[go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 1-266, jan.-abr. 2008 & $ *+, )1617 666 !" # $%$ &'& () ' -. / ((01 2 3 &4&$ 5 , 2 8 $ 9$& ' ' # : '3 $ 3.$ '& & ;&+& ' & '& <& & ' &$ 2 & $ '& + '&$ <& ' < $ +&' & & '<&$# = & > <&? - & <3 @$ $ ' & @ $$ $& '5 $& A &' & $ " & B & & $ & # <&$ & ' + $& &$ #& $ C 'D $ @ $$ $& & & & &E, F &$ # $ & G GH & '+& F @ H/ ' & $& ' F H/ ' ?& $ ' + $& <&$ F H/ '+&$ 5 $F H/ & $ & &$- ' F @ H/ & J# & & '& <!'' $ F H/ & <&$ 4& 9 F H/ & & '& #5 $ F H/ ' #& K&$ - &$# & -, F H/ & 5$ & 9 & '+& F < H/ & @' $& 9$ '' F H/ $ &' $ & F H/ $ &' @$& # 2 $F H/ 9 & $ 4 ' + $& F H/ 9 &$' & & '+& F H/ &$ ' & <&$"& $" 4 ; ## ' '' F < H/ % & & 5 ' F H/ % @' $L # . F H/ '& & <&$ & M& &$& F H/ '& & & & ''& N NN $ F < H/ '& & ;&+& ' & F H/ '% & <&$ & + +& $ F H/ $ & &$ $ & $ & F 2 H/ $ & <&$ @&$ F 2 H/ ' @ $$ $& & $ 4 2J $ F H/ +& &$ &-&$ F H/ & @ $ & & #F @ H/ +& & & '+& F 9H/ ' &4&$ 5 9 #5&$& F H/ - $ $ F H/ $ #& ' + 4 F @ H/ $ ' $ 4& F H/ +& F H/ @&. & & $ & K F H/ @%. 8 &$ < & 5 $ F @ H/ @ $ & & $$ & '+ $& &'' F < H/ @ $ & & < &' - F @ H/ @'%+ & 9 4 $$& < 4 I $& & &' F @ H/ &.$ ' $& A F @ H/ $&' $& F H/ ' % & & F H/ '& <&$ & 9&$# '' '- & F @ H/ & <&$ & '+ F H/ +, &$' F H/ 2 , 4 5& F H/ 2 , 9= # &.$&' & F @ H/ &$ & $ & 9 $ F H/ & $ 2 8 O $& 9&' F H/ & <&$ & - ' + F H/ # & <&$# 4 F H/ " & $ F @ H/ #& +& F @ H/ 4 &$' & ' &$ F H/ 4 4& & <&$#5 4& F H/ <&$& # & @& $P F H/ <&$ & 8' & -& I $ & F H/ <&$ & $ & &$$ $& & '+& F H/ <&$ & & # E, @ #& '+& F 9H/ <&$ & &$ $ ' F H/ <&$ & @'%+ & @ $ $ $& 9 '' '& F @ H/ <&$ ' -& &. F H/ <&$ & $$L& '+& F <H/ <&$ 4 <& &'' ' I& 5 $ F H/ <&$P-&$# & F H/ <& $ # < E& &$ 4 F @ H/ ' " &- F H/ ' & @ $$ $& '5 F H/ & ' 5& & 4& F H/ $ &+&$$ 9&$. & F <H/ . $ &-&#5 F H/ &' 9 ' < F H/ & <&$ & & '+& F H/ & $'8 & . $& 5 5 -&4 F H/ & $& & &$ 9& F H/ & $& <& $ $& F H/ .& , &$' E&'+ F H/ 5 '& $& &-&$ $ '' F H/ '& $& 5& F H/ = & $ F H/ ' &'' @ &' F H/ -D 5 & D & F H/ & &9 & F H/ 5 -& 9 # F <H/ &' - $ < '' F @ H/ & # <&$ & ' + $& &$ F @ H/ Q & <&$ & #& $$& F @< H3 -&$ 4 I& .' #&E, O & $ F)STUH3 )3 !" & ' 3 !" &- # R & / $ & 4& ' V W 3 3X/ )STU .' #& & - .' #& & - &' )7)Z6SZS ' $= # F ' $= # F5 #&3 (3 !" #& ' #& & Z3 $ $&' !" # <H & &$ $ (66)3 VRRYYY3 '3 $ 3.$RH & &$ $ $& $& 3 $ & , & ' +3 ) (6613 !" # & , "# ! $ % & ! '( ! ! ) & & - * ! . ! ! + / 0 ,! & '( 12 34 5 , 3 34 5 ! & 6 ! ! ! 72 3 & , ! % ! 89 ! & : , ! ;; < =< 3 & 3 5 ! > ? @ ?A B7 ! 3 : '( ! ! : # " C & D E $ 97 " ! '( # ! & $ %& & F ! + ! G H7 % C 5 F& ( ! +! ! ! ! ! & # )7 ' ! ! ! ! ! ( & 0 '( ! J 6 * K 2L7 ! '( ) I ! # $ ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 1-266, jan.-abr. 2008 & & + & 227 3 3 M C 5 'N ! '( ! ! !+ $ ! & ! + ! 212 % 0 '( & + 'N & ! + + 272 ' ! ! ! + ! 3 ( ! ! 'N F 282 % ! ! "# : ! ! ! & '( ! & ' ! '( O & + , #! + ! ! + 2;2 ! . ! ! D - ' ! & & ,! ! F $ & : '( ! ,! ! ! & 0 G 2B2 ! P , '( / 2B9 /. & F ! 0 'N 299 ! 6 1 0 F 2 P, # QE 0 0 G 2)7 ! C 43 !+ & 0 ! > 3 - 1 @ ! 6 0 ! + A & ! 5 6 $ : 1L7 " ! ! ! 'N & + .2 0 ' ' 3 3 * + 127 4 : '( ! 'N ! & $ : + 117 , & # + '( @& "# QAR@ A @ AR ! !# ! 177 / J3 & 'N + + SK : $ 'N ! + ! ' " 2 4 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 1-266, jan.-abr. 2008 187 5 & & 'N ! + ! & = $ T : ! & > : + 1;7 0 ! & # (5$ $ +! ! U 2 P +! ! $ ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 1-266, jan.-abr. 2008 6 1;) 5 ! " # ' ( , 0 & " - * 0- ! + 3 5 " % %" ( * . / 1 & & " < = >? " = = G / " + ; = > ! " ! ( " ( ? " ! " ! " " " " B 0" # ( " @' 1 " $ ! H " ' " * = A +, = . ! " I & @ ( / " ( + @ " ' # 0 7 F H 0 ? " * &9 " C @ ( J ( +, . ( + ; + ! " C E * " A = * &9 " C @' " ! " @ " # " ! " ? D ! " >@ ( ) ! " H 0 # / " H E * :K * 7 ( : ! " A * &9 " C D 3 * $ D 9 " + @* " " " @ ( & * $ " 2 * 0- 6 " 668 # ) ) E ! ) G ! & ( ' : 7 " ( 0" * ! # 0 +, . & + &9 ; ( ! , # ". - " 2 " + " 4 & " ; " " , & & " ) & ' 0" ' " .( " ' & & " $ ( ' : + H " " & & ! & " / $ / & + H $ ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 1-266, jan.-abr. 2008 7 Interface Fonologia-Poesia-Música: Uma análise do ritmo lingüístico do Português Arcaico, a partir da notação musical das Cantigas de Santa Maria Gladis Massini-Cagliari Universidade Estadual Paulista - UNESP-Araraquara / CNPq Departamento de Lingüística – Faculdade de Ciências e Letras Rodovia Araraquara-Jaú km 1 – 14800-901 Araraquara - SP gladis@fclar.unesp.br RESUMO: Estudo do ritmo lingüístico em Português Arcaico, período trovadoresco, com base na abstração da estrutura prosódica de um período passado da língua a partir da análise dos ritmos poético e musical das cantigas religiosas escritas em galego-português. A exemplificação é feita a partir da Cantigas de Santa Maria 100, Santa Maria, Strela do Dia, atribuída a Afonso X, rei de Castela (1121-1284). ABSTRACT: This paper aims to present a study of linguistic rhythm in Archaic Portuguese, based on the abstraction of the phonological prosodic structure of an ancient period of the language from its remaining written poetry and its musical notation. To exemplify, I consider the Cantiga de Santa Maria 100, Santa Maria, Strela do Dia, composed at the Court of King Alfonso X of Castile. PALAVRAS-CHAVE: ritmo, Fonologia, música, prosódia, Cantigas de Santa Maria KEY WORDS: rhythm, Phonology, Music, prosody, Cantigas de Santa Maria 1. Introdução Este trabalho objetiva apresentar um estudo do ritmo lingüístico em Português Arcaico, período trovadoresco, com base na abstração da estrutura prosódica de um período passado da língua a partir da análise dos ritmos poético e musical das cantigas religiosas escritas em galego-português. Para exemplificar a adequação da nova metodologia aqui proposta, considera-se a Cantiga de Santa Maria 100, Santa Maria, Strela do Dia, de Afonso X (1121-1284). As Cantigas de Santa Maria (de agora em diante, CSM) são uma coleção de cantigas religiosas em louvor da Virgem Maria, com notação musical, mandadas compilar pelo Rei Sábio de Castela na segunda metade do século XIII, que sobreviveram em quatro códices: o de Toledo (To), o menor e o mais antigo; o códice rico de El Escorial (T), o mais rico em conteúdo artístico, que forma um conjunto (os chamados códices das histórias) com o manuscrito de Florença (F); e o mais completo, o códice dos músicos – El Escorial (E) (cf. Parkinson, 1998, p. 180). Na presente análise, faz-se indispensável uma interface com a Música, já que as poesias medievais galego-portuguesas eram cantigas, isto é, peças poético-musicais feitas para serem cantadas. O objetivo principal é extrair elementos da notação musical que possam se constituir em argumentos para a realização fonética das cantigas quanto à sua estrutura silábica e ao seu ritmo lingüístico. Neste sentido, a estrutura musical pode ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008 9 providenciar pistas para a análise de processos lingüísticos como a paragoge, por exemplo, a partir da observação de “acertos” e “desacertos” entre a quantidade de notas e de sílabas a serem cantadas. A constatação de processos de reforço dessa natureza (que acrescentam vogais – e, conseqüentemente, sílabas) têm sido constantemente vinculada a línguas de ritmo silábico. Além disso, a análise dos “acertos” e “desacertos” entre proeminências musicais e lingüísticas pode fornecer pistas para os limites de ocorrência do acento secundário. Desta forma, este trabalho procura trazer evidências para a classificação do ritmo lingüístico do Português Arcaico, a partir da análise de processos de reforço (como a paragoge) e das coincidências e não-coincidências entre os acentos musicais, poéticos e lingüísticos. 2. Estudos anteriores a respeito da prosódia do Português Arcaico Por muito tempo, acreditou-se ser impossível o estudo do ritmo lingüístico de períodos passados da língua, porque esses sobreviveram apenas em registros escritos. No entanto, estudos mais recentes (entre eles, Halle & Keyser, 1971, para o inglês, e Massini-Cagliari, 1995, 1999a, 2005, para o Português Arcaico – de agora em diante, PA) têm mostrado que a escolha de textos poéticos para se estudar fenômenos prosódicos (e, em especial, o ritmo) de uma língua, inclusive e principalmente em seus estágios passados, já se provou adequada e eficaz, sobretudo quando se toma a descrição em um nível “mais abstrato” (fonológico e não fonético). Massini-Cagliari (1995, 1999a) foi a primeira a elaborar um estudo do acento lexical do PA, ao propor uma metodologia que enfoca os itens lexicais em posição de rima, proeminência principal do verso, para estabelecer os padrões acentuais do PA – período da língua para o qual não sobreviveram registros orais. No entanto, a metodologia adotada nesses trabalhos, mesmo abrindo novos horizontes para estudos de fenômenos prosódicos como silabação, sândi e acento lexical, mostrou-se limitada para a determinação do padrão prosódico de itens lexicais que não aparecem em posição de rima e para a determinação da tipologia rítmica da língua (como silábica e acentual). Por exemplo, há padrões acentuais que são apontados como existentes pelos estudiosos desde a tradição filológica oitocentista, mas que nunca comparecem no corpus em posição de rima. É o caso das proparoxítonas. No entanto, há controvérsias quanto à existência desse padrão no período arcaico da língua portuguesa. Os poucos autores que tratam do assunto concordam em relação ao fato de que o PA possuía uma grande quantidade de palavras paroxítonas e oxítonas, mas discordam quanto à existência de proparoxítonas. Os que trataram de corpora fechados (como NUNES, 1972, 1973, por exemplo), principalmente compostos de textos poéticos, só puderam encontrar paroxítonos e oxítonos. Já os que fazem afirmações mais generalizantes, admitem a existência de proparoxítonos, porém raros - Michaëlis de Vasconcelos (1912-13[s/d]: 62), Teyssier (1987: 24). A este respeito, Michaëlis de Vasconcelos (1904[1990]: XXV) afirma: Não verifiquei ainda, quantas palavras esdrúxulas entraram no vocabulário dos trovadores. Em todo o caso devem ser poucas, se abstrairmos dos tipos com semivogal i (sábya, rávya, cámbyo; na ortografia do sec. XIV sabha, ravha, cambho, e posteriormente saiba, raiva, caimbo; êste último regressou a cámbio) que eu contaria á maneira espanhola, entre os parocsítonos. 10 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008 Dada essa limitação da metodologia anterior, no desejo de prosseguir com as investigações a respeito da prosódia do PA de maneira mais ampla, o presente trabalho propõe a avaliação das contribuições que uma interface com a Música das cantigas pode trazer para o conhecimento do ritmo do PA, a partir da comparação da notação musical de algumas cantigas e da “letra” que ela acompanhava. Embora todas as cantigas medievais galego-portuguesas (profanas e religiosas) tenham sido escritas para serem cantadas, poucas foram as partituras remanescentes de cantigas profanas. Conhecemos apenas as partituras de sete cantigas de amigo de Martim Codax (na verdade, seis; para a última das sete cantigas da folha volante, consta apenas a anotação do texto), que sobreviveram no Pergaminho Vindel (cf. Ferreira, 1986; Monteagudo, 1998), e de sete cantigas de amor de D. Dinis, registradas no Pergaminho Sharrer (cf. Sharrer, 1991), um fólio mutilado e muito danificado da última década do século XIII. Melhor sorte tiveram as cantigas medievais religiosas. As 420 Cantigas de Santa Maria, de Afonso X (1121-1284), mandadas compilar pelo Rei Sábio de Castela na segunda metade do século XIII, sobreviveram, com notação musical, em quatro códices, o que permitiu aos seus editores, na maior parte das vezes, a comparação entre dois registros da mesma cantiga (às vezes, até três, porém, outras vezes, apenas um) – o que dá maior fidedignidade à interpretação da sua “letra” e música. Com base na análise da notação musical da CSM 100, este trabalho mostra como esta pode atuar como um meio adicional de informação sobre a prosódia da língua (que dá suporte aos versos que são cantados), a partir da análise de dois fenômenos: paragoge (que traz importantes esclarecimentos sobre a silabação da língua na época) e ritmo (a partir da consideração da possibilidade de localização de acentos secundários – rítmicos). 3. Paragoge na CSM 100 A paragoge é um processo fonológico que acrescenta uma vogal neutra /e/ após sílabas terminadas por codas consonantais, a fim de transformar essas sílabas em estruturas canônicas do tipo CVCV. A realização fonética da vogal epentética pode ser comprovada a partir da notação musical, que prevê uma nota correspondente à sílaba criada a partir do acréscimo da vogal epentética, que muitas vezes é também registrada na escrita. Em relação ao universo das cantigas medievais religiosas escritas em galegoportuguês, a paragoge rítmica já foi estudada por Wulstan (1993). Considerando todo o conjunto das 420 Cantigas de Santa Maria, o autor identifica oito cantigas em que ocorreria esse fenômeno: 10, 17, 76, 100, 102, 180, 197 e 350. Partindo do levantamento de Wulstan (1993), Massini-Cagliari (2005) mostrou que a ocorrência da paragoge nas cantigas medievais galego-portuguesas não cumpre apenas a função poética de igualar os versos agudos (terminados em oxítonas) aos graves (terminados em paroxítonas) (padrão), acompanhando a música (o que a tornaria um processo unicamente do domínio da poesia - estilístico, portanto) - mesmo porque essa igualdade não acontece em todos os casos. Ao contrário, a ocorrência da paragoge se constitui em uma utilização estilística de um processo fonológico presente na língua da época (a epêntese vocálica, que ocorria para corrigir estruturas silábicas “anômalas”); em outras palavras, a ocorrência da paragoge se estrutura sobre possibilidades abertas pelo próprio sistema da língua. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008 11 No Português Brasileiro (PB) atual, são casos de paragoge1 (definida como um subtipo de epêntese) as ocorrências de epêntese que “corrigem”, na pronúncia, empréstimos e abreviaturas, que podem conter sílabas “anômalas” – exemplos: VARIG ([varigi]), clube ([klubi]) - citados desde Câmara Jr. (1973: 162-163), retomados por Lee (1993: 847). No entanto, por serem motivados por restrições fonotáticas (o PB proíbe a ocorrência de consoantes oclusivas em posição de coda), concordamos com Lee (1993), ao classificá-los como casos de epêntese (e não paragoge), agrupando-os com os outros exemplos de inserção de vogal, independentemente da posição em que esta é inserida. Exemplos desse tipo também já eram encontrados no PA. Correspondem a ocorrências como a do verso 5 da CSM289: Desto direi un miragre grande que cabo Madride - em que a vogal epentética aparece para resolver a estrutura silábica anômala de uma palavra estrangeira (o nome da cidade Madrid), que possuía uma consoante oclusiva em posição de coda (estrutura proibida em PA). Na CSM100, em (1), conforme a edição de Mettmann (1986: 304), a paragoge considerada por Wulstan (1993: 18) ocorre em posição medial de verso2, já que a música das estrofes revela rimas internas envolvendo paragoge. As rimas internas são, segundo Wulstan, enfatizadas por notas mais longas, sendo que a pista para a paragoge é a nota breve que ocorre em cada verso na posição apropriada. (2) Santa Maria, Strela do dia, mostra-nos via pera Deus e nos guia. Ca veer faze-los errados que perder foran per pecados entender de que mui culpados son; mais per ti son perdõados da ousadia que lles fazia fazer folia mais que non deveria. Santa Maria... Amostrar-nos deves carreira por gãar en toda maneira a sen par luz e verdadeira que tu dar-nos podes senlleira; ca Deus a ti a outorgaria e a querria por ti dar e daria. Santa Maria... Guiar ben nos pod' o teu siso mais ca ren pera Parayso u Deus ten senpre goy' e riso pora quen en el creer quiso; e prazer-m-ia se te prazia que foss' a mia alm' en tal compannia. Santa Maria... 12 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008 Figura 1. Interpretação de Wulstan (1993: 18) da música da CSM100. Além da CSM100, em todos os outros casos considerados por Wulstan (1993) (CSMs 10, 17, 76, 102, 180, 197 e 350), a ocorrência da paragoge sustenta-se na ocorrência de melismas na notação musical, que exigiriam uma silabação, na realização cantada, apoiada na existência de uma sílaba a mais, gerada a partir do acréscimo de uma vogal paragógica, sobretudo em final de verso e de hemistíquios. Trata-se exatamente do mesmo fenômeno já verificado por Ferreira (1986: 139), para as cantigas de amigo de Martim Codax presentes no Pergaminho Vindel (N1, N5 e N7).3 As pistas fornecidas pela notação musical das CSM podem consideradas como evidências suficientes da ocorrência de paragoges rítmicas, confirmando as hipóteses da existência desse fenômeno na língua formuladas anteriormente por estudiosos (Cunha, 1982, Massini-Cagliari, 1999b), com base na notação de vogais epentéticas na escrita de cantigas profanas específicas: B721/V322, B903/V488, B1153/V755 e B1553 (Cunha, 1982: 246); à lista de Cunha (1982), Massini-Cagliari (1999b) acrescenta a cantiga B1199/V804. As evidências provindas de diferentes origens (notação escrita e notação musical) reforçam a consideração da paragoge no PA como um fenômeno estilístico de silabação, cuja motivação é rítmica, já que se caracteriza por transformar estruturas nãocanônicas possíveis quanto à silabação (CVC) e ao acento (oxítonas) em estruturas canônicas, nesses dois níveis (sílabas CVCV e padrão acentual paroxítono). A constatação de processos de reforço dessa natureza (que acrescentam vogais – e, conseqüentemente, sílabas) têm sido constantemente vinculada a línguas de ritmo silábico (Abaurre-Gnerre, 1981; Tenani, 2006). Desta forma, pode-se dizer que a análise da notação musical das cantigas dessa época pode também fornecer pistas para a classificação tipológica do ritmo lingüístico do galego-português, porque deixa entrever a ocorrência desse tipo de fenômeno. 4. Acentos rítmicos na CSM100 Este trabalho objetiva mostrar que uma análise em paralelo do texto poético e da notação musical das cantigas trovadorescas se constitui em um instrumento auxiliar para a análise lingüística do acento e do ritmo (lingüísticos) do PA. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008 13 A idéia que subjaz a esta metodologia é a de as proeminências musicais devem se combinar preferencialmente com proeminências nos níveis poético e lingüístico. Desta forma, a divisão dos compassos musicais das cantigas e a localização dos tempos fortes das batidas musicais podem auxiliar, por exemplo, na determinação de proeminência principal de palavras que não tenham ocorrido em posição de rima no corpus (a sílaba que ocorre em posição de proeminência musical tem muito mais chance de ser tônica do que a que não ocorre); ou na determinação do status prosódico (átono ou tônico) de clíticos (que geralmente não ocorrem em posição tônica final de verso). O estudo-piloto de Costa (2007, em preparação), em direção à sua tese de Doutorado sobre o assunto, feito a partir da análise de uma amostra de cinco CSM, mostrou que, de um total de 178 palavras contidas na amostra, o acento lexical coincidia com a posição de proeminência musical em 139 casos (78,09%, portanto). A coincidência entre sílabas tônicas e proeminências musicais pode ser exemplificada a partir da análise da interpretação que Anglés (1943: 109) faz da notação musical do refrão da CSM100 (figura 2), cantiga registrada em ToXo, T100 e E100 (figuras 3, 4 e 5). Figura 2. Interpretação de Anglés (1943: 109) da música da CSM100. 14 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008 Figura 3. CSM100, em ToXo (edição fac-similada de 2003, fólio 156r). A partir da divisão em compassos proposta por Anglés (1943), pode-se verificar uma tendência de sílabas proeminentes no nível lingüístico caírem em posição de proeminência musical: a tabela 1 mostra que, somados os casos em que sílabas tônicas de polissílabos e monossílabos tônicos caem no início do compasso (acento musical), tem-se um total de 68.8% de coincidência entre proeminências. No entanto, o exemplo mostra que, da mesma forma como ocorre com as canções atuais em PB e em outras línguas, há a possibilidade de sílabas com outra pauta prosódica, átonas finais, pretônicas ou monossílabos átonos (clíticos), caírem na posição proeminente em nível musical. Na CSM100, há alguns casos em que a proeminência cai sobre monissílabos considerados tônicos (ca, que e son); outros, no entanto, sobre os quais também recai a proeminência musical principal do compasso, são normalmente considerados átonos: de (e contrações com o artigo, da), per, ti e lles. Esta é uma pista de que, naquela época, os clíticos talvez pudessem assumir proeminência – o que os torna subornidados prosodicamente, ms não completamente átonos, portanto, não tão “clíticos”. Nesse sentido, a consideração da notação musical pode trazer pistas importantíssimas quanto à identificação dos verdadeiros clíticos prosódicos e sintáticos, naquela época. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008 15 Figura 4. CSM100, em T100 (microfilme, fólio 144v). A tabela 1, abaixo, faz um resumo da relação entre proeminência musical e pauta prosódica das palavras que caem nessa posição, com relação à notação da CSM100: Tabela 1. Pauta prosódica das sílabas em posição inicial do compasso musical – CSM100. Pauta prosódica da sílaba em posição inicial do compasso musical tônica monossílabo tônico monossílabo possivelmente tônico pretônica átona final TOTAL 16 quantidade de unidades de tempo (≅ ≅ compassos) 19 (59.4%) 3 (9.4%) 5 (15.6%) 3 (9.4%) 2 (6.2%) 32 (100%) ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008 Figura 5. CSM100, em E100 (Anglés, 1964: fólios 110v-111r). Nesta cantiga em particular, quase não há sílabas átonas finais ocupando as proeminências iniciais de compasso; isto ocorre em um único caso, em que a sílaba aparece alongada (tem duração maior): veja-se figuras musical equivalente à sílaba la de strela. Em um trabalho anterior, pude mostrar que esse alongamento das átonas é típico, sobretudo em posição final de verso – obviamente uma posição limítrofe de constituinte prosódico, o que não é o caso aqui. De qualquer forma, o alongamento (de átonas e de tônicas) é uma marca recorrente de limite de constituinte musical e prosódico: vejam-se as figuras musicais correspondentes às sílabas da palavra dia e guia (finais categóricos de verso) e veer, perder, entender e da expressão mais per (limites de constituinte interno, segundo Wulstan (1993). A observação de fatos desta natureza mostra que a notação musical pode também servir para dirimir dúvidas quanto à delimitação de constituintes prosódicos em posição final e interna de verso. A observação da notação musical pode também fornecer pistas da localização de proeminências secundárias ou rítmicas. Em outras palavras, em palavras longas, com mais de uma sílaba pretônica, a notação musical pode indicar qual delas era realizada, em termos musicais, com maior proeminência. Nesta cantiga 100, as palavras perdõados, ousadia e deveria aparecem com uma notação musical semelhante, que ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008 17 favorece a interpretação de um acento secundário sobre as sílabas per, ou e de, respectivamente. A partir da notação musical de outras cantigas, abrem-se ainda outras possibilidades: por exemplo a observação da notação musical pode trazer contribuições para a solução de dúvidas quanto à posição do acento em palavras. A notação musical do refrão da cantiga CSM294 (abaixo) traz evidências a favor da consideração da existência de proparoxítonas em PA, uma vez que, na palavra angeos, a sílaba que coincide com a posição de acento musical é a antepenúltima; além disso, a notação musical traz também evidências da silabação dessa musica, no sentido de que à seqüência e-os correspondem grupos distintos de figuras musicais (trata-se, portanto, de hiato e não de ditongo). Figura 6. Interpretação de Anglés (1958: 37) da música do refrão da CSM294. Conclusão A partir da aplicação de uma metodologia totalmente nova à análise da CSM100 de Afonso X, foi possível mostrar que a interface Música-Lingüística pode trazer contribuições para a análise lingüística da prosódia de línguas do passado, das quais não se tem registros orais. O exemplo focalizado mostra que é possível extrair elementos da notação musical que podem se constituir em argumentos para a realização fonética das cantigas, quanto à sua estrutura silábica e ao seu ritmo lingüístico (no que diz respeito à ocorrência de acentos secundários, à identificação do padrão prosódico de palavras específicas e à delimitação de constituintes prosódicos mais altos). Desta forma, a observação da notação musical pode ser considerada uma fonte secundária de informações relativas à prosódia de línguas “mortas”, um instrumento auxiliar, que pode ser aproveitado para confirmar ou infirmar hipóteses levantadas com base nas fontes primárias (registros escritos das cantigas) e dirimir dúvidas. Notas 1 Também chamada de epítese (Câmara Jr., 1973: 162). Wulstan (1993), ao contrário de Cunha (1982), que considera apenas a paragoge final, também considera a possibilidade de paragoges mediais. 3 Cunha (2004: 104) considera a análise de Ferreira (1986) uma “importante comprovação, pelo testemunho da música, do que vínhamos afirmando desde 1949 com relação à obrigatoriedade do –e paragógico nos versos das paralelísticas terminados ou cesurados em palavras agudas”. 2 18 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008 Referências: ABAURRE-GNERRE, Maria Bernadete M. Processos fonológicos segmentais como índices de padrões prosódicos diversos nos estilos formal e casual do Português do Brasil. Cadernos de Estudos Lingüísticos, Campinas, v.2: 23-44, 1981. ALFONSO X, el Sabio. ‘Cantigas de Santa Maria’: edición facsímil del códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de El Escorial, siglo XIII, 2 vols. Madrid: Edilan, 1979. ALFONSO X, el Sabio. ‘Cantigas de Santa Maria’: edición facsímil del códice B.R.20 de la Biblioteca Centrale de Florencia, siglo XIII, 2 vols. Madrid: Edilan, 198991. AFONSO X o Sabio. Cantigas de Santa María. Edición facsímile do Códice de Toledo (To). Biblioteca Nacional de Madrid (Ms. 10.069). Vigo: Consello da Cultura Galega, Galáxia, 2003. ANGLÉS, Higinio. La Música de las Cantigas de Santa María del Rey Alfonso el Sabio. – Facsímil, transcripción y estudio critico por Higinio Anglés. Barcelona: Diputación Provincial de Barcelona; Biblioteca Central; Publicaciones de la Sección de Música, 1943. Volume II – Transcripción Musical. ANGLÉS, Higinio. La Música de las Cantigas de Santa María del Rey Alfonso el Sabio. – Facsímil, transcripción y estudio critico por Higinio Anglés. Barcelona: Diputación Provincial de Barcelona; Biblioteca Central; Publicaciones de la Sección de Música, 1958. Volume III – Segunda parte: Las melodias hispanas y la melodia lírica europea de los siglos XII-XIII. ANGLÉS, Higinio. La Música de las Cantigas de Santa María del Rey Alfonso el Sabio. – Facsímil, transcripción y estudio critico por Higinio Anglés. Barcelona: Diputación Provincial de Barcelona; Biblioteca Central; Publicaciones de la Sección de Música, 1964. Volume I: Facímil del Códice j.b.2 de El Escorial. CÂMARA Jr., Joaquim Mattoso. Dicionário de filologia e gramática referente à língua portuguesa. 5. ed. Rio de Janeiro: J. Ozon Editor, [1973]. COSTA, Daniel Soares. A relação entre o ritmo musical e o ritmo lingüístico nas Cantigas de Santa Maria. Tese de Doutorado (em preparação). Araraquarta, FCL/UNESP. CUNHA, Celso Ferreira da. Estudos de Versificação Portuguesa (séculos XIII a XVI). Paris: Fundação Calouste Gulbenkian/Centro Cultural Português, 1982. CUNHA, C. F. da. Ouvir Martim Codax. IN Cunha, Celso. Sob a pele das palavras. (organização, introdução e notas de Cilene da Cunha Pereira). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Academia Brasileira de Letras, 2004 (a). pp. 99-107. FERREIRA, Manuel Pedro. O Som de Martin Codax - Sobre a dimensão musical da lírica galego-portuguesa (séculos XII-XIV). Lisboa: UNYSIS, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1986. HALLE, Morris & Samuel J. KEYSER. English Stress: its form, its growth, and its role in verse. New York: Harper & Row, 1971. LEE, Seung-Hwa. Epêntese no Português. Estudos Lingüísticos XXII – Anais de Seminários do GEL, Ribeirão Preto, Instituição Moura Lacerda, v. II: 847-854, 1993. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008 19 MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Cantigas de amigo: do ritmo poético ao lingüístico. Um estudo do percurso histórico da acentuação em Português. Tese de doutorado. Campinas, UNICAMP, 1995. MASSINI-CAGLIARI, G. Do poético ao lingüístico no ritmo dos trovadores: três momentos da história do acento. Araraquara: FCL, Laboratório Editorial, UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 1999a. MASSINI-CAGLIARI, Gladis. A paragoge rítmica na lírica profana galego-portuguesa. IN Lopes, Ana Cristina M. & Cristina Martins (orgs.) Actas do XIV Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Lingüística (Aveiro 1998). Braga: Associação Portuguesa de Lingüística, 1999b. vol. II: pp. 169-182. MASSINI-CAGLIARI, G. A música da fala dos trovadores: Estudos de prosódia do Português Arcaico, a partir das cantigas profanas e religiosas. Araraquara: Faculdade de Ciências e Letras, 2005. Tese de Livre-Docência. METTMANN, Walter (Ed.). Cantigas de Santa María (cantigas 1 a 100): Alfonso X, el Sabio. Madrid: Castalia, 1986. METTMANN, Walter (Ed.). Cantigas de Santa María (cantigas 101 a 260): Alfonso X, el Sabio. Madrid: Castalia, 1988. MICHAËLIS DE VASCONCELOS, Carolina. Cancioneiro da Ajuda. Edição de Michaëlis de Vasconcelos. Reimpressão da edição de Halle (1904), acrescentada de um prefácio de Ivo Castro e do Glossário das cantigas (Revista Lusitana, XXIII). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1990. MICHAËLIS DE VASCONCELOS, Carolina. Lições de Filologia Portuguesa (segundo as preleções feitas aos cursos de 1911/12 e de 1912/13) Seguidas das Lições Práticas de Português Arcaico. Rio de Janeiro: Martins Fontes, s/d (1912-1913). MONTEAGUDO, Henrique. Martín Codax – cantigas. 2a edición. Vigo: Galáxia, 1998. NUNES, José Joaquim. Cantigas de amor dos trovadores galego-portugueses. Nova Edição. Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1972. 1a edição: 1932. NUNES, J. J. Cantigas d'amigo dos trovadores galego-portugueses. Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1973. 1a edição: 1926/1929. PARKINSON, Stephen. As Cantigas de Santa Maria: estado das cuestións textuais. Anuario de estudios literarios galegos (1998): 179-205. SHARRER, Harvey L. Fragmentos de sete cantigas d’amor de D. Dinis, musicadas uma descoberta. Actas do IV Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval. Lisboa: Edições Cosmos, 1991. Volume I: Sessões Plenárias. pp. 1329. TENANI, Luciani. Considerações sobre a relação entre processos de sândi e ritmo. Estudos da língua(gem). Questões de Fonética e Fonologia: uma Homenagem a Luiz Carlos Cagliari. Vitória da Conquista. n. 3: 105-122. Junho de 2006. TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa. 3a edição portuguesa. Lisboa: Sá da Costa, 1987. WULSTAN, David. Pero cantigas... Bulletin of the Cantigueiros de Santa Maria. Cincinnati, Ohio: University of Cincinnati, 1993. vol. VI, pp. 12-29. 20 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 9-20, jan.-abr. 2008 O comportamento fonológico das vogais médias em posição pretônica no dialeto de Belo Horizonte Marlúcia Maria Alves Faculdade de Letras – Universidade Federal de Minas Gerais (FALE – UFMG) marlucia-alves@uol.com.br Abstract. Belo Horizonte dialect shows quite complex behavior of vowels in pre-stressed-syllable position, including the following ‘c[o]brança’, ‘pr[ç]jeto’ and ‘m[u]tivo’. The same manifestations are found for the fronted mid-height pre-stressed vowel: ‘s[e]mana’, ‘[E]xcesso’ and ‘[i]scola’. For a single lexical item, it is possible to identify variations, such as: ‘p[e]squisa’ ~ ‘p[i]squisa’ or ‘c[o]légio’ ~ ‘c[ç]légio’. Thus having identified such possibilities in the dialect of Belo Horizonte, the logical next step is wider and more extensive research in order to understand the behavior of these vowels. Optimality Theory can provide the tools needed to elucidate such variation, as it relies on analysis of linguistic phenomena through actual output. Keywords. mid vowels; linguistic variation; optimality theory Resumo. O dialeto de Belo Horizonte apresenta o comportamento das vogais médias em posição pretônica de forma bem complexa, pois é possível encontrar três realizações: ‘m[o]delo’, ‘pr[ç]jeto’ e ‘g[u]verno’. O mesmo ocorre para a realização da vogal média anterior pretônica: ‘r[e]torno’, ‘[E]xcesso’ e ‘[i]scola’. Também ocorre variação em ‘p[e]squisa’ ~ ‘p[i]squisa’ ou ‘c[o]légio’ ~ ‘c[ç]légio’. Tendo em vista esta possibilidade de casos encontrados no dialeto de Belo Horizonte, é necessário que se faça uma pesquisa mais aprofundada para entender o comportamento destas vogais em posição pretônica. Através da Teoria da Otimalidade, podemos encontrar meios de elucidar os fenômenos relacionados à variação lingüística. Palavras-chave.vogais médias; variação lingüística; teoria da otimalidade 1. Introdução As vogais médias no sistema vocálico do português brasileiro constituem em posição tônica quatro fonemas, /e, o, E, ç/, que se reduzem a dois, /e, o/, em posição pretônica, devido ao processo de neutralização. No dialeto de Belo Horizonte, há a tendência destas vogais serem fechadas. Contudo, é observado que as vogais médias são pronunciadas neste dialeto de três formas diferentes. Ou ocorre a vogal média fechada, ‘r[e]boco’, ou ocorre a vogal média aberta, ‘r[E]lógio’, ou ainda acontece a vogal alta, ‘m[i]nino’. Além disso, são observados dois tipos de variação: a) a variação condicionada por processos fonológicos, como em ‘s[e]mana’ (neutralização), ‘[E]xc[E]sso’ (harmonia vocálica) e ‘[i]scola’ (redução vocálica) e b) a variação livre, como em ‘m[e]rcado’ ~ ‘m[E]rcado’, ou ainda, ‘p[e]squisa’ ~ ‘p[i]squisa’. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 21-29, jan.-abr. 2008 21 A partir destas informações, julgamos que as vogais médias no dialeto de Belo Horizonte devem ser investigadas mais detalhadamente, a fim de esclarecer melhor que fatores motivam a variação destas vogais em posição pretônica. Além disso, é importante explicar esta variação conforme uma teoria lingüística e a Teoria da Otimalidade (doravante OT) parece ser a melhor opção para descrever e analisar os casos relacionados à variação. Esta teoria postula que a análise dos dados e propriamente do fenômeno lingüístico deve partir do output e permite que as restrições possam ser violadas. Desta forma, os principais objetivos deste estudo são analisar os fatores lingüísticos relacionados à variação das vogais médias em posição pretônica no dialeto de Belo Horizonte e explicar a variação lingüística encontrada segundo a OT, destacando o ranqueamento parcial de restrições, proposto por Anttila e Cho (1998). 2. As vogais médias e o dialeto de Belo Horizonte As vogais médias em posição pretônica no dialeto de Belo Horizonte foram analisadas conforme três corpora distintos: a) corpus POBH (Magalhães, 2000); b) corpus extraído de Alves (1999) e c) corpus extraído a partir da observação de fala espontânea. Este procedimento é necessário para se verificar um número considerável de ocorrências das vogais médias nesta posição. Em comum, os corpora apresentam informantes nascidos e criados em Belo Horizonte, com 3º grau completo e faixa etária de 20 a 38 anos. A diferença entre os corpora reside no fato de a gravação dos dados não ter sido feita da mesma forma. O corpus POBH apresenta uma entrevista entre o informante e o documentador, o corpus de Alves (1999) mostra uma leitura de frases e o corpus de fala espontânea mostra uma gravação sem o informante perceber que estava sendo gravado. Apesar desta diferença, os dados mostram uma uniformidade com relação aos fatores lingüísticos observados e a variação encontrada. Os resultados obtidos mostram que neste dialeto há três formas fonéticas distintas da vogal média em posição pretônica, como mostra (1) abaixo. (1) Vogais anteriores [e]: c[e]rteza [E]: [E]xc[E]sso [i]: m[i]n[i]no Vogais posteriores [o]: m[o]delo [ç]: pr[ç]j[E]to [u]: m[u]tivo Conforme os três corpora analisados,observou-se que a tendência dos falantes do dialeto de Belo Horizonte é pela realização da vogal média fechada em posição pretônica. A grande maioria dos resultados apresentou a vogal média fechada nesta posição, tanto na série anterior como na série posterior. Com relação à elevação da vogal média, observa-se que os contextos lingüísticos favorecedores mostram-se diferenciados para as vogais anteriores e posteriores. A vogal alta anterior ocorre motivada pelos fatores lingüísticos apresentados em (2). (2) Fatores favorecedores à elevação da vogal média anterior em posição pretônica a) Posição inicial de sílaba associada ao travamento silábico por /S/ – [i]scola b) Posição inicial de sílaba associada à nasalidade – [i]nsino c) Presença de vogal alta na sílaba tônica ou contígua – m[i]nino, [i]strutura d) Presença da consoante nasal precedente – gam[i]leira 22 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 21-29, jan.-abr. 2008 Os dois primeiros fatores, ou seja, a posição inicial de palavra associada ao travamento silábico por /S/ e a posição inicial de palavra formando uma sílaba nasalizada se mostram categóricos para a realização da vogal alta em posição pretônica. Entretanto, o corpus de Alves (1999) mostra itens lexicais contendo estes fatores e podendo ser realizados ora com a vogal alta ora com a vogal média fechada. Neste caso, a realização da vogal média fechada se deve mais à preocupação pela pronúncia “correta” das palavras no momento da leitura feita em cabine acústica1. Os dois últimos fatores apresentados em (2) mostram que a presença da vogal alta em posição tônica ou na sílaba imediatamente seguinte e da consoante nasal precedente favorecem a realização da vogal alta em posição pretônica. Estes contextos não são categóricos porque permitem a realização da vogal média fechada também. Com relação às vogais posteriores, observou-se os seguintes fatores. (3) Fatores favorecedores à elevação da vogal média posterior em posição pretônica a) Vogal alta em posição tônica ou contígua – m[u]tivo, p[u]licial b) Consoante velar precedente – g[u]verno c) Consoante labial precedente – b[u]nito Estes fatores favorecem a realização da vogal alta em posição pretônica. Entretanto, o falante pode optar pela realização da vogal média fechada nestes mesmos contextos. Os fatores lingüísticos que favorecem o abaixamento da vogal média anterior e da vogal média posterior são os mesmos, como pode ser visto em (4). (4) Fatores favorecedores ao abaixamento da vogal média em posição pretônica a) Vogal média aberta na sílaba tônica ou contígua – [E]xc[E]sso, c[ç]l[E]gas b) Vogal baixa na sílaba tônica ou contígua – m[E]rcado, f[ç]rmação Estes contextos são considerados apenas favorecedores porque a vogal média fechada também pode ser realizada nestes ambientes. Sobre os processos fonológicos envolvidos, observou-se que a maioria das palavras que possui a vogal média em posição pretônica é realizada com a vogal média fechada. Este fato reforça o processo de neutralização presente no português brasileiro. Segundo Mattoso Câmara (1970), em posição pretônica, há uma redução do número de fonemas. A oposição entre as vogais médias fechadas e a vogais médias abertas não existe nesta posição, e apenas as vogais médias fechadas ocorrem fonemicamente. Além do processo de neutralização, outros dois processos atuam na realização das vogais médias pretônicas: a harmonia vocálica e a redução vocálica. O processo de harmonia vocálica tem como gatilho a vogal presente em posição tônica. A vogal em posição pretônica assimila os traços característicos da vogal tônica. Assim, pode-se relacionar três tipos de harmonia vocálica encontrados no dialeto de Belo Horizonte: a) a harmonia vocálica pelo traço [-ATR]2, como em ‘pr[ç]j[E]to’; b) a harmonia vocálica pelo traço [+ATR], como em ‘m[o]d[e]lo’, e c) a harmonia vocálica pelo traço [alto], como em ‘m[i]n[i]no’. O processo de redução vocálica está mais fortemente relacionado aos casos categóricos da realização da vogal alta em posição pretônica, como a posição inicial de palavra associada ao travamento silábico por /S/ ou formando sílaba nasalizada. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 21-29, jan.-abr. 2008 23 Entretanto, foi visto que a consoante labial precedente e a consoante velar precedente também favorecem a elevação da vogal média posterior. Especificamente sobre o fenômeno da variação lingüística, observaram-se dois formatos de variação, como pode ser visto em (5). (5) Variação das vogais médias em posição pretônica a) Variação entre a vogal média fechada e a vogal média aberta: c[o]l[E]gio ~ c[ç]l[E]gio b) Variação entre a vogal média fechada e a vogal alta: p[e]squisa ~ p[i]squisa É bom ressaltar que são poucas as palavras que apresentam variação. Além disso, o mesmo falante varia a vogal média de algumas palavras, evidenciando a variação intradialetal. Neste caso específico, os informantes apresentam a variação em posição pretônica de modo diferenciado. Isto é, há falantes que tendem para a variação apenas entre a vogal média fechada e a vogal média aberta, outros já apresentam os dois formatos de variação apresentados acima. Sobre a variação interindividual, notou-se que o falante tende a realizar a vogal média fechada. Caso ocorra um ambiente favorecedor da realização da vogal alta ou da vogal média aberta, o falante também pode optar por estes timbres em posição pretônica. Portanto, observa-se que as vogais médias, apesar de mostrarem um comportamento complexo em posição pretônica no dialeto de Belo Horizonte, em alguns contextos lingüísticos bem definidos, podem ser produzidas de forma diferenciada pelos falantes, que podem optar pela vogal média fechada, pela vogal média aberta ou pela vogal alta. A partir do que foi exposto sobre o dialeto de Belo Horizonte surgem algumas questões: a) Como estudar a variação das vogais médias em posição pretônica neste dialeto? b) É possível a gramática da língua adequar a variação apresentada? É possível tentar responder estas questões conforme a Teoria da Otimalidade. Primeiro porque, nesta teoria, é possível explicar casos específicos de variação como esta encontrada no dialeto de Belo Horizonte. Segundo porque é uma teoria que trata de restrições que podem ser violadas, conforme o fenômeno estudado e seu comportamento na gramática da língua. Por último, é uma teoria que lida com as formas de superfície (output) e da sua relação com a forma subjacente (input). 3. Teoria da Otimalidade e variação lingüística A Teoria da Otimalidade é um modelo de análise gramatical e os principais objetivos desta teoria são estabelecer as propriedades universais da linguagem e caracterizar os limites possíveis de variação lingüística entre as línguas naturais. Este modelo teórico analisa as formas de superfície e permite a presença de restrições que podem ser violadas. Os primeiros estudos que abordam esta teoria datam de 1993, com os trabalhos publicados por Prince e Smolensky e por McCarthy e Prince. Segundo Kager (1999), é nas formas de superfície de uma dada língua que é possível encontrar soluções para os conflitos entre as restrições que competem entre si. Uma forma de superfície é considerada ótima se ela apresenta menos violações graves, considerando-se um conjunto de restrições ranqueadas conforme a hierarquia de uma língua específica. As restrições são universais e diretamente codificadas por critérios de marcação e princípios que reforçam a preservação de contrastes. 24 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 21-29, jan.-abr. 2008 Os componentes da Gramática OT são o léxico, o gerador e o avaliador. Segundo Archangelli (1997), a relação entre o input e o output é mediada por dois mecanismos formais, o gerador (generator – GEN) e o avaliador (evaluator – EVAL). O primeiro cria estruturas lingüísticas e verifica suas relações de fidelidade com a estrutura subjacente. O segundo usa a hierarquia de restrições da língua para selecionar o melhor candidato entre todos criados. Além destes dois mecanismos, é necessário considerar também o grupo universal de restrições (CON) no qual o avaliador usa o ranqueamento específico de restrições deste conjunto. Este teoria é adequada para estudar os fenômenos relacionados à variação lingüística, uma vez que considera a forma de superfície, o output. Entretanto, o principal desafio ao estudar a variação nesta teoria é que é necessário interferir em um de seus pilares: a dominação estrita. Quando se trata de variação, temos mais de um candidato escolhido como ótimo. Autores como Anttila e Cho (1998), Boersma (1997), Coetzee (2005) e outros estudam a variação com base na Teoria da Otimalidade, buscando alternativas de explicação deste fenômeno lingüístico, e partem de uma abordagem não-clássica da teoria. Dentre estas alternativas, será analisada a de Anttila e Cho (1998) que trata do ordenamento parcial de restrições. No modelo proposto por Antilla e Cho o ranqueamento parcial de restrições permite exibir os fenômenos de invariância e variáveis na mesma estrutura e derivar as predições estatísticas. Combinando o ordenamento parcial com as restrições universais e as hierarquias de restrições, é possível derivar as tipologias de dialetos com variação dentro da abordagem OT. Segundo os autores, um ordenamento parcial oferece uma nova perspectiva sobre a hipótese de que a variação ocorre graças a gramáticas que competem na comunidade ou no indivíduo. 4. Teoria da Otimalidade e o dialeto de Belo Horizonte O dialeto de Belo Horizonte será considerado, em nossa análise, como uma língua específica, possuindo uma gramática particular que pode fornecer indícios para explicar os casos de variação encontrados nesta língua. Em termos de OT, e pelo comportamento das vogais médias pretônicas neste dialeto, será estabelecida a existência de um único input, representado pela vogal média fechada, sendo mapeado por dois ou mais outputs. Para a análise dos dados do dialeto de Belo Horizonte conforme a OT, julgamos que cinco restrições são necessárias: duas restrições de fidelidade e três de marcação, apresentadas em (6) abaixo. (6) a) IDENT [alto]: O traço [alto] do output deve ser idêntico ao do input. b) IDENT [ATR]: O traço [ATR] do output deve ser idêntico ao do input. c) AGREE [ATR]: O traço [ATR] da posição pretônica é idêntico ao da vogal contígua. d) AGREE [alto]: O traço [alto] da posição pretônica é idêntico ao da vogal contígua. e) *MID: As vogais médias devem ser evitadas. As restrições eleitas para esta análise partem do estudo do processo mais recorrente neste dialeto, a neutralização. Para isto foi seguida a tipologia de contrastes de altura em ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 21-29, jan.-abr. 2008 25 relação ao acento, apresentada por McCarthy (1999: 24). É necessária esta tipologia para diferenciar o sistema de 7 vogais em posição tônica e a sua redução para 5 vogais em posição pretônica. Além disso, foi considerado o quadro de traços vocálicos referentes ao português brasileiro, em (7) abaixo. (7) Traços vocálicos [alto] e [ATR] /i, u/ /e, o/ /E, ç/ /a/ [alto] + [ATR] + + Estes traços são os mais relevantes porque distinguem as vogais médias fechadas das médias abertas e as vogais médias das vogais altas. As vogais médias fechadas são consideradas [-alto, +ATR], as vogais médias abertas [-alto, -ATR] e as vogais altas [+alto, +ATR]. Especificamente sobre as restrições, as restrições de fidelidade IDENT[alto] e IDENT[ATR] são ranqueadas em uma posição superior na hierarquia para preservar a presença da vogal média fechada em posição pretônica. As restrições de marcação AGREE[ATR] e AGREE[alto] são específicas e se ranqueadas acima das restrições de fidelidade conseguem explicar os casos de harmonia vocálica no dialeto de Belo Horizonte. Com relação à restrição *MID, é possível verificar que posicionando esta hierarquia em uma posição superior acima das restrições de fidelidade, os casos relacionados à redução vocálica ocorrem, mostrando que apenas a vogal alta poderia aparecer em posição pretônica. Sobre a proposta de Anttila e Cho (1998), verifica-se que se trata de casos relacionados à co-fonologia, isto é, cada co-fonologia corresponde a uma hierarquia de restrições que seleciona o candidato ótimo pelo seu próprio ranqueamento estipulado. É possível também afirmar que há variação porque há várias gramáticas que competem na comunidade ou no indivíduo. No caso específico do dialeto de Belo Horizonte, pode-se definir este dialeto como uma única gramática com vários ordenamentos parciais. Conforme a proposta do ordenamento parcial, parte-se da noção de que no input tem-se as formas subjacentes concernentes aos segmentos fonológicos relevantes no português brasileiro. Por isso, as vogais médias fechadas serão consideradas as formas de input. Em (8), são apresentados os tableaux referentes à produção da vogal média em posição pretônica no dialeto de Belo Horizonte. (8) Produção das vogais médias em posição pretônica Tableau 1: Neutralização c/e/rteza IDENT [alto] IDENT[ATR] AGREE[ATR] AGREE [alto] ☞ 1. c[e]rteza *! * 2. c[E]rteza 3. c[i]rteza *! * Tableau 2: Harmonia vocálica AGREE[ATR] AGREE[alto] IDENT [alto] /e/xc/E/sso *! 1. [e]xc[E]sso 26 IDENT[ATR] *MID * * *MID * ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 21-29, jan.-abr. 2008 ☞2. [E]xc[E]sso 3. [i]xc[E]sso * *! * * * Tableau 3: Redução vocálica /e/scola *MID IDENT[alto] IDENT[ATR] AGREE[ATR] AGREE[alto] 1. [e]scola *! * *! * 2. [E]scola * * * ☞ 3. [i]scola O tableau 1 mostra a hierarquia de restrições para os casos voltados ao processo de neutralização. Para que o candidato que contém a vogal média fechada se torne o candidato ótimo, é necessário que as restrições de fidelidade estejam posicionadas acima das restrições de marcação. Assim, somente o candidato 1, ‘c[e]rteza’, é escolhido como o melhor candidato, pois viola apenas a restrição *MID ranqueada na posição mais abaixo nesta hieraquia. Com relação ao tableau 2, as restrições de marcação AGREE estão ranqueadas em uma posição superior na hierarquia. Neste caso específico, haverá um acordo entre as vogais em posição tônica e pretônica, garantindo que o processo de harmonia vocálica ocorra. Desta forma, o candidato 2, ‘[E]xc[E]sso’, é selecionado como o candidato ótimo porque viola apenas a restrição de fidelidade e a restrição *MID ranqueadas na posição inferior na hierarquia. No tableau 3, observa-se um caso de redução vocálica. Para que o candidato realizado com a vogal alta seja escolhido como o melhor candidato é necessário que a restrição *MID ocorra acima das restrições de fidelidade. Neste caso, as vogais médias não ocorrem em posição pretônica. Assim, o candidato ‘[i]scola’ é selecionado como o candidato ótimo porque viola a restrição de fidelidade ranqueada abaixo da restrição *MID. Com relação aos casos de variação propriamente dito, verifica-se que são necessários dois tableaux, um para cada candidato selecionado como ótimo. (9) Variação das vogais médias em posição pretônica Tableau 4 IDENT [alto] IDENT[ATR] AGREE[ATR] AGREE [alto] pr/o/j/E/to * ☞1.pr[o]j[E]to *! 2.pr[ç]j[E]to *! * * 3.pr[u]j[E]to *MID * * Tableau 5 AGREE[ATR] AGREE[alto] IDENT [alto] pr/o/j/E/to *! 1. pr[o]j[E]to ☞2. pr[ç]j[E]to *! * * 3. pr[u]j[E]to *MID * * IDENT[ATR] * Os tableaux 4 e 5 apresentam um caso de variação entre vogal média fechada e a vogal média aberta. No tableau 4, o candidato selecionado como ótimo é o candidato 1, ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 21-29, jan.-abr. 2008 27 ‘pr[o]j[E]to’, pois satisfaz as restrições de fidelidade ranqueadas acima das restrições de marcação. Já no tableau 5, o candidato escolhido como ótimo é o canididato 2, ‘pr[ç]j[E]to’, porque viola as restrições IDENT[ATR] e *MID ranqueadas na posição inferior na hierarquia. A alternativa de análise proposta por Anttila e Cho (1998) sobre o ordenamento parcial de restrições é interessante por destacar uma hierarquia para cada caso de produção das vogais médias em posição pretônica no dialeto de Belo Horizonte, além de mostrar os candidatos ótimos nos casos de variação de modo separado. Contudo, esta fragmentação da gramática em vários ordenamentos parciais pode enfraquecer a noção de língua. 5. Considerações finais A variação encontrada no dialeto de Belo Horizonte é bastante complexa. A variação das médias pretônicas ocorre devido a processos fonológicos diferentes, como neutralização, harmonia vocálica e redução vocálica. Além disso, há a variação que ocorre em um mesmo item lexical. A Teoria da Otimalidade fornece alternativas de análise para a explicação da variação lingüística intradialetal. O ordenamento parcial de restrições explica de modo apropriado a variação das vogais pretônicas no dialeto de Belo Horizonte, levando-se em conta os processos fonológicos e os contextos favorecedores à elevação e ao abaixamento da vogal média. Notas 1 O corpus de Alves (1999) foi obtido por meio de uma leitura de frases, para se observar a produção das vogais médias em posição tônica nos nomes no dialeto de Belo Horizonte. 2 [ATR] é um traço articulatório que mostra o avanço da raiz da língua na produção do som. Referências bibliográficas ALVES, Marlúcia Maria. As vogais médias em posição tônica nos nomes do português brasileiro. 1999. 136 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística. Área de concentração: Fonologia) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. ANTILLA, Arto; CHO, Young-mee Yu. Variação e mudança na Teoria da Otimalidade. Lingua, n. 104, p. 31-56, 1998. ARCHANGELLI, Diana. Optimality Theory: an introductory to linguistics in the 1990s. In: ARCHANGELLI, D.; LANGENDOEN, D. T. Optimality Theory: an overview. Oxford: Blackwell Publishers, 1997. Cap. 1, p. 1-32. BOERSMA, Paul. How we learn variation, optionality, and probability. University of Amsterda, 1997. 28 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 21-29, jan.-abr. 2008 COETZEE, Andries W. Variation as accessing “non-optimal”candidates – a rankordering model of EVAL. Draft, 2005 KAGER, René. Optimality Theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. McCARTHY, Jonh, J. Introductory OT on CD-ROM. Version 1.0. GLSA. Amherst, 1999. McCARTHY, John; PRINCE, Alan. Generalized alignment. In: BOOIJ, G. E.; MARLE, J. van (eds.). Yearbook of morphology. Dordrecth: Kluwer, 1993. p. 79153. MAGALHÃES, José Olímpio de. Corpus do POBH (Projeto Português de Belo Horizonte / norma culta). LABFON/FALE/UFMG, 2000. MATTOSO CÂMARA JR, Joaquim. Estrutura da língua portuguesa. Vozes, 1970. Petrópolis: PRINCE, Alan; SMOLENSKY, Paul. Optimality Theory: constraint interaction in generative grammar. Ms., Rutgers University, New Brunswick and University of Colorado, Boulder, 1993. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 21-29, jan.-abr. 2008 29 Métodos na Pesquisa de uso de dicionários Magali Sanches Durani PPG em Estudos Lingüísticos (doutorado) Universidade Estadual Paulista - UNESP São José do Rio Preto E-mail: magali.duran@uol.com.br Abstract. This paper discusses methods in dictionary use research. Under this perspective, it comments on some works to evidence weakness and strengths of techniques they adopted. It also presents suggestions of methods applicable to this kind of research but not used yet. Such discussion may contribute for methodological decisions in future research projects. Keywords. dictionary metalexicográfica. use research; metalexicografia; pesquisa Resumo. Este artigo discute a questão dos métodos na pesquisa sobre o uso dos dicionários. Alguns estudos são comentados sob essa perspectiva a fim de evidenciar algumas vantagens e limitações de técnicas utilizadas. Apresentamse também sugestões de métodos aplicáveis a esse tipo de pesquisa, mas ainda não empregados. Essa discussão pode contribuir para decisões metodológicas de projetos de pesquisa futuros. Palavras-chave. pesquisa sobre uso do dicionário; metalexicografia; pesquisa metalexicográfica. 1. Introdução As pesquisas sobre o uso do dicionário são fundamentais para o desenvolvimento da Lexicografia Pedagógica e por isso inicio este artigo revendo algumas questões relacionadas a essa área da Lexicografia. Devido em grande parte ao processo de globalização, o ensino de idiomas apresentou um crescimento sem igual no último século. Isso fomentou o desenvolvimento de todo um mercado, provocando a proliferação de escolas, de métodos e de ferramentas para ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras (LE). Há pouco mais de 30 anos, os dicionários, que sempre foram um importante acessório para o aprendiz de idiomas, começaram a refletir mais fortemente a preocupação de atender adequadamente as necessidades desse usuário (o “cliente” do lexicógrafo). A especialização da Lexicografia para essa finalidade cresceu tanto que passou a ter denominação própria: Lexicografia Pedagógica. Hoje essa área passou a abarcar também os dicionários monolíngües para falantes nativos que, embora já apresentassem alguns critérios de segmentação de público-alvo, não observavam com rigor as necessidades de seus usuários. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008 31 A principal distinção, portanto, entre a Lexicografia tradicional e a Lexicografia Pedagógica (LP) é o fato de que o foco da primeira é o inventário do léxico em seus mais diversos aspectos, enquanto o foco da segunda é o atendimento das necessidades do usuário de dicionário. A LP procura selecionar as informações que vão integrar o dicionário baseada nas necessidades do público-alvo, enquanto a Lexicografia tradicional utiliza outros critérios de seleção e, não raro, procura colocar no dicionário tantas informações quanto possível, sem preocupar-se com a utilidade que elas possam ter para usuários específicos. Essa distinção fica clara quando pensamos a avaliação dos dicionários. Um critério predominante na avaliação da qualidade de um dicionário tradicional é a quantidade de verbetes, de expressões, de exemplos, ou seja, elementos intrínsecos às obras. Já a qualidade de um dicionário pedagógico é avaliada a partir do julgamento de sua adequação às necessidades dos usuários: nesse tipo de dicionário nem sempre mais significa melhor. Tomemos, por exemplo, parte de um verbete extraído de um dicionário português-inglês que diz em seu prefácio ter selecionado e adaptado os verbetes para brasileirosii: Casa [k´az ] sf 1 house. 2 home. (…) Pergunta-se: qual a função da informação sobre gênero dos substantivos de português nesse dicionário? E a função da transcrição fonética dos itens lexicais em português? Se o usuário é brasileiro e está consultando um dicionário português-inglês, presume-se que ele conheça o gênero dos substantivos e a pronúncia dos itens lexicais de sua língua materna. Tais informações seriam muito relevantes para estrangeiros, mas deveriam ser suprimidas em um dicionário pedagógico português-inglês dirigido a brasileiros, já que não agregam nenhum valor para esse público-alvo. Esses fatos ainda ocorrem em dicionários que declaram terem sido feitos para um público específico e mostram que a demanda por dicionários pedagógicos acabou ditando o lançamento de publicações antes que os preceitos da LP tivessem sido devidamente assimilados pelos respectivos autores e editores. O desenvolvimento da LP é relativamente recente. Seus primórdios estão ligados à lexicografia monolíngüe, notadamente de língua inglesa, que tinha a preocupação de descrever o léxico sob o ponto de vista de quem se dirige a uma audiência de aprendizes estrangeiros (o primeiro capítulo de COWIE, 1999, é um excelente relato dessa história). Quando a LP passou a influenciar também as obras bilíngües, o público que era “estrangeiro” passou a ser especificado com uma nacionalidade. Assim, por exemplo, um dicionário monolíngüe de inglês para aprendizes estrangeiros transformou-se em dicionário bilíngüe de inglês-português para brasileiros, dicionário inglês-francês para franceses, dicionário inglês-espanhol para espanhóis etciii. Dessa forma, as dificuldades típicas de cada nacionalidade em relação ao léxico de uma língua estrangeira começaram a ser contempladas nos dicionários pedagógicos. Os usuários, que anteriormente constituíam uma massa indistinta para os lexicógrafos, passaram a ganhar identidade. Diversos tipos de segmentação surgiram: além da nacionalidade, 32 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008 passou-se a adequar as obras à faixa etária, ao nível de aprendizado e ao tipo de atividade dos usuários. Como o usuário pluralizou-se, constituindo diversos públicos-alvo, o dicionário também deixou de ser singular. Como observou Ilson (1985), começou-se a falar de dicionários no plural. Além de especificarem um público-alvo, os dicionários pedagógicos especificam (ou deveriam) o tipo de função que se propõem a apoiar. Isso porque não basta perguntar se uma informação é relevante para um determinado público-alvo, mas também em que situação essa informação é relevante. A função do dicionário está diretamente ligada à direção. Dicionários bilíngües que pretendem apoiar a decodificação nas atividades de leitura ou de tradução, por exemplo, apresentam as entradas em língua estrangeira (a incógnita nessas situações é o significado dessas entradas). Já os dicionários bilíngües que pretendem apoiar a codificação nas atividades de escrita em LE (redação e versão) devem apresentar as entradas em língua materna (LM), já que a incógnita nessas situações são os itens lexicais que possam expressar o mesmo significado expresso pela entrada em LM. Diante desses desafios, a LP precisa tanto de pesquisas lexicográficas tradicionais, que produzam matéria para constituir os dicionários, quanto de pesquisas que investiguem o uso do dicionário e cujos resultados possam subsidiar decisões de projetos lexicográficos pedagógicos. Essas últimas pesquisas estão enquadradas no que se chama de Metalexicografia. Assim como a LP, as pesquisas sobre o uso do dicionário são relativamente recentes. Segundo Boogards (1999), em 1986 havia pouco mais de meia dúzia delas. Em 1996, embora esse número tenha crescido dez vezes, o autor relata que os resultados muitas vezes se mostravam contraditórios, evidenciando que a heterogeneidade de métodos de investigação utilizados dificultavam conclusões. Embora as pesquisas nessa área venham crescendo expressivamente, a carência de um paradigma de pesquisas com métodos consagrados ainda se faz sentir. Diante desse cenário, julgamos oportuno discutir esse assunto e comentar alguns relatos de pesquisa sobre o uso do dicionário, focando não os resultados, mas os métodos empregados. 2. Pesquisas sobre uso do dicionário Como as necessidades dos usuários de dicionários não são homogêneas, para descobrir como deve ser um dicionário adequado a um determinado segmento de público que se pretende atender, são necessárias pesquisas que investiguem a interação de representantes desse segmento com as obras lexicográficas. Eis alguns tipos de perguntas que podem orientar pesquisas com esse foco: Que tipo de dicionário é mais adequado a cada tipo de atividade? ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008 33 O que promove melhor a compreensão de significado em LE: a definição ou o exemplo? Em que tipo de atividade o aprendiz consulta mais o dicionário? Que forma de organização dos elementos de um verbete facilita mais a consulta? Quanto do verbete os aprendizes lêem e em que ordem? Que elementos de formatação conferem maior clareza ao texto lexicográfico? Quais as estratégias do aprendiz quando não obtém o resultado desejado na consulta inicial? Que cores devem ser utilizadas no texto para facilitar a retenção dos itens lexicais? Quais os enganos que o aprendiz comete, mesmo utilizando o dicionário, por falta ou incompletude de informações lexicográficas? O que falta aos dicionários, ou melhor: que tipo de informação o aprendiz busca, mas não encontra nos dicionários? Que tipo de habilidade de consulta o aprendiz necessita para fazer melhor uso dos dicionários? O ensino do uso do dicionário melhora o desempenho dos aprendizes? Para responder a essas e a uma infinidade de outras questões, o pesquisador deve escolher um método e um instrumento de pesquisa. A priori, não existe método melhor ou pior. O que se pode discutir é qual o método mais adequado para levantar determinada informação. Os desenhos das pesquisas sobre o uso de dicionários variam muito no que diz respeito à metodologia e aos instrumentos de coleta de dados. Em 1996 Dolezal & McCreary publicaram uma vasta relação de trabalhos sobre LP. Tono (2001), numa resenha sobre a obra de Dolezal & McCreary, criticou o fato de os trabalhos não estarem classificados pelo método utilizado, além de misturarem resultados de pesquisas empíricas com artigos de opinião de especialistas. Essa deficiência foi superada por Welker (2006), que reuniu e comentou o resultado de 200 pesquisas empíricas sobre o uso do dicionário em todo o mundo. Welker classificou as pesquisas por diversos critérios, permitindo aos leitores interessados que comparem os resultados dessas pesquisas. Há duas instâncias para conhecer o uso dos dicionários: uma é o processo do uso e a outra é o efeito do uso no produto de uma atividade. Já empreguei a expressão “produto do uso” para nomear essa segunda instância, mas passei a adotar a expressão utilizada por Welker (2006) efeito do uso, pois me pareceu mais apropriada. O processo do uso, (as consultas durante uma atividade) pode ser acessado por meio de perguntas dirigidas ao usuário ou por meio de técnicas introspectivas que permitam revelar aspectos do comportamento do usuário dos quais nem ele mesmo tem consciência. Já o efeito do uso pode ser observado nos seguintes produtos: exercícios de interpretação de texto (uso do dicionário na leitura); redações; textos traduzidos e textos 34 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008 vertidos. A análise do efeito do uso do dicionário normalmente é guiada pela relação de itens lexicais que foram motivo de consulta. Isso é importante, pois muito do que se observa nos produtos da leitura, da escrita, da tradução e da versão não tem nenhuma relação com o uso dos dicionários. É o caso, por exemplo, de conhecimentos prévios, de processos de inferências etc. Verificam-se nesses produtos: Erros que poderiam ter sido evitados com um melhor uso do dicionário, ou seja, o dicionário tinha a informação necessária, mas o aprendiz não soube aproveitála; Erros que poderiam ter sido evitados se o dicionário fornecesse mais informações ou as apresentasse de outro modo. A análise do efeito do uso é objetiva (empírica) e revela conseqüências do uso do dicionário (erros e acertos), mas não revela as causas dos erros. Para chegar a essas causas temos que fazer suposições ou procurá-las no processo do uso. 3. Pergunta de pesquisa e escolha do método. A questão da escolha do método e dos instrumentos de pesquisa deve ser pautada pela pergunta de pesquisa: A partir do momento em que a pesquisa centra-se em um problema específico, é em virtude desse problema específico que o pesquisador escolherá o procedimento mais apto, segundo ele, para chegar à compreensão visada. Poderá ser um procedimento quantitativo, qualitativo, ou uma mistura de ambos. O essencial permanecerá: que a escolha da abordagem esteja a serviço do objeto de pesquisa, e não o contrário, com o objetivo de daí tirar, o melhor possível, os saberes desejados. (LAVILLE & DIONNE, 1999, p.43) Portanto, algumas perguntas de pesquisa requerem uma abordagem qualitativa, outras requerem uma abordagem quantitativa. Faço uma analogia com a fotografia para comparar essas duas abordagens: a qualitativa seria um close (revela o detalhe) e a quantitativa uma foto panorâmica ou aérea (dá visão de conjunto), ou seja, cada uma delas mostra o que a outra não mostra. 