito produtivas no Português do Brasil, espelhando a noção de
que existem processos figurativos de herança que possibilitam a polissemia da
250
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008
construção. Tentamos, através dos esquemas ilustrativos das ocorrências da construção
demonstrar que há uma explicação para essa polissemia, baseada nas relações
metafóricas existentes entre os seus diversos significados e a necessidade humana de
reduzir eventos abstratos a uma escala física tangível (LAKOFF & JOHNSON, 1980;
FAUCONNIER & TURNER, 2002).
Notas
∗
Mestranda em Lingüística, UFJF
i
O corpus de dados de fala Conceição de Ibitipoca utilizado neste trabalho foi
gentilmente cedido pela pesquisadora Terezinha Cristina Campos de Resende.
ii
Agradeço aos coordenadores do grupo de pesquisa Linguagem e Sociedade, Sônia
Silveira e Paulo Gago, por cederem dados de fala do Procon/JF para o presente trabalho.
iii
Trecho de verbete selecionado pela autora.
Referências Bibliográficas:
FAUCONNIER, Gilles. & TURNER, Mark. The Way We Think – Conceptual Blending
and The Mind’s Hidden Complexities. New York: Basic Books, 2002;
GOLDBERG, Adele. Constructions: A construction grammar approach to argument
structure. Chicago: University of Chicago Press, 1995;
HOUAISS, Antônio & VILLAR, Mauro. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001;
JOHNSON, Mark. The Body in Mind: The Body Basis of Meaning, Imagination, and
Reason. Chicago: University of Chicago Press, 1987.
LAKOFF, George. Women, Fire and Dangerous Things: What Categories Reveal about
the Mind. Chicago: University of Chicago Press, 1987.
LAKOFF, George & JOHNSON, Mark. Metáforas da Vida Cotidiana. Trad. Vera
Maluf. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2002 [1980];
TOMASELLO, Michael. Constructing a Language: A usage-based theory of language
acquisition. Harvard: Harvard University Press, 2003.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008
251
Construções de foco em português e espanhol sob a
perspectiva da Gramática Discursivo-Funcional
Sandra Denise Gasparini-Bastos1
1
Departamento de Letras Modernas – IBILCE/UNESP
Rua Cristóvão Colombo, 2265 – 15054-000 – S. J. Rio Preto – SP – Brasil
sandradg@ibilce.unesp.br
Abstract. The purpose of this paper is to analyze how pragmatic function of
focus can be seen under Functional Discourse Grammar, a new approach to
Dutch Functional Grammar. This new approach is still being developed and
understands discursive acts as basic units of analysis. Positive and negative
polarity will be taken into account, i.e., yes and no particles, in Portuguese
and Spanish answers. The occurrence of these forms was identified in news
interviews from Brazilian magazine Veja and Spanish magazine El País
Semanal.
Keywords. focus; Functional Discourse Grammar; positive polarity; negative
polarity.
Resumo. Este trabalho tem por objetivo analisar como a função pragmática
de foco pode ser tratada dentro da Gramática Discursivo-Funcional, nova
vertente da Gramática Funcional de linha holandesa, ainda em
desenvolvimento, a qual toma atos discursivos como unidades básicas de
análise. Meu interesse volta-se especialmente para as formas de polaridade
positiva e negativa (sim e não) em função de resposta, em português e em
espanhol. Para realizar a análise, identifiquei ocorrências dessas formas em
entrevistas jornalísticas impressas retiradas da revista brasileira Veja e da
revista espanhola El País Semanal.
Palavras-chave. foco; Gramática Discursivo-Funcional; polaridade positiva;
polaridade negativa.
1. Introdução
Em sua Teoria da Gramática Funcional, proposta para analisar a estrutura da
frase, Dik (1997a e 1997b) considerou a existência de elementos que só poderiam ser
descritos em níveis mais amplos de análise, os chamados constituintes extrafrasais. Em
trabalhos anteriores (GASPARINI-BASTOS 2005 e 2006), observei o comportamento
dos constituintes extrafrasais em função de resposta, especialmente as formas de
polaridade positiva e as formas de polaridade negativa, sim/sí e não/no, no português e
no espanhol, respectivamente.
Ao analisar as ocorrências dessas formas em entrevistas jornalísticas do português e
do espanhol, verifiquei que esses elementos podem receber atribuição de foco, função
pragmática definida por Dik (1997a) como a informação relativamente mais importante
ou saliente num dado contexto comunicativo.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 253-258, jan.-abr. 2008
253
Com a evolução da teoria da Gramática Funcional de linha holandesa, atualmente
chamada de Gramática Discursivo-Funcional, meu objetivo é analisar como a noção de
foco pode ser tratada dentro do novo modelo, que considera atos discursivos como
unidades básicas de análise. Para tanto, identifiquei ocorrências de formas sim e não no
português e sí e no no espanhol, em função de resposta, em vinte entrevistas
jornalísticas impressas, sendo dez entrevistas retiradas da revista brasileira Veja e dez
entrevistas retiradas da revista espanhola El País Semanal, selecionadas entre os anos de
2000 e 2001, no Brasil e na Espanha, respectivamente.
2. A Gramática Discursivo-Funcional
O modelo teórico que adoto para a presente análise consiste na Gramática
Discursivo-Funcional (doravante GDF), proposta por Hengeveld (2004a e 2004b) e por
Hengeveld e Mackenzie (2006 e 2007 no prelo). Tal teoria, ainda em desenvolvimento,
compartilha algumas das características básicas da Gramática Funcional de Dik (1997a
e 1997b), mas oferece contribuições, apresentadas a seguir, no sentido de descrever
elementos maiores ou menores do que a frase:
a) a GDF tem uma organização top down, que parte da intenção do falante para a
articulação das formas lingüísticas. Essa proposta sugere que o falante primeiro
decide qual vai ser seu propósito comunicativo para depois selecionar e codificar
a informação gramaticalmente;
b) a GDF toma o ato discursivo e não a frase como unidade básica de análise,
podendo tratar de unidades maiores ou menores do que a frase;
c) a GDF consiste em uma abordagem hierárquica e modular, com quatro níveis de
análise – interpessoal (nível pragmático), representacional (nível semântico),
morfossintático e fonológico. Os quatro níveis interagem para produzir as
formas lingüísticas apropriadas.
O modelo da GDF está em conformidade com a busca de adequação psicológica das
gramáticas funcionais, já que se baseia no processo de produção da fala descrito por
Levelt (1989), cuja análise sugere que o falante primeiro decide qual vai ser seu
propósito comunicativo, seleciona a informação mais adequada para alcançar esse
propósito, codifica a informação gramaticalmente e fonologicamente e, por fim, realiza
o processo de articulação.
Embora o modelo busque abranger de forma mais completa o processo de interação,
não se trata um modelo de análise do discurso, mas sim de um modelo gramatical.
3. O foco na GDF
Enquanto função pragmática, a atribuição de foco ocorre no nível interpessoal da
Gramática Discursivo-Funcional, cujas unidades relevantes são organizadas
hierarquicamente. No nível mais alto está o move, que consiste de um ou mais atos
discursivos. Cada ato compreende uma ilocução (ILL), os participantes da comunicação
(P1 e P2) e um conteúdo comunicado (C). Dentro do conteúdo comunicado pode haver
um ou mais subatos.
O move é a maior unidade de interação relevante para a análise gramatical e está
formado por um ou mais atos. Os atos são definidos como as menores unidades de
comportamento comunicativo. Dentro do ato, o conteúdo comunicado contém tudo o
254
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 253-258, jan.-abr. 2008
que o falante deseja evocar em sua comunicação. Cada conteúdo comunicado pode
conter um ou mais subatos e pelo menos um deles oferecerá a informação
comunicativamente mais “saliente” e receberá a atribuição da função pragmática de
foco.
Conforme explicitado em Keiser e van Staden (no prelo), dentro do novo modelo a
noção de foco restringe-se a três tipos:
a) foco novo: assinala a seleção estratégica do falante da informação nova;
b) foco enfático: assinala o desejo do falante de que o ouvinte dê atenção especial a
um subato;
c) foco contrastivo: assinala o desejo do falante de destacar diferenças e
similaridades particulares entre um conteúdo comunicado e uma informação
contextualmente disponível.
Foco novo e foco enfático são atribuídos a um subato dentro do conteúdo
comunicado, enquanto a noção de contraste pode envolver mais que um subato.
4. Análise dos dados
A análise das ocorrências das formas de polaridade positiva (sim no português e
sí no espanhol) e das formas de polaridade negativa (não no português e no no
espanhol), em função de resposta, mostra que os casos mais freqüentes são de foco
novo, típico de pares adjacentes (pergunta-resposta), comuns em entrevistas
jornalísticas, como nos exemplos:
(01)
(Veja) A separação assusta os homens?
(Cuschnir) Sim. Separação e desemprego, nesta ordem, são os grandes cataclismos na
vida de um homem.