4. Abordagem qualitativa A abordagem qualitativa é indicada quando o assunto é muito complexo ou desconhecido. Ela propicia ao pesquisador a oportunidade de explorar novos campos, aprofundar o conhecimento acerca do assunto pesquisado e elaborar hipóteses e, por isso, é também chamada de pesquisa em profundidade. Nesse tipo de pesquisa, a descrição do contexto é muito importante para que se possam interpretar os resultados. Vamos supor, por exemplo, a seguinte pergunta de pesquisa: “Quais são as estratégias de busca lexical utilizadas no processo de escrita em LE?”. Se não sabemos de antemão quais são as possíveis estratégias de busca lexical, se não temos uma ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008 35 tipologia de estratégias como referência, é por meio da abordagem qualitativa de pesquisa que poderemos elucidar algumas dessas estratégias. No entanto, essa mesma pesquisa não nos dirá se as estratégias levantadas são as únicas possíveis nem se são as mesmas utilizadas por outros usuários, de contexto semelhante ou não ao contexto pesquisado. A pesquisa qualitativa não tem o propósito de conhecer o todo pela parte, o universo pela amostra: não permite generalizações. Sua aplicação é na elucidação de questões complexas onde muitas variáveis são desconhecidas. Gordon & Langmaid (1988) dizem que a pesquisa qualitativa é aquela que responde a perguntas como O quê?, Por quê? e Como?, mas não consegue responder a pergunta Quantos? Pesquisas qualitativas podem preceder pesquisas quantitativas. O pesquisador pode utilizar o conhecimento adquirido na pesquisa em profundidade (verticalidade) para elaborar perguntas de pesquisa quantitativa adequadas para descobrir se determinado comportamento é observado em uma amostra de usuários (horizontalidade). As técnicas mais utilizadas nas pesquisas de abordagem qualitativa sobre o uso do dicionário são as técnicas introspectivas (v. WALLACE, 1998): o pensar em voz alta, a auto-reflexão e a auto-observação, mas há também estudos que utilizaram a observação e a entrevista em profundidade. Os instrumentos utilizados nessas técnicas são o diário, as gravações e os protocolos verbal e escrito. O diário é utilizado tanto para o registro das observações do pesquisador quanto para registro da auto-observação ou auto-reflexão do sujeito de pesquisa. O pesquisador pode solicitar ao usuário de dicionário que anote no diário qual a dúvida que deu origem à consulta ao dicionário, qual o resultado da consulta, quais as consultas subseqüentes relacionadas à mesma dúvida, os pensamentos que lhe ocorreram durante as consultas e sugestões que lhe ocorreram no momento do uso para melhorar a qualidade dos dicionários. Há de se ressaltar que no diário existe uma defasagem entre o ato de pensar e agir e o ato de relatar pensamentos e ações. Essa defasagem pode representar tempo suficiente para que o usuário “filtre” o que deseja relatar, podendo suprimir informações importantes. Wiegand (apud WELKER, 2006) cita a técnica do protocolo escrito e subdivideo em protocolo escrito durante as consultas e protocolo retrospectivo dizendo que ambos podem ser estruturados, não estruturados e semi-estruturados. O protocolo escrito, quando não estruturado, corresponde ao que estou chamando de diário. Mas no caso de protocolos escritos estruturados ou semi-estruturados, o diário é substituído por formulários. Já no protocolo verbal, o pesquisador solicita ao usuário que verbalize seu raciocínio e registra por meio de gravação de som e às vezes também de imagem, todas as ações do usuário durante o processo de consulta. Às vezes o protocolo verbal é utilizado durante a atividade que gerou as consultas ao dicionário e aí é chamado de “pensar em voz alta”, mas outras vezes ele é aplicado após essa atividade, fazendo com que o usuário reconstrua por meio de relato seu raciocínio durante as consultas. É 36 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008 desejável que a defasagem de tempo seja a menor possível, pois quanto mais “fresca” estiver a experiência, maior a probabilidade de o relato corresponder ao verdadeiro percurso do raciocínio do usuário. Os protocolos verbais exigem transcrição para posterior análise. Tanto a transcrição quanto a impossibilidade de padronizar a análise dos dados tornam essa técnica trabalhosa e, portanto, mais apropriada para aplicação em pequenos grupos. Uma combinação de diário de observação e protocolo verbal foi desenvolvida por Atkins & Varantola (1997): orientado por um formulário, o observador registra por escrito determinadas ações e pensamentos verbalizados pelos usuários (Wiegand, apud WELKER, 2006, chamaria isso de protocolo escrito semi-estruturado). Esse instrumento tem como vantagens: 1. eliminar a fase de transcrição dos protocolos verbais; 2. substituir a auto-observação pela observação, eliminando as interrupções de atividade exigidas para registro do diário pelo próprio sujeito de pesquisa; 3. moderar a influência do ponto de vista do observador. Os protocolos verbais guardam uma relação de fidelidade maior com o processo de uso do que o diário e do que o instrumento desenvolvido por Atkins & Varantola (1997), pois nesse último o usuário e o registrador atuam como “filtro” dos eventos. O primeiro pesquisador a utilizar o protocolo verbal na investigação do uso do dicionário foi Ard (1982). O artigo em que Ard relatou sua pesquisa deixa lacunas na descrição de detalhes de sua pesquisa. Não se sabe, por exemplo, quantos eram os sujeitos da pesquisa. Ele comenta os resultados de dois sujeitos para cada uma das duas fases de atividades propostas e muitos leitores acreditam que os casos comentados representam a totalidade de sujeitos de pesquisa. Apesar disso, o pioneirismo de Ard inspirou outros pesquisadores do uso do dicionário a utilizarem o protocolo verbal como método. Embora seus sucessores tenham ampliado o número de sujeitos de pesquisa, nenhum reproduziu o mesmo tipo de registro de Ard, que aliou imagens de uma câmera posicionada logo acima da cabeça do sujeito pesquisado, mostrando a folha de papel em que era feita a tarefa, à gravação das falas do “pensar em voz alta”. Com isso, Ard pôde observar as pausas na escrita e percebeu que elas não ocorrem apenas quando o sujeito consulta o dicionário, mas também por outros motivos desconhecidos. Isso levou o autor a concluir que a consulta ao dicionário não é a única responsável pelas pausas no processo de redação em LE. Em sua análise, Ard pôde confrontar três fontes de dados: as imagens, os sons e a própria redação resultante. Christianson (1997), que pesquisou o uso de dicionários na redação em LE, alega ter se inspirado em Ard (1982) e aplicado o protocolo verbal. Contudo, pela descrição contida em seu artigo, deduz-se que o autor pediu aos sujeitos de pesquisa que descrevessem seu processo cognitivo seis meses após a realização da tarefa. Se a defasagem de horas já representa um prejuízo para o “pensar em voz alta”, acredito que uma defasagem de meses compromete demais a confiabilidade dos resultados. No Brasil, Höfling (2006) utilizou protocolo verbal para pesquisar o uso do dicionário na leitura em língua estrangeira. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008 37 No caso dos protocolos, a quantidade de sujeitos de pesquisa influencia, mas não é determinante para a qualidade dos resultados. A entrevista em profundidade, também utilizada nas pesquisas de abordagem qualitativa sobre o uso do dicionário, possui um roteiro flexível e exige que o entrevistador conheça o assunto e os objetivos da pesquisa. Ela é dirigida no sentido de obter do entrevistado o máximo de informação sobre determinadas questões. As pesquisas qualitativas foram muito criticadas no passado pelo fato de envolverem poucos sujeitos de pesquisa, o que, na visão daqueles que estavam acostumados com o paradigma das pesquisas quantitavas, comprometia a validade e a confiabilidade de seus resultados. No entanto hoje esse tipo de pesquisa tem seu valor reconhecido em várias áreas científicas, pois por meio delas podemos ter acesso ao sujeito real de pesquisa, ao passo que nas pesquisas quantitativas aspectos da individualidade são apagados no processo de mensuração. 5. Abordagem quantitativa: A abordagem quantitativa é adequada quando se deseja obter resultados que possam ser generalizados da amostra para a população. A fim de permitir sua aplicação em larga escala, a pesquisa quantitativa utiliza instrumentos que facilitam a tabulação dos dados e a análise em blocos. Uma característica desse tipo de pesquisa é definir sistematicamente que dados serão levantados e os critérios para análise destes dados já na fase de projeto da pesquisa. Os resultados são traduzidos em números e estatísticas (percentuais, médias, desvio-padrão, variância etc.). Nesse tipo de pesquisa é importante definir as variáveis controladas, pois assim outros pesquisadores poderão reproduzi-la a fim de comparar seus resultados. Aqui comentarei três técnicas utilizadas na pesquisa sobre o uso de dicionário por meio da abordagem quantitativa: o questionário, os experimentos e o registro de logs. 5.1. Questionário Uma das principais técnicas utilizadas nas pesquisas quantitativas sobre uso do dicionário é o questionário. O questionário pode ser aberto (sem alternativas de respostas) ou fechado (com alternativas de respostas). O questionário fechado foi o instrumento das primeiras pesquisas sobre o uso dos dicionários. Essas pesquisas misturavam perguntas objetivas com perguntas subjetivas. Perguntas objetivas como: quantos dicionários você possui? que dicionário você possui?, só podem ser respondidas dessa forma. Portanto, questionários podem ser um instrumento de pesquisa muito adequado para avaliar quantos e quais dicionários são possuídos por uma determinada amostra e extrapolar esses dados para toda uma população. As perguntas subjetivas, por sua vez, estão relacionadas a outro tipo de finalidade a que se prestam os questionários: as pesquisas de opinião e as pesquisas sobre comportamento. No entanto, é muito importante elaborar bem as perguntas, pois quando elas são mal interpretadas as respostas podem ficar prejudicadas. 38 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008 Quando se trata de questionário fechado, ou seja, quando as alternativas de resposta são pré-determinadas, aspectos não previstos pelos pesquisadores não têm a oportunidade de se revelar. Por exemplo, Hartmann (1999), utilizou um questionário fechado para investigar várias questões envolvendo dicionários. Uma de suas conclusões foi de que as características que mais influenciam o aprendiz na compra do dicionário são, respectivamente: relevância para as necessidades, número de unidades lexicais, número de exemplos, preço e reputação da editora. No entanto, outras características que poderiam ser relevantes não apareceram como opção: durabilidade (material resistente), portabilidade (peso e volume) e potencial de aproveitamento em estágios mais avançados. Nos questionários fechados o respondente pode assinalar uma resposta que não corresponda à sua verdade se a resposta que gostaria de dar não estiver contemplada dentre as alternativas apresentadas. Perguntar, por exemplo: Qual o tipo de dicionário que você mais utiliza? e dar como alternativas de resposta dicionário monolíngue e dicionário bilíngüe impede que se conheça qual o tipo de dicionário mais utilizado em cada tipo de situação, qual a direção mais consultada e, ainda, ignora a possibilidade de distinção entre o uso do dicionário monolíngue de LM e o uso do dicionário monolíngüe de LE. Esse tipo de pergunta poderia obter respostas mais aproveitáveis se fosse elaborado da seguinta forma: Em cada uma das situações abaixo, qual o tipo de dicionário você mais utiliza? Preencha os parênteses com números de 1 a 4 por ordem de prioridade: 1 para o dicionário mais utilizado até 4 para o menos utilizado. LEITURA DE TEXTO EM LE ( ( ( ( ) dicionário monolíngüe de língua estrangeira; ) dicionário monolíngüe de língua materna; ) dicionário bilíngüe na direção língua estrangeira-língua materna ) dicionário bilíngüe na direção língua materna-língua estrangeira TRADUÇÃO DE TEXTO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA ( ) dicionário monolíngüe de língua estrangeira; ( ) dicionário monolíngüe de língua materna; ( ) dicionário bilíngüe na direção língua estrangeira-língua materna ( ) dicionário bilíngüe na direção língua materna-língua estrangeira REDAÇÃO EM LÍNGUA ESTRANGEIRA ( ) dicionário monolíngüe de língua estrangeira; ( ) dicionário monolíngüe de língua materna; ( ) dicionário bilíngüe na direção língua estrangeira-língua materna ( ) dicionário bilíngüe na direção língua materna-língua estrangeira VERSÃO DE TEXTO PARA LÍNGUA ESTRANGEIRA ( ) dicionário monolíngüe de língua estrangeira; ( ) dicionário monolíngüe de língua materna; ( ) dicionário bilíngüe na direção língua estrangeira-língua materna ( ) dicionário bilíngüe na direção língua materna-língua estrangeira ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008 39 Perguntas como essa são mais complexas, mas podem fornecer muitas informações sobre a opinião dos pesquisados acerca do próprio comportamento. Em pesquisas com um grande número de participantes, os questionários são enviados por e-mail ou correio e respondidos à distância. Mas eles podem também ser aplicados com a presença do pesquisador ou de um representante, possibilitando que eventuais dúvidas sobre as questões sejam acolhidas e esclarecidas. Quando as questões são mais complexas e requerem a presença do pesquisador junto a cada sujeito de pesquisa, utiliza-se a entrevista. Na entrevista, o questionário guia as perguntas do entrevistador e pode fornece alternativas de resposta que devem ser assinaladas pelo entrevistador a partir de sua interpretação da resposta do entrevistado. O contato individualizado do pesquisador com os sujeitos de pesquisa pode ser proveitoso, trazendo à luz aspectos ignorados anteriormente e que poderão ser aproveitados em pesquisas futuras. A entrevista sobre o uso de dicionários realizada por Ibrahim e Zalessky (1989), por exemplo, utilizou um questionário com questões abertas e fechadas. Nas conclusões, podemos observar que, se por um lado a ferramenta foi muito adequada para investigar alguns aspectos (quantos e quais dicionários possui, quantas vezes consulta o dicionário por semana, foi ou não instruído sobre como utilizar o dicionário etc.), mas não permitiu conclusões importantes em aspectos comportamentais como, por exemplo, “o que você faz quando o dicionário não lhe fornece uma resposta?”. Nesse último caso, as autoras verificaram que inúmeras variáveis influíam no comportamento dos aprendizes, dentre as quais a nacionalidade e a escolaridade. Relataram também que algumas respostas são tão complexas que “não se pode identificar uma resposta dominante” em determinado grupo de usuários (IBRAHIM; ZALESSKY, 1989, p. 28). Tanto nos questionários respondidos à distância quanto nas entrevistas simples, é preciso não confundir opinião com fato. Sempre que utilizamos questionários temos que ter em mente a possibilidade de que: a. O sujeito de pesquisa responda o que pensa que o pesquisador espera que ele responda. Esse problema deve ser considerado, principalmente nos casos de pesquisas conduzidas por professores com seus próprios alunos como sujeitos de pesquisa, pois é provável que os alunos já conheçam a opinião dos professores acerca dos assuntos abordados nas perguntas. b. O sujeito de pesquisa responda o que pensa que faz, mas que na realidade não faz. Esse problema ocorre principalmente quando se trata de comportamentos automatizados, dos quais se tem pouca consciência. Diante desses riscos, resultados de pesquisa baseados em questionários deveriam ter o cuidado de deixar claro que se baseiam na opinião ou na declaração dos respondentes. Assim, não se deveria dizer, por exemplo, que a pesquisa mostrou que tal ou tal dicionário é mais útil, mas sim que, na opinião dos respondentes, tal ou tal dicionário é mais útil. 5.2. 40 Experimentos ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008 Nessa categoria de pesquisa enquadro todas as atividades concebidas para testar determinadas hipóteses (cf. WELKER, 2006, p. 32 que diferencia experimento de teste). Nos experimentos procura-se controlar as variáveis consideradas mais relevantes. Por exemplo, para avaliar se um dicionário é melhor que outro, uma mesma atividade é proposta a dois grupos pretensamente homogêneos de aprendizes, cada um utilizando um dos dois tipos de dicionário testados. É considerado melhor o dicionário que foi utilizado pelo grupo que apresentou melhor desempenho. Ao considerarem apenas algumas variáveis, os experimentos simplificam a realidade e podem conduzir a conclusões equivocadas. Sobre eles, Nesi & Haill dizem que “...exigem que os usuários consultem palavras que eles poderiam não desejar, necessariamente, consultar, em dicionários que eles não iriam normalmente consultar, para fins que eles podem não entender ou com os quais eles podem não concordar” (NESI & HAILL, 2002, p. 277, tradução minha). Vejamos um exemplo de como o experimento pode levar a conclusões equivocadas. Laufer (1993) queria testar a hipótese de que os exemplos são mais importantes que as definições em um dicionário. Para isso, propôs atividades de leitura, seguida de teste de compreensão de texto, e de formulação de frases em LE. Ambas as atividades continham palavras consideradas difíceis e com baixa probabilidade de já serem conhecidas pelos sujeitos de pesquisa (para isso foram testadas em um grupo de controle). O resultado das atividades foi avaliado estatisticamente, definindo o percentual de sucessos obtidos somente com exemplos, somente com definições e com exemplos e definições juntos. O resultado na atividade de leitura foi tratado separadamente do resultado na atividade de elaboração de frases (que a autora chamou de atividade de produção). Ora, em uma atividade de produção em LE raramente ou nunca se utiliza o dicionário para conhecer o significado de uma palavra, pois é difícil conceber que alguém queira expressar-se por meio de palavras cujo significado desconhece. Além disso, nesse experimento existe a possibilidade de que os exemplos do dicionário sejam copiados ou ligeiramente alterados na sentença que os aprendizes têm que produzir. Como em ambas as atividades desse experimento (leitura e produção de sentenças), o aprendiz utilizou o dicionário para entender o significado de palavras desconhecidas, as conclusões podem até aplicar-se ao uso receptivo do dicionário (na decodificação), mas não no uso ativo (codificação). Nesi (1994), Nesi & Meara (1994) e Nesi (1996) também propuseram a elaboração de sentenças com palavras consideradas raras ou difíceis para medir o efeito de certas variáveis na produção escrita (a língua materna do aprendiz, definições, exemplos). Para eliminar a possibilidade de cópia dos exemplos, em Nesi (1996) foi solicitado que o sujeito de pesquisa combinasse cada uma das palavras raras com outra palavra dada, mas não rara. No entanto, o mesmo equívoco de Laufer (1993) permaneceu: não se mediu o efeito do dicionário na produção, mas sim na compreensão. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008 41 Portanto, a atividade de formular frases utilizando palavras dadas parece ser inadequada para verificar o efeito do uso do dicionário na produção. 5.3. Registro de logs Em se tratando do uso de dicionários em mídia eletrônica, o percurso da consulta pode ser analisado por meio do registro de logs, que representam os comandos que o usuário deu no computador. Ao final da atividade, o pesquisador obtém um relatório com a seqüência desses logs e pode analisar quais as opções consultadas pelos usuários. Os logs substituem o observador sem afetar a espontaneidade do consulente. A mudança de mídia é uma variável a ser considerada, pois afeta a motivação. Porém, também esse tipo de pesquisa tem suas limitações: por não se saber, por exemplo, dentro de uma série de consultas registradas por logs, quais foram motivadas por dúvidas, quais foram motivadas por simples curiosidade e quais foram resultado de um erro na escolha da opção de acesso. Não se sabe também se toda informação acessada foi realmente lida e interpretada. Esse instrumento foi utilizado, por exemplo, por Laufer & Hill (2000) e considero um bom recurso a ser utilizado na triangulação com outros dados de pesquisa. 6. Métodos promissores ainda não utilizados. 6.1. Pesquisa-ação Considero interessante a possibilidade de o pesquisador ser o próprio sujeito de pesquisa nessa área, pois os pesquisadores são freqüentemente também grandes usuários de dicionários. Essa modalidade de pesquisa é análoga à pesquisa-ação tão utilizada pelos professores para observar a própria prática (v. WALLACE, 1998). O fato de não envolver outras pessoas pode facilitar a execução da pesquisa e os resultados podem revelar ao pesquisador e a toda comunidade científica aspectos não observados em outros tipos de investigação. Os instrumentos utilizados nessa pesquisa são os mesmos já expostos na pesquisa de abordagem qualitativa: o diário e o protocolo verbal. A diferença é que o pesquisador vai analisar seu próprio comportamento, fazendo uma auto-observação e uma auto-reflexão. 6.2. Corpus Computadorizado de Aprendizes Ainda não encontrei nenhuma pesquisa que tenha utilizado corpus de aprendizes computadorizado para investigar o efeito do uso de dicionários, mas considero essa uma boa idéia para avaliar a correlação entre diversas variáveis como gênero textual; dicionários utilizados; idade do sujeito, nível de instrução etc. e a quantidade e os tipos de erros cometidos. Esse tipo de corpus é constituído de redações de aprendizes. Poder-se-ia, por exemplo, comparar um corpus de redações feitas com o uso de dicionários a um corpus de redações sem o uso do dicionário. Controlando-se as variáveis mais relevantes para a pesquisa do uso do dicionário, podem-se levantar padrões que mereçam ser investigados mais a fundo. Essas variáveis são: tipo de dicionário utilizado durante a escrita; condição do aprendiz em relação ao ambiente no momento da escrita (nativo ou estrangeiro); tipo de atividade 42 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008 (codificação ou decodificação). Isso não dispensa, no entanto, o controle das variáveis relacionadas à biografia do sujeito de pesquisa, como idade, língua materna, tempo de estudo de LE, conhecimento de outras línguas etc. A análise automatizada de corpora de aprendizes, contudo, ainda está se desenvolvendo, pois depende da etiquetação automática de tipos de erros e a tipologia de erros é ainda um assunto controverso (cf. Tono, 2003). 7. Dados secundários A possibilidade de aproveitar dados já levantados para outras finalidades deve sempre ser considerada pelo pesquisador que investiga o uso do dicionário, embora sejam raras essas oportunidades. Nesi & Haill (2002), por exemplo, aproveitaram trabalhos realizados em uma disciplina sobre uso de recursos de biblioteca e que continham um tópico referente ao uso de dicionários. O uso de corpus de aprendizes também pode ser uma forma de utilizar dados secundários. Sempre que isso for feito, no entanto, é preciso declarar todas as possíveis conseqüências sobre os resultados. 8. Considerações finais Procurei mostrar como diferentes perguntas de pesquisa sobre o uso de dicionário podem requerer a adoção de diferentes abordagens metodológicas. Isso me pareceu mais produtivo do que defender a abordagem qualitativa ou a quantitativa, já que cada uma delas serve a propósitos diferentes e leva a resultados que se complementam na construção do conhecimento. Até hoje a grande maioria das pesquisas sobre o uso do dicionário utilizou questionário e vimos exemplos de perguntas de pesquisa que podem e que não podem ser adequadamente investigadas por meio dessa técnica. Vimos também como técnicas introspectivas de pesquisa mostram-se adequadas para investigar questões ligadas ao comportamento do usuário no processo de uso do dicionário. Comentários críticos sobre os métodos utilizados nas pesquisas sobre o uso do dicionário podem alertar outros pesquisadores sobre aspectos que devam ser considerados nos projetos de pesquisa desta natureza. Acredito que o uso do dicionário ainda será muito pesquisado e por isso sugeri formas de aplicar métodos conhecidos, mas ainda não utilizados para investigar esse assunto. Muitas das terminologias utilizadas para designar as técnicas e os instrumentos de pesquisa aqui discutidos não são de consenso geral. Mas não era meu propósito argumentar sobre essas questões neste espaço. Ainda são poucas as pesquisas sobre o uso do dicionário no Brasil. No levantamento de Welker (2006), elas somavam 17. Espero que esta discussão sobre os ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008 43 métodos empregados em pesquisas sobre o uso do dicionário representem uma contribuição àqueles que desejem realizar projetos visando à ampliação do conhecimento sobre o usuário brasileiro de dicionários. Conhecer o uso que os aprendizes fazem dos dicionários abre diversas possibilidades para o aperfeiçoamento das obras lexicográficas, além de revelar a necessidade e a oportunidade de promover o ensino do uso do dicionário. i Bolsista CAPES Michaelis Dicionário Escolar Inglês. São Paulo: Melhoramentos, 2001. iii Refiro-me às diversas obras de bilingualização do Oxford Advanced Learner’s Dictionary pela Kernerman Dictionaries, uma das quais é o Password English Dictionary for Speakers of Portuguese, editado no Brasil pela Martins Fontes. ii Referências Bibliográficas ARD, J. The use of bilingual dictionaries by ESL students while writing. ITL, Review of Applied Linguistics, n. 58 p. 1-27, 1982. ATKINS, B. T. S. ; VARANTOLA, K. Monitoring dictionary use. International Journal of Lexicography, n. 10, v. 1, p. 1-45, 1997. BOGAARDS, P. Research on dictionary use: an overview. In: HARTMANN, R. R. K. (ed) Thematic Network Projects, Sub-project 9 – Dictionaries - Dictionaries in Language Learning, Final Report Year Three, 1999, p. 32-34. Disponível em: www.fu-berlin.de/elc/tnp1/SP9dossier.doc tnp 1. Acesso em: 04 jul. 2003. CHRISTIANSON, K. Dictionary use by EFL writers: what really happens? Journal of Second language Writing, v. 6, n. 1. Elsevier Science Direct, 1997. COWIE, A. P. English dictionaries for foreign learners: a history. Oxford University Press, 1999. DOLEZAL, F. T. ; MCCREARY, D. R. Pedagogical Lexicography today: a critical bibliography on learners' dictionaries with special emphasis on language learners and dictionary users Lexicographica. Series Maior 96. Tübingen: Max Niemeyer Verlag. GORDON, W. ; LANGMAID, R. Qualitative Market Research. Aldershot (England): Gower Publishing Company Ltd., 1988. HARTMANN, R. R. K. Case study: the Exeter University survey of dictionary use. In: HARTMANN, R. R. K. (ed) Thematic Network Projects, Sub-project 9 – Dictionaries - Dictionaries in Language Learning, Final Report Year Three, 1999, p. 36-52. Disponível em: <http://www.fu-berlin.de/elc/tnp1/SP9dossier.doc tnp 1> Acesso em: 04 jul. 2003. 44 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008 IBRAHIM, A. H.; ZALESSKY, M. Enquête: l’usage du dictionnaire. Lexiques. Paris: EDICEF, numéro spécial Le Français dans le Monde, p. 24-30., août-sept.1989. ILSON, R. Dictionaries, Lexicography and language learning. Oxford: Pergamon, 1985, p. 1-6. LAUFER, B. The effect of dictionary definitions and examples on the use and comprehension of new L2 words. Cahiers de Lexicologie. Paris, n. 63, p. 131-142, 1993. LAVILLE, D. ; DIONNE, J. A construção do saber. Editora UFMG/ARTMED, 1999. NESI, H. ; HAILL, R. A study of dictionary use by international students at a British University. International Journal of Lexicography, 15.2 p. 277-305, 2002. TONO, Y. Learner corpora: design, development and applications. In: Archer et al. (eds.) Proceedings of the Corpus Linguistics 2003 Conference. Technical Papers 16. Lancaster University: University Centre for Computer Corpus Research on Language, 2003, p. 800-809. TONO, Y. Resenha de: Pedagogical Lexicography Today: A Critical Bibliography on Learners' Dictionaries with Special Emphasis on Language Learners and Dictionary Users by Fredric Thomas Dolezal & Don R. McCreary. Language, Vol. 77, No. 4 2001, pp. 835-837. WALLACE, M. Action Research for Language Teachers. Cambridge : Cambridge University Press, 1998. WELKER, H. O uso de dicionários. Thesaurus: Brasília, 2006. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 31-45, jan.-abr. 2008 45 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 47-54, jan.-abr. 2008 47 48 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 47-54, jan.-abr. 2008 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 47-54, jan.-abr. 2008 49 50 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 47-54, jan.-abr. 2008 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 47-54, jan.-abr. 2008 51 52 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 47-54, jan.-abr. 2008 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 47-54, jan.-abr. 2008 53 54 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 47-54, jan.-abr. 2008 ! ! " #$ % & ' ' (& ) & % ' ! $ ( ( ( $ 012 & / + / & 3 " 4 9 % ( 7/ = + B $ ( , ! ( ( % $ ( ! !" &'$ % $ 5 & 3 & # $ ( ! $ $ !" ) 6 ( 7/ ( $ ! ( ( ) !" $ ( $ " 9 # ( ( : 5 9 * ' ( = & 5 >'? ( $ + , + % ( + * (& ) > ( # = ( ( ) % , $ , B ( C !D BE C& ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 55-61, jan.-abr. 2008 ) &* . $ ( ) # 8 ' ( % $ / & ( & 9 !" !" ( ( " @ 8 6 ; 9 < ( 0A &> $ &3 @ + , C 55 ! '* (& ( &> $ ( $ ( : @ ( ! $ , !" ! ) + ( 2+ & < ( < ( = $ % !" ? $ , = % ( < E ( !" $ ( / 3$ # ( ) + F " = > G: 02G & > % = (5 &' ( % !D ( 6 < E& E ( & ( ) < !" > ( $ ( " ( ( # $ # ( 3?> + ( " ( ( ( H & ' $ ( & 3 ( # < " " ( & 8" % 3( # B ) $ ; &3 7 $" ) $ ( $ ( " % ( " ( + ( " & 5 " $ ( $ $ ( / ( ( &3 ( ( ) $ 6 % ( $ ( $ ( # ( '# C @ ( " ) < B , + ( " # # ( ) '# ( ( # ( 6 $ = 4 C " ( ' = C B 2 1K0 K # " &8 ( = C B G 0 K0 K & 8 $ &' " !" 5 C ( &3( : BI&&&J ( + ( & * : B8 % $ &35 & = $ ( 5 $ C # !" ( $ $ $ ( &* % ( $ ) ! $ / < ,= += ( ) # & !" < / 56 : B3 ( ( + %9 = B. $ , K C& &* % L$ $ & * M $ ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 55-61, jan.-abr. 2008 E N ( L$ M $ # + !" ( ( !D # C B'(7 G @K0 K & ' !D ( & 8 ( $ B ( $" ( # L$ L( # $ /( < !" ( ( $ $ # , ( FB % : B. + " C L$ C& * < ) C B* ' % # & !" ( B !" : B8 5 ( $ * @ " B ( $" C ; 6 = $ # % & '( # < $ 0PP@& 3 = B ( $ (!" C 6 ( ! # ( 6 B ( $" # C / & / ( ( ) B3 + ( $" ( ( ! !" C + % ( 0G 8 ( 7/ $ # ( + $ ( = C # * ( ! '# % 8 & 4 = ( $" $ G @ : ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 55-61, jan.-abr. 2008 ; " !" F J B> # C B ( $" C ( / # ( C M ) % !" ( ) F $ # 4 % ( & 3 ( ( B # &* !" ( : 0&8 ( @ $ M # $ : B8 / # :1 O 6 C G 2 ( # C " " &' ( ( ) : 0& / ( < ( ( $ C B3 C ( ) 5 $# ; &3( B (!" C <0 $" <3 $" & B ( $" C # !" : # C # / ( = I # $ ( % $ B # C $ !" ( ( &* F $ # C B ( # < / $ % # 5 ( ) MC = G ( $ # ) $ ( + : B $ ( &8 =( L$ !D C& 3 ( ( = $ # C B. @K0 K & 3 ( ( : B' M( $ ( # & C ( " M $ % = $ &8 " : BL3 C B !" & 3 # 57 B> 3( % % $ ) # ( / ( + B " , Q " ( #< < ( B $ C& ( BI&&&J $ " $ 6 $ / ) $ ( ( D % 5 ( ( 2 1 ( 7 " " ( & C ? % & $ H &3 # ( & '$ $ ) $ !D ( < ( $ $ ( ( $ = ( 7$ $ : 0PP & $ < ) $ ) $ ( !" # & E ( " # ( ) ) $ ( = " ( $ $ # IRJC& ' ( !" : B !" /( ( % $ C $ $ & 8 ( $D = 0 ( , > > ( G $ " B ( = $ ( $ & C !" &' # $ M $ 8 C # ) ( ! < $ ( H $ L % $ & ( , $ ( ( $" $ ( += ( # ( ( $ ( " $ # (5 # $ ( ,= " ( + ( & 8 ( @ A >'? 8 C : B + Q< C B Q $C ( / ( < : B3 + Q< $ $ $ + C BS6 ,= G % &8 ( $ !D 6 ( + $ $ & * < # " : B ( $ % ( + ! ( $ C B* ; ) ( $ ( 7/ D + Q< , C G @ % & 5 /( " = : B3 " N ( $ " C B8 N 6 ( ; ) % + Q< $ % C G @ % &B % + Q< C $ !D 6 ( + $ $ &3 < + / ( += /( !" , B + Q< C ( , ( ( )( $ ,= , + &T 4 &. ( ( + /( !" : B8" + (= Q $ $ U ( $ 5 6 U !" D C B' ( " + 58 < $ & ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 55-61, jan.-abr. 2008 >'?C G Q $ $ ) ( $ 8 + G % &3 5 # ( %F $ ( + G 2 % !D C $ $ ( (5 > ( / + ( ( F & 4 # #: B' ( = !" " # D ( C B " ( ( ( ( & ) #( < ) + & > " + B ( ( &8 + VC < B <$ C $ / $ ( $ ( ( # + = >'? $ % ( &* / T 6 ( ( + B # $ # + VC $ ( $ $ P ( 5 C A G ( ( G ( !" : B' $ + VM $ C : $ ( ' Q $ ( ) ( C ( C &T /( 4 U L Q $# " B ( ( % 5 $ ( $ BE ( B " & $ / ( $ : B* = ' ( + L <$ M $ # #( + $ $ ! ( % 6 C B>'? " % !D % ( C G % & = / ( # : B ( >'? ( D !" L <$ M # ( ( $ C B' /$ = " ( C G 1 , @&> !" B + VC !" B <$ C ( , # # % /( !" # =< , =< ( &' ( " # " ( F ) $ ( $ + = # & # < ( = # $ S G ( $ = $ &3 $ " = " & 35 $ ( ( ( 6 + ( B '# <' C % ( $ $ + /( & ' $ , : '$ 8 < '; >': ' W ' !" 7$ W > = $ '# + 8 > $ : 1@ !" ; < 38' : < >': + % ( F ( (5 &' ( ( ( ' ' !" = ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 55-61, jan.-abr. 2008 W W 59 <9 : '# !" 9 W 0 < 9( ' : 9 !D * >= $ ( !" > W < 9>': 9 > < 3' 9: 3 $ % !" < : 7$ ' ' !" 8 < = W 9 * ( W ' : = *( ! 01 '# W ; & / / % !" '$ % !D = I ' ' X= 9 $ = ( $ ' $ / / ( ) B' # C E + ;G 2 % ' !" $ ( /$ ( # 7 $ ; ( 7/ C B* ( " ( * ( ' = J $ C& ( 8 ( ( ( 8 6 9 !" 9 " # " C '(7 % ) #( ( $ ' !" % G @ / :B ( < : B' ( ( $ > = $ '# ( !D C BS & / ( ( " ( ( !D $ ( & $ ( ) ( ) ) > ( !D ( = /( !" , $ ( (5 + = ) = ( ( ( " ( ) = ( ) = $ $ & ( % > # & 9 &'+ , $ ( ( # ( ( ( ( % + $ , + &E ) $ + 4 ( = ( ( ( ( % & ' S* 9 ( ? &' #$ - YYYYY& / 3 60 & " ' E* [3 ' 3 '9 !" . '& 0 :3 , &N :Z 2 ) $ :S % ( &9 : 0PPP& & 3 38< 98*& E ( 1 / X 3 + (:KKVVV& ) .' , + & & S & & " 0& & " 0& ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 55-61, jan.-abr. 2008 9?' ' ' 9 !" ? !" > & $ ( , $ 3N.'89\'][3 ? 8E9' &> * *.N989 9 3 ' # " :? S9*N' * 3 S ' & `& $ $ > &9 :4 ( ' E3 > N9 ?3& &E . &0 1 <E % ' $ " & ^8E9E3 _ & & (& & 7 / & " > : 5 6& 0PP & !" : ' :N " 7 G& & 0& & & ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 55-61, jan.-abr. 2008 1 & : *E 7 2 G& 61 ASPECTOS DA FONOLOGIA SEGMENTAL MEHINÁKU (ARUÁK) Angel Corbera Mori Departamento de Lingüística-Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Caixa Postal 6045 - 13083-970 – Campinas - SP – Brasil. Abstract. In this paper we describe some aspects of the segmental phonology of Mehinaku, an indigenous language of the Aruak or Arawak family spoken in the Xingu National Park, Mato Grosso, Brazil. We analyze the distribution of the vowel and consonant phonemes, and, in contrast to Silva’s previous study (Silva, 1990), we do not classify [ ] and [ ] as separate phonemes and we classify [o] and [u] as realizations of the phoneme /u/. In addition, we assume that there are two affricates phonemes in Mehinaku, / / and / /. Keywords. Indigenous languages; arawak family; phonology; mehinaku language; Alto Xingu languages. Resumo. Este trabalho descreve alguns aspectos da fonologia segmental do Mehináku, uma língua indígena da família lingüística aruák ou arawák, falada no parque indígena do Xingu, no estado do Mato Grosso. É apresentada a distribuição dos fonemas vocálicos e consonantais da língua. À diferença de um trabalho anterior (Silva, 1990), neste trabalho assume-se que as fricativas [ ] e [ ] são variações fonéticas do fonema fricativo / /, assim como os fones [o] e [u] são tratados como variações do fonema vocálico /u/. Considera-se também que há dois fonemas africados em Mehináku, / / e / /. Palavras-Chave. Línguas indígenas; família arawák; fonologia; língua mehináku; línguas do Alto Xingu. 0. Introdução O Mehináku é uma língua indígena da família aruák ou arawák, falada por aproximadamente 250 pessoas que habitam a região do rio Kurisevo, no Parque Indígena do Alto Xingu, Mato Grosso, Brasil. A população distribui-se em duas aldeias, Uyaipiyuku, conduzida pelo cacique Yumui Mehináku, e Utawana, dirigida pelo cacique Yahati Mehináku. No presente trabalho apresenta-se um avanço preliminar dos resultados obtidos na análise da fonologia segmental dessa língua, considerando o inventário dos fonemas vocálicos e consonantais. Logo depois, incluem-se uma breve descrição do padrão silábico, os processos morfofonêmicos de palatalização dos segmentos oclusivos /p/, /k/, nasais /m/, /n/ e a africação de /t/ em / /, demonstra-se que esses processos ocorrem em fronteira de morfemas.Uma seção final trata da nasalidade das vogais. Levanta-se a ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008 63 hipótese que não há vogais nasais em Mehináku, ao contrário do que tinha sugerido, inicialmente, Silva (1990). 1. Fonologia Esta seção trata da organização básica do sistema fonológico, com exemplos de dados que mostram os segmentos postulados como fonemas da língua. 1.1. Consoantes Há treze fonemas consonantais que contrastam em sete pontos de articulação. A distinção entre as oclusivas se dá nos pontos bilabial /p/, alveolar /t/ e velar /k/. As africadas, nos pontos alveolar / / e pós-alveolar / /, as fricativas nos pontos retroflexo/ / e glotal /h/. As nasais nos pontos bilabial /m/ e alveolar /n/. Já as líquidas opõem-se pelos modos lateral /l/ e tepe / /, respectivamente. As aproximantes, por sua vez, diferenciam-se pelos pontos bilabial /w/ e palatal /j/. A tabela (1) mostra o inventário das consoantes em consonância com os pontos e modos de articulação. Plosiva Africada Bilabial p Alveolar Pós-alveolar t Retroflexa Palatal Velar Glotal k Fricativa Nasal Lateral Tepe h m n l Aproximante w Tabela 1. j 1.1.1. Contraste das consoantes Os dados de (1) a (15) mostram as ocorrências das consoantes interpretadas como fonemas. Elas são apresentadas em pares de palavras com base na sua aproximação articulatória, tratando de evidenciar seu comportamento funcional na língua. (1) (2) (3) 64 /p/ pa pa ‘pai’ /m/ ma ma ‘mãe’ pa lawa ‘órfã’ mapa palu ‘borboleta’ e pula ‘verde’ temu kai ‘poeira’ /p/ pa:ka ‘cará’ /w/ wa kala ‘jaburu’, ‘garça’ p hk ‘assado de mutum’ w kh ‘copaíba’ na pi ‘osso (não possuído)’ ti wi ‘cabeça (não possuído)’ ‘anta’ /w/ i- tewe ‘dente dele’ /m/ teme ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008 (4) (5) (6) (7) (8) (9) (10) (11) mapa ‘mel’ kam ‘sol’ ala mai ‘cipó’ ja wai ‘machado’ /t/ ata ‘árvore’ /n/ ana ‘pilão’ tulu i ‘orelha (não possuído)’ nu- na:p ‘minhas costas’ t n u ‘mulher’ n ‘irmã da mãe’ /t/ wa papa w ‘mergulhão’ ‘afiado’ u // kuju ti ‘testículos (não possuído)’ ki i ‘nariz ’( não possuído) atu ‘avô’ a ui ‘arroz’ natau ki ‘azarado’ a au kumã ‘frango’ /n/ // wa nãi ‘braço (não possuído)’ heki a i ‘testa (não possuído)’ enu na:ku ‘céu’ jami uka ‘relâmpago’ auki i ‘narigudo’ ni ai ‘ovos’ /l/ // wa hulu ‘mão esquerda’ n-i u ta u ‘minha filha’ wajala pi ‘veias (não possuído)’ n-ata tãi a ‘minha frutinha’ wa:lu ‘caramujo’ we u já ‘amarelo’ /l/ leke pe ‘rede de pescar’ /n/ ne tei ‘piolho (não possuído)’ i kipiu lulu ‘besouro’ ja nunu ‘irmão mais velho’ kula t ‘sabiá’ ma na ‘peneira’ /m/ ma pi ‘pele (não possuído)’ /n/ na pi ‘osso (não possuído)’ ata mai ‘embira’ uwala nai ‘isca’ kam ‘sol’ un ‘chuva’ /t/ / / temu kai ‘poeira’ etu i ‘joelho (não possuído)’ a tat ‘galho’ a waka ‘ontem’ ti wi ‘cabeça (não possuído)’ enu i a ‘trovão’ /t/ / / pu ti ‘perna (não possuído)’ a tsi ‘avó’ wa: tipi ‘colar de tucum’ au i i ‘bonito’ ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008 65 a tai (12) ‘febre’ / / i u ti ‘cu (não possuído)’ i ula ‘martim-pescador i i ap ‘está costurando’ mai ki i ‘grão de milho’ ‘joelho (não possuído)’ i tsei ‘fogo’ // /h/ he et (14) ‘amendoim’ he he ‘beijuzeira’ a kalu ‘piranha preta’ h kumã ‘peixe estragado’ a kalu ‘papagaio (esp.)’ hauka ‘bebê’ // / / ai u au u'la (15) ‘semelhante’ / / etu i (13) i a ku ‘sangue (não possuído)’ ki a pai ‘pé (não possuído)’ ‘papagaio (esp.)’ i tsau ta:ku ‘lugar de palmeiras’ ‘lagartixa’ uku jalu // ‘mulher grávida’ / / a kalu ‘papagaio (esp.)’ ute na t a a waka ‘ontem’ ‘mosquito’ i una ‘timbó’ ‘eles/as’ he i' a ‘velho’ 1.1.2. As aproximantes /w/ e /j/ O padrão silábico da língua é (C)V, ao ocorrer uma consoante no Ataque da sílaba, ela deverá ser simples, ou seja, não há grupos consonantais na posição de Ataque, nem ocorrência de consoantes na posição de Coda. Assim sendo, os segmentos [w] e [j] podem ser analisados como fonemas consonantais que ocupam as posições de Ataque no padrão silábico, tanto em posição inicial da palavra como no interior dela, como se vê nos dados de (16) (16) /w/ wa tuku ‘borduna’ /j/ japa ‘paca’ ti wi ‘cabeça (não possuído)’ a jupe ‘algodão’ we e: e ‘perereca’ je e ti ‘nádegas (não possuído)’ nu-w ‘minha mão’ kuju wi ‘jacu’ ku Uma evidência a favor dessa interpretação encontra-se na morfologia da língua. Especificamente, em construções de possessão nominal, os marcadores de primeira e segunda pessoas ocorrem com o padrão silábico CV- quando a base nominal começa com consoante, e apenas como C-, quando essas bases se iniciam com vogal. Paralelamente, os nomes que começam com /w/ ou com /j/ no início da palavra, em construções de possessão, são interpretados como consoantes pelos falantes, como se pode ver comparando os exemplos em (17a) e (17b). (17) 66 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008 a) b) pa lata ‘pente’ e tene ‘remo’ nu-pala ta ‘meu pente’ n-e tene ‘meu remo’ pi-p ula ta ‘teu pente’ p-e tene ‘teu remo’ w ku- i ‘mão’ juhiamepe- i ‘sobrancelha’ nu-w ku ‘minha mão’ nu-juhia mepe ‘minha sobrancelha’ pu-w ku ‘tua mão’ ‘tua sobrancelha’ pu-juhia mepe 1.2. Vogais Foram identificadas cinco vogais orais como fonemas. Elas são apresentadas na tabela (2) de acordo com a posição mais alta da língua em sentido horizontal (Anterior, Central, Posterior) e na direção vertical para indicar a abertura das mesmas (Fechadas, Média Fechadas, Aberta). Embora se encontrem também vogais foneticamente nasalizadas, elas são interpretadas como o resultado do espalhamento do traço nasal de uma consoante nasal sem ponto de articulação, pois essa consoante não estaria sendo licenciada para ocupar a posição da Coda dentro do Padrão Silábico da língua. Nesse sentido, assume-se que em Mehináku existem fonologicamente apenas cinco vogais orais e suas correspondentes nasalizadas são derivadas via espalhamento do traço da consoante nasal. Essa interpretação se diferencia daquela assumida por Silva (1990), que reconhece cinco vogais orais e cinco nasais como fonemas, a saber: /i, e, u, o, a/ vs. / , , , ã/, respectivamente. Anterior i Fechada Média Fechada Aberta Tabela 2. Central Posterior u e a Da mesma forma como foram apresentados os dados para mostrar a ocorrências das consoantes, segue-se o mesmo padrão de correlação de pares de palavras para evidenciar o rendimento funcional das vogais, como se mostra nos exemplos de (18) a (22). (18) (19) /i/ upi ‘pato’ /e/ jupe ‘tamanduá’ imi ‘óleo de pequi’ emu ‘beiju torrado’ ti wi ‘cabeça (não possuído)’ te wei ‘dente (não possuído)’ /i/ i nipiu (20) // ‘rabo’ en a ‘homem’ e pi ‘banco’ kama lup ‘panela’ i a ‘canoa’ /u/ e u ai ‘sangue (não possuído)’ // ‘cigarra’ ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008 ke ‘lua’ 67 (21) (22) uhu ‘batata’ hu ‘sal’ hu luki ‘moitará’ h ka ‘fumo’ /e/ // e tene ‘remo’ t u tapa ‘arara’ tutu me ‘bico de jaca’ kam ‘sol’ nu- me ‘meu marido’ wene m ‘lago’ /a/ // ka ti ‘perna (não possuído)’ k hu ‘faca’ ata ‘árvore’ t ‘caroço’ wa a jute ‘feijão’ w :pu ‘sonolento’ 2. Estrutura silábica. O padrão silábico em Mehináku é (C)V, ou seja, o núcleo silábico é preenchido obrigatoriamente por uma vogal. Além disso, esse vogal pode ou não estar acompanhada por uma consoante em Ataque, porém a Coda da sílaba ficará sempre vazia. O Ataque da sílaba, em posição inicial absoluta e interna à palavra, é coberto pelas consoantes oclusivas /p, t, k/, as africadas e fricativas / , , , h/, as nasais /m, n/, a lateral /l/ e as aproximantes /w, j/. O tepe / / apenas ocorre no Ataque da sílaba interna da palavra, mas não em Ataque da sílaba inicial absoluta de palavra. Em (23) exemplos dos tipos de sílaba. (23) a.ta V. CV ‘árvore’ u.a.p .h V.V. CV.CV ‘urubus’ e. te.ne V.CV.CV ‘remo’ ni. e.tu CV.CV.CV ‘meu joelho’ m . a. ki CV.CV.CV ‘calor do sol’ wa.ja.la. pi CV.CV.CV.CV. ‘veias’ u.i V.V ‘cobra’ 2.1. As seqüências CV e V$C no padrão silábico Na seqüência fonotática CV as consoantes /p/, /t/, /k/, / /, / /, /m/, /n/, /h/ e /j/ podem ser seguidas por qualquer das cinco vogais /i, , u, e, a/. Já as consoantes / /, /l/, / / e /w/ não foram encontradas nas combinações: * i, *l , * e,* e *wu. Da mesma forma, na combinação heterossilábica V$C as consoantes /p/, /t/, /k/, /m/,/n/, / /, /h/, /l/, / / e /w/ podem ser precedidas pelas vogais /i, , u, e, a/. Contudo, não foram encontradas as seqüências: * $ , * $ , *e$ e * $j. 2.2. As seqüências vocálicas 68 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008 Seqüências de duas vogais são poucas, reduzindo-se tão só aos casos de: ai, ei, eu, ue, ie, au, u, iu, ia, como se vê nos seguintes dados: (24) /ai/ maiki ‘milho’ /ei/ i ei ‘fogo’ /au/ u au ‘papagaio’ /eu/ neu'ne ‘pessoa’ / u/ hu ‘sal’ /iu/ nete piu t ‘clavícula’ /ie/ i pieh ‘capivara’ /ia/ ulu kialu ‘andorinha’ /ue/ pi ue leke ‘rápido!’ Numa primeira aproximação, seria fatível assumir que essas seqüências de vogais representam ditongos. Assim, elas ficariam sob o domínio de um único núcleo contendo duas unidades temporais. Embora essa interpretação seja plausível, ela viola o padrão estrutural $(C)V$ da língua, pois se estaria criando, sem motivo, sílabas do tipo $VV$. A outra alternativa, também plausível, seria tratar o grupo dessas vogais como núcleos dissilábicos, sem o Ataque preenchido. Uma evidência para optar por essa segunda alternativa é encontrada em outro conjunto de dados, contendo as mesmas seqüências. Nesse conjunto, a intensidade fica às vezes na primeira vogal da seqüência e em outras na segunda vogal à direita, sendo silabado pelo falante como emissões dissilábicas, como se pode ver a seguir. (25) a. pi.a ‘queixada’ i. a. i.ku ‘semelhante’ e. tu.i ‘joelho’ t .pu.lu. i ‘calcanhar’ wa. u. a ‘Waurá’ u.a ‘urubu’ u.i ‘cobra’ ju.hi.a.me.pe. i ‘sobrancelha’ a.ta. u. a ‘nome próprio’ pi. u.e.'le.ke ‘rápido!’ 3. Processos morfofonêmicos Um processo morfofonêmico que ocorre no Mehináku é a palatização das consoantes oclusivas /p, k /, as nasais /m, n/ e a aproximante /w/. Outro processo se relaciona com a africação da obstruinte coronal /t/. Esses dois processos se dão quando ditos segmentos ocupam o Ataque em posição inicial da palavra, sendo precedidos pelo prefixo marcador de segunda pessoa cuja estrutura CV contém a vogal coronal /i/. 3.1. Palatalização de oclusivas A palatalização das consoantes /p/ e /k/ pode-se ver nos seguintes exemplos. (26) a) pa lata ‘pente’ nu-pala ta b) kana ti ‘boca’ ‘meu pente’ nu-ka nat ‘minha boca’ pi-p ula ta ‘teu pente’ pi- a nat ‘tua boca’ ji-p ula ta ‘pente de vocês’ i- a nat ‘boca de vocês’ Como se observa as consoantes /p/ e /k/ ocorreram palatalizadas ao serem precedidas pela vogal/i/, núcleo do padrão CV dos prefixos de segunda pessoa. Pelos dados encontrados, poderia assumir-se que em todos os casos onde se apresenta a ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008 69 palatalização dessas consoantes elas estão precedidas pela vogal /i/, como parece evidenciar os seguintes dados. (27) i piuluku mã ‘abelha’ ukuki pia i piana ‘feitiço’ ‘pacu grande’ i pieh ‘capivara’ ikipiu lula ‘iguana’ mi piama ‘dois Contudo, dados como aqueles em (28), a seguir, evidenciam uma palatalização sem terem uma vogal /i/ precedente. Se for correta essa observação, então, é possível assumir que palavras como as da lista (27) contêm uma vogal /i/ subjacente. (28) piunaku i ‘garganta’ piu luma ‘piranha’ pia latu ‘caranguejo’ Por outro lado, a obstruinte /k/ não se palatiza se a sílaba CV inicial da palavra contiver como núcleo a coronal /i/, como se mostra nos seguintes exemplos. (29) a) ki i ‘nariz’ nu- ki i b) ki a pai ‘pé’ ‘meu nariz’ ni-ki apa ‘meu pé’ pi- ki i ‘teu nariz’ pi-ki apa ‘teu pé’ i- ki i ‘nariz de vocês’ ji-ki apa ‘pés de vocês’ 3.2. Palatalização das nasais /m, n/ e da aproximante /w/ Como foi dito, essas consoantes também sofrem o processo de palatalização quando funcionam como ataques da sílaba inicial da palavra e sendo precedidos pelo prefixo de pessoa, cuja estrutura CV inclui a vogal palatal /i/, como evidenciam os seguintes dados. (30) nu-ma t u ‘minha sogra’ pi-m a t u ‘tua sogra’ nu- nete ‘meu piolho’ pi- ete ‘teu piolho’ nu- wana ‘meu braço’ pi- jana ‘teu braço’ a-ma t u ‘nossa sogra’ i-m a t u ‘sogra de vocês’ nete ‘nosso piolho’ i-' ete ‘piolho de vocês’ a-'wana ‘nosso braço’ ji- jana ‘braço de vocês’ 3.3. Africação de /t/ Outro processo bastante produtivo no Mehináku relaciona-se com a africação da obstruinte /t/. Ela é afetada, igualmente, no mesmo contexto mencionado para os segmentos citados anteriormente. (31) a) te wei ‘dente’ b) ti wi ‘cabeça’ nu- tewe ‘meu dente’ nu- t u pi- ewe ‘teu dente’ pi- u ‘tua cabeça’ ji- ewe ‘dente de vocês’ ji- u ‘cabeça de vocês’ ‘minha cabeça’ Aqui também se poderia argumentar que a modificação de /t/ para / / independe da fronteira morfêmica, como parecem corroborar os seguintes dados. (32) 70 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008 i tsei ‘fogo’ itsa ‘canoa’ i ula ‘martim-pescador’ i i ‘pênis’ wi ei ‘lagarta’ ki a lai i ‘forte’ Nesse conjunto de dados, todas as ocorrências são palavras sem fronteira morfológica. Daí se concluiria que toda vez que uma vogal /i/ precede o segmento oclusivo, ele torna-se / /. Contudo, nos dados de (11, p. 3), viu-se que os segmentos /t/ e / / funcionam como fonemas diferentes. Além disso, nos dados elicitados até o presente encontrou-se palavras com a vogal /i/ precedendo /t/, sem apresentar o processo de africação. Conclui-se, então, que a presença de / / em dados como os de (32) representa um fonema subjacente, não sendo, portanto, a realização morfofonêmica de /t/. 4. As vogais e o traço nasal Como ocorre no Waurá, outra língua arawák, falada no parque indígena do Xingu, em Mehináku também se encontra a nasalidade de vogais, como mostram os seguintes exemplos. (33) a kai ‘pequi’ apapa' jei ‘bichos’ auna ki ‘história’ e' u ‘cigarra’ tu lui ‘orelha’ ki jeiki ‘escorregadio’ nu'hu ‘mamilo’ 'k h ‘facão’ at p 'ku ‘curto’ ipu' ulu ‘namorada dele’ Como o padrão silábico do Mehináku é (C)V, sem consoantes na Coda, não há consoantes nasais nessa posição. Sendo assim, não haveria problema em supor que na Coda da sílaba está presente um segmento nasal subjacente sem ponto de articulação [N]. Como essa consoante não é licenciada foneticamente por seu núcleo, a única maneira de aparecer é espalhar seu traço nasal sobre a vogal correspondente. Fundamenta-se essa hipótese pelo fato que não há licenciamento da Coda nessa língua 4.1. Domínio da nasalidade Os elementos alvos da nasalidade são as vogais. Ela não apenas se projeta sobre uma vogal, mas também se espalha por uma seqüência de vogais até encontrar um segmento opaco que seja fronteira à propagação da nasalidade. Operam como segmentos opacos as consoantes oclusivas /p, t, k/, as africadas / , /, a fricativa / /, as nasais /m, n/ e as líquidas /l, /. As aproximantes /w, j/ e a fricativa /h/, ao contrário, são transparentes ao espalhamento. A direção do processo é da direita para a esquerda, primeiramente afeta a vogal que se localiza mais a direita da palavra. A partir dessa vogal, a nasalidade se propaga para as outras vogais localizadas à esquerda da vogal alvo da nasalidade. Os seguintes exemplos mostram o processo correspondente. (34) nu taiN [nu'tai] nu pijuN [nu'pi ‘meu filho’ ] m h aN [m h ' a] ' uNte ‘meu pescoço’ a haN [ ' ute] ‘mosquito’ [ ahá ] ‘ele/a’ ‘vermelho’ t 'n u nauN [t 'n u'nau] ‘mulheres’ ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008 71 kaju'malaN [kaju'mala] ‘verdade’ wajuN ['waju] a kaiNpiehe [a'kai'p ehe] ‘caldo de pequi’ i wiN i ‘chocoalho’ [ iwi i] ‘coração’ Finalmente, a aproximante palatal /j/ ao ser afetada pelo espalhamento da nasalidade pode realizar-se opcionalmente como a nasal palatal [ ], como se mostra a seguir. (35) ka kãjã ka ka a ‘gaivota’ ketu laja ketu la a ‘pelota’ hekuja wiku heku a wiku ‘antigamente’ kana uja kana u a ‘cana’ 5. Conclusões Foi apresentada uma análise preliminar da fonologia do Mehináku focalizando a distribuição dos fonemas consonantais e vocálicos, a estrutura silábica, alguns processos morfonêmicos, como a palatalização das consoantes oclusivas /p, k/, das nasais /m, n/ e da aproximante /w/, e a africação do segmento coronal /t/. Além disso, levantou-se a hipótese que não se justifica a distinção entre vogais orais e vogais nasais. Estas últimas seriam o resultado da absorção do traço nasal de uma soante nasal debucalizada que se projeta sobre uma vogal ou por uma série de segmentos que permitem o espalhamento da nasalidade. Estudos mais aprofundados sobre a fonologia da língua poderão corroborar ou refutar essa hipótese. No trabalho não foi discutido o comportamento do acento de intensidade, o alongamento de vogais e nasalização das vogais em contato com as consoantes nasais. Esses temas ainda precisam ser abordados com maior sistematicidade. Referências GREGOR, Thomas. Mehinaku. The Drama of Daily Life in a Brazilian Indian Village. Chicago: Chicago University Press, 1977 JACKSON, E.; RICHARDS, J. Waurá tentative phonemics statement. Arquivo Lingüístico 104. Brasília, DF: SIL, 1996. PIGGOTT, G.L. Variability in feature dependency: the case of nasality. Natural Language and Linguistic Theory n.10, p. 33-77. 1992. SILVA, Teresa Cristina de Souza. Estudo preliminar da fonologia da língua mehináku. 1990. 49 f. (Dissertação de Mestrado em Lingüística). Departamento de Lingüística, Línguas Clássicas e Vernácula, UnB, Brasília. VELLEMAN, Shelley L. Making phonology functional. What Do I do first? Woburn, Ma.: Butterworth-Heinemann, 1998. 72 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 63-72, jan.-abr. 2008 Elaboração de um Dicionário Bilíngüe Tapajúna – Português Nayara da Silva Camargo nayssofia@yahoo.com.br nayssofia@gmail.com Instituto de Estudos da linguagem (IEL) – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – Barão Geraldo - Campinas, São Paulo, BrasilCep 13083-970 Abstract: Tapajuna Language can be considered at an endangered language due to 2 main reasons: (1) the low number of speakers and (2) to the fact that the language is being spoken in a place where there is a major language, which is genectty related to it the goal as this study is to develope a study that will help the description of the language. Inorder to do this, we elaborated and prepared material containing terms flora and fauna from tapajúna language. The chice of moking this type of material turns possible the production of descriptive study on phonetics, phonology, morphology, sintaxe, semantics, amorg other aspects. Keywords: tapajúna; dictionary; flora; fauna RESUMO: A língua Tapajúna pode ser considerada uma línguas em perigo de extinção devido a dois principais motivos: o baixo número de falantes e a língua está sendo falada em um local onde há uma língua majoritária e a ela geneticamente relacionada. O objetivo do trabalho em questão é realizar estudos para a descrição da língua. Para isso foi iniciada a elaboração de um banco de dados com termos relacionados à fauna e a flora da língua do Tapajúna esse trabalho é importante, pois, além de documentar a língua, possibilita a realização de estudos descritivos sobre fonética, fonologia, morfologia, sintaxe,semânticos, dentre outros aspectos. 1. Introdução: línguas indígenas; tapajúna; dicionário; fauna; flora Os tapajúna-goronã habitam a aldeia Metyktyre (situada ao Norte do Estado do Mato Grosso), juntamente com os Mebengôkrê (mais conhecidos como Kayapó), em uma região fronteiriça com o Estado do Pará. A língua tapajúna-goronã é classificada como pertencente à família Jê, a qual faz parte do agrupamento lingüístico Macro-Jê e, atualmente, é falada apenas na aldeia dos Metyktyre pelos índios tapajúna que são, aproximadamente, apenas quarenta falantes1 . A língua se encontra em uma situação de atrito lingüístico, ou seja, é falada em um espaço onde já existe uma língua majoritária, o mebengôkrê (kayapó), como essas são línguas geneticamente assemelhadas e estruturalmente parecidas (pois fazem parte da mesma família lingüística), o mebengôkrê influencia, diretamente, os falantes da língua tapajúna, esses, por sua vez, ou sabem falar as duas línguas ou compreendem o mebengôkrê. Além disso, observa-se também a presença da língua portuguesa, pois os professores indígenas saem para estudar fora e têm o contato direto com um ambiente em que prioritariamente é falada a nossa língua materna. Por estes motivos a língua ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008 73 tapajúna é uma das línguas indígenas da Amazônia que se encontra em perigo de extinção. Existem alguns estudos esparsos sobre o tapajúna-goronã como o de Santos (1994), em que se verifica um breve estudo da fonologia da língua e o de Seki (1988), que apresenta um estudo diacrônico comparando dados da língua tapajúna com dados do suyá aos do Proto Jê, reconstruídos por Davis (1966). Além de relatos históricos realizados por missionários em meados de 1967. Outros estudos existentes são: o artigo de PEREIRA, publicado na revista de antropologia entre 1967 e 1968, estudos realizados por BOSSI (1863) que dizem respeito às tribos que se encontram no Mato Grosso, SEGER (1980) realizou estudos sobre as sociedades tribais brasileiras, entre outros estudos de cunho antropológico. 2. Corpus e metodologia utilizada para a confecção do dicionário: O conjunto de dados de que disponho, foram coletados por FERREIRA2 em momentos distintos de seu trabalho de pesquisa de campo com falantes da língua tapajúna-goronã. Tive a oportunidade de participar da sua última viagem a campo em julho de 2005, a qual foi importante para o andamento da pesquisa com a língua. Além dos dados coletados pela orientadora do projeto fiz pesquisas bibliográficas sobre teorias básicas de lingüística, assuntos referentes ao estudo do léxico de línguas naturais, estudos sobre a estruturação de dicionários, estudos realizados sobre a montagem de banco de dados, entre outros. A metodologia utilizada na elaboração do dicionário inicia com aquela utilizada nos trabalhos de descrição lingüística: (i) a pesquisa de campo, que inclui viagens ao local onde a língua é falada, momento em que se realiza a coleta de dados, base para o trabalho; (ii) a análise do material obtido nessa coleta – sua organização e comparação com outras línguas do tronco, utilizando-se os trabalhos existentes como os de Santos (1994), Seki (1988), os dados de FERREIRA (2003-2005). Após este momento iniciouse a inserção do material já transcrito e analisado no programa computacional Toolbox, o qual é, atualmente, utilizado por vários lingüistas para a organização dos dados de sua pesquisa. 3. Considerações sobre lexicologia e lexicografia No que tange a conceitualização da lexicologia e da lexicografia, vê-se o confronto de alguns lingüistas ao tentar definir as mesmas. Em sua tese Ferreira3 (2005) cita as afirmações de Zgusta (1971), nas quais o autor afirma que a lexicografia é uma esfera muito difícil da atividade lingüística, pois, além da estrutura da língua o lexicógrafo deve considerar a cultura da respectiva comunidade lingüística em todos os seus aspectos, Ferreira (2005) afirma que dessa forma a lexicografia é conectada a todas as disciplinas que estudam o sistema lexical como, por exemplo, a semântica e a lexicologia. De acordo com Dapena4 (2002) alguns estudiosos afirmam que a lexicologia e a lexicografia são como as “faces de uma moeda”, nas quais suas diferenças corresponderiam às suas extensões e a uma diversidade de pontos de vista. Porém, outros afirmam que a Lexicologia e a Lexicografia utilizam-se de objetos completamente distintos. Ao relacionarmos essas duas disciplinas tomaremos como base a definição de Dapena (2002), que, comparando estas com outros pares de ciências, como por exemplo, a Geografia-Geologia, Cosmografia-Cosmologia, Etnografia- Etnologia, etc, afirma que elas 74 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008 aparentam obter a mesma identidade em relação ao seu objeto de estudo. Neste caso a lexicografia viria a ser, literalmente, ‘a descrição do léxico’, frente à lexicologia, que, por outro lado, representaria ‘o tratado do léxico’. Ambas as disciplinas teriam posse de um objeto comum, o ‘léxico’, porém com enfoques e perspectivas diferenciadas. Seguindo precisamente esta linha de pensamento, Matoré5 (1953) busca a distinção de lexicografia e lexicologia de um ponto de vista analítico para a primeira, frente ao sincretismo da segunda. Para ele, a lexicografia estuda o vocabulário, palavra por palavra, enquanto a lexicologia preocupa-se com os princípios e leis gerais que regem o vocabulário. Sendo assim, a lexicografia tem um caráter concreto e particular, ao passo que a lexicologia é responsável por um caráter abstrato e geral. Ambas estudam o léxico, porém em níveis diferentes. De acordo com R.Werner (apud, DAPENA 2002), a lexicografia, juntamente, com a lexicologia serão descrições do léxico de um sistema lingüístico individual ou coletivo, porém, a primeira se ocuparia das unidades lexicais individuais ou concretas, isto é, sem fazer referência ao paradigma do qual elas fazem parte. Enquanto, a lexicologia estudaria as regularidades formais referentes ao significante e ao significado, constando de parte claramente diferenciadas: morfologia léxica e a semântica léxica, as quais fazem parte deste plano. Ainda seguindo a esta mesma idéia temos os lingüistas, A. Mel’c◊uk, A. Clas e A. Polguère6, os quais defendem a hipótese de que a lexicologia e a lexicografia estão no mesmo patamar que a física e a engenharia, pois, caracterizam-se, por apresentarem um conhecimento científico frente à aplicação do mesmo, articulando-se cada uma em seu espaço e em seu momento de aplicação de seus objetivos, tendo na lexicologia sua base teórica e na lexicografia sua parte prática ou experimental. Com este pensamento, o resultado da lexicologia seria um dicionário de ‘caráter abstrato’, ideal, ao passo que o dicionário de cunho lexicográfico corresponderia a uma ‘obra concreta tradicional’7. Com isso, podemos afirmar que para estes últimos estudiosos a lexicografia, igualmente à antiga gramática, viria a ser a “arte”, frente à lexicologia, que de acordo com a gramática moderna, representaria uma autêntica disciplina científica. Levarei em consideração a idéia de que a lexicologia seria a disciplina responsável pelo estudo do léxico de uma maneira geral e abstrata, uma autêntica disciplina científica, enquanto a lexicografia seria a disciplina responsável pela confecção de dicionários, a qual se preocupa com estudo lexical mais particular e concreto, e com a arte de confecção dos mesmos. 4. Tipologias e classificações dos dicionários De acordo com Landau (apud Ferreira 2005), os dicionários são diferenciados por três categorias: variedades, perspectivas e apresentação. Ela afirma que a variedade de um dicionário seria o ‘tamanho’ e o escopo de tal obra (trata-se de cobrir ou não todo o léxico da língua). A categoria variedade é chamada pelo autor de “qualidade da densidade”. Quando temos um dicionário que abrange todo o léxico de uma língua se torna dificultoso saber sua variedade, já que é impossível conhecer sua extensão total. Porém, quando temos um léxico limitado a um trabalho específico, de parte do léxico da língua, como o dicionário da fauna e flora da língua tapajúna, por exemplo, se torna mais fácil estabelecer sua variedade. Um outro aspecto da variedade é o número de línguas envolvidas no trabalho lexicográfico: o dicionário pode ser monolíngüe, bilíngüe, trilíngüe ou multilingüe (os dicionários que compreendem mais de duas línguas são também denominados de plurilíngües). Um outro aspecto da variedade é sua extensão na concentração nos dados ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008 75 lexicais, ou seja, se ele tem caráter enciclopédico. Como os dicionários indígenas carregam muitas informações em torno de um lexema este pode apresentar características de obras enciclopédicas. A ‘perspectiva’ refere-se a como o lexicógrafo visualiza seu trabalho, se ele é diacrônico ou sincrônico; como ele organiza sua obra: se a mesma for organizada em ordem alfabética, por sons, ou por conceitos; se o nível é de tom destacado, de uma obra didática ou informal. A ‘apresentação’ refere-se ao modo como o material de uma dada perspectiva é apresentado, como são suas definições. Um exemplo que Ferreira cita é o dicionário monolíngüe o qual tende a ter uma definição mais ampla do que o bilíngüe. É neste momento também que se verifica como a obra será apresentada, se haverá ilustrações na mesma, etc. Um exemplo: é o dicionário bilíngüe tapajúna-português sobre a fauna e a flora, em que foi propícia a entrada de ilustrações por se tratar o tema de animais e plantas, por este motivo verificou-se a necessidade de se confeccionar um dicionário ilustrado, visto que as ilustrações facilitam o reconhecimento dos dados ali selecionados tornando a pesquisa mais proveitosa para o consultor. 5. Alguns exemplos sobre a compilação do léxico da língua tapajúna-goronã A macroestrutura corresponde à organização das palavras-entradas no dicionário. Na compilação do dicionário bilíngüe tapajúna-português, apresentamos uma seqüência de entradas que são unidades lexicais organizadas em ordem alfabética, segundo o alfabeto tapajúna, cuja ordem alfabética segue, basicamente, o mesmo padrão do português. As microestruturas, de acordo com Ferreira (2005), diz respeito às construções internas dos verbetes, neles são compilados o uso das entradas, do ponto de vista gramatical, semântico e pragmático. Os verbetes são constituídos das entradas seguidas de várias informações. As microestruturas dos verbetes no dicionário tapajúna-português estão inseridas em fichas no programa computacional toolbox. Essas fichas correspondem todas as informações que o produtor do dicionário queira expor sobre os verbetes. O toolbox é um programa computacional que auxilia lingüistas de campo e antropólogos em seus trabalhos de armazenamento de dados. Ele integra vários tipos de dados em seus arquivos além de selecioná-los e organizá-los. O programa trabalha com dados lexicais, culturais, gramaticais, etc. Ele oferece opções flexíveis para selecionar, classificar e indicar esses dados e é especialmente, utilizado, pelos lingüistas, para a construção de dicionários e para interlinearização de textos. Este programa apresenta múltiplas ferramentas em seus arquivos, como por exemplo, uma base de dados para itens lexicais e para a interlinearização dos textos. E, para a maioria dos lingüistas e antropólogos esse instrumento é muito útil em sua pesquisa, pois permite um armazenamento de dados de forma rápida e completa. A ficha presente no Toolbox é programada de acordo com a necessidade de cada banco de dados são as microestruturas lexicais de todos os verbetes. Estas são, mais claramente, as características ou informações dos itens lexicais inseridos no dicionário. As microestruturas que estão sendo utilizadas na elaboração do banco de dados para o dicionário tapajúna-português serão expostas abaixo. O dicionário tapajúna apresenta as seguintes microestruturas: Lexema (\lx): é utilizado para nomear a entrada do dicionário a língua vernacular, ou seja, a língua em que está sendo elaborado o dicionário; Homônimo (\hm) utilizado para quantificar o número de palavra que apresentam formas equivalentes, porém com significados diferentes; Forma fonética (\ph) nos informa a transcrição fonética das palavras que consta como entrada do 76 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008 respectivo dicionário; Glosa (n) (\gn) responsável pela denominação em português (visto que o dicionário é Tapajúna – Português), este marcador ilustrará a “tradução” do item da língua em questão para a língua portuguesa; Referência (\rf): este marcador nos informa a origem do lexema inserido no dicionário, ou seja, o nome do responsável pela coleta da palavra que foi inserida nos arquivos do programa; Morfologia (\mr): responsável pela morfologia do item lexical inserido no banco de dados; Picture (\pc) refere-se às imagens de animais e plantas cujos nomes foram inseridos no banco de dados, já que o dicionário refere-se a fauna e a flora da língua; Nota (\nt): este marcador está à disposição do produtor do banco para que ele possa relatar alguma informação à respeito do item por ele inserido. Por fim temos a Data (\dt) para informar o dia que o lexema foi inserido nos arquivos do programa. No momento da classificação das microestruturas do dicionário bilíngüe sobre a fauna e a flora tapajúna-português foram observados alguns casos de homonímia e polissemia que merecem destaque neste momento. De acordo com o dicionário de lingüística8, a polissemia é aquele item lexical que possui uma variedade de significações: “Termo usado na análise semântica para caracterizar um item lexical com uma variedade de significações diferentes, como manga = ‘parte da camisa’, ‘parte de um abajur’(...)”. Borba9 (2003) afirma que, tendo o signo, a característica de arbitrariedade, a polissemia explicaria a pluralidade de traços sêmicos presente no mesmo. Por esta razão, este signo pode expandir seu significado provocando sua pluralidade de significações. Podemos afirmar também que a polissemia é uma propriedade do item lexical, porém a polissemia é constituída de caráter discursivo, pois, para que a mesma se realize o contexto e a situação em que está inserida terão um papel crucial. Primeiramente, um item que pode ser um bom exemplo deste traço semântico seria em tapajúna a palavra ngô [Ngo], a qual originalmente refere-se à água, mas também, em outros contextos, a rio, líquido em geral. Não acontece diferente com os outros exemplos do léxico da língua que estão abaixo: (1) hwi))tôtôk = folha; folha de papel; caderno; dinheiro e cartolina (2) hwyka = terra; chão; piso e solo. (3) ika = ‘minha pele’ e ‘minha roupa’ O conceito de homonímia presente no dicionário de lingüística de Crystal (2000) afirma que a homonímia, de acordo com análises semânticas, indica o signo que possui a mesma forma fonética, porém representa significados distintos10: “Termo usado na análise semântica para indicar os itens lexicais com a mesma forma nas significações diferentes. A homonímia é ilustrada pelos muitos significados de bear, no inglês (= animal, carregar) ou de quarto, no português (local de dormir, numeral ordinal)(..)”. A ambigüidade entre homônimos citada no dicionário de Crystal (2000) diz respeito ao emprego de palavras dentro de um determinado contexto que possuem a mesma grafia, porém com significados distintos e isso possibilita o entendimento equivocado da situação – a ambigüidade dentro de um contexto – é um bom exemplo deste acontecimento. A homonímia, para o Borba (2003), assim como a polissemia, também pertence a uma unidade significativa do significante. Por não visar a relação dos itens lexicais com os ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008 77 campos semânticos semelhantes, esta os distinguiu, denominando cada item de acordo com seu significado, havendo assim, uma grande quantidade de itens lexicais dentro de um mesmo campo semântico, o que dificulta o trabalho do lexicógrafo no momento da confecção do dicionário. É neste momento que entra em voga a discussão da elaboração do dicionário, pois, agora, é propicio analisar o que seria mais prático e econômico para a sua produção. Quando um dicionarista resolve levar em consideração o conceito de homônimos em sua obra, cada novo significado constituirá um novo signo e cada um desses signos deverá constituir uma entrada independente no dicionário. E, conseqüentemente, a busca de acepções não seria horizontal e sim vertical o que prejudicaria a economia na organização da obra. Com isso encontra-se a solução na consideração dos itens lexicais polissêmicos, pois, quando as acepções particulares tiverem um traço semântico em comum, essas são apresentadas em seqüências numeradas dentro de uma mesma entrada no dicionário. Podemos exemplificar um caso de itens homônimos nos seguintes itens da língua tapajúna11: (4) hwàtxi = tamanduá-bandeira. (6) hwyka-khré = buraco-da-terra (5) hwàtxi = rei-congo. (7) hwyka-khré = cavar 6. Conclusão O trabalho de elaboração de um banco de dados da língua indígena tapajúna-goronã tem como objetivo principal a descrição e documentação da mesma, v isto que ela se encontra em meio das línguas indígenas brasileiras em perigo de extinção, pois, como já foi dito, a língua tapajúna hoje, apresenta apenas cerca de quarenta falantes12, além de se encontrar em meio ao fenômeno de atrito lingüístico. Por estes motivos, esse trabalho propõe uma continuidade no estudo sobre o léxico da língua tapajúna tendo como a finalidade principal dar continuidade na elaboração do dicionário tapajúna - português. Trabalhos desta ordem levam como principal objetivo a descrição e a documentação da língua, visto que a mesma necessita de estudos mais abrangentes, no que diz respeito à fonética-fonologia, morfologia, sintaxe, semântica e pragmática. A produção deste material poderá também subsidiar estudos histórico-comparativos e, principalmente, auxiliar a comunidade indígena na promoção do uso da língua, já que esta se encontra, atualmente, em situação de risco de extinção. 7. Anexo ANEXO alguns exemplos dos dados que somam, aproximadamente 350 itens da fauna e da flora presentes no dicionário bilíngüe Tapajúna-Português em seu formato preliminar A - a ajaptôtxi1 [ ] n. camarão. Trichodactylus fluviatilis. Ref: Ferreira, 2004. 27/Aug/2005. amdy1 [ ] n. marimbondo. Ref: Ferreira,2004. Bentuk lain: . 23/Aug/2005. amdyhô1 [ ] n. marimbondo-chapéu; marimbondo-vaqueiro. Ref: Ferreira, 2004. Morf: . 17/Oct/2005. amdytanetxi1 [ ] n. marimbondo-de-carne. Ref: Ferreira, 2004. 78 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008 17/Oct/2005. amdy-wêatêtxi1 (dari: [ ] n. marimbondo-tatu. ι) Ref: Ferreira, 2004. Morf: . [Cat: a casa do marimbondo é igual à casa do tatu] 17/Oct/2005. amgô1 [ ] n. lagarto-do-inajá. Ref: Ferreira,2004. 17/Oct/2005. amnôty1 [ ] n. tipo de maribondo. Ref: Ferreira, 2005 17/Oct/2005. amàrà1 [ ] n. piranha pequena. Ref: Ferreira, 2004. Morf: 18/Oct/2005. amtô1 [ ] n. rato. Rattus norvegicus. Ref: Ferreira,2004. 23/Aug/2005. amàtakakôjangôrô1 [ ] n. piranhazinha. Ref: Ferreira; 2004. 18/Oct/2005. amtômy1 [ ] n. parece esquilo. Ref: Ferreira, 2005 19/Sep/2005. amàtìrera1 [ ] n. piranha menor que a pequena. Ref: Ferreira, 2004. 18/Oct/2005. amtôtxi1 [ ] n. coelho. Cavea aperea (Erxleben). Ref: Ferreira, 2004. 23/Aug/2005. amàtytxi1 [ ] piranha-preta. Serrasalmus rhombeus. Ref: Ferreira, 2004. 05/Oct/2005. anghrê1 [ ] n. jaratataca (tipo de tatu muito pequeno); tatu bola. Tolypeutes tricinctus. Ref: Ferreira,2004. 23/Aug/2005. anghrô1 [ ] n. porco-queixada. Tayassu albirostris (Illiger), Tayassu pecari. Ref: Ferreira, 2004. Morf: . 05/Oct/2005. . athoro1 [ ] n. sururina. Crypturellus soui. Ref: Ferreira,2004. Morf: 23/Sep/2005. D - d dzujtamytôtjaka1 [ Ref: Ferreira, 2005. Morf: ] n. asa-de-sabre. Campylopterus largipennis. . 23/Sep/2005. G - g gâgârâtxi1 [ ] n. Ref: Ferreira,2005. Morf: . 18/Oct/2005. H - h hôhô1 [ ] n. coruja-do-campo. Speotyto cunicularia (Molina). Ref: Ferreira,2004. 05/Oct/2005. hõhõ1 [ ] n. socó. Ref: Ferreira, 2005 17/Oct/2005. hotxi1 [ ] n. taquara. Ref: Ferreira, 2004 17/Oct/2005. hõrõtxi1 [ ] n. coco; coqueiro. Ref: Ferreira, 2005. 19/Sep/ H - h hôhô1 [ ] n. coruja-do-campo. Speotyto cunicularia (Molina). Ref: Ferreira,2004. 05/Oct/2005. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008 79 hõhõ1 [ ] n. socó. Ref: Ferreira, 2005 17/Oct/2005. hotxi1 [ ] n. taquara. Ref: Ferreira, 2004 17/Oct/2005. hõrõtxi1 [ ] n. coco; coqueiro. Ref: Ferreira, 2005. 19/Sep/2005. hurugatutxi1 [ ] n. gralha can-can (pássaro preto). Cyanocorax cyanopogon(Wied). Ref: Ferreira,2004. 26/Sep/2005. hutu1 [ ] n. maruim (pium). Culicoides(Latnielle). Ref: Ferreira,2004. 17/Oct/2005. hututxi1 [ ] n. mutuca. Tabanidae. Ref: Ferreira,2004. 17/Oct/2005. hwa1 [ ] n. galho. Ref: Ferreira, 2005 war wa hwìhwa kwã eu quebrei o galho da árvore 17/Oct/2005. hwiritxi1 [ ] n. pacu grande. Ref: Ferreira,2004. [Cat: igual à uma piranha] 19/Sep/2005. hwàkutàtxi1 [ηωΑκυτΑτΣι] n. tamanduá de cheiro forte (gambá). Cyclopes ditactylus (Linnaeus). Ref: Ferreira,2004. Morf: . 17/Oct/2005. hwìnì1 [ ! !] n. piqui. Ref: Ferreira, 2005. 19/Sep/2005. hwìrã1 [ ! )] n. flor. Ref: Ferreira,2003. 17/Oct/2005. hwàt1 [ "] n. preguiça de dois dedos. Choloepus ditactylus (Linnaeus). Ref: Ferreira,2004. Morf: ". " Bentuk lain: wát. 05/Oct/2005. hwàtkatàk-txi1 (dari: " ] n. preguiça de três dedos # # $) [ (macaco-preguiça). Bradypus tridactylus (Linnaeus). Ref: Ferreira,2004. Bentuk lain: wuàt gaykti - wátkatáktxi. 19/Sep/2005. hwàtxi1 [ ] n. tamanduá-bandeira. Myrmecophaga tridactyla (Linnaeus). Ref: Ferreira,2004. Bentuk lain: wátxi. 17/Aug/2005. hwàtxi2 [ ] n. rei-congo. Psarocolius decumanus. Ref: Ferreira,2004. 17/Oct/2005 hwàty1 [ ] n. pulga. Ref: Ferreira, 2005. 24/Aug/2005. hwìty1 [ ! ] n. fruto. Ref: Ferreira,2003. kukryti na hwìty ku A anta comeu fruta. 17/Oct/2005. hwìty2 [ ] n. manga. Ref: Ferreira, 2005 17/Oct/2005. hwy1 [ ] n. urucum. Ferreira,2003. 26/Aug/2005. hwyndaj1 [! ] n. micróbio. Ref: Ferreira,2005. Morf: . 17/Oct/2005. hwyndìj1 [ ! ]n.berne. Dermatobia hominis(Linnaeus). Ref: Ferreira,2004. 17/Oct/2005. hwyty1 [ ] n. pulga. Ref: Ferreira,2004. 17/Oct/2005. hwyty2 [ ] n. semente de urucum. Ref: Ferreira,2003. K - k kahrãm-ghre1 (dari: kahrãm-ghre) [ ] n. ovo de tracajá. Ref: Ferreire, 2005. 17/Oct/2005. kahrãmhotxi1 [ ! ] n. tartaruga. Podecnemis expansa(Schweiger). Ref: Ferreira,2004. 17/Oct/2005. kahrãmtxi1 [ ] n. tracajá. Podecnemis infilis(Troschel). Ref: Ferreira,2004. 19/Sep/2005. kambrikgatàktxi1 [ % " ] n. socó-boi. Tigrisoma lineatum. Morf: 80 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008 % " . 23/Sep/2005. W - w wà3 [ ] n. tamanduá. Tamandua tetradactyla. Ref: Ferreira, 2004. Morf: 19/Sep/2005. wewe1 [ ] n. borboleta. Rhopalocera. Ref: Ferreira, 2004. 27/Aug/2005 wiri1 [ ] n. sapo. Bufo marinus (Linnaeus). Ref: Ferreira, 2004 27/Aug/2005. wiritxi1 [ ] n. pacuzinho. Ref: Ferreira,2004. 27/Aug/2005. wàtyty1 [ ] n. piaba-comprida. Ref: Ferreira, 2004. 18/Oct/2005. wyty1 [ ] n. milho. Ref: Ferreira, 2004 18/Oct/2005. . Tapajúna-Português: 351 Notas Censo realizado pela profa. Dra. Marília Ferreira com o auxílio dos tapajúna, no ano de 2004, durante sua pesquisa de campo na aldeia M tykytíre onde eles vivem. 2 Sua coleta foi-me cedida gentilmente, para que eu pudesse realizar estes estudos, as coletas de material lingüístico realizada por FERREIRA ocorreram em momentos distintos, no período entre os anos de 2003a 2005. 3 FERREIRA, Vitória Regina Spanghero. Estudo Lexical da língua Matis – subsídios para um dicionário bilíngüe/ Vitória Regina Spanghero Ferreira. – Campinas – SP: [s.n.], 2005. 4 DAPENA, José-Alvaro Porto. Manual de Técnica Lexicográfica. Ed. Arco/ Libros, S. L., 2002. 5 G. Matoré, La methode em Lexicologie, Paris, 1953, pág. 88. 6 J. A. Clas y Polguère, Introductión à la lexicoloxie explicative et combinatoire, Éditions Duculot, Louvain-la-Neuve, 1995, págs, 26-27. 7 O “caráter abstrato” e “obra concreta tradicional”, segundo Polguère (1995), referem-se, primeiramente, aos estudos teóricos paradigmáticos do conceito geral do léxico, bem como suas características, classificações, etc. Já a segunda definição denota um estudo particular de um determinado léxico de uma determinada língua que se está estudando com o intuito de confeccionar uma obra lexicográfica (um dicionário). 8 CRYSTAL, David. Dicionário de lingüística e fonética/ David Crystal; tradução de adaptação [da 2ª ed. Inglesa rev. e ampliada, publicada em 1985], Maria Carmelita Pádua Dias. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. Pgs. 202-203. 9 BORBA, Francisco da Silva. Organização de dicionários: uma introdução à lexicografia. São Paulo: Editora UNESP, 2003. 10 CRYSTAL, David. Dicionário de lingüística e fonética/ David Crystal; tradução de adaptação [da 2ª ed. Inglesa rev. e ampliada, publicada em 1985], Maria Carmelita Pádua Dias. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. Pgs. 140-141. 11 Algumas das informações para que esses itens serem considerados como homônimos seriam: os dois primeiros representarem animais com características distintas e os dois últimos fazerem parte de classes gramaticais diferentes, pois o primeiro refere-se a um nome enquanto que o segundo a um verbo. 12 Censo realizado por FERREIRA em 2004. 1 8. Referências Bibliográficas ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008 81 GREIMAS, A. J. y COURTES, J. Semiótica. Diccionario razanado de la teoria del lenguaje, Gredos, Madrid, 1969. BADARIOTTI, Nicolas. Exploração no norte do Mato Grosso, região do Alto Paraguay e planalto dos Parecis. Apontamentos de História Natural. Ethnographia e impressões pelo padre... salesiano. SP. 1898. BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Teoria Lingüística. Teoria Lexical e Lingüística Computacional.. 2 ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. v. 1. 261 p. BIERWISCH, M., SCHREUDER, R. From concepts to lexical items..Cngnition (1992). BORBA, Francisco da Silva. Organização de dicionários: uma introdução à lexicografia. São Paulo: Editora UNESP, 2003. BOSSI, Bartolomé. Viaje pintoresco por los rios Paraná, Paraguay, Sn. Lorenzo, Cuyabá y el Arino tributário Del grande Amazonas, côn la description de la província de Mato Grosso bajo su aspecto físico, geográfico, mineraloyco y sus producciones naturales. Paris. 1863. CRYSTAL, David. Dicionário de lingüística e fonética. – tradução e adaptação [da 2ª ed. Inglesa ver. E ampliada, publicada em 1985], Maria Carmelita Pádua Dias. – Rio de Janeiro: José Zahar Ed. 2000. DAPENA, José-Alvaro Porto. Manual de Técnica Lexicográfica. Ed. Arco/ Libros, S. L., 2002. HAENSCH, G. Los diccionarios del español em el umbral del siglo XX, Univ. de Salamanca, 1997, pág. 29. MOUNIN G., Diccionario de Lingüística, Labor, Barcelona, Lexicografia, Lexicologia. 1979 s.v. CLAS J. A. y POLGUÈRE, Introductión à la lexicoloxie explicative et combinatoire, Éditions Duculot, Louvain-la-Neuve, 1995, págs, 26-27. FERREIRA, Vitória Regina Spanghero. Estudo léxical da língua Matis – subsídios para um dicionário bilíngüe. Campinas, SP [s.n.], 2005. PEREIRA, Adalberto Holanda. “A pacificação dos Tapayunas”. In: Revista de Antropologia. Vol. 15-16\SP. (1967\1968). ULLMANN, S. Semântica. Introducción a la ciencia del significado, Madrid, 1965. STEINER, Karl von den. Entre os aborígenes do Brasil Central. Departamento de Cultura. SP. 1940. SEEGER, Anthony. Os índios e nós: estudos sobre sociedades tribais brasileiras. Ed. Campus. RJ. 1980. Coletânea de Textos dos Povos Tapajúna, Panará e Membegôkre. 82 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 73-82, jan.-abr. 2008 PARA UM DISTINÇÃO ENTRE RADICAL E PREFIXO será não-composto um composto ou um derivado?1 Pâmella Alves Pereira Universidade Federal de Minas Gerais (UFRJ). Av. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha Belo Horizonte – MG – CEP 31270-901 Resumo. Este trabalho propõe uma distinção entre os processos de derivação prefixal e composicão, seguindo a proposta teórica de Matthews (1991). Para isso foram analisadas as formas contra, mal e não em exemplos como REVOLUÇÃO, MALFERIDO e NÃO-ALINHADO. CONTRA- Em termos morfológicos, tais elementos foram classificados como radicais, e suas respectivas formacões como compostas, e não derivadas. Palavras-chave. radical; prefixo; composição; derivação Abstract. This work proposes a distinction between the processes of prefixal derivation and compounding, following Matthews`(1991) theoretical proposal. For that, the elements contra, mal and não were analysed in examples as CONTRA-REVOLUÇÃO, MALFERIDO and NÃO-ALINHADO. In morphological terms, the elements contra, mal and não were classified as word, and MALFERIDO CONTRA-REVOLUÇÃO, and NÃO-ALINHADO were analysed as compounds. Keywords. word; prefix; compounding; derivation 1. Introdução Este artigo retoma uma questão controversa no estudo da morfologia, no âmbito da estrutura e da formação de palavras: a distinção entre derivação prefixal e composição. Busca-se diferenciar formações prefixais de formações compostas, uma vez que ambas levam em conta a noção de um radical que é modificado, embora por processos morfológicos distintos. Objetiva-se, portanto, compreender o uso dos termos radical e 83 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008 prefixo na morfologia baseada em lexemas (Matthews, 1991) e caracterizar composição face à derivação nessa proposta teórica. Os dados para a discussão do tema são formações portuguesas que entrem contra, mal e não em exemplos como CONTRA-REVOLUÇÃO, MAL-AMADO e NÃO-ALINHADO. Trata-se de formações que se apresentam na literatura ora como compostas, ora como derivadas por prefixo, como aponta Alves (1993:383). Este estudo centra-se na noção de negação apresentada por J. Payne (1985), T. Payne (1997) e Aronoff & Fuhrhop (2002), que ressaltam a idéia de que, na morfologia derivacional, a negação é representada a partir de elementos que carregam a noção de contrário, como em ENGRAÇADO MAL-ARRUMADO, e a idéia de contraditório, como nos exemplos MAL- e NÃO-FICÇÃO, que apresentam uma relação de exclusão entre ENGRAÇADO e MAL- ENGRAÇADO, FICÇÃO e NÃO-FICÇÃO. Como este trabalho considera a análise de palavras na língua que possuam as formas iniciais contra, mal e não, e não está voltado para índices de freqüëncia com que elas ocorrem em textos, o corpus foi elaborado a partir da coleta de dados do dicionário, que apresenta exemplos suficientes para a análise pretendida. 2. A estrutura interna do lexema Estudar a diferença entre um composto e uma formação prefixal pressupõe lidar com questões que dizem respeito à estrutura interna da palavra. Dentre as propostas, aqui se toma a de Matthews (1974;1991) para a caracterização da estrutura do lexema. Matthews (1991:24-36) propõe três noções diferentes para o termo palavra: forma de palavra, lexema e palavra propriamente dita. A primeira (ou sentido 1, na sua exposição) está relacionada à idéia de uma palavra descrita em termos de unidades fonológicas. Nesse sentido as formas tenho e tinha, por exemplo, são duas formas de palavras, porque cada uma reúne conjuntos diferentes de fonemas, e nenhuma das duas é classificada como Verbo ou qualquer outra classe e tampouco tem significado. O sentido 2, denominado lexema e grafado em caixa-alta, diz respeito a uma noção abstrata de palavra. Assim, tenho e tinha são formas do mesmo lexema TER. E para o terceiro sentido, Matthews reserva o termo palavra, que leva em conta o nível gramatical, ou primeira articulação. Cada forma do lexema TER (tenho, tinha, terá, teremos etc.) é uma forma de ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008 84 palavra distinta, mas também é uma palavra gramatical distinta: diferem entre si em Número/Pessoa, Tempo/Modo. Em termos de sua estrutura, um lexema pode ser simples ou complexo. Simples, conforme define Matthews (1991:37), é aquele cuja estrutura não pode ser analisada em mais elementos morfológicos. É complexo na medida em que pode ser analisado em mais de um elemento morfológico. A composição e a formação de palavras por prefixos pertencem, segundo o autor, respectivamente, a uma área da morfologia que diz respeito às relações entre um lexema complexo (COUVE-FLOR; lexemas simples (COUVE + FLOR) um lexema complexo (INFELIZ; TERCEIRO-MUNDISTA ) ou mais simples (TERCEIRO + INFELICIDADE) MUNDISTA); e dois ou mais e à relação entre e um lexema simples (FELIZ) ou mais simples (INFELIZ). Raiz, como define Matthews (1991:64), “é a forma que subjaz, no mínimo, um paradigma ou um paradigma parcial, e é, ela mesma, morfologicamente simples”. Nesse sentido, a raiz coraj- está presente em formas como corajosa e corajosas com o acréscimo do formativo lexical –oso e dos formativos flexionais -a e -s. Uma forma como corajoso está na base do paradigma desse adjetivo que, por si só, é complexo, na medida em que podemos fragmentá-lo em duas outras formas menores: coraj- e –oso. Por esse motivo, trata-se não de uma raiz, mas de um radical. O radical é também uma forma que serve como base para um paradigma ou parte de um paradigma e, diferentemente da raiz, pode ser dividido em formas menores. Assim corajoso associa-se à raiz coraj-, que também pode ser um radical. E corajosamente associa-se ao radical corajoso. Nesse sentido, composição e derivação apresentam-se como dois modos possíveis de formalizar a relação entre o que se considera um conceito básico e um conceito secundário do radical (Sapir, 1921:67). No entanto, a questão da prefixação é complexa, pois não é consenso entre gramáticos e lingüístas a distinçào entre esse processo e a composição. 3. A controvérsia da prefixação A derivação pode ocorrer por prefixação ou por sufixação. No entanto nem todos partilham a mesma opinião no que se refere à classificação de palavras formadas com acréscimo de prefixos. Em Monteiro (1987:127-8) encontra-se uma lista de gramáticos e 85 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008 lingüistas que incluem a prefixação no mecanismo da derivação (cerca de 60% dos autores consultados), e outra lista com os que consideram formações prefixais como um processo de composição. Os prefixos, no português, não apresentam a função de relacionar a palavra ao restante da frase (não indicam as marcas flexionais) e modificam o sentido do radical a que se adjungem, o que torna a prefixação um processo de criação de novos vocábulos semelhante à composição. O que diferencia a composição da prefixação é o fato de a primeira apresentar a união de elementos radicais, e de a segunda estruturar-se a partir de um afixo mais um radical. No português, no entanto, o afixo, ou seja, o formativo lexical, pode se apresentar como forma presa ou como forma livre (Bloomfield, 1926:21). Assim, para caracterizar o método formal em CONTRA-REVOLUÇÃO, MALFERIDO e NÃO-ALINHDO é preciso determinar se as formas contra, mal e não podem ser classificadas como afixos ou são estritamente radicais. 4. Análise 4.1 Critério fonológico Tendo em vista as características prosódicas, em especial a questão do acento, das formações do tipo prefixo + radical e radical + radical, encontra-se uma semelhança que impossibilita o uso desse critério fonológico para a distinção entre esses dois tipos de formação. Palavras como MALFERIDO, NÃO-ALINHADO e CONTRA-REVOLUÇÃO além do acento primário, apresentam também um acento secundário. Trata-se de uma característica presente em formações tipicamente compostas, como COUVE-FLOR, GUARDA-CHUVA e TERÇA- FEIRA. Em contrapartida, em formações classificadas como prefixais, tais como AMORAL, DESLEAL, INFELIZ, os prefixos in-, a- e des- apresentam-se como verdadeiras formas átonas antepostas à esquerda do radical e funcionado como uma sílaba pretônica. É possivel encontrar, porém, uma formaçào composta como PLANALTO, que se assemelha, em termos acentuais, a uma palavra prefixal como DESFEITO. Ou, ainda, uma palavra claramente formada por prefixo, como ANTIINFLAMATÓRIO, que apresenta um acento principal na sílaba ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008 86 -tó- e um acento secundário na sílaba inicial an-, e em nada difere de um composto como GUARDA-CHUVA. A pauta acentual de palavras formadas pela anteposiçào de contra, mal e não é, portanto, insuficiente para se afirmar se tais elementos são radicais ouprefixos. 4.2 Critério semântico Ao se considerar aspectos semânticos, verifica-se que tanto a prefixação como a composição são processos de formação de palavras que têm, primordialmente, uma função semântica, e não sintática. São processos que preenchem, em primeira análise, necessidades semânticas de nomeação, e não utilizam o sentido de uma palavra já existente em outra classe gramatical, como ocorre na derivação sufixal. Embora uma formação com prefixo possa mudar a classe gramatical do vocábulo, este não é um fato comum e nem a função primeira das formações prefixais. 4.3 Critério morfológico Foram encontradas em Ferreira (1986) 99 palavras antecedidas pelo elemento contra com este carregando a idéia negativa de oposição ou contradição, conforme propõem J. Payne (1985), T. Payne (1997) e Aronoff e Fuhrhop (2002), como CONTRA- ATAQUE, CONTRA-REVOLUÇÃO, CONTRADIZER. Góes (1938:44), Alves (1992:107) e Cunha & Cintra (2001:85) estão entre os autores que analisam o contra como prefixo que exprime, entre outros sentidos, a idéia de oposição. Trata-se de uma forma que se antepõe a bases substantivas (CONTRA-PLANO), adjetivas (CONTRANATURAL) e verbais (CONTRA-ARGUMENTAR). Na proposta de Câmara Jr. (1977) e Pereira (1940), embora o contra também seja classificado como prefixo, as formações com tal elemento são tidas como formações compostas. Segundo a definição de Câmara Jr. para prefixo, este é uma variante presa das preposições e, portanto, um prefixo quando presente em compostos como CONTRA-REVOLUÇÃO CONTRADIZER, e CONTRA-ATAQUE. Basílio (1974:93), por seu turno, embora também considere composição uma formação como CONTRAPOR, e não uma derivação prefixal, não analisa o elemento contra, 87 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008 nesse caso, como prefixo, mas como radical. Segundo a autora, um composto caracterizase por apresentar dois núcleos. O núcleo é o elemento central básico de uma construção morfológica e contrário a ele estão os elementos periféricos. Dessa forma, em uma palavra como RACIONALIZAÇÃO, racionaliza- será o núcleo e –ção a periferia; e na palavra RACIONAL, racion- será o núcleo e –al a periferia. O núcleo mínimo, portanto, será também a raiz. Ao definir raiz, Basílio apresenta que “Em geral, a raiz é definida como parte da palavra que contém o significado lexical ou o significado principal da palavra” (Basílio, 1974:89). Nesse sentido, a autora afirma que, em uma formação como CONTRAPOR, o contra poderia ser considerado não-raiz, já que, como preposição, teria um significado gramatical. Mas, comparando formas como CONTRÁRIO e OPOSTO, a autora afirma não haver motivo para considerar a existência de raiz na segunda, e não considerar a existência de raiz na primeira. Então, segundo Basílio (1974:93-4), se o elemento contra é uma forma livre na língua e pode ocorrer como raiz em construções como CONTRÁRIO, ele deve ser considerado membro de um composto, e não um prefixo. Da mesma forma o elemento mal em MAL-AMADO, MALCHEIROSO, MAL-FELIZ pode ser classificado como radical, e não como prefixo, ao se considerar que se trata, também, de uma forma livre que ocorre como raiz em MALÉFICO e MALÍCIA, por exemplo. No dicionário pesquisado, encontram-se 53 palavras iniciadas pela forma mal, e esta carregando uma idéia negativa. O elemento mal é classificado por Pereira (1940 : 194) como prefixo que traz a idéia de mau êxito. O gramático cita, entre outros exemplos, as palavras MALTRATAR, MALFAZER, MALQUISTO, MALDIZER. Nesses exemplos, o mal é anteposto aos lexemas TRATAR, FAZER, QUISTO e DIZER e não estabelece uma relação de oposição ou contradição com tais palavras, mas apenas acrescenta uma informação que especifica seus significados. Assim, MALTRATAR MALDIZER não é o contrário de não é o oposto de TRATAR, mas é o mesmo que tratar mal. DIZER, mas blasfemar. Por esse motivo tais palavras não foram incluídas na análise. Ao se considerar, no entanto, os exemplos que compõem o corpus deste trabalho, como MAL-AMADO, MALFELIZ, verifica-se que a relação de sentido entre o elemento mal e a palavra a que ele se adjunge é diferente, uma vez que se pode afirmar que o mal apresenta a idéia negativa de contrário em MAL-AMADO e de contraditório em ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008 MALFELIZ. Verifica-se, 88 nesses casos, que a posição do elemento mal é fixa, isto é, as inversões amado mal, infeliz mal não são aceitas. O que torna complexa a classificação de tais formações com mal é, principalmente, o fato desta palavra ser classificada, no dicionário, ora como substantivo, ora como advérbio, ou seja, trata-se de um lexema, segundo Matthews (1991). Nesse sentido, a forma de palavra males refere-se ao lexema simples MAL, que pode se estruturar como lexema complexo: MALÉFICO, MALINIDADE. Já as formações MALCONFIAR, MALCHEIROSO estruturam-se a partir de um lexema simples (MAL) mais um outro lexema que pode ser simples (CONFIAR) ou complexo (CHEIROSO). Quanto ao elemento não, considerando os dados retirados de Ferreira (1986) e que compõem o corpus deste trabalho, as formações com a anteposição do não a um radical são em menor número, apresentando 31 ocorrências. Segundo Alves (1992;1993), essas formações compreendem o paradigma dos prefixos negativos do português, ao negar o sentido expresso por uma base adjetiva (NÃO-VERBAL, AGRESSÃO). NÃO-ILUMINADO) ou substantiva (NÃO- Para a autora, trata-se de uma forma que deve ser analisada como prefixo derivacional porque constitui um morfema fixo e recorrente, já consolidado na língua como elemento de formação de palavra. Assim, o não tem o mesmo valor de elementos como des-, dis- e in- em exemplos como DESLEAL, DISSEMELHANTE e INCULTO. No entanto, no “Dicionário de affixos e desinências”, de Góes (1938:135), o não é definido como um “elemento vernáculo de composição”. Ao se considerar, também, que Cunha & Cintra (2001 : 106-7) apresentam entre as classes gramaticais dos elementos de um composto advérbio + adjetivo e advérbio + verbo, pode-se, então, incluir formações como NÃO-ESSENCIAL e NÃO-LINEAR entre as formações compostas. Tendo em vista, porém, essa informação dada pelos gramáticos, uma palavra como NÃO-VIOLÊNCIA, formada por um advérbio mais um substantivo não seria classificada como palavra composta. Além da dúvida quanto ao status gramatical do elemento não, surge, a partir de um exemplo como esse, outra questão: se não é característica do advérbio, no Português, fazer referência a substantivo, como se explicam formações como NÃO-AGRESSÃO e NÃO-VIOLÊNCIA? Essa é uma questão para ser tratada futuramente. Por enquanto, independente da classe gramatical das palavras a que o elemento não se agrega, será considerada, apenas, a noção de que há uma relação entre lexemas, a mesma relação existente em uma composição, conforme Matthews (1991). A palavra NÃO- 89 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008 COMPOSTO, por exemplo, é tida, aqui, como um lexema complexo que se relaciona a dois lexemas mais simples, NÃO e COMPOSTO. Nesse sentido, o não, assim como os elementos mal e contra, é classificado, por enquanto, como radical, e não como prefixo, e as formações com tais elementos (CONTRA-ATAQUE, MALCONTENTE, NÃO-ENGAJADO) são analisadas como formaçòes compostas, e não derivações prefixais. 5. Conclusão Um prefixo é semelhante ao radical quando se considera o significado lexical que ambos apresentam. A diferença entre um e outro fica evidente no momento em que se têm formações como PRÉ-HISTÓRICO, INFELIZ, DESFEITO, em que os prefixos são facilmente identificados como as formas presas pré-, in- e des-, e os radicais são a parte lexical de cada vocábulo, aqui, expandidos pelos prefixos. Essa diferença, no entanto, anula-se quando o termo anteposto não é uma forma presa, mas uma palavra livre na língua, como contra, mal e não. Das análises feitas, podem-se estabelecer as seguintes conclusões: Em se tratando da pauta acentual entre as formações com contra, mal e não, comparadas às formações indubitavelmente prefixais (DESFAZER, VESTIBULAR) e, ainda, às formaçòes compostas (GUARDA-CHUVA, INFELIZ, ANTI-ATAQUE, PRÉ- PLANALTO), verificou-se que esse critério fonológico não é suficiente para se classificar as formações como ATAQUE, MAL-AMADO CONTRA- e NÃO-VERBAL como prefixais ou compostas. O critério semântico também não é suficente, uma vez que os elementos contra, mal e não, classificados seja como radicais, seja como prefixos, apresentam uma função semântica de nomeação. Morfologicamente, as formaçòes em análise foram tidas como palavras compostas. Segundo Matthews (1991), uma composição estrutura-se a partir da junção de um lexema a outro lexema. Assim, considerando contra, mal e não como lexemas simples, formas livres com entrada no dicionário, as formações AMADO e NÃO-VERBAL CONTRA-REVOLUÇÃO, MAL- estrutram-se a partir da junção de dois lexemas, ou seja, são formações compostas, e não derivações prefixais. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008 90 Nota 1 Este trabalho é uma parte da dissertação de mestrado de Pereira (2006). Referências ALVES, Ieda Maria, 1992. Prefixos negativos do português falado. In: ILARI, Rodolfo (org.) 1992. Gramática do português falado, vol II. Campinas: UNICAMP. 752 p. 101-109 _______________ 1993. Formações prefixais no português falado. In: CASTILHO, Ataliba Teixeira de (org.) 1993. Gramática do português falado, vol. III São Paulo: UNICAMP/FAPESP. 988 p. 383-398 ARONOFF, Mark & FUHRHOP, Nanna, 2002. Restrictin suffix combination in germa and english: clossing suffixes and the monosuffix constraint. In: Natual Language Linguistic Theory, Netherlands: Kluwer Academic Publishers. 451-490p. BASÍLIO, Margarida, 1974. Operacionalização do Conceito de Raiz. Cadernos da PUC 15: 89-94p. BLOOMFIELD, Leonard. 1926. A set of postulates of the science of language. In: JOOS, ed. 1957. 26-31p CAMARA JR. 1977. Dicionário de Lingüística e gramática referente língua portuguesa. 5ª ed. Petrópolis: Vozes Ltda. 266 p. CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley, 2001. Nova gramática do português contemporâneo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,747 p. FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. 1986. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1836p. 91 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008 GOES, Carlos, 1938. Dicionário de affixos e desinências. Rio de Janeiro. Liv. Francisco Aves. 229p. MATTHEWS, P. H. 1991. Morphology. 2nd ed. Cambridge: Cambridge University Press, 251p. MONTEIRO, José Lemos. 1987. Morfologia Portuguesa. 2ed Fortaleza: EDUFC. 220p. PAYNE, John R, 1985. Negation. In: SHOPEN, Timothy, ed. 1985. Language typology and syntatic description. vol. I, Cambridge, Gr. Brit: Cambridge University Press. Vol I, 197-242 p. PAYNE, Thomas E. 1997. Describing morphosyntax: a guide for field linguistic. Cambridge: Cambridge University Press, 282-293 p. PEREIRA, Eduardo Carlos. 1940. Gramática Expositiva. São Paulo: Companhia, ed. Nacional. SAPIR, Edward, 1921. A linguagem: introdução ao estudo da fala. Trad. J. Mattoso Câmara Jr. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1971, 65-86 p. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 83-92, jan.-abr. 2008 92 A expressão da evidencialidade: uma análise do discurso político Izabel Larissa Lucena1 1 Mestranda do Curso de Pós-Graduação em Lingüística – Universidade Federal do Ceará (UFC) Izabel_larissa@yahoo.com.br Abstract. This essay mainly aims to analyze the consequences of meaning produced by the category evidentiality in the construction of argumentation in political speeches made in Assembléia Legislativa do Ceará (2006). It takes as basic theoretical support the studies developed by Dall’Aglio-Hattnher (1995), Dik (1989; 1997), Galvão (2001), Hengeveld (1988; 2001) e Nuyts (1993; 2001). Through our analysis, we can verify that evidential marks act in an interpersonal level of language, since they determine the extent of (un)commitment of the politician to values assumed by himself behind citizenry. Keywords. evidentiality; evidential marks; interpersonal level; funcional grammar; extent of (un)commitment. Resumo. O presente artigo tem por objetivo principal analisar os efeitos de sentido produzidos pela categoria evidencialidade na construção da argumentação em discursos políticos proferidos na Assembléia Legislativa do Ceará (2006). Toma como suporte teórico básico os estudos desenvolvidos por Dall’Aglio-Hattnher (1995), Dik (1989; 1997), Galvão (2001), Hengeveld (1988; 2001) e Nuyts (1993). Em nossa análise, podemos verificar que as marcas evidenciais atuam em um nível interpessoal da linguagem, uma vez que determinam o grau de (des)comprometimento do político com os valores por ele assumidos diante da instância cidadã. Palavras-chave. Evidencialidade; marcas evidenciais; nível interpessoal; Gramática Funcional; graus de (des)comprometimento. 1. Introdução Além de informações a respeito da fonte do conhecimento asseverado, as marcas evidenciais também informam/indicam os graus de comprometimento do sujeitoenunciador com o valor de verdade da proposição. A par das diferentes concepções sobre a categoria evidencialidade, reconhecemos, juntamente com Nuyts (1993; 2001), que a evidencialidade determina a qualificação epistêmica, uma vez que o sujeitoenunciador só procede à avaliação da probabilidade de um estado-de-coisas quando possui evidências para reconhecer a estimativa de ele ocorrer ou não no mundo, podendo explicitá-las ou não, segundo seus propósitos enunciativos. Embora haja dificuldades quanto à delimitação, análise e descrição dessa categoria, objetivamos, no presente estudo, empreender uma análise de como as expressões evidenciais atuam na construção da argumentação do discurso político. Focamos nosso interesse nos efeitos de sentido produzidos pelas expressões evidenciais na construção da persuasão do discurso político, procurando identificar e analisar, a partir da perspectiva funcionalista, ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008 93 dez (10) discursos proferidos na Assembléia Legislativa do Estado do Ceará, durante o ano de 2006. Para tal fim, a evidencialidade foi analisada sob os aspectos sintáticos (meio lingüístico, posição da expressão evidencial no enunciado), semânticos (natureza da evidência) e pragmático-discursivos (graus de comprometimento do político com o conteúdo do seu discurso, as imagens por ele suscitadas no processo argumentativo). 2. Pressupostos teóricos funcionalistas para o estudo da categoria evidencialidade O presente trabalho se enquadra dentro de uma orientação funcionalista nos estudos da linguagem. Neste paradigma, a linguagem é compreendida a partir de uma perspectiva instrumental, teleológica. Sendo assim, a expressão lingüística passa a ser vista dentro de um contexto do qual fazem parte, pelo menos, dois participantes, suas intenções comunicativas, seus papéis e estatutos definidos na interação social (DIK, 1989, 1997). Desta feita, a pesquisa lingüística de orientação funcionalista pode tomar como objeto de análise uma categoria de item ou construção e, a partir daí, identificar os processos cognitivos e discursivos que estão relacionados a essa categoria, a fim de verificar a sua atuação e as funções que realiza dentro de uma língua natural. Como podemos perceber, a análise funcionalista da linguagem se opõe à formalista na medida em que define o sistema lingüístico como uma rede de significado paradigmático potencial (HALLIDAY, 1985), não-linear, que sofre transformações decorrentes do uso e dos propósitos enunciativos de seus usuários. No modelo teórico funcionalista, o usuário assume papel central, já que o objetivo da investigação lingüística é explicitar como falantes e ouvintes comunicam-se entre si, de modo eficiente, por meio da expressão lingüística (DIK, 1989). Sendo assim, as unidades lingüísticas assumem um caráter de mediação, não no sentido de reproduzir o mundo empírico, tal como se apresenta aos nossos olhos, mas como um instrumento que relaciona, como uma “ponte”, a intenção do falante e a interpretação do ouvinte, sendo esta mediação “imperfeita”, na medida em que o significado codificado na mensagem pelo falante não se confunde com a sua intenção e nem se iguala à interpretação final dada pelo ouvinte. Outro aspecto importante da orientação funcionalista consiste na proposta de integração dos níveis de análise, ou seja, da existência de uma sistematização entre os domínios da sintaxe, da semântica e da pragmática. Segundo Dik (1989; 1997), a pragmática é vista como um quadro abrangente na qual a semântica e a sintaxe devem ser estudadas. A semântica é instrumental em relação à pragmática, e a sintaxe, instrumental em relação à semântica. É nesse sentido que o funcionalismo se caracteriza como uma teoria pragmática, visto que o estudo da sintaxe e da semântica se desenvolve dentro de um quadro da pragmática, o que significa dizer que toda a situação de comunicação deve ser avaliada, isto é, o propósito enunciativo, seus participantes e o contexto no qual se dá essa interação. 3. Aspectos conceituais da evidencialidade A evidencialidade é uma categoria que designa a origem do conhecimento epistêmico, ou seja, do conhecimento que o falante tem a respeito dos estados-de-coisas possíveis de ocorrer em dado mundo. Tal afirmação é justificada pelo fato de que todo conhecimento epistêmico se assenta em evidências, o que leva à concepção de que a evidencialidade é hierarquicamente superior à modalidade epistêmica. Desta feita, as unidades evidenciais, codificadas nas línguas, refletem a interação entre o componente 94 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008 conceptual e o contextual (HENGEVELD, 2001), ou seja, são o resultado da relação entre as decisões comunicativas do falante e o contexto de interação social. Segundo Nuyts (1993; 2001), a evidencialidade está relacionada ao caráter “performativo” da linguagem, ou seja, o sujeito-enunciador, ao utilizar uma expressão evidencial, assim o faz porque deseja realizar certo “ato comunicativo”. Para Dik (1997), inspirado na noção de Austin (1962 apud Dik, 1989), a linguagem se dá a partir de atos de fala, compreendidos pelo ouvinte como instruções do falante para que realize certas ações mentais. Sendo assim, sustentamos que a evidencialidade está diretamente relacionada ao grau de envolvimento/comprometimento do sujeito-enunciador com o conteúdo expresso na proposição. Por essa razão, acreditamos que as expressões evidenciais fornecem ao co-enunciador “pistas” para que ele interprete o enunciado, sendo esta interpretação realizada com base em uma escala de graus (Alto > Médio > Baixo) comprometimento. 3.1. Os parâmetros sintáticos, semânticos e pragmático-discursivos para a análise da evidencialidade em discursos políticos: uma proposta de análise Para que possamos analisar em que medida as expressões evidenciais estão a serviço da persuasão em discursos políticos, buscamos fatores sintáticos, semânticos e pragmático-discursivos capazes de caracterizar o uso de tais itens. Para a orientação teórica da análise proposta, utilizamos os estudos desenvolvidos por Willet (1988), Hengeveld (1988) e Dall’Aglio-Hattnher (1995). A seguir, expomos os critérios utilizados e a codificação usada na identificação de cada parâmetro. Lembramos, no entanto, que a separação dessas categorias consiste apenas em uma opção metodológica para uma melhor compreensão dos aspectos envolvidos na constituição da evidencialidade como categoria lingüística. a) Parâmetros sintáticos Para a caracterização da evidencialidade em discursos políticos, é necessário que façamos uma investigação de critérios relativos à sua manifestação morfossintática. Para tal fim, utilizamos as seguintes classes: v (Verbo); s (Substantivo); a (Adjetivo); p (Preposição ou Locução Prepositiva). Em relação à localização no enunciado, a marca evidencial pode se apresentar na posição: a (Anteposta); t (Intercalada); o (Posposta). b) Parâmetros semânticos Como dissemos anteriormente, a evidencialidade diz respeito à explicitação da fonte da informação contida em um enunciado. Essa fonte da informação pode ser de três tipos (WILLET, 1988; DALL’AGLIO-HATTNHER, 2001): e (Sujeito-enunciador); d (Domínio comum); u (Outro). Em outras palavras, a informação asseverada em uma proposição pode ter como fonte o próprio falante ou pode ser um conhecimento amplamente conhecido, verdadeiro e incontestável, independentemente do modo de obtenção dessa informação, ou seja, um conhecimento compartilhado pelos interlocutores. Ou ainda, pode ser uma informação obtida por meio de um relato. Com respeito à evidência relatada, o falante pode explicitar a fonte da informação ou apenas indicar a sua existência sem, no entanto, codificá-la. A fonte da informação pode ser também definida em termos da natureza da experiência evidencial ou cognitiva, a qual o sujeito produtor do discurso teve em relação à informação por ele fornecida. Sendo assim, de acordo com Galvão (2001), com base nos estudos empreendidos por Willet (1988), a evidencialidade pode ser do tipo D (Direta); M (Menos direta); I (Indireta). Compreendemos esses tipos de ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008 95 experiências evidenciais da seguinte maneira: i) o tipo direto diz respeito à informação atestada pelo falante por meio de uma experiência pessoal relacionada aos sentidos; ii) o tipo menos direto é definido em termos de algum tipo de experiência cognitiva (inferência) realizada pelo sujeito produtor do discurso na geração de um conhecimento; ii) o tipo indireto, ao contrário dos dois primeiros, está relacionado à informação à qual o falante teve acesso apenas de modo indireto, seja por meio de uma segunda-pessoa, terceira-pessoa, mito etc. Em relação ao grau de envolvimento do falante com a situação por ele descrita na interação, o que está diretamente relacionado à natureza cognitiva da experiência evidencial, consideramos os seguintes níveis de envolvimento, cada um deles com seus respectivos subdomínios: i) X (Experiencial): 1 (visual), 2 (auditiva), 3 (outros meios físicos); ii) F (Inferencial): 4 (observável), 5 (raciocínio); iii) R (Relatada): 6 (citativa) e 7 (indefinida): k (mito), y (boato) e z (especulativa). Como podemos observar, a evidência experiencial é subdividida em três subtipos: i) visual, quando o falante afirma ter visto a situação descrita; ii) auditiva quando assevera ter ouvido e iii) obtida por outros sentidos, quando diz ter percebido a situação por alguma outra experiência física, diferente da visão e audição. Em relação ao tipo inferencial, temos, basicamente, dois subtipos, sendo cada um a expressão de uma atitude mental do próprio sujeito-produtor do discurso: i) o tipo observável é definido como sendo aquela informação derivada por meio de evidências disponíveis; ii) o tipo raciocínio se caracteriza como sendo um conhecimento derivado por meio da intuição, da lógica ou, até mesmo, de sonhos ou experiências prévias do sujeito-enunciador. Esse tipo de evidência está relacionado a um médio ou alto grau de abstração. A expressão evidencial do tipo relatada se caracteriza como sendo uma informação reportada. Pode ser de dois subtipos: i) citativa, que diz respeito a uma informação derivada de uma segunda-pessoa ou terceira-pessoa. Ela se caracteriza como sendo um conhecimento passível de ser definido em termos de sua fonte, uma vez que o sujeito-enunciador explicita qual é a fonte de sua informação; ii) indefinida é, por sua vez, uma informação relatada, cuja fonte existe, mas não é explicitada. Pode ser uma informação tida como conhecida e aceita por uma comunidade (mito); pode ser um conhecimento marcado discursivamente pela sua indefinitude (boato); e pode se caracterizar com sendo uma informação derivada apenas pelo enunciador, ou seja, só existe na mente do falante, que exterioriza essa informação para gerar uma situação negativa em relação a outro indivíduo envolvido direta ou indiretamente na situação de interação (especulação) (GALVÃO, 2001). A evidencialidade pode também ser caracterizada, segundo Dall’Aglio-Hattnher (1995; 2001), de acordo com o nível de compartilhamento da fonte oferecida pelo sujeito-enunciador ao co-enunciador. Essa autora propõe dois tipos de compartilhamento: i) f (explícita só do falante); ii) c (explícita compartilhada). Ou seja, se a fonte é o falante, ele assume a responsabilidade em relação à informação apresentada. Se ele indica uma fonte diferente dele, ele oferece, ao seu co-enunciador, a possibilidade de avaliar, por si próprio, a confiabilidade dessa informação. c) Parâmetros pragmático-discursivos O nível de comprometimento é definido, para Dall’Aglio-Hattnher (2001), como sendo um tipo de estratégia discursiva indicadora do grau de tensão entre os 96 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008 interlocutores em termos do nível de comprometimento do sujeito-enunciador com o discurso. Esse parâmetro pode ser subdivido em: L (Alto comprometimento); E (Médio comprometimento); B (Baixo comprometimento). O alto comprometimento determina uma atitude de apropriação do sujeito-enunciador, que se apresenta como a fonte do conteúdo asseverado. O médio comprometimento indica uma atenuação de responsabilidade por parte do sujeito-enunciador. Por sua vez, o baixo comprometimento estabelece um maior grau de distanciamento do falante no que diz respeito ao conteúdo por ele asseverado. 4. Constituição do corpus de análise Para a análise dos efeitos de sentido produzidos pelas expressões evidenciais em discursos políticos, trabalhamos com um total de 10 discursos proferidos no Pequeno Expediente de Sessões Ordinárias da Assembléia Legislativa do Ceará, durante o ano de 2006. Os temas debatidos nos textos selecionados são relativos à vinda da refinaria para o Ceará e à transposição do Rio São Francisco, identificados, respectivamente, pelas codificações [DR] e [DF]. 5. Análise da evidencialidade em discursos políticos A evidencialidade reflete a relação entre os propósitos enunciativos dos sujeitos e o contexto comunicativo dentro do qual se dá uma interação. As marcas evidenciais, por sua vez, caracterizam-se por aspectos sintáticos, semânticos e pragmáticodiscursivos. Como já nos dedicamos, na seção 3, a explicação de cada parâmetro de análise, vejamos, agora, de que forma esses aspectos caracterizam a expressão dessa categoria lingüística em discursos políticos, bem como de que maneira os itens evidenciais “contribuem” na construção das estratégias de persuasão desse gênero de discurso. A evidencialidade, tal como constatado por Dall’Aglio-Hattnher (2001) e Galvão (2001), manifesta-se, principalmente, por meio de expressões lexicais. Nos exemplos (01) e (02) a seguir, podemos verificar que a evidencialidade pode se manifestar por meio das categorias morfossintáticas verbo e substantivo: (01) É bom a gente por bem vivo em nossos ouvidos essa frase do Deputado L. C.1, que diz de uma forma espontânea, clara, transparente por demais, que o Estado tem hoje condições com o Porto, com a malha viária, com adequação de infra-estrutura que foi implantada nos últimos 10, 15 e 20 anos. (v, t, u, I, R 6, c, B) [DR] (02) O segundo ponto é que para mim ficou muito claro com a declaração da Ministra R. D. que não é política, é técnica... dela dizendo que o protocolo estava assinado e que a Refinaria viria para Pernambuco em parceria com a Companhia Petrolífera da Venezuela. (s, a, u, I, R6, c, B) [DR] No exemplo (01), temos o verbo dizer (em posição intercalada). Esse tipo de predicado é denominado verbo discendi ou, de acordo com Neves (2000), verbos introdutores do discurso direto ou indireto. No exemplo (02), temos uma ocorrência de evidencialidade indireta (declaração) expressa por meio de um substantivo, que, segundo está mesma autora, é usado para que possamos nos referir às entidades do mundo (coisas, pessoas, fato, etc). Como podemos ver em (02), o item de valor metadiscursivo a declaração (em posição anteposta) indica um tipo de ação realizada por um sujeito reportado na enunciação, caracterizando-se, a exemplo da ilustração (01), ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008 97 como uma evidência indireta relatada-citativa. Esses itens evidenciais demonstram baixo comprometimento dos políticos com o conteúdo dos seus discursos. Em (01), percebemos que o orador reporta a fala de um terceiro com o objetivo de garantir um certo distanciamento em relação ao seu discurso, deixando ao seu co-enunciador a função de interpretar, por si mesmo, conforme a credibilidade da fonte, a veracidade da informação. Por sua vez, no exemplo (02), o político faz uso das palavras da ministra para mostrar aos seus adversários que o conteúdo proposicional não pode ser mais negado, pelo seu caráter factual. Nas ilustrações (03), (04) e (05) a seguir, podemos verificar marcas evidenciais que sinalizam como fontes da informação, respectivamente, o próprio sujeitoenunciador, um outro (terceira-pessoa) identificável contextualmente, e uma fonte que se configura como um conhecimento do domínio-comum: (03) Mas eu vi ontem, na Folha de São Paulo, um artigo do Professor M. V., que inclusive esteve aqui, na Assembléia Legislativa, divulgando um livro sobre Getúlio Vargas, que estou inclusive concluindo a leitura. (v, a, e, D, X1, f, L) [DF] (04) E ontem o Senador J. T. dizia que isso era coisa do PT. Eu acho que ele compreendeu que não se trata da Refinaria ser de um Partido da situação ou oposição, mas uma coisa que interessa a todo o Nordeste, particularmente ao Estado do Ceará, e eu reconheço que ele quando Governador, ajudou muito nesse sentido. (v, t, u, I, R6, c, B) [DF] (05) Sabemos nós todos, Deputado J. O., que a Refinaria já estava acordada e que a Ministra, eu vou fazer um Requerimento parabenizando-a pela coragem de não mentir, ela, ou abriu a boca antes do tempo, ou de uma forma que eu prefiro acreditar, corajosa, disse. (v, a, d, I, R7k, c, B) [DR] No exemplo (03), o político se apresenta como a fonte da informação. Essa estratégia pode ser utilizada para tornar o seu argumento incontestável em relação aos seus opositores, sobretudo porque ele afirma ter vivenciado a experiência descrita na enunciação. Esse tipo de estratégia discursiva é muito usado quando o político deseja mostrar-se como homem atento aos acontecimentos/fatos sociais, políticos etc. Já no exemplo (04), temos um item evidencial (verbo dizer) que o sujeito enunciador utiliza para vincular a informação a uma terceira-pessoa, com o objetivo de provocar no seu co-enunciador um efeito de distanciamento ou baixo comprometimento em relação ao tema por ele debatido. Ele apresenta o seu argumento por meio de um relato para mostrar que o assunto discutido é de interesse não apenas da instância da situação (ou seja, aquela que está no poder), mas também da oposição. Em relação ao exemplo (05), o parlamentar constrói sua argumentação com base em um conhecimento compartilhado por todos os presentes no Plenário ou, pelo menos, assim o faz parecer. Esse tipo de marca evidencial é usado como estratégia de diluição de responsabilidade. Além disso, pode também indicar um “chamado”, por parte do orador, para que a platéia participe de sua exposição, uma vez que “todos compartilham” os mesmos interesses políticos. As ilustrações (06), (07) e (08) apresentam itens evidenciais de natureza semântica direta, menos direta e indireta, respectivamente: 98 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008 (06) eu estou no Maracanã, olho para o placar, está lá: “A Refinaria é nossa. É do Rio de Janeiro”. Olhamos pela produção de petróleo nacional que é 80 % para ser refinado, é na Bacia do Rio de Janeiro! Merece uma reflexão. (v, a, e, D, X1, f, L) [DR] (07) me parece que o Deputado J. O. e o Deputado H. F. estão na contramão do Governador, no que diz respeito à refinaria. O Deputado J. O. e H. F. querem a guerra, para não vir a Refinaria para o Ceará ou nem para o Nordeste. O Governador está tratando de um jeito e eles estão tratando de outro, aqui dentro. (v, a, e, M, F4, c, E) [DR] (08) Ministro G. C. fez uma declaração hoje no Jornal. Diz que há um equívoco na forma de luta por esta Refinaria. Todos brigam pela obra que não existe. Depois dessa música do Severino Chic Chic em Brasília, eu acho que vai servir para o Presidente despertar alguma coisa. (v, a, u, I, R6, c, B) [DR] No exemplo (06), o sujeito-enunciador apresenta a informação como obtida de modo direto, mostrando-se ele mesmo como a fonte do conhecimento. O político fundamenta a argumentação do seu discurso a partir dessa marca evidencial, porque deseja imprimir, na situação de interação, um alto nível de engajamento em relação às informações por ele apresentadas. Argumentos construídos com base em marcas evidenciais diretas caracterizam o conhecimento como sendo supostamente algo que não pode ser negado ou refutado pelos adversários do político, uma vez que a informação foi obtida diretamente pelo orador. No exemplo (07), temos uma evidência do tipo menos direta. A informação nos é apresentada como sendo um conhecimento derivado por meio de pistas captadas na situação de interação. O objetivo é desqualificar a instância adversária, mostrando, ao auditório2, que a bancada da oposição está contra os interesses da platéia. Trata-se, portanto, de uma avaliação, de uma interpretação do orador, e não de um fato experienciado. Em relação ao exemplo (08), a expressão diz que imprime, claramente, um conhecimento derivado de uma terceira-pessoa. Percebamos que a marca diz que não constitui uma evidência do tipo boato (não especificada), mas uma expressão cuja fonte está no sujeito do verbo dizer, correferencial ao da oração anterior (Ministro G. C.). Parece-nos que esse tipo de fundamentação é apresentado porque o orador acredita que a opinião desse ministro tem credibilidade perante o seu auditório. Portanto, constitui um argumento forte para mobilizar as emoções dos que constituem essa platéia. No que diz respeito ao grau de envolvimento do falante com a situação por ele descrita na interação, os exemplos (09), (10) e (11) trazem, respectivamente, marcas evidenciais experiencial, inferencial e relatada indefinida: (09) a declaração da Ministra R. D., que não é política, é técnica, quando declarou e eu vi, assisti, estava casualmente assistindo o jornal da Globo, quando ouvi a declaração dela dizendo que o protocolo estava assinado e que a Refinaria viria para Pernambuco em parceria com a Companhia Petrolífera da Venezuela. (v, a, e, D, X1/2, f, L) [DR] (10) Agora também querer pré-julgar o Presidente Lula por essa decisão parece que é esquecer que em 1985, o candidato a Presidente da República era o Fernando Henrique Cardoso. (v, a, e, M, F4, f, E) [DR] ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008 99 (11) Todo mundo sabe que desde 1985 venho lutando por esta questão da Refinaria. Era vereador e Cid Gomes, Presidente desta Casa, quando foi formada uma comissão. (v, a, d, I, R7k, c, B) [DR] No exemplo (09), o político reforça a argumentação do seu discurso mediante uma marca evidencial experiencial, que caracteriza a situação relatada como vivida por ele, uma vez que o orador viu, assistiu e ouviu que um protocolo foi assinado, garantindo a Pernambuco a refinaria de petróleo. Esse tipo de estratégia fornece o efeito de sentido de alto comprometimento, causando a impressão de que os argumentos do político não podem ser contestáveis pelos seus adversários. A imagem que ele deseja construir é de um político comprometido com a verdade dos fatos. Em relação ao exemplo (10), o item parece que (verbo factivo)3 exprime uma relação de projeção de idéias, configurando-se como inferência do orador. O político infere, por meio de evidências disponíveis, que não é justo pré-julgar o Presidente Lula, mostrando, ao auditório, que se trata, na verdade, de forças políticas da oposição capazes de frear as ações do Governo. Embora esse item não seja experiencial “corporal”, ela não pode ser considerada um tipo de evidência indireta, já que se caracteriza por sua natureza cognitiva. Por essa razão, as marcas evidenciais com esse caráter cognitivo são classificadas como evidências menos diretas (GALVÃO, 2001). Ao utilizar esse tipo de item, o político parece diluir o seu nível de responsabilidade, apresentando-se como um orador menos engajado com o seu discurso (médio grau de comprometimento). Essa estratégia é utilizada como uma tentativa desse sujeito de acalmar os ânimos dos parlamentares da oposição ou, até mesmo, desqualificar as acusações levantadas contra o Governo Lula. No exemplo (11), por sua vez, o orador constrói seu discurso tendo como base uma evidência do tipo relatada – natureza indireta. Seu argumento ganha o estatuto de conhecimento compartilhado, causando a impressão de que o político se distancia do conteúdo por ele asseverado (baixo grau de comprometimento). Ele assim o faz, porque deseja construir uma imagem de defensor incansável dos direitos do povo; imagem esta, possivelmente, identificada como sendo aquela que evoca o desejo4 do auditório. Como vimos no item 3. 1 deste artigo, a evidencialidade pode ser caracterizada de acordo com o nível de compartilhamento da fonte oferecida pelo sujeito-enunciador ao coenunciador. Os exemplos (12) e (13) mostram, respectivamente, marcas evidenciais explícita só do falante e explícita compartilhada: (12) [...] Eu acredito, Deputado G. J., que você nascido no Encantado, centro do Estado do Ceará, que chegou aqui com luta e trabalho próprio, se V. Exa. estiver sabendo dessa marmota, dessa mutreta, dessa maracutáia enganatória do Governo Federal, ficando a pentear a Refinaria, é na Paraíba, é no Maranhão, é no Rio Grande do Norte ... (v, a, e, M, F4, f, L) [DR] (13) Nós sabemos que só temos água para trinta anos, e esse Projeto vai dar oportunidades para netos e bisnetos, inclusive para resolver esse problema de uma vez por todas, a questão do Semi-árido aqui no Ceará. (v, a, d, I, R7k, c, B) [DF] No exemplo (12), o político veicula a informação como tendo sido concebida ou concluída apenas por ele; ao contrário do que ocorre no exemplo (13), em que o orador faz parecer que é um conhecimento compartilhado por todos os parlamentares, 100 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008 promovendo maior envolvimento e interação com o auditório. Essa estratégia de compartilhamento muito tem a ver com o nível de comprometimento do sujeitoenunciador em relação ao conteúdo asseverado em seu discurso. Sendo assim, quanto mais diluída a informação em termos de compartilhamento, menos comprometido com a informação esse político estará. 6. Considerações finais Sendo a evidencialidade uma categoria lingüística que diz respeito à fonte da informação de um conteúdo proposicional, podemos afirmar que essa categoria constitui importante estratégia discursiva na construção da argumentação do discurso político, uma vez que as marcas evidenciais demonstram o grau de comprometimento do político com o seu discurso. Os itens diretos, por deflagrarem um alto grau de comprometimento, “contribuem” para a construção de imagens que façam o político parecer preocupado com os interesses ou estados de espírito de seu auditório. Os itens menos diretos, por sua vez, por apresentarem a informação como produto de uma elaboração cognitiva, o que está relacionado com um médio grau de comprometimento, são muito utilizados quando o político deseja atenuar a responsabilidade em relação ao que diz ou indicar uma reflexão/avaliação sua a respeito do estado-de-coisas. No que diz respeito às marcas evidenciais indiretas, verificamos que elas são utilizadas quando o político quer se descomprometer totalmente com o conteúdo dos enunciados, garantindo um certo distanciamento no que diz respeito a sua fala, já que permite ao auditório a avaliação, por si mesmo, das informações asseveradas no discurso, de acordo com a fonte externa apresentada. Além disso, pode configurar-se também como uma tentativa de construir imagens que o mostrem como diferente ou contrário, em termos ideológicos, sociais e políticos, dos seus adversários, pois, ao reportar a voz do seu opositor, assim o faz porque deseja se opor a ela. Notas 1 Não identificaremos nenhum dos sujeitos da interação. O termo “platéia” e “auditório” estão sendo usados como sinônimos. Trata-se de um conceito muito amplo, que diz respeito a todos os indivíduos a quem o político deseja influenciar mediante a construção de uma determinada imagem. (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA , 2005) 3 Segundo Neves (2006) predicados factivos indicam que, por parte do falante, a proposição completiva é factual, ou seja, verdadeira. 