(Veja, ano 33, nº 15, 12 de abril de 2000, p. 15)
(02)
(Veja) Vocês se casaram com separação de bens. Foi difícil a negociação?
(Ronaldo) Não. Hoje em dia todo mundo toma esses cuidados.
(Veja, ano 33, nº 1, 5 de janeiro de 2000, p. 14)
(03)
(El País Semanal) ¿Era usted más artista de niña que Lolita?
(Rosario Flores) Sí, yo era la más artista de los tres hermanos.
(El País Semanal, nº 1313, 25 de novembro de 2001, p. 17)
(04)
(El País Semanal) Se advierte cierto toque de desesperanza en sus manifestaciones. ¿Es
una persona pesimista?
(Pepa Flores) No. A pesar de todo lo que estoy diciendo, yo tengo mucha esperanza y
creo en los seres humanos por encima de todo.
(El País Semanal, nº 1235, 28 de maio de 2000, p. 22)
Nos exemplos de (01) a (04), tem-se um move de ação do entrevistador (a pergunta)
e um move de reação do entrevistado (a resposta). Nos quatro casos, o move de resposta
está composto por um único ato discursivo, formado cada qual por dois subatos. As
ocorrências de sim/sí e de não/no, nesses casos, que constituem o primeiro subato de
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 253-258, jan.-abr. 2008
255
cada ato, recebem atribuição de foco novo, pois compreendem a informação que
completa o que foi perguntado pelo entrevistador. Os subatos subseqüentes trazem, em
seus conteúdos comunicados, informações que complementam a resposta.
Nos exemplos (01) e (03), o move de pergunta do entrevistador compreende um
único ato interrogativo. Nesse caso, move e ato coincidem. Já nos exemplos (02) e (04),
o move do entrevistador é composto por dois atos discursivos, com estatutos
ilocucionários diferentes, sendo o primeiro deles declarativo e o outro interrogativo.
Conforme Hengeveld e Mackenzie (no prelo), a relação estabelecida entre esses dois
atos é de dependência, já que o primeiro ato prepara a pergunta contida no segundo.
Além das seqüências típicas pergunta-resposta, são identificadas também, tanto nos
dados do português como nos dados do espanhol, algumas ocorrências das chamadas
“perguntas retóricas”, feitas pelo entrevistado a ele mesmo, conforme os exemplos (05)
e (06):
(05)
(Scolari) Pioramos tanto num espaço tão curto de tempo? Não. Mas, por motivos que
não me cabe comentar, meus antecessores, Wanderley Luxemburgo e Leão, deixaram
de lado a base daquele time de 1998.
(Veja, ano 34, nº 44, 7 de novembro de 2001, p. 11)
(06)
(Héctor Cúper) Ahora, ¿un premio Nobel tiene por eso menos capacidad de influencia
que un jugador? No. Si lo medimos con la vara económica, un jugador gana más que un
premio Nobel.
(El País Semanal, nº 1249, 3 de setembro de 2000, p. 12)
Embora os enunciados pertençam ao mesmo falante, há dois moves diferentes, sendo
um de ação e outro de reação. Os moves de resposta estão constituídos, ambos, por um
ato discursivo, com dois subatos cada. O processo de focalização funciona de maneira
semelhante aos exemplos discutidos anteriormente, sendo as ocorrências de não e de no
tratadas como casos de foco novo.
A seqüência pergunta-resposta é típica das entrevistas do português, diferentemente
do que ocorre nas entrevistas do espanhol que analisei. Embora existam pares típicos de
pergunta e resposta nos dados do espanhol, na maioria dos casos as perguntas explícitas
são substituídas por solicitações implícitas, como ocorre no exemplo (07):
(07)
(El País Semanal) El lío de los recuentos volvió a aportar una mala imagen de Florida.
(Mel Martínez) Sí, y no fue justo.
(El País Semanal, nº 1293, 8 de julho de 2001, p. 14)
Apesar da ausência da ilocução interrogativa, comum nas entrevistas, o move de
resposta do entrevistado constitui uma reação ao move do entrevistador e está
constituído por um ato discursivo, composto por dois subatos. A forma sí do exemplo
(07) representa igualmente um caso de atribuição de foco novo.
Embora a posição de início de move seja a prototípica para as formas sim/sí e
não/no, tanto no português como no espanhol, são encontradas no córpus algumas
ocorrências de dupla negação, com a forma de polaridade aparecendo como o segundo
subato. Exemplos:
256
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 253-258, jan.-abr. 2008
(08)
(Veja) Na Itália, apedrejaram seu carro depois da derrota para a Udinese. Você chegou a
ameaçar deixar a Inter...