4 Para Charaudeau (2006), esse termo é justificado, uma vez que a atração das imagens é explicada apenas pela força do desejo. O ethos (imagem do ser que fala) é um espelho que reflete os desejos do político e do seu auditório. 2 Referências CHARAUDEAU, P. O Discurso Político. Trad.: Fabiana Komesu e Dílson Ferreira da Cruz. São Paulo: Editora Contexto, 2006. DALL’AGLIO - HATTNHER, M. M. A manifestação da modalidade epistêmica: um exercício de análise nos discursos de ex-presidente Fernando Collor. Araraquara, Faculdade de Ciências e Letras. Originalmente apresentada como tese de doutorado, Universidade Estadual Paulista, 1995. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008 101 DALL’AGLIO - HATTNHER, M. M. et al. Uma investigação funcionalista da modalidade epistêmica. In: NEVES, M.H.M. (Org.). Descrição do português: definindo rumos de pesquisa. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2001. DIK, C. S. The theory of functional grammar. Parte 1: The structure of the clause. Dordrecht: Foris Publication, 1989. __________. The theory of functional grammar. Part 2: Complex and derived constructions. Berlin: Mouton de Gruyter, 1997. GALVÃO, V. C. C. Evidencialidade e gramaticalização do português do Brasil: os usos da expressão diz que. Araraquara, Faculdade de Ciências e Letras, originalmente apresentada como tese de doutorado, Universidade Estadual Paulista, 2001. HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar. 2ª ed. London: Edward Arnold Publishers, 1985. HENGEVELD, K. Illocution, mood and modality in a functional grammar of Spanish. Journal Semantic, v. 6, 1988. __________. The architecture of a functional discourse grammar. Versão preliminar. Amsterdam, 2001. NEVES, M. H. M. Gramática Funcional. São Paulo: Contexto, 2000. __________. Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2006. NUYTS, J. Epistemics modal adverbs and adjectives and layered representation of conceptual and linguistic structure. Linguistic, v. 31, p. 933-969, 1993. __________. Subjectivity as an evidential dimension in epistemic modal expressions. Journal of Pragmatics, v.33, p. 383-400, 2001. PERLMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica. Trad.: Maria Ermantina Galvão Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2005. WILLETT, T. A crossing-linguistic survey of the grammaticalization of evidentiality. In: Studies in Language, v. 1, n. 12, 1988. 102 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 93-102, jan.-abr. 2008 A multifuncionalidade semântico-pragmática de “agora que”: diferentes estágios de Gramaticalização1 Maura Elisa Galbiatti Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara – UNESP E-mail: maura.elisa@ig.com.br Abstract. The aim of this work is to analyze the “agora que” semanticpragmatic multifunctionality, following the grammaticalization theoretical postulates. It purposes to investigate the grammaticalization pathway of this conjunctional periphrasis – from more concrete use to more abstract functions – examining if its emergence exemplifies the kind of semantic change whereby uses with causal/explanatory meaning are derived from temporal expressions, in linguistics contexts in which the cause/explanation concepts are conversational implicatures. Keywords. Linguistic change; grammaticalization; conjunctional periphrasis. Resumo. O objetivo do presente trabalho é analisar a multifuncionalidade semântico-pragmática de “agora que”, de acordo com os pressupostos teóricos da gramaticalização. Procura-se investigar a trajetória de gramaticalização dessa perífrase conjuncional – desde o seu uso mais concreto até o seu emprego mais abstrato – examinando se o seu surgimento exemplifica o tipo de mudança semântica pelo qual os seus empregos com sentidos causal/explicativo são derivados de expressões temporais, em contextos lingüísticos em que as noções de causa/explicação estão implicadas conversacionalmente. Palavras-chave. conjuncional. Mudança lingüística; gramaticalização; perífrase 1. Introdução De modo geral, a gramaticalização é entendida como um processo de mudança lingüística pelo qual uma unidade lexical assume uma função gramatical, ou se já gramatical assume uma função ainda mais gramatical. O termo gramaticalização foi usado pela primeira vez por Meillet (1965[1912]), que caracterizou o fenômeno como uma das maneiras pelas quais novos construtos gramaticais são formados. A “atribuição de um caráter gramatical para uma palavra anteriormente autônoma” é descrita pelo autor como um continuum unidirecional, uma vez que a transição é gradual e a mudança possui um único sentido: lexical > gramatical. Segundo Meillet, a gramaticalização tem uma motivação específica: a constante busca dos falantes por serem expressivos. O uso freqüente de uma palavra leva ao desgaste e à diminuição do seu valor expressivo; o falante tende a reagir contra essa ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 103-111, jan.-abr. 2008 103 automatização, recrutando formas lingüísticas já existentes para desempenhar novas funções ou criando novas colocações. Para Hopper (1987, 1991), o processo de gramaticalização está diretamente relacionado à natureza dinâmica da gramática, que está em constante mudança, sendo transformada continuadamente. Assim, Hopper afirma que não existe “gramática”, mas apenas “gramaticalização”, caracterizada pelo movimento em direção à estrutura. É relevante ressaltar que, nesta pesquisa, a gramaticalização não é tratada no sentido estrito de evolução diacrônica, mas como a investigação da multiplicidade de significados de um determinado item, que podem ser acionados, concomitantemente, e representam uma gradualidade sincrônica. 1. Mudança semântico-pragmática A concepção de gramaticalização lançada por Traugott (1982) e Traugott & König (1991) é formulada em termos distintos dos propostos por Meillet e Hopper, pois os autores empenham-se em identificar os tipos de mudança de significado que ocorrem nos processos de gramaticalização, isto é, eles privilegiam a análise dos aspectos semânticos e pragmáticos relacionados a esse fenômeno de mudança lingüística. Traugott & König (1991) definem a gramaticalização como um processo histórico, dinâmico e unidirecional pelo qual itens lexicais, no curso do tempo, adquirem um novo status, como formas gramaticais e morfossintáticas, e passam a ter significados que não eram codificados ou que eram de forma diferente. De acordo com Traugott (1982) e Traugott & König (1991), o processo de gramaticalização envolve uma pragmatização crescente do significado, por englobar mecanismos de inferência pragmática e estratégias metafóricas de aumento de abstração. A referida mudança lingüística é compreendida como um processo gradual e unidirecional, que parte de significados referenciais, passando por significados fundados na marcação textual, em direção a significados centrados na atitude ou crença do falante a respeito do que é dito. Eles chegaram à formulação de que as mudanças semânticas que acompanham os processos de gramaticalização seguem uma trajetória que aponta para o crescente fortalecimento da expressão subjetiva do falante. Esse percurso é ilustrado na figura abaixo: Significados identificáveis nas situações extralingüísticas > Significados fundados na marcação textual > Significados fundados na atitude ou crença do falante a respeito do que é dito Subjacente a esse fortalecimento, Traugott e König ressaltam que está o princípio de informatividade ou relevância, fator capaz de conduzir os falantes a maior clareza e especificidade e de orientar os ouvintes para a seleção da interpretação mais informativa ou relevante. A idéia de que os falantes, em uma dada comunicação, tendem a ser cooperativos é coerente com a proposta de Lehmann, para quem “todo falante quer 104 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 103-111, jan.-abr. 2008 fornecer a expressão mais completa para aquilo que deseja dizer” (1985, apud TRAUGOTT & KÖNIG, 1991, p.191). Eles afirmam que os itens referenciais, que sofrem gramaticalização, possuem significados identificáveis nas situações extralingüísticas e são pressionados a codificar significados cada vez mais pragmáticos. Em outras palavras, de acordo com os autores, os significados mudam “do que é dito para o que se queria dizer, mas não vice-versa”. A fim de evidenciar o fortalecimento de informatividade na polissemia entre tempo e causa, Traugott e König (1991) apresentam os exemplos (01) e (02): (01) After we heard the lecture we felt greatly inspired. (+ > because of the lecture we felt greatly inspired) Depois de assistir a palestra, nós ficamos imensamente inspirados. (+ > por causa da palestra nós nos sentimos imensamente inspirados) (02) The minute John joined our team, things started to go wrong. (+ > because John joined out team, things started to go wrong) No momento em que John se uniu ao nosso time, as coisas começaram a dar errado. (+ > porque John se uniu ao nosso time, as coisas começaram a dar errado) Segundo os pesquisadores, as inferências conversacionais acima são fortalecidas de informatividade, pois licenciam noções de causa a partir de fatos temporais. Bybee (2003) afirma que a mudança de uma seqüência temporal para uma seqüência causal indica que os usuários da língua estão propensos a inferir causas, motivos. Traugott e König (1991) também consideram relevante a afirmação de que as polissemias tempo-causa podem surgir por meio de implicaturas conversacionais. Um caso de gramaticalização envolvendo a polissemia entre os significados temporal e causal é o da conjunção since, do inglês: (03) I have done quite a bit of writing since we last met. Eu escrevi bem pouco desde a última vez que nos encontramos. (temporal) (04) Since Susan left him, John has been very miserable. Desde que Susan o deixou, John tem estado muito triste. (temporal/causal) (05) Since you are not coming with me, I will have to go alone. Já que você não vem comigo, vou ter de ir sozinho. (causal) Em (03), a leitura de since é tipicamente temporal, referencial; já em (05), since apresenta uma interpretação causal, em que esse significado está convencionalizado e não pode ser cancelado. A diferença entre esses sentidos é algumas vezes obscurecida, gerando ambigüidades, como (04), em que since permite duas leituras: uma convencional (temporal) e outra conversacional (causal). De uma perspectiva semelhante, Sweetser (1988, 1990) atribui à gramaticalização um mecanismo unidirecional de mudança semântica, que se realiza por meio de projeções metafóricas entre os diferentes domínios conceituais: do conteúdo (sociofísico), epistêmico (raciocínio lógico) e conversacional (atos de fala). Para ela, existe uma relação entre os domínios, sendo que os conceitos e o vocabulário ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 103-111, jan.-abr. 2008 105 do domínio epistêmico originam-se do domínio do conteúdo, assim como os conceitos e o vocabulário do domínio conversacional tendem a originar-se do domínio epistêmico. Essas projeções, que podem ser ilustradas com a figura seguinte, seguem a “tendência geral de recorrer a conceitos e vocabulários de um domínio mais acessível – mundo sociofísico – para se referir a domínios menos acessíveis – raciocínio, emoção e estruturas conversacionais” (SWEETSER, 1990, p.31). DOMÍNIO DO CONTEÚDO sociofísico DOMÍNIO EPISTÊMICO raciocínio lógico DOMÍNIO CONVERSACIONAL atos de fala Sweetser (1990) ressalta a necessidade de estudos sobre a sistematicidade das conexões entre os domínios e argumenta que a sobreposição de dois sistemas distintos de metáforas relaciona o vocabulário de ação/ movimento/ localização física com os domínios de estados mentais e atos de fala. Em outras palavras, o entendimento da lógica e o processamento mental são utilizados para compreender o mundo físico e social, da mesma forma que as expressões lingüísticas não servem apenas como descrição (um modelo de mundo), mas também como ação (um ato descrito no mundo) e como entidades epistêmica e lógica (premissa ou conclusão no nosso mundo da argumentação) (SWEETSER, 1990, p.21). Em suma, a autora trata de um sistema metafórico particular que direciona o curso das projeções entre domínios conceituais, os quais determinam diferentes formas polissêmicas que são interpretadas como etapas em uma trajetória progressiva, em direção a construções mais gramaticais. Ela argumenta que os itens lingüísticos podem ser interpretados de diferentes maneiras conforme o funcionamento pragmático de seus empregos, apresentando usos ambíguos entre os domínios do conteúdo, epistêmico e conversacional. Para exemplificar a aplicação nos três diferentes domínios, ela utiliza-se de conjunções causais e adversativas. Os exemplos seguintes, também da conjunção causal since, são casos de (06) conjunção do conteúdo; (07) conjunção epistêmica; e (08) conjunção de atos de fala: (06) Since John wasn’t there, we decided to leave a note for him. Já que John não estava aqui, nós decidimos deixar um recado para ele. (A ausência de John propiciou nossa decisão no mundo real.) (07) Since John isn’t here, he has (evidently) gone home. Já que John não está aqui, ele deve ter ido para casa. (O conhecimento da ausência originou a minha conclusão de que ele foi para casa.) (08) Since we’re on the subject, when was George Washington born? you’re so smart, Já que estamos no assunto / Já que você é esperto, quando George Washington nasceu? 106 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 103-111, jan.-abr. 2008 (O fato de nós estarmos nesse assunto possibilita o ato de fala interrogativo / Como você é esperto, eu te pergunto quando George Washington nasceu.) A autora explica que a conjunção causal, no domínio conversacional, indica uma explicação do ato de fala pronunciado; já no domínio epistêmico a conjunção causal marca a razão de uma crença ou de uma conclusão, ao passo que no domínio do conteúdo a conjunção causal assinala uma causalidade de um evento no “mundo-real”. 3. Material da pesquisa: O material para esta pesquisa, que conjuga as metodologias qualitativa e quantitativa, é constituído por um corpus sincrônico, que compreende dados de fala e de escrita: Dados de fala: • Amostra mínima do NURC • Banco de Dados IBORUNA2 Dados de escrita: • Base de dados armazenada no Centro de Estudos Lexicográficos da UNESP, Campus de Araraquara 4. Análise dos Dados Com base nos pressupostos teóricos apresentados, faz-se um estudo sincrônico de agora que a fim de analisar os seus empregos no português atual, observando a abstratização semântica e a crescente pragmatização do significado, que acompanham a gramaticalização. As ocorrências a seguir exemplificam a mudança: concreto > abstrato e ilustram uma possível trajetória de gramaticalização para essa perífrase conjuncional. Nota-se que, em (09) e (10) – emprego temporal, o significado das perífrases conjuncionais é mais concreto e referencial, baseado na situação física, extralingüística. Por outro lado, nos exemplos (11) e (12), as perífrases estão em estágio mais avançado do processo, pois desempenham funções semânticas mais abstratas, explicitando relações causais / explicativas entre as orações. Temporal – significado referencial, mais concreto (09) ... assim nas hortinhas comuns eu não sei as pessoas que tem UMA TECNICA [uma técnica] coisas assim...mas agora que chega a época do frio...como ah:: apesar do sol a água esfria e a terra é fria então a planta a raiz fica mais à vontade na terra...[sei] então essa época é a época que quando é frio se consome menos verdura e a verdura dá melhor... (AC-114)3 (10) Acreditava ter sido injusta com ela, recriminando-a pelo fato de ter deixado de visitá-la, agora que estava certa de que Yolanda iria ajudá-la muito, ser uma espécie de mãe para ela. (DD) Causal – significado mais abstrato, fundado na crença do falante a respeito do que é dito ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 103-111, jan.-abr. 2008 107 (11) – Feche os olhos. Agora que confia em mim, não precisa vigiar. (CH) (12) – Agora que entendemos tudo, queremos acabar com isso. (GD) Entre esses significados temporal e causal, existem inferências conversacionais que podem ou não se convencionar. Em alguns casos, as orações que expressam tempo podem ter conotações não-temporais, como nas ocorrências (13) e (14), casos polissêmicos em que o significado temporal coexiste com o causal. Essas acepções ambíguas, que compartilham funções de mais de uma etapa, corroboram a mudança por meio de convencionalização de implicaturas conversacionais (TRAUGOTT & KÖNIG, 1991): Tempo-Causa – emprego temporal com implicaturas causais / explicativas (13) – Lamento por mim mesmo. Enquanto todos me reverenciavam, ele me desafiava, e eu era obrigado a melhorar. Agora que ele se foi, tenho medo de parar de crescer. (HPP) (14) Tinha um comigo que todos os dias dizia assim: "antes eu trabalhava muito, estava sempre ocupado. Agora que eu estou preso, tenho todo o tempo livre! " Ouvir isso todo dia, enche, né mesmo? (MPF) A proposta de Sweetser contribui para o exame da pragmatização do significado de agora que, pois possibilita traçar hipóteses a respeito do percurso de mudança pelo qual essa locução conjuncional está passando. Para exemplificar a aplicação de agora que nos três diferentes domínios conceituais, são citados exemplos mais gramaticalizados de agora que, em que a perífrase explicita relações causais nos domínios do conteúdo (15); epistêmico (16); e conversacional (17): (15) Nem de manhã se viam mais, agora que ela tinha inventado essa história de montar uma academia de ginástica no salão em cima das garagens e ficava desde as sete horas mandando um batalhão de mulheres de malha abrir as pernas e dar pulinhos ao som de oito alto-falantes a todo vapor. (SL) (Eles não se viam porque a mulher estava ocupada na academia – evento no mundo real) (16) Agora que havia errado, precisava pagar um preço. E o preço foi beber o mais cruel dos venenos – a solidão. (BRI) (O conhecimento do seu erro originou a minha conclusão de que você precisava pagar um preço – avaliação subjetiva do falante) (17) – Agora que já pisou em mim, vá lá fora e pise na minha imagem – disse Jesus.. (HPP) (Eu ordeno a você que vá lá fora e pise na minha imagem pelo fato de você já ter pisado em mim – explicação do ato de fala) Em (15), no domínio do conteúdo, a perífrase assinala uma causalidade de um evento no “mundo-real”. Já em (16), a unidade é pertencente ao domínio epistêmico, 108 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 103-111, jan.-abr. 2008 uma vez que marcam a razão de uma crença ou de uma conclusão. Por fim, em (17), no domínio conversacional, a conjunção indica uma explicação do ato de fala pronunciado. Por meio de uma análise quantitativa, verificou-se que grande parte das ocorrências de agora que pertencem ao domínio do conteúdo (46%) – conferir na tabela abaixo – em virtude da preservação do significado temporal, mais concreto, em muitas ocorrências dessa locução. Além disso, constatou-se que todas as ocorrências temporais pertencem ao domínio do conteúdo, o que corrobora as postulações de Sweetser (1991), segundo a qual os eventos do mundo real, as relações mais referenciais estão nesse domínio mais concreto. ! Relação Semântica entre as orações Tempo Tempo / Causa Causa TOTAL Conteúdo 24 100% 4 14% 1 10% 29 46% " # Domínios conceituais Epistêmico Atos de fala – – 19 66% 6 60% 25 40% 6 21% 3 30% 9 14% TOTAL 24 100% 29 100% 10 100% 63 100% O gráfico seguinte permite visualizar os resultados expressos no Quadro 01, representando a distribuição das ocorrências de agora que nos três domínios conceituais: 70 60 50 40 30 20 10 0 $% Conteúdo Epistêmico Conversacional Total " & Os resultados apresentados na Tabela 1 evidenciam que agora que apresenta mais ocorrências ambíguas e causais (39 casos, se somadas) do que exemplos temporais (22 casos), o que significa que essa perífrase está gramaticalizando-se na marcação de causa, assumindo usos mais abstratos. O gráfico 2 ilustra a classificação semântica dos empregos de agora que levantados nos corpora. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 103-111, jan.-abr. 2008 109 70 60 50 40 30 20 10 0 $% Temporal Tempo / Causa Causal Total ' & 5. Considerações finais O exame da variedade de empregos da perífrase conjuncional agora que mostra que as diversas interpretações possíveis sugerem diferentes estágios de mudança, em que as acepções que veiculam avaliações subjetivas dos falantes, ou aquelas pertencentes aos domínios epistêmico e conversacional, ocupam um estágio mais adiantado do processo em relação às acepções mais referenciais, pertencentes ao domínio conceitual do conteúdo. Notas 1 Este trabalho faz parte de uma pesquisa de mestrado orientada pela Prof. Dra. Maria Helena de Moura Neves. O estudo é financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 2 Essa amostra de fala é resultante do Projeto “O Português falado na região de São José do Rio Preto: constituição de um banco de dados anotado para seu estudo”, cujo responsável é o professor Dr. Sebastião Carlos Leite Gonçalves. Desse banco de dados, foram utilizados, na presente pesquisa, 61 inquéritos. 3 As letras e números, entre parênteses, no final das ocorrências referem-se à obra da qual cada exemplo foi retirado. Referências Bibliográficas BYBEE, J. Cognitive processes in grammaticalization. In: TOMASELLO, M. (ed.) The New Psychology of Language. Volume II. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates Inc., 2003, p.145-167. HOPPER, P.J. Emergent grammar. Berkeley Linguistic Society, Vol. 13, p. 139-57, 1987. _____. On some principles of Grammaticalization. In: TRAUGOTT, E., HEINE, B. (orgs.) Approaches to grammaticalization. Focus on Theoretical and Methodological issues. Vol.1. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1991, p.17-35. MEILLET, A. L’évolution des formes grammaticales. Linguistique historique et linguistique générale. Paris: Libraire Honoré Champion, p.130-148, 1965 [1912]. 110 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 103-111, jan.-abr. 2008 NEVES, M. H. M. Gramática de usos do português. São Paulo: UNESP, 2000. SWEETSER, E. Grammaticalization and semantic bleaching. In: AXMAKER, S.; JAISSER, A.; SINGMASTER, H. (eds.) Proceedings of the Fourteenth Annual Meeting of the Berkeley Linguistics Society, 1988, p.1-17. _____. From etymology to pragmatics. Metaphorical and cultural aspects of semantic structure. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. TRAUGOTT, E. From propositional to textual and expressive meanings: some semantic-pragmatic aspects of grammaticalization. Amsterdam studies in the theory and history of linguistic science. In: Lehmman, C., Malkiel, 24: 245-271, 1982. TRAUGOTT, E. & KÖNIG, The semantic-pragmatics of grammaticalization revisited. In TRAUGOTT, E., HEINE, B. (orgs.) Approaches to grammaticalization. Vol. 1. John Benjamins Publishing Company, 1991. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 103-111, jan.-abr. 2008 111 Argumentação e discurso científico numa perspectiva pragmática Kanavillil Rajagopalan1 1 Departamento de Lingüística, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Rua Sérgio Buarque de Holanda, nº. 571 CEP 13083-859 - Campinas - SP – Brasil rajan@iel.unicamp.br Abstract: The aim of this paper is to discuss the role of argumentation in scientific discourse from the perspective of contemporary pragmatics. It considers all knowledge, including scientific knowledge, as socially constructed by members of the relevant community. The force of an argument, it is argued, comes from the socio-historical conditions prevailing at a given moment, and not from the logical rigour of the argument itself. Among other things, this implies that (1) an argument that convinces people at one historical moment may fail to do so at another moment (and vice versa) and (2) the capacity of an argument to convince others is only relative to the historical context in which it is produced. Keywords. argumentation; scientific discourse; rhetoric; pragmatics Resumo. O objetivo deste trabalho é discutir o papel de argumentação no discurso científico a partir de uma perspectiva pragmática. Ele considera todo conhecimento, inclusive o conhecimento científico, como construído socialmente pelos membros da comunidade em questão. A força de um argumento advém das condições sócio-históricas presentes num dado momento e não do rigor lógico do argumento em si. Entre outros aspectos, isso implica que (1) um argumento que convence as pessoas em um dado momento histórico pode deixar de fazê-lo em um outro momento (e viceversa) e (2) a capacidade de um argumento de convencer as pessoas é tão somente relativa ao contexto histórico em que ele é produzido. Palavras-chave. argumentação; discurso científico; retórica; pragmática ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 113-119, jan.-abr. 2008 113 Há uma crença bastante divulgada entre os desavisados de que o progresso da ciência se dá quando um cientista extraordinariamente dotado consegue propor uma teoria que explica todos os fenômenos que a teoria até então vigente não explicava e mais alguns fenômenos que não eram nem sequer vislumbrados pela teoria, agora superada. Trata-se da concepção linear do progresso da ciência. A despeito de todas as diferenças entre Popper e Kuhn (que não eram poucas), tanto um como outro aderiam, ao que parece, a alguma noção de progresso. Hutcheon (1995: 28), no entanto, assinala que a convergência entre os dois dizia respeito à natureza cumulativa, não necessariamente das teorias sucessivas, mas dos fatos que elas mobilizariam. Em outras palavras, ambos acreditavam — ou ao menos não duvidavam — de que houvesse um aumento de fatos sob a mira de duas teorias sucessivas. Embora compartilhasse com Popper e Kuhn a idéia de progresso da ciência, Feyerabend foi contundente ao chamar a atenção para a incapacidade das teorias de recobrirem todos os fatos. Em suas próprias palavras, Nenhuma teoria está em concordância com todos os fatos de seu domínio, circunstância nem sempre imputável à teoria. Os fatos se prendem a ideologias mais antigas, e um conflito entre fatos e teorias pode ser evidência do progresso. Esse conflito corresponde, ainda, a um primeiro passo na tentativa de identificar princípios implícitos em noções observacionais comuns. (Feyerabend, 1989: 77). Aos poucos, foi se percebendo também que não há um conjunto permanente de fatos a serem explicados pelas teorias. Da mesma maneira que nenhuma teoria dá conta de todos os fatos, não é verdade que diferentes teorias procurem explicar os mesmos fatos. Os fatos que uma teoria x escolhe explicar nem sempre são os mesmos fatos que outra teoria y tenta explicar. Afinal, cada teoria tem seus próprios fatos. Isso vem ao encontro da afirmação de Nelson Goodman (1978: 96-7) de que “os fatos são imbuídos de teoria (theory-laden); eles são tão imbuídos de teoria quanto gostaríamos que as nossas teorias fossem imbuídas de fatos”. Por sua vez, Hanson havia proposto que o que vemos e percebemos não é o que os nossos sentidos captam, mas o que é antes peneirado pelas informações sensoriais já disponíveis, cujo filtro é constituído pelas nossas crenças e conhecimentos (HANSON, 1958: 171). Com efeito, Goodman, assim como Hanson, rompem com qualquer vínculo direto entre uma teoria e os supostos fatos que ela pretende explicar. Goodman certamente tinha toda razão a respeito de um detalhe crucial da construção de teorias. Nenhuma teoria visa a explicar fatos que existem independentes dela. Podemos dizer que as teorias, por assim dizer, “criam” seus próprios fatos. Ou seja, ao contrário do que se pensa comumente, quando se passa de uma teoria para outra, o conjunto de fatos na mira do teórico também sofre um deslocamento em outra direção. Esse aspecto da ciência foi magistralmente destacado por Arthur Fine (1996). Na história de Lingüística, isso pode ser facilmente verificado pela chamada revolução chomskiana. Com a entrada em cena de Chomsky em 1957 (Chomsky, 1957), mudou-se o horizonte da teoria lingüística. Como resume Vivian Cook (2007: 124): 114 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 113-119, jan.-abr. 2008 Um recado crucial da Syntactic Structures para o futuro foi como o falante individual chega a apoderar-se das regras gramaticais em primeiro lugar. Os lingüistas estruturalistas acreditavam nos “procedimentos de descoberta” que pudessem ser aplicados ao input lingüístico a fim de derivar regras gramaticais. [.....] Chomsky argumentou que tais procedimentos são impossíveis de serem alcançados; o melhor que os lingüistas poderiam esperar a obter seria um procedimento para avaliar gramáticas alternativas, não descobri-las. O que foi realmente notável a partir dessa guinada nas investigações lingüísticas na época foi que os lingüistas deixaram de se preocupar com dados reais, colhidos empiricamente. Os dados passaram a ser produzidos a partir da intuição do próprio investigador. Ou seja, indução cedeu lugar a dedução, o empirismo a favor do racionalismo. Em seu livro Linguistic Theory in America, Frederick Newmeyer (1980:36) chega a cobrar do seu correligionário Robert Lees mais ousadia, acusando-o de uma certa “condescendência” em relação ao uso de indução estatística, provavelmente resultante do seu envolvimento anterior com o projeto de tradução mecânica, sediado no MIT. Para Newmeyer, tais tentações mereciam ser definitivamente banidas da Lingüística, uma vez que, no seu entender, não contribuíam para uma explanação propriamente dita dos fatos constatados (RAJAGOPALAN, no prelo). O fato é que devemos ficar atentos a um aspecto importante nesta mudança de um paradigma para outro: não é que, com o advento do novo paradigma, um conjunto de dados muito maior do que no paradigma anterior veio a ser o objeto de análise do lingüista. Na verdade, o que aconteceu foi que a pergunta preliminar “o que é um dado lingüístico?” passou a ser respondida de forma diferente. Em outras palavras, muda-se o paradigma, muda-se também o conjunto de dados a ser “explicado” pela nova teoria. Esse fato em si cria, com freqüência, uma incomensurabilidade irredutível entre as diferentes teorias envolvidas. Ponto crucial é que os argumentos arrolados nos parágrafos anteriores acabam abalando também a tese inaugural da Lingüística, segundo a qual haveria uma distinção radical entre o discurso do cientista (no caso, o lingüista) e o do leigo (RAJAGOPALAN, 2004a, b, 2005, 2006). O argumento a favor de o lingüista manter uma distância em relação ao leigo tinha como principal sustentáculo a tese de que os discursos dos dois seriam totalmente incompatíveis. O do primeiro seria a voz da razão científica; o do segundo estaria cheio de “idéias tão absurdas, preconceitos, miragens, ficções” nas palavras de ninguém menos que o próprio Saussure, o Pai fundador da disciplina (SAUSSURE, 1915 [2000]: 14). Assim, o conteúdo da resposta à pergunta “o que é um dado lingüístico”, além de distinguir de forma irredutível diferentes teorias, passa a excluir radicalmente a opinião do falante. Essa questão ganhou ainda mais destaque em um livro recente da autoria do lingüista Joshua Fishman, intitulado DO NOT Leave Your Language Alone! (Não deixe sua língua desamparada) (FISHMAN, 2006). Para quem conhece um pouco da história recente da lingüística, evidentemente trata-se de um trocadilho em cima de um outro livro — um clássico — chamado Leave Your Language Alone, publicado em 1950 pelo lingüista Robert Hall Jr. Escrito no auge do Estruturalismo, o livro de Hall pregava a não-ingerência na língua, sob hipótese alguma. Em nome de um cientificismo de procedência bastante questionável, Hall pleiteava que o lingüista desistisse de qualquer ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 113-119, jan.-abr. 2008 115 tentatação de interferir nos rumos de uma língua natural. Nas palavras do gramático Evanildo Bechara (2000) e membro da Academia Brasileira de Letras, o ímpeto por traz dessa atitude se baseia na idéia muito divulgada no século XIX, e vigente em alguns lingüistas de hoje, segundo a qual, sendo a língua um organismo vivo em perpétua mudança, ninguém deve perturbar essa mudança, mas, ao contrário, deve deixá-la livre em plena liberdade. É o que insinua, por exemplo, o livro do lingüista norte-americano Robert Hall, em 1950, Leave your language alone (Deixe sua língua em paz). Dito de outro modo, a idéia de que ao lingüista cabe apenas observar, descrever e, na melhor das hipóteses, explicar os fatos da linguagem e jamais interferir neles já não conta com tantos simpatizantes. O recente interesse crescente em torno da política lingüística – entendendo-se, como é o caso, que política lingüística implica levar em conta as opiniões do leigo sobre sua língua – , sintetiza bem o espírito contemporâneo — haja vista a verdadeira enxurrada de títulos publicados nos últimos anos (EDWARDS, 2004, WRIGHT, 2004, SHOHAMY, 2006, RICENTO, 2006, CALVET, 2007, JOSEPH, 2007). O surgimento do campo de estudo que se convencionou chamar de Sociologia do Conhecimento em oposição ao tradicional Filosofia da Ciência também contribui para a revisão do papel de argumentação em ciência. Recusando-se a entender a História das Idéias como algo desvinculado das condições efetivas nas quais surgem tais idéias, os defensores da Sociologia do Conhecimento (BERGER e LUCKMANN, 1967; BLOOR, 1967; GILBERT e MULKAY, 1984; LATOUR, 1987, LATOUR e WOOLGAR, 1986) vêm insistindo que a própria realidade é construída sociologicamente, sendo portanto passível de sofrer transformações substanciais conforme as mudanças que ocorrem no imaginário científico. Ora, dentro dessa perspectiva, a força de um argumento científico só pode ser avaliada no interior do próprio arcabouço da ciência e, mesmo nesse caso, relativa ao paradigma em jogo (RAJAGOPALAN, 1988, 2002a, b). Mais ainda, os argumentos utilizados por lingüistas em determinados momentos ao longo da história da disciplina derivam sua força das condições específicas que se obtém naqueles momentos históricos e não em outros. Daí a pertinência do seguinte comentário de Itkonen (1996: 471-472) a respeito da sintaxe chomskiana: “Se sua sintaxe tivesse uma ligação um pouco mais estreita com os dados lingüísticos de verdade, seria uma façanha monumental”. Há exemplos de sobra para ilustrar como as condições históricas determinam argumentos científicos. Pensemos, por exemplo, no famoso argumento utilizado pela lingüística, desde sua re-inauguração como disciplina científica, digamos, a partir de Saussure. Trata-se do argumento de que todas as línguas têm o mesmo grau de complexidade, devendo, portanto, ser consideradas iguais. Podemos dizer que este argumento, quase uma platitude na lingüística contemporânea, já se transformou numa espécie de axioma. Pode-se dizer até mesmo que duvidar dele será considerado politicamente incorreto por muitos. Entretanto, ninguém duvida de que o conhecimento de diferentes línguas do mundo varia em termos do seu “capital simbólico”, para utilizar o famoso termo de Bourdieu (1989). O que torna o argumento dos lingüistas crível (ao menos para seus pares) é que o próprio conceito de língua utilizado é fruto de uma abstração segundo a qual fatores tais como prestígio (ou desprestígio) de quem fala, ou 116 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 113-119, jan.-abr. 2008 diferenças de gênero, etnia, classe social, etc. simplesmente não são levados em conta. A questão, portanto, não é se uma afirmação do cientista corresponde ou não aos fatos, ou às percepções. Os fatos da ciência são resultantes de atos performativos praticados pelos cientistas. E a Lingüística está repleta de exemplos disso. Como diz McCloskey (1984: 106), “o erro está em pensar que estejamos engajados em atos proposicionais, que são regidos pela lógica formal, quando na verdade estamos engajados — o tempo todo — em atos ilocucionários, que são retóricos”. Em relação a um outro argumento utilizado corriqueiramente, a saber, o de que as línguas naturais são naturalmente “imunizadas” contra interferência externa (argumento este que serviu de base para o livro de Robert Hall Jr, conforme vimos anteriormente), as seguintes palavras de James Milroy (2004: 99-100) são bastante reveladoras: [.....] muitas das reivindicações “científicas” que os lingüistas defendem não são realmente científicas. Considere-se, por exemplo, a afirmação de que a língua “pode tomar conta de si mesma”. Esse fato nunca foi demonstrado por uma análise científica objetiva, e evidências indiretas parecem favorecer a visão contrária — de que as línguas não conseguem necessariamente “cuidar de si mesmas”. Por exemplo, há agora toda uma discussão entre os lingüistas acerca da questão da “morte das línguas”, e o fato de que uma língua pode desaparecer sugere que ela nem sempre é capaz de tomar conta de si mesma. Além disso, pode-se supor que, se alguém toma conta de uma língua, esse alguém é o falante e o usuário. Uma língua, sendo uma entidade abstrata, presumivelmente não pode fazer nada por si mesma: qualquer tipo de mudança (incluindo empréstimos) requer a interferência dos seus usuários. Conseqüentemente, são os falantes e usuários que devem fazer algo pela língua. Pessoas leigas normalmente acreditam que isso é verdadeiro: parece que só os lingüistas supõem o contrário. Vê-se, portanto, que é a força da retórica que convence o outro, que “constrói” um argumento como “verdadeiro”. Como dizia Dewey, “as premissas são nada mais que frutos da análise de uma conclusão às suas justificativas lógicas; não há premissas até que haja uma conclusão em primeiro lugar” (DEWEY, 1958: 379). Agradecimento Sou grato ao CNPq pela concessão da bolsa de produtividade (Nº. de processo: 304557/2006-4). Agradeço a Tatiana Piccardi pela revisão do texto. Referências bibliográficas BECHARA, Evanildo. A norma culta face à democratização do ensino. 2000. Disponível em http://www.novomilenio.inf.br/idioma/20000704.htm. Acesso em: 15 ago. 2007. BERGER, Peter L. e LUCKMANN, Thomas , The Social Construction of Reality: A Treatise in the Sociology of Knowledge. New York: Anchor, 1967. BLOOR, David. Knowledge and Social Imagery. London: Routledge, 1976. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. CALVET, Louis-Jean. As Políticas Lingüísticas. Florianópolis e São Paulo: Ipol/Parábola, 2007. CHOMSKY, Noam Avram. Syntactic Structures. The Hague: Mouton, 1957. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 113-119, jan.-abr. 2008 117 COOK, Vivian. Classic Book-Review: Chomsky’s Syntactic Structures fifty years on. International Review of Applied Linguistics. v.17, n.1, p.120-131. 2007. DEWEY, John. Experience and Nature. Nova Iorque: Dover, 1958. EDWARDS, Viv. Multilingualism in the English-speaking World. Londres: Blackwell. FEYERABEND, Paul. Contra o Método. Trad. Brasileira. Mota, Octanny S. da e Hegenberg, Leônidas. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora Ltda., 1989. Título original. 1975. Against Method. Londres: NLB. FINE, Arthur. Science made up: constructivist sociology of scientific knowledge. In: GALISON, P.; STUMP, D. (Ed.). The Disunity of Science: Boundaries, Contexts, and Power. Stanford: Stanford University Press, 1996. p. 231-54. FISHMAN, Joshua. DO NOT Leave Your Language Alone! Mahwah, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, Publishers, 2006. GILBERT, G. N. & MULKAY, M. Opening Pandora’s Box: A Sociological Analysis of Scientists’ Discourse. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. GOODMAN, Nelson. Ways of Worldmaking. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1978. HALL, Robert A. Leave Your Language Alone! Ithaca: Lingüística, 1950. HANSON, Norwood Russell. Patterns of Discovery: An Inquiry into the Conceptual Foundations of Science. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1958. HUTCHEON, Pat Duffy. Popper and Kuhn on the Evolution of Science. Brock Review, v.4, n.1 e 2, p.28-37, 1995 ITKONEN, Esa. Concerning generative paradigm. Journal of Pragmatics, v.25. n.1. p.471-501, 1996. JOSEPH, John E. Language and Politics. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2006. LATOUR, Bruno. Science in Action: How to Follow Scientists and Engineers Through Society. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1987. LATOUR, Bruno; WOOLGAR, S. Laboratory life: The Construction of Scientific Facts. 2. ed. Princeton: Princeton University Press, 1986. McCLOSKEY, D. N. The literary character of economics. Daedalus, v.113, n.3, p.97119. 1984. MILROY, James. O lingüista e as atitudes públicas frente à linguagem. In: LOPES DA SILVA, Fábio; RAJAGOPALAN, Kanaillil (Org.). A Lingüística que nos faz falhar. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. p.97-100. RICENTO, Thomas (org.). An Introduction to Language Policy: Theory and Method. Malden, MA, USA: Blackwell. 2006. RAJAGOPALAN, Kanavillil. A verdade na/da argumentação. Cadernos de Estudos Lingüísticos, n.35, p.39-48, 1998. _____. Science, rhetoric, and the sociology of knowledge: a critique of Dascal’s view of scientific controversies. Manuscrito, v.XXV, n.2, p.433-464, 2002a. 118 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 113-119, jan.-abr. 2008 _____. Sobre a especificidade da pesquisa no campo da pragmática’. Cadernos de Estudos Lingüísticos, v.42, p.89-98, 2002b. _____. Línguas nacionais como bandeiras patrióticas, ou a lingüística que nos deixou na mão: observando mais de perto o chauvinismo lingüístico emergente no Brasil. In: LOPES DA SILVA, Fábio; RAJAGOPALAN, Kanavillil (Org.). A Lingüística Que nos Faz Falhar: Uma Investigação Crítica. São Paulo: Parábola Editorial, 2004a. p.11-38. _____. Resposta aos meus debatedores. In: LOPES DA SILVA, Fábio; RAJAGOPALAN, Kanavillil (Org.). A Lingüística Que nos Faz Falhar: Investigação Crítica. São Paulo: Parábola Editorial, 2004b. p. 166-231. _____. Language politics and the linguist. In: FREIRE, Maximina; ABRAHÃO, Maria Helena Viera; BARCELOS, Ana Maria Ferreira (Org.). Lingüística Aplicada e Contemporaneidade. Campinas: Pontes, 2005. p. 39-51. _____. O fazer (sentido) da Lingüística. In: MARCHEZAN, Renata Coelho; CORTINA, Arnaldo (Orgs). Os Fatos da Linguagem, Esse Conjunto Heteróclito. Araraquara: FCL-UNESP, 2006. p.9 – 20. _____. A lingüística de corpus no tempo e no espaço: visão reflexiva. In: GERBER, Regina Márcia e VASILÉVSKI, Vera (Org.). Um Percurso para Pesquisas com Base em Corpus. Florianópolis: Ed. da UFSC. No prelo. SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de linguistique générale. Paris: Payot. Trad. Bras.: Curso de Lingüística Geral. (Trad. Antônio Chelini, José Paulo Paes, e Izidoro Blickstein). 22. ed. São Paulo: Editora Cultrix. 1915 [2000] SHOHAMY, Elana. Language Policy: Hidden agendas and new approaches, London/New York: Routledge, 2006. WRIGHT, Sue. Language Policy and Language Planning. From Nationalism to Globalisation. Hampshire, UK and New York, USA: Palgrave Macmillan, 2004. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 113-119, jan.-abr. 2008 119 Relações de sentido entre os diversos usos de MAS: a formação de uma rede polissêmica motivada metaforicamente Ana Paula A. Rocha Universidade Federal de Ouro Preto apr.letras@ichs.ufop.br Abstract: This paper focuses on the meaningful relationships that are established among the diverse uses of MAS in the nowadays Portuguese. The traditional perspective presents a great difficulty in treating the mentioned conjunction. The model of analysis that Sweetser (1991) uses to work with the conjunction “but” seems to be efficient in the description of the diverse uses of MAS and points out that the diverse meanings attributed to the item are linked by a polisemic net that is formed through metaphorical motivation. Keywords: conjunction MAS, polisemy, metaphor Resumo: O foco deste trabalho são as relações de sentido existentes entre os diversos usos de MAS no português atual. Os manuais tradicionais apresentam grande dificuldade no tratamento da referida conjunção. O modelo que Sweetser (1991) emprega na análise de but (inglês) mostra-se eficiente na descrição de usos de MAS e indica que os diversos sentidos atribuídos ao item relacionam-se através de uma rede polissêmica que se forma através de motivação metafórica. Palavras-chave: conjunção MAS, polissemia, metáfora 1. Apresentação O objetivo deste texto é apresentar uma reflexão sobre a relação existente entre os diversos sentidos que a conjunção MAS pode apresentar em português. Uma rápida consulta às gramáticas do português revela que as adversativas – entre as quais MAS assume papel prototípico – certamente se constituem como o conjunto de conjunções da língua mais rico de sentidos. Neste texto, serão defendidos os seguintes pontos de vista: (i) o modelo proposto por Sweetser (1991) para descrição do item but (inglês) aplica-se à descrição de MAS e permite compreender por que, apesar da gama tão variada de sentidos que o item pode apresentar, mantém-se a gramaticalidade das sentenças em que ocorre; (ii) as relações de sentido mencionadas formam uma rede polissêmica motivada metaforicamente. 2. Sobre os diversos sentidos da conjunção MAS em português As gramáticas tradicionais e os manuais de descrição do português mostram discordância tanto com relação aos itens que devam ser considerados conjunções adversativas quanto com relação aos sentidos que os mesmos podem apresentar. Com relação a MAS, há, porém, consenso quanto ao fato de ser uma conjunção adversativa.. O item ilustra, segundo todos os manuais consultados na execução deste trabalho, o conjunto das adversativas, sendo mesmo, em alguns casos, o único elemento citado. O fato de MAS poder ser considerado a adversativa prototípica do português ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 121-130, jan.-abr. 2008 121 deve-se a várias razões. Entre todos os demais elementos que podem constar entre as adversativas (porém, contudo, todavia, entretanto e no entanto), MAS é notoriamente o mais utilizado e o único que ocorre categoricamente em fronteira sentencial, posição típica das conjunções; os demais podem ocorrer em posição diversa da de fronteira. Embora haja consenso com relação à classificação de MAS como conjunção adversativa, os sentidos que lhe são atribuídos variam vastamente. A seguir serão citados os sentidos que alguns autores atribuem ou a MAS ou às adversativas em geral. Neste último caso, entenda-se que MAS está contemplado. Oiticica (1940: 61), sobre as adversativas, afirma que elas “justapõem pensamentos contrários”. Dias (1933: 256-57) atribui a MAS as seguintes funções: (i) “serve de ordinário de designar o que contrapõe ao que se disse precedentemente ou o restringe”; (ii) “quando se contrapõe a um membro negativo, (...) reforça-se com o advérbio sim”; (iii) “pode omitir-se, quando a antithese já se acha suficientemente demonstrada por outro modo”. Como adversativas, ainda considera “porém” – mais frouxo do que mas –, “ora” – que introduziria um pensamento diverso somente do que se enunciou precedentemente” –, “senão” – que, “na qualidade de adversativa, só tem lugar como synonyma de mas, quando a um membro negativo se contrapõe um afirmativo” –, e “pois” – que, como adversativa, “emprega-se nas réplicas, se se quer representar, como cousa de estranhar o serem ao mesmo tempo verdadeiros os enunciados que se contrapõem”. Melo (1970: 175) entende que as adversativas exprimem contraste ou compensação. Para Garcia (1992: 18), as adversativas marcam oposição, “às vezes com um matiz semântico de restrição ou ressalva”. Conforme Rocha Lima (1994: 185), as adversativas “relacionam pensamentos contrastantes”. Cunha & Cintra (1985: 566), por sua vez, afirmam que as adversativas “ligam dois termos ou duas orações de igual função, acrescentando-lhes, porém, uma idéia de contraste”. Já Sacconi (1990: 267-68) entende que o sentido básico das adversativas seja o de ressalva e que esse se desdobre em diversos outros sentidos: as adversativas “exprimem essencialmente ressalva de pensamentos, ressalva essa que pode indicar idéia de de oposição, retificação, restrição, compensação, advertência ou contraste”. Também Cegalla (1994: 267) apresenta vários sentidos para as adversativas que, segundo o autor, “exprimem oposição, contraste, ressalva, compensação”. Luft (2002: 189) afirma que as adversativas “denotam contraste, compensação”. Bechara (1999: 321) considera que as adversativas “enlaçam unidades apontando uma oposição entre elas”. Destaca que, “ao contrário das aditivas e alternativas, que podem enlaçar duas ou mais unidades, as adversativas se restringem a duas”. Acrescenta ainda que MAS acentua a oposição. Neves (2000: 755-770), ao tratar das “construções adversativas”, enfoca especificamente “a coordenação com mas”. Da mesma forma que faz com conjunções de outros tipos, a autora analisa mas sob três pontos: (i) a natureza da relação, (ii) o modo da construção e (iii) o valor semântico. Sobre (i), a autora afirma que o item “marca uma relação de desigualdade entre os segmentos coordenados, e, por essa característica, não há recursividade na construção com MAS, que fica, pois, restrita a dois segmentos”. Sobre (ii), Neves afirma que os segmentos coordenados por mas podem ser sintagmas, orações e enunciados. E sobre (iii), a autora afirma: 122 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 121-130, jan.-abr. 2008 nas relações de desigualdade há aspectos especiais marcados pelo uso do MAS. A desigualdade é utilizada para a organização da informação e para a estruturação da argumentação. Isso implica a manutenção (em graus diversos) de um dos membros coordenados (em geral, o primeiro) e (também em graus diversos) a sua negação (Neves, 2000: 757). As poucas referências bibliográficas consultadas são suficientes para mostrar o quanto é problemática a descrição de MAS. Sobre a divergência com relação aos sentidos do item, podem ser feitas várias observações, a começar com relação à imprecisão dos termos utilizados. Oiticica (1940), quando afirma que as adversativas contrapõem pensamentos, indiretamente afirma que a linguagem representa o pensamento, o que, para uma análise mais acurada, traz à tona questões epistemológicas sérias. Dias (1933), ao afirmar que mas serve para designar o que contrapõe ao que se disse antes, está atribuindo a mas uma função típica dos nomes; é estranho atribuir a conjunções funções designativas. Afirma também que porém seria “mais frouxo” do que mas, sem especificar o que se entende por palavra de sentido tão vago quanto “frouxo”. Da mesma forma, Almeida (1952) não explicita o que significa exatamente mas ter mais força do que porém. Garcia (1967), referindo-se a um matiz semântico de restrição ou de ressalva, parece estar afirmando que tal matiz se encontraria no próprio sentido de oposição e não que seria um dos sentidos possíveis das adversativas, paralelamente ao de oposição. Essa é uma questão que se impõe: as adversativas podem apresentar sentidos ambíguos ou os sentidos que lhe são possíveis se distinguem nitidamente? Cunha & Cintra (1985), quando afirmam que as adversativas ligam dois termos de igual função, parece estarem se referindo a função sintática; em seguida, fazem uma observação de cunho semântico: acrescenta-lhes uma idéia de contraste. A escolha lexical por “acrescentar” pode deixar subentendido que o contraste não seria expresso senão pela conjunção. Já para Rocha Lima (1994), as adversativas relacionam pensamentos contrastantes. Por mais impreciso que seja, nesse caso, o termo pensamento, o autor atribui às conjunções a função de relacioná-los, deixando claro que os pensamentos já são em si contrastantes. A seguir, ao destacar mas como a adversativa por excelência, deixa subentendido que as referidas características não se encontram em outras palavras como porém, todavia, contudo, entretanto, no entanto, as quais, segundo o autor, acentuam uma espécie de concessão atenuada. Pelo uso de “atenuada”, vê-se que também Rocha Lima (1994), assim como Almeida, entende que mas tem sentido mais forte do que as outras conjunções. Atente-se para o termo “espécie”, que indica quanto são imprecisos os apontamentos feitos. Sacconi (1990) afirma que os sentidos das adversativas têm em comum a característica de serem ressalva de pensamentos, o que é discutível, mas não deixa de ser uma tentativa de identificar um traço comum aos sentidos possíveis. Cegalla (1994), assim como Sacconi (1990), afirma que as adversativas exprimem alguns sentidos aparentemente estranhos. O uso de exprimir não deixa claro se a construção de sentido é função exclusiva da conjunção ou se é algo que já se encontrava entre as partes ligadas. O mesmo se pode dizer de denotar, termo usado por Luft (2002): as adversativas “denotam contraste, compensação”. Bechara (1999), por sua vez, ao afirmar que as adversativas “enlaçam unidades apontando uma oposição entre elas”, deixa subentendido, pelo uso de apontar, que a oposição já existia entre unidades enlaçadas. O mesmo se depreende da afirmativa de que mas e porém acentuam a oposição. Veja-se também que Bechara se refere a unidades enlaçadas, não restringindo a natureza de tais unidades a orações ou termos. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 121-130, jan.-abr. 2008 123 Neves (2000) distingue três pontos concernentes às adversativas (usados também para a caracterização de todas as conjunções estudadas na obra) que são, de fato, de naturezas diversas e foram, pelos trabalhos mencionados anteriormente, ou negligenciados ou tratados como se fizessem parte de um bloco de questões da mesma natureza. Quando trata do modo de construção, afirma que as unidades coordenadas por mas – o elemento que a autora usa para representar as adversativas – podem ser de diversas naturezas, o que não foi contemplado pelos trabalhos mencionados, com exceção de Bechara (1999). Além disso, Neves (2000) aponta a desigualdade como traço fundamental tanto das relações em que mas se encontra quanto do valor semântico do elemento, o que consiste em uma proposta de análise bem mais econômica do que a que se viu nos demais trabalhos referidos. Nesta seção, viu-se o quanto é ainda problemático o tratamento de MAS. Na próxima seção, será apresentado o modelo de Sweetser (1991), que posteriormente será aplicado a alguns exemplos dados pelos próprios autores citados na presente seção. 3. O modelo de Sweetser (1991) para but Sweetser (1991) propõe um modelo de análise de conjunções segundo o qual as conjunções são elementos que podem atuar em três domínios: o do conteúdo, o epistêmico e o conversacional. A respeito de but, a autora entende que o elemento possa ocorrer somente nos dois últimos domínios, o que se explicará adiante. Cabe esclarecer os pontos que sustentam o ponto de vista da autora. Sweetser defende que uma forma lingüística assume novos significados graças a uma projeção corriqueira existente entre os três domínios da linguagem referidos, sendo que o do conteúdo refere-se ao mundo físico; o epistêmico ao mundo mental; o conversacional aos atos de fala. As mudanças ocorridas com verbos perceptivos do inglês descritas pela autora são bastante ilustrativas do que ela chama de projeção entre domínios na constituição de novos significados lingüísticos. O verbo hear (ouvir, escutar), por exemplo, pode ser usado tanto no domínio do conteúdo (“não escutei a campainha”) quanto no domínio epistêmico (“não escutei minha mãe e me arrependo”), em que assume metaforicamente o sentido de obedecer. Aqui se teria uma metáfora de percepção operada no domínio mental. A manipulação física de um som que é retido oferece motivação semântica para que o verbo seja usado no sentido em que o que é retido são dados. O sentido básico de “retenção de estímulos exteriores” mantém-se, todavia. Analisando questões referentes a conjunções, coordenação e subordinação, Sweetser discute, entre outros tópicos, os itens and, or e but, os mesmos que já haviam sido tratados por Lakoff (1971). Também para as conjunções, Sweetser propõe a existência de três domínios, entre os quais se manifesta uma projeção em sentido unidirecional, via operações metafóricas, o que permite a (re)elaboração constante de significados. É importante observar que o domínio do conteúdo remete ao mundo real não em um sentido representacionista, segundo o qual o mundo real se espelharia nas expressões lingüísticas. O domínio do conteúdo é aquele a partir do qual, em função de suas experiências físicas, como as sensório-motoras, o falante elabora novos significados, graças à capacidade imaginativa de sua mente. No caso de and, Sweetser sugere que há, entre os três domínios citados, a manifestação de um sentido básico, que a partir de um domínio fonte se projeta aos demais: o de se colocar coisas lado-a-lado em um processo de adição. Veja-se: 124 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 121-130, jan.-abr. 2008 (1) John eats apples and pears. (John come maçãs e pêras.) Nesse caso, a adição de coisas é simples e não obedece a nenhuma ordem nem de temporalidade nem de causalidade, tanto que os elementos “somados” poderiam ter a ordem invertida sem danos para a sentença como um todo. A esse tipo de caso em que se pode inverter a ordem dos elementos ou cláusulas, Sweetser chama simétrico, terminologia adotada em outros trabalhos, como no de Lakoff (1971). Já no exemplo seguinte, a inversão não seria cabível sob pena de comprometer a própria gramaticalidade da sentença. A esse tipo de caso se chama assimétrico: (2) John took off shoes and jumped in the pool. (John tirou os sapatos e pulou na piscina.) Sweetser entende que a assimetria vista acima deve-se à iconicidade da linguagem, que faz com que a ordem temporal de sucessão que os eventos relatados seguem no mundo real se reproduza lingüisticamente. O uso narrativo de and comprova a interação existente entre a linearidade inerente ao uso lingüístico e o conceito geral de “pôr as coisas lado-a-lado”. O exemplo seguinte ilustraria, por sua vez, uma linearidade decorrente não do mundo real, mas sim de um processo lógico, sendo, portanto, um exemplo de and no domínio epistêmico: (3) Why don`t you want me to take basketweaving again this quarter? Answer: Well, Mary got anMA in basketweaving, and she joined a religious cult. (...so you might go the same way if you take basketweaving). (Por que você não quer que eu pegue basketweaving de novo esse bimestre? Resposta: Bem, Mary tem um MA em basketweaving e ela se juntou a um culto religioso. (... assim você pode ir para o mesmo caminho se você pegar basketweaving.)) Em (3), a ordem das cláusulas não reproduz iconicamente uma ordem de eventos sucedidos no mundo real, e sim uma ordem de premissas que levam a uma conclusão. Já o seguinte exemplo mostra and empregado no domínio conversacional: (4) The Vietnam War was morally wrong, and I´ll gladly discuss the reasons why I think so. (A Guerra do Vietnã foi moralmente errada e eu terei prazer em explicar as razões pelas quais penso isso.) Também para or Sweetser encontra ocorrências nos três domínios citados. Já para but a autora tece a seguinte objeção: but conecta segmentos que contrastam entre si ou mesmo “colidem” (clash é o termo usado), mas esse contraste e essa colisão só são perceptíveis nos níveis espitêmico e conversacional. Um exemplo dado pela autora para corroborar sua proposta é: (5) John keeps six boxes of pancake mix on hand, but he never eats pancakes. (John mantém seis caixas de mistura para panquecas estocadas, mas nunca come panquecas) O choque pode dar-se também entre duas conclusões implícitas, suscitadas por duas premissas conectadas por but, como em: ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 121-130, jan.-abr. 2008 125 (6)“Do you know if Mary will be in by nine this evening? Answer: Well, she`s nearly always in by then, but (I know) she has a lot of work to do at the library, so I`m not sure.” (Você sabe se Mary vai estar em casa às nove esta noite? Resposta: Bem, ela sempre chega por volta das nove, mas (eu sei) ela tem um monte de trabalho a fazer na biblioteca, então não tenho certeza.) O argumento de Sweetser é que as relações de sentido sinalizadas por but nos dois últimos exemplos não se processam no domínio do conteúdo porque não há nada no mundo real que impeça a concomitância do fato de John estocar panquecas e o fato de ele nunca comê-las. Da mesma forma, no mundo real, é possível que Mary sempre chegue a casa por volta das nove e que em um dia determinado tenha muito trabalho a fazer na biblioteca. A colisão se dá entre conclusões processadas no nível epistêmico: se Mary chega a casa sempre até às nove, é possível que chegue hoje também; se Mary tem muito trabalho a fazer, é possível que não chegue a casa no horário de sempre. Para Sweetser, mesmo que se argumente ser possível depreender as relações acima no domínio do conteúdo, é impossível negar seu processamento no domínio epistêmico. Tipicamente, no entanto, relações que ocorrem no domínio do conteúdo não ocorrem ao mesmo tempo no domínio epistêmico. Lakoff (1971) afirma que a gramaticalidade de períodos em que duas sentenças estejam ligadas por but, se não se construir superficialmente (o que, para Sweetser, não ocorre), dependerá, então, de uma combinação de pressuposições e deduções que uma delas ou ambas desencadeiam. Além disso, Lakoff descreve uma “hierarquia de naturalidade” de pressuposições e deduções: algumas mais universais (como se vê em “John é alto, mas não é bom no basquete”); outras menos (como em “John é Republicano, mas você pode confiar em Bill”); outras idiossincráticas (como em “John detesta sorvete, mas eu também”). O destaque que Lakoff dá às informações implícitas talvez seja a maior contribuição de seu trabalho. Um dos exemplos que analisa é: (7) “John is rich but dumb” (John é rico mas estúpido) O exemplo só pode ser avaliado, segundo a autora, dentro de algum contexto. Por exemplo, uma mãe que queira dissuadir a filha de casar-se com João poderia dizer que ele é rico (uma boa qualidade), mas estúpido (um defeito), não sendo, portanto, um bom partido. Aqui se teria um caso de oposição semântica. Por outro lado, alguém que julgue que pessoas ricas não são estúpidas poderia ter empregado but justamente por haver aí, então, uma quebra de expectativa. Já Sweetser, embora também reivindique um papel crucial às informações e conclusões pressupostas e implícitas na análise da gramaticalidade de sentenças com but, diverge de Lakoff com relação à existência de oposição semântica propriamente dita nessas estruturas. A ocorrência vista em (7), por exemplo, Sweetser entende como sendo possível somente no domínio epistêmico ou no conversacional. Enquanto Lakoff atribui à frase uma quebra de expectativa, Sweetser lhe atribui uma quebra de expectativa no nível epistêmico. Já a leitura que Lakoff atribui a uma oposição semântica, Sweetser entende como se processando no domínio conversacional, porque a mãe hipotética poderia estar, em um ato de fala, dizendo à filha: “eu sugiro que você não se case com John”, o que anularia a possibilidade de uma leitura desse exemplo no domínio do conteúdo, até porque, para Sweetser, no mundo real, riqueza e estupidez não necessariamente se opõem. 126 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 121-130, jan.-abr. 2008 Como se vê, o modelo de Sweetser mostra-se bastante eficiente no tratamento de but, principalmente por considerar que, na estrutura adversativa, o “choque” não se dá entre duas proposições lingüisticamente expressas, e sim entre informações suscitadas por tais proposições. A estrutura adversativa é, na verdade, um tipo de expressão lingüística altamente sofisticado do ponto de vista cognitivo, o que acarreta dificuldade à descrição do lingüista. Ao falante, porém, a dificuldade não se impõe, graças à operações cognitivas que ele realizam no nível epistêmico, conforme defende Sweetser. 4. Análise de ocorrências de MAS segundo a proposta de Sweetser para but A seguir, serão analisadas algumas ocorrências de MAS retiradas aleatoriamente das referências bibliográficas utilizadas na seção 2. Rocha Lima (1994: 185), que, como se viu, afirma que as adversativas “relacionam pensamentos contrastantes”, exemplifica MAS com a seguinte frase: (8) Gosto de navio, mas prefiro avião. Em (8), o que o autor chama de “pensamentos” são, na verdade, declarações, proposições: “gosto de navio” e “prefiro avião”. Seguindo o raciocínio empreendido por Sweetser para estudo de but, vê-se que não há nada que impeça alguém de gostar de navio e preferir avião. O “choque”, a adversidade não se encontra entre as duas proposições. A frase só poderia ser devidamente analisada se encaixada em um contexto maior. Trata-se de um tipo de ocorrência muito comum de MAS: um tipo em que se estabelece uma comparação entre dois objetos, no caso navio e avião. O que se deve entender, porém, é que os falantes não comparam elementos aleatoriamente, sem propósitos. A comparação só faz sentido se o contexto a comportar. Imagine-se que um agente de viagens perguntasse a um cliente suas preferências com relação ao meio de transporte utilizado em suas viagens. Diante de uma resposta como (8), o agente entenderia que deveria procurar opções de viagem em avião, e não navio. Assim, (8) estaria ocorrendo no domínio conversacional. O contraste não se processaria entre pensamentos e sim entre conclusões a que o agente poderia chegar: se o cliente afirma gostar de navio, ele pode concluir que deve procurar opções de viagem em navio; se afirma que prefere avião, o agente anula a primeira conclusão e privilegia a de que deve procurar opções via avião. Se se entende conclusões como pensamentos, então se poderia dizer que há pensamentos contrastantes. Sacconi (1990: 267-68) enumera diversos sentidos para as adversativas. No exemplo (9), MAS exprime, segundo o autor, oposição. Já o exemplo (10) teria, para o autor, o sentido de restrição. O exemplo (10) consta na fonte com o item porém. Como a paráfrase com MAS não adulterará o sentido global da frase, aqui ela será citada com MAS. Veja-se: (9) Luís trabalha muito, mas ganha pouco. (10) Foi ao baile, mas dançou pouco. Não parece muito clara a distinção que o autor faz entre oposição e restrição. Na verdade, o que se vê, em ambos os casos, são exemplos de ocorrências nas quais a adversidade, seja ela manifesta em forma de oposição ou de restrição, dá-se não entre as proposições ligadas pela conjunção, e sim entre uma das proposições e uma conclusão pressuposta e não declarada, suscitada pela outra proposição. Nada impede, no mundo, ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 121-130, jan.