(Ronaldo) Não é só na Itália, não.
(Veja, ano 33, nº 1, 5 de janeiro de 2000, p. 14)
(09)
(El País Semanal) ¿Pero qué quiere decir, que los chicos deben estar con usted, que
deben estar en el juego?
(Camacho) No significa que deben estar conmigo…, no.
(El País Semanal, nº 1236, 4 de junho de 2000, p. 24)
Nesses exemplos, a informação nova está contida no conteúdo comunicado do
primeiro subato (“não é só na Itália” no exemplo (08) e “não significa que devem estar
comigo” no exemplo (09)), que recebe atribuição de foco novo. Os subatos
representados pelas formas de polaridade negativa constituem um reforço da
informação. Tem-se, nesse caso, a ocorrência de foco enfático.
Identifiquei, ainda, casos em que as formas sim e não no português e sí e no no
espanhol não seguem uma pergunta explícita nem uma solicitação implícita, aparecendo
como subatos que ocupam uma posição intermediária dentro do move do falante,
conforme exemplos (10) e (11):
(10)
(João Ubaldo) Não há explicação para esse tipo de coisa, de forma que eu não tenho
nenhuma prescrição, nenhuma receita a dar a ninguém. Tenho, sim, uma experiência de
vida.
(Veja, ano 33, nº 7, 16 de fevereiro de 2000, p. 15)
(11)
(Vilhena) Os alunos que conseguiram entrar para dividir espaço com a pequena elite
que dominava o acesso à universidade chegaram a fazer mestrado ou doutorado no
exterior. Foi uma revolução. Não baixou a qualidade, não. Ao contrário.
(Veja, ano 34, nº 41, 17 de outubro de 2001, p. 12)
No exemplo (10), observa-se um caso de contraste marcado por dois subatos (“eu
não tenho nenhuma prescrição” e “tenho uma experiência de vida”). O entrevistado
destaca as diferenças entre os dois conteúdos comunicados, sendo a forma sim uma
marca de foco contrastivo. Conforme aponta Martínez Caro (1998), ao analisar dados do
espanhol em contextos semelhantes ao do exemplo (10) em português, o contraste
estabelecido pela forma sim (sí) pode estar explícito ou implícito. O exemplo (10)
mostra uma ocorrência de contraste explícito.
Já a ocorrência da dupla negativa em (11) não é motivada por uma pergunta do
entrevistador, mas sim por uma suposta dúvida existente na situação de interação. Ao
discorrer sobre a abertura de vagas na universidade em que trabalha, o entrevistado
antecipa-se a uma possível pergunta do entrevistador, informando que a expansão do
número de vagas na universidade não baixou a qualidade do ensino. A forma não, nesse
tipo de ocorrência, marca um caso de foco contrastivo, por meio do qual o falante
destaca sua posição contrária em relação a um conteúdo disponível no contexto.
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 253-258, jan.-abr. 2008
257
5. Considerações finais
Este trabalho procurou avaliar as ocorrências de foco nas construções de
resposta constituídas pelas formas de polaridade positiva (sim e sí) e pelas formas de
polaridade negativa (não e no), em entrevistas jornalísticas impressas do português e do
espanhol.
Os dados mostram que essas formas, enquanto componentes de atos discursivos no
interior do move, podem receber atribuição dos três tipos de foco previstos pela
Gramática Discursivo-Funcional, nova vertente da Gramática Funcional, ainda em
desenvolvimento. Os casos mais comuns são de foco novo, seguidos das ocorrências de
foco enfático e de foco contrastivo, sendo que os últimos podem contrastar conteúdos
comunicados explícitos ou apenas presentes contextualmente.
Referências
DIK, S. The theory of Functional Grammar. Dordrecht: Foris, 1997a.
_____ . The theory of Functional Grammar: Part II. Berlin, New York: Mouton de
Gruyter, 1997b.
GASPARINI-BASTOS, S. D. As construções de polaridade positiva e negativa como
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____ . A relação entre construções de polaridade positiva e negativa e a função
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HENGEVELD, K. The architecture of a Functional Discourse Grammar. In: GÓMEZGONZÁLES, M.; MACKENZIE, L. (eds.). A new architecture for Functional
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_____. Epilogue. In: GÓMEZ-GONZÁLEZ, M.; MACKENZIE, L. (eds.). A new
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HENGEVELD, K.; MACKENZIE, J. L. Functional Discourse Grammar. In: BROWN,
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____ . Functional Discourse Grammar. Oxford: Oxford University Press. 2007. No
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KEISER, E.; Van STADEN, M. The interpersonal level in Functional Discourse
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LEVELT, W. J. M. Speaking: from intention to articulation. Cambridge: MIT Press,
1989.
MARTÍNEZ CARO, E. Parallel focus in English and Spanish: evidence from
conversation. In: HANNAY, M.; BOLKESTEIN, A. M. (eds.). Functional
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258
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 253-258, jan.-abr. 2008
Verbos de processo: causatividade & consecutividade
Sebastião Expedito Ignácio1, Ana Carolina Sperança2
1
2
Departamento de Lingüística – Universidade Estadual Paulista (UNESP - Araraquara)
Programa de Pós-Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa – Universidade Estadual
Paulista (UNESP – Araraquara)
expedito@techs.com.br, carolinasperanca@yahoo.com.br
Abstract. In this paper, we discuss the relation causativity & consecutivity,
studying the mechanisms that form process clause structures and the possibilities
(and conditionings) of occurrence of corresponding active-process sentences,
concerning the different process verbs’ properties. This work is based on verb
centrality principle and on the argument theory according to the valency
grammar and case grammar.
Keywords: process verbs; causativity; consecutivity; themathic roles.
Resumo. Pretende-se, neste trabalho, discutir a relação de causatividade &
consecutividade, estudando-se os mecanismos de realização das estruturas
oracionais processivas e as possibilidades (e condicionamentos) de ocorrência de
frases ativo-processivas correspondentes, tendo em vista as propriedades dos
diversos tipos de verbos de processo. O trabalho fundamenta-se no princípio da
centralidade do verbo e na teoria da argumentação segundo a gramática de
valência e a gramática de casos.
Palavras-chave: verbos de processo; causatividade; consecutividade; papéis
temáticos.
1. Preliminares
Considerando-se que o verbo de processo assim se caracteriza por selecionar um
argumento afetado na posição de sujeito, infere-se que essa classe de verbos pressupõe, em
princípio, um elemento causativo, responsável pelo afetamento do primeiro argumento
(Ignácio, 1994). Essa causa, que pode vir explícita ou implícita, demonstra-se ora
lingüisticamente, ora logicamente. Dessa forma, na falta de outra nomenclatura,
chamaremos os verbos de processo de verbos consecutivos e os dividiremos em dois
grandes grupos:
- os que pressupõem um verbo causativo correspondente (cair < derrubar; morrer <
matar, etc.: O copo caiu./Ele derrubou o copo.)
- os que não possuem um correspondente causativo determinado (crescer; balançar(-se);
entristecer(-se), correr; escorrer, etc.: O suor corria/escorria pelo seu corpo; etc.).
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 259-266, jan.-abr. 2008
259
Entende-se por processo a relação de afetamento (mudança de estado físico ou
psicológico) sofrida por um ser em conseqüência do fato expresso pelo verbo numa
estrutura oracional. Dessa forma, entende-se por verbo de processo aquele que seleciona
um sujeito afetado, física ou psicologicamente:
(i) O vaso quebrou1.
(ii) Janaína entristeceu.
O sujeito desse tipo de verbo se caracteriza como Paciente e se subcategoriza como
Experimentador, no caso dos seres animados que “experimentam” uma sensação, como é
o caso do exemplo (ii), Janaína entristeceu. Conforme lembra Chafe (1979), o verbo de
processo indica um acontecer em relação ao nome que o acompanha na construção da
frase, seja esse nome o que preenche a função de sujeito, como nos exemplos acima, seja o
que funciona como objeto nas estruturas oracionais em que há, ao mesmo tempo, ação e
processo:
(iii) João quebrou o vaso.
(iv) Este fato entristeceu Janaína.
Nos dizeres de Borba (1996, p.58), “Os verbos de processo expressam um evento ou
sucessão de eventos que afetam um sujeito paciente ou experimentador. Por isso traduzem
sempre um acontecer ou um experimentar, isto é, algo que se passa com o sujeito ou que
ele experimenta”.
Tendo-se em vista, pois, que o nome associado ao verbo de processo, sendo afetado,
“sofre” ou “experimenta” um efeito ou conseqüência do fato expresso pelo verbo, é lícito
afirmar que esse verbo se possa considerar como consecutivo, isto é, expressa o resultado
de uma causa que pode vir explícita ou implícita, ora se realizando lingüisticamente, ora se
pressupondo logicamente. No primeiro caso, o elemento causativo pode vir expresso como
complemento:
(v) A árvore caiu com o vento.