-abr. 2008 127 que alguém trabalhe muito e ganhe pouco. O que ocorre é que, se se sabe que alguém trabalha muito, cria-se a expectativa de que não ganhe pouco. Essa expectativa entra em choque com a afirmativa “ganha pouco”. Trata-se de uma relação descritível somente no domínio epistêmico. Da mesma forma, não há impedimentos para se ir a um baile e se dançar pouco. Há, porém, a expectativa de que alguém que vá a um baile dance muito. Também Cegalla (1994: 267), como se viu, atribui uma vasta gama de sentidos às adversativas. Ao contrário de Sacconi, porém, não explicita a qual sentido se ligaria cada um dos exemplos que dá. Observe-se um de seus exemplos: (11) Querem ter dinheiro, mas não trabalham. As afirmativas de que pessoas “querem dinheiro” e de que “não trabalham” mostram-se contrastantes, para fins descritivos, se se leva em conta que os falantes, por razões óbvias, têm a expectativa de que trabalhar seja condição para se ter dinheiro. Se essa condição pressuposta não se cumpre, cria-se então um choque com a afirmativa anterior. A gramaticalidade de (11) explica-se, então, graças a relações que se processam no domínio epistêmico. Caso a frase fosse dita por um pai a seus filhos, poderia ainda ser compreendida como uma ordem para que os filhos trabalhem, ou seja, como um ato-de-fala, e então estaria se processando no domínio conversacional. O mesmo raciocínio pode ser empreendido para análise de (12), que foi citado por Cunha & Cintra (1985: 566): (12) Apetece cantar, mas ninguém canta. A concomitância entre o fato de apetecer cantar e o de ninguém cantar pode gerar o sentido de contraste quando, num dado contexto, observa-se que ninguém canta e que isso contrasta com a expectativa contrária, gerada pela afirmação anterior de que cantar apetece. Mesmo nos exemplos comentados, que são citados nas gramáticas tradicionais de que foram retirados de forma descontextualizada, só é possível explicar-lhes a gramaticalidade se se pensa em hipotéticos contextos em que poderiam se encontrar. Todos os contextos imagináveis acarretam a existência de idéias pressupostas, não declaradas pelo significante, mas levadas em conta tacitamente pelos falantes. 5. Considerações fnais Neste trabalho, viu-se o quanto é confusa, senão caótica, a descrição tradicionalmente feita do item MAS em português. Embora haja consenso com relação à classificação do item como conjunção adversativa, os sentidos que lhe são atribuídos são muitos e divergentes. Não há também preocupação em se verificar se tais sentidos se formam de maneira independente ou se se relacionam entre si, constituindo uma rede polissêmica. A proposta de Sweetser (1991) para análise de but mostrou-se eficiente na aplicação da estrutura adversativa com MAS, porque (i) leva em conta que o “choque” adversativo não se dá entre segmentos da sentença, e sim entre um desses segmentos e uma informação pressuposta suscitada pelo outro segmento ou entre informações pressupostas suscitadas por ambos os segmentos; (ii) localiza essas informações pressupostas em domínios da linguagem bem definidos teoricamente – o epistêmico ou o conversacional –, explicitando a complexa elaboração cognitiva que subjaz aos usos 128 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 121-130, jan.-abr. 2008 da estrutura adversativa; (iii) mostra que, por mais se identifiquem nuances de sentido entre os diversos usos da estrutura adversativa, a gramaticalidade de todos explica-se em função de todos ocorrerem nos mesmos domínios da linguagem. Sobre o ponto (iii), vejam-se, por exemplo, os inúmeros sentidos enumerados por Sacconi (1990) e Cegalla (1994) para as adversativas em geral, o que só expande o quadro já extenso de sentidos atribuídos a elas pelos autores diversos. As obras referidas não se preocupam em verificar se todos esses sentidos relacionam-se semanticamente. Seria, contudo, difícil acreditar que os falantes usassem e compreendessem com propriedade todos esses sentidos se não houvesse uma base comum entre eles. O modelo de análise proposto por Sweetser (1991) mostra que o que há em comum entre esses sentidos é o fato de todos suscitarem informações não expressas lingüisticamente. Além disso, o modelo baseia-se na idéia de que há uma projeção metafórica entre os três domínios da linguagem – o do conteúdo, o epistêmico e o conversacional. Identificar essa projeção implica identificar relações entre os sentidos que se constituem nesses domínios. Em outras palavras, se MAS assume sentidos aparentemente tão diversos, isso se dá em função da capacidade do falante de executar projeções metafóricas entre domínios da linguagem. Essas projeções, por sua vez, só se tornam possíveis graças à capacidade do falante de criar sentidos mais abstratos a partir de sentidos mais concretos, levando todos esses sentidos a formarem uma rede polissêmica. Buscar compreender quais dos muitos sentidos atribuídos a MAS são mais abstratos e quais se relacionam com quais pode ser uma tarefa ainda por se cumprir. Entender, porém, que todos esses sentidos ocorrem em dois domínios da linguagem é fundamental para se entender a motivação pela qual se criam novos sentidos e para se verificar que a extensão dos sentidos atribuídos a MAS não se dá de forma aleatória, e sim motivada. Neves (2000) defende, conforme se viu, que o valor semântico básico de MAS é a diferença. Em vez de procurar as nuances semânticas do item, a autora procura identificar o traço comum que liga tais nuances, o que teoricamente é vantajoso. Sueetser (1991), por sua vez, mostra que esse traço de diferença não se encontras entre os dois segmentos entre os quais a conjunção se localiza. Por último, note-se que, se as informações postas em “choque” não se encontram expressas, está claro que o sentido adversativo não é expresso pela conjunção. As adversativas talvez sejam o grupo de conjunções que mais comprove a tese de que o sentido textual realiza-se de forma global e que, no caso, as conjunções são tão somente um guia, um sinalizador, um significante que suscita um significado que se encontra muito além da letra propriamente dita. 6. Referências bibliográficas BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. CEGALLA, D. P. Novíssima Gramática da Língua Portuguesa. 37. ed. São Paulo: Nacional, 1994 . CUNHA, C.; CINTRA, L. F. L. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. DIAS, A. E. da S. Syntaxe Historica Portuguesa. 2.ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1933. GARCIA, O. M. [1967] Comunicação em prosa moderna. 15.ed. Rio de Janeiro: FGV, 1992. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 121-130, jan.-abr. 2008 129 LAKOFF R. If´s, And´s and But´s about conjunction. In: FILLMORE, C. LANGENDOEN, D. (eds.). Studies in linguistique semantics. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1971. LUFT, C. P. Moderna gramática brasileira: edição revista e atualizada. São Paulo: Globo, 2002. MELO, G. C. D. Gramática fundamental da língua portuguêsa. 2.ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1970. NEVES, M. H. de M Gramática de usos do português. São Paulo: Editora UNESP, 2000. OITICICA, J. Manual de análise. 5.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1940. ROCHA LIMA, C. H. da. [1972] Gramática normativa da língua portuguesa. 32. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. SACCONI, Luiz A. Nossa gramática: teoria. 14.ed. São Paulo: Atual, 1990. SWEETSER, E. From etymology to pragmatics. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. 130 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 121-130, jan.-abr. 2008 !!"#! ' $ () % & *+ ! " " ! + ! * . / 0 1 2!!! 0+3 2!!20 2!!4 0+0 2!! 6 7 0 , ) , , / -8 , ' 7 * 7 , 0 * + -: 0 , -8 % -8 3 ,* 6 , / -8 8 3 * - 0 , / -8 0 , ,+ 7; , + -: +< ) 3 -8 , * + = , / -8 3 * 8 -8 , , * >" ' % * -8 0 9 5 * ) , ? , , ! + 9 , 5 , 0 5 * , ,* 7;' ' 7 0 8 -8 ?* -: 7 / -8 8 ) , A 7 * , ' 7 ,' , ' 7 7;' * ' 7 A 6, , , ' 0 , , 5 -: * -: , , / -8 ) 0 0 7 / , * * 7 , 7 * ) * ? 7; $ 0 0 , @ , 5 0 + * 7 3 * * -8 7 7 , ' 7 0 7 7;' A 0 ,+>,0 B *C % ,% % * * - " ,* , ,+>, , % % * * / -8 * - " ,* , >, B 0 -8 7;' >, , % > B , A' 7 , , ,% , , % * , ) / % > 7 0, , , 0 ,* ,' , ' 7 0 5 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 131-140, jan.-abr. 2008 131 ,* * , * %; / 7 ) 7 , % -8 * C * ,* 0* , * , 5 * 0 + 7 C * + ,5 A 7 A% 8 * * * C % , -: > B'+ 0* 5 , 7 , 7;' 7 , $ , 7 ' ,, 0>* 0 , * * A, ,* * - * )' A 7 , * -8 * , 0 -: * A ' 7 AE * + / ,8 , , A , * * -8 A 7 / -8 0 * 7 , ) @ , * , -: 7 , -: 0 -8 ?, , -: , 7 ,5 , 5" 0 % % ' 7 D -8 7 7 , ' , $ * =% , 7 , 7 ) -8 , ? > * % 0 F , + B , % 7;' * , ' * , 0 , ) , $ , -8 -: * -8 % ) -8 % ) -8 % * % ) / A < A ) / 7 > 8 ) , * ) 8 G , -8 + B < , 5" 0 , ) / " 7 0 , 5 7 , ' 7 0 < +< -: 9 > 20 ) + > /E A$ -8 > > ,* 5 % 0 , , , *' 0 , , F, 7;' % *: , 5 ' ,* 0 . , 4 , ' ) , -8 * * C7 ' 7 $ 7 ,5 ) * 7 , 5 ' -8 E > 8 , , ' % A* -: A ) , * $ 7 ,5 7 , + 5 ' I -8 % * ) H, 5 $ 7 ,5 * 7 / , ' *' E ' 7 C * ' , , J + 5 ) C * 7;' $ > 8 , ,* 5 = )C , 7 7 ,7 C * 3 )C , / ,* * : 7;' , ' 7 ) C * $ * K 7 , 0 -8 , ' 7 0 , *> + 7 7 , * + 0 % * 8 5 7 , , ) ,' % , , , , , , , * ? ) ,' 8 + * " * ) , + * 8 + 7 7 ,* A * 5 * * @ + B + ,, 7 -8 , ) ' 7 132 6, -8 0 , ,, ) , 7 * 7 + ' ) 7;' * : > , -: , -: < 8 7 , , , 5 , * 7 0 % / -8 -8 * " 7;' ) % , ' 8 C ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 131-140, jan.-abr. 2008 8 ) , A* + , 7;' A ,+>, 8 ) , * ,* 8 , ) ,+C 0 * * , 7 * 0 + 0 * % , , + < 7 ,* ' , -8 * -: 3 7 , % ) , , , , + / > , * , B C $ * -8 5 * , ,+ , * ' ,* ' + , + 7 * , , , 0, , ) 0 8 ,* , 0 ? , B , * > * % 7 , ) , -8 ,* ' ,* ' " G , B ,+>, % + / -8 + / -8 * -8 8 * 5 < , , C , , ? ) 8 * + , , ,* 8 * , 5% * + % % % , 0* ' 7 0* * + B + -8 * ) * < 0% / 0* * 7 7 , , * 8 % = 7 / 0* , / 7;' $* + , , B , + 0* , 7 / -8 A -8 A $ * A 8 ) / A A -8 A A > -8 , * ' A 8 ,+>, , , -: 0 , , A> A ) -: * -8 , / -8 ' , -8 7 , 0 /=* 0 , ' = ' , 7 / -8 / , % , -8 , ' $ 8 ,= > > ) , = / -8 @ " * , * / , / -8 0 > + 0 * * ) -8 , > + * , , -8 7;' = % = 7, 0 * 0 ? = % = 8 , * -: * >" ' * < -: * -: * 7, 0 * 0 , $ * 7 / -8 7,5 * 7,5 <5 5 * > -: $ 5 % ) / , > , > + / , 0 , / -8 0 7 , 7;' = % = 0 5 7 ', L5 7; , ,+>, * , , , * * , E , / -8 ) 8 ") 3 ,* ) 7 5) 0 ) , , , 5 A , / -8 + A0 * 6 * , * C $ * / -8 % ) / , 0 * 0* @ + B ,A * , , * ?* -: -: A 8 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 131-140, jan.-abr. 2008 , / -8 $ ,* 3 A , / -8 * 8 , ,* ,A + , B , , 7 5) , A 6 ) ) -: A0 8 + B 133 ,* -8 8 ) , , , , * + -8 , % ) 8 B 7 , ,* * , B % % * + , 7 ,5 ) -8 A -8 A % '+ % * 8 0 , * ) 8 * * -8 0 % -8 $ , -8 , * -: 8 ) 8 B 7 ,* ! 7 C A* "# $ @ * * , 7 -: 0 % ' , , ) 0 * 0 8 , * -8 + , * -8 A -8 A A 8 " 5 % ) /8 ' / -: 0 , , * 0 * * / A * * C* / -8 0 , * 0, , ' , A + @ , ,< 7 ) * -8 A @ , , -8 + 8 * * -: * ,* 7 "# 8 8 * * 7 + -8 5 % * , , % % , / -: 8 * ') = , ,E * % : * ') /5 A 7 7 , 0 8 * , , % * -8 C * 7 , 0 , E < * C7 0 * , , 3 C* , 5 0 0 ) H, B , * 7;' , * / -8 0 ) / -8 , / -8 * C 8 * 6, 7 $ ) 8 8 ) / , -8 , 0 % C , -8 7 , , ) -8 * -8 < C7 0 = , , 7 0 * -: C7 0 5 0 , / 0 7 0 H * C7 0 5 0 8 " , / 0 7 , 0 * , ) 8 % / , , , 5 5 " , * 0 " , ) 8 % / * , , -: * C7 -: * C7 $* 7 -8 % + -8 0 ) 8 ) / ' 0 * C7 5 5 0 7 , 9 , 0 -8 * C7 > , 5 0 ,* B * C7 5 $% % > C7 >0 * 0 ' $ -: C7 8 * * B 7 -: * C7 ? 8 " ' 0 0 ,, , ) , , + % % * , -8 * - " ,* 9 7 7 0 + C 0 B5 , , B , / 8 + 7 , * C7 + 7 , 8 8 * , 0 * * , , 0 + 7 , C7 * > ) , , / 7 0 / , * 6, +< = * 8 7;' 0 + 7 , C7 <5 8 + 0 7 ,5 % * *: , , , , H 134 -: , -8 +< / , = % 8 , , / -8 $ ) ' 7 * ') * * ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 131-140, jan.-abr. 2008 ) , C7 , * , 8 8 * -8 , ' % % ) ,* , = 5 7;' -8 7 , 0 % 0 * /0 ) , , * 0 0 , %; 0 * ) + 7 * ) ) % * , * * ", + / , , , 5 7 ,C E * %; 0 ,* 6 % + ', = 7 , $ ) % 8 * C , * B 7 * * C7 0% / 0 ) , , + % , , + + / ? ' 0 * * C7 , ' ,, , * * , C7 * C7 , 7 , ' 0 $ 0 , * * 0 , + B ' ,* " 0 + B , 0 , 5 0 % / 0 + / , 5 + / , 5 0 % / 0 E , -8 , ' 7 7 7 , * E 7 ,5 C7 -8 % + B , * -: 0 0 0 C7 6, % 0 ,, ', 0 , 0 7 , ', ' $ % , " +< ,6 * , > * * , , A. -8 , A G , -8 ,6 7 , 0 7 , , , * * M0 7 , , , * * ,+>, * B , -8 * , * -: 0 % * ,* * )' " E ,* -8 * % 3 * * * -8 * , , + , -8 A. -8 * , = > ' 0 , , * +< 0 0 * * 6 ) 7, 0 7 , , ' 0 -8 A. * * -8 $ , 0 ,+>,0 , + A ' -8 * , , 0 ' > $ B * % 0 N 0 % , , 0 , , " -8 , -8 ', , > $ -8 * , -8 A G , -8 C7 5 % % % >, * * * -8 * -8 -8 * , 0 , , , -8 -8 % * * = -8 " 7 , = -8 " 0% * 5 *C 7 , +< 0 , * , 0 * ? 7, , / 0 % / " ' -8 * ? 8 > 0* % 8 ,+>, -8 $ -8 * , % * , * * $ , ' 0> , E , 7 0 8 " 7 0 % / , -8 / -8 0 , / , * , = , / -8 5 , -8 , , + , , $ + /5" -8 , 0 C" , < * , = -8 0 ,% 7 / 7 ) B , , * * * >" + 8 ) -8 F , * ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 131-140, jan.-abr. 2008 135 , * , , / -8 > , -8 * % 8 >, / -8 0 , ) 7, % >0 , + , , 6 * , 0 % + , 0 * * / % , , ,* * , 0 + % 8 , * < -8 0 * 7, , , , / -8 0 , ,+>, 7 0% * 8 A G * , , 9 ' ) %; * , 8 " -8 * ' 7 * -8 -8 , , 0 7;' ) , + * C* / % 7 ) -8 , * 0% ? , ,< 7 * * '+ 0 * >" ' , ,C / -8 * ,* 0 ,* B , , , * >" ' % * -8 , , 0 / 0 , 0 , , 6 * + 0 G ,+>, * ) / -8 , A -8 * ' % 5 * 7;' ' , 0 8 B5 , * , , G , * , , * ?% * -8 136 ) 9 +< * =% 8 E$ -: * , * B , * 7 , * * D. * ' , % E * 5 , 0 , 0 B5+ 0 , 0 B C , C7 ,% * * % 8 >* E B5 -8 $ * , * * 7 , E ) -8 3 * -8 + * * 7,5 , 3 , 7 B , , * ') , ) 7 0 >0 * 0 3 , 0* /0 -: 0 , 0 + ) -8 3 0 B5 , ,* , ' % > ) , * % , * *: ) H, + , C 6, + , C % 7 7 , ' 7 ,* , ' * , * 7 =% 8 , E 8 B5 -8 0 7 7 ,> 7 * -8 , + , , * -: 0 ) -: 0 7 / -: 0 * > * 7 / -8 8 0 * 7 , * 7 > ,* * % ,% + B , 7 7 , ) , , , 0 ) ) -8 0 % > / 0 ) * -8 0 % > / 0 , , /8 , , , 0 , , * , , ,/ 7 ) ,% ) , $ * * 0 -8 , , , C * ) 8 5 C * * , , , > * 7 /8 % + % , , 0 0 * , -8 , , E , , 5 % ) 7 ,5 -8 * ) -8 * ,* , " , ' 7 8 , 0 7 ) * , , -8 , 0 8 0 + 6, < , 0 ) , 5 7 , 0 8 F $ + / ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 131-140, jan.-abr. 2008 & ' % K5 I * 7 ) % & + ,+ , $* , O O % * , O , , O $ > , ) ( , % 0 O O ? 0 , O 5 8 O O , 0 P) , / -8 O , , P, Q , * >" , 5 Q , , O0 , ' % / 0 * ,* , S O , 5 ,* -: ,* / , EP , , , , , 0 * 0 7, 7 * 8 0 % >, -: O 0 *: , 0, O , 7 , % , / -8 O , , O * ' , %; 0 " 7 7 = ,* ,* B , , * -8 0% $ 0 , ) * , , 0 , , = -8 - * 3 / -8 O , * < 5 -8 O + PB Q O% 7 -8 ) , ) / 8 O 0 8 0 P, Q , O , , ) F , * + ) / 0 , * ' 8 / 0 >0 * , 0 , 7 5 7;' 0 > R , 0 , % ) % ) -8 / @ , * >" ' E 5 * 0 <0 T O% , , , O , ) , , O , 0 * ,* 0 % ,* Q0 P , ,* Q # 0 , , * * ') <5 0 * 0 ,* ) , = 0 0 , * <0 -8 * < , T ,* , 0 * ) * 0 , 7 5 7;' 0% * , * O , 7, 7 O , O O $, * ) 7 , , 0 , " , * E O 7 >, , , * 7 ) , , ,* O→ * >" ' →0 O , , ,* 0 % , ,* -8 ,* M /O ) O , 7 , 7 O→ , * $ , O , O , / * ' , , , O * 7 ) * 7 ) * - * $ ) * O 8 ) / , 7 >,O , , * ' 5 ) * 7 >,O $ , H ) % > -8 E P, ? 5 * % ) % , * * , O 0 Q * , -8 , 5 * , , O ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 131-140, jan.-abr. 2008 O , , + ,* , O 0* + 8 " , / -8 * ' 0 0 7 0 U ,* 137 , , @ , , * >, , + @ , * ' * * % 3 , % 8 >, + 7 O, ,* O % * , * * 0 ) / O F , , ? ,* % * 0 E , % % , ) / , , , % * , * * , * 3 , 8 * ) * 0 O O> , , > ,+>, , , 0* >, , B 0 ) +< ) , O , % ) , ) 0 B5 * ) -8 / -8 = * K5 , , + , ,* * 7 O , O O $, , O +< 20 0 % , ,* $, * 0* 0, O 7 >, , , * 7 ) O) * % ) 0 >, , $ -8 P ) , Q P >, Q ) , , + * , * , +5 ) >% , + 7 O 2 % , ) / @ , E / -8 → ) -8 ) 2 @ , , , / -8 O , * , , O , , ) + >, , , * , , * % 8 * ,* , * > , F , * 0 O 7 >, H ' % + 7 2 % ) - % / , 2 * + , /8 , * O , 7, O H , -8 0 ,+>, % -8 * >, * 0 >, % +< , 2 ,* / -8 = ) = 8 " , , * 7 ) O > 2 → * = * → 8 , O, 5 , , , , / -8 , * % V 7 >, , * 7 ) W , , * O , 7, , O O 8 > ,* % / , O , , * 7 ) O ) / , , / -8 + 0 * 0 ) ,+>, , ' ) , , / -8 + % + E + 8 8 / , , , / -8 + * ,* + ,* %; , * - 0 , * 7 ) W, , 7, 7 O + ,* , 0* , 0 ) / * * 0 ' * , P) Q >, * P, * Q0 % / 0 , % * ,* * , % * ) , , -8 , 138 + 0 , / % + ,% O * ) ,* 7 * , , , * , , 7 O % / % * , , / -8 + > * ) 8 V 7 >, O , * O , ,* * - $, , ' 0 ,+ , $ , * ) ) * $* , < ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 131-140, jan.-abr. 2008 * ,* 0 , , 2 @ /, 9 > 0X 4 , 5 7 / -8 J ZK 0 * A 9 C , -8 * 7 5 " > 0 ##I0 * JI 0 # 0 * 4"4 0 * 9 0 #J 0 # 20 * 9 > 0 ##I0 * JI . 9 > 0 ##I0 * JJ > 0 ##I0 * JJ 9 > 0 ##I0 * JJ I4 A 8 <0 * , 7 , * J"#20 * B ,M 0 # 0 * 0 X 0 # 40 * # ) , -: 0 ##I0 * JI @ , Y , * ) . , 0 # I0 * 9 0 ' , 9 T0 # !0 * I , -: * -: * 7;' , 7;' T0 G * * - + ) 0 , 7 5 ) * > 8 ? , 0 % * , < , 0 , 7; , , 0 5 % -: * , 0 ' + -8 = * % U? U0 $ + # E ?*B M 0 ##! @ , ) ,- E *> U? U0 $ + # ) ,*> 7 E ?*B M 0 ### @ , 2 U? U0 $ + ###+ @ , 4 9 G 0X B>, .?& .@0 ?7 # 1> 7 )) =$ # ) *> E) , ,- *> , E ?*B M 0 U E &? $. 0 X 3 .$ Y # # E * + [, , E 0 ##I * I " @U@?@0 X K *C U$@@ U" $ 1$.U U0 1 ? 7 # @ -8 \ 5 $ + 8 ) + # # E . Z 9 0 1 , / -8 ) . 7+ O * + " $ % 0 4J 9 * ' ,EVB *EOO7 2!! O , !JO2I 9 W $ , IO !O2!! ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 131-140, jan.-abr. 2008 0X X 3 7 + 0 # 4 * #/ % U E " IJ 0 " 139 ]]]]]] 8 0 0* * ) 0 20 * 2 "4#0 2!!4 ]]]]]] $ 7 , . , -8 ]]]]]] 7 7 , -0 1 % ]]]]]] $ 4J20 2!!!+ 140 7 7 , 8 #/ ]]]]]] ?* -: * " 2 0 2!!2 # 2!!! @ B 0 0$ , -8 -8 7 , &* 0 ,' + " + 0 420 2!!4+ ! 9".?1 -: 0 &* 0 8 , J0 #/ " % 0 XF 0 2!!! 7 7 ,E > 7 ,5 &* 8 0 0 * 4 #" ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 131-140, jan.-abr. 2008 O uso de marcadores argumentativos em produções textuais de alunos do Ensino Médio Maria Elisaudia de Almeida Pereira 1 1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Lingüística da Universidade Federal do Ceará – UFC elisaudia_almeida@yahoo.com.br Abstract. This essay, the result of a wide research whose focus is the appropriation of the opinion essay line and argumentative markers, examine the use of those linguistics aspects and the establishment of discursive relations for building an argumentative strategy in discursive texts and in opinion essays by third-year students of high school, participants and nonparticipants of activities of a didactics sequence. Keywords. Argumentative markers; discursive relations; written texts. Resumo. O presente artigo, fruto de uma pesquisa mais ampla cujo enfoque é a apropriação do gênero artigo de opinião e dos marcadores argumentativos, discute o uso dessas marcas lingüísticas e o estabelecimento das relações discursivas na construção da estratégia argumentativa em textos dissertativos e em artigos de opinião por alunos do 3º. ano do Ensino Médio, participantes e não-participantes das atividades de uma seqüência didática. Palavras-chave. Marcadores argumentativos; relações discursivas; produção escrita. Introdução Os estudos acerca da argumentação remontam à Antiguidade Clássica e têm seguido diferentes perspectivas teóricas: Retórica, Lógica, Semântica, Pragmática, Lingüística Cognitiva, dentre outras. Nossa análise fundamenta-se na Semântica Argumentativa e na Lingüística Textual, respectivamente, nos estudos de Ducrot (1989) e Koch (2004a, 2004b) para o enfoque teórico da argumentação e nos de Soares (1999) e de Schneuwly e Dolz (2004) para a intervenção realizada. Ao concebermos a língua como processo de interação, propomos uma abordagem dos marcadores argumentativos, ressaltando-lhes não só a função gramatical (conjunções, advérbios e/ou palavras denotativas), mas também a função semânticoargumentativa. Com esse intuito e para procedermos à análise do uso dos marcadores argumentativos e das relações discursivas estabelecidas em produções textuais de alunos do Ensino Médio, desenvolvemos uma experiência com duas turmas de 3º. ano em uma escola estadual de Ensino Fundamental e Médio em Fortaleza. Iniciamos a discussão destacando as contribuições teóricas, prosseguimos com a descrição metodológica, a análise do corpus e finalizamos com algumas considerações. Contribuições Teóricas ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 141-149, jan.-abr. 2008 141 Ducrot constata que no valor semântico profundo (significação) de certas palavras, expressões, ou mesmo de enunciados há indicações de valores que não são de natureza informativa, porém argumentativa (ANSCOMBRE,1995, p. 16-21). O autor ao estabelecer um paralelo entre enunciados, fundamentando-se em valores semânticos (informativos e/ou argumentativos), demonstra a coexistência desses valores na significação da frase. Assim, pretende que a língua não seja reduzida a um valor informativo, mas essencialmente argumentativo. Desse ponto de vista, os estudos ducrotianos propõem que os conceitos fundamentais da argumentação sejam reconstruídos lingüisticamente e defendem a tese de que a argumentação é um processo imanente à língua. Tal pressuposto orienta nossa análise, levando-nos a crer que haverá marcas lingüísticas de argumentação (marcadores argumentativos) em todos os textos analisados. Ao verificarmos a utilização dos marcadores argumentativos na constituição dos argumentos no nível dos enunciados, recorremos à concepção de argumentação de Ducrot: “um enunciado argumentativo apresenta sua enunciação como levando a admitir tal ou tal conclusão” (DUCROT, 1987, p. 174). Na teoria ducrotiana, os conceitos de enunciado e frase são cuidadosamente diferenciados. O enunciado é um segmento de discurso, empírico, observável e não se repete. Caracteriza-se por apresentar um lugar e uma data, um produtor e um ou vários ouvintes e um valor semântico de “sentido”. Nas palavras de Ducrot (1989, p. 13): “Se digo duas vezes seguidas uma coisa que é habitualmente transcrita ‘O tempo está bom’, produzo dois enunciados diferentes, e isto somente porque o momento de sua enunciação é diferente”, ou seja, o enunciado é produzido em uma dada situação comunicativa e esta não pode ser repetida, não podemos estar mais de uma vez numa mesma data, num mesmo lugar e com as mesmas pessoas de um ato comunicativo. Já a frase é uma estrutura abstrata, algo totalmente distinto de uma seqüência de palavras escritas e seu valor semântico é de significação. Ducrot (1989) atribui a cada uma das frases constitutivas da língua uma significação suscetível de explicar o sentido de seus enunciados. Consideramos esses conceitos por avaliarmos em um primeiro plano a utilização dos marcadores argumentativos na construção dos argumentos no nível do enunciado. Em nossa pesquisa, concebemos os marcadores argumentativos como operadores (só, somente, apenas, até, até mesmo etc) e conectores (mas, embora, pois, ou etc). Desse modo, fazemos um recorte do conceito de operador argumentativo na perspectiva da Semântica Argumentativa, conforme os estudos de Ducrot e seus colaboradores (1989, 1995), em que o termo é composto por: operador argumentativo, em sentido estrito, entendido como partícula da língua que introduz a argumentatividade na estrutura semântica das frases; conector argumentativo, definido como elemento que articula duas porções textuais e dá-lhes orientação argumentativa; e modificadores realizante e derrealizante (adjetivos e advérbios), compreendidos como as palavras cujo papel é modificar os predicados de uma língua, indicando o topos e a força com que são aplicados em um determinado contexto. De acordo com Ducrot (1989), o funcionamento dos marcadores argumentativos ocorre com base nos conceitos de: classe argumentativa, formada por um conjunto de enunciados que podem equiparar-se para servir de argumento a uma mesma conclusão r, ou seja, todos os argumentos reunidos apresentam o mesmo peso; e escala 142 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 141-149, jan.-abr. 2008 argumentativa, constituída quando dois ou mais enunciados de uma classe argumentativa se apresentam em gradação, aumentando a força no sentido de uma mesma conclusão. Os marcadores argumentativos, na medida em que funcionam como elementos responsáveis pelo direcionamento argumentativo pretendido pelo locutor, constituem relações discursivas ou argumentativas que delineiam a estratégia argumentativa escolhida por esse locutor. Com base nos estudos de Koch (1992, 2004a; 2004b) destacamos as seguintes relações discursivas ou argumentativas: i) conjunção em que os enunciados são agrupados e direcionados a uma mesma conclusão por meio de conectores como e, também, não só...mas também, tanto...como, além de, além disso, ainda, nem (= e não); ii) disjunção argumentativa, estabelecida por argumentos alternativos, em enunciados distintos, introduzidos por ou, ou então, quer...quer, seja...seja etc, levando a conclusões diferentes ou opostas; iii) contrajunção, expressa por marcadores que direcionam a conclusões contrárias: mas (porém, contudo todavia etc), embora; iv) explicação ou justificativa, relativa ao enunciado anterior, introduzida por: porque, que, já que, pois etc; v) comparação, manifestada a partir das relações de inferioridade, superioridade ou igualdade, geralmente, com o uso de: (tanto, tal)...como (quanto), mais...(do) que, menos (do) que ; vi) especificação/exemplificação, estabelecida a partir de um enunciado que particulariza ou esclarece uma declaração de ordem mais geral apresentada, introduzida por: por exemplo, como; vii) correção/redefinição, um enunciado corrige, ou redefine o conteúdo do primeiro, atenuando ou reforçando, expressa por: isto é, se, ou, ou melhor, de fato, pelo contrário, quer dizer; viii) gradação, há o estabelecimento de uma hierarquia dos enunciados numa escala orientada no sentido da conclusão através de operadores: até, mesmo, até mesmo, inclusive, ao menos, pelo menos, no mínimo; ix) restrição, manifestada pelo uso de operadores como: um pouco, pouco, quase, apenas, só, somente, os quais direcionam à negação ou à exclusão. Como já referido anteriormente, baseamo-nos no pressuposto da língua como processo de interação. Dessa forma, inserimo-nos em perspectivas dialógicas e optamos por uma concepção de escrita que aponta para a formação do sujeito/aprendiz como elaborador e criador do seu conhecimento. Soares (1999, p. 4) sugere que sejam criadas situações em sala de aula, nas quais os alunos reflitam os textos que lêem, escrevam, falem ou ouçam, percebendo, numa abordagem contextualizada, a gramática da língua, as características de determinados gêneros e tipos textuais, bem como o efeito das condições de produção do discurso na construção do texto e de seu sentido. Nessa perspectiva, no contexto escolar, adotamos para a apropriação do gênero artigo de opinião e dos marcadores argumentativos uma seqüência didática, fundamentando-nos em Schneuwly e Dolz (2004). De acordo com os autores, a seqüência didática é uma unidade de trabalho escolar, composta por um conjunto de atividades programadas para serem desenvolvidas de forma seqüenciada, em um número limitado e preciso de objetivos, discutindo-se aspectos relativos à produção de textos que podem ser sistematizados em um gênero específico. Os teóricos reforçam o papel dessa metodologia ao afirmarem que uma seqüência didática tem, precisamente, a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação de comunicação. O trabalho escolar será realizado, evidentemente, sobre gêneros ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 141-149, jan.-abr. 2008 143 que o aluno não domina ou o faz de maneira insuficiente; [...]. (SCHNEUWLY E DOLZ, 2004, p. 97). A estrutura básica de uma seqüência didática divide-se em três etapas interrelacionadas, realizadas num espaço de tempo relativamente curto e adaptadas ao ritmo das possibilidades de aprendizagem do aluno. Na primeira etapa, solicita-se a produção de um texto, objetivando delimitar as capacidades e as dificuldades do aluno em relação ao gênero escolhido; na segunda promovem-se oficinas, nas quais diferentes atividades e exercícios são desenvolvidos com a finalidade de favorecer o (re)conhecimento das características fundamentais do gênero em foco e na última etapa, propõe-se a produção final, na qual o aluno avalia e revisa seu texto, ao mesmo tempo em que retoma os conhecimentos adquiridos ao longo da seqüência. Procedimentos metodológicos O processo de coleta do corpus durou cerca de três meses, do mês de outubro de 2006 ao mês de janeiro de 2007, durante o horário das aulas de português, no turno noturno, da Escola de Ensino Fundamental e Médio José Valdo Ribeiro Ramos em Fortaleza. Participaram da pesquisa 36 alunos de duas turmas do 3º. ano do Ensino Médio. As duas turmas foram distribuídas, de forma aleatória, em dois grupos: controle e experimental, com a participação de 18 alunos em cada um deles. No primeiro grupo, o trabalho ficou restrito à produção inicial de um texto dissertativo e à sua revisão/transformação em um artigo de opinião, tais tarefas foram realizadas em apenas dois encontros. Já no segundo, foram desenvolvidas atividades com base numa seqüência didática, organizada em doze encontros, em que visamos não só à produção/revisão do texto dissertativo, mas também à apropriação do gênero artigo de opinião e dos marcadores argumentativos. A proposta de produção inicial dos dois grupos foi extraída de um livro didático de Ensino Médio. Após a primeira produção, programamos os dez encontros (seqüência didática) com o grupo experimental, nos quais desenvolvemos: leituras, exposições, debates e exercícios acerca do gênero artigo de opinião, explorando sua estrutura e características (questão polêmica, tese, justificativa, conclusão, argumentos favoráveis/desfavoráveis, propósito comunicativo, condições de produção e de recepção), além das marcas lingüísticas da argumentação (com ênfase nos marcadores argumentativos). No último encontro com os dois grupos, solicitamos a produção de um artigo de opinião para publicação em um jornal mural a ser colocado no pátio da escola. Relacionamos ainda na proposta: o tema, os possíveis leitores e o propósito comunicativo. Acrescentamos à proposta do grupo experimental um roteiro de revisão. Após essa última etapa, selecionamos o material de análise, considerando sobretudo a presença nos encontros e a disparidade do número total de alunos matriculados nas duas turmas, uma com 48 e a outra com 26, esses aspectos determinaram a redução da quantidade de sujeitos participantes. Assim, do total de 74, apenas 36 participaram da constituição do corpus. Cada um deles produziu dois textos, perfazendo um total de 72, os quais foram digitados com a transcrição fiel dos chamados erros ortográficos e da escrita de cada produtor. 144 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 141-149, jan.-abr. 2008 Na análise do corpus, seguimos procedimentos quantitativos e qualitativos. Primeiramente, procuramos identificar a utilização dos marcadores argumentativos por todos os alunos na primeira versão de seus textos, para, em seguida, calcularmos a freqüência das ocorrências e dos marcadores mais utilizados. Após a segunda versão, adotamos o mesmo procedimento de análise, objetivando comparar as ocorrências verificadas nos dois grupos, concentrando-nos nas relações discursivas estabelecidas com base no uso dos marcadores argumentativos e na constituição da estratégia argumentativa nos textos produzidos. Na seção a seguir, apresentamos os dados e a discussão referentes à utilização dos marcadores, à construção das relações discursivas pelos dois grupos, bem como à orientação argumentativa estabelecida para a elaboração da estratégia argumentativa dos textos dissertativos e dos artigos de opinião. Análise e discussão Ao considerarmos o pressuposto de que a argumentação é um ato inerente à língua, buscamos identificar o uso dos marcadores argumentativos em todos os textos analisados. Na tabela a seguir, que apresenta o número de ocorrências dos marcadores (Qtd. marc.) e da variação das formas (Qtd. form.) na produção de cada aluno (A.1 a A.18), nos grupos (controle e experimental) e nas versões (TD – texto dissertativo e AO – artigo de opinião), obtivemos tal comprovação, pois apenas o aluno A.9 não usou nenhum marcador argumentativo em sua produção final. Tabela 1. Freqüência de uso dos marcadores argumentativos Alunos A.1 A.2 A.3 A.4 A.5 A.6 A.7 A.8 A.9 A.10 A.11 A.12 A.13 A.14 A.15 A.16 A.17 A.18 Total Número de marcadores e de formas identificadas Grupo controle Grupo experimental TD AO TD AO Qtd.marc. Qtd.form. Qtd.marc. Qtd.form. Qtd.marc Qtd.form. Qtd.marc Qtd.form. 7 5 9 8 6 5 9 7 3 2 6 3 15 8 8 6 18 8 8 4 4 3 5 4 8 4 6 4 3 3 10 9 14 9 8 6 3 3 6 4 4 2 4 4 8 2 11 7 9 5 3 3 6 4 5 5 10 4 10 6 3 3 9 5 5 4 0 0 4 3 6 4 11 9 5 3 5 4 5 5 10 7 5 5 9 8 13 7 6 5 2 2 3 3 5 3 8 8 12 9 4 4 8 6 8 5 5 4 10 7 17 11 7 3 3 3 9 6 12 10 4 4 7 7 4 4 6 3 5 4 4 3 5 4 7 6 4 2 5 5 12 9 12 11 141 90 102 79 113 83 154 113 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 141-149, jan.-abr. 2008 145 Na tabela 1, no grupo controle, na produção do TD, podemos verificar que 5 redatores (A.3, A.5, A.8, A.10 e A.11) se sobressaíram, apresentando em suas redações um razoável número de marcadores e uma relativa variação de formas. Na produção do AO, apenas dois redatores destacaram-se: o A.8 que manteve a freqüência de uso dos marcadores e aumentou a variação das formas em relação ao TD e o A.13 que usou mais marcadores e formas em sua última versão (AO). Ao determo-nos, na tabela 1, no total da freqüência de uso dos marcadores argumentativos e das formas, notamos que no grupo controle há uma significativa redução dessa freqüência da produção do texto dissertativo para a do artigo de opinião. Como nesse grupo adotamos o planejamento das atividades da escola, que segue os princípios do ensino predominantemente normativo, supomos que tal resultado deva-se ao desconhecimento do papel dos marcadores argumentativos como elementos que instituem força argumentativa aos enunciados e do gênero solicitado (artigo de opinião), uma vez que no Ensino Médio, de modo geral, o trabalho com a argumentação restringe-se à dissertação. Já no grupo experimental, com base na tabela 1, verificamos que ocorre o inverso: na produção do TD, apenas 3 redatores (A.2, A.14 e A.18) destacam-se em relação à freqüência de uso dos marcadores e de formas, mas na produção do AO esse número é elevado para seis (A.6, A.11, A.14, A.15 e A.18), demonstrando que houve maior utilização no último texto. Além disso, quase todos os alunos desse grupo aumentaram a freqüência de uso dessas marcas. Desse modo, o número final de marcadores e formas registrados na produção do AO do grupo experimental é superior ao do grupo controle, levando-nos a crer que a participação do primeiro grupo nas atividades da seqüência didática para a apropriação do gênero artigo de opinião e de suas marcas lingüísticas tenha sido um fator de relevância para o resultado alcançado. No que concerne às formas dos marcadores mais usadas pelos redatores, observamos que na escritura do TD, no grupo controle, a maior freqüência de uso foi da forma e, utilizada por 13 dos 18 alunos desse grupo. Um total de 42 ocorrências foram registradas, entre elas 10 estão no texto do redator A.3, que em um único parágrafo concentrou 5 ocorrências: (1) Bom eu acho que não deveria ser por aí, se às pessoas si unissem e vivesem todas, demonstrando um pouco de afeto para com o próximo e parar de viver com competitividade de serem muito modernalistas, capitalistas deviam se ajudar e dar bom exemplos para todos, e principalmente para as crianças que estão cresendo, e não de viver competindo, deviam dar um bom exemplo para que cresam fazendo uma comunidade melhor e um país melhor (§ 2 – GC A.3 -TD). No parágrafo transcrito, as três primeiras formas e mantêm-se em uma classe argumentativa. Entretanto, a penúltima seria desnecessária e a última seria substituível por ao invés, expressando redefinição. Prototipicamente, o marcador e (conector) estabelece relação de conjunção, ou seja, os argumentos são reunidos em direção a uma mesma conclusão e formam uma classe argumentativa. Essa foi uma tendência verificada em grande parte das ocorrências analisadas no TD do grupo controle, evidenciando a construção da estratégia argumentativa com menor grau de argumentatividade. Todavia, em alguns textos, identificamos também a forma e, indicando relações de contrajunção, de finalidade e de conclusão. 146 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 141-149, jan.-abr. 2008 Na produção do TD, ressaltamos ainda as formas: mas (conector), 19 ocorrências, utilizadas para manifestar relação de contrajunção; só (operador), 16 ocorrências, estabelecendo relação de restrição e constituindo escalas argumentativas, além de pois e porque (conectores) que somam 10 ocorrências e foram usadas para expressar relações de justificativa. Pudemos assim observar que na versão do TD os alunos do grupo controle tencionaram variar a construção da estratégia argumentativa. Na produção do AO em relação ao TD, no grupo controle, constatamos que na medida em que houve uma redução da freqüência de uso dos marcadores e da diversidade de formas, as relações discursivas estabelecidas também tiveram menor variação e a predominância foi da constituição da estratégia argumentativa com base nas relações de conjunção com a utilização da forma e (conector) e de justificativa, usando pois e porque. Vejamos um parágrafo do redator A.8 que diferentemente dos demais sujeitos do seu grupo não fez nenhuma alteração em seu segundo texto e permaneceu usando 5 formas e, além das demais usadas, do total dos 10 marcadores registrados na sua produção: (2) O outro tipo de gente fica mais fácil de fazer uma comunidade e com ela, cada um pode ter o afeto um com o outro e pode formar até vários grupos com isso, mais para isso tem que existir o carinho, respeito e afeto (§ 2 –A.8.GC – AO). Nesse parágrafo, vemos argumentos reunidos em uma classe argumentativa, introduzidos pela forma e (conector), havendo com a introdução do marcador até (operador) no segundo a construção de uma escala e da relação de gradação, dessa forma, tal argumento torna-se mais forte para sustentar a defesa da formação de uma comunidade. O redator finaliza o parágrafo com o uso da forma mais = mas, inserindo um argumento que orienta na direção contrária ao que ele vinha desenvolvendo e estabelecendo relação de contrajunção, podemos ser conduzidos à conclusão de que os grupos podem ser formados, mas não estão prontos, há ainda uma condição necessária para isso, que é a existência do carinho, respeito e afeto. Temos nessa produção a construção da estratégia argumentativa com a instituição de uma maior força argumentativa. De acordo com os dados, um aspecto raro nas produções do grupo controle. Na escritura do TD, no grupo experimental, percebemos que, de modo semelhante ao grupo controle, a forma e (conector) é a mais utilizada com 35 ocorrências, estabelecendo relação de conjunção e classes argumentativas. Em seguida, temos: as formas só (operador) com 15 ocorrências, expressando relação de restrição e pois e porque (conectores), que somam 14 ocorrências e indicam relação de justificativa. No grupo experimental, diferentemente do grupo controle, no texto dissertativo, praticamente, não há o uso da forma mas que estabelece relação de contrajunção, ou seja, há uma menor variação no estabelecimento das relações para a construção da estratégia argumentativa. Embora isso ocorra, identificamos já na primeira produção desse grupo uma tendência a instituir maior força argumentativa aos seus enunciados. Destacamos a seguir um parágrafo do redator A.6 do grupo experimental, o qual apresenta em seu texto um total de 8 marcadores e 2 formas: e e só. Esse redator ao constituir a estratégia argumentativa com base nas relações de conjunção e de restrição, respectivamente, não se restringe à formação de classes, mas procura também imprimir ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 141-149, jan.-abr. 2008 147 maior força argumentativa aos seus enunciados. No trecho destacado, há predominância do e (conector) com um total de 4 ocorrências, das 6 verificadas: (3) Se olhassimos para dentro de nós e reconhecessimos que somos a mais bela das criaturas criada por Deus e que a nossa missão é amar e ser amado, o mundo seria diferente e as guerras não existiria (§3 – A.6.GE – TD). Ao produzir o AO, notamos que os redatores do grupo experimental utilizam uma maior diversidade de formas, registramos: mas (conector), 10 ocorrências, indicando contrajunção; até, pelo menos (operadores), 7 ocorrências, estabelecendo gradação; um pouco, 5 ocorrências e só 20 ocorrências, ambas expressando relação de restrição. O parágrafo a seguir do redator A.14 do grupo experimental, que apresenta, conforme a tabela 1, maior freqüência de uso dos marcadores e de formas, 17 e 11, demonstra a variação de formas e conseqüentemente de relações para a construção da estratégia argumentativa: (4) Se cada um fizesse sua parte, pelo menos parasem para refletir, como a sociedade seria, já era um bom começo. Pra temos uma sociedade unida pois si cada pessoa fizer alguma coisa já muda. Porque a união é que faz a força e isso é o suficiente. Temos o direito de vivemos como pessoasdignas e assim todas podem viver num mundo melhor num mundo que Deus deixou o direitos igual para todos nós. É assim que devemos viver pois todos somos igual ninguem é melhor doque ninguem. Mas infelismente vivemos em comunidades que existe pessoas que querem ser melhor doque o outro (§ 2 – A.14.GE – AO). O parágrafo transcrito é iniciado com uma relação de gradação, expressa pelo marcador pelo menos (operador), que ressalta o mínimo a ser feito para uma mudança na sociedade. O redator prossegue exprimindo relações de justificativa/explicação com os marcadores pois e porque (conectores). Embora haja problemas com a pontuação, a relação é manifestada. Constitui então uma classe argumentativa com os enunciados introduzidos pelas formas e, expressando conjunção, estabelece comparação com o uso da forma melhor do que e, por último, insere um argumento na direção contrária com a utilização do marcador mas (conector), estabelecendo relação de contrajunção. Observamos nesse parágrafo a variação das formas utilizadas e das relações estabelecidas para a construção da estratégia argumentativa que são respectivamente: 6 e 5. Considerações finais Com base na análise dos textos dissertativos e dos artigos de opinião pudemos identificar a utilização de marcas lingüísticas da argumentação, sobretudo de marcadores argumentativos, confirmando a hipótese de que a argumentação é um ato imanente à língua. No que diz respeito à apropriação e uso dos marcadores argumentativos pelos redatores do grupo experimental em comparação à apropriação e uso pelos redatores do grupo controle, verificamos que após o desenvolvimento da seqüência didática, o grupo experimental apresenta maior freqüência e diversidade da utilização dos marcadores/formas, demonstrando que a abordagem dessas marcas com ênfase no seu valor semântico-argumentativo possibilita ao redator utilizá-las como elementos corroboradores da estratégia argumentativa em direção ao convencimento do leitor. 148 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 141-149, jan.-abr. 2008 No que concerne às relações discursivas estabelecidas, no grupo controle, houve uma tendência ao estabelecimento de um maior número de relações de conjunção e de justificativa tanto no texto dissertativo como no artigo de opinião, o que aponta para a construção argumentativa em classes, dando aos argumentos o mesmo valor; enquanto no grupo experimental, evidenciam-se as relações de conjunção e de restrição, ou seja, há construção de classes, mas também de escalas, caracterizando assim estratégias argumentativas que objetivam instituir maior força argumentativa a determinados enunciados na direção da conclusão pretendida. Referências bibliográficas ANSCOMBRE, Jean-Claude (org.) Théorie des Topoï. Paris: Kimé. 1995. DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas: Pontes Editores, 1987. _____. Argumentação e topoi argumentativos. In: GUIMARÃES, Eduardo. (org.). História e sentido na linguagem. Campinas: Pontes, 1989, p.13-38. KOCH, Ingedore G.V. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto,1992. _____. A coesão textual. 19. ed. São Paulo: Contexto, 2004a. _____. Argumentação e linguagem. 9.ed. São Paulo: Cortez, 2004b. SOARES, Magda. Uma proposta para o letramento. São Paulo: Moderna, 1999. SCHNEUWLY, Bernard e DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro (orgs.). Campinas: Mercado das Letras, 2004. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 141-149, jan.-abr. 2008 149 modos@de@enunciabilidade@da@escritura jurᅪdicaZ@オュ。@、・ウ」イゥ￧ ̄ッOゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッ@、ッ@・ョオョ」ゥ£カ・ャ@ョ。 ュ。エ・イゥ。ャゥ、。、・@ャゥョァ■ウエゥ」。@ー・ャッ@・ウー。￧ッ@ゥョエ・イ、ゥウ」オイウゥカッ m。イ■ャゥ。@a」ィ・エ・@jオョアオ・ゥイ。@g。イ」ゥ。 pイッァイ。ュ。@、・@p￳ウMgイ。、オ。￧ ̄ッ sエイゥ」エッ@s・ョウオ@@・ュ@lゥョァオ。ァ・ュ@・@dゥウ」オイウッ uョゥカ・イウゥ、。、・@f・、・イ。ャ@、・@s ̄ッ@c。イャッウ@Hufs」。イI a「ウエイ。」エN@ tィゥウ@ 。イエゥ」ャ・@ 。ゥュウ@ エッ@ 。ョ。ャケウ・@ エィ・@ 」ッョヲゥァオイ。エゥッョウ@ ッヲ@ エィ・@ ャ・ァ。ャ@ 。イ」ィゥカ・ 、・ウ」イゥーエゥッョウ@Hゥョ@エィゥウ@」。ウ・L@エィ・@ m。ョオ。ャ@、・@dゥイ・ゥエッ@p・ョ。ャ @エ・クエI@。ョ、@エィ・@、ゥウ」オイウゥカ・ ュ・ュッイケ@ ゥョエ・イカ・ョエゥッョ@ ゥョ@ エィ・@ ヲッイュオャ。エゥッョ@ ッヲ@ エィ・@ ャ・ァ。ャ@ ウエ。エ・ュ・ョエウ@ ゥョ@ エィ・ ゥョエ・イ、ゥウ」オイウゥカ・@ヲッイュ@エィ。エ@ャ・。、ウ@エッ@ゥョエ・イーイ・エ。エゥッョN k・ケキッイ、ウN lゥョァオゥウエゥ」@ュ。エ・イゥ。ャ[@ゥョエ・イ、ゥウ」オイウ・[@、・ウ」イゥーエゥッョ[@ゥョエ・イーイ・エ。エゥッョ r・ウオュッN eウエ・@。イエゥァッ@エ・ュ@」ッュッ@ッ「ェ・エゥカッ@。ョ。ャゥウ。イ@。ウ@」ッョヲゥァオイ。￧￵・ウ@、。ウ@、・ウ」イゥ￧￵・ウ 、ッ@ 。イアオゥカッ@ ェオイ■、ゥ」ッ@ Hョ・ウエ・@ 」。ウッL@ ッ@ エ・クエッ@ 、ッ@ m。ョオ。ャ@ 、・@ 、ゥイ・ゥエッ@ p・ョ。ャI@ ・@ 。 ゥョエ・イカ・ョ￧ ̄ッ@ 、。@ ュ・ュ￳イゥ。@ 、ゥウ」オイウゥカ。@ ョ。@ ヲッイュオャ。￧ ̄ッ@ 、・@ ・ョオョ」ゥ。、ッウ@ ェオイ■、ゥ」ッウ@ ョ。 ヲッイュ。@、・@ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッL@アオ・@」ッョ、オコ@ゥョエ・イーイ・エ。￧￵・ウN p。ャ。カイ。ウM」ィ。カ・N m。エ・イゥ。ャゥ、。、・@ャゥョァ■ウエゥ」。[@ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッ[@、・ウ」イゥ￧ ̄ッ[@ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッ n・ウエ・@。イエゥァッL@ーイッーッョィッMュ・@。@。ョ。ャゥウ。イ@」ッュッ@ウ・@」ッョヲゥァオイ。ュ@。ウ@、・ウ」イゥ￧￵・ウ@、ッ@。イアオゥカッ ェオイ■、ゥ」ッ@ Hョ・ウエ・@ 」。ウッL@ ッ@ @ エ・クエッ@ 、ッ@ m。ョオ。ャ@ 、・@ 、ゥイ・ゥエッ@ p・ョ。ャL@ ョッ@ 」ッョ」・イョ・ョエ・@ ¢@ ゥョェイゥ。I@ ・ 」ッュッ@ 。@ ュ・ュ￳イゥ。@ 、ゥウ」オイウゥカ。@ ゥョエ・イカ←ュ@ ョ。@ ヲッイュオャ。￧ ̄ッ@ 、ッウ@ ・ョオョ」ゥ。、ッウ@ ェオイ■、ゥ」ッウ@ ョ。@ ヲッイュ。 、・@ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッ@・@アオ・@」ッョ、オコ@ゥョエ・イーイ・エ。￧￵・ウN pッイエ。ョエッL@ 。ョエ・ウ@ 、・@ 、ゥウエゥョァオゥイ@ ュ・ュ￳イゥ。@ 、ゥウ」オイウゥカ。@ ・@ 。イアオゥカッL@ エイ。エ。イ・ゥ@ 、・@ 。ャァオョウ 。ウー・」エッウ@イ・ャ。」ゥッョ。、ッウ@¢@、・ウ」イゥ￧ ̄ッ@・@¢@ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッL@オュ。@カ・コ@アオ・@ッ@エ・クエッ@。@ウ・イ@。ョ。ャゥウ。、ッ ョ・ウエ・@ 」。ー■エオャッL m。ョオ。ャ@ 、・@ dゥイ・ゥエッ@ p・ョ。ャL@ ←@ オュ@ エ・クエッ@ 、ッオエイゥョ£イゥッ@ ョッ@ アオ。ャ@ オュ@ 。オエッイ ・ウー・」■ヲゥ」ッ@、・ウ」イ・カ・@。ウ@ャ・ゥウ@ ・@。イエゥァッウ@」ッョウエ。ョエ・ウ@、ッ@c￳、ゥァッ@p・ョ。ャ@ ・@ 。ウ@ ゥョエ・イーイ・エ。N@ eL@ョ。ウ ゥョエ・イーイ・エ。￧￵・ウL@ 。ウ@ ・ョオョ」ゥ。￧￵・ウ@ @ 。ウウオュ・ュ@ ッ@ ・ウエ。エオエッ@ 、・@ 。イアオゥカッL@ 、・@ オュ@ 」ッョェオョエッ@ 、・ ・ョオョ」ゥ。、ッウ@ ーッウエッウ@ ・@ 」オェッ@ ・ヲ・ゥエッ@ ゥャオウ￳イゥッ@ ←@ 、・@ 」ッューャ・エオ、・N@ pッイ←ュL@ 。ッ@ ・ュ「イ・ョィ。イ@ ョ。 。ョ£ャゥウ・@ 、。@ ュ。エ・イゥ。ャゥ、。、・@ ャゥョァ■ウエゥ」。@ 、ッ@ 。イアオゥカッ@ ェオイ■、ゥ」ッL@ 。ヲャッイ。ュMウ・@ ッウ@ ョ ̄ッM、ゥエッウL@ ッウ 、ゥウ」オイウッウMッオエイッウL@ッウ@ュ・ュッイ£カ・ゥウL@・ョヲゥュL@ッウ@ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッウ@アオ・@ーイッ、オコ・ュ@ウ・ョエゥ、ッウ@ョ・ウウ。 ュ。エ・イゥ。ャゥ、。、・L@ウ・ョエゥ、ッウ@ゥョウ」イゥエッウ@ョ。@ィゥウエ￳イゥ。L@ョッ@ウッ」ゥ。ャL@ョ。@・クエ・イゥッイゥ、。、・N@pッイ@・ウウ。@イ。コ ̄ッL@← イ・ャ・カ。ョエ・@エイ。エ。イ@。@、・ウ」イゥ￧ ̄ッ@・@L@」ッュ@ュ。ゥウ@。」オゥ、。、・L@。@ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッL@エッュ。ョ、ッ@」ッュッ@ーッョエッ 、・@ー。イエゥ、。@・ウエオ、ッウ@、・@p↑」ィ・オク@HQYXSIN ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 151-160, jan.-abr. 2008 151 d・@。」ッイ、ッ@・ウウ・@ヲゥャ￳ウッヲッL@ッ@ーイゥョ」ゥー。ャ@ーイッ「ャ・ュ。@←@、・エ・イュゥョ。イ@ッ@ャオァ。イ@・@ッ@ュッュ・ョエッ@、。 ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッ@ ・ュ@ イ・ャ。￧ ̄ッ@ 。ッウ@ 、。@ 、・ウ」イゥ￧ ̄ッZ@ 、ゥコ・イ@ アオ・@ ョ ̄ッ@ ウ・@ エイ。エ。@ 、・@ 、オ。ウ@ ヲ。ウ・ウ ウオ」・ウウゥカ。ウL@ュ。ウ@、・@オュ。@。ャエ・イョ¬ョ」ゥ。@ッオ@、・@オュ@「。エゥュ・ョエッL@ョ ̄ッ@ゥューャゥ」。@アオ・@。@、・ウ」イゥ￧ ̄ッ@・@。 ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッ@ ウ・ェ。ュ@ 」ッョ、・ョ。、。ウ@ 。@ ウ・@ ・ョエイ・ュゥウエオイ。イ@ ョッ@ ゥョ、ゥウ」・イョ■カ・ャ @ Hp↑」ィ・オクL@ QYXSL ーNUTIN ￉@、・ウゥァオ。ャ@。@イ・ャ。￧ ̄ッ@・ウエ。「・ャ・」ゥ、。@・ョエイ・@・ウウ・ウ@、ッゥウ@ュッュ・ョエッウL@、。、ッ@アオ・L@ウ・ァオョ、ッ@ッ 。オエッイL@ 。@ ーイゥュ・ゥイ。@ ・クゥァ↑ョ」ゥ。@ 」ッョウゥウエ・@ ・ュ@ 、。イ@ ッ@ ーイゥュ。、ッ@ 。ッウ@ ァ・ウエッウ@ 、・@ 、・ウ」イゥ￧ ̄ッ@ 、。ウ ュ。エ・イゥ。ャゥ、。、・ウ@、ゥウ」オイウゥカ。ウ @HッーN」ゥエN ーNUPIN@cッューイ・・ョ、ゥ、。@、・ウウ・@ュッ、ッL@。@、・ウ」イゥ￧ ̄ッ@ョ ̄ッ@← 」ッョヲオョ、ゥ、。@」ッュ@ オュ。@。ーイ・・ョウ ̄ッ@ヲ・ョッュ・ョッャ￳ァゥ」。@ッオ@ィ・イュ・ョ↑オエゥ」。@ョ。@アオ。ャ 、・ウ」イ・カ・イ@ウ・ エッイョ。@ゥョ、ゥウ」・イョ■カ・ャ@、・ ゥョエ・イーイ・エ。イL@HNNNI@ウオー￵・L@。ッ@」ッョエイ£イゥッ@ッ@イ・」ッョィ・」ゥュ・ョエッ@、・@オュ@イ・。ャ ・ウー・」■ヲゥ」ッ@ウッ「イ・@ッ@アオ。ャ@・ャ。@ウ・@ゥョウエ。ャ。Z@ッ@イ・。ャ@、。@ャ■ョァオ。 @Hゥ「ゥ、・ュIN p。イ。@。@ ad@ョ。@アオ。ャ@ウ・@ゥョウ・イ・@ p↑」ィ・オクL@。@ ャゥョァオ。ァ・ュ@ョ ̄ッ@ ←@ エイ。ョウー。イ・ョエ・@ ・L@ーッイ@ ゥウウッL ゥョエ・イーイ・エ。イ@ョ ̄ッ@←@。エイゥ「オゥイ@ウ・ョエゥ、ッウL@ュ。ウ@・クーッイMウ・@¢@ッー。」ゥ、。、・@、ッ@エ・クエッL@ッオL@」ッュッ@ーイッー￵・ oイャ。ョ、ゥL@ ←@」ッューイ・・ョ、・イL@ッオ@ウ・ェ。L@・クーャゥ」ゥエ。イ@ッ@ュッ、ッ@」ッュッ@オュ@ッ「ェ・エッ@ウゥュ「￳ャゥ」ッ@ーイッ、オコ ウ・ョエゥ、ッウL@ッ@アオ・@イ・ウオャエ。@・ュ@ウ。「・イ@アオ・@ッ@ウ・ョエゥ、ッ@ウ・ューイ・@ーッ、・@ウ・イ@ッオエイッ @HRPPTL@ーN@VTIN o@ ーイッ」・ウウッ@ 、・@ ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッ@ ーッ、・@ ウ・イ@ ・ョ」。イ。、ッ@ ョ。@ ー・イウー・」エゥカ。@ ゥ、・ッャ￳ァゥ」。@ ・L@ オュ。 」ッョ」・ー￧ ̄ッ@、ゥウ」オイウゥカ。@、・@ゥ、・ッャッァゥ。@H」ッョヲッイュ・@oイャ。ョ、ゥL@RPPTI@・ウエ。「・ャ・」・@アオ・L@ーッイ@・ウエ。イ・ュ ッウ@ ウオェ・ゥエッウ@ 」ッョ、・ョ。、ッウ@ 。@ ウゥァョゥヲゥ」。イL@ 。@ ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッ@ ←@ ウ・ューイ・@ イ・ァゥ、。@ ーッイ@ 」ッョ、ゥ￧￵・ウ@ 、・ ーイッ、オ￧ ̄ッ@ ・ウー・」■ヲゥ」。ウ@ アオ・L@ ・ョエイ・エ。ョエッL@ 。ー。イ・」・ュ@ 」ッュッ@ オョゥカ・イウ。ゥウ@ ・@ ・エ・イョ。ウL@ イ・ウオャエ。ョ、ッ 、ゥウウッ@。@ゥューイ・ウウ ̄ッ@、ッ@ウ・ョエゥ、ッ@ョゥ」ッ@・@カ・イ、。、・ゥイッN aゥョ、。@ー。イ。ヲイ。ウ・。ョ、ッ@。@。オエッイ。L@オュ@、ッウ@・ヲ・ゥエッウ@ゥ、・ッャ￳ァゥ」ッウ@・ウエ£@ェオウエ。ュ・ョエ・@ョッ@ヲ。エッ@、・ アオ・@。@ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッ@ウ・@ョ・ァ。@」ッュッ@エ。ャ@ョッ@ュッュ・ョエッ@ュ・ウュッ@・ュ@アオ・@・ャ。@ウ・@、£N@aッ@ヲ。ャ。イL@ッ ウオェ・ゥエッ@ ・ウエ£@ ・ュ@ ーャ・ョ。@ 。エゥカゥ、。、・@ 、・@ ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッL@ 。エイゥ「オゥョ、ッ@ ウ・ョエゥ、ッ@ ¢ウ@ ウオ。ウ@ ーイ￳ーイゥ。ウ ー。ャ。カイ。ウ@ ・ュ@ 」ッョ、ゥ￧￵・ウ@ ・ウー・」■ヲゥ」。ウN@ cッョエオ、ッL@ ・ウウ・@ ウオェ・ゥエッ@ ッ@ ヲ。コ@ 」ッュッ@ ウ・@ ッウ@ ウ・ョエゥ、ッウ ・ウエゥカ・ウウ・ュ@ ョ。ウ@ー。ャ。カイ。ウL@ 。ー。ァ。ョ、ッ@ ウオ。ウ@」ッョ、ゥ￧￵・ウ@、・@ ーイッ、オ￧ ̄ッL@ヲ。コ・ョ、ッ@、・ウ。ー。イ・」・イ@ ッ ュッ、ッ@ ー・ャッ@ アオ。ャ@ 。@ ・クエ・イゥッイゥ、。、・@ ッ@ 」ッョウエゥエオゥN@ eュ@ ウオュ。L@ 。@ ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッ@ 。ー。イ・」・@ ー。イ。@ ッ ウオェ・ゥエッ@」ッュッ@エイ。ョウー。イ↑ョ」ゥ。L@」ッュッ@ッ@ウ・ョエゥ、ッ@ャ£ @Hoイャ。ョ、ゥL@RPPTL@ーN@VUIN eウウ・ウ@ 、。、ッウ@ ー・イュゥエ・ュMョッウ@ ・ョ、ッウウ。イ@ 。@ 。ヲゥイュ。￧ ̄ッ@ 、。@ 。オエッイ。@ 、・@ アオ・@ ョ ̄ッ@ ウ・@ ーッ、・ ・ク」ャオゥイ@ 、ッ@ ヲ。エッ@ ャゥョァ■ウエゥ」ッ@ ッ@ ・アオ■カッ」ッ@ 」ッュッ@ ヲ。エッ@ ・ウエイオエオイ。ャ@ ゥューャゥ」。、ッ@ ー・ャ。@ ッイ、・ュ@ 、ッ ウゥュ「￳ャゥ」ッN@h£L@」ッュッ@、ゥコ@p↑」ィ・オクL@ オュ@エイ。「。ャィッ@、ッ@ウ・ョエゥ、ッ@ウッ「イ・@ッ@ウ・ョエゥ、ッL@エッュ。、ッ@ョッ 152 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 151-160, jan.-abr. 2008 イ・ャ。ョ￧。イ@ ゥョ、・ヲゥョゥ、ッ@ 、。ウ@ ゥョエ・イーイ・エ。￧￵・ウ @ Hp↑」ィ・オク 。ーオ、@ oイャ。ョ、ゥL@ RPPTL@ ーN@ VVIN@ eL@ ウ・@ ← 。ウウゥュ@アオ・@ウ・@ヲ。コ@ーイ・ウ・ョエ・@。@ゥ、・ッャッァゥ。L@エ。ュ「←ュ@←@。■@アオ・@ゥョエ・イカ←ュ@。@ィゥウエ￳イゥ。N o@ーイッ」・ウウッ@ゥ、・ッャ￳ァゥ」ッ@ョ ̄ッ@ウ・@ャゥァ。@¢@ヲ。ャエ。L@ュ。ウ@。ッ@・ク」・ウウッN@eャ・@イ・ーイ・ウ・ョエ。@ッ@・ヲ・ゥエッ@、・ 」ッューャ・エオ、・@アオ・L@ーッイ@ウ・オ@ャ。、ッL@ーイッ、オコ@ッ@・ヲ・ゥエッ@、・@ ・カゥ、↑ョ」ゥ。 L@ウオウエ・ョエ。ョ、ッMウ・@ウッ「イ・@ッ@ェ£ 、ゥエッL@ッウ@ウ・ョエゥ、ッウ@ゥョウエゥエオ」ゥッョ。ャゥコ。、ッウL@。、ュゥエゥ、ッウ@ーッイ@エッ、ッウ@」ッュッ@ ョ。エオイ。ゥウ N m。ウ@ オュ。@ ッオエイ。@ ヲッイュ。@ 、・@ カ・イ@ 。@ アオ・ウエ ̄ッ@ 、。@ ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッL@ ウ・ョ、ッ@ 。@ アオ・@ ュ。ゥウ@ ュ・ ゥョエ・イ・ウウ。@ ョ・ウエ・@ ュッュ・ョエッL@ ←@ 。@ アオ・@ ウ・@ カゥョ」オャ。@ 。ッ@ 。イアオゥカッN@ n。@ ー・イウー・」エゥカ。@ 、・@ 。イアオゥカッ ー・ョウ。、。@ーッイ@p↑」ィ・オク@HQYXQIL@ーッ、・Mウ・@」ッョ」・「・イ@アオ・@ィ£@オュ。@、ゥカゥウ ̄ッ@ウッ」ゥ。ャ@、ッ@エイ。「。ャィッ@、。 ャ・ゥエオイ。L@ 、・@ エ。ャ@ 」ッュッ@ アオ・@ ・ャ。@ エ・ュ@ 、ゥヲ・イ・ョエ・ウ@ ヲッイュ。ウ@ ョ。@ ィゥウエ￳イゥ。L@ ・ュ「ッイ。L@ 「。ウゥ」。ュ・ョエ・@ ウ・ ーッウウ。ュ@、ゥウエゥョァオゥイZ@。I@ッ@ュッ、ッ@ャゥエ・イ£イゥッ@・@「I@ッ@ュッ、ッ@」ゥ・ョエ■ヲゥ」ッ@、。@イ・ャ。￧ ̄ッ@」ッュ@ッウ@ウ・ョエゥ、ッウL ウ・ョ、ッ@アオ・@・ウウ。@イ・ャ。￧ ̄ッ@←@ウッ「イ・、・エ・イュゥョ。、。@ー・ャ。@、ゥカゥウ ̄ッ@・ョエイ・@ッ@」ッイーッ@ウッ」ゥ。ャ@、ッウ@アオ・@エ↑ュ 、ゥイ・ゥエッ@¢@ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッL@、ゥウエゥョエッ@、。アオ・ャ・ウ@アオ・@ヲ。コ・ュ@ッ@エイ。「。ャィッ@」ッエゥ、ゥ。ョッ@、・@ウオウエ・ョエ。￧ ̄ッ 、。@ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッ@アオ・@、・カ・@ウ・イL@。@アオ・@・ウエ。「ゥャゥコ。N@cッュッ@、ゥコ@oイャ。ョ、ゥ@HRPPTIL@、ゥウエゥョ￧ ̄ッ@・ョエイ・ ゥョエ←イーイ・エ・ウ@・@・ウ」イ・カ・ョエ・ウ N@oウ@ァ・ウエッウ@、・@ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッ@ウ ̄ッ@ェ£@、・エ・イュゥョ。、ッウL@ッウ@ウ■エゥッウ@、・ ウゥァョゥヲゥ」¬ョ」ゥ。@ ウ ̄ッ@ ーイ・カゥウエッウ @ ー・ャ。@ 、ゥカゥウ ̄ッ@ ウッ」ゥ。ャ@ 、。@ ャ・ゥエオイ。N@ a@ ッイ、・ュ@ Hョ・」・ウウ£イゥ。I@ ウ・ 。ーイ・ウ・ョエ。@」ッュッ@ッイァ。ョゥコ。￧ ̄ッ@Hゥュ。ァゥョ£イゥ。I@、ッウ@ウ・ョエゥ、ッウ @Hoイャ。ョ、ゥL@RPPTL@ーNVWIN p・ャ。@ ョッ￧ ̄ッ@ 、ゥウ」オイウゥカ。@ 、・@ 。イアオゥカッL@ ーッ、・Mウ・@ 。ーイ・・ョ、・イ@ ッ@ ァ・ウエッ@ アオ・L@ ョ。@ ィゥウエ￳イゥ。L ウ・ー。イ。L@ 、ゥカゥ、・@ ッ@ 、ゥイ・ゥエッ@ ¢@ ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッ@ ・@ エイ。「。ャィ。@ ッウ@ ュッ、ッウ@ 、・@ ァ・イ・ョ」ゥ£Mャ。N@ iウエッ@ ゥョ、ゥ」。 アオ・@ ッウ@ ウ・ョエゥ、ッウ@ ョ ̄ッ@ ・ウエ ̄ッ@ 。ャッ」。、ッウ@ ョ。ウ@ ー。ャ。カイ。ウL@ ュ。ウ@ ウ ̄ッ@ イ・ャ。￧ ̄ッ@ 。 L@ 」ッョウッ。ョエ・ c。ョァオゥャィ・ョ@HQYXPIN ￉@ ーイ・」ゥウッ@ アオ・@ 。@ ィゥウエ￳イゥ。@ ゥョエ・イカ・ョィ。@ ョ。@ ャ■ョァオ。@ ー。イ。@ アオ・@ ・ャ。@ ヲ。￧。@ ウ・ョエゥ、ッN@ eL@ 」ッュ@ 。 ィゥウエ￳イゥ。L@ ッ@ ・アオ■カッ」ッL@ 。@ 。ュ「ゥァゥ、。、・L@ 。@ ッー。」ゥ、。、・N@ d。■@ 。@ ョ・」・ウウゥ、。、・@ 、・@ 。、ュゥョゥウエイ。イ@ 。 ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッL@、・@イ・ァオャ。イ@ウオ。ウ@ーッウウゥ「ゥャゥ、。、・ウL@ウオ。ウ@」ッョ、ゥ￧￵・ウN pッイエ。ョエッL@ 。@ ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッ@ ョ ̄ッ@ ←@ ュ・イッ@ ァ・ウエッ@ 、・@ 、・」ッ、ゥヲゥ」。￧ ̄ッL@ 、・@ 。ーイ・・ョウ ̄ッ@ 、・ ウ・ョエゥ、ッL@ ョ・ュ@ ←@ ャゥカイ・@ 、・@ 、・エ・イュゥョ。￧￵・ウL@ ョ ̄ッ@ ーッ、・ョ、ッ@ ウ・イ@ アオ。ャアオ・イ@ オュ。@ ・@ ョ ̄ッ@ ウ・ョ、ッ ゥァオ。ャュ・ョエ・@ 、ゥウエイゥ「オ■、。@ ョ。@ ヲッイュ。￧ ̄ッ@ ウッ」ゥ。ャN@ o@ アオ・@ 。@ ァ。イ。ョエ・@ ←@ 。@ ュ・ュ￳イゥ。@ ウッ「@ 、ッゥウ 。ウー・」エッウZ@ 。I@ 。@ ュ・ュ￳イゥ。@ ゥョウエゥエオ」ゥッョ。ャゥコ。、。L@ ッオ@ ウ・ェ。L@ ッ@ 。イアオゥカッL@ ッ@ エイ。「。ャィッ@ ウッ」ゥ。ャ@ 、。 ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッ@・ュ@アオ・@ウ・@、ゥウエゥョァオ・@アオ・ュ@エ・ュ@・@アオ・ュ@ョ ̄ッ@エ・ュ@、ゥイ・ゥエッ@。@・ャ。[@・@「I@。@ュ・ュ￳イゥ。 」ッョウエゥエオエゥカ。L@ ッオ@ ウ・ェ。L@ ッ@ ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッL@ ッ@ エイ。「。ャィッ@ 、。@ 」ッョウエゥエオゥ￧ ̄ッ@ 、。@ ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッ@ Hッ 、ゥコ■カ・ャL@ッ@イ・ー・エ■カ・ャL@ッ@ウ。「・イ@、ゥウ」オイウゥカッIN ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 151-160, jan.-abr. 2008 153 @d・ウウ・@ ュッ、ッL@ 。@ ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッ@ ウ・@ ヲ。コ@ ・ョエイ・@ 。@ ュ・ュ￳イゥ。@ ゥョウエゥエオ」ゥッョ。ャ@ H。イアオゥカッI@ ・@ ッウ ・ヲ・ゥエッウ@、。@ュ・ュ￳イゥ。@Hゥョエ・イ、ゥウ」オイウッIN@gッウエ。イゥ。L@ョ・ウエ・@ゥョウエ。ョエ・L@、・@ヲ。コ・イ@オュ@ー。イ↑ョエ・ウ・@ー。イ。 」ゥエ。イ@ 。@ 、・ヲゥョゥ￧ ̄ッ@ アオ・@ e、オ。イ、ッ@ gオゥュ。イ ̄・ウ@ 。エイゥ「オゥ@ 。@ ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッ@ ・ュ@ ウ・オ@ エ・クエッ iョ、・ー・ョ、↑ョ」ゥ。@ッオ@mッイエ・ HQYYSIL@、・ヲゥョゥョ、ッMッ@・ュ@ウオ。@イ・ャ。￧ ̄ッ@」ッュ@。@ャ■ョァオ。N@eャ・@、ゥイ£Z HNNNI@ ーッ、・ュッウ@、ゥコ・イ@ アオ・@ッ@ ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッ@ ←@ 。@イ・ャ。￧ ̄ッ@ 、・@オュ@ 、ゥウ」オイウッ@」ッュ@ッオエイッウ@ 、ゥウ」オイウッウN nッ@ウ・ョエゥ、ッ@、・@アオ・@・ウエ。@イ・ャ。￧ ̄ッ@ョ ̄ッ@ ウ・@ 、£@ 。@ー。イエゥイ@ 、ッウ@ 、ゥウ」オイウッウ@ェ£@ー。イエゥ」オャ。イゥコ。、ッウN@ ￉@ ・ャ。 ーイ￳ーイゥ。@ 。@ イ・ャ。￧ ̄ッ@ ・ョエイ・@ 、ゥウ」オイウッウ@ アオ・@ 、£@ 。@ ー。イエゥ」オャ。イゥ、。、・L@ ッオ@ ウ・ェ。L@ ウ ̄ッ@ 。ウ@ イ・ャ。￧￵・ウ@ ・ョエイ・ 、ゥウ」オイウッウ@アオ・@ー。イエゥ」オャ。イゥコ。ュ@」。、。@、ゥウ」オイウッN@HNNNI@n ̄ッ@←@オュ@ャッ」オエッイ@アオ・@」ッャッ」。@。@ャ■ョァオ。@・ュ ヲオョ」ゥッョ。ュ・ョエッ@ ーッイ@ 、・ャ。@ ウ・@ 。ーイッーイゥ。イN@ a@ ャ■ョァオ。@ ヲオョ」ゥッョ。@ ョ。@ ュ・、ゥ、。@ ・ュ@ アオ・@ オュ@ ゥョ、ゥカ■、オッ ッ」オー。@オュ。@ーッウゥ￧ ̄ッ@、・@ウオェ・ゥエッ@ョッ@、ゥウ」オイウッL@・@ゥウウッL@ーッイ@ウゥ@ウ￳L@ー￵・@。@ャ■ョァオ。@・ュ@ヲオョ」ゥッョ。ュ・ョエッ ーッイ@。ヲ・エ£Mャ。@ー・ャッ@ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッN@pイッ、オコゥョ、ッL@。ウウゥュL@・ヲ・ゥエッウ@、・@ウ・ョエゥ、ッ@HQYYSL@ーNWQIN d。ョ、ッ@ 」ッョエゥョオゥ、。、・@ ¢ウ@ イ・ヲャ・ク￵・ウ@ ウオーイ。@ ュ・ョ」ゥッョ。、。ウL@ ウ・L@ ョッ@ ¬ュ「ゥエッ@ 、。@ ュ・ュ￳イゥ。 ゥョウエゥエオ」ゥッョ。ャ@ 。@ イ・ー・エゥ￧ ̄ッ@ 」ッョァ・ャ。L@ ョッ@ ¬ュ「ゥエッ@ 、ッウ@ ・ヲ・ゥエッウ@ 、・@ ュ・ュ￳イゥ。@ 。@ イ・ー・エゥ￧ ̄ッ@ ←@ 。 ーッウウゥ「ゥャゥ、。、・@ ュ・ウュ。@ 、・@ ッ@ ウ・ョエゥ、ッ@ カゥイ@ 。@ ウ・イ@ ッオエイッL@ ・ュ@ アオ・@ ーイ・ウ・ョ￧。@ ・@ 。オウ↑ョ」ゥ。@ ウ・ エイ。「。ャィ。ュL@ ー。イ£ヲイ。ウ・@ ・@ ーッャゥウウ・ュゥ。@ ウ・@ 、・ャゥュゥエ。ュ@ ョッ@ ュッカゥュ・ョエッ@ 、。@ 」ッョエイ。、ゥ￧ ̄ッ@ ・ョエイ・@ ッ ュ・ウュッ@ ・@ ッ@ 、ゥヲ・イ・ョエ・N@ aウウゥュL@ 」ッョヲッイュ・@ eョゥ@ pN@ oイャ。ョ、ゥL@ ッ@ 、ゥコ・イ@ ウ￳@ ヲ。コ@ ウ・ョエゥ、ッ@ ウ・@ 。 ヲッイュオャ。￧ ̄ッ@ウ・@ゥョウ」イ・カ・イ@ョ。@ッイ、・ュ@、ッ@イ・ー・エ■カ・ャL@ョッ@、ッュ■ョゥッ@、ッ@ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッ @HRPPTL@ーN VXIN a@ヲゥュ@、・@・クーャゥ」。イ@ュ・ャィッイ@。@、ゥウエゥョ￧ ̄ッ@アオ・@@oイャ。ョ、ゥ@HRPPSL@ーN@QUI@ヲ。コ@・ョエイ・@ュ・ュ￳イゥ。 、ゥウ」オイウゥカ。@ ・@ 。イアオゥカッL@ カゥウエッ@ アオ・@ 、・ヲゥョ・@ ・ウエ・@ ャエゥュッ@ 」ッュッ@ ュ・ュ￳イゥ。@ ゥョウエゥエオ」ゥッョ。ャゥコ。、。L ・ウエ。「ゥャゥコ。￧ ̄ッ@ ・@ 。エ・ウエ。￧ ̄ッ@ 、・@ ウ・ョエゥ、ッウ@ アオ・@ ーイッ、オコ@ オュ@ ・ヲ・ゥエッ@ 、・@ ヲ・」ィ。ュ・ョエッL@ エッュ。イ・ゥ エイ。ョウ」イゥ￧ ̄ッ@、・@m￴ョゥ」。@zッーーゥMfッョエ。ョ。L@アオ・@イ・、ゥコ@。@。オエッイ。@、。@ウ・ァオゥョエ・@ュ。ョ・ゥイ。Z ッ@ 。イアオゥカッL@ ¢@ 、ゥヲ・イ・ョ￧。@ 、。@ ュ・ュ￳イゥ。@ 、ゥウ」オイウゥカ。L@ ・ウエイオエオイ。Mウ・@ ー・ャッ@ ョ ̄ッ@ ・ウアオ・」ゥュ・ョエッL@ ー・ャ。 ーイ・ウ・ョ￧。L@ー・ャッ@。」ュオャッL@ー・ャッ@・ヲ・ゥエッ@、・@」ッューャ・エオ、・N@eL@エ。ュ「←ュL@ー・ャ。@。オエッイゥ。@・ュ@イ・ャ。￧ ̄ッ@。 ーイ£エゥ」。ウ@ 、・@ ・ウ」イゥエ。L@ 、・@ ャ・ァゥエゥュ。￧ ̄ッL@ 、・@ 、ッ」オュ・ョエ。￧ ̄ッL@ 、・@ ゥョ、・ク。￧ ̄ッL@ 、・@ 」。エ。ャッァ。￧ ̄ッL@ 、・ ー・イュ。ョ↑ョ」ゥ。L@、・@。」・ウウゥ「ゥャゥ、。、・@HRPPTL@ーN@YWIN aウウゥュL@、・@。」ッイ、ッ@」ッュ@oイャ。ョ、ゥL@。@ュ・ュ￳イゥ。@ @・ョアオ。ョエッ@。イアオゥカッ@ @エ・ュ@。@ヲッイュ。@、・ ゥョウエゥエオゥ￧ ̄ッ@アオ・@」ッョァ・ャ。L@アオ・@ッイァ。ョゥコ。L@アオ・@、ゥウエイゥ「オゥ@ウ・ョエゥ、ッウL@ウ・ョ、ッ@、。エ。、ッ@ッ@、ゥコ・イ@ョ・ウウ。 イ・ャ。￧ ̄ッN@ pッイ←ュL@ 。@ ュ・ュ￳イゥ。@ @ ・ョアオ。ョエッ@ ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッ@ @ ←@ ィゥウエッイゥ」ゥ、。、・L@ 。ャ。イァ。ョ、ッ@ 。 154 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 151-160, jan.-abr. 2008 イ・ャ。￧ ̄ッ@ 」ッュ@ @ 。@ ・クエ・イゥッイゥ、。、・L@ 。「イゥョ、ッ@ ー。イ。@ ッオエイッウ@ ウ・ョエゥ、ッウL@ 、ゥウー・イウ。ョ、ッL@ ーッョ、ッ@ ・ュ ュッカゥュ・ョエッN a@ ー。イエゥイ@ 、。@ イ・ヲャ・ク ̄ッ@ 、。@ 。ョ。ャゥウエ。@ 、・@ 、ゥウ」オイウッL@ ーイッーッョィッMュ・L@ ーッイ@ オュ@ ャ。、ッL@ 。@ ヲ。コ・イ オュ。@ 、・ウ」イゥ￧ ̄ッ@ 、ッ@ 。イアオゥカッ@ ェオイ■、ゥ」ッ@ Hm。ョオ。ャ@ 、・@ dゥイ・ゥエッ@ p・ョ。ャIL@ 」。イ。」エ・イゥコ。ョ、ッ@ ウ・オ ヲオョ」ゥッョ。ュ・ョエッ@ ー・ャ。@ ゥャオウ ̄ッ@ 、・@ 」ッューャ・エオ、・L@ ー・ャッウ@ ・ヲ・ゥエッウ@ 、・@ 」ッョァ・ャ。ュ・ョエッ@ 、・@ オュ。 ・ウ」イゥエオイ。@ ョッ@ エ・ューッ@ ・L@ ーッイ@ ッオエイッL@ 。@ ュッウエイ。イ@ 。ウ@ ヲゥャゥ。￧￵・ウ@ 、ゥウ」オイウゥカ。ウ@ アオ・@ 」ッョヲゥァオイ。ュ@ ッ 」。ューッ@ 、。@ ュ・ュ￳イゥ。@ 、ッ@ 、ゥウ」オイウッ@ ェオイ■、ゥ」ッ@ ・@ アオ・@ 、・エ・イュゥョ。ュ@ ッ@ ・ョオョ」ゥ£カ・ャ@ 、ッ@ 。イアオゥカッ ェオイ■、ゥ」ッ@ ・ュ@ 、・エ・イュゥョ。、。ウ@ 」ッョ、ゥ￧￵・ウ@ 、・@ ーイッ、オ￧ ̄ッL@ ャ・ュ「イ。ョ、ッL@ エ。ュ「←ュL@ アオ・@ ッ ヲオョ」ゥッョ。ュ・ョエッ@、ッ@。イアオゥカッ@ェオイ■、ゥ」ッ@ウ・@ウオウエ・ョエ。@ョッ@ウゥャ・ョ」ゥ。ュ・ョエッ@、・@・ョオョ」ゥ。、ッウ@・クエ・イゥッイ・ウ 。ッ@ーイ￳ーイゥッ@。イアオゥカッN@eL@オュ。@カ・コ@ウゥャ・ョ」ゥ。、ッウL@・ャ・ウ@ヲオョ」ゥッョ。ュ@ー・ャ。@ヲ。ャエ。N pッイエ。ョエッL@ ィ£@ アオ・@ ウ・@ 、・ウ」イ・カ・イ@ ッ@ ヲオョ」ゥッョ。ュ・ョエッ@ 、ゥウ」オイウゥカッ@ 、・ウウ・ウ@ ・ョオョ」ゥ。、ッウ H・ャ・ュ・ョエッウ@ 、・@ ウ。「・イ@ 。オウ・ョエ・ウIL@ 」ッョヲイッョエ。ョ、ッ@ ッ@ 。イアオゥカッ@ Hュ・ュ￳イゥ。@ ゥョウエゥエオ」ゥッョ。ャゥコ。、。L 」ッョエイッャ。、。I@」ッュ@ッ@ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッ@H ュ・ュ￳イゥ。@、ゥウ」オイウゥカ。@」ッョウエゥエオエゥカ。L@ョ ̄ッ@。ーイ・・ョウ■カ・ャ@ョ・ュ 。ーイ・・ョ、ゥ、。L@ ャ。」オョ。イL@ ヲ。ャィ。I[@ ャ・ュ「イ。ョ、ッMウ・@ 、・@ アオ・@ ッ@ ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッ@ ←@ 。@ イ・ャ。￧ ̄ッ@ 、・@ オュ 、ゥウ」オイウッ@」ッュ@ッオエイッウ@、ゥウ」オイウッウ @Hgオゥュ。イ ̄・ウL@QYYUL@ーNVVIL@ゥウエッ@←L@オュ@、ゥウ」オイウッ@ウ・@」ッョウエイ￳ゥ 。@ー。イエゥイ@、・@ッオエイッウ@、ゥウ」オイウッウ@ー・イエ・ョ」・ョエ・ウ@¢@ュ・ュ￳イゥ。N s・ョ、ッ@。ウウゥュL@ー。イエッ@、。@」ッョウゥ、・イ。￧ ̄ッ@、・@アオ・@ッ@。イアオゥカッ@ェオイ■、ゥ」ッ@」イゥウエ。ャゥコ。@オュ@ァ・ウエッ 、・@ ャ・ゥエオイ。@ ョッO、ッ@ 。イアオゥカッ@ アオ・@ ・ウエ。「・ャ・」・@ オュ。@ イ・、・@ ゥョエ・イョ。@ 、・@ イ・ヲ・イ↑ョ」ゥ。ウ@ ゥョエ・イエ・クエオ。ゥウ ーイ・」ゥウ。ウL@ イ・ウーッョウ£カ・ゥウ@ ーッイ@ ーイッ、オコゥイ@ オュ@ ・ヲ・ゥエッ@ 、・@ 」ッューャ・エオ、・@ 、ッ@ 」ッイーッ@ 、・@ ャ・ゥウ@ アオ・ 」ッョウエゥエオ・ュ@ ッ@ 。イアオゥカッN@ eウエ・@ ァ・ウエッ@ 、・@ ャ・ゥエオイ。@ アオ・@ ウ・@ ーイッェ・エ。@ ウッ「イ・@ 。ウ@ ーイ£エゥ」。ウ ゥョウエゥエオ」ゥッョ。ャゥコ。、。ウ@ 、・@ ・ウ」イゥエオイ。@ ャ・ァ。ャ@ ョッイュ。エゥコ。@ オュ@ 、ゥコ・イ@ 」ゥイ」オャ。イL@ 。オエッMイ・ヲ・イ・ョ」ゥ。ャL@ アオ・ 、・ウ」ッョィ・」・O。ー。ァ。@ 」ッョウエゥエオエゥカ。ュ・ョエ・@ ・ョオョ」ゥ。、ッウ@ ーイッ、オコゥ、ッウ@ ヲッイ。@ 、ッ@ 。イアオゥカッ HzッーーゥMfッョエ。ョ。L@RPPT IN pッイ@ ゥウウッL@ 」ッュッ@ ェ£@ ヲッゥ@ 、ゥエッL@ ゥョエ・イ・ウウ。@ ッ「ウ・イカ。イL@ エ。ュ「←ュL@ ョ・ウエ・@ エイ。「。ャィッL@ ・ウエ・ ーイッ」・ウウッ@ 、・@ ウゥャ・ョ」ゥ。ュ・ョエッ@ 、・@ ・ョオョ」ゥ。、ッウ@ ・クエ・イゥッイ・ウ@ 。ッ@ 。イアオゥカッ@ ェオイ■、ゥ」ッL@ ーッイアオ・@ ←@ ー・ャッ 。ー。ァ。ュ・ョエッ@ッオ@ー・ャ。@ゥイイオー￧ ̄ッ@ュッュ・ョエ¬ョ・。@、・@・ャ・ュ・ョエッウ@、・@ウ。「・イ@ーイッカ・ョゥ・ョエ・ウ@、・@ッオエイ。ウ 、ゥウ」オイウゥカゥ、。、・ウ@ アオ・@ ッ@ エ・クエッ@ ャ・ァ。ャ@ ・ュ@ 。ョ£ャゥウ・@ 。オエッイゥコ。@ ッオ@ 、・ウ。オエッイゥコ。@ O@ ャ・ァゥエゥュ。@ ッオ 、・ウャ・ァゥエゥュ。@ァ・ウエッウ@、・@ゥョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッ@、ッ@。オエッイ@、ッ@m。ョオ。ャ@、・@dゥイ・ゥエッ@p・ョ。ャN mッ、ッウ@、・@・ョオョ」ゥ。「ゥャゥ、。、・@、。@・ウ」イゥエ。@ェオイ■、ゥ」。Z@ーイッ」・ウウッウ@、・@・ヲ・ゥエッウ@オョゥカ・イウ。ャゥコ。ョエ・ ・@ー。イエゥ」オャ。イゥコ。ョエ・ ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 151-160, jan.-abr. 2008 155 a@ ヲゥュ@ 、・@ 、・ウ」イ・カ・イ@ ッウ@ ュッ、ッウ@ 、・@ ・ョオョ」ゥ。「ゥャゥ、。、・@ 、ッ@ エ・クエッ@ 、ッ@ m。ョオ。ャ@ 、・@ dゥイ・ゥエッ p・ョ。ャL@ イ・ゥエ・イッ@ 。アオゥ@アオ・@ ゥウウッ@ウ￳@ウ・@ヲ。コ@ーッウウ■カ・ャ@ ウ・@ ャ・カ。イュッウ@ ・ュ@ 」ッョエ。@ 。@ュ。エ・イゥ。ャゥ、。、・@ 、。 ャ■ョァオ。@ ・@ 、ッ@ ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッ@ ョ。@ ャ・ゥエオイ。@ 、ッ@ 。イアオゥカッN@ p。イエゥイ・ゥ@ 、。@ 」ッョウゥ、・イ。￧ ̄ッ@ 、・@ アオ・@ ッ ・ョオョ」ゥ£カ・ャ@ 、ッ@ エ・クエッ@ ・ュ@ 。ョ£ャゥウ・@ ←@ 」。イ。」エ・イゥコ。、ッ@ ーッイ@ 、ッゥウ@ ーイッ」・ウウッウ@ 、ゥウ」オイウゥカッウZ@ ッ@ 、・ 」。エ・ァッイゥコ。￧ ̄ッO、・ヲゥョゥ￧ ̄ッ@ @ イ・ウーッョウ£カ・ゥウ@ ーッイ@ 」ッョウエイオゥイ@ オュ@ ・ヲ・ゥエッ@ オョゥカ・イウ。ャゥコ。ョエ・@ ョッ ・ョオョ」ゥ£カ・ャ@ @ ・@ ッ@ 、・@ 。ー。ァ。ュ・ョエッOゥョエ・イエ・、ゥウ」オイウゥカゥ、。、・Oュ・ュ￳イゥ。Oーイ・ウ・ョ￧。@ 、ッ@ ウオェ・ゥエッ@ イ・ウーッョウ£カ・ゥウ@ーッイ@ュッ、。ャゥコ。イ@ッ@・ョオョ」ゥ£カ・ャ@、・@ヲッイュ。@ー。イエゥ」オャ。イゥコ。ョエ・N@d・カッ@ヲ。コ・イ@。アオゥ@オュ。 ッ「ウ・イカ。￧ ̄ッZ@ ・ュ@ イ・ャ。￧ ̄ッ@ 。ッウ@ エ・イュッウ オョゥカ・イウ。ャゥコ。ョエ・ ・ ー。イエゥ」オャ。イゥコ。ョエ・L@ ・オ@ ッウ@ エッュ・ゥ ・ューイ・ウエ。、ッウ@ 、・@ m￴ョゥ」。@ zッーーゥMfッョエ。ョ。N@ nッ@ ・ョエ。ョエッL@ ッウ@ ウ・ョエゥ、ッウ@ アオ・@ 。エイゥ「オゥイ・ゥ@ 。@ ・ウウ・ウ ・ヲ・ゥエッウ@ ウ ̄ッ@ エッエ。ャュ・ョエ・@ 、ゥヲ・イ・ョエ・ウZ@ ・ョエ・ョ、・イMウ・M£@ ーッイ@ ・ヲ・ゥエッ@ オョゥカ・イウ。ャゥコ。ョエ・@ エッ、。@ ヲッイュ。 ャゥョァ■ウエゥ」。@、・ヲゥョゥエ￳イゥ。O」ャ。ウウゥヲゥ」。エ￳イゥ。@アオ・@イ・ュ・エ・イ@。@オュ。@。エ・ューッイ。ャゥ、。、・L@。@オュ@、ゥコ・イ@カ£ャゥ、ッ ー。イ。@エッ、ッウL@。@オュ@、ゥコ・イ@アオ・@。ー。ァ。@ッ@ウオェ・ゥエッ@、。@・ョオョ」ゥ。￧ ̄ッL@。@オュ@、ゥコ・イ@アオ・@ーイッ、オコ@オュ。 ゥャオウ ̄ッ@ 、・@ 」ッューャ・エオ、・@ 、ッウ@ ウ・ョエゥ、ッウ[@ ・L@ ・ョエ・ョ、・イMウ・M£@ ーッイ@ ・ヲ・ゥエッ@ ー。イエゥ」オャ。イゥコ。ョエ・@ エッ、。 ・ウエイオエオイ。@ ャゥョァ■ウエゥ」。@ アオ・@ イ・ュ・エ・イ@ 。ッ@ ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッL@ ¢@ ュ・ュ￳イゥ。@ 、ゥウ」オイウゥカ。L@ ¢@ ーイ・ウ・ョ￧。@ 、ッ ウオェ・ゥエッ@ョ。@・ョオョ」ゥ。￧ ̄ッL@ッオ@ウ・ェ。L@¢@・クエ・イゥッイゥ、。、・@ィゥウエ￳イゥ」。@・@ウッ」ゥ。ャN @eL@ ー。イ。@アオ・@ ・ウエ・@。イエゥァッ@ エッュ・@。ウ@ヲッイュ。ウ@、。@ャゥョィ。@。ョ。ャ■エゥ」。@ョ。@アオ。ャ@ュ・@ゥョウゥイッL@。@、。 s・ュ¬ョエゥ」。@ 、。@ eョオョ」ゥ。￧ ̄ッ@ ・@ s・ュ¬ョエゥ」。@ aイァオュ・ョエ。エゥカ。L@ 「オウ」。イ・ゥL@ ーイゥョ」ゥー。ャュ・ョエ・L@ ョッウ ・ウエオ、ッウ@、・@e、オ。イ、ッ@gオゥュ。イ ̄・ウL@・ュ「。ウ。ュ・ョエッ@エ・￳イゥ」ッ@ー。イ。@・ヲ・エオ。イ@。@。ョ£ャゥウ・@ーイッーッウエ。N tイ。「。ャィ。イ・ゥL@ ョ・ウエ・@ 。イエゥァッL@ @ 」ッュ@ ッ@ 」ッョ」・ゥエッ@ 、・@ 。」ッョエ・」ゥュ・ョエッ@ ・ャ。「ッイ。、ッ@ ーッイ gオゥュ。イ ̄・ウ@ HRPPRIL@ アオ・@ ←@ 、・ヲゥョゥ、ッ@ ー・ャッ@ 。オエッイ@ 」ッュッ@ ウ・ョ、ッ@ 。@ 、ゥヲ・イ・ョ￧。L@ ・@ ←@ 、ゥヲ・イ・ョ￧。 ーッイアオ・@@エ・ューッイ。ャゥコ。L@ーッイアオ・@ゥョウエ。ャ。@ウオ。@ーイ￳ーイゥ。@エ・ューッイ。ャゥ、。、・Z@・ウウ。@←@。@ウオ。@、ゥヲ・イ・ョ￧。N@e ・ウウ。@ エ・ューッイ。ャゥ、。、・@ 」ッョヲゥァオイ。Mウ・L@ 、・@ オュ@ ャ。、ッL@ ーッイ@ オュ@ ーイ・ウ・ョエ・@ アオ・@ 。「イ・@ ・ュ@ ウゥ@ オュ。 ャ。エ↑ョ」ゥ。@ 、・@ ヲオエオイッ@ Hオュ。@ ヲオエオイゥ、。、・IL@ ウ・ュ@ 。@ アオ。ャ@ ョ。、。@ ←@ ウゥァョゥヲゥ」。、ッL@ ーッゥウ@ ウ・ュ@ ・ャ。@ H。 ャ。エ↑ョ」ゥ。@、・@ヲオエオイッI@ョ。、。@ィ£@。■@、・@ーイッェ・￧ ̄ッL@、・@ゥョエ・イーイ・エ£カ・ャN@o@。」ッョエ・」ゥュ・ョエッ@エ・ュ@」ッュッ ウ・オ@ オュ@ 、・ーッゥウ@ ゥョ」ッョエッイョ£カ・ャ@ ・@ ーイ￳ーイゥッ@ 、ッ@ 、ゥコ・イN@ tッ、ッ@ 。」ッョエ・」ゥュ・ョエッ@ 、・@ ャゥョァオ。ァ・ュ ウゥァョゥヲゥ」。@ーッイアオ・@ーイッェ・エ。@・ュ@ウゥ@ュ・ウュッ@オュ@ヲオエオイッ @Hgオゥュ。イ ̄・ウL@RPPRL@ーNQRIN eウエ・@ーイ・ウ・ョエ・@・@ヲオエオイッ@ーイ￳ーイゥッウ@、ッ@。」ッョエ・」ゥュ・ョエッ@ヲオョ」ゥッョ。ュL@ーッイ@ッオエイッ@ャ。、ッL@ーッイ オュ@ ー。ウウ。、ッ@ アオ・@ ッウ@ ヲ。コ@ ウゥァョゥヲゥ」。イN@ oオ@ ウ・ェ。L@ ・ウエ。@ ャ。エ↑ョ」ゥ。@ 、・@ ヲオエオイッL@ アオ・L@ ョッ 。」ッョエ・」ゥュ・ョエッL@ ーイッェ・エ。@ ウ・ョエゥ、ッL@ ウゥァョゥヲゥ」。@ ーッイアオ・@ ッ@ 。」ッョエ・」ゥュ・ョエッ@ イ・」ッイエ。@ オュ@ ー。ウウ。、ッ 」ッュッ@ュ・ュッイ£カ・ャ @Hゥ、・ュL@ゥ「ゥ、・ュIN@aウウゥュL@ッ@ー。ウウ。、ッ@←@イ・ュ・ュッイ。￧ ̄ッ@、・@・ョオョ」ゥ。￧￵・ウ@ョッ 156 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 151-160, jan.-abr. 2008 。」ッョエ・」ゥュ・ョエッL@、。ョ、ッMウ・@」ッュッ@ー。イエ・@、・@オュ。@ョッカ。@エ・ューッイ。ャゥコ。￧ ̄ッL@エ。ャ@」ッュッ@。@ャ。エ↑ョ」ゥ。@、・ ヲオエオイッN v・ェ。ュッウ@ 」ッュッ@ 。@ エ・ューッイ。ャゥ、。、・@ ヲオョ」ゥッョ。@ ョ。@ 、・ウ」イゥ￧ ̄ッ@ 、ッ@ エ・クエッ@ ウッ「イ・@ ッ@ アオ。ャ 、・「イオ￧ッ@。@。ョ£ャゥウ・Z XNSNQQ@iョェイゥ。@ーッイ@ーイ・」ッョ」・ゥエッ p・ャッ@。イエN@Rᄎ@、。@l・ゥ@ョNᄎ@YNTUYL@、・@QSMUMYWL@ヲッゥ@。」イ・ウ」・ョエ。、ッ@ッ@ᄃ@Sᄎ@。ッ@。イエN@QTP@、ッ cpL@ーイ・カ・ョ、ッ@オュ@」イゥュ・@アオ。ャゥヲゥ」。、ッNNN a@。イエゥ」オャ。￧ ̄ッL@ョッ@。」ッョエ・」ゥュ・ョエッL@、・@オュ@。イエゥァッ@・ウー・」■ヲゥ」ッL@、・@オュ。@ャ・ゥ@・ウー・」■ヲゥ」。L@、・ オュ。@ 、。エ。@ ・ウー・」■ヲゥ」。@ ョッ@ ー。ウウ。、ッL@ オュ。@ ャッ」オ￧ ̄ッ@ カ・イ「。ャ@ ョッ@ ー。ウウ。、ッ@ @ イ・ウーッョウ£カ・ゥウ@ ー・ャッ ・ヲ・ゥエッ@ 、・@ 」ッューャ・エオ、・@ M@ L@ 。@ オュ@ カ・イ「ッ@ アオ・@ 」。イイ・ァ。@ ッ@ エイ。￧ッ@ 、・@ ヲオエオイゥ、。、・@ ョッ@ ァ・イョ、ゥッ Hーイ・カ・ョ、ッI@イ・」ッイエ。L@、・@オュ@ャ。、ッL@オュ@ー。ウウ。、ッL@オュ@ュ・ュッイ£カ・ャ@ @ッ@アオ・@、ゥコ@。@l・ゥ@YNTUYL@。 アオ。ャL@ ーッイ@ 」。イ。」エ・イゥコ。イ@ 。@ ・ョオョ」ゥ。￧ ̄ッ@ 、・@ オュ。@ ャ・ゥL@ ヲ。コ@ 」ッュ@ アオ・@ 。@ エ・ューッイ。ャゥ、。、・@ 、ッ@ エ・クエッ ェオイ■、ゥ」ッ@。ウウオュ。@」。イ£エ・イ@。エ・ューッイ。ャL@」。イ£エ・イ@、・@カ。ャゥ、。、・@、ッ@、ゥコ・イ@ー。イ。@エッ、。ウ@。ウ@←ーッ」。ウ@ML@・ ーッイ@ッオエイッL@ゥョウエ。オイ。@オュ。@ャ。エ↑ョ」ゥ。@、・@ヲオエオイッ@ @エ・ューッイ。ャゥ、。、・@」ッョヲゥァオイ。、。@ョ。@・ョオョ」ゥ。￧ ̄ッ@、。 カゥイエオ。ャゥ、。、・@、・@オュ。@。￧ ̄ッN o@ 。」ッョエ・」ゥュ・ョエッ@ 、。@ ・ョオョ」ゥ。￧ ̄ッ@ 、。@ ・ウ」イゥエオイ。@ ェオイ■、ゥ」。@ ゥョウエ。オイ。@ ウオ。@ ーイ￳ーイゥ。 エ・ューッイ。ャゥ、。、・L@」ッョヲゥァオイ。、。@ーッイ@オュ@ー。ウウ。、ッ@ @ュ・ュッイ£カ・ゥウ@、。@ャ・ゥL@、ッウ@ャ・ク・ュ。ウ@イ。￧。L@」ッイL イ・ャゥァゥ ̄ッL@・エョゥ。@ @・@ーッイ@オュ。@ャ。エ↑ョ」ゥ。@、・@ヲオエオイッ@ @ ーイ・カ・ョ、ッ L@ ウ・ @ @アオ・@ーイッェ・エ。@ウ・ョエゥ、ッウ ョッ@ーイ・ウ・ョエ・@ィゥウエ￳イゥ」ッO。エ・ューッイ。ャ@、。@ャ・ゥN ￉@ ゥョエ・イ・ウウ。ョエ・@ ッ「ウ・イカ。イ@ アオ・@ 。@ ・ョオョ」ゥ。￧ ̄ッ@ 、・@ ャ・ク・ュ。ウ@ アオ・@ ーイッェ・エ。ュ@ ヲオエオイゥ、。、・@ ・ 」ッョ、ゥ」ゥッョ。ャゥ、。、・@ーイッ、オコ@オュ@・ヲ・ゥエッ@、・@ー。イエゥ」オャ。イゥコ。￧ ̄ッ@アオ・L@エッ、。カゥ。L@ョ ̄ッ@ウ・@ウッ「イ・ー￵・@。ッ ュッ、ッ@ オョゥカ・イウ。ャゥコ。ョエ・@ 、ッ@ ・ョオョ」ゥ。イ@ 、。@ ャ・ゥL@ ェオウエ。ュ・ョエ・@ ーッイアオ・L@ アオ。ョ、ッ@ ウ・@ ・ョオョ」ゥ。@ ョ・ウウ・ ・ウー。￧ッ@ ェオイ■、ゥ」ッL@ ィ£@ オュ@ 。ー。ァ。ュ・ョエッ@ ッオ@ ウゥャ・ョ」ゥ。ュ・ョエッ@ 、・@ 、・エ・イュゥョ。、ッウ@ 、ゥウ」オイウッウL ゥョウエ。ャ。、ッウ@ョッ@ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッ@H」ッュッ@ッ@、ゥウ」オイウッ@、。@ゥョヲ・イゥッイゥコ。￧ ̄ッL@、。@、ゥカゥウ ̄ッL@ーッイ@・ク・ューャッIL ー。イ。@アオ・@ッ@、ゥウ」オイウッ@、。@ョッイュ。エゥカゥ、。、・@ウッ「イ・ウウ。ゥ。N r・」ッイエ・Z XNSNQ@cッョ」・ゥエッ a@ ゥョェイゥ。@ ←@ 。@ ッヲ・ョウ。@ ¢@ 、ゥァョゥ、。、・@ ッオ@ 、・」ッイッ@ 、・@ ッオエイ・ュN@ n。@ ウオ。@ ・ウウ↑ョ」ゥ。@ ←@ 。@ ゥョェイゥ。@ オュ。 ュ。ョゥヲ・ウエ。￧ ̄ッ@、・@、・ウイ・ウー・ゥエッ@・@、・ウーイ・コッL@オュ@ェオ■コッ@、・@カ。ャッイ@、・ーイ・」ゥ。エゥカッ@」。ー。コ@、・@ッヲ・ョ、・イ@。 ィッョイ。@、。@カ■エゥュ。@ョッ@ウ・オ@。ウー・」エッ@ウオ「ェ・エゥカッN ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 151-160, jan.-abr. 2008 157 d・ヲゥョ・M。@ ッ@ 。イエN@ QTPZ@ iョェオイゥ。イ@ 。ャァオ←ュL@ ッヲ・ョ、・ョ、ッMャィ・@ 。@ 、ゥァョゥ、。、・@ ッオ@ 、・」ッイッZ@ p・ョ。@ 、・エ・ョ￧ ̄ッL@、・@オュ@。@ウ・ゥウ@ュ・ウ・ウL@ッオ@ュオャエ。N XNSNS@sオェ・ゥエッ@。エゥカッ qオ。ャアオ・イ@ー・ウウッ。@ーッ、・@」ッュ・エ・イ@ッ@」イゥュ・@、・@ゥョェイゥ。L@オュ。@カ・コ@アオ・@ウ・@エイ。エ。@ョ。@・ウー←」ゥ・@、・@」イゥュ・ 」ッュオュN@HNNNI XNSNT@sオェ・ゥエッ@ー。ウウゥカッ qオ。ャアオ・イ@ー・ウウッ。@ーッ、・@ウ・イ@カ■エゥュ。@、・@ゥョェイゥ。L@・ク」・エオ。ョ、ッ@ッウ@、ッオエイゥョ。、ッイ・ウL@。アオ・ャ・ウ@アオ・@ョ ̄ッ エ↑ュ@ 」ッョウ」ゥ↑ョ」ゥ。@ 、。@ 、ゥァョゥ、。、・@ ッオ@ 、・」ッイッ@ 」ッュッ@ ッウ@ ュ・ョッイ・ウ@ 、・@ エ・ョイ。@ ゥ、。、・L@ ッウ@ 、ッ・ョエ・ウ ュ・ョエ。ゥウL@・エ」N@HNNNI@aヲゥイュ。Mウ・@アオ・@←@ゥューッウウ■カ・ャ@。@ッ」ッイイ↑ョ」ゥ。@、・@ゥョェイゥ。@」ッョエイ。@ー・ウウッ。@ェオイ■、ゥ」。L ーッイ@ョ ̄ッ@ーッウウオゥイ@・ャ。@ィッョイ。@ウオ「ェ・エゥカ。@HNNNI vッオ@ュ・@。ュー。イ。イL@ ョオュ@ ーイゥュ・ゥイッ@ ュッュ・ョエッ@、・@ 。ョ£ャゥウ・L@ ョッウ@・ウエオ、ッウ@ ・L@ ーッイエ。ョエッL@ ョ。 ャゥョァオ。ァ・ュ@オエゥャゥコ。、。@ーッイ@m￴ョゥ」。@zッーーゥMfッョエ。ョ。@アオ。ョ、ッ@・ウエ。@。ョ。ャゥウ。@ッ@。イアオゥカッ@ェオイ■、ゥ」ッN p・イ」・「・Mウ・L@ョッウ@エイ・」ィッウ@ウオーイ。」ゥエ。、ッウL@ョッ@ゥエ・ュ@XNSNQL@アオ・@ッ@ヲ。エッ@ェオイ■、ゥ」ッ@ウ・@」ッョウエイ￳ゥ 。エイ。カ←ウ@ 、・@ オュ。@ 、・ウゥァョ。￧ ̄ッ@ ・ウー・」ゥ。ャゥコ。、。@ Hョッュ・ョ」ャ。エオイ。L@ 」ッョヲッイュ・@ g。、・エ@ ・@ p↑」ィ・オクL QYXQ[@RPPTI@」オェッ@ウ・ョエゥ、ッ@←@」ゥイ」オョウ」イゥエッ@ーッイ@ュ・ゥッ@、・@オュ@・ョオョ」ゥ。、ッ@、・ヲゥョゥ、ッイ@。ーイ・ウ・ョエ。、ッ ・クーャゥ」ゥエ。ュ・ョエ・@ 」ッュッ@ 」ッョ」・ゥエオ。￧ ̄ッN@ d・ウウ・@ ュッ、ッL@ ッウ@ ヲ。エッウ@ ウッ」ゥ。ゥウ@ 。ャカッ@ 、・@ ャ・ァゥウャ。￧ ̄ッ ァ。ョィ。ュ@ッ@・ウエ。エオエッ@オョゥカ・イウ。ャ@・@。エ・ューッイ。ャ@@、ッ@」ッョ」・ゥエッ@・@」ッュッ@エ。ャ@・ョエイ。ュ@ョ。@ャ・ゥN eュ@ ーイゥュ・ゥイッ@ ャオァ。イL@ アオ・イッ@ 。ーッョエ。イ@ アオ・@ 。@ 、・ヲゥョゥ￧ ̄ッ@ 、ッ@ ウ・ョエゥ、ッ@ 、。@ ョッュ・ョ」ャ。エオイ。 イ・エッュ。@ ッ@ 、ゥウ」オイウッ@ エ←」ョゥ」ッ@ 、ッウ@ d。ョッウ@ ュッイ。ゥウ @ ッオ@ cイゥュ・ウ@ 」ッョエイ。@ 。@ ィッョイ。 @ Hゥョェイゥ。L ッヲ・ョウ。@ ¢@ 、ゥァョゥ、。、・@ ッオ@ 、・」ッイッL@ ェオ■コッ@ 、・@ カ。ャッイ@ 、・ーイ・」ゥ。エゥカッL@ ィッョイ。@ 、。@ カ■エゥュ。L@ 。ウー・」エッ ウオ「ェ・エゥカッI@・@ッ@、ゥウ」オイウッ@エ←」ョゥ」ッ@、。@ーオョゥ￧ ̄ッOアオ。ャゥヲゥ」。￧ ̄ッ@Hー・ョ。L@、・エ・ョ￧ ̄ッL@」イゥュ・@」ッュオュIL ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッウ@・ウー・」■ヲゥ」ッウ@、ッ@エ・クエッ@ャ・ァ。ャ@アオ・@ャィ・@ヲッイョ・」・ュ@ッウ@・ャ・ュ・ョエッウ@、・@ウ。「・イ@。@ー。イエゥイ 、ッ@アオ。ャ@ウ・@」ッョ」・ゥエオ。@ッ@ヲ。エッ@ェオイ■、ゥ」ッN eュ@ウ・ァオョ、ッ@ャオァ。イL@ァッウエ。イゥ。@、・@、・ウエ。」。イ@ッウ@・ヲ・ゥエッウ@、。@、・ヲゥョゥ￧ ̄ッ@」ッョ」・ーエオ。ャ@ウッ「イ・@ッウ ーイッ」・ウウッウ@ 、・@ エ・クエオ。ャゥコ。￧ ̄ッ@ アオ・@ 、 ̄ッ@ 」ッイーッ@ ¢@ ・ウ」イゥエオイ。@ ェオイ■、ゥ」。[@ ・ウウ・ウ@ ・ヲ・ゥエッウ@ 。エゥョァ・ュ ーイゥュッイ、ゥ。ャュ・ョエ・@ ッ@ ヲオョ」ゥッョ。ュ・ョエッ@ 、。@ エ・ューッイ。ャゥ、。、・@ エ。ャ@ 」ッュッ@ ーイッ、オコゥ、。@ ョッ 。」ッョエ・」ゥュ・ョエッ@・ョオョ」ゥ。エゥカッN pッイ@ オュ@ ャ。、ッL@ ッ@ ーイ・ウ・ョエ・@ 、ッ@ 。」ッョエ・」ゥュ・ョエッ@ @ ョッウ@ ・ョオョ」ゥ。、ッウ@ 、・ヲゥョゥ、ッイ・ウ@ ・ウカ。コゥ。Mウ・@ 、・@ エッ、。@ ・@ アオ。ャアオ・イ@ イ・ヲ・イ↑ョ」ゥ。@ ¢@ ウゥエオ。￧ ̄ッ@ ・@ 。ッ@ ウオェ・ゥエッ@ 、。@ ・ョオョ」ゥ。￧ ̄ッ@ ー。イ。@ ウ・ 。ーイ・ウ・ョエ。イ@ 」ッュッ@ オュ@ ーイ・ウ・ョエ・@ 」ッョ」・ーエオ。ャOヲッイュ。ャ@ ウ・ュ@ ュ。イ」。￧ ̄ッ@ エ・ューッイ。ャ@ Hーイ・ウ・ョエ・ ィゥウエ￳イゥ」ッI@Z@ a@ゥョェイゥ。 ←@NNNL@ アオ。ャアオ・イ@ー・ウウッ。 ーッ、・@」ッュ・エ・イNNN L@ 。ヲゥイュ。Mウ・ N pッイ@ッオエイッ@ャ。、ッL@・ウエ・@ーイ・ウ・ョエ・@ーイッェ・エ。@オュ@ヲオエオイッ@ゥァオ。ャュ・ョエ・@」ッョ」・ーエオ。ャOヲッイュ。ャL@アオ・ ウ￳@ ウゥァョゥヲゥ」。@ 」ッュッ@ ヲオエオイゥ、。、・@ ・ュ@ イ・ャ。￧ ̄ッ@ 。ッ@ ュッュ・ョエッ@ 、・ヲゥョゥ」ゥッョ。ャ@ ゥョウエ。オイ。、ッ@ ー・ャッ ーイ・ウ・ョエ・N@ aエ・ョエ・Mウ・@ ー。イ。@ ッ@ ゥエ・ュ@ XNSNQL@ ョッ@ アオ。ャ@ ウ・@ 。イエゥ」オャ。@ オュ。@ エ・ューッイ。ャゥコ。￧ ̄ッ@ ョッ 158 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 151-160, jan.-abr. 2008 ーイ・ウ・ョエ・@ 」ッョ」・ーエオ。ャOヲッイュ。ャ@ H a@ ゥョェイゥ。 ←@ 。@ ッヲ・ョウ。@ NNN L@ n。@ ウオ。@ ・ウウ↑ョ」ゥ。L ←@ 。@ ゥョェイゥ。NNN I 」ッュ@ オュ。@ヲオエオイゥ、。、・@。@・ャ・@。エイ・ャ。、。@H ゥョェオイゥ。イ@。ャァオ←ュNNN L@p・ョ。M、・エ・ョ￧ ̄ッHNNNI@ッオ@ュオャエ。N IN aアオゥL@ 。@ ーイッェ・￧ ̄ッ@ 、・@ ヲオエオイッ@ ←@ ッ「エゥ、。@ ー・ャッ@ カ・イ「ッ@ ゥョェオイゥ。イ@ ョッ@ ゥョヲゥョゥエゥカッ@ 」ッュ@ カ。ャッイ 」ッョ、ゥ」ゥッョ。ャ@ Hウ・@ ゥョェオイゥ。イ@ 。ャァオ←ュI@ ・@ ー・ャ。@ ッュゥウウ ̄ッO・ャゥーウ・@ 、・@ オュ@ カ・イ「ッ@ 、・@ 」。イ£エ・イ ー・イヲッイュ。エゥカッOェオイ■、ゥ」ッL@」ッュッ@ーッイ@・ク・ューャッ@ッ@カ・イ「ッ@ エ・イ @Hウ・@ゥョェオイゥ。イL エ・イ£@ー・ョ。@、・NNNI@ッオ@ッ カ・イ「ッ@ 。」。イイ・エ。イ @ Hッ@ 。エッ@ 、・@ ゥョェオイゥ。イ 。」。イイ・エ。イ£@@ @ー・ョ。@ 、・@ NNNI@ 」ッュ@ カ。ャッイ@ 、・@ ヲオエオイッ Hー・イヲッイュ。エゥカッMゥュー・イ。エゥカッI@ ・@ 。ウー・」エッ@ 、オイ。エゥカッN@ eウウ。@ 、・ウ」イゥ￧ ̄ッ@ 。ウウオュ・@ ッ@ ・ウエ。エオエッ@ 、・ ー・イヲッイュ。エゥカゥ、。、・@ 、。@ ・ウ」イゥエオイ。@ ェオイ■、ゥ」。L@ ッオ@ ュ・ャィッイL@ ・ャ。@ 。ウウオュ・@ オュ@ 」。イ£エ・イ@ ー・イヲッイュ。エゥカッL ュ。ウ@・ウエ・@←@。エイ。カ・ウウ。、ッ@ー・ャッ@ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッ@、。@エ・ューッイ。ャゥ、。、・@、。@ャ・ゥN o@ カ・イ「ッ ーッ、・イ@ ョッウ@ ・ョオョ」ゥ。、ッウ@ qオ。ャアオ・イ@ ー・ウウッ。@ ーッ、・@ 」ッュ・エ・イNNN L@ qオ。ャアオ・イ ー・ウウッ。@ ーッ、・@ ウ・イ@ カ■エゥュ。NNN L@ 。ー・ウ。イ@ 、・@ ウ・@ 。ーイ・ウ・ョエ。イ@ 」ッュッ@ カ・イ「ッ@ 。オクゥャゥ。イ@ 」ッョェオァ。、ッ@ ョッ ーイ・ウ・ョエ・@ 、ッ@ ゥョ、ゥ」。エゥカッL@ 」。イイ・ァ。@ ッウ@ ウ・ュ。ウ@ 、。@ Oーッウウゥ「ゥャゥ、。、・OL@ 、。@ Oヲオエオイゥ、。、・OL@ 、・カゥ、ッ@ 。ッ ウ・オ@。ウー・」エッ@ュッ、。ャN d・ウウ・@ュッ、ッL@ ウオウエ・ョエ。、。@ ーッイ@オュ。@・ウ」イゥエ。@ ヲゥク。、。@ョ。@ Sᆰ@ー・ウウッ。@ ーイッョッュゥョ。ャ@・@カ・イ「。ャ H。ヲゥイュ。Mウ・I@・@ョッ@ーイ・ウ・ョエ・@ィゥウエ￳イゥ」ッ@H←IL@。@、・ヲゥョゥ￧ ̄ッ@ヲオョ」ゥッョ。@・ョオョ」ゥ。エゥカ。ュ・ョエ・@ョッ@・ウー。￧ッ 、。@オョゥカ・イウ。ャゥ、。、・@。エ・ューッイ。ャ@アオ・@ 」。イ。」エ・イゥコ。@ッウ@、ゥウ」オイウッウ@ ャ￳ァゥ」ッMヲッイュ。ゥウL@ ッ@ アオ・@ー・イュゥエ・ 。ー。ァ。イ@ッオ@ 、・ウ」ッョィ・」・イ@ ッウ@ ヲ。エッウ@ィゥウエ￳イゥ」ッウ@ 」ッョ」イ・エッウ@ ・@ ェ£@・クゥウエ・ョエ・ウ@ ョ。@ッイ、・ュ@、ッ@ ウッ」ゥ。ャ アオ・@、・イ。ュ@ッイゥァ・ュ@¢@ーイッュオャァ。￧ ̄ッ@、。ウ@ャ・ゥウ@・ュ@。ョ£ャゥウ・@・@、。ウ@ウオ。ウ@ゥョエ・イーイ・エ。￧￵・ウN eウエ・@ 。ー。ァ。ュ・ョエッ@ ッオ@ 、・ウ」ッョィ・」ゥュ・ョエッ@ 、ッウ@ ヲ。エッウ@ ・@ ・ョオョ」ゥ。、ッウ@ ・クエ・イゥッイ・ウ@ 。ッ 。イアオゥカッ@ェオイ■、ゥ」ッ@@←@」。イ。」エ・イ■ウエゥ」ッ@、ッウ@ーイッ」・ウウッウ@、・@エ・クエオ。ャゥコ。￧ ̄ッ@、。@・ウ」イゥエ。@、。@ャ・ゥL@ッ@アオ・ ャィ・@ ー・イュゥエ・@ ヲオョ」ゥッョ。イ@ 」ッュッ@ 、ゥウ」オイウッ@ ー。イ。ャ・ャッ@ アオ・L@ 。ッ@ ーイッェ・エ。イMウ・@ ーイッウー・」エゥカ。@ ・ イ・エイッウー・」エゥカ。ュ・ョエ・@ ョッ@ エ・ューッL@ ←@ 」。ー。コ@ 、・@ ウッ「イ・、・エ・イュゥョ。イ@ ッウ@ ヲ。エッウ@ ウッ」ゥ。ゥウL@ 。@ ー。イエゥイ@ 、ッ ウゥュオャ。」イッ@ 、・@ オュ@ ーッョエッ@ コ・イッ@ ・ョオョ」ゥ。エゥカッN@ p↑」ィ・オク@ 。ョ。ャゥウ。@ ・ウウ・@ ヲオョ」ゥッョ。ュ・ョエッ@ 」ッュッ ゥョ、■」ゥッ@、。@ウゥュオャ。￧ ̄ッ@、ッ@ャ￳ァゥ」ッ@ー・ャッ@ェオイ■、ゥ」ッ@・@。ヲゥイュ。@アオ・Z@ h£@オュ。@イ・ャ。￧ ̄ッ@、・@ウゥュオャ。￧ ̄ッ 」ッョウエゥエオエゥカ。@ ・ョエイ・@ ッウ@ ッー・イ。、ッイ・ウ@ ェオイ■、ゥ」ッウ@ ・@ ッウ@ ュ・」。ョゥウュッウ@ 、。@ 、・、オ￧ ̄ッ@ 」ッョ」・ーエオ。ャL ・ウー・」ゥ。ャュ・ョエ・@・ョエイ・@。@ウ。ョ￧ ̄ッ@ェオイ■、ゥ」。@・@。@」ッョウ・ア↑ョ」ゥ。@ャ￳ァゥ」。 @HQYWUL@ーN@QPXIN nッウ@ ・ク」・イエッウ@ ・ュ@ 。ョ£ャゥウ・L@ ーッ、・Mウ・@ ッ「ウ・イカ。イ@ ・ウエ・@ 、・ウャゥコ。ュ・ョエッ@ ョッ@ ヲオョ」ゥッョ。ュ・ョエッ 、ッウ@ ・ョオョ」ゥ。、ッウ@ 」ッョウエイオ■、ッウ@ 」ッュ@ ッ@ カ・イ「ッ@ ュッ、。ャ@ ーッ、・イ M@ 」オェッ@ 。ウー・」エッ@ イ・ュ・エ・@ 。@ オュ。 エ・ューッイ。ャゥ、。、・@ ヲオエオイ。@ ィゥーッエ←エゥ」。@ ML@ 」ッュ@ ッ@ オウッ@ 、ッ@ ゥョヲゥョゥエゥカッ@ H」ッュ@ カ。ャッイ@ 」ッョ、ゥ」ゥッョ。ャI 。イエゥ」オャ。、ッ@ ¢@ ッュゥウウ ̄ッ@ 、・@ オュ@ カ・イ「ッ@ ー・イヲッイュ。エゥカッ@ アオ。ョ、ッ@ 、。@ ーイ・ウ」イゥ￧ ̄ッ@ 、。@ ー・ョ。N@ a 」ッョ、ゥ」ゥッョ。ャゥ、。、・@・@。@ー・イヲッュ。エゥカゥ、。、・@・ウエ ̄ッ@ゥョウ」イゥエ。ウL@。アオゥL@ウッ「@。@ヲッイュ。@、・@オュ@ウゥュオャ。」イッN ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 151-160, jan.-abr. 2008 159 pッ、・Mウ・@ー・イ」・「・イL@」ッュ@・ウエ。@「イ・カ・@。ョ£ャゥウ・L@アオ・@。@ュ。エ・イゥ。ャゥ、。、・@ャゥョァ■ウエゥ」。@エ・ュ@ウ・オウ ウ・ョエゥ、ッウ@ 」ッョウエゥエオ■、ッウ@ ー・ャッ@ ゥョエ・イ、ゥウ」オイウッL@ ー・ャッウ@ ョ ̄ッM、ゥエッウL@ ー・ャッウ@ 。ー。ァ。ュ・ョエッウL@ オュ。@ カ・コ アオ・@・ャ。@ウ・@エイ。エ。@、・@ オュ@。」ッョエ・」ゥュ・ョエッ@、・@ ャゥョァオ。ァ・ュ@・@エッ、ッ@。」ッョエ・」ゥュ・ョエッ@ エ・ューッイ。ャゥコ。L ゥョウエ。オイ。@。@、ゥヲ・イ・ョ￧。@アオ・@」ッョウエゥエオゥ@ウ・ョエゥ、ッウ@ッオエイッウ@。ッウ@、ゥコ・イ・ウL@ョオュ@ュッカゥュ・ョエッ@」ッョウエ。ョエ・ 、・@イ・ウカ。ャッ@ー。イ。@ッウ@ュ・ュッイ£カ・ゥウL@ー。イ。@。@ュ・ュ￳イゥ。@、ゥウ」オイウゥカ。L@ー。イ。@ッ@ィゥウエ￳イゥ」ッN r・ヲ・イ↑ョ」ゥ。ウ@「ゥ「ャゥッァイ£ヲゥ」。ウ zoppiMfontanaL@ m￴ョゥ」。N@ aイアオゥカッ@ェオイ■、ゥ」ッ@ ・@ ・クエ・イゥッイゥ、。、・N@iョZ@ guimarᅢesL@eN@ ・ paulaL@@@@@@@@@@mN@HッイァウNI s・ョエゥ、ッ@・@ュ・ュ￳イゥ。N c。ューゥョ。ウZ@pッョエ・ウL@RPPUN ⦅⦅⦅⦅⦅@ N@ a」ッョエ・」ゥュ・ョエッL@ 。イアオゥカッL@ ュ・ュ￳イゥ。Z@ ¢ウ@ ュ。イァ・ョウ@ 、。@ ャ・ゥN l・ゥエオイ。@ @ イ・カゥウエ。@ 、ッ pイッァイ。ュ。@ 、・@ p￳ウMァイ。、オ。￧ ̄ッ@ ・ュ@ l・エイ。ウ@ ・@ lゥョァ■ウエゥ」。@ @ ufalL@ ョN@ RYL@ RPPT@ L@ ョッ ーイ・ャッN orlandiL@eョゥN p。イ。@オュ。@・ョ」ゥ」ャッー←、ゥ。@ウッ「イ・@。@」ゥ、。、・N@c。ューゥョ。ウZ@pッョエ・ウL@RPPSN ⦅⦅⦅⦅⦅@ N iョエ・イーイ・エ。￧ ̄ッZ 。オエッイゥ。L@ ャ・ゥエオイ。@ ・@ ・ヲ・ゥエッウ@ 、ッ@ エイ。「。ャィッ@ ウゥュ「￳ャゥ」ッN@ c。ューゥョ。ウZ pッョエ・ウL@RPPTN galloL@ sッャ。ョァ・N@ sオ「ウ■、ゥッウ@ ー。イ。@ オュ。@ aョ£ャゥウ・@ 、ッ@ dゥウ」オイウッ@ 、・@ 、ゥカオャァ。￧ ̄ッ@ 」ゥ・ョエ■ヲゥ」。N tイ。「。ャィッ@。ーイ・ウ・ョエ。、ッ@ョッ Xᄎ@・ョ」ッョエイッ@、ッ celsulN@fャッイゥ。ョ￳ーッャゥウL@ufscOcelsulL S@。@U@、・@ョッカ・ュ「イッ@、・@RPPTN guimarᅢesL@e、オ。イ、ッN@HQYYSIN@ iョ、・ー・ョ、↑ョ」ゥ。@ッオ@ュッイエ・ N@iョZ@oイャ。ョ、ゥ@HッイァNIN ⦅⦅⦅⦅⦅@N oウ@ャゥュゥエ・ウ@、ッ@ウ・ョエゥ、ッN c。ューゥョ。ウZ@pッョエ・ウL@QYYUN ⦅⦅⦅⦅⦅@N s・ュ¬ョエゥ」。@、ッ@。」ッョエ・」ゥュ・ョエッN@c。ューゥョ。ウZ@pッョエ・ウL@RPPRN pᅧcheuxL@ mゥ」ィ・ャN@ HQYWUIN@ l←ウ@ v←イゥエ←ウ@ 、・@ ャ。@ p。ャゥ」・L@ p。イゥウL@ m。ウー・イッ@ Hエイ。、オ￧ ̄ッ 「イ。ウゥャ・ゥイ。L@ s・ュ¬ョエゥ」。@ ・@ 、ゥウ」オイウッZ オュ。@ 」イ■エゥ」。@ ¢@ 。ヲゥイュ。￧ ̄ッ@ 、ッ@ ￳「カゥッL@ c。ューゥョ。ウL@ e、N uョゥ」。ューL@QYXXIN pᅧcheuxL@mゥ」ィ・ャN@・@gadetL@fN@HQYXQIN l。@ャ。ョァオ・@ゥョエイッオカ。「ャ・L p。イゥウL@m。ウー・イッN pᅧcheuxL@mゥ」ィ・ャ@N@o@、ゥウ」オイウッZ ・ウエイオエオイ。@ッオ@。」ッョエ・」ゥュ・ョエッN@QN@・、N@QYXSN@tイ。、N@eョゥ@pN 、・@oイャ。ョ、ゥN@c。ューゥョ。ウZ@pッョエ・ウL@RPPRN@ mirabeteL@jャゥッ@f。「「イゥョゥN m。ョオ。ャ@、・@dゥイ・ゥエッ@p・ョ。ャN QWN@・、N@Hイ・カゥウエ。@・@。エオ。ャゥコ。、。@。エ← ェオャィッ@、・@RPPPI aエャ。ウZ@s ̄ッ@p。オャッL@RPPQL@ーNQVUMQVYN 160 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 151-160, jan.-abr. 2008 Presença de modificador: exigência para a boa formação de médias? Morgana Fabiola Cambrussi1 1 Programa de Pós-graduação em Lingüística – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – Campus Universitário – CCE – Trindade – 88040-900 – Florianópolis – SC morganacambrussi@yahoo.com.br Abstract. According to Keyser & Roeper (1984), Fagan (1988) and Fellbaum & Zribi-Hertz (1989), middle constructions like ‘This floor cleans easily’ and ergative constructions like ‘The door opened’ have some structural differences starting from its formation. One of the differences pointed by the authors is the modifier requested in the good semantic and syntactic formation of middle constructions, besides the fact that in the ergatives the modifier is optional. However, after analyzing evidences supplied by the authors mentioned, the idea that middle constructions become grammatical only with a modifier is questioned. The conclusion is that the structural realization of a modifier is not a restriction to a good syntactic and semantic formation of middle constructions. Keywords. middle constructions; ergative constructions; modifier; alternations. Resumo. Construções médias do tipo ‘Esse piso lava fácil’ e ergativas do tipo ‘A porta abriu’ guardam entre si diferenças que, sustentadas pelos autores Keyser & Roeper (1984), Fagan (1988), Fellbaum & Zribi-Hertz (1989), atestariam se tratar de duas construções distintas desde a formação. Uma das diferenças apontadas é a exigência de modificador para a boa formação semântica e sintática de construções médias, enquanto nas construções ergativas o modificador é opcional. Questiona-se a afirmação de que construções médias são gramaticais somente sob escopo da modificação, com base em evidências fornecidas pelos próprios autores citados. Conclui-se que a realização estrutural de modificação não é restrição para a boa formação dessas construções. Palavras-chave. Construções médias; construções ergativas; modificadores; alternâncias. 1. Introdução Construções médias como Este aipim cozinha fácil e Esta calça veste bem, disponíveis e produtivas para muitas línguas (entre elas o inglês, o francês, o Português do Brasil), possuem características bem peculiares. Revisitadas freqüentemente pela literatura (em especial por Keyser & Roeper (1984); Fagan (1988); Fellbaum & Zribi-Hertz (1989)), são sempre postas em contraste com construções ergativas do tipo O aipim cozinhou rápido e A camisa secou devagar. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 161-166, jan.-abr. 2008 161 As razões que motivam o paralelo entre médias e ergativas vêm da proximidade estrutural entre as duas construções. Em sua configuração sintática, tanto médias quanto ergativas apresentam tema à esquerda do verbo, ou seja, realizado na posição de sujeito gramatical da construção. Entretanto, há particularidades guardadas para cada caso. Segundo Rodrigues (1998, p.8), “na interpretação das estruturas médias, há uma relação de ‘propriedade’ entre o sujeito e o predicado verbal: o que o predicado verbal assevera é uma propriedade intrínseca da entidade representada pelo sujeito gramatical/objeto lógico.” Construções ergativas, por outro lado, não contêm interpretação de propriedade intrínseca disponível para o tema. Fagan (1988, p.200-201) relaciona a interpretação de propriedade ao caráter genérico das construções médias, quer dizer, assume a posição de que tal propriedade é indiferente ao tempo. Para a autora, em uma sentença do tipo This book reads easily, o que se exprime é o fato de a atividade de leitura do livro geralmente ser realizada facilmente, independentemente de quem a realize. É o SN pleno This book, tema, que possui a propriedade de poder ser lido facilmente. Ao se construir um paralelo de características, das quais certos autores lançam mão para descrever e opor médias e ergativas, expõem-se as construções em contraste, mas o que se pode notar é que pouco há de distinto entre elas1 Para uma ergativa como A louça quebrou, pode-se afirmar: a) há interpretação eventiva; b) não exige a presença de modificador; c) o tema está na posição de sujeito gramatical; d) não-genérica, é usada para descrever eventos particulares; e) usada no presente progressivo, no imperativo e possui pretérito com interpretação pontual; f) não há realização sintática de agente. Para uma construção média como A louça quebra fácil, pode-se afirmar: a) há interpretação não-eventiva; b) exige a presença de modificador; c) tema na posição de sujeito; d) é uma declaração genérica que não descreve eventos particulares no tempo; e) pelo expresso em d), é incompatível com o presente progressivo, com o imperativo e com o pretérito com interpretação pontual; f) não há realização sintática do agente. Quanto à não realização sintática do agente, tanto para as construções médias quanto para as ergativas, considera-se que faz parte do conjunto de propriedades de estruturas médias e de estruturas ergativas a propriedade de agente implícito que, embora não na posição de sujeito da sentença, pode ser sintaticamente realizado, por exemplo, por um sintagma causativo/agentivo: A roupa secou com o vento. Neste trabalho, não serão estudadas todas as características anteriormente relacionadas. O que se intenciona é questionar se a presença de modificador é de fato uma exigência para a formação de construções médias. Na seção seguinte, far-se-á a discussão que põe em cheque esta restrição tão fortemente sustentada pela bibliografia disponível sobre o assunto: A modificação determina a boa formação semântica de construções médias? 2. O Valor da Modificação para a Formação Semântica de Construções Médias Roberts (1987) destaca que há casos em que se pode formar médias em inglês sem a exigência de realização sintática do modificador. Esses casos envolvem, na formação: um do enfático, por exemplo, um acento sobre o tema ou sobre o verbo, um modal epistêmico como could, uma negação ou tema quantificado negativamente. 162 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 161-166, jan.-abr. 2008 (01a) This book could sell. (01b) ?Bureaucrats BRIBE. (01c) ?CHICKENS kill. (01d) ?This bread DOES cut. (01e) This bread doesn’t cut. (01f) Any bureaucrats bribe. Da mesma forma, Fellbaum & Zribi-Hertz (1989) avaliam que a exigência de modificador é restrição para a formação de médias do francês, mas há casos, classificados pelas autoras como um subconjunto das médias, que não exigem realização sintática do modificador. (02a) Cette racine se mange. (02b) Cette chaise se plie. As autoras consideram que, nos dois exemplos de (02), subentende-se uma divisão binária entre coisas comestíveis e coisas não-comestíveis, entre coisas pintáveis e coisas não-pintáveis. Assim, (02a) pode ser enunciada em um contexto no qual se faça uma classificação binária entre aquelas raízes que são comestíveis e aquelas que não o são; da mesma maneira, (02b) serviria a um contexto em que se diferencie binariamente tintas que apagam daquelas que não apagam. Fellbaum & Zribi-Hertz (1989) afirmam, ainda, que para o inglês a mesma análise é possível em casos como (03), nos quais se subentende uma divisão entre a classe das paredes pintáveis e a classe das não-pintáveis: (03) Does this wall paint? Com tantas possibilidades de se realizarem construções médias sem a presença sintática de modificador, questiona-se se realmente a modificação é condição para a gramaticalidade dessas construções. Em se tratando do Português do Brasil, é possível que construções médias sejam realizadas sem modificação: tanto com acento sobre o tema, com acento sobre o verbo, com negação, com tema quantificado negativamente, quanto com a leitura de divisão binária entre duas classes, conforme o que levam em conta, para o francês, Fellbaum & Zribi-Hertz (1989) e, para o inglês, Roberts (1987). (04a) Esse piso LIMPA. (04b) ESSE PISO limpa. (04c) Esse piso não limpa. (04d) Nenhum piso limpa. (05a) Batata doce assa. (05b) Essa batata doce assa? Em todos os exemplos acima, características de construções médias como a leitura de genericidade para agente implícito e a interpretação de propriedade intrínseca para o tema ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 161-166, jan.-abr. 2008 163 são mantidas, o que os diferenciaria de construções ergativas que não possuem nenhuma dessas características. A ênfase sobre o verbo em (04a) sugere que o piso referenciado limpa bem, independentemente de quem o limpe; já a ênfase sobre o tema em (04b) sugere que esse piso, não outro, possui a propriedade limpa; (04c) destaca a negação da propriedade, ou melhor, a ausência de uma propriedade que costuma ser intrínseca à classe piso; (04d) é similar à anterior, com ausência de propriedade marcada na quantificação negativa do tema; (05a-b) encaixam-se na classificação binária (proposta por Fellbaum & Zribi-Hertz (1989)) entre aquelas batatas que assam e aquelas que não assam. Desse modo, a realização sintática de modificador é exigência para a formação de um subtipo de construções médias do Português do Brasil, a saber, para a formação de médias que, por razões que têm a ver com a natureza da propriedade expressa, não se incluem nos casos de (04) e (05), como *Essa camisa veste/Essa camisa veste bem. Ainda que fosse a presença do modificador uma condição para a formação das médias, tal realização sintática é muito semelhante à configuração estrutural de suas contrapartes ergativas e não serviria para diferenciar as duas construções, já que as construções ergativas: a) também admitem modificação; b) recebem modificador em mesma posição que construções médias o recebem; c) recebem modificadores idênticos aos que construções médias recebem. Observe-se: (06a) Essa camisa seca rápido, as demais demoram a secar. (06b) Essa camisa seca rápido, enquanto eu lavo as outras. (06c) Esse livro vendia rápido, agora fica parado no estoque. (06d) Esse livro vendeu rápido, não tem mais nenhum exemplar no estoque. Com a proximidade entre construções médias e ergativas, sugerida pelo comportamento semelhante de ambas com a modificação, um certo cuidado é necessário para não confundilas. As sentenças abaixo podem parecer médias, mas são eventivas e essa é a primeira evidência em favor da ergatividade, pois elimina a interpretação de propriedade intrínseca do objeto à medida que as sentenças descrevem um evento episódico particular. (07) Enquanto a mandioca cozinha, separe e pique os ingredientes pedidos na receita.2 (08) Enquanto o feijão cozinha, vamos continuar nossa conversa.3 (09) Há dias que já começam complicados, levantamos atrasados, o café sai fraquinho, o leite derrama sobre o fogão, o marido com aquele humor negro e os filhos... ah!, os filhos cobrando... cobrando... cobrando...4 Nos exemplos (07) e (08), a sentença subordinada com enquanto marca um período de tempo que serve de referência para a sentença principal e, em (09), um fato determinado, relacionado a outros, é referenciado pela ergativa. Keyser & Roeper (1984) consideram que a dificuldade encontrada pelos falantes para diferenciar médias de ergativas é resultado da maleabilidade de alguns verbos que servem a ambas as construções. Essa possivelmente seja uma das dificuldades, entretanto, há outras razões relacionadas à formação sintática, em particular à presença/ausência de modificador. 164 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 161-166, jan.-abr. 2008 Em alguns casos de construções médias, em que não se realiza sintaticamente o modificador, ele pode estar apagado e ser recuperado ou depreendido do contexto lingüístico que se apresenta e/ou do contexto pragmático de que se dispõe. Essa “recuperação” do modificador serve à necessidade pragmática de informatividade, já que falantes tendem a ser cooperativos e dar apenas informações relevantes. Em exemplos como os seguintes, a explicitação de um conhecimento comum (pelo menos para a cultura ocidental) só se justifica por meio de um modo, dessa maneira, o que é relevante informar não é o que o verbo expressa, mas seu conteúdo semântico associado à própria modificação implícita. (10) Estou com pressa para sair agora, vou cozinhar o feijão quando voltar, se bem que esse feijão cozinha. (11) Faça você as pipocas porque quando eu as faço sobram muitos grãos na panela, se bem que essa pipoca estoura. O que (10) diz é que o feijão em questão cozinha rápido, então, é possível cozinhá-lo em pouco tempo, sem atrasos, mesmo porque feijões em geral cozinham e, comunicativamente, seria irrelevante informar essa propriedade (assim como há contextos nos quais é irrelevante informar que pessoas falam, pessoas respiram etc.). Em (11), o que se diz é que uma determinada pipoca estoura bem, até mesmo alguém que não saiba fazer pipocas com habilidade pode estourá-la. A exemplo de feijões cozinham, dizer que pipocas estouram parece ser irrelevante comunicativamente, aliás, é bem provável que, se não estourasse, o milho não se transformaria em pipoca e dificilmente receberia a denominação pipoca ainda na forma de grão. O modo (implícito) como estoura o milho é que autoriza uma construção do tipo essa pipoca estoura. Com base no quadro que se apresenta para o Português do Brasil e no que se observou do comportamento de construções médias em outras línguas, pode-se considerar equivocada a generalização de que construções médias só ocorrem com modificador. Dizer nesses termos é colocar na agramaticalidade construções de uso corrente na língua, como Essa pipoca estoura, Essa batata cozinha ou Esse piso escorrega. 3. Algumas Considerações Apontada pela bibliografia acima como uma forte característica, que serviria de argumento para a distinção entre médias e ergativas, a exigência de modificador para a boa formação semântica e sintática de construções médias (ao passo que construções ergativas poderiam ocorrer com ou sem modificação) não parece se sustentar com força argumentativa. De partida, na verdade, essa já não parecia ser uma boa característica diferenciadora entre as duas construções, pois ergativas admitem modificação do mesmo tipo e em mesma posição que médias a admitem. Além disso, são tantos os casos em que médias ocorrem sem modificação – com acento contrastivo sobre o tema, com acento contrastivo sobre o verbo, com negação, com tema quantificado negativamente, com leitura de divisão binária entre classes – que esta foi desconsiderada enquanto exigência para a boa formação semântica de construções médias neste trabalho. Casos como Feijão novo cozinha ou Aipim amarelo derrete são tão bem ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 161-166, jan.-abr. 2008 165 formados semântica e sintaticamente quanto Feijão novo cozinha fácil ou Aipim amarelo derrete fácil, e ainda, parecem ter a mesma interpretação, independentemente da presença do modificador. Isso implica dizer que, apesar de não realizada na estrutura sintática, a modificação parece estar imbricada na formação semântica que autoriza a expressão de uma propriedade intrínseca qualquer contida na construção. Notas 1 Esse paralelo é formado a partir de Fagan (1988) e Keyser & Roeper (1984). Neste trabalho, apenas serão analisados casos do Português do Brasil sem marcador medial “se”. Para um estudo de voz média que leve em conta construções com “se” medial, consultar Camacho (2003). 2 http://panelinha.ig.com.br/receita.phtml?cod_rec=460, acesso em 21/11/2006. 3 http://www.sec.rj.gov.br/atabaquevirtual/culinaria.html, acesso em 21/11/2006. 4 http://www.riototal.com.br/coojornal/neidemaganhas.htm, acesso em 21/11/2006. Referências CAMACHO, R. G. Em defesa da categoria da voz média no português. D.E.L.T.A. n. 19 (1), p. 91–122, 2003. FAGAN, S. M. B. The English Middle. Linguistic Inquiry. n. 19, p.181–203, 1988. FELLBAUM, C.; ZRIBI-HERTZ, A. La construction moyenne en français et en anglais: étude de syntaxe et de sémantique comparées. Recherches Linguistiques. n. 18, p.19– 55, 1989. KEYSER, S. J.; ROEPER, T. On the Middle and Ergative Constructions in English. Linguistic Inquiry. n. 15, p. 381–416, 1984. ROBERTS, I. The representation of implicit and dethematized subjects. Dordrecht: Foris, 1987. RODRIGUES, C. A. N. Aspectos sintáticos e semânticos das estruturas médias no Português do Brasil: um estudo comparativo. 1998. 176 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística). Universidade de Brasília, Brasília, 1998. 166 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 161-166, jan.-abr. 2008 Operadores de escala: uma comparação entre chegar e até 1 2 Roberlei Alves Bertucci1, Maria José Foltran2 Universidade Federal do Paraná – Mestrado em Estudos Lingüísticos (PG-UFPR) roberlei.bertucci@pop.com.br – Curitiba – PR – Brasil Departamento de Lingüística, Letras Clássicas e Vernáculas - Universidade Federal do Paraná (UFPR/CNPq) mfoltran@ufpr.br – Curitiba – PR – Brasil Abstract. Bertucci (2007), in his work about chegar in Brazilian Portuguese, arguments that this verb has characteristics of an auxiliary and a scale operator. After that, the author compares chegar with até and he saw that both these words can function as scale operators. In this article, (i) we present the ideas the led the author to this analysis about chegar and (ii) we discuss the behavior of chegar and até like scale operators. Keywords: semantics, scale operators Resumo. Em seu trabalho sobre chegar, Bertucci (2007) argumenta que esse verbo tem características de auxiliar e de operador de escala. No trabalho citado, ele compara resumidamente chegar e até, alegando que os dois funcionam como operadores de escala. Neste artigo, (i) apresentamos as bases que levaram o autor a uma análise assim sobre o verbo chegar e (ii) discutimos mais detalhadamente o funcionamento de chegar e até como operadores de escala. Palavras-chave: semântica, operadores de escala 1. Introdução A literatura a respeito da perífrase chegar a+infinitivo em PB é um tanto confusa. Autores como Almeida (1980) e Neves (2000), aceitam chegar, em tal contexto, como um auxiliar, enquanto outros – Travaglia (1985) ou Luft (2003) –, não. Por outro lado, entre os autores que o consideram um auxiliar em casos como (1), parece haver uma concordância quanto ao papel de chegar: indicar um resultado (uma conseqüência). (1) Pedro chegou a esmolar. Dessa forma, o que Bertucci (2007) fez foi (i) buscar critérios que verificassem se chegar pode ser considerado um auxiliar quando seguido de infinitivo e (ii) analisar o papel de tal verbo na perífrase. Em Bertucci & Foltran (2007), já havíamos mostrado que chegar é um verdadeiro verbo auxiliar no contexto em análise. Agora, apresentamos dois testes, retirados de Bertucci (2007), para mostrar ao leitor alguns critérios usados na caracterização de chegar como auxiliar. O primeiro é relacionado à seleção dos argumentos. Pontes (1973) e Perini (2001) afirmam que os verbos auxiliares não influenciam na escolha de argumentos de uma sentença. Quem faz a seleção dos argumentos é o verbo principal. Isso fica claro nos exemplos (2), (3) e (4). ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 167 (2) a. Paulo leu. b. Paulo vai ler. (3) a. #A pedra leu.1 b. #A pedra vai ler. (4) a. A pedra caiu. b. A pedra vai cair. Este é um critério conhecido como o da detematização. O verbo ler seleciona o argumento externo em (2) e é ele mesmo que impede a seleção de a pedra em (3). Se o auxiliar (vai) fosse o responsável pelo bloqueio, não permitiria a seleção de (4b). No entanto, como em (4a), a seleção de a pedra – em 4b – foi possível porque foi feita pelo verbo cair, o NdP2. Assim, entendemos que a presença do vai não mudou o critério de seleção, portanto o verbo ir, aí, funciona como auxiliar. Mioto et alii (2004) propõem o mesmo teste para a seleção argumental e afirmam que isso faz parte da restrição semântica (s-seleção) que um determinado núcleo faz com relação aos argumentos que co-ocorrem com ele na sentença. Os testes com chegar demonstraram que ele não participa da seleção dos elementos que co-ocorrem na sentença. Isso fica por conta do verbo chamado principal. (5) a. A pedra chegou a rolar. b. A pedra rolou. c. #A pedra chegou a chorar. d. #A pedra chorou. As sentenças (5a-b) mostram que o sujeito, mesmo inanimado, é aceito em uma sentença com chegar, pois a seleção desse sujeito é feita pelo verbo principal, no caso, rolar. Pelo mesmo motivo, (5c-d) não é aceita: o sujeito, a pedra, não é compatível com chorar, que exige um argumento, no mínimo, animado. Assim, verificamos que chegar, como auxiliar, não interfere na seleção dos argumentos, que é feita pelo verbo principal. O segundo critério vem do trabalho de Longo & Campos (2002, p. 447). Elas mostram que os verbos auxiliares formam com a base um grupo indissociável. Se pudermos desmembrar o grupo verbal em dois núcleos oracionais, não há auxiliaridade. (6) a. Júlia sonhava comprar uma Ferrari. b. Júlia sonhava que compraria uma Ferrari. (7) a. Júlia acabava de comprar uma Ferrari. b. *Júlia acabava de que compraria uma Ferrari.3 Claramente constatamos que chegar a+infinitivo comporta-se como acabar de. (8) a. Júlia chegou a comprar uma Ferrari. b. *Júlia chegou a que comprava uma Ferrari. Apontando evidências que comprovam que chegar não é uma auxiliar de voz, tempo ou modo, o trabalho de Bertucci (2007) dedicou-se a analisar um pouco mais detalhadamente a questão aspectual. Isso porque o trabalho mais completo sobre o 168 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 auxiliar chegar – Almeida,1980 – argumenta que esse verbo estaria na lista dos auxiliares que indicam o aspecto terminativo. No entanto, tal idéia é discutível. Assim como Travaglia (1985), Almeida (1980) considera o aspecto terminativo como aquele que mostra a ação do verbo no infinitivo em seu término ou em seus momentos finais. Se chegar fosse como terminar, ele deveria mostrar que a ação denotada pelo verbo principal está no fim ou já terminou. (9) a. Ivo terminou de pintar a parede. b. Ivo está terminando de pintar a parede. (10) a. Ivo chegou a pintar a parede. b. *Ivo está chegando a pintar a parede. Em (9), terminar indica o fim da ação de pintar. Daí o aspecto terminativo: o fim, ou os momentos finais de determinada ação. Em (10), o fim da pintura não é indicado por chegar. Além disso, um progressivo para indicar os momentos finais da pintura com o verbo terminar (9b) é perfeitamente gramatical, mas não funciona com o verbo chegar (10b). Em Bertucci (2007) já se disse que chegar não se insere em qualquer classe aspectual – ou pelo menos nas mais tradicionais – nem na classe dos terminativos, como afirma Almeida (1980). No próximo item, portanto, vamos apresentar o que Bertucci (2007) propõe em sua análise para chegar. No item 3, comparamos chegar e até e analisamos o papel de ambos na tarefa de projetar escalas. 2. Chegar como um operador de escala Como já dissemos, chegar não se comporta como um verbo auxiliar clássico, por não se acomodar nas funções de significar tempo, voz, modo ou aspecto. Por isso, Bertucci (2007) faz uma proposta de análise para esse verbo em sentenças do PB. A partir de leituras sobre escalas (Fauconnier, 1975, e Ducrot, 1981), o autor propõe que tal verbo seja um operador de escala. Neste artigo, apresentamos apenas a análise do autor sob o ponto de vista das escalas pragmáticas de Fauconnier (1975). 2.1. Escalas pragmáticas Ao analisar os superlativos, Fauconnier (1975) constata que alguns teriam um comportamento semelhante a um quantificador universal. Vejamos exemplos do autor. (11) The faintest noise bothers my uncle. ‘O menor/ mais baixo ruído incomoda meu tio’. (12) He did not hear the faintest noise. ‘Ele não ouviu o menor/ mais baixo ruído. O autor entende que, enquanto em (11) o superlativo funciona como um quantificador universal, em (12) ele pode ser um existencial negado. Nesses casos, o superlativo estaria no lugar de any e teria as mesmas propriedades desse quantificador. (13) Any noise bothers my uncle. ‘Qualquer ruído incomoda meu tio’. (14) He did not hear any noise. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 169 ‘Ele não ouviu qualquer ruído’. Fauconnier (op. cit., p. 361) assume que os superlativos expressam pontos mais altos ou mais baixos em uma escala pragmática. Por exemplo, para uma dimensão dada (ruído), haveria dois extremos (mais alto – mais baixo) e um elemento Y (meu tio/ ele) participando do predicado (incomodar). Entre os extremos, haveria pontos (x1, x2, x3). Escala S ponto mais alto x1 x2 x3 ponto mais baixo O autor entende que o ponto mais baixo de uma escala pragmática pressupõe os demais (x3, x2, x1 e o ponto mais alto). Em uma sentença como (11), o superlativo seria o ponto mais baixo, indicando que qualquer outro ruído – conseqüentemente mais alto – também incomodaria o tio. Nesse caso, portanto, os superlativos seriam responsáveis por serem elementos de maior informatividade: o elemento mais baixo na escala (que é o mais forte) informa mais que o elemento imediatamente acima dele e assim sucessivamente, sendo que o mais alto é o menos informativo. Fauconnier (1975, p. 364) também diz que, em inglês, o even “marca a existência de uma escala de probabilidade pragmática”. (15) Even Alceste came to the party. ‘Até Alceste veio à festa’. Posto: Alceste veio à festa. Pressuposto: Todos os outros também vieram. Em (15), o even indicaria que Alceste é o ponto mais baixo da escala de probabilidade pragmática. Nessa escala, Alceste seria um daqueles com menos chances de aparecer na festa, mas até ele foi, o que pressupõe que todas as pessoas esperadas para a festa também apareceram. É novamente uma questão de maior informatividade. A partir dessas análises, Bertucci (2007) propõe uma leitura semelhante para o auxiliar chegar. Vejamos o exemplo (16). (16) Cinco anos antes do previsto, foi anunciado o término do seqüenciamento do genoma humano. A corrida atrás da identificação de todos os genes do Homo sapiens envolve laboratórios de 18 países, liderados por instituições dos Estados Unidos e do Reino Unido, e consumiu estimados US$ 3 bilhões, sem contar a injeção final de recursos, necessária para apressar o fim dessa primeira etapa e fazer frente a grupos privados que ameaçavam terminar antes a “façanha do século”. Trata-se, sem dúvida, de uma primeira etapa, porque o Projeto Genoma Humano representa, na verdade, apenas uma enorme base de dados, que os cientistas precisam entender em detalhe para um dia chegar a manipulá-los. Para os geneticistas, há trabalho para mais de um século de pesquisa. (Ciência Hoje, n. 28, p. 22-3.) 170 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 Nesse caso, o próprio contexto apresenta a escala. A etapa mais importante, de acordo com o contexto, é a manipulação dos dados apresentados nos genes. A segunda etapa é entender essa base de dados e a primeira, que foi alcançada pelos cientistas, é o seqüenciamento do genoma (que é a base de dados). Na escala, ficaria assim: 1.ª seqüenciamento dos dados 2.ª entendimento dos dados 3.ª manipulação dos dados Nesta seção, procuramos evidenciar que chegar tem uma leitura semelhante a de outros operadores de escala, como os superlativos e o até. Deixamos para o próximo item a comparação entre esses operadores em PB. 3. Operadores de escala 3.1. Análises de even, hasta e até Para Francescotti (1995, p.172), o even (até) tem sempre a idéia de surpresa, de inesperado – como acontece em (17) com a reprovação de Albert – e o “até é um termo escalar, já que o inesperado vem em etapas”. Kay (apud Francescotti, 1995) afirma que utilizar o even é um modo de oferecer algo mais argumentativo, mais relevante para uma determinada conclusão, concordando com a teoria de Ducrot (1981). (17) Even Albert failed the exam. ‘Até Albert reprovou no teste.’ Nessa sentença, só podemos entender que Albert tinha boas condições de passar no teste e, talvez, que ele fosse o mais apto a passar ou o menos provável de reprovar. Assim, (17) indica que, se até Albert reprovou, outros também reprovaram. Francescotti (1995) considera que, se Albert não fosse o mais apto a passar no teste e sua reprovação fosse praticamente certa, a sentença (17) seria ruim. Numa comparação entre hasta (espanhol) e até (português), Grolla (2004) mostra que ambas preposições podem denotar em seus DPs4 os graus de uma escala. (18) a. A temperatura subia até 90ºC. b. La temperatura subió hasta (los) 90ºC. (19) a. O João cresceu até 2m. b. Juan creció hasta 2m. A autora explica: “em sentenças como essas, hasta e até tomam os sintagmas 2 metros e 90ºC como argumentos. Tais argumentos são graus de uma escala” (Grolla, 2004, p. 295). E conclui: “[hasta e até] indicam que um elemento atingiu o fim de um determinado objetivo ou o ponto final de um deslocamento”.(idem, p. 297). 3.2. Chegar e até: comparação entre operadores de escala Assim como dito para as preposições hasta e até, chegar se estabelece como um operador de escalaridade na sentença. Se para Francescotti (1995) o até marca a ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 171 surpresa na sentença e para Fauconnier (1975) escolhe o termo mais informativo de uma escala de probabilidade, vimos que chegar escolhe o termo mais informativo da sentença. Na mesma direção, Grolla (2004) conclui para hasta e até, que os elementos posteriores a eles funcionam como ponto final para a escala, o sintagma que segue o auxiliar chegar é o grau de uma determinada escala, funcionando como um ponto final. Comparando as sentenças: (20) a. Evans kissed Mary even before he knew her name. b. Evans beijou Mary até antes de saber o nome dela. c. Evans chegou a beijar Mary antes de saber o nome dela. (21) a. A temperatura subia até 40ºC. b. La temperatura subió hasta (los) 40ºC. c. A temperatura chegava a atingir os 40ºC. d. A temperatura chegava aos 40ºC. A tradução de (20a) em (20b) é equivalente. Note o leitor que a chamada “surpresa”, de que já se falou na discussão sobre até (even), é dada por todo o sintagma posterior em (20c). Já em (21), os exemplos (similares no sentido) mostram o caráter de escala dado por chegar. Mesmo quando não é auxiliar, mas principal (21d), o verbo indica que o seu complemento é um grau em uma dada escala, característica encontrada por Grolla (2004) para as preposições estudadas. Uma diferença importante está no aspecto sintático, por conta da flutuação na sentença: enquanto o até pode flutuar, antecedendo sujeito, verbo, objetos e adjuntos, chegar prende-se à posição que antecede o verbo no infinito, na maioria das vezes, ligado a este infinitivo por meio da preposição a. Dessa forma, notamos que o falante só pode utilizar o auxiliar chegar antes de eventualidades, enquanto tem a liberdade de escolher outros sintagmas para suceder o até. A flutuação de até ocasiona uma mudança de escopo que faz com que tenhamos diferenças de sentido entre as sentenças. (22) a. Até Pedro brigou com a Maria. b. Pedro até brigou com a Maria. c. Pedro brigou até com a Maria. Na sentença (22a), o escopo de até recai sobre o sujeito Pedro (NP) e uma interpretação possível seria a de que todo mundo brigou com Maria, inclusive Pedro, aquele que provavelmente não o faria. Portanto, ao ter o NP sob seu escopo, o até projeta uma escala com outros elementos do mesmo tipo. Assim, neste caso, Pedro se contrapõe a João, ao pai de Maria, a Sílvia etc. Em (22b) o escopo recai sobre brigou (V) e se entende que dentre várias atitudes que Pedro teve com Maria, a mais relevante foi que ele brigou, uma atitude talvez pouco provável de acontecer (esperada).Agora, a escala projetada contém outras eventualidades, como concordar, chamar atenção, etc. Finalmente, em (22c) o escopo recai sobre o argumento do verbo com a Maria (PP) e a interpretação é de que Pedro brigou com todo mundo, inclusive com quem era menos provável: Maria. Novamente, a escala projetada teria elementos da mesma natureza. Como auxiliar e como verbo, chegar só pode ficar em posição anterior ao verbo no infinitivo, com a ligação da preposição a. Perceba o leitor que, em outras 172 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 posições ocupadas pelo até, quando colocamos chegar, geramos uma sentença agramatical. Portanto, chegar só pode escalonar eventualidades. (23) a. *Chegou a Pedro brigar com a Maria. b. Pedro chegou a brigar com a Maria. c. *Pedro brigar chegou a com a Maria. Um caso interessante, é que chegar e até podem estar juntos numa mesma sentença. Nesses casos, dependendo da posição de até, o escopo dos operadores será diferente, mas eles podem operar sobre um mesmo elemento. (24) a. Até Pedro chegou a brigar com a Maria. b. Pedro até chegou a brigar com a Maria. c. Pedro chegou até a brigar com a Maria. d. Pedro chegou a brigar até com a Maria. Na sentença (24a), chegar, cujo escopo é brigar com Maria, indica que entre as atitudes tomadas contra Maria, a mais alta foi brigarem com ela; o até indica que esse ato foi praticado por alguém que provavelmente não o faria: Pedro, que é o escopo de até. Portanto, aí, chegar e até tem sob seu escopo elementos diferentes. O mesmo se pode dizer para (24d), em que chegar e até funcionam como operadores disjuntos. O que nos intriga são as sentenças (24b-c), em que chegar e até estão associados. Para esses casos, levantamos duas hipóteses: a) eles têm o mesmo valor semântico e o papel de até é de ênfase ou redundância; b) eles têm valores semânticos diferentes e precisamos explicitar o papel de cada um. Num primeiro momento consideramos os dois similares, e explicamos a utilização de dois operadores como sendo uma questão de ênfase. Apesar disso, é preciso dizer que, mesmo juntos, os escopos são diferentes: o de chegar é brigar com Maria e o de até, chegou a brigar com Maria. A sentença (24d) tem chegar com escopo sobre brigar e até com escopo sobre com a Maria. A interpretação é de que Pedro fez uma atitude pouco provável (brigar) contra uma pessoa com alguém que tinha poucas probabilidades de sofrer tal atitude (Maria). Na segunda hipótese – a de que eles têm papéis diferentes – levantamos a possibilidade de até, diferentemente de chegar, levar ao ponto extremo da escala. Assim, chegar a brigar com a Maria seria o ponto máximo a que Pedro poderia chegar. Enquanto, só o chegar leva a pressupor que brigar com a Maria é um ponto alto na escala, mas não se pronuncia em relação ao ponto extremo. 3.3. A negação Uma abordagem interessante feita por Fauconnier (1975) é com relação à negação das sentenças em que há os superlativos. Para o autor, se um determinado superlativo está no ponto mais alto ou mais baixo da tabela a negação fará com que ele tome a posição extremamente inversa na escala. Observemos um exemplo: (25) The loudest noise doesn’t bother my uncle. ‘O mais alto ruído não incomoda meu tio’. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 173 Parece claro que, se o ruído mais alto não incomoda o elemento Y, um ruído um pouco mais baixo também não o incomodaria e o mais baixo ruído, muito menos. A escala fica assim: Escala S – negação ponto mais baixo x3 x2 x1 ponto mais alto Fauconnier (1975) afirma que essa possibilidade de derivar uma sentença da outra vem do fato de a escala ter subpartes em que há acarretamento. Assim, se x3 acarreta x2, que acarreta x1, sendo x3 verdadeira, x2 e x1 também são verdadeiras. A negação com o auxiliar chegar sugere que o sujeito não atingiu o ponto mínimo de uma escala marcada pelo infinitivo (com seus complementos e adjuntos), como vemos em (26). (26) O principal da língua é a capacidade de expressão, de construir pensamentos e de transmiti-los, fazendo-os inteligíveis. Esta capacidade é que está se perdendo progressivamente. A gente conversa com um jovem e vê que o falar é interrompido a todo o momento. Muitas vezes ele não chega a completar a frase. (Jornal do Brasil, 28 dez.1996) Nessa sentença, a discussão é sobre a perda da capacidade de uso da língua de acordo com a concepção de José Paulo Paes, autor da frase. Ele considera que o ponto mais alto da língua – que acarreta outros – “é a capacidade de expressão, de construir pensamentos e de transmiti-los, fazendo-os inteligíveis”. O ponto mínimo é completar a frase. Observemos, nas escalas a seguir, que a negação inverte esses valores. Afirmação (ponto mais baixo) completar a frase Negação (ponto mais baixo) não construir e transmitir pensamentos x3 x1 x2 falar não é interrompido x2 falar é interrompido x1 x3 (ponto mais alto) construir e transmitir pensamentos (ponto mais alto) não completar a frase Se o falante for capaz de cumprir com aquilo que afirma José Paulo Paes (o ponto mais alto da afirmação: construir e transmitir pensamentos) é possível ver na escala que isso acarreta os outros elementos, ou seja, o falante não interrompe as falas e completa as frases. A negação com chegar ainda pode ocorrer por meio do nem, combinado com outros elementos, como vemos a seguir. (27) a. Pedro nem chegou a brigar com Maria. b. Pedro nem sequer chegou a brigar com Maria. 174 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 c. Pedro nem mesmo chegou a brigar com Maria. Um fato curioso em PB é que o até não pode ser antecedido por não (28a), ao contrário do chegar (28b). No entanto, com a negação do verbo, até pode escolher outras posições (28c-d). Esse fato reitera uma diferença sintática entre os elementos: até pode escolher diversos elementos como escopo, por causa das diferentes posições que pode ocupar numa sentença, enquanto chegar, pela posição fixa de anterioridade a um verbo no infinitivo, só escolhe como escopo eventualidades. (28) a. * Pedro não até brigou com Maria. b. Pedro não chegou a brigar com Maria. c. Até Pedro não chegou a brigar com Maria. d. Pedro até não chegou a brigar com Maria, mas olhou feio pra ela. O que percebemos ainda é que o nem pode fazer o papel de até como um operador de escala aliado à negação. Ele toma, aparentemente os mesmos escopos de até. Repetimos aqui as sentenças (24a-b) e formulamos suas negações em (29a-b). (24) a. Até Pedro chegou a brigar com a Maria. b. Pedro até chegou a brigar com a Maria. (29) a. Nem Pedro chegou a brigar com a Maria. b. Pedro nem chegou a brigar com a Maria. No caso de (30a-b), parece-nos muito ruim, ou pelo menos pouco produtivo, fazer a negação e manter o até, mas é possível substituí-lo pelo nem, como em (30c-d). (30) a. (??) Pedro não chegou até a brigar com a Maria. b. (??) Pedro não chegou a brigar até com a Maria. c. Pedro não chegou nem a brigar com a Maria. d. Pedro não chegou a brigar nem com a Maria. Como já afirmamos no final do item 2, não sabemos ainda porque é possível associar dois operadores escalares numa mesma sentença, nem por que o falante faz isso. Não estamos certos se é questão de ênfase ou de natureza semântica, embora pelos exemplos analisados, parece-nos ser o segundo caso. O fato é que a presença da negação faz com que o escopo mude de posição na escala: enquanto na afirmação ele é o menos informativo, na negação passa a ser o mais informativo, aquele que pressupõe os demais. E isso é uma semelhança entre os operadores chegar e até. 4. Conclusão Percebemos que a utilização de chegar como verbo auxiliar tem semelhanças com até, entre elas, a de ser um operador que indica o ponto mais informativo de uma determinada escala pragmática. A principal diferença é com relação ao posicionamento de ambos na sentença, o que ocasiona uma mudança de escopo e, conseqüentemente, de interpretação da sentença: enquanto até pode anteceder NP, VP, PP e outros sintagmas, o auxiliar chegar antecede apenas o verbo no infinitivo, sempre ligado pela preposição a. Com relação à negação, justamente pela flutuação na sentença, até tem mais restrições quanto à negação e, na maioria das vezes, parece ser substituído pelo nem ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 175 como um operador de negação. Já o chegar, como não muda de posição, pode ser antecedido por negação, seja pelo não ou outro termo, como nem ou sequer. Notas Usaremos o sinal #, para representar anomalia semântica. Núcleo do predicado, conforme Perini (2001). Os exemplos (6) e (7) são de Longo & Campos (2002). Determiner Phrases. 2 3 4 Referências ALMEIDA, J. de. (1980). Introdução ao estudo das perífrases verbais de infinitivo. Assis-SP: ILHPA - Hucitec. BERTUCCI, R. A. (2007). A auxiliaridade do verbo chegar em português brasileiro. Curitiba: UFPR. Dissertação de mestrado. _____ & FOLTRAN, M. J. (2007). O verbo chegar como auxiliar no português brasileiro. Estudos Lingüísticos, São Paulo, v.36, n.1, p.162-170, jan.abr./2007. DUCROT, O. (1981). Provar e dizer: linguagem e lógica. São Paulo: Global editora. FAUCONNIER, G. (1975). Pragmatics scales and logical structure. Linguistic Inquiry, v. VI, n. 3. pp. 353-375. FRANCESCOTTI, R. M. (1995). Even: the conventional implicature approach reconsidered. Linguistics and philosophy, n. 18, pp. 153-173. GROLLA, E. (2004). Prepositions, scales and telicity: a case study. Somerville, MA: Cascadilha Press. pp. 293-303. LONGO, Beatriz de O. & CAMPOS, Odette de S. (2002). A auxiliaridade: perífrases de tempo e de aspecto no português falado. In: ABAURRE, M. B. M. & RODRIGUES, A. C. S. (orgs). Gramática do Português Falado, v. VIII: Novos estudos descritivos. Campinas: Editora da Unicamp. LUFT, C. Dicionário prático de regência verbal. São Paulo: Ática. 2003. MIOTTO, C. FIGUEIREDO, M C. S.; LOPES, R. E. V.(2004). Novo manual de sintaxe. Florianópolis: Insular. NEVES, M. H. M. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora da UNESP. 2000. PERINI, M. Gramática descritiva do português. 4. ed. São Paulo: Ática. 2001. PONTES, E. Verbos auxiliares em português. Petrópolis: Vozes. 1973. REVISTA CIÊNCIA HOJE ON-LINE – <http://cienciahoje.uol.com.br> Acesso: nov. 2006. Disponível em: TRAVAGLIA, L. C. O aspecto verbal no português a categoria e sua expressão. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia. 1985. 176 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 167-176, jan.-abr. 2008 O caráter formalmente complexo das nominalizações1 Roberto Gomes Camacho Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas – Universidade Estadual Paulista Rua Cristóvão Colombo, 2265, CEP 15054-000- São José do Rio Preto, SP. camacho@ibilce.unesp.br Abstract. This paper aims to show that the semantic and pragmatic nature of argument relations in nominalizations is reflected onto the formal configuration of the valency expression in terms of overt or non-overt especification whose effect is a relative notion of grammar autonomy. To do justice to the semantically and pragmatically complex nature of nominalizations, the formal representation at the Structural Level, as conceived by Functional Discourse Grammar, should also include two further layers of representation which are proposed here as internal and external syntax in strict correspondence with the same kind of layers at Interpersonal and Representational Levels. Keywords. Nominalization; argument structure; Representational Level; Functional Grammar. Interpersonal Level; Resumo. O objetivo geral deste trabalho é demonstrar que a natureza semântica e pragmática das relações argumentais das nominalizações produz reflexos na configuração formal da expressão valencial em termos de especificação ou não especificação formal, traduzindo um conceito relativo de autonomia gramatical. Demonstra-se, mais especificamente, que, para fazer justiça ao caráter semântica e pragmaticamente complexo das nominalizações, a representação formal, no Nível Estrutural, tal como é concebido pela Gramática Discursivo-funcional, deve necessariamente conter também duas camadas de representação, aqui propostas como como sintaxe interna e sintaxe externa, em correspondência estreita com o mesmo tipo de camadas nos níveis Interpessoal e Representacional. Palavras-chave. Nominalização; estrutura argumental; Nível Interpessoal; Nível Representacional, Gramática Funcional. 1. Introdução Um dos traços mais marcantes da teoria lingüística é uma refinada divisão social do trabalho em função da natureza extremamente complexa do objeto de estudo. Tem sido mais ou menos consensual nos últimos anos que o estudo da gramática seja tarefa a ser cumprida por dois enfoques alternativos, o funcional e formal. Nesse âmbito, uma ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008 177 questão central no debate entre funcionalistas e formalistas é saber se as gramáticas são autônomas ou não em relação aos fatores externos. Como, no geral, essa questão é geralmente simplificada, diante da complexidade dos conceitos de autonomia e explanação funcional, ela requer um tratamento rigoroso dos termos formal e funcional. Uma das razões pela qual o uso desses termos não pode ser considerado esclarecedor, principalmente quando aplicados aos dois paradigmas alternativos, é a própria ambigüidade no uso do termo formal. Segundo Newmeyer (1998), ele pode referir-se tanto autonomia da forma ou da estrutura gramatical em oposição ao significado ou uso, quanto à utilização de um sistema notacional para expressar de modo preciso e exato as observações e as generalizações lingüísticas. Ao discutir essa segunda acepção, Nuyts (1992) afirma que qualquer intenção de modelar um objeto requer formalização, traço metodológico que não pode ser, assim, restrito às teorias formalistas, já que também os funcionalistas empregam sistemas matemáticos de notação. A controvérsia em torno dos termos formal e funcional acaba por ocultar, assim, o fato de que diferenças de formalização não passam de mera questão de grau, já que alguns modelos funcionalistas mantêm um elevado grau de formalismo e de explicitude notacional. Croft (1995) estabelece uma distinção relevante entre dois aspectos da noção de autonomia, que, ao cruzar-se com o sentido de autonomia sintática, abre caminho para adicionar ainda mais confusão ao debate: os conceitos de arbitrariedade e autosuficiência. No caso de a autonomia ser aplicada à sintaxe, a arbitrariedade representa a idéia de que regras ou elementos sintáticos são capazes de predizer corretamente o comportamento gramatical da língua, por não se derivarem de propriedades semânticas ou discursivas; já o conceito de auto-suficiência representa o fato de que o sistema sintático contém elementos e regras que interagem intimamente entre si sem a interferência de qualquer tipo de propriedade semântica ou discursiva Dessa discussão, deduz-se que a diferença real entre funcionalistas e formalistas não reside, assim, na utilização de sistemas notacionais, mas no grau de independência ou de autonomia das relações formais ou gramaticais em relação ao significado e ao uso que os falantes fazem delas no contexto comunicativo. É justamente neste sentido preciso do termo formal que a diferença entre as gramáticas formais e as funcionais deixa de ser uma questão relativa para ser uma questão absoluta. Como os formalistas, os funcionalistas também analisam a estrutura gramatical, mas assumem o compromisso de que ela é, em grande medida, condicionada por fatores derivados de uma função primordial da linguagem, a de ser instrumento de comunicação e de interação social. Nesses termos, pode haver uma correspondência não arbitrária entre forma e função, princípio que é prontamente recusado pelos formalistas que defendem expressamente a autonomia da gramática. O objetivo geral deste trabalho é demonstrar que a natureza semântica e pragmática das relações argumentais das nominalizações produz reflexos na configuração formal da expressão valencial, em termos de ser ou não formalmente especificada, traço que acaba por traduzir um conceito relativo de autonomia gramatical. Assumindo a perspectiva da Gramática Discursivo-Funcional (HENGEVELD, 2004), demonstro mais especificamente que, para fazer justiça ao caráter semântica e pragmaticamente complexo das nominalizações, a representação formal, no Nível Estrutural, deve necessariamente conter duas camadas de representação, aqui propostas 178 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008 como sintaxe interna e sintaxe externa, em correspondência aos níveis Interpessoal e Representacional. O trabalho se organiza da seguinte maneira: a seção 2 fornece uma breve descrição do modelo corrente de Gramática Funcional, a Gramática Discursivofuncional. Na seção 3, eu discuto alguns dados particularmente selecionados de manifestação argumental nas nominalizações para mostrar o efeito de motivações pragmáticas e semânticas na explicitação formal da valência. Na seção 4, forneço uma explicação formal para esses casos e, na seção 5, apresento algumas considerações finais. 2. O modelo teórico A Gramática Discursivo-Funcional (doravante GDF), que é, conforme Hengeveld (2004) e Hengeveld & Mackenzie (2006), uma nova versão da Teoria da Gramática Funcional de Dik (1989; 1997), caracteriza-se pelas seguintes propriedades: (1) Como um modelo da competência gramatical de usuários individuais, a GDF visa ao estudo do componente gramatical, que, constitui, por sua vez, juntamente com um componente conceitual, um contextual e um componente de saída, um modelo mais abrangente para explicar o uso de uma língua. (2) Como a GDF toma como unidade básica de análise o ato discursivo, é uma gramática do discurso e não uma gramática da sentença, e os atos discursivos de que trata podem ser maiores ou menores que uma sentença. (3) A GDF distingue os Níveis Interpessoal, Representacional, Estrutural e Fonológico de organização lingüística. (4) A GDF ordena esses níveis em uma direção descendente, que se inicia com a representação das manifestações lingüísticas que recobrem as intenções comunicativas do falante no Nível Interpessoal e segue gradualmente com as representações dos níveis mais baixos até o fonológico. (5) A GDF organiza os níveis de representação em camadas hierarquicamente estruturadas. Ao organizar a gramática desse modo, a GDF assume um posicionamento nitidamente funcionalista, considerando que, no âmbito da orientação descendente, a pragmática governa a semântica, e a semântica, por sua vez, governa a morfossintaxe, e todas governam a fonologia. Além disso, esse modo de organização habilita a GDF a ser uma gramática discursiva em vez de uma gramática da sentença, na medida em que o ponto de partida reside justamente nas unidades relevantes de comportamento comunicativo, não importando se tais unidades são expressas como sentenças ou não. A GDF é um exemplo de modelo comprometido com a orientação funcional com o objetivo explícito de construir um sistema de representação formal. Esse sistema de representação formal, caracterizado pela introdução de variáveis, níveis e módulos de representação, está diretamente envolvido com a necessidade de caracterizar a função comunicativa da linguagem, integrando, portanto, aspectos comunicacionais na própria arquitetura do modelo formal (HENGEVELD, 1998). O sistema subjacente à construção das expressões lingüísticas é um sistema funcional. Por princípio, deve ser estudado no marco das regras, princípios e estratégias ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008 179 que regem seu uso comunicativo natural (DIK, 1997). Como o modelo separa estritamente os níveis de representação de cada ato discursivo em termos de diferentes níveis e camadas, a interação entre os níveis e camadas de organização lingüística pode ser estudada sistematicamente. Este trabalho explora justamente o grau em que essa organização formal conduz a uma compreensão muito satisfatória de alguns aspectos relacionados à expressão argumental na nominalização. A Figura 1 dá uma visão geral do modelo da GDF conforme desenvolvido por Hengeveld (2004). Figura 1: Arcabouço geral da GDF (cf. HENGEVELD, 2004, p.371) A representação da estrutura hierárquica no Nível Interpessoal aparece na Figura 2. 180 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008 (M1: [(A1: [ (F1) (P1)S (P2)A (C1: [...(T1) (R1)...] (C1))] (A1))] (M1)) Figura 2: Nível Interpessoal A unidade de análise hierarquicamente mais alta nesse nível é o move (M), que pode conter um ou mais atos de discurso (A). Um ato de discurso se organiza com base em um esquema ilocucionário (F), que tem os dois participantes do ato de fala (P, o locutor S e o alocutário A) e o conteúdo comunicado (C), que é evocado pelo falante como seus argumentos. O conteúdo comunicado, por sua vez, pode conter um número variável de atos atributivos (T) e atos referenciais (R). Note que as duas últimas camadas operam no mesmo nível, não havendo, portanto, relação hierárquica entre elas. No Nível Interpessoal, as unidades são analisadas em termos de sua função estritamente comunicativa. No nível representacional, são relevantes as camadas apresentadas na Figura 3. (ep1: [p1: [(e1: [ (f1) (x1) ] (e1))] (p1))] (ep1)) Figura 3: Nível Representacional Nesse nível de análise, descrevem-se as unidades lingüísticas em termos do tipo de entidade semântica que elas designam. Esses tipos de entidades são de diferentes ordens: entidades de terceira ordem ou conteúdos proposicionais (p), entidades de segunda ordem ou estados de coisas (e), entidades de primeira ordem ou indivíduos (x) e, finalmente, entidades de ordem zero, ou propriedades (f). Conteúdos proposicionais podem ser adicionalmente agrupados em Episódios (ep). Note que entidades de primeira ordem e de zero ordem pertencem à mesma camada, o que implica não haver relação hierárquica entre elas. No Nível Estrutural, as representações da estrutura de constituintes nos níveis da oração, do sintagma e da palavra são fornecidas como exemplo na Figura 4. [[[lexemaAdj] AdjS lexemaN]SN [lexemaAdv]AdvS ] SV]OR Figura 4: Nível Estrutural Nesse nível, as unidades subjacentes tornam-se menos universais e, portanto, mais especificamente inerentes a uma língua particular, mas a teoria postula que diferenças entre as línguas podem ser descritas sistematicamente com base em parâmetros tipológicos. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008 181 Uma importante propriedade do modelo é a de que os diferentes níveis de organização são constituídos mediante o uso de diferentes conjuntos de primitivos. O Nível Interpessoal e o Representacional são estruturados com base em esquemas pragmáticos e semânticos em que se inserem lexemas e operadores primários, isto é, definidos em termos de seu significado. O Nível Estrutural, por seu lado, organiza-se em termos de diferentes esquemas estruturais (templates) em que se inserem palavras gramaticais e operadores secundários, isto é, operadores que antecipam formas gramaticais presas ou dependentes. Finalmente, é importante ressaltar que os níveis são relacionados entre si através de operações, representadas pelos círculos na Figura 1. Há uma distinção fundamental entre a Formulação, por um lado, e a Codificação, por outro. O processo de formulação relaciona-se com a especificação das configurações pragmáticas e semânticas codificadas na linguagem. O processo de codificação relaciona-se, por seu lado, com a forma morfológica e fonológica que as configurações pragmáticas e semânticas assumem. Essa distinção é diretamente relevante para o modo como a pesquisa tipológica é realizada dentro do arcabouço teórico da GDF, considerando que algumas diferenças entre as línguas refletem diferenças na formulação enquanto outras podem ser atribuídas a diferenças na operação de codificação. 2. Motivações semânticas e pragmáticas para a não expressão de valência A nominalização tem como modelo prototípico o nome comum não-derivado e, como tal, usa a forma de possuidor (sintagma-de), típica dos nomes comuns, para a expressão argumental. O modelo prototípico de expressão de um tipo primário de termo, que se refere a uma entidade de primeira ordem, contém, segundo Dik (1997), constituintes como determinantes, quantificadores, possuidores, modificadores e, por definição, um nome como núcleo. Entretanto, como a nominalização se referere a uma entidade de ordem superior, como um estado de coisas, a correspondência entre os argumentos do nome e os do verbo input deve estar representada na estrutura subjacente de ambas as classes de palavras, conforme está formalizado na regra em (1a) de formação de predicados, para nomes derivados por sufixação, como, por exemplo, destruição. (1) a Formação de nome deverbal em português (em –ção) Input: pred [V] (x1)Agente (x2) Paciente Output: pred-ção [N] (x1)Agente (x2)Paciente (cf. Dik, 1997, p.166) O esquema de predicado verbal em (1b), que serve de base para a nominalização em (1c), está separadamente especificado no léxico. (1) 182 b Destruir [V] (x1)Agente/Força (x2) Paciente c Destruição [N] (x1)Agente/Força (x2) Paciente ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008 Mesmo tendo entrada lexical distinta do verbo, a nominalização mantém a correspondência sintático-semântica com o predicado verbal por herança derivacional. Como na GF standard o esquema de predicado está fortemente associado com o item lexical correspondente, a diferença formal entre um predicado verbal e o predicado nominal derivado não está na estrutura argumental, mas apenas no rótulo categorial que cada um recebe, como demonstrado em (1b) e (1c). Nesse caso, tanto a valência do nome quanto do verbo podem estar expressas em algum lugar do enunciado, ou seja, exterior em relação ao próprio núcleo da predicação. Se a valência potencial pode ser expressa no exterior do núcleo nominal, é possível considerar como argumentos alguns tipos de termos não fonologicamente manifestos na posição de primeiro e de segundo argumento da nominalização, que são expressos por dois diferentes tipos de zero anafórico. O primeiro caso de zero anafórico, contido em (2a), representa um participante, o primeiro argumento, que é semanticamente compartilhado com o predicado da oração matriz, como mostra (2b). Note-se, de passagem, que (2a) traz especificação, como SN pleno, apenas do segundo argumento, que aparece sob a forma de sintagma-de (de frutos... raízes). (2) a eles dependiam... da colheita... de frutos... raízes...que eles não plantavam. (EF-SP-405) b eles colhiam frutos, raízes A mesma nominalização de (2a) com o primeiro argumento especificado em (2c) não seria uma construção aceitável por razões de redundância, já que o agente já se acha mencionado no sujeito de dependiam, que funciona como núcleo da predicação matriz (2) c se eles dependiam... da colheita..(* por eles) de frutos... raízes....que eles não plantavam (EFSP-405) Vale lembrar que essa condição se sustenta apenas no caso de haver identidade de participantes entre dois diferentes estados de coisas. Em (2d) o argumento1 da oração matriz é as mulheres, enquanto o argumento1 da nominalização encaixada é os homens. Nesse caso, em que não há identidade de participantes, a gramática licencia o agente da nominalização. (2) d as mulheres dependiam... da colheita...pelos homens de frutos... raízes.... que elas não plantavam (EF-SP-405) O segundo tipo de zero, que é também anafórico, representa termos que recuperam alguma entidade dada, já mencionada no texto precedente, não necessariamente na predicação matriz, como se vê em (3a), cujo predicado verbal correspondente está representado em (3b). (3) a nessa época ainda não existe preocupação com composição... (EF-SP-405) b Nessa época o homem pré-histórico não se preocupa com composição. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008 183 Como o tópico do texto é a arte do paleolítico, há várias menções anteriores ao homem pré-histórico. É por isso que, em (3c), a mesma nominalização com o argumento especificado continuaria sendo uma construção aceitável. O outro argumento é composição, que aparece na forma de oblíquo do predicado verbal input (3) c nessa época ainda não existe preocupação do homem pré-histórico com composição... (EF-SP405) Isso significa que, nesse aspecto, (3a) é diferente de (2a): a manifestação ou não do primeiro argumento em (3a) é uma escolha real do falante, diferentemente de (2a) que bloqueia a manifestação do argumento na função semântica de agente. Passemos, agora, ao exame de casos de zero anafórico na expressão do segundo argumento, conforme se vê no exemplo contido em (4a-b). O zero anafórico de (4a) representa um participante semanticamente compartilhado com o predicado da oração matriz na posição de segundo argumento, o que equivaleria, na predicação verbal de (4b) ao objeto ou argumento interno de criar. (4) a ele percebeu que era capaz de CRIAR::... e criar uma imagem... então:: ele vai tentar usar esta criação... que ele é capaz de fazer... para garantir a caça...(EF-SP-405:52-3) b O homem pré-histórico criou uma imagem. A mesma nominalização com o segundo argumento especificado em (4c) é uma construção discursivamente menos aceitável por razões de redundância, uma vez que o paciente já se acha mencionado no objeto de criar, que aparece negritado. (4) c ele percebeu que era capaz de CRIAR::... e criar uma imagem... então:: ele vai tentar usar esta criação (*da imagem)...... para garantir a caça... Os argumentos de criação, em (4a), que recebem ambos expressão de zero anafórico na sintaxe interna do predicado nominal, são facilmente recuperáveis no cotexto: o primeiro argumento é ele (homem pré-histórico) e o segundo é imagem; no entanto, o licenciamento da especificação formal dos argumentos é bloqueada na retomada seguinte, o que tornaria estranha a versão com especificação do paciente em (4c). Os dados analisados mostram que há, portanto, duas motivações para os diferentes tipos de zeros na expressão argumental: uma motivação semântica, que consiste nos casos de identidade de participantes mediante relação anafórica, e uma motivação pragmática, caso em que a identidade existe, mas a primeira menção da entidade referida está textualmente distante e pode ser tecuperada mediante expressão por zero anafórico ou por expressão lexical na segunda menção. Ambas as motivações são governadas pelo mesmo princípio funcional de economia que representa uma pressão para a simplificação máxima da expressão. Tratase aqui, de acordo com Haiman (1983), do princípio de economia sintagmática ou 184 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008 discursiva, que explica a tendência pela omissão de informação redundante ou recuperável no contexto. A economia representa uma tendência para o mínimo esforço e simplificação máxima da expressão. A economia sintagmática é a tendência para reduzir o comprimento ou a complexidade do enunciado, de modo que as expressões mais freqüentes no uso tendêm a reduzir-se fonologicamente e a informação redundante ou recuperável no contexto comunicativo tende a ser omitida. 