(vi) A porta do carro abriu com o impacto da colisão.
Essas estruturas processivas correspondem sempre a uma estrutura ativo-processiva,
onde o complemento causativo é alçado a sujeito, ora se conservando a mesma raiz verbal,
ora se realizando com um verbo causativo correspondente ao verbo consecutivo, como será
demonstrado adiante.
2. Papéis temáticos (casos semânticos) que compõem as estruturas em que há processo
Nas estruturas meramente de processo, o sujeito, na proposta de Chafe (1979), é
Paciente. Na verdade, o termo “Paciente” constitui aí um caso genérico, aplicado tanto a
260
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 259-266, jan.-abr. 2008
seres animados como não-animados. Propomos aqui a subcategorização desse termo,
considerando como Experimentador ou Experienciador (Exp), segundo a classificação de
Fillmore (1971 e 1977), o caso de seres animados que experimentam um afetamento nas
estruturas com verbos psicológicos (Cançado, 1997), reservando o termo Paciente (Pac)
aos seres não-animados. Ex.:
(1) Paulo magoou-se. (Exp)
(2) Joana entristeceu(-se). (Exp)
(3) O muro caiu. (Pac)
(4) A porta abriu. (Pac)
Ainda nestas estruturas, podem-se explicitar, na posição de complemento, os papéis
temáticos Instrumental (Instr) e Causativo (Ca), responsáveis pela causatividade. Ex.:
(5) Paulo magoou-se com as palavras ásperas da esposa. (Instr)
(6) Joana entristeceu-se com a notícia. (Ca)
(7) O muro caiu com o vento. (Ca)
(8) A porta abriu com a chave. (Instr)
Nas estruturas de ação-processo, esses mesmos papéis temáticos acrescentados do
Agentivo (Ag) se revezam na posição de sujeito, aparecendo na posição de complemento o
Paciente e o Experimentador. Ex.:
(9) A esposa de Paulo o magoou com sua atitude. (Ag; Exp; Instr)
(10) A atitude da esposa magoou Paulo. (Instr; Exp)
(11) A notícia entristeceu Joana. (Ca; Exp)
(12) O vento derrubou o muro. (Ca; Pac)
(13) A chave abriu a porta. (Instr; Pac)
3. Elementos causativos relacionados à consecutividade dos verbos de processo
Constitui uma evidência dizer que não pode haver efeito sem causa. Assim, é forçoso
reconhecer que todo verbo de processo pressupõe um elemento ou um fato responsável pelo
evento expresso por ele. Como já dito, esse elemento ou esse fato podem vir expressos ou
ser recuperados lingüisticamente, ou poderão estar implícitos logicamente. No primeiro
caso, a causatividade poderá estar expressa no complemento, ou pode ser recuperada numa
estrutura pressuposta, de ação-processo, na forma de um sujeito Agente, Causativo ou
Instrumental. Ex.:
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(14) A porta abriu.
pressupõe:
(15) João (Ag) / O vento (Ca) / Uma chave falsa (Instr) abriu a porta.
No segundo caso, a causatividade se pressupõe logicamente, mas não se tem um
elemento ou uma estrutura lingüística correspondente recuperável. Ex.:
(16) Os rios correm para o mar.
(17) Joãozinho cresceu de repente.
(18) O suor escorria pelo seu rosto.
Evidentemente há uma causa responsável pelo movimento das águas dos rios, pelo
crescimento de Joãozinho e pelo fato de o suor escorrer pelo rosto. Todavia, essa causa não
é recuperável lingüisticamente, a não ser através de uma paráfrase imaginativa. Nesta etapa
do trabalho, entretanto, não tratamos destes casos. Analisamos apenas os verbos que
pressupõem como causativo um elemento lingüístico facilmente recuperável ou que enseja
uma paráfrase real.
Os elementos lingüísticos que representam a causatividade nas estruturas processivas se
associam, basicamente, a três casos ou funções semânticas: Agentivo, Causativo e
Instrumental. Como já exemplificado, essas funções ocupam a posição de sujeito em
estruturas ativo-processivas reconstituídas a partir de estruturas processivas. E nestas são o
Causativo e o Instrumental que ocorrem mais freqüentemente como elementos que
explicitam a causatividade. Em raríssimos casos o Agentivo pode ocupar a posição de
complemento, e nesses casos não se caracteriza propriamente como causa, mas como
origem. Ex.:
(19) Marta apanhou do marido.