6.Uma proposta de interpretação formal Como os dados discutidos mostram a plausibilidade da hipótese de preservação de valência, é óbvio que nomes primários e derivados devem já vir selecionados do léxico com sua própria estrutura valencial. Conforme demonstrado acima, são as motivações semânticas e pragmáticas que acionam a forma de expressão no Nível Estrutural, em termos de especificação ou não especificação formal. Sendo assim, é preciso considerar, em primeiro lugar, como as nominalizações entram na formulação a partir de sua organização lexical. Na análise apresentada neste trabalho, sustenta-se que, se a estrutura argumental permanece preservada, tanto um predicado verbal, quanto um predicado nominal deve receber exatamente o mesmo esquema de predicação, no qual é feita a inserção do lexema respectivo, caso se trate de um nome ou de um verbo2. Para fornecer uma representação formal simplificada dessa interpretação, considerem-se os exemplos contidos em (5a) e (6a) e os esquemas de predicação em (5b) e (6b), já com a interpretação de que as nominalizações são relações (f) no Nível Representacional e subatos atributivos (T) encaixados em subatos referenciais (R) no Nível Interpessoal. A valência quantitativa é variável de acordo com a natureza do lexema que for escolhido no léxico, que permite a expressão de (5a-b) respectivamente, de modo similar à dos predicados verbais correspondentes: (5) a. A manifestação dos grevistas causou transtorno no trânsito. b. (Ri [ T Rj ] (Ri)) (ei: [(fi: (fi:) (xi)Proc)] (ei )) (6) a. A destruição de Bagdá pelo exército americano causou a morte de civis. b (Ri [ T (ei: [(fi: Rj Rk ] (Ri)) (fi:) (xi) Ag (xj)Go)] (ei)) Esses esquemas expressam que os lexemas manifestação e destruição designam uma relação (aqui representada pela variável ‘f’) entre duas entidades (representadas pela variável ‘x’). A presença dessas duas variáveis na representação do lexema do nome, segundo Garcia Velasco & Hengeveld (2002, p.114), guia o processo de ligação na direção de um esquema de predicação de um lugar para (5a), e de dois lugares, para (6a). Resta agora discutir o modo como os níveis Interpessoal e Representacional acionam a forma de expressão da estrutura valencial no Nível Estrutural. Para a hipótese ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008 185 de preservação de valência, todas as variantes dispõem de estrutura argumental completa a partir da formulação, licenciando o Nível Estrutural a produzir variantes em resposta aos níveis Interpessoal e Representacional Vários graus de interconexão oracional determinam compartilhamento de marcação de tempo, aspecto modo e também de participantes, fenômeno conhecido por integração semântica (GIVÓN, 1980; 1990; NOONAN, 1985). Essas evidências de integração semântica, abundantemente fornecidas na literatura, mostram que o Nível Representacional age diretamente na formulação, sem qualquer interferência do Nível Interpessoal, produzindo, portanto, uma explicação para os casos de anáfora zero motivados por predeterminação semântica. Entretanto, que explicação dar para os casos de anáfora zero motivados por seleção consciente do falante em função da acessibilidade presumida de referente na memória de curto prazo do ouvinte? A resposta mais plausível para essa questão reside no modo como os níveis interagem no processo de implementação dinâmica. Dado que a GDF constitui um modelo gramatical da produção, sua eficiência é diretamente proporcional ao modo como ele se assemelha à produção lingüística; Assim, Hengeveld (2005) desenvolve a idéia de implementação dinâmica, relacionada ao aceleramento da implementação da gramática, o que requer dois princípios relacionados à produção: o Princípio da Profundidade em Primeiro Lugar (Depth First Principle) e o Princípio da Profundidade Máxima (Maximal Depth Principle). A Figura 5 representa os percursos possíveis da produção através da gramática. Segundo Hengeveld (2005), as flechas horizontais 1, 8 e 11 sinalizam o modo como as várias operações implementam a consulta aos conjuntos de primitivos, enquanto as linhas verticais sinalizam o modo como a gramática é dinamicamente implementada durante a produção. Esquemas, Lexemas, Operadores Primários Formulação Nível Interpessoal Nível Representacional Templates, Auxiliares, Operadores Secundários Codificação Morfossintática Nível Estrutural Padrões Prosódicos, Morfemas Operadores Secondários Codificação Fonológica Nível Fonológico Figura 5: Percursos através da gramática (HENGEVELD, 2005, p. 75) 186 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008 De acordo com o Princípio da Profundidade em Primeiro Lugar, a informação de um nível da gramática é remetida para um nível mais baixo logo que a informação input, requerida por esse nível mais baixo, já esteja completada no nível mais alto. A gramática teria um processamento consideravelmente lento, se as informações requeridas pelo Nível Interpessoal, que é o mais alto, tivessem que ser completamente especificadas em primeiro lugar e, em seguida, do mesmo modo, as do Nível Representacional, de forma que, somente então a configuração morfossintática seria determinada e, em seguida, projetada sobre configuração fonológica. O Princípio da Profundidade Máxima afirma que somente os níveis de representação relevantes para a construção são usados na produção de um dado aspecto do enunciado. Esse princípio acelera a implementação da gramática por evitar a especificação vazia de níveis de representação irrelevantes à produção do enunciado em questão. Como a GDF representa uma visão modular da gramática, a pragmática, a semântica, a morfossintaxe e a fonologia são desenvolvidas em níveis completamente independentes, mas relacionados. A implementação dinâmica fornece um percurso através do qual informação de curto termo pode ser acessada, enquanto as escolhas complementares relevantes estão sendo executadas no Nível Representacional. A análise das motivações de expressão argumental por anáfora zero mostra que, em relação aos argumentos semanticamente compartilhados, é o Nível Representacional que exerce o papel relevante na etapa de Formulação, sem qualquer interferência do Nível Interpessoal. Conforme prediz o Princípio da Profundidade em Primeiro Lugar, os casos de anáfora zero motivados por predeterminação semântica, como os contidos em (7), são produzidos mediante o seguinte percurso através da gramática 1 3 6 8 9 10; nesse caso, o Nível Interpessoal não é acessado. (7) e eles conseguem chegar... a é óbvio uma evolução [* deles] certo? (EF-SP-405:57) Todavia, os casos de anáfora zero, que são pragmaticamente determinados, como os contidos em (8), são ativados pelo seguinte percurso: 1 2 4 8 9 10; portanto, agora é o Nível Representacional que deixa de ser acessado (8) então eles tinham que acompanhar o movimento ∅ [=dos animais] também:: (EF-SP-405) Após impor a seleção do lexema apropriado com seu respectivo esquema de predicado a (7), o Nível Representacional determina a forma de zero anafórico para o primeiro argumento da construção encaixada. Contudo, quanto a (8), a forma de zero anafórico atribuída ao primeiro argumento não é semanticamente predeterminada, mas é motivada por razões de natureza pragmática, ou seja, pelo status informacional dos referentes no discurso Desse modo, conforme a natureza da motivação, se semântica ou pragmática, o falante consulta o Componente Contextual para verificar que entidades já estão disponíveis ao Ouvinte, a fim de prover o Nível Estrutural com a forma mais adequada. Embora um tipo de decisão se liga ao Nivel Representacional e o outro tipo, ao Nível Interpessoal, o resultado final pode ser exatamente o mesmo no Nível Estrutural, ou ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008 187 seja, expressão argumental por zero anafórico Outra questão que se coloca naturalmente é a de como considerar, no arcabouço da FDG o caráter híbrido das nominalizações, a meio caminho entre a referência a uma entidade de primeira ordem, como os nomes comuns concretos, e a referência a entidades de ordem superior, como estados de coisas e proposições. A título de exemplificação, considere-se o predicado de dois lugares destruição em (9a). (9) a A destruição de Bagdá pelo exército americano causou mortes de civis. Também por efeito de simplificação, considere-se a representação subjacente da nominalização, encaixada como dependente na posição de sujeito da predicação matriz. Para dar conta do caráter categorial híbrido da nominalização, é necessário considerar que ele representa, no Nível Interpessoal, um Subato Atributivo, próprio de uma predicação, dentro de um Subato Referencial, próprio de uma entidade, tal como se representa em (9b), e, no Nível Representacional, representa a atribuição de uma propriedade (f) a duas entidades referenciais (Bagdá e exército americano), que constitui a predicação encaixada numa proposição em (9c). A destruição de Bagdá pelo exército americano (9) b (Ri [Ti (Rj) (Rk) ] (Ri)) (9) c (ei [(fi: destruição)N (fi) (x1: exército americano(xi)Ag (x2: Bagdá (x2)Pat] (ei)) O modo como os argumentos dessa predicação encaixada são expressos vai depender, como se viu anteriormente, de processos de predeterminação semântica, motivados pelo grau de conexidade entre a oração da predicação encaixada e a oração da predicação matriz, ou por processos pragmáticos, motivados pelo grau de acessibilidade de informação no discurso corrente. Todos esses processos de expressão argumental são repercussões diretas dessas motivações funcionais no Nível Estrutural. Assim, para fazer justiça às motivações funcionais e ao caráter semântica e pragmaticamente híbrido das nominalizações, a expressão morfossintática deve respeitar as duas camadas de atuação nos níveis Interpessoal e Representacional e receber também duas camadas de representação, que poderiam ser denominadas de sintaxe interna e sintaxe externa, em atenção à proposta de Haspelmath (1995) para lexemas derivados por flexão. O autor se refere a processos de derivação por flexão transposicional, muito produtivos num grande número de línguas, que determinam um caráter morfossintaticamente híbrido para as formas resultantes, conforme sua representação da forma singende do alemão, que se transcreve em (10). (10) der the im Wald laut singV – endeAdj Warderer in:the forest loud sing-PTPC ‘the hiker (who is) singing loud in the forest’ hiker (Haspelmath, 1995, p. 44) Parece ser útil aplicar o mesmo padrão a outras formas híbridas como singende, mas produzidas por processos comuns de derivação por sufixação, do que resultaria a 188 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008 seguinte representação morfossintática para a expressão nominal a destruição deBagdá pelo exército americano : (11) [ [d1[destruir]v ção]N [de Bagdá]SP] [pelo exército americano] SP ] SN O esquema representado em (12) abaixo é uma tentativa de representar o SN de acordo com os três níveis de organização previstos pela GFD: (12) (Ri [(Ti) (Rj) (Rk) ](Ri)) (ei [(f1) (xi)Pat (xj)Ag] (ei)) [[d1[destruir]v ção]N [de Bagdá]SP] [pelo exército americano] SP ] NP Uma das razões para nominalizar é a possibilidade que detêm os nomes derivados de retomar, por substituição lexical, outras predicações já mencionadas no discurso precedente, como se observa, por exemplo, em (13a-b). (13) a os animais iam hibernar outros... imigravam para lugares mais quentes eles também precisavam acompanhar....o a migração da caça se não eles iam ficar sem comer... (EF-SP-405) b criar uma pessoa...ou criar uma imagem é mais ou menos a mesma coisa... no sentido de que nós estamos criando uma coisa nova... do nada... eu não tinha nada aqui passo a ter a imagem da minha mão... e esta idéia de criação é que ainda ( ) é representação... (EF-SP-405) A mesma relação em dois diferentes níveis morfossintáticos pode representar a forma dos argumentos na forma de adjetivo, como se pode ver em (14) e (15). (14) (...) então nós vamos começar pela Pré-História... hoje exatamente pelo período... do paleolítico... a arte... no período paleolítico [...] as:: manifestações artísticas começaram a aparecer no paleolítico superior (EF-SP-405) (15) no final das contas toda a evolução humana... não deixa de ser exatamente a evolução do domínio que o homem tem sobre a natureza... (EF-SP-405) A forma de manifestação de primeiro argumento como adjetivo mostra que a representação morfossintática deve acompanhar a recuperação lexical de um nome mencionado no discurso precedente como em (14); todavia, o adjetivo pode ser retomado como nome no discurso subseqüente, como (15). Essas possibilidades de intercâmbio entre as categorias lexicais nas relações de substituição lexical consistem num forte argumento para considerar os adjetivos como expressão argumental similar a nomes e não como mero modificadores, relação mais apropriada para nomes de primeira ordem, como em utensílio humano. Essas evidências de natureza textual-discursiva sugerem que a ligação entre lexemas e esquemas de predicação deve ser desenvolvida tanto com base na sintaxe interna quanto com base na sintaxe externa; na sintaxe interna, um nome deverbal ocupa apenas provisoriamente a ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008 189 posição estrutural de um verbo, assim como um adjetivo, a de um nome, enquanto na sintaxe externa trata-se de nome, na função de núcleo de um sintagma nominal e de um adjetivo, na função de modificador. O ajuste a que se refere Dik (1985; 1997) dos nomes derivados de ordem superior ao nome prototípico de primeira ordem se aplica, portanto, somente à sintaxe externa. 6. Conclusão Fazendo um balanço final do que pretendia demonstrar, começaria essas considerações finais, reafirmando o compromisso teórico que assumi com um modelo funcionalista, que explica a configuração formal das expressões lingüísticas com base em fatores derivados da função da linguagem como instrumento de interação social com base no postulado de que a correspondência entre forma e função é de alguma maneira não-arbitrária e, portanto, a gramática tem uma constituição nem autônoma, nem autosuficiente. Nesse percurso, enfoquei a estrutura argumental de nominalizações, mostrando que a não especificação da estrutura valencial é determinada por motivações de ordem pragmática, ligadas ao Nível Interpessoal e por motivações de ordem semântica, ligadas ao Nível Representacional. Nesse caso, ao produzir reflexos evidentes na configuração formal dos nomes em termos de especificação ou não especificação formal, a natureza semântica e pragmática das relações argumentais traduz um conceito relativo de autonomia gramatical. Além disso, a natureza semântica e pragmaticamente complexa das nominalizações refletiu-se em sua própria representação formal, no Nível Estrutural, na medida em que essa configuração conduziu à necessidade de postular duas camadas de representação, propostas como sintaxe interna e sintaxe externa. Como o modelo funcional utilizado separa estritamente os níveis de representação de cada ato discursivo em termos de diferentes níveis e camadas, a interação entre os níveis e camadas de organização lingüística pode ser estudada sistematicamente. Este trabalho explorou justamente o grau em que essa organização formal conduz a uma compreensão muito satisfatória de alguns aspectos semânticos e pragmáticos relacionados à expressão argumental na nominalização. Notas 190 1 Este trabalho é um resultado do desenvolvimento do projeto A estrutura argumental dos nomes deverbais, desenvolvido para o CNPq de 2003 a 2006, na qualidade de Bolsista de Produtividade em Pesquisa (Processo n° 30118592-1). 2 Santana (2004) apresenta uma solução similar, mas não idêntica à apresentada aqui. Enquanto ela defende que os predicados não-referenciais teriam um esquema de predicação avalente, minha interpretação aqui é a de que referencialidade é um traço do Nível Interpessoal, o que produz nãoexpressão de argumentos no Nível Estrutural. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008 Referências Bibliográficas CROFT, W. (1995) Autonomy and functionalist linguistics. Language, v. 71, p. 490532. DIK, S.C. Formal and semantic adjustment of derived constructions. In: BOLKSTEIN et al. (eds). Predicates and terms in Functional Grammar. Dordrecht/Cinnaminson: Foris, 1985, p. 1-28. ___.The theory of Functional Grammar. (Part I: The structure of the clause). Dordrecht: Foris, 1989. ___. The theory of Functional Grammar. (Part II: Complex and Derived Constructions). Edited by Kees Hengeveld. Berlin/New York: Mouton de Gruyter, 1997. GARCIA VELASCO, D., HENGEVELD, K. Do we need predicate frames? In: MAIRAL USÓN, R., QUINTERO, M.J.P. (eds). New Perspectives on Argument Structure in Functional Grammar, Berlin: Mouton de Gruyter, 2002, p.95-123. GIVÓN, T. The binding hierarchy and the typology of complements. Studies in Language 4-3: 333-377, 1980. ___ Syntax: a functional-typological introduction. Amsterdam, Phildelphia: John Benjamins, 1990. HAIMAN, J., Iconic and economic motivation. Language 59: 781-819, 1983. HASPELMATH, Martin. Word-class-changing inflection and morphological theory. Yearbook of Morphology. Kluwer Academic Publishers, 1995, p. 43-66. HENGEVELD, K. Formalizing functionally. In: In: DARNELL, M, et al. (eds) Functionalism and Formalism in Linguistics, Volume 2 (Studies in Language Companion Series 42). Amsterdam: John Benjamins, 1998, p.93-105. ___ Dynamic Expression in Functional Grammar. In: de GROOT, C.; HENGEVELD, K. (eds.) Morphosyntactic Expression in Functional Grammar. Berlin/New York: Mouton de Gruyter, 2005, p.53-86). ___ The architecture of a Functional Discourse Grammar. In MACKENZIE, J. L., GÓMEZ-GONZÁLEZ, M. Á. (eds), A new architecture for Functional Grammar (Functional Grammar Series 24). Berlin: Mouton de Gruyter Amsterdam, 2004, p. 1-21. ___ e MACKENZIE, J.L. Functional discourse grammar. In: BROWN, K. (ed.), Encyclopedia of Language and Linguistics, 2nd Edition. Oxford: Elsevier, v. 4, 2006, p.668-676. NEWMEYER, E.F. Some remarks on the Functionalist-Formalist controversy in linguistics. In: DARNELL, M, et al. (eds) Functionalism and Formalism in Linguistics, Volume 2 (Studies in Language Companion Series 42). Amsterdam: John Benjamins, 1998, p.469-486. NOONAN, M. Complementation. In: SHOPEN, T (ed.) Language typology and syntactic description. Vol II: Complex constructions. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p. 42-141. NUYTS, J. Aspects of a cognitive-pragmatic theory of language. Amsterdam: John Benjamins, 1992. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008 191 SANTANA, L. A expressão da estrutura argumental dos nomes derivados. M.A. dissertation. São José do Rio Preto: Universidade Estadual Paulista, 2004. 192 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008 Gostava que fizessem este exercício. – Gostava ou gostaria? Talita de Cássia Marine1, Juliana Bertucci Barbosa1 1 bolsistas CNPq e CAPES/PDEE; doutorandas em Lingüística e Língua Portuguesa pela Faculdade de Ciências e Letras – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Rodovia Araraquara–Jaú, Km 1– 14800-901 – Araraquara– SP – Brasil talita.marine@gmail.com, juliananbertucci@gmail.com Abstract. In this research we analyzed the use of “Pretérito Perfeito” and “Futuro do Pretérito” with the verb “gostar” in a corpus of the European Portuguese Contemporary. Results showed that: (i) the form “gostava” have been replacing the form “gostaria” in modal contexts; (ii) the form “gostava” have been using to express “wish” and/or “request”. Keywords. tense; European Portuguese; modality; semantics features. Resumo. Neste trabalho analisamos o uso do Pretérito Imperfeito e do Futuro do Pretérito com o verbo “gostar” em um corpus de Português Europeu Contemporâneo. Os resultados mostraram que: (i) a forma “gostava” está substituindo a forma “gostaria” em contextos modais; (ii) a forma “gostava” é empregada para expressar “desejo” ou/e “solicitação”. Palavras-chave. tempo verbal; Português Europeu; modalidade; traços semânticos. 1. Introdução O objetivo deste artigo é fazer uma breve análise sobre a alternância entre o uso do Pretérito Imperfeito e do Futuro do Pretérito do modo Indicativo com o verbo “gostar” no Português Europeu (PE) contemporâneo, a fim de verificar em quais situações essas formas estão sendo utilizadas. Para isso partiremos de um corpus constituído por cartas informais de leitoras da Revista Ragazza – uma revista feminina portuguesa similar à Capricho – publicadas entre os anos de 1994 a 2004. 2. Categorias verbais: tempo, modo e aspecto Para que pudéssemos analisar as formas do Pretérito Imperfeito e do Futuro do Pretérito do modo Indicativo com o verbo “gostar” encontradas em nosso corpus, tivemos que buscar embasamento teórico em estudos sobre três categorias verbais: Tempo, Modo e Aspecto. Essas três noções, segundo Longo (1990), não se relacionam apenas morfologicamente no Português, mas também estruturalmente, do ponto de vista semântico, mesmo que, em muitos casos, possamos apontar a predominância de um deles na realização dos enunciados. Para fins desta pesquisa, parece-nos pertinente apresentar as seguintes definições para cada uma dessas categorias verbais: ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008 193 - o Tempo é uma categoria dêitica que expressa relações de anterioridade ou simultaneidade entre três momentos: Momento da Fala (MF), Momento do Evento (ME) e o Momento de Referência (MR) (CORÔA, 1985; BARBOSA, 2003); - o Aspecto é uma categoria não-dêitica, que quantifica o evento expresso pelo verbo ou exprime a constituição interna de fases, momentos ou intervalos de tempo que se incluem nesse evento (CORÔA, 1985; BARBOSA, 2003); - o Modo é a categoria que expressa uma apreciação qualitativa em relação ao enunciado, uma tomada de posição do sujeito falante ou a manifestação da vontade, sentimentos ou julgamento do sujeito gramatical (LOBATO, 1971, p.99). Sobre o Modo – uma das categorias mais relevantes para o desenvolvimento deste trabalho – é importante mencionarmos que além das modalidades clássicas, que se referem à própria noção de verdade (aléticas), existem também muitas outras classificações para a modalidade, como por exemplo, epistêmica, relacionada com o conhecimento, crença, temporais, deôntica, relacionada com obrigação e permissão, bulomaica, relacionada com desejo, avaliativa e causal (MATEUS et al., 2003, p, 245). Esses diferentes tipos de modalidades podem ser expressos por muitos recursos, tais como: (a) verbos modais (“poder”, “dever”), (b) advérbios (“possivelmente”, “necessariamente” etc), (c) tempos verbais – como o Imperfeito, Futuro do Pretérito –, entre outros mecanismos. 2.1. O Pretérito Imperfeito e o Futuro do Pretérito Partindo desses pressupostos teóricos, para analisarmos os nossos dados, consideramos a formalização sugerida por Corôa1 (1985, p. 53), que define o morfema do Pretérito Imperfeito no português como: ME, MR – MF (o traço representa anterioridade e a vírgula simultaneidade). As formas do Pretérito Imperfeito (assim como as do Perfeito e Mais-que-perfeito) localizam o tempo do evento no passado, indicando que o momento do evento (ME) ocorreu antes do momento da fala (MF): o tempo de ocorrência do evento antecede o agora do falante/ouvinte. Além disso, o Imperfeito, levando em consideração a perspectiva de tempo do falante (MR), remete a eventos que aconteceram em um intervalo de tempo mais ou menos extenso no passado; trata-se, portanto, de um relato de algo ocorrido no passado visto de uma perspectiva também passada. O que o falante transmite ao ouvinte com o uso do Imperfeito é uma visão do evento a partir do próprio momento do evento, e não de seu fim ou resultado, como acontece quando usamos o Perfeito. Partilhamos também da definição de Corôa atribuída ao morfema do Futuro do Pretérito: MR - MF – ME. Nessa formalização podemos observar que o ME é posterior a MF, ou seja, o evento é previsto como futuro a partir de uma perspectiva passada; como essa possibilidade é contemplada a partir de um sistema de referência que se coloca antes da enunciação, MR é anterior a MF. Depois de estabelecermos as definições temporais não-ambíguas adotadas neste trabalho para os morfemas-temporais do Pretérito Imperfeito e do Futuro do Pretérito, 194 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008 realizamos uma revisão bibliográfica em gramáticas e em outros estudos lingüísticos para verificarmos em que situações específicas a substituição do Imperfeito pelo Futuro do Pretérito no Português é prevista. Em Cunha e Cintra (2001) e Bechara (2002), por exemplo, encontramos os seguintes comentários sobre a alternância do Pretérito Perfeito e Futuro do Pretérito: Tabela 1. A substituição do Futuro do Futuro do Pretérito pelo Imperfeito em gramáticas tradicionais do Português Autores Cunha e Cintra (2001) Bechara (2002) Pretérito Imperfeito no lugar do Futuro do Pretérito para denotar um fato que seria conseqüência certa e imediata de outro e que não ocorreu ou não poderia ocorrer. (p. 452). Ex: Se eu fosse mulher, ia também! pode substituir, principalmente na conversação, o futuro do pretérito, quando se quer exprimir fato categórico ou a segurança do falante: Se me desprezasses, morreria, matava-me. (p. 278) Futuro do Pretérito o Imperfeito pode substituir o Futuro do Pretérito: no lugar de “verbos modais como poder, dever, saber, desejar, sugerir, etc” (p. 464)Virtual cubits (não há comentários) Como podemos observar, o Imperfeito substituindo o Futuro do Pretérito é previsto em gramáticas tradicionais da Língua Portuguesa. Porém, os usos relacionados a essa substituição, apontados pelos gramáticos, corresponderia às encontradas em nosso corpus, com o verbo “gostar” no Português Europeu (PE)? Segundo Prista (1966, p.57), autor de uma gramática de Português para estrangeiros, o Imperfeito é freqüentemente usado no Português, no lugar do Futuro do Pretérito, como por exemplo: (01) Desejava ler este livro (PRISTA, 1966, p.57) Neste exemplo, o verbo “desejar” no Pretérito Imperfeito é utilizado para expressar uma “solicitação”; Rebello (2005), comentando esta afirmação de Prista, argumenta que o verbo “gostar” também é usado com sentido similar ao “desejar” no Português, com exceção do Português Brasileiro: (02) Gostava de ler este livro. Hutchinson e Lloyd (1996) também atestam que o Pretérito Imperfeito está sendo usado pelo Futuro do Pretérito. Acrescentam ainda que o Pretérito Imperfeito é usado quando o falante quer fazer solicitações de forma polida. Essa consideração nos levou a outro questionamento: o Imperfeito substituindo o Futuro do Pretérito seria mais empregado em situações de maior grau de polidez? Antes de tratarmos essa questão, fomos verificar na gramática de Mateus et al (2003), que se baseia no Português Europeu (PE), apontamentos sobre a alternância do Pretérito Imperfeito e Futuro do Pretérito. De acordo com Mateus et al (2003, p. 156), o Imperfeito recebe a seguinte definição: “é um tempo gramatical com informações de passado, mas que em muitas construções não apresenta características temporais”. Observe os exemplos dados pelas autoras (MATEUS et al, 2003, p. 157): (03) A Maria lia o jornal quando a Joana chegou. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008 195 (04) Ontem a Maria estava doente. No exemplo (07) verificamos que a chegada da Joana está incluída no tempo de “ler o jornal”, que pode ter continuado para além da chegada de Joana (MATEUS et al., 2003, p. 157). No exemplo (08), com verbo de estado “estar”, as autoras apontam que o advérbio está incluído no intervalo de “estar doente”. Mateus et al (2003) ressaltam ainda, seguindo essa definição adotada para o Imperfeito, que esse tempo “nem sempre apresenta características de tempo relativo a um ponto de perspectiva temporal do passado” (MATEUS et al, 2003, p. 157), como por exemplo: (05) Eu, neste momento, bebia um cafezinho. (06) Estava à tua espera desde ontem. (07) Se a Rita chegar/chegasse a tempo, íamos ao concerto. (08) Amanhã ia falar consigo ao escritório, está bem? Para as autoras, nos exemplos (05) e (06), o ponto de perspectiva temporal é o momento da fala –, por meio de “neste momento” e “desde ontem” (até agora) -, entretanto, em (05) temos uma projeção para um futuro “eventualmente articulado com uma condicional” (p.157), e em (06) o Imperfeito expressa um estado (“estar à espera”) não importante no momento da fala. Nos exemplos (07) e (08), o ponto de perspectiva temporal é um tempo posterior ao da enunciação, estabelecido em (07), pela condicional “se [...]” e, em (08), pelo advérbio “amanhã”. Mateus et al (2003), a partir desses exemplos, chamam a atenção para o fato do Imperfeito não denotar sempre um tempo do passado, podendo também expressar modalidade. Já o Futuro do Pretérito, que recebe o nome de Futuro do Passado ou Condicional, segundo Mateus et al. (2003, p.158), comporta-se como Futuro do Passado desde que o ponto de perspectiva temporal seja passado. Se esse ponto for um tempo futuro, então adquire um valor modal: (09) Ontem o Rui encontrou a Maria e esta convidá-lo-ia posteriormente para presidir ao encerramento da sessão. (10) O Rui e a Maria têm um encontro dentro de dias e esta convidá-lo-ia (*posteriormente) para presidir à sessão, se não soubesse já que ele recusava. Para as autoras, em (09) temos um exemplo de Condicional como Futuro do Passado, devido a presença do advérbio “posteriormente” (relativo ao tempo da frase anterior), e em (10), por não ser permitido o uso do advérbio, evidencia que não se trata de um tempo (MATEUS et al, 2003, p. 158); temos o Futuro do Pretérito expressando modalidade. Como podemos perceber, o uso do Imperfeito com valor modal está previsto na gramática do PE, entretanto, a alternância que ocorre entre o Imperfeito e o Futuro do Pretérito com o verbo “gostar”, expressando valor modal de desejo e/ou pragmático de “pedido (solicitação)”, como aponta Rebello, não é abordado. Baseando-nos nessas constatações, resolvemos analisar ocorrências do verbo “gostar” conjugado no Pretérito Imperfeito e no Futuro do Pretérito do modo Indicativo, no Português Europeu (PE), para verificar as funções destas duas formas verbais. 196 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008 3. A escolha do corpus Partindo dos pressupostos teóricos visto até aqui e a fim de cumprirmos com a proposta de análise que ora estabelecemos neste artigo, lançando nosso olhar para diferenciados usos das formas “gostava” e “gostaria” no PE, escolhemos um corpus que acreditamos manifestar uma forma de linguagem intermediária entre a modalidade falada e a escrita da Língua, denominada por Marine (2004) como “língua oral-escrita”. Nesta modalidade, vimo-nos diante de um texto escrito profundamente marcado pela oralidade, inserido num continuum entre a escrita e a fala, no qual a preocupação maior do interlocutor está no que diz (conteúdo) e não no modo como diz (forma). Sabemos, evidentemente, que a escrita por muito tempo foi vista como uma manifestação da linguagem mais formal, ligada às normas da Gramática Tradicional e que, justamente por isso, os estudos de Variação e Mudança Lingüísticas norteados pela teoria e metodologia de Labov (1972; 1994), privilegiam o estudo da modalidade falada da língua, já que esta, em geral, é vista como mais informal, ou seja, menos preocupada com a norma padrão. Todavia, é importante salientar que a escrita, com freqüência, utiliza-se de recursos geralmente associados à linguagem oral, com a intenção de tornar-se mais persuasiva e aproximar-se assim, mais do leitor. Essa intenção de criar mais intimidade é que vai determinar um grau maior ou menor de oralidade na escrita. Assim, podemos afirmar que o maior ou menor grau de formalidade de um texto está muito mais ligado ao contexto em que é produzido do que à sua modalidade (escrita ou falada). A esse respeito, Kress (1992) afirma que embora a fala e a escrita apresentem diferenças retóricas e conceituais bem marcadas, parece que a percepção do escritor em relação à sua audiência (mais formal / menos formal) é que determina as diferenças sintáticas formais das sentenças e sua estruturação em textos. Diante de tais considerações, embora saibamos da predileção pelos textos orais nos estudos variacionistas, optamos pelo trabalho com um tipo de texto escrito profundamente marcado por traços de oralidade: as cartas de leitoras de revistas femininas. Cabe observar que na seção de cartas da maioria dessas revistas, é evidente a interação entre a revista e suas leitoras, as quais constroem uma verdadeira relação de confiança e amizade, favorecendo, assim, a produção de um texto escrito mais informal. Vejamos um exemplo desse tipo de texto: (11) (...) Era o rapaz mais convencido da escola... e tinha bons motivos para isso! Era lindo de morrer! Mas eu gosto dos mais banais e ele dava-me cabo dos nervos. Claro que isto lhe afectava imenso o ego! As minhas amigas aconselharam-me a não ser parva e aproveitar a oportunidade. Eu já estava quase convencida quando, um dia, ao sair das aulas, o vi aproximar-se como se fosse o único homem bom à face da Terra. De um lado os seus amigos observavam a cena, do outro estavam as minhas amigas e no meio estava eu sem saber o que fazer... Perguntou-me se gostava de passar um bocado com ele. (...) (Ragazza, Novembro de 1997) Cabe observar que as cartas das leitoras2 foram extraídas da Revista Ragazza - uma revista feminina portuguesa da editora Hachette destinada ao público jovem e que se assemelha ao estilo da revista brasileira Capricho, da Abril – no período de 1994 a 2004. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008 197 4. Análise dos dados: “gostava” vs. “gostaria” Selecionamos a partir desse corpus do Português Europeu (PE), as ocorrências do verbo “gostar” flexionadas no Pretérito Imperfeito e no Futuro do Pretérito e encontramos o seguinte número: Tabela 2. Número de ocorrências encontradas no corpus Gostar Pretérito Perfeito Futuro do Pretérito Total No /% 10 / 13% 66 / 87% 76 / 100% Considerando a substituição do Imperfeito pelo Futuro do Pretérito no PE, analisamos essas 76 ocorrências e as dividimos em quatro grupos: a) Gostar + Futuro do Pretérito (temporal): ocorrências em que o Futuro do Pretérito expressa estritamente situações em que o evento, sob uma perspectiva passada (referência do falante), é previsto como futuro, por exemplo: (12) Carlos disse que estaria melhor se estivesse estudado3. b) Gostar + Futuro do Pretérito (modal): ocorrências em que o Futuro do Pretérito expressa, além de valores semânticos e temporais, modalidade (“desejo” / “solicitação +desejo”), como por exemplo: (13) Como o Sérgio não era de andar atrás das miúdas, eu não sabia o que é que havia de fazer para me meter com ele. Aproveitei um dia em que se baldou às aulas e deixei-lhe um bilhete na carteira. Dizia-lhe que me parecia um rapaz superquerido, que gostaria muito de ser sua amiga. [...].- “desejo” (Ragazza, Outubro de 1997) (14) Tenho 15 anos e preciso de informação sobre os estudos que devo fazer para ser actriz. Além disso, gostaria também de saber se são precisas provas de acesso. “solicitação +desejo” (Ragazza, Abril de 2003) c) Gostar + Pretérito Imperfeito (temporal/imperfectivo): ocorrências em que o Pretérito Imperfeito expressa, predominantemente, valor temporal de passado e aspecto imperfectivo: (15) O meu primeiro encontro foi demais. Eu gostava do Pedro e ele de mim, por isso uma amiga comum planeou o nosso ‘arranjinho’. Encontrámo-nos na casa onde costumava reunir-se o nosso grupo de amigos. [...]. (Ragazza, Novembro de 1996) d) Gostar + Pretérito Imperfeito (modal): ocorrências em que o Pretérito Imperfeito expressa, predominantemente, modalidade (“desejo” / “solicitação +desejo”), como mostram os exemplos a seguir: (16) Tenho 22 anos e ainda sou virgem. Nunca andei com nenhum rapaz e nunca beijei ninguém. Sinto-me muito angustiada por causa disso, porque faz com que pareça um bicho raro ao pé das minhas amigas e da minha irmã. Gostava de encontrar o homem da minha vida e assim deixar de sofrer desta maneira. [...]. – “desejo” (Ragazza, Novembro de 1995) (17) Gostava de saber como é que posso fazer amigos. As minhas amigas aborrecem-me: não fazem nada divertido! Vivo numa terra pequena e é difícil fazer 198 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008 coisas diferentes. Não quero deixar de andar com elas, só conhecer pessoas novas. [...].“solicitação +desejo” (Ragazza, Novembro de 1998) Baseando-nos nessa classificação, analisamos as ocorrências e obtivemos o quadro de resultados a seguir: Tabela 3. Número de ocorrências encontradas no corpus Gostava vs. Gostaria Gostar + Futuro do Pretérito (temporal) Gostar + Futuro do Pretérito (modal) Gostar + Pretérito Imperfeito (temporal/imperfectivo) Gostar + Pretérito Imperfeito (modal) TOTAL No /% 0/0 10 / 13% 34 / 45% 32 / 42% 76 / 100% Como podemos observar a partir da Tabela 3, não encontramos ocorrências de “gostaria” com valor estritamente temporal; todas as ocorrências com Futuro do Pretérito expressam valor modal: (18) Ao dobrar meu tronco formam-se-me uns pneuzinhos na cintura, mas a minha mãe e as minhas amigas dizem para eu não ser paranóica. Odeio a minha cintura; além DISSO, sendo magra, aquelas gordurinhas são um desastre. Gostaria de perder quatro centímetros. As minhas medidas são: 90-69-94, tenho 1,75m de altura e peso 57 quilos. (Ragazza, Abril de 1995) Além disso, é importante destacar o baixo rendimento do verbo “gostar” no Futuro do Pretérito, com valor modal, em relação a formas com esse mesmo verbo no Pretérito Imperfeito. Por outro lado, entre as ocorrências do verbo “gostar” com Pretérito Perfeito, o emprego foi equilibrado: 45% (34) apareceram sendo utilizadas apenas com valor temporal/aspectual, e 42% (32) exprimindo predominantemente modalidade (desejo). Esses dados parecem evidenciar que no PE, em situações informais, com o verbo “gostar”, o Pretérito Imperfeito além de expressar estritamente temporalidade/imperfectividade pode, em determinados contextos, passar a expressar valor modal de “desejo” (como veremos a seguir, este valor pode se associar a valores pragmáticos, de “pedido/solicitação”). É importante destacar que entre as ocorrências encontradas com a forma “gostava”, uma foi excluída da nossa análise, pois não conseguimos inseri-la em nenhum dos nossos quatro grupos de análise – (a) Gostar + Futuro do Pretérito (temporal), (b) Gostar + Futuro do Pretérito (modal), (c) Gostar + Pretérito Imperfeito (temporal/imperfectivo) e (d) Gostar + Pretérito Imperfeito (modal). A ocorrência foi a seguinte: (19) Ando com um rapaz há seis meses e já tivemos relações sexuais várias vezes. Da última, disse-me que gostava de fazer sexo oral, mas eu senti nojo, disse-lhe que não queria e ele ficou muito chateado comigo. E agora, o que é que eu devo fazer pra resolver isto? Estela-Lisboa. (Ragazza, Fevereiro, 2004) Como podemos observar, nesse fragmento temos um caso de ambigüidade: podemos interpretar “gostava” como um evento que ocorreu no passado e perdurou dentro de um intervalo de tempo ou como um pedido/desejo do falante. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008 199 Para refinarmos a nossa análise baseamo-nos em Rebello (2005), citada anteriormente, que menciona a possibilidade do verbo “gostar” no Imperfeito expressar “solicitação”, e em Neves (2000) que – em um artigo sobre a polissemia dos verbos modais – afirma que a modalização pode ser empregada para complementar funções ilocutórias4 (indicar, por exemplo, uma promessa, um pedido, uma oferta etc). A partir dessas constatações, tentamos verificar quais valores ou combinações de valores são expressos pelas ocorrências dos grupos (b) e (d), respectivamente, Futuro do Pretérito (modal) e Gostar + Pretérito Imperfeito (modal). Para isso analisamos as ocorrências desses dois grupos, subdividindo-as em: (i) situações em que o falante expressa somente “desejo” (modalidade); (ii) situações em que o falante expressa o valor modal de “desejo” e indica ato ilocutório de “pedido” (solicitação). Para as formas do grupo do Pretérito Imperfeito (modal)/ “gostava”, os resultados foram os seguintes: Tabela 4. Valores expressos pelo “gostava” (modal) GOSTAR+ Pretérito Imperfeito “Desejo” “Solicitação + Desejo” TOTAL No / % 21 / 66% 11 / 34% 32 / 100% Podemos observar por meio desse resultado que das 32 ocorrências de “gostava” (modal), 21 (66%) foram exprimindo apenas “desejo”, e 11 (34%) expressando valor modal de “desejo” acompanhado de um “pedido” (solicitação). Fizemos essa mesma análise com as ocorrências do grupo Gostar + Futuro do Pretérito (modal)/ “gostaria”, e chegamos a resultados semelhantes ao da forma “gostava”: Tabela 5. Valores expressos pelo “gostaria” (modal) GOSTAR+ Futuro do Pretérito (modal) “Desejo” “Solicitação + Desejo” TOTAL No / % 6 / 60% 4 / 40% 10 / 100% Assim como ocorreu com o grupo do “gostava” (modal), o maior número de ocorrências com a forma “gostaria” exprimi valor modal de “desejo” (60%). Esses resultados, expressos nas Tabelas 4 e 5, demonstram que a forma “gostava” e “gostaria” exprimem, em determinados contextos, predominantemente valor modal de “desejo”. Entretanto, em algumas situações, esse valor pode estar associado a atos ilocutórios (indicação um “pedido”). Esse segundo tipo de ocorrência se aproxima da afirmação de Rebello (2005) e do exemplo citado por Neves (2000), em que o verbo de elocução “perguntar” é modalizado pelo Futuro do Pretérito do verbo “gostar”: (20) Ouvi atentamente o aparte do nobre Deputado Jorge Arbage, mas GOSTARIA de perguntar quando foi que S.Exa. teve notícia do último atentado terrorista que ocorreu em nosso País. (MS-O) (NEVES, 2000, p. 130 / grifo nosso) É importante ressaltar que entre as ocorrências de Gostar + Futuro do Pretérito (modal) e de Gostar + Pretérito Imperfeito (modal), que indicam pedido acompanhado do valor modal de “desejo”, encontramos alta rentabilidade das seguintes construções: “Gostaria de saber” (03 de 04 ocorrências) e “Gostaria de saber” (09 de 11 ocorrências). 200 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008 Não nos deteremos, neste artigo, ao estudo dessa construção, mas acreditamos que esse fenômeno merece um estudo aprofundado. 5. Considerações Finais Com esta breve análise, observamos que a troca do Imperfeito pelo Futuro do verbo “gostar” em situações modais expressando “desejo” e/ou “desejo + solicitação” é algo bastante expressivo no corpus que utilizamos para nossa análise, um corpus escrito fortemente marcado por traços de oralidade. Constatamos que o verbo “gostar” no Pretérito Imperfeito obteve maior número de ocorrências e é mais empregado pelos falantes em duas situações: para marcar o tempo do evento no passado, indicando que o momento do evento (ME) ocorreu antes do momento da fala (MF); e, substituindo o Futuro do Pretérito, para expressar um “desejo” e/ou “desejo+solicitação”. Nesses usos é o contexto que determina o sentido que o falante quer conferir à forma “gostava”. Outro ponto de nosso trabalho que acreditamos que mereça atenção e um estudo posterior, diz respeito à questão da polidez, já que, como mencionamos, segundo Hutchinson e Lloyd (1996), o Pretérito Imperfeito é usado quando o falante quer fazer solicitações de forma polida. Caso isso esteja realmente ocorrendo no PE, seria necessário estabelecermos um estudo comparativo entre o PB e o PE, visto que isso apontaria uma diferença entre ambas modalidades do Português, pois no PB utilizamos a forma “gostaria” como expressão mais polida de solicitação. Por fim, cabe ressaltar que faremos um estudo comparativo do PE vs. PB abordando a troca do Pretérito Imperfeito pelo Futuro do Pretérito do verbo “gostar” levando em consideração contextos de escrita mais formais e menos formais, visto que acreditamos que o grau de formalidade seja um fator condicionante para o estudo em questão. Notas 1 Corôa (1985) procurou atribuir a cada tempo verbal do português uma definição única e não-ambígua. Fundamentada nos estudos de Reichenbach (1980), suas representações não levam em conta a interação verbo/adjunto temporal, nem o uso de auxiliares na expressão do tempo, focalizando-se apenas na interpretação fornecida pelo morfema modo-temporal do verbo. 2 Caber salientar que nessas cartas não há nenhum processo de edição na maneira como elas foram escritas. O que há é o “corte” de alguns fragmentos, visto que nem sempre as cartas são publicadas na íntegra. 3 Esse exemplo foi criado por nós. 4 Austin (1990) argumenta que, ao analisarmos um ato de fala, devemos fazer a distinção entre locução e ilocução. A locução é a forma real das palavras utilizadas pelo falante e seu significado semântico. A ilocução (ou força ilocucionária) é o que o falante está fazendo ao proferir tais palavras: comando, oferta, promessa, ameaça, agradecimento, pedido, etc. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008 201 Referências AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Trad. de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. BARBOSA, J. B. Os tempos do pretérito no português brasileiro: perfeito simples e perfeito composto. vol I, 2003, 115 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística e Língua Portuguesa) – Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Araraquara. BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37.ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. CORÔA, M. L. M. S. O tempo nos verbos do português: uma introdução a sua interpretação semântica. Brasília: Thesaurus, 1985. CUNHA, C. & CINTRA, L. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. HUTCHINSON, A. P.; LLOYD, J. Portuguese: an essential grammar. London: Routledge, 1996. KRESS, G. Structure of Discourse and Structure of Explanation. London: University of London, 1992. LABOV, W. Sociolinguistic Patterns. Philadelphia : University of Pennsylvania Press. 1972. LEVINSON, S. Pragmática. Madrid: Teide, 1989. LOBATO, L. M. P. L’auxiliarité em langue portugaise. 1971. Tese (Doutorado em Lingüística). Université de Paris III, Paris. LONGO, B. N. O. A auxiliaridade e a expressão do tempo em português. 1990. 238 f. Tese (Doutorado em Lingüística e Língua Portuguesa) – Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Araraquara. MARINE, T. C. O binarismo dos pronomes demonstrativos no século XX: este vs. aquele ou esse vs. aquele?, 2004. 138 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística e Língua portuguesa) – Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Araraquara, 2004. MATEUS, M. H. M. et al. Gramática da Língua Portuguesa. 6.ed. Lisboa: Caminhos, 2003. NEVES, M. H. M. A polissemia dos verbos modais: ou falando de ambigüidades. Alfa: Revista de Lingüística, São Paulo, v. 44, p. 115-145, 2000. PONTES, E. O "Continuum" língua oral e língua escrita: por uma nova concepção do ensino. Trab.Ling.Apl. Campinas, n. 12., 101-107, jul./dez. 1988. PRISTA, A. R. Essential Portuguese Grammar. New York: Dover, 1966. REBELLO, A. L. P. Futuro do pretérito ou Pretérito Imperfeito? A abordagem das gramáticas e manuais de PBE. In: Caderno do Congresso Nacional de Lingüística e Filologia (CNLF): Ensino de Língua Portuguesa, IX-09, Rio de Janeiro: 2005. Disponível em: http://www.filologia.org.br/ixcnlf/9/08.htm. Acesso em: 02 jun. 2007. 202 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 193-202, jan.-abr. 2008 AdvPs aspectualizadores (modalizadores) no português brasileiro e no italiano e a hierarquia universal de Cinque Aquiles Tescari Neto1 1 Instituto de Estudos da Linguagem (UNICAMP) – CNPq Caixa Postal 6045 – CEP 13083-970 SP – Campinas/SP – Brasil aquilestescari@yahoo.it Abstract. The study of modal adverbs available in general Linguistics literature has excluded from the group of modas those which indicate habitual aspect, such as “usually”, “generally”. Assuming formal theories of Syntax (Cinque, 1999, 2004), this paper proposes that habitual aspect adverbs are indeed a sort of modal adverbs, as the epistemic ones, usually considered the representatives of modal AdvP classes. As a consequence from this study, it is also claimed that an adequate syntactic analysis of adverbs should take into account just syntactic devices, without depending on semantic tools. Keywords. Habitual aspect adverbs, modal adverbs, functional-specifier theory, adverbial syntax. Resumo. O estudo dos advérbios modalizadores na literatura lingüística exclui dos advérbios modalizadores os que indicam aspecto habitual (como “normalmente” e “geralmente”). O trabalho propõe, ao assumir teorias formais de sintaxe (Cinque, 1999, 2004), que advérbios habituais constituem um subgrupo de modalizadores, como os epistêmicos, considerados os representantes dos AdvPs modais. Como conseqüência, propomos que uma análise sintática de AdvPs deveria valer-se apenas de critérios sintáticos, sem a necessidade de recorrer a uma análise semântica. Palavras-chave. Advérbios aspectuais habituais, advérbios modalizadores, teoria dos especificadores funcionais, sintaxe adverbial. 1. Introdução* Teorias de sintaxe adverbial diferem radicalmente no modo como entendem o papel da semântica (se houver) nas questões de ordenação, escopo, e interpretação do AdvP. Duas teorias de sintaxe adverbial têm-se destacado nos últimos dez anos: de um lado a proposta da adjunção (com antecedentes em Jackendoff, 1972), que basicamente propõe a adjunção livre de AdvPs a diversas projeções e o emprego de princípios semânticos que restringem a ordenação de AdvPs (ordens não lícitas se devem a anomalias semânticas) (cf., dentre outros, Ernst, 2002, 2004, 2007; Costa, 2004); de outro, a proposta defendida por Cinque (1999; 2004), Alexiadou (1997) – conhecida por location-in-Spec ou proposta dos especificadores funcionais (doravante SFs) –, segundo a qual advérbios ocupam a posição de especificadores de XPs funcionais, licenciados pelos núcleos de tais projeções, com os quais compartilham traços. Em nosso trabalho, assumimos a abordagem teórica defendida em Cinque (1999; 2004), sobre o posicionamento dos AdvPs em Spec – proposta tendencialmente sintática, a priori –, visando a propor que advérbios (advs, daqui por diante) que ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 203-212, jan.-abr. 2008 203 indicam aspecto habitual do tipo de normalmente e geralmente, em português brasileiro (doravante PB), e normalmente, solitamente, generalmente, di solito, em italiano (doravante IT), reconhecidos pela literatura lingüística como advs aspectuais (Cinque, 1999; Alexiadou, 1997; Lonzi, 1991; Quirk et al., 1972; Ernst, 2007; Ilari et al., 1990; Ilari, 1992; Ilari & Basso, s.d.; Castilho, 1993; Chierchia, 1995) e quantificadores (Chierchia, 1995; Lewis, 1975; Ilari e Basso, s.d.; Castilho, 1993; Cinque, 1999), devem também ser considerados advs modalizadores (cf. seção 3), por tornarem a proposição indeterminada em relação a seu estatuto factual (definição de modalização proposta em Narrog (2005)). À essa proposta central agrega-se outra: o trabalho visa também a contribuir com o debate ‘sintaxe x semântica adverbial’, no sentido de fornecer evidências de que uma análise tendencialmente sintática (que assuma a proposta da alocação dos advs em Spec) é a mais adequada para uma análise de questões de escopo, posicionamento e interpretação de AdvPs (cf. seção (4)). Propomos também uma ‘reinterpretação’ da proposta de Cinque no que diz respeito ao aproveitamento de AdvPs altos na zona-direita da sentença (cf. (2.1.)). 2. Fundamentação Teórica Para comprovar empiricamente sua proposta sobre os SFs, Cinque compara a ordem e a natureza dos morfemas funcionais livres e de afixos (que correspondem aos X0s das projeções funcionais por ele propostas) com a ordem e a natureza das diferentes classes de AdvPs na oração. Há uma relação de correspondência (um a um) entre o AdvP e o X0 do XP do qual o AdvP é Spec: segundo Cinque (1999, p. v), “[...] diferentes classes de AdvPs entram em uma relação transparente Spec/X0 com diferentes núcleos funcionais da oração [...]”. Cinque está, pois, a sugerir que os advs são uma manifestação clara das diferentes projeções funcionais, no sentido de que são os Specs desses XPs. O autor (cf. 1999, p. 3-4) apresenta alguns pontos que aparentemente poderiam tornar a sua hipótese sobre os SFs falseável. Trata-se de casos em que os AdvPs aparecem em mais de uma ordem numa mesma língua ou em ordens diferentes em línguas diferentes. Tais argumentos poderiam ser tomados pelos adeptos de propostas de adjunção de AdvPs para argumentar contra a teoria de Cinque. No entanto, Cinque oferece razões para o porquê de se considerar tais casos apenas como contra-exemplos aparentes à existência de uma hierarquia única e universal de AdvPs. Os seis pontos contra location-in-Spec e hierarquia universal são: i) Quando um AdvP modifica diretamente um outro AdvP, posicionando-se no Spec deste; ii) Quando uma porção mais baixa da oração (que contém o AdvP) é alçada, por razões de Foco, por sobre um AdvP alto; iii) Quando um AdvP é wh-movido por sobre outro; iv) Quando um mesmo AdvP pode ser gerado em duas posições diferentes na oração (sendo uma posição à esquerda e outra à direita de um outro AdvP); v) Quando um AdvP focalizador “não inerente” do tipo de probabilmente (‘provavelmente’) é aproveitado como adv focalizador, do tipo de only (‘só’ ou simply ‘simplesmente’) – nesse caso, o AdvP pode assumir diferentes posições e diferentes escopos na sentença –; vi) Quando um AdvP é usado parenteticamente, com entoação diversa da da sentença. Esses seis casos não afetam a validade universal da hierarquia de projeções funcionais da oração, nem mesmo a ordenação rigidamente fixa dos AdvPs proposta por Cinque. Essa ordenação rígida de AdvPs pareados com os núcleos funcionais à direita, bem como a motivação para a hierarquia universal de projeções funcionais, é 204 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 203-212, jan.-abr. 2008 determinada primitivamente: a hierarquia é um construto do sistema computacional da UG, apenas indiretamente relacionada, portanto, a propriedades lógicas ou semânticas. 2.1. Posições para AdvPs: reinterpretando Cinque (1999; 2004) Quando se fala em interface sintaxe/semântica na questão da ordenação de advs, uma das primeiras questões que se levanta tem a ver com o papel de princípios semânticos na ordenação dos AdvPs (se tais princípios seriam ou não cruciais para a relação posição/interpretação do AdvP). Em Cinque (1999), propõe-se que os AdvPs são licenciados numa relação do tipo spec/head agreement, e são rigidamente ordenados pela UG. Postula-se, em Cinque, uma relação um a um entre posição e interpretação (i.e., uma interpretação distinta e específica para cada posição de base). Para cada número de ocorrências n de um dado AdvP com interpretações distintas, haveria um número n de X0 funcionais. Essa relação um para um é crucial para explicar a ordenação rígida, posto que, sem essa relação, outros padrões de ordenação seriam possíveis. Em ocorrências do tipo de (1a-b), em que estamos diante de um mesmo advérbio, em duas posições distintas – com diferentes significados –, entretanto, Cinque entende que o adv seja gerado na posição em que aparece, sendo, portanto, licenciado por diferentes X0 funcionais. A diferença não está no significado lexical do adv, mas no licenciamento do X0. Segundo Cinque (1999, p. 26), em (1), p.ex., o adv alto, à esquerda, em (a), quantifica sobre o evento; em (b), sobre o processo: (1) a. b. Texans often drink beer. (Os texanos freqûentemente bebem cerveja) Texans drink beer often. (Cinque, 1999, p. 26) Haveria uma posição alta para o AdvP, na zona esquerda da sentença, em que o item atuaria como adv de sentença (observação válida não apenas para os quantificadores, mas para todos os AdvPs altos de Cinque). No espaço à direita de VP, haveria n posições quantas fossem necessárias para dar conta das diferentes interpretações que, segundo Cinque, seriam disponíveis a um mesmo AdvP (enquanto item lexical). Em (2a) o adv à esquerda atua como sentencial, tendo escopo sobre o evento; o adv à direita (em (2b)) tem escopo sobre o processo e modifica o constituinte à sua direita. (2) a. b. Habituellement ils regardent fréquemment la télé. Fréquemment ils ont regardé habituellment la télé. (cf. Cinque, 2004) A razão para a pertinência de se propor duas posições distintas para o AdvP decorre do fato de ambas as posições poderem ser preenchidas pelo mesmo item lexical: (3) (4) Geralmente os brasileiros bebem caipirinha geralmente. Di solito i brasiliani bevono generalmente la capirigna. Aqui propõe-se, entretanto, uma intepretação mais parcimônica; um pouco distinta da de Cinque. Tomando por base os dados acima (1-4) e as ocorrências (5-6), a seguir, (5) (6) Freqüentemente, os alunos de Sintaxe se reúnem geralmente de manhã. Geralmente, os homens primitivos caçavam normalmente de manhã, em grupos de seis ou sete caçadores geralmente. sugerimos que AdvPs altos na posição em que são gerados na base, i.e., na zona esquerda da sentença (até o espaço de vP), apresentam a interpretação default (de AdvPs sentenciais), no sentido de serem licenciados pelo núcleo de mesma natureza (realizado ou não foneticamente). Nesse ponto, nossa análise é semelhante a de Cinque: diferentes posicionamentos na zona esquerda da sentença seriam explicados em virtude do movimento de constituintes sentenciais por sobre o AdvP. Para os casos em que o adv ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 203-212, jan.-abr. 2008 205 (primitivamente) alto se aloca na zona direita da sentença, i.e., no espaço de VP, zona ocupada por advs de VP (AdvPs baixos), propomos (contra Cinque, 1999) que não haveria um núcleo licenciador para o AdvP, por diversas razões – uma delas, bastante forte, que questiona inclusive a proposta de Cinque (1999), é a ausência de evidências empíricas para se postular núcleos distintos à direita de V, à medida que se admite AdvPs de mesma natureza nessas posições (cf. (6), acima) –. Nesses casos, o que na realidade ocorre é o reaproveitamento do AdvP como (adv) focalizador, na zona direita da sentença, atuando como uma espécie de adv de constituinte (no sentido de Quirk et al., 1972). Evidência para a natureza focalizadora desses itens à direita, procede das paráfrases a seguir, que, na esteira de Quirk et al. (1972), apresentam um focalizador dentro de uma oração focal, focalizando o item por ele escopado na oração original: (3a) (5a) (6a) É geralmente a caipirinha que os brasileiros geralmente bebem. É geralmente de manhã que freqüentemente os alunos de Sintaxe se reúnem. É normalmente de manhã que geralmente os homens primitivos caçavam em grupos de seis ou sete caçadores geralmente./ É geralmente em grupo de seis ou sete caçadores que os homens primitivos geralmente caçavam normalmente de manhã. Qual seria, portanto, a razão de se apelar a uma leitura focalizadora do AdvP alocado à direita na sentença, em termos de economia explanatória? A resposta para esse fato leva em consideração, parcialmente, o trabalho do próprio Cinque (1999). Já no primeiro capítulo, Cinque (1999) apresenta casos em que um adv alto pode ser reaproveitado como adv de consitituinte. Um desses é o uso do AdvP alto como focalizador não inerente: segundo o próprio Cinque, nesses usos, o AdvP pode assumir diferentes escopos – e, conseqüentemente, diferentes posições – na sentença. Pensandose em termos de aproveitamento focalizador do AdvP alto – em posições mais baixas –, seria possível eliminar um dos referidos “seis casos de aparente ruptura da hierarquia universal”, a alínea (iv), acima mencionada: “Quando um mesmo AdvP pode ser gerado em duas posições diferentes na oração (sendo uma posição à esquerda e outra à direita de um outro AdvP)”. A motivação para essa nossa proposta procede da interpretação de dados semelhantes aos anteriores: em nosso trabalho propõe-se que advs altos (sejam eles aspectuais ou não) têm uma ‘zona de escopo’ que é a sentença, donde deriva-se o rótulo AdvPs sentenciais; não seria necessário propor que o AdvP teria duas zonas onde seria gerado, como sugere Cinque, uma nas imediações do Sujeito e outra mais baixa, próxima de V e de seus complementos. O que Cinque postula dá conta de dados como (1a,b), acima. Todavia, para casos do tipo de (5-6), dever-se-ia apelar à alínea (iv) – aproveitamento do AdvP alto como focalizador –, para justificar o posicionamento do AdvP à direita de V, em posições onde não haveria razão empírica para se postular a pertinência de um X0 licenciador. Assumindo-se a recursividade da gramática, é mais atraente – já pela sua natureza parcimônica – assumir a nossa proposta, que dá conta dos casos (1-6) elegantemente em termos de aproveitamento do AdvP como focalizador. O debate sintaxe-semântica adverbial, iniciado sobretudo na década de 90, estendese até nossos dias com publicações recentes (cf. Cinque; 2004; Costa, 2004; Ernst, 2004, 2007). Questões comuns de ambos os lados (teóricos dos SFs e teóricos da adjunção) são pauta freqüente nos trabalhos publicados: como uma teoria trataria de questões como escopo semântico, conteúdo semântico de um AdvP? Como a informação semântica relevante teria um efeito sobre a ordenação linear de AdvPs? Para Ernst (2007, p. 1014), as teorias de sintaxe têm à disposição três caminhos para explicarem o modo como as informações semânticas relevantes são codificadas: (a) a entrada lexical do adv; (b) algum elemento local associado na sentença (p. ex., um 206 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 203-212, jan.-abr. 2008 núcleo licenciador); (c) regras gerais (não locais). Nenhuma teoria sintática ignoraria a validade de (a), ao explicar o modo como as informações semânticas relevantes são codificadas. (b) é a saída encontrada pelos teóricos dos SFs, cuja teoria postula um licenciamento local do tipo spec/head agreement: cada adv, em Spec, entraria em uma relação de licenciamento com o X0 funcional da mesma natureza. (c) é utilizado por teorias de adjunção que se valhem apenas de regras semânticas gerais para explicar o modo como a sintaxe codifica a informação relevante. A teoria dos SFs dispensa (c), naturalmente; a do escopo semântico dispensa (b). Uma vez que em nosso trabalho utilizamos a teoria dos SFs, é natural que, seguindo Cinque (1999; 2004), vamos assumir que a informação semântica relevante se dá numa configuração de concordância spec/head. Assumimos, portanto, (b). (a) também é assumido pela proposta de Cinque, e, conseqüentemente, pela nossa. Diferentemente dos trabalhos dos pesquisadores do escopo semântico, não assumimos (c), mesmo nos casos em que um adv alto é reaproveitado em posições baixas como focalizador. Esses casos não afetam a validade universal da hierarquia funcional, motivo por que não há necessidade de se recorrer – como recorre Ernst em seus trabalhos (2007, p.ex.) – a regras de escopo semântico para explicar a ordenação de AdvPs à direita de V em relação a outros AdvPs. Estando à direita de V, ou seja, em posições que a UG disponibiliza a advs baixos (“de constituinte”), o adv alto (reaproveitado como focalizador) não é licenciado por um núcleo funcional. Esse é o ponto de vista que propusemos e assumimos em nosso trabalho, assunção que difere da de Cinque (1999; 2004), segundo o qual o AdvP à direita de VP seria licenciado por um núcleo funcional de mesma natureza (cf. discussão acima). A nossa proposta, entretanto, (para os AdvPs altos reaproveitados como focalizadores à direita de V), assume apenas (a) – a entrada lexical do advérbio – para explicar a sua informação semântica relevante. Dito deste modo, abrimos mão de (b,c) para os casos em que um adv alto se aloca à direita de V. A legitimidade de nossa proposta pode ser testada sintaticamente, já que advs altos reaproveitados como baixos parecem não obedecer a regras de ordenação: (7) Os homens primitivos caçavam freqüentemente de manhã, provavelmente em grupos de seis ou sete caçadores, normalmente vestidos com pele de animais. Assumindo-se Cinque, é sabido que provavelmente > normalmente > frequentemente.2 Os focalizadores à esquerda de VP, em (7) não respeitam essa ordenação, não estando sujeitos, portanto, a (b,c). Não estando os AdvPs, nessa configuração, sujeitos a (b), a nossa proposta apresenta-se como mais econômica do que a de Cinque (1999, 2004), por evitar (por falta de evidências da contraparte nuclear) a multiplicação de XPs funcionais hospedando Specs adverbiais (na zona de AdvPs baixos). Não assumindo (c) para os focalizadores às órbitas do predicado, lançamos mão de uma série de princípios semânticos para licenciar a ordenação de AdvPs. Tomamos, pois, as sentenças de (1-7), acima, como evidência para a nossa proposta. À esquerda de V, como AdvP alto, o item obedece a (a) – a sua entrada lexical – e (b) – concordância spec/head –. À direita de V, um AdvP alto, reaproveitado como focalizador, dispensa (b) e (c): leva-se em conta apenas o significado do adv, i.e., a sua entrada lexical. Este fato leva-nos a questionar, inclusive, se focalizadores de natureza adverbial seriam, de fato, AdvPs, pois eles não seguem a ordenação rígida da hierarquia funcional (cf. sentenças acima). A nossa análise dispensa (c), como também o faz a análise de Cinque (1999), quer esteja o adv alocado à esquerda de V, na zona dos advs de sentença, quer esteja alocado à sua direita, posições em que atua como adv de constituinte. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 203-212, jan.-abr. 2008 207 3. Advérbios aspectuais habituais: mais uma subclasse de modalizadores Bellert (1977) seria indubitavelmente um dos trabalhos mais citados na literatura lingüística sobre advs sentenciais. Dentro do grupo por ela denominado – tomando como base o trabalho de Jackendoff (1972) – de “advs sentenciais”, distingue-se o subgrupo dos modais, cujos representantes seriam itens do tipo de probably, certainly, surely, evidently, por ela considerados predicados a respeito dos quais o argumento é a verdade da proposição expressa pela sentença (não o fato, evento ou estado de coisas descrito pela sentença em questão) (Bellert, 1977, p. 343). Os aspectuais habituais estariam excluídos do grupo dos modais no trabalho de Bellert e em trabalhos seguintes – inclusive Cinque (1999) –, que tomaram a análise de Bellert por base. Em termos de literatura sobre AdvPs, nenhum dos trabalhos consultados – que constam em nossa bibliografia – tratam do efeito modalizador dos aspectuais habituais. Os advs que indicam aspecto habitual apenas são mencionados por essa sua função prototípica e por um valor agregado de quantificador (cf. Lewis, 1975; Ilari & Basso, s.d.; Castilho, 1993; Chierchia, 1995). Normalmente, em uma sentença do tipo de: (8) Normalmente os brasileiros são espertos. se fosse tratado por um dos autores mencionados nas referências, provavelmente seria classificado como um adv aspectualizador-quantificador (cf. paráfrase (8b), a seguir, em que o AdvP quantifica sobre um estado de coisas): (8b) Na maioria das vezes, os brasileiros são espertos. Mas AdvPs de aspecto habitual não desenvolvem apenas essas funções. Se a nossa argumentação estiver correta, os testes a seguir apresentam razões fidedignas e pertinentes para o porquê de incluí-los no grupo dos modalizadores. Uma das principais evidências de que dispomos para a consideração desses itens como adverbiais modalizadores vem do fato de os habituais não poderem co-ocorrer com outros AdvPs tratados como modalizadores pela literatura do assunto, a saber, os epistêmicos (provavelmente), irrealis (talvez) e aléticos de possibilidade (possivelmente), que se caracterizam por expressarem um descomprometimento/não engajamento do falante em relação ao valor de verdade por ele veiculado no conteúdo proposicional. O (des)comprometimento do falante em relação ao que expressa no conteúdo proposicional – que assumimos como sendo um traço que AdvPs de natureza epistêmica, irrealis e alética de possibilidade compartilham (se [ engajamento]) – é uma das extensões da modalização epistêmica (Dall’Aglio-Hattnher, 1996: 171). Enunciados em que a modalização epistêmica se faz presente podem ser marcados positiva ou negativamente em relação ao traço [engajamento]. Nos casos em que o falante apresenta o estado de coisas como verdadeiro, dizemos que o enunciado é marcado positivamente no que diz respeito a esse traço [engajamento]; enunciados em que o falante apresenta dúvidas em relação ao que diz, marcam o enunciado negativamente em relação ao traço. Este traço nos interessa ao estudar os AdvPs normalmente e geralmente em PB, normalmente, solitamente, generalmente, em IT, porquanto, em consonância com o que mostraremos a seguir, esses AdvPs, por compartilharem esse traço ([- engajamento]) com AdvPs do tipo de provavelmente (AdvP Modalizador Epistêmico), talvez (AdvP Mod. Irrealis) e possivelmente (Mod. alética de possibilidade), não podem co-ocorrer com esses advs, tradicionalmente 208 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 203-212, jan.