Nesse exemplo, a paráfrase possível não recupera, na posição de sujeito, a
causatividade no sentido que a estamos considerando, mas sim o desencadeador ou a
origem da ação:
(20) O marido bateu em Marta.
Neste caso, a tentativa de se detectar uma causa fica no plano das especulações, a
menos que o contexto a explicite, e aí a análise deixa de se restringir aos limites da oração e
se estende ao âmbito do discurso.
4. Propriedade dos papéis temáticos (casos semânticos) responsáveis pela
causatividade nas estruturas processivas
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Como visto, Agentivo, Causativo e Instrumental se revezam nas representações das
causas que dão origem ao afetamento do nome (sujeito, nas estruturas meramente de
processo, e complemento, nas estruturas de ação-processo). Disso se infere que esses papéis
temáticos têm propriedades comuns, todavia apresentam certos traços característicos que os
distinguem e que, conseqüentemente, implicam em algumas limitações e condicionamentos
na realização das estruturas oracionais, bem como nas derivações ou transformações
permitidas ou pressupostas. Em princípio, o traço causatividade se faz presente em todos
eles, uma vez que são igualmente os responsáveis, diretos ou indiretos, pelo
desencadeamento da ação ou do evento que resulta no afetamento do nome. O traço
animacidade é obrigatório para o Agentivo e facultativo para o Causativo e o
Instrumental. Isto se pode demonstrar na dimensão pragmática. Sejam os exemplos:
(21) Paulo magoou a esposa com sua atitude. [Ag +animado]
(22) A atitude de Paulo magoou a esposa. [Instr –animado]
(23) Paulo utilizou-se de um amigo para magoar a esposa. [Instr +animado]
(24) O carro tombou devido a um buraco na pista. [Ca –animado]
(25) O carro tombou devido a um animal atravessando a pista. [Ca +animado]
Os traços voluntariedade e manipulação são definitivamente distintivos: enquanto o
Agentivo é voluntário e manipulador, o Instrumental é não-voluntário e manipulado, e o
Causativo é não-voluntário, não-manipulado. Dessa forma, o Instrumental sempre
pressupõe um Agentivo que o manipula, sendo, neste caso, o primeiro a causa imediata e o
segundo a causa mediata.
Nas estruturas exclusivamente de processo, em que o sujeito é afetado (Paciente,
Experimentador), apenas o Causativo e o Instrumental se realizam, na posição de
complementos, como responsáveis pela causatividade do afetamento do sujeito e pela
consecutividade que se estabelece entre o verbo e o sujeito. O Agentivo, como visto, não se
realiza como complemento causativo, no entanto sempre se pressupõe como causa mediata
quando há um Instrumental, uma vez que este não se realiza sem que haja um
manipulador. Ex.:
(26) A árvore caiu com o vento. (Ca)
(27) O pugilista foi a nocaute com apenas um golpe. (Instr)
Em (26) “o vento” se caracteriza como Causativo por não ser manipulado. Em (27)
“um golpe” se caracteriza como Instrumental por pressupor um Agente (alguém desferiu
o golpe). Note-se que, neste caso, o Agentivo poderia se explicitar na forma de adjunto
adnominal, como a causa mediata, isto é, o manipulador do Instrumental, e aí esse
Agentivo não se caracterizaria propriamente como papel temático, que seria o conjunto
nome+adjunto adnominal, portanto Instrumental:
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(28) O pugilista foi a nocaute com apenas um golpe do adversário.
Aqui se poderiam pressupor duas estruturas parafrásticas de ação-processo:
(29) Apenas um golpe do adversário nocauteou o pugilista.
(30) O adversário nocauteou o pugilista com apenas um golpe.
Em (28), o papel temático Instrumental é representado pelo conjunto “um golpe do
adversário” que se realiza na posição de sujeito; em (30), o Agentivo, realizando-se como
sujeito, desmembra-se do Instrumental que passa a posição de complemento.
Note-se que em (28) a forma “foi a nocaute”, formada por um verbo suporte mais um
nome abstrato, correspondendo virtualmente a um uma raiz verbal cognata do nome,
funciona como um verbo de processo. Já em (29) e (30), a forma “nocauteou” lexicaliza
tanto a ação (causa) como o processo (conseqüência). Esse fato, como se verá adiante, tem
conseqüências nas transformações de estruturas processivas em estruturas ativoprocessivas.
Desde já pode-se dizer que, sendo tanto o Causativo como o Instrumental portadores
do traço causatividade, fica evidente o traço consecutividade nos verbos de processo. E
ainda que não se possa recuperar formalmente aqueles papéis temáticos, o fato de ser o
sujeito afetado implica aí uma relação de causa e efeito.
5. Alguns condicionamentos para as transformações de estruturas processivas em
estruturas ativo-processivas
As estruturas ativo-processivas podem realizar-se com a mesma raiz verbal da estrutura
processiva ou com um verbo de outra raiz, porém caracteristicamente causador do evento
expresso pelo verbo de processo. Isso ocorre nas seguintes condições:
a) se o verbo lexicaliza apenas o processo, a estrutura ativo-processiva correspondente se
realiza com um verbo causativo, de raiz diversa, correspondente à ação que resulta no
evento expresso:
(31) A árvore caiu com o vento.
(32) A garota morreu com uma bala perdida.
Correspondem a:
(33) O vento derrubou a árvore.
(34) Uma bala perdida matou a garota.
Observações:
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I. Uma vez que esses verbos lexicalizam apenas o processo, não podem, evidentemente,
participar de uma estrutura de ação-processo, por isso se tornam agramaticais estruturas
como:
(35) *O vento caiu a árvore.
(36) *Uma bala perdida morreu a garota.
II. Há certos verbos que, embora lexicalizem apenas o processo, não possuem um causativo
correspondente. Neste caso, emprega-se o modalizador FAZER seguido do infinitivo do
verbo de processo:
(37) A criança dormiu com a canção de ninar.
(38) A canção de ninar fez a criança dormir.
Pela mesma razão apresentada em I, será agramatical:
(39) *A canção de ninar dormiu a criança.
III. Os verbos que lexicalizam exclusivamente o processo são consecutivos por excelência.
b) se o verbo pode lexicalizar tanto a ação quanto o processo, a estrutura ativo-processiva
se realiza com o mesmo verbo:
(40) A criança acordou com o barulho.
(41) O barulho acordou a criança.
(42) O gelo derreteu com o calor.
(43) O calor derreteu o gelo.
Neste caso, o verbo adquire na estrutura ativo-processiva um caráter misto de
causatividade e consecutividade, ou seja, ao mesmo tempo em que indica um FAZER por
parte do sujeito, indica um ACONTECER em relação ao complemento.
5. Conclusão
O fato de os verbos de processo selecionarem um sujeito afetado implica que
estabelecem uma relação de consecutividade. Tem-se, portanto, que os verbos de processo
pressupõem sempre uma causa responsável pela conseqüência por eles desencadeada. Essa
causa se explicita pelos papéis temáticos Causativo e Instrumemntal, na posição de
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complemento nas estruturas meramente processivas, e por Agentivo, Causativo e
Instrumental, nas estruturas ativo-processivas.
Uma estrutura meramente processiva [sujeito afetado + verbo de processo ±
complemento] pressupõe sempre uma estrutura ativo-processiva correspondente, cujo verbo
poderá ser de raiz diversa do verbo de processo da estrutura primitiva, indicando apenas a
causatividade, ou será o mesmo verbo da estrutura primitiva, indicando, ao mesmo tempo, a
causatividade e a consecutividade.
6. Referências Bibliográficas
BORBA, F. S. Uma gramática de valências para o português. São Paulo: Ática, 1996.
CANÇADO, M. Verbos psicológicos do português brasileiro e a análise inacusativa de
Belletti & Rizzi: indícios para uma proposta semântica. D.E.L.T.A., São Paulo, v. 13,
n. 1, 1997.
CHAFE, W. Significado e estrutura lingüística. Trad. de M. H. M. Neves et al. São Paulo:
Livros Técnicos e Científicos, 1979 [1970].
FILLMORE, C. Some problems for case grammar. In: O´BRIEN, R.J. (ed.) Monograph
series on language and linguistic, n. 24. Washington: Georgetown Univ. Press, 1971.
______ The case for case reopened. In: COLE, (ed). Et alii – Sintax and semantics:
grammatical relations, 8. New York: Academic Press, 1977.
IGNÁCIO, S. E. O processo da derivação frasal nas frases dinâmicas do português
escrito contemporâneo do Brasil. ALFA Revista de Lingüística, 1994, p. 33-45.
1
Os exemplos citados são estruturas representativas das constantes do corpus (Centro Lexicográfico da
Faculdade de Ciências e Letras da UNESP-Araraquara), simplificadas, mas que conservam a mesma
configuração sintática.
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