-abr. 2008 arrolados no paradigma dos modalizadores. Em Cinque (1999), cada um desses AdvPs apresenta um traço característico, o que justifica, com os testes sintáticos, a pertinência de mantê-los em Specs de XPs distintos. No entanto, o fato de esses AdvPs não poderem co-ocorrer entre si, mesmo estando em XPs distintos, faz-nos crer que essa coocorrência não é possível, em virtude de um traço comum ([-engajamento], para opor ao traço [- comprometimento], dos epistêmicos de Cinque (1999)) por eles compartilhado. A explicação que temos para a agramaticalidade das ocorrências a seguir acerta a natureza modalizadora dos AdvPs mencionados: AdvPs habituais, AdvPs epistêmicos, AdvPs irrealis e AdvPs aléticos de possibilidade compartilham o traço [- engajamento], inerente a AdvPs modalizadores, o que faz com que um reaja à presença de outro:3 (9) (10) (11) (12) (13) a. b. a. b. a. b. a. b. a. b. (14) a. b. * Probabilmente i brasiliani forse sono buoni giocatori. * Provavelmente os brasileiros talvez são/sejam bons jogadores. * Probabilmente i brasiliani possibilmente sono buoni giocatori. * Provavelmente os brasileiros possivelmente são bons jogadores. * Forse i brasiliani possibilmente sono buoni giocatori. * Talvez os brasileiros possivelmente são/sejam bons jogadores. * Possibilmente i brasiliani forse sono buoni giocatori. * Possivelmente os brasileiros talvez sejam bons jogadores. * Probabilmente/*forse/*possibilmente i brasiliani normalmente/di solito/solitamente sono buoni giocatori. * Provavelmente/*talvez/*possívelmente os brasileiros geralmente/normalmente são bons jogadores. *Normalmente/di solito i brasiliani probabilmente/forse/possibilmente sono buoni giocatori. * Normalmente/geralmente os brasileiros provavelmente/talvez/possivelmente são bons jogadores. (9-14), acima, apresentam, cada uma, dois AdvPs que compartilham o traço [engajamento], motivo por que reagem entre si. Em (9), p.ex., temos um epistêmico (probabilmente, provavelmente) co-ocorrendo com um irrealis (forse, talvez); em (10), um epistêmico e um alético de possibilidade. E assim por diante. (11) apresenta respectivamente um epistêmico, probabilmente/provavelmente, um irrealis forse/talvez e um alético de possibilidade, possibilmente/possivelmente, que reagem à presença de um AdvP aspecto habitual. De acordo com os dados (9-11), AdvPs dubitativos não podem co-ocorrer entre si pelo fato de compartilharem o traço [- engajamento]. Os AdvPs das sentenças (9-11) são reconhecidamente modalizadores nos trabalhos da literatura (cf. Bellert, 1977; Kato & Castilho, 1991; Castilho & Moraes de Castilho, 2002; Lonzi, 1991; Cinque, 1999). Seguindo a definição de Narrog (2005), esses são os advs verdadeiramente modalizadores. Nesse sentido, modalizadores [- engajamento] não podem co-ocorrer entre si. Se os AdvPs (9-12) são modalizadores [comprometimento], reagindo um à presença de outro, podemos estender a mesma observação aos dados (13 e 14), que envolvem epistêmicos, irrealis, aléticos de possibilidade e habituais. AdvPs habituais, são, portanto, modalizadores: não podem coocorrer com AdvPs (modalizadores) que compartilham o traço [- engajamento]. Sob a definição de Narrog (2005), esses AdvPs também podem ser considerados modalizadores, por tornarem a proposição indefinida em relação a seu estatuto factual. 4 Poder-se-ia argumentar contra a validade sintática dessas nossas observações, pelo fato de a modalidade ser mais bem descrita como uma categoria semântica (cf. Narrog, 2005). Entretanto, assume-se aqui que o efeito modalizador desses AdvPs tem validade sintática – e, na próxima seção, vamos fornecer razões empíricas para o fato –. Nossa análise está quites com a proposta da hierarquia universal de Cinque (1999, 2004), por ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 203-212, jan.-abr. 2008 209 respeitar a ordenação de AdvPs ali proposta. Se Cinque (1999) assume que a natureza da hierarquia é primitivamente sintática, tendo o seu correlato semântico como uma conseqüência, assumir Cinque (1999) em nosso trabalho e propor uma análise que esteja quites com essa proposta nos dá a garantia de que o nosso problema pode também ser explicado em termos sintáticos. E as ocorrências acima validam tais observações. Diante de ocorrências como a seguinte (15) Probabilmente gli uomini primitivi cacciavano normalmente di mattina. (Guglielmo Cinque, com. pessoal) (Provavelmente os homens primitivos caçavam normalmente de manhã) segundo a qual probabilmente, co-ocorre com um AdvP aspecto habitual, normalmente, poder-se-ia questionar (como nos fez G. Cinque, em com. pessoal) a validade de nossa hipótese sobre o traço [- engajamento] que legitimaria a interpretação modalizadora de AdvPs aspectuais habituais, por reagirem à presença de AdvPs modalizadores que compartilham o mesmo traço. Entretanto, sugerimos que normalmente, que precede o PP di mattina, em (15), aí se aloca justamente para focalizar esse PP. Devemos tratar de normalmente, em (15) como um focalizador, cf. a paráfrase a seguir: (15a) Istoricamente non sappiamo perfettamente se cacciavano la mattina o la sera. (Não sabemos, historicamente, se caçavam de manhã ou de noite). Estamos, portanto, em (15), diante de um caso de foco contrastivo. Em Cinque (1999), o aproveitamento de AdvPs como focalizadores é tratado como um caso de aparente restrição à hierarquia universal. Nesse sentido, apoiando-nos no próprio Cinque (no caso, Cinque, 1999, 2004) podemos assegurar que a sentença (15) não invalida as nossas observações. Basta confrontá-la com (15b): (15b) ??? Probabilmente gli uomini primitivi normalmente cacciavano di mattino.5 (Provavelmente os homens primitivos normalmente caçavam de manhã) e com (15a), acima. (16), a seguir, também é agramatical: normalmente/di solito precede o VP e não estamos diante de um caso de focalização. (16) *Probabilmente Silvia di solito/normalmente giocava a pallavolo con le sue amiche. (Provavelmente a Silvia normalmente jogava vôlei com suas amigas.) À parte esse aparente contra-exemplo, a hipótese do traço [- engajamento] dá conta de explicar por que os aspectuais habituais também são modalizadores. Além disso, sob a definição de Narrog (2005), esses AdvPs podem ser considerados modalizadores, já que a sua presença na oração torna o conteúdo proposicional indeterminado em relação a seu estatuto factual. 4. A natureza sintática do valor modal dos AdvPs aspectuais habituais A motivação para a hierarquia universal, rigidamente fixa, de projeções funcionais é determinada primitivamente: a hierarquia é um construto do sistema computacional da UG, apenas indiretamente relacionada, portanto, a propriedades lógicas ou semânticas. Há várias razões apresentadas em Cinque (1999, p. 134 et seq.; 2004, p. 685-689) para a primazia da análise sintática em relação à semântica no que diz respeito à ordenação de AdvPs e às relações de escopo entre eles. A principal delas é que a ordem relativa dos elementos funcionais não pode ser determinada por princípios lógico-semânticos (Cinque, 1999, seção 6.3; 2004, p. 685, nota 5). Segundo a hierarquia universal, AdvP Mod Evidential > AdvP Mod Epistemic (cf. (17) e (18)): (17) 210 a. b. Allegedly John will probably give up. * Probably John will allegedly give up. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 203-212, jan.-abr. 2008 (18) a. b. (?) Evidentemente Gianni ha probabilmente lasciato l’albergo. * Probabilmente Gianni ha evidentemente lasciato l’albergo. (Cinque, 1999, p. 135) Se a motivação para a rigidez e universalidade da hierarquia fosse devida a princípios lógico-semânticos, dever-se-ia esperar a agramaticalidade de (19), a seguir, em que um predicado evidencial está sob o escopo de um predicado epistêmico e a agramaticalidade de (20), seguinte, em que um predicado epistêmico precede um avaliativo (um AdvP epistêmico não pode preceder um AdvP avaliativo (cf. 20a)): (19) (20) (20a) È probabile che sia evidente che lui è il colpevole (Cinque, 1999, p. 135). (É provável que seja evidente que ele seja o culpado) È probabile che sia per me uma sfortuna che Gianni è stato licenziato. * Probabilmente Gianni è sfortunatamente stato licenziato. A gramaticalidade de (19) justifica a natureza sintática da hierarquia de projeções funcionais: se a motivação para as relações de escopo da hierarquia fosse devida a princípios puramente semânticos, (19) deveria ser agramatical, à semelhança de (18b), que envolve um modalizador epistêmico tomando um evidencial sob o seu escopo; igualmente dever-se-ia esperar a agramaticalidade de (20), por (20a) ser inaceitável. A hipótese do traço [- engajamento] é igualmente legitimada por princípios sintáticos, o que sugere que os AdvPs de aspecto habitual podem ser tratados como modalizadores na sintaxe. Segundo os dados (21-22), a seguir, um AdvP epistêmico não pode co-ocorrer com um AdvP aspecto habitual em nenhuma ordem (* AdvP epistêmico > AdvP habitual; * AdvP habitual > AdvP epistêmico). Se a motivação para essa agramaticalidade fosse lógico-semântica (não primitivamente sintática, portanto), esperar-se-ia que um predicado epistêmico jamais co-ocorreria com um predicado habitual, o que não é verdade (cf. (21a) e (22a), a seguir), o que ratifica a natureza sintática, a priori, da hipótese do traço [- engajamento]: (21) (22) (21a) (22a) * Provavelmente os ladrões normalmente vão entrar no banco./* Normalmente os ladrões provavelmente vão entrar no banco... * Probabilmente i futuri papi solitamente saranno sudamericani./ *Solitamente i futuri papi probabilmente saranno sudamericani. É provável que vai ser normal a entrada dos ladrões no banco./É normal que vai ser provável a entrada dos ladrões no banco... È possibile che sia normale che Tiago giochi a pallavolo con i suoi amici./È normale che sia possibile che Tiago giochi... A conclusão de Cinque (1999) para a ordenação sintática dos núcleos funcionais e para a natureza da hierarquia funcional, pode, portanto, conforme demonstramos acima, ser estendida à hipótese do traço [- engajamento]. Nesse sentido, “se a ordem sintática das projecções funcionais não pode ser reduzida a ‘relações de escopo semântico’ entre os AdvPs” (cf. Cinque, 1999: 136), conseqüentemente a hipótese do traço [engajamento] também encontra uma motivação sintática, a priori. 5. Considerações finais Propusemos que advs habituais constituem um subgrupo de modalizadores, por compartilharem com os ‘modalizadores tradicionais’ o traço [- engajamento], motivo por que não podem co-ocorrer com esses AdvPs. Como conseqüência, mostramos que uma análise sintática de AdvPs deveria valer-se apenas de critérios sintáticos, sem a necessidade de se recorrer a uma análise semântica. Assumimos a proposta dos SFs de Cinque (1999), alterando, entretanto, a sua proposta para AdvPs altos à direita de VP. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 203-212, jan.-abr. 2008 211 Notas * Agradeço à prof.a Dra. Sonia Lazzarini Cyrino pela orientação e discussão das propostas. Cinque fornece a seguinte hierarquia de ordenação de adverbiais (versão adaptada): francamente > felizmente > evidentemente > provavelmente > [...] talvez > necessariamente > possivelmente > normalmente > novamente > freqüentemente > intencionalmente > [...] caracteristicamente(?) > completamente > tudo > bem > rápido > de novo > freqüentemente > completamente. (cf., 1999, p. 106) 3 Omitimos a tradução das ocorrências em (a), pelo fato de as ocorrências em (b.) corresponderem a uma versão para o PB, já com os julgamentos de gramaticalidade. 4 Apresentamos a Heiko Narrog a nossa proposta de considerar os AdvPs habituais como modalizadores – tomando como base a definição de modalidade deste autor (cf. Narrog, 2005) –. Narrog (com. pessoal) concorda com a nossa proposta de considerar esses itens como modais, tendo como base sua definição de modalidade. Segundo Narrog, os habituais estão muito próximos da modalidade epistêmica. 5 Pedimos o julgamento dessa sentença a Guglielmo Cinque, que a considerou bastante degradada e concordou com a leitura focalizadora de normalmente. 2 Referências bibliográficas ALEXIADOU, A. Adverb Placement: A Case Study in Antisymmetric Syntax. Amsterdam: John Benjamins, 1997. BELLERT, I. On Semantic and Distributional Properties of Sentential Adverbs. Linguistic Inquiry, vol.8, n.2 (Spring), 1977, p. 337-351. CASTILHO, A. A predicação adverbial no português falado. Tese (Livre-Docência) – FFLCH, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1993. CHIERCHIA, G. Individual-Level Predicates as Inherent Generics. In: CARLSON, G.; PELLETIER, F. (Ed.) The Generic Book. Chicago: Chicago UP, 1995. CINQUE, G. Adverbs and Functional Heads: A Cross-Linguistic Perspective. New York, Oxford: Oxford University Press, 1999. _____. Issues in Adverbial Syntax. Lingua 114, 2004, p. 683-710. COSTA, J. A Multifactorial Approach to Adverb Placement: Assumptions, Facts, and Problems. Lingua, 114:6 (June), 2004, p. 711-53 DALL'AGLIO-HATTNHER M. M Uma análise funcional da modalidade epistêmica. Alfa, vol. 40, 1996, p. 151-173. ERNST, T. The syntax of adjuncts. Cambridge: Cambridge UP, 2002. ____. Principles of adverbial distribution in the lower clause. Lingua, 114:6, 2004. ____. On the role of semantics in a theory of adverb syntax. Língua: 117 (June), 2007. ILARI, R. Sobre os advérbios apectualizadores. In: ___ (Org.) Gramática do português falado. vol.2: Níveis de análise lingüística. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992. ILARI, R. et al. Considerações sobre a posição dos advérbios. In: CASTILHO, A. (Org.). Gramática do port. falado. Vol.1. Campinas: Ed. Unicamp, 1990, p. 63-141. ILARI, R.; BASSO, R. Semântica e representações do sentido. Campinas: Unicamp.(s.d.). JACKENDOFF, R. Semantic interpretation in Generative Grammar. Cambridge: MIT Press, 1972. KATO, M.; CASTILHO, A. Advérbios modalizadores: um novo núcleo predicador? D.E.L.T.A. 7 (1), 1991, p. 409-424. LEWIS, D. Adverbs of Quantification. In KEENAN, E. (Ed.) Formal Semantics of Natural Language. Cambridge: Cambridge University Press, 1975, p. 3–15. LONZI, L. Il sintagma avverbiale. In: RENZI, L.; SALVI, G. (Org.) Grande grammatica italiana di consultazione. v. II. Bologna: Il Mulino, 1991. NARROG, H. On defining modality again. Language Sciences,27/2, 2005, p. 165-192. QUIRK, R. et al. A grammar of the contemporary english. London: Longman, 1972. 212 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 203-212, jan.-abr. 2008 A condicionali t entativo áti : o Flávia Bezerra de Meneze Hirata-Vale1 1 Departamento de Letras – Universidade Federal de São Carlos flaviavale@ufscar.br Abstract. Conditionality ay  exeed in itten Bazilian Pte  diffeent e, ide the adve al conditional cle ked  the c  tion if  iata-Vale, # Patactic ct ti – juxtaposed and disjunctive and aditive coordinate clauses – constitute one of these means. In this paper, the use of paratactic constructions with a conditional value is analysed in five different kinds of texts: theatre plays, romance novels, articles, speeches and instruction manuals. It is argued that these constructions have an argumentative use when they expresses a conditional meaning. Key. condicionality; paratactic constructions, argumentative use. Resum A condicionalidade pode ser expressa no português escrito do Brasil por meio de diferentes expedientes além da oração adverbial condicional marcada pela conjunção se (Hirata-Vale, 2005). As construções paratáticas – orações justapostas, e orações coordenadas disjuntivas e aditivas – constituem um desses expedientes. Neste trabalho, analisa-se o uso das construções paratáticas com valor condicional em cinco tipos de textos: peças de teatro, romances, artigos de opinião, discursos e manuais técnicos. Acredita-se que essas construções têm um uso argumentativo quando expressam o valor condicional. Palavras-chave. condicionalidade; construções paratáticas; uso argumentativo. 1. Introd! Poucos são os trabalhos, para o português do Brasil que tratam da relação semântico-pragmática entre construções condicionais e outros tipos de construções complexas que, em determinados contextos discursivos, podem veicular o valor condicional. Destacam-se os trabalhos de Neves e Braga (1999) e de Sousa (2003), que descrevem a relação entre as orações condicionais e as temporais. No que diz respeito à expressão do valor condicional por meio das orações coordenadas aditivas e disjuntivas, e das orações justapostas, as análises são ainda mais escassas, o que se constatou em Hirata-Vale (2005). Adota-se, neste trabalho, uma perspectiva em relação ao processo de articulação de orações diferente daquela apresentada nas gramáticas tradicionais, que fazem divisões discretas entre coordenação e subordinação, e estabelece-se a existência de um contínuo, que vai da parataxe à subordinação. Além disso, considera-se esse processo como um fenômeno discursivo. Nesse sentido, pode-se dizer que este trabalho tem uma base funcionalista, e sendo assim, deve certamente trazer ocorrências reais das línguas. As ocorrências que compõem o córpus do trabalho foram encontradas em obras de teatro, em novelas, em ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008 213 romances, em manuais técnicos, em editoriais jornalísticos e em discursos dos últimos cinqüenta anos. No córpus Principal do Laboratório de Estudos Lexicográficos da UNESP – Campus de Araraquara, selecionaram-se as ocorrências das literaturas técnica, oratória, romanesca e dramática. As ocorrências dos textos jornalísticos foram encontradas na Folha de São Paulo, edições de 1994 a 1999. Além disso, foram também consultados os sites da Academia Brasileira de Letras (www.academia.org.br), do Senado Federal (www.senado.gov.br) e da Câmara dos Deputados (www.camara.gov.br) em busca de discursos de acadêmicos, de senadores e de deputados federais, sendo o córpus final composto por duzentos e cinqüenta mil palavras. Em seguida, passa-se a uma breve discussão acerca dos pressupostos teóricos deste trabalho, e logo após, apresenta-se a análise dos dados. 2. F ndamentaç"$ %&órica Para Harris (1986) na classificação das adverbiais há um contínuo, em que não há separações discretas entre as construções. Esse contínuo poderia ser de dois tipos: um primeiro tipo trataria das condicionais com a estrutura 'e ( ent0) 4 que assumem outros valores, como por exemplo, os de concessão (KÖNIG, 1986), de adversidade (SCHWENTER,1999) e de causalidade (DANCYGIER E SWEETSER, 2000). Um outro caminho, o que se adota neste trabalho, considera a ocorrência do sentido condicional em uma estrutura diferente da canônica 'e ( ent0) 4, as construções paratáticas, nas quais se incluem as tradicionalmente chamadas coordenadas aditivas e disjuntivas, e as orações justapostas. Postular esse contínuo pressupõe, obviamente, adotar uma concepção sobre o fenômeno de articulação de orações que é diferente daquela proposta nos chamados estudos tradicionais, em que há uma divisão clara entre subordinação e coordenação. Esse tipo de divisão discreta também pode ser encontrado na explicação formalista de Jackendoff e Culicover (1997) sobre as construções paratáticas. Os autores defendem que nessas construções coexistem estruturas conceitual e sintática distintas, o que acarreta uma subordinação semântica, apesar da coordenação sintática. Essa separação, como se sabe, não se sustenta quando se analisa a língua em situações concretas de uso. Dessa forma, a partir de uma perspectiva funcionalista de descrição de línguas, as orações a que se chama de paratáticas condicionais têm sido objeto de análise em muitos trabalhos (HAIMAN, 1983; FILLENBAUM, 1986; DANCYGIER, 1998; THUMM, 2000; BOOGAART e TRNAVAC, 2004; BOOGAART, 2005). Todos esses trabalhos tentam explicar as razões para a existência da leitura condicional em construções que não têm uma conjunção condicional codificada. O que se espera mostrar é que diferentes fatores lingüísticos e extra-lingüísticos favorecem uma interpretação condicional, e que é possível dizer que existe algum tipo de motivação no sistema lingüístico que a faz surgir. Um primeiro ponto a ser tratado é a existência de um vínculo semântico entre as orações que compõem uma construção paratática, que pode ser considerado como um vínculo causal, o qual, por sua vez, está diretamente relacionado a um outro ponto, o da ordenação das orações na construção paratática. Como se sabe, a ordem de ocorrência da prótase e da apódose é há muito considerada uma das questões definidoras de um complexo condicional. Greenberg (1966, *(+, HAIMAN, 1986) aponta que a ordenação prótase→apódose é um universal lingüístico. Nesse sentido, segundo Haiman 214 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008 (1983, 1986), haveria uma identidade estrutural entre condicionais e paratáticas porque também nas paratáticas há uma ordem linear a ser seguida entre antecedente e conseqüente, ou seja, as orações se estruturam de acordo com a ordem em que ocorrem os eventos. Forma-se nas paratáticas um vínculo causal, o mesmo que se estabelece nas condicionais. Assim como nas construções condicionais canônicas, as orações-prótase das construções paratáticas também desempenham a função de tópico, “dados que constituem a moldura para o discurso seguinte” (HAIMAN, 1978) o que faz com que sejam interpretadas como condicionais. Tanto é assim que Haiman (1983) sugere que as orações-prótase das construções paratáticas condicionais são usadas principalmente como tópicos resumitivos, em que uma frase começa com o final de outra. Thumm (2000) acrescenta que as prótases das construções paratáticas condicionais podem desempenhar função conclusiva, porque são usadas como uma maneira de reformular o que foi dito na frase antecedente. O fato de as orações que compõem uma construção paratática condicional não poderem ser comutadas é um outro ponto de aproximação entre elas e as construções condicionais canônicas. Este fato relaciona-se ao princípio da iconicidade proposto por Haiman (1980) e mencionado por Dancygier (1998), Pezatti (1999) e Camacho (1999), afinal sabe-se que nas condicionais, assim como nas justapostas, nas aditivas e nas disjuntivas, a primeira oração da construção geralmente expressa uma razão para o que é dito na segunda oração. A partir do que foi exposto, pode-se chegar às características definidoras das construções paratáticas condicionais: para receber uma leitura condicional, as orações que compõem uma construção justaposta, ou a uma construção coordenada aditiva ou disjuntiva devem ter, entre si, um tipo de vínculo, a que se pode chamar de causal, que leva, por sua vez, a uma ordenação icônica, que vai da causa para a conseqüência. A ordem de realização das orações é exclusiva, ou seja, não existe a possibilidade de comutação. Em razão dessa ordenação, é possível dizer que a oração-prótase de uma construção paratática condicional funciona como um tópico, e nesse sentido, pode ser usada como uma forma de retomada, de exemplificação ou de contraste. Além disso, as orações justapostas, aditivas e disjuntivas, ao serem usadas para expressar ameaças e promessas (FILLENBAUM, 1986), podem receber uma interpretação condicional. São usadas como estratégias de indução ou de intimidação, por parte do falante, para atingir seus propósitos. Assim, as construções paratáticas condicionais podem ser consideradas como atos de fala que expressam ordens, ameaças e promessas. São também usadas para expressar situações habituais ou genéricas, que podem mesmo se tornar, com o passar do tempo, expressões proverbiais, além de veicularem um conteúdo “pré-concebido”, no sentido de que foi estabelecido pelas convenções sociais. -. /náli1e d21 dad21 No córpus deste trabalho, composto de textos escritos nos últimos 50 anos, foram encontradas 38 ocorrências de construções paratáticas que podem receber uma interpretação condicional. Há 21 casos de construções justapostas condicionais, 13 casos de construções disjuntivas condicionais, e 4 ocorrências de construções aditivas condicionais, que se distribuem pelos tipos de literatura da seguinte maneira: ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008 215 Tabela 1: construções paratáticas condicionais e tipos de literatura D35678ica J93nal:;tica R96ane;ca Técnica Oratória Total Justapostas 13 1 5 2 1 22 Alternativas 3 6 - 4 - 13 Aditivas 3 - 1 - - 4 Total 19/48,7% 7/17,9% 6/15,3% 6/15,3% 1/2,54% 39 Destaca-se na distribuição dos tipos de construção paratática condicional pelas literaturas o fato de que quase metade das construções encontradas ocorreu em textos da literatura dramática. Como se sabe, os textos que compõem a literatura dramática são escritos para representarem a fala dos personagens em peças teatrais e novelas de televisão. Assim, acredita-se que a maior freqüência de ocorrências nesse tipo de literatura decorra do fato de as construções paratáticas condicionais serem freqüentemente usadas para expressar ameaças, ordens, recomendações e promessas, que podem ser consideradas como estratégias comunicativas de que os falantes lançam mão nas situações de interação face a face. Na ocorrência seguinte, que foi encontrada em uma peça de teatro, o falante usa a construção justaposta para expressar um tipo de aviso ou recomendação. Um casal acabava de ver um certo homem, visado pela polícia política, e o marido se esconde para que o homem não o veja. A mulher questiona a atitude do marido e o acusa de ser um comunista. Ele, então, a repreende, e fala que se escondeu porque “se a polícia vê a gente falando com ele é cana na certa”: (1) Al: Ah, não! O marido da gente vira comunista e a gente nem sabe? J: Que ista o que! Al: Então o que é? J: Entende, barrigudinha, entende! A polícia está atrás dele. Polícia política que é pior, tudo americano! Eles vê a gente falando com ele é cana na certa! Al: Já vi que o moleque vai nascê no xadrez! (AS-LD) (1a) Se eles vê a gente falando com ele é cana na certa! A interpretação dessa construção justaposta deve ser condicional porque o falante a usa como uma predição acerca dos eventos que podem vir a acontecer no caso de a polícia perceber algum tipo de relação entre os dois homens. É também evidente que o fato de os falantes estarem frente a frente tem grande importância nas ocorrências em que a construção paratática é usada para fazer uma ameaça, como se pode ver no diálogo seguinte, encontrado em uma novela de televisão: (2) Pilar: Eu já lhe avisei que tô chegando ao fim de minha paciência! Não é possível que não haja meio do senhor se emendar, com os diabos! Não basta toda confusão que já arrumou, continua ciscando por aí na casa das mulheres casadas! Jorge Tadeu: Mas eu sou fotógrafo! Essa é a minha cobertura pra... P: cobertura pra fazer as pesquisas que eu encomendei e não pras suas safadezas! Está há séculos em Resplendor e cadê os resultados? Pois escute bem: eu já lhe dei um prazo. E a ampulheta está correndo! Ou me aparece com resultados concretos ou eu lhe mando embora de Resplendor. Inteiro ou em partes! (PD-LD) (2a) Se não me aparece com resultados concretos eu lhe mando embora de Resplendor. Nessa ocorrência, Pilar reclama do atraso de Jorge Tadeu para fazer a pesquisa que 216 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008 encomendou, e argumenta que ele se dispersa em outras atividades. Pilar dá a Jorge Tadeu um ultimato: “se não aparecer com resultados, ela o manda embora de Resplendor”. Acredita-se que a interpretação condicional dessa ocorrência, e conseqüentemente seu uso como uma estratégia do falante para ameaçar seu ouvinte, se mostra muito mais relevante porque há toda uma situação de interação face a face envolvida. Percebe-se claramente que o falante usa um ato de fala condicional para alcançar determinados efeitos em seu ouvinte, nesse caso, fazer que o ouvinte realize o serviço pelo qual foi pago. Nesse sentido, acredita-se que esse tipo de construção pode ser considerado como característico da linguagem falada, ou dos textos que representam a fala. Há que se ressaltar, entretanto, que não há ocorrências de construção paratática condicional na Literatura Oratória, apesar de esse tipo de literatura também se constituir de textos que são escritos para representar a fala. Imaginava-se que nos discursos políticos seriam encontrados muitos casos de construções paratáticas condicionais que expressam promessas, e nos sermões esperava-se encontrar casos em que essas construções fossem usadas como recomendações, mas isso não ocorreu. Esse fato sugere que, embora discursos e sermões sejam textos escritos para serem proferidos, há nesses textos um maior grau de formalidade, que não se encontra nas interações cotidianas, representadas pelos textos da literatura dramática. Sendo assim, o fato de não se encontrarem essas ocorrências na literatura oratória mostra-se importante no córpus deste trabalho, na medida em que revela um aspecto das construções paratáticas condicionais: seu uso em textos que representam a fala, e que têm um grau mais baixo de formalidade. Os outros tipos de literatura tiveram número de ocorrências quase similar, e nada há que se destacar acerca do uso das construções paratáticas condicionais. Deve-se destacar, ainda, no que diz respeito às construções disjuntivas, o fato de que apenas uma das 13 ocorrências encontradas no córpus não apresenta a estrutura “<=>>><=”. Acredita-se que esse tipo de estrutura, que é comum nos textos jornalísticos, se revela como um importante mecanismo textual, uma vez que o falante, ao usar as construções paratáticas alternativas, vai apresentando argumentos para a defesa de uma determinada questão. Na ocorrência seguinte o jornalista usa construções disjuntivas para mostrar sua opinião acerca das atitudes que FHC deve tomar no Governo: (3) Falastrão, atrapalhado, sem limites, Serjão erra na forma e, vez ou outra, é um problema político para o governo. Mas é a salvação da Pátria para o PSDB nessas horas de disputa de espaço com ACM, PFL e seus aliados, tipo Paulo Maluf. Como agora. É por isso que os tucanos estão preparando a volta de Serjão à cena. Não já, porque ele provocou PMDB, PPB, gregos e troianos e certamente seria um desastre para a aprovação das reformas administrativa e da Previdência, transformadas em caso de vida ou morte. Ou FHC aprova as duas ou vai dar a maior demonstração de fraqueza de seu mandato. (FSP/97) (3a) Se FHC não aprova as duas vai dar a maior demonstração de fraqueza de seu mandato. Na ocorrência, a oração-prótase retoma o informação que é apresentada no período antecedente, e é usada pelo jornalista como um tipo de argumento conclusivo. Para ele, há duas opções para FHC: “se não aprovar as medidas, dá demonstração de fraqueza de seu mandato”. No entanto, o fato de serem apresentadas duas opções, em duas orações diferentes, não leva o ouvinte a entendê-las separadamente, como se o falante estivesse simplesmente enumerando alternativas, mas ele as interpreta como se houvesse um vínculo entre elas, e por isso chega à leitura condicional. Nesse sentido, ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008 217 acredita-se que a interpretação feita pelo ouvinte tem relação com o significado construcional das paratáticas condicionais e não com o seu significado composicional. É o que se pode também comprovar na ocorrência seguinte, que é interpretada como uma construção paratática condicional: (4) A: Não é o que você está fazendo, bem? PM: Fica nas minhas redondezas e você vai ver. É fêmea que parece mato. Eu estou neste morro da Catacumba não tem dois meses e umas seis cabrochas já fizeram ranger as tábuas daquela cama ali. (PM-LD) (4a) Se fic?@ A?B CiAD?B @edondez?B você vai ver. É possível argumentar que essa ocorrência poderia ser interpretada como a simples seqüência de dois eventos, como se houvesse dois atos de fala separados. Nesse caso, a interpretação do ouvinte partiria do significado composicional dessa construção, que é decorrente da adição de uma oração diretiva e outra declarativa, [“fique nas redondezas” + “você verá”]. Na falta da conjunção condicional, que aponta para a interpretação que o falante quer que seu ouvinte faça, para que ocorrências desse tipo sejam interpretadas como condicionais faz-se necessário que se leve em conta seu significado construcional, ou seja, é preciso que se considere a construção como um único ato de fala condicional (AUWERA, 1986), que, nesse caso, pode ser entendido como um ato de fala que expressa uma promessa por meio de uma construção aditiva, que é interpretado como condicional. Outros fatores de natureza pragmática, assim como fatores de ordem sintática e semântica estão envolvidos na expressão do valor condicional nessas construções. No que diz respeito à ordem de ocorrência das orações que compõem uma construção paratática, foram encontradas 36 ocorrências de construções paratáticas em que a oração-prótase precede a oração-apódose, e apenas 3 casos em que a oraçãoapódose precede a oração-prótase. As ocorrências seguintes são casos de anteposição: (5) - Bom, prá encurtá, o advogado ficô com oitenta conto. Pro pobre sobraram cento e vinte. Agora, ocê pode fazê a conta: cento e vinte conto prá vivê e pagá remédio... Num durou nem ano e pouco. Chi! O coitado ficou num desespero. A filha largô dele, foi morá com um garçom!... A mulher, coitada, já estava mesmo que não podia... morreu faz poucos mês... Mas ele foi se acostumando. Hoje tá que nem liga. - É sim; baixô a desgraça, primeira coisa que some é a vergonha! (AS-LD) (5a) Se E?FxG ? HIBJ@aça, primeira coisa que some é a vergonha. (6) G: Me deixa ver seus olhos. D: Pra quê? G: Não posso ver? G: Chorou a noite inteira, não é? D: Tchau. G: Tenho medo. Ou esse amor da Débora acaba em casamento ou acaba em tragédia! AM: Quer dizer: ou acaba em tragédia ou acaba em tragédia! (FEL-LD) (6a) Se esse amor da Débora não acaba em casamento, acaba em tragédia. (7) PM: Aí não tem título sobre batida de polícia em morro, tem? A: Não vejo nada disto, não. PM: Eu não digo? Uns ceguinhos. A gente vem pra zona sul e tem nada. (PM-LD) (7a) Se a gente vem pra zona sul, tem nada. Na ocorrência (5), a personagem conta uma série de acontecimentos pelos quais 218 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008 um homem passou, e como se fizesse um comentário de tudo o que contou, diz que se “baixa a desgraça”, “primeira coisa que some é a vergonha!”. Nesse caso, encontra-se a na oração-prótase uma causa para o evento que se dá na oração-apódose, ou seja, o falante argumenta que sempre que a desgraça chega, some a vergonha. Na ocorrência (6), a construção disjuntiva pode ser interpretada como condicional. Nesses casos em que duas orações estão unidas por duas conjunções KL, a primeira opção, que é apresentada na oração-prótase, parece ser melhor que a que está sendo mencionada na oração-apódose, como se houvesse uma gradação. Nessa ocorrência, o falante argumenta que das duas alternativas apresentadas, sem dúvida, a primeira “o amor acabar em casamento”, é melhor que a segunda alternativa “o amor acabar em tragédia”. Na ocorrência (7) pode-se perceber que existe uma seqüenciação temporal na ordenação das orações que compõem a construção paratática aditiva. A informação apresentada na oração-prótase parece preceder temporalmente a informação que é dada na oração-apódose. O falante afirma que veio para a Zona Sul e depois disso não teve nada, ou seja, acredita depois que ele foi para a Zona Sul nada mais aconteceu com ele. Todas essas ocorrências parecem mostrar que nas construções paratáticas a ordem das orações é iconicamente motivada, porque as orações se ordenam segundo uma seqüência temporal, ou segundo uma relação de causa e efeito, ou por uma relação que vai do melhor para o pior. Essa mesma tendência de ordenação icônica das orações foi encontrada nas condicionais canônicas (HIRATA, 1999), uma vez que nesses casos a oração condicionante tende a preceder a oração condicionada. Assim como nas construções condicionais canônicas, a ordem preferida nas construções paratáticas é a anteposição da oração-prótase à oração-apódose. O fato de as construções paratáticas e as condicionais canônicas terem o mesmo tipo de ordenação de orações faz com que as construções paratáticas sejam passíveis de interpretação condicional. O falante, ao fazer uma escolha pela anteposição da oração-prótase revela seus propósitos comunicativos. Nesse sentido, pode-se dizer que a ordem das orações que compõem uma construção paratática também é pragmaticamente motivada. O falante, ao escolher a ordenação oração-prótase → oração-apódose, confere à oração-prótase a função pragmática de tópico. O exame das ocorrências encontradas no córpus mostra que nas construções paratáticas em que a oração-prótase funciona como tópico, a informação apresentada serve como uma forma de o falante exeMNOificPQ aquilo que foi dito, de QetKMPQ o que foi dito anteriormente, ou de eRtPSTleceQ LM contQPRte com a oração precedente. É o que se pode conferir nas ocorrências seguintes: (8) A: Cruzes! Eu só de pensar fico tonta. Não posso com altura. Sinto um enjôo de morte e se não me agarro caio logo. PM: Tem disso comigo não. Me dê uma cordinha, três lençóis amarrados, uma percha, qualquer escada de pano e eu sou homem para qualquer travessura. (PM-LD) (8a) PM: Tem disso comigo não. [por exemplo] Se Ue deV WUa cXVdinha, tVês lençóis amarrados, uma percha, qualquer escada de pano eu sou homem para qualquer travessura. (9) É sabido e notório que usar cinto de segurança faz bem à saúde e que mandar as crianças à escola faz muito bem até à auto-estima. Apesar disso, todo mundo só começou a usar cinto depois que a lei obrigou. Ou usa, ou lá vem multa. (FSP/97) (9a) Apesar disso, todo mundo só começou a usar cinto depois que a lei obrigou. [ou seja] Se não usa, lá vem multa. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008 219 Na ocorrência (8), o falante tenta mostrar que é valente, que pode descer de um lugar mais alto não importa de que maneira. Ele usa a oração-prótase como tópico porque ela serve para exemplificar como ele pode ser ousado. O falante parece estar argumentando: “comigo não é assim, porque [por exemplo] se me der uma corda, ou três lençóis, ou uma escada de pano, eu faço o que for necessário”. A ocorrência (9) mostra claramente a função de retomada que a oração-prótase desempenha. A jornalista está falando sobre o cinto de segurança e do momento em que seu uso passou a ser obrigatório. A oração-prótase funciona como uma maneira de retomar essa informação usada como um argumento pela jornalista, como se ela estivesse pretendendo dizer a mesma coisa de uma outra forma e por isso retoma a idéia precedente. Em todas as ocorrências analisadas é possível perceber a existência de um vínculo entre as orações que compõem a construção paratática, o mesmo tipo de vínculo que se encontra nas construções condicionais canônicas. Esse fato mostra que a razão de as construções paratáticas poderem ser interpretadas como condicionais se deve, em grande parte, a uma relação de conseqüência que se estabelece entre a oração-prótase e a oração-apódose. A conseqüência, nesses casos, deve ser entendida não apenas em um nível semântico, como se significasse uma relação de causa e efeito, mas também em um nível pragmático, uma vez que se pode apreender entre as orações uma relação de relevância. Além das ameaças, promessas e recomendações, as construções paratáticas condicionais encontradas no córpus expressam situações que podem ser descritas como habituais ou genéricas. Os 27 casos analisados indicam que os falantes expressam uma situação que já é do seu conhecimento. Na ocorrência seguinte, a construção justaposta apresenta-se como um contraste em relação ao que foi dito no período antecedente. Pedro Mico afirma que uma mulher se torna donzela novamente apenas pelo fato de se pendurar em seu braço. Assim podese entender que a situação descrita por Pedro Mico é por ele considerada como habitual, porque sempre que uma mulher está com ele sua reputação fica garantida: (10) Pedro Mico: Olha, mulher que estiver com Pedro Mico ninguém chama disto não. Nem que ela tenha passado em revista todo o Corpo dos Fuzileiros Navais. Nem que tenha sido do Mangue no tempo do cincão. Pendurou no meu braço é moça donzela de novo. (PM-LD) (10a) Se YZ[\]^_] [_ `e] a^aço é moça donzela de novo. A ocorrência (11) também mostra uma situação que o falante parece conhecer bem, por tê-la vivenciado em outras épocas. Nesse caso, a construção paratática condicional deve ser entendida como uma generalização, porque o falante expressa uma verdade absoluta “não pode haver café” se acontece algo que independe de sua vontade “não chover”: (11) Helena: O que foi que você disse ? Joaquim: Não chove, não pode haver café. Helena: Hoje, tudo está ficando diferente ! Não compreendo mais nada. De primeiro, tempo de chuva era tempo de chuva. Joaquim: Não há mais café como antigamente. (MO-LD) (11a) Joaquim: Se não chove, não pode haver café. Na análise das construções paratáticas condicionais também foram encontradas construções que são usadas de uma maneira “quase proverbial”, no sentido de que se 220 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008 apóiam em conteúdos que são considerados como pré-concebidos. É o que se pode ver nas ocorrências abaixo: (12) Clóvis: Que não o que. Vamos ganhar. E assim tiramos a garganta dele. Dona Marta: Marido contra mulher não adianta. Tonico: Adianta, sim. No jogo temos economia separada. Perdeu, pagou. Se não tem dinheiro, compro as ações dela. Ela tem mais ações na Santa Marta que eu. (SM-LD) (12a) Se bcddee, pagou. (13) Al: Mole ele nasce mesmo... J: Mole tá bom, mas não mole! Mãe fraca, criança fraca... Quer com leite? Um pingado prá ela e um cobertor de pobre prá mim. (AS-LD) (13a) Se f ghc é fraca, a criança é fraca... Nessas ocorrências, os significados das construções parecem repousar no conhecimento tácito que se tem das situações, e adquirem um caráter de “dito”, que pode ser entendido como um tipo de recurso argumentativo, porque o falante se vale da informação que compartilha com seus ouvintes para alcançar seu objetivo comunicativo. 4. Conclijõej Neste trabalho analisou-se o uso de construções paratáticas – justapostas, disjuntivas e aditivas – com um valor condicional. Pode-se dizer que a ordem de apresentação das orações que compõem as construções paratáticas se mostra um fator importante na interpretação condicional dessas construções. Essas construções têm o mesmo tipo de comportamento das condicionais canônicas, sintática e pragmaticamente. Pode-se afirmar, ainda, que as construções paratáticas condicionais constituem uma importante estratégia discursiva, já que ao usá-las o falante vai apresentando argumentos para a defesa de seu ponto de vista. 5. Referências bibliográficas AUWERA, Jan van der. Conditionals and speech acts. In: TRAUGOTT, Elizabeth Closs et al. (Eds.) On conditionals. Cambridge: Cambridge University Press, p.197213, 1986. BOOGAART, Rony. From directive to conditional. Trabalho apresentado. FITIGRA – From Ideational to interpersonal: perspectives from grammaticalization. Leuven – Bélgica, 2005. BOOGAART, Ronny, TRNAVAC, Radoslava. Conditional Imperatives in Dutch and Russian. In: CORNIPS, Leonie e DOETJES Jenny (Eds.). Linguistics in the Netherlands. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, p. 25-35, 2004. CAMACHO, Roberto Gomes. As construções aditivas. In: NEVES, Maria Helena de Moura (Org.) Gramática do português falado. Novos estudos. Vol. VII. São Paulo/Humanitas/FFLCH/USP; Campinas: Editora da UNICAMP, p. 351-405, 1999. CULICOVER, Peter, JACKENDOFF, Ray. Semantic subordination despite syntactic coordination. Linguistic Inquiry. n. 28, p. 195-271, 1997. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008 221 DANCYGIER, Barbara. Conditionalk and lmediction. Time, knowledge and causation in conditional constructions. Cambridge: Cambridge University Press, Cambridge Studies in Linguistics, v. 87, 1998. 214p. DANCYGIER, Barbara, SWEETSER, Eve. Constructions with if, since and because: causality, epistemic stance and clause order. In: COUPER-KUHLEN, Elizabeth, KORTMANN, Bernd (Eds). Cause, concession, contrast, condition. Cognitive and discourse perspectives. Berlin; New York: Mouton de Gruyter, p. 111-142, 2000. FILLENBAUM, Samuel. The use of conditionals in inducements and deterrents. In: TRAUGOTT, Elizabeth Closs. et al. (Eds.). On conditionals. Cambridge: Cambridge University Press, p. 179-195, 1986. HAIMAN, John. Conditionals are topics. nopqroqs. v. 54, 1978, p. 565-589. _____ The iconicity of grammar: isomorphism and motivation. nopqroqs. n. 56, 1980, p. 515-540. _____. Paratatic if-clauses. Jtrmnal of Pmoquatick. n. 7, 1983, p. 263-281. _____. Constraints in the form and meaning of the protasis. In: TRAUGOTT, Elizabeth Closs et al. (Eds.) On conditionals. Cambridge: Cambridge University Press, p.215227, 1986. HARRIS, Martin. The historical development of si-clauses in Romance. In: TRAUGOTT, Elizabeth Closs et al. (Eds.) On conditionals. Cambridge: Cambridge University Press, p. 265-284, 1986. HIRATA, Flávia Bezerra de Menezes. A hipotaxe adverbial condicional no português escrito contemporâneo do Brasil. 1999, 231 f. Dissertação (Mestrado em Letras – Área de Concentração: Lingüística e Língua Portuguesa) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara. HIRATA-VALE, Flávia Bezerra de Menezes. A expressão da condicionalidade no português escrito do Brasil: contínuo semântico-pragmático. 2007, 160 f. Tese (Doutorado em Letras – Área de Concentração: Lingüística e Língua Portuguesa) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara. KÖNIG, Ekkehard. Conditionals, concessive conditionals and concessives: areas of contrast, overlap and neutalization. In: TRAUGOTT, Elizabeth Closs et al. (Eds.) On conditionals. Cambridge: Cambridge University Press, p. 229-246, 1986. NEVES, Maria Helena de Moura, BRAGA, Maria Luíza. Hipotaxe e Gramaticalização: uma Análise das Construções de Tempo e de Condição. Dvwvnvx.A., vol.14, no.spe., 1999. Disponível em: <http//www.scielo.com.br> Acesso em: 10 jul. 2001. PEZATTI, Erotilde. Goreti. Estruturas coordenadas alternativas. In: NEVES, Maria Helena de Moura (Org.). Gramática do português falado. Novos estudos. Vol. VII. São Paulo/Humanitas/FFLCH/USP; Campinas: Editora da UNICAMP, p. 407-441, 1999. SCHWENTER, Scott. The pragmatics of conditional marking. Implicature, scalarity and exclusivity. NewYork/London: Garland Publishing, 1999. 265p. SOUSA, Gisele Cássia. Se tempo fosse condição...: um estudo das estruturas de tempo e de condição no português oral brasileiro. 2003, 172f . Dissertação (Mestrado em Estudos Lingüísticos) Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto. THUMM, Markus. The contextualization of paratactic conditionals. Interaction and linguistic structures/InLiSt. n. 20, 2000. 222 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 213-222, jan.-abr. 2008 Estrutura retórica e combinação de orações em narrativas orais e em narrativas escritas do português brasileiro Juliano Desiderato Antonio Departamento de Letras – Universidade Estadual de Maringá (UEM) Avenida Colombo, 5790 – CEP 87020-900 –· Maringá – · PR jdantonio@uem.br Abstract. This paper investigates in oral and written Brazilian Portuguese Matthiessen & Thompson’s (1988) claim that rhetorical relations held in text level organize text coherence and clause combining. A taxonomy of the functions of the rhetorical relations in the narratives of the corpus has been defined. There are relations which act in text organizing, relations which act in text organizing and in paratactic clause combining and relations which act in hypotactic clause combining. Keywords. Rhetorical Structure Theory; Clause combining. Resumo. Neste trabalho, procura-se verificar, no português brasileiro, nas modalidades de língua oral e escrita, a afirmação de Matthiessen & Thompson (1988) de que as relações retóricas que se estabelecem no nível discursivo organizam desde a coerência dos textos até a combinação entre orações. Estabeleceu-se uma taxonomia das funções exercidas pelas relações retóricas nas narrativas do corpus. Há relações cuja principal função é de organização textual, relações cuja função é, além de organização textual, de combinação de orações paratáticas e, por último, relações cuja função é de combinação de orações hipotáticas. Palavras-chave. Teoria da Estrutura Retórica do Texto; Combinação de orações. 1 Introdução Neste trabalho, procura-se verificar, no português brasileiro, nas modalidades de língua oral e escrita, a afirmação de Matthiessen & Thompson (1988) de que as relações retóricas que se estabelecem no nível discursivo organizam desde a coerência dos textos até a combinação entre orações. Relaciona-se, dessa forma, um fenômeno gramatical, a articulação de orações, à estrutura organizacional do texto, com base na Teoria da Estrutura Retórica do Texto. Essa teoria, que está sendo desenvolvida no âmbito do chamado Funcionalismo da Costa-Oeste, cujo principal campo de estudo é a relação entre gramática e discurso, tem como objetivo descrever a organização dos textos, caracterizando as relações que se estabelecem entre as suas partes. O corpus da pesquisa é constituído de sessenta narrativas, produzidas por informantes do Ensino Superior, do Ensino Médio e do Ensino Fundamental, após a exibição de um filme mudo. Por meio da ferramenta RSTTool, foram elaborados os diagramas da estrutura retórica dos sessenta textos do corpus. Os dados referentes à articulação de orações foram codificados com a ajuda da ferramenta Systemic Coder. Estabeleceu-se uma taxonomia das funções exercidas pelas relações retóricas nas narrativas do corpus. Há relações cuja ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008 223 principal função é de organização textual, relações cuja função é, além de organização textual, de combinação de orações paratáticas e, por último, relações cuja função é de combinação de orações hipotáticas. 2 Fundamentação teórica De acordo com a Teoria da Estrutura Retórica dos Textos, além do conteúdo proposicional explícito veiculado pelas orações de um texto, há proposições implícitas, chamadas proposições relacionais, que surgem das relações que se estabelecem entre porções do texto. Para Mann & Thompson (1983), as proposições relacionais permeiam todo o texto, desde as porções maiores até as relações estabelecidas entre duas orações. Segundo a teoria, são essas relações que dão coerência ao texto, conferindo unidade e permitindo que o produtor atinja seus propósitos com o texto que produziu. Uma lista de aproximadamente vinte e cinco relações foi estabelecida por Mann e Thompson (1987a), após a análise de centenas de textos, por meio da Teoria da Estrutura Retórica. Essa lista não representa um rol fechado, mas um grupo de relações suficiente para descrever a maioria dos textos. Com base na organização, as relações podem ser divididas em dois tipos: – Relações núcleo-satélite: uma porção do texto (satélite) é ancilar da outra (núcleo), como na figura 1, no qual um arco vai da porção que serve de subsídio para a porção que funciona como núcleo; – Relações multinucleares: uma porção do texto não é ancilar da outra, sendo cada porção um núcleo distinto, como na figura 2. Figura 1 - Esquema de relação núcleo-satélite Figura 2 - Esquema de relação multinuclear 3 Análise do corpus 3.1 Relações que atuam na organização do texto 3.1.1 Relações que têm como escopo porções de texto maiores do que a oração Há, no corpus analisado, relações que são estabelecidas primordialmente para organizar porções de texto maiores do que a oração. Como geralmente estão presentes nas primeiras camadas da estrutura retórica, essas relações podem caracterizar um determinado tipo de texto, como acontece no corpus com as relações de background e de solução. Em todas as narrativas desse corpus, o primeiro nível da estrutura retórica se apresenta em forma de uma divisão tripartida, como pode ser observado na figura 3. Figura 3 – Organização do primeiro nível da estrutura retórica dos textos do corpus A definição da porção de texto considerada o núcleo da narrativa é feita com base no conceito de nuclearidade, tomado como princípio organizador central da 224 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008 estrutura do texto (Mann e Thompson, 1987; 1988). A porção escolhida como núcleo, na análise, é aquela que é mais central para os propósitos do produtor do texto. O julgamento que determina, em um par, qual porção de texto é núcleo e qual é satélite é feito com base em dois critérios, o da assimetria e o da independência. As relações são assimétricas, ou seja, a primeira porção de texto serve de background para a segunda, ao passo que esta nunca serve de background para a primeira. A terceira porção de texto serve de solução para a segunda, ao passo que esta nunca serve de solução para a terceira. No que diz respeito ao critério da independência, pode-se dizer que uma porção do par (o núcleo) é independente da outra (o satélite), não sendo a recíproca verdadeira, ou seja, o satélite não é independente do núcleo. Nas narrativas do corpus, o núcleo foi determinado com base na teoria das partes da narrativa de Labov e Waltezky (1967), segundo a qual a complicação é considerada a parte central da narrativa, compreendendo os eventos que tornam intrincadas as ações. Essas ações, no vídeo utilizado para elicitar as narrativas, têm início quando o rapaz e a moça se encontram, sendo, logo em seguida, separados pelo pai dela, que a prende no quarto dela. Fazem parte da complicação, também, a entrada do rapaz no quarto da moça, a chegada do pai ao quarto, que resulta na briga do pai com o rapaz, e a fuga do rapaz, que quase é capturado pelos guardas. As duas outras grandes porções de texto das narrativas (background e solução), exemplificadas na figura 3, são, assim, dependentes dessa porção central, já que têm a função de introduzir, respectivamente, o pano de fundo e a solução dos eventos que complicam a narrativa. A relação de background corresponde à orientação, parte da narrativa que, segundo Labov e Waletzky, fornece informações sobre o pano de fundo da narrativa, ou seja, sobre quem são os personagens, sobre onde e quando ocorrem os eventos etc. No vídeo do Pavão Misterioso, fazem parte do satélite de background a chegada do rapaz à cidade, a compra de um jornal, a passagem de um cortejo fúnebre, o passeio do rapaz pela cidade, sua ida ao hotel e sua ida à festa que está acontecendo na cidade. A apresentação desses elementos permite ao leitor/ouvinte da narrativa compreender melhor a parte central da narrativa. A relação de solução também encontra uma parte correspondente nas divisões da narrativa de Labov e Waletzky. Trata-se da resolução, parte que fornece a solução para os eventos que complicam a ação. Os eventos apresentados pelo satélite de solução, no vídeo do Pavão Misterioso, compreendem a ida do rapaz a uma oficina, onde projeta e constrói, juntamente com o mecânico dessa oficina, uma aeronave na forma de um pavão. Em seguida, o rapaz vai à casa da moça, desce a aeronave sobre o telhado da casa, desce pelo forro por uma corda e sobe novamente para o telhado levando sua amada consigo. Eles fogem, então, voando no pavão misterioso, acenando para os habitantes da cidade, que saem às ruas para acenar para o casal. O pai da moça fica furioso. Esses eventos são a solução para o problema apresentado na complicação (núcleo), ou seja, o casal se encontra, apaixona-se, mas é separado pelo pai da moça. 3.1.2 Relações que têm como escopo desde uma oração até porções de texto maiores do que a oração Podem ser encontradas no corpus outras relações que também atuam na organização do texto, mas que têm como escopo desde uma oração até grandes porções ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008 225 formadas por várias orações. É o caso das relações de elaboração e de resultado. A primeira exerce importante função na organização do texto, que é a de acrescentar informações (explicação, maiores detalhes, etc.) a uma outra porção de texto. Pela definição, a porção de texto contida no satélite deve acrescentar informações a respeito da porção de texto que forma o núcleo. No exemplo da figura 4, encontrado em uma narrativa oral, a porção de texto formada pelas unidades de 31 a 33 acrescenta informações sobre a unidade 30, ou seja, explica como o rapaz foi além da ousadia presumida pelo pai da moça. Figura 4 – Relação de elaboração estabelecida entre uma oração e uma porção de texto formada por várias orações A relação de resultado é muito semelhante à relação de causa, mas, na verdade, há uma diferença polar entre essas relações. Ambas trazem uma ação ou situação que causa outra ação ou situação. A diferença reside na posição em que ocorrem núcleo e satélite. Na relação de causa, a ação ou situação causadora está no satélite, de forma que a relação de causa ocorre principalmente na combinação entre a oração causal e sua oração-núcleo. A relação de resultado, por sua vez, tem a ação ou situação causadora no núcleo. Na figura 5, encontrada em uma narrativa escrita, a relação de resultado é empregada no estabelecimento de relações entre porções de texto maiores do que uma oração. Figura 5 – Relação de resultado estabelecida entre porções de texto formadas por mais de uma oração 226 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008 3.2 Relações que atuam na organização do texto e na combinação de orações paratáticas Há, também, relações que, além atuarem na organização de porções de texto maiores do que a oração, também são encontradas com muita freqüência nas relações estabelecidas entre duas orações. É o caso das relações de seqüência, de lista e de contraste. Atuam na organização de grandes porções de texto e também são empregadas na combinação de orações aditivas (relações de seqüência e de lista) e na combinação de orações adversativas (relação de contraste). Em uma combinação paratática, encontram-se orações de mesmo estatuto, ou seja, uma oração não modifica a outra (HALLIDAY, 1985). No caso das relações multinucleares, as porções de texto que se relacionam não são ancilares uma da outra, isto é, são núcleos distintos (MANN & THOMPSON, 1987a; MANN & THOMPSON, 1987b). No corpus, entre as orações paratáticas aditivas, estabelecem-se relações multinucleares de seqüência ou de lista. Figura 6 – Relação de seqüência estabelecida entre orações aditivas Figura 7 – Relação de lista estabelecida entre orações aditivas No exemplo da figura 6, encontrado em uma narrativa escrita, pode-se observar que os eventos codificados pelas orações se sucedem temporalmente, motivo pelo qual a relação estabelecida é a de seqüência (relação de sucessão entre as situações nos núcleos). Por outro lado, no exemplo da figura 7, encontrado em uma narrativa escrita, as orações aditivas codificam eventos semelhantes, mas que não necessariamente se sucedem temporalmente. Assim, a relação estabelecida é a de lista (um item comparável a outros). Entre as orações paratáticas adversativas, estabelece-se relação de contraste, como pode ser observado no exemplo da figura 8, encontrado em uma narrativa escrita. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008 227 Figura 8 – Relação de contraste estabelecida entre orações adversativas Na relação multinuclear de contraste, as situações e/ou os eventos codificados pelos núcleos são concebidos como semelhantes em alguns aspectos e divergentes em outros aspectos, e são comparáveis com base nessas diferenças. A coordenação adversativa por meio do mas é tratada de forma semelhante por Neves (2000, p. 756): “[o MAS] coloca o segundo segmento como de algum modo diferente do primeiro”, ou seja, fica implícito que há semelhança entre as orações, uma vez que a relação adversativa coloca uma das orações como de algum modo diferente da outra. 3.3 Relações que atuam principalmente na combinação de orações hipotáticas Podem ser encontradas, também, relações que primordialmente são empregadas na combinação de uma oração hipotática com a oração-núcleo. É o que acontece, no corpus, com as relações de evidência, de justificativa, de causa, de concessão, de propósito, de modo, de meio e de circunstância. Uma oração hipotática modifica a oração-núcleo à qual está ligada. Ao contrário do que ocorre com as orações paratáticas, a oração hipotática tem estatuto desigual em relação à oração-núcleo (HALLIDAY, 1985). Por sua vez, nas relações núcleo-satélite, a porção de texto que funciona como satélite é ancilar da porção de texto que funciona como núcleo, sendo dependente dela (MATTHIESSEN & THOMPSON, 1988). As orações causais estabelecem no corpus relações de evidência, de justificativa ou de causa com a oração-núcleo à qual estão ligadas. No caso da relação de evidência, a porção de texto que funciona como satélite (a oração causal) fornece um argumento com a finalidade de comprovar o conteúdo da oração-núcleo, como no exemplo da figura 9, encontrado em uma narrativa oral. Figura 9 – Relação de evidência estabelecida entre a oração causal e a oração-núcleo 228 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008 Na relação de justificativa, a porção de texto que funciona como satélite (a oração causal) apresenta o motivo que levou o produtor do texto a realizar o ato de fala veiculado pela oração-núcleo, como pode ser observado no exemplo da figura 10, encontrado em uma narrativa oral. Figura 10 – Relação de justificativa estabelecida entre a oração causal e a oração-núcleo Em ambos os exemplos, a porção de texto que funciona como satélite seria considerada, pela gramática tradicional, uma oração coordenada explicativa. No entanto, como pode ser observado, a relação estabelecida é do tipo núcleo-satélite, tendo em vista que as porções de texto não constituem núcleos distintos, sendo uma porção de texto ancilar da outra. O que ocorre, na verdade, é que a relação é estabelecida no domínio dos atos de fala, como aponta Neves (1999), com base no conceito de domínio semântico de Sweetser (1990). No caso do exemplo 9, a porção de texto que funciona como satélite tem por função fornecer evidência para o ato de fala realizado pelo produtor do texto de que “o pai dela deve ser um cara muito importante”. Por sua vez, no exemplo 10, a porção de texto que funciona como satélite tem a finalidade de justificar o porquê de o produtor do texto ter dito que o rapaz teve de “dar um jeito de entrar”. Na relação de causa, por sua vez, a ação ou situação veiculada pelo conteúdo do satélite (oração causal) causa a ação ou situação veiculada pelo conteúdo do núcleo, como pode ser observado no exemplo da figura 11, encontrado em uma narrativa escrita. Figura 11 - Relação de causa estabelecida entre a oração causal e a oração-núcleo Embora a relação de resultado tenha a mesma definição da relação de causa, as orações causais não estabelecem relações de resultado, uma vez que, nessa relação, a ação ou situação causadora se encontra no núcleo. No corpus, a relação de resultado pode ser expressa pelas orações consecutivas, que denotam o efeito ou o resultado de um evento expresso na oração-núcleo, como pode ser observado no exemplo da figura 12, encontrado em uma narrativa escrita. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008 229 Figura 12 - Relação de resultado estabelecida entre a oração consecutiva e a oração-núcleo As orações concessivas estabelecem, no corpus, relações de concessão com a oração-núcleo à qual estão ligadas. Na proposta da Teoria da Estrutura Retórica dos Textos, a porção de texto que funciona como satélite (a oração concessiva) traz uma situação que, mesmo sendo aparentemente inconsistente, é apresentada pelo produtor do texto. A definição do significado básico do grupo de orações ao qual pertencem as orações concessivas é semelhante: contrariedade à expectativa (HALLIDAY & HASAN, 1976), do tipo que pode ser observado no exemplo da figura 13, encontrado em uma narrativa oral. Figura 13 - Relação de concessão estabelecida entre a oração concessiva e a oração-núcleo As orações finais estabelecem, com a oração-núcleo à qual estão ligadas, relações de propósito. Nessa relação, a porção de texto que funciona como satélite expressa uma atividade que deverá ser realizada por meio da atividade expressa pela porção de texto que funciona como núcleo. É o que pode ser observado no exemplo da figura 14, encontrado em uma narrativa escrita. Figura 14 - Relação de propósito estabelecida entre a oração final e a oração-núcleo As orações modais estabelecem relações de modo ou de meio com a oraçãonúcleo à qual estão ligadas. Por meio das orações modais, expressa-se como o evento da oração-núcleo é realizado. Na definição da relação de modo, a porção de texto que funciona como satélite é definida de forma semelhante, ou seja, essa porção de texto apresenta o modo como é realizada a ação expressa pela porção de texto que forma o núcleo, como pode ser observado no exemplo da figura 15, encontrado em uma narrativa oral. Por sua vez, na relação de meio, como se observa no exemplo da figura 16, encontrado em uma narrativa oral, a porção de texto que funciona como satélite apresenta um procedimento ou um instrumento que permite a realização do evento encontrado na porção de texto que forma o núcleo. 230 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008 Figura 15 - Relação de modo estabelecida entre a oração modal e a oração-núcleo Figura 16 - Relação de meio estabelecida entre a oração modal e a oração-núcleo As orações temporais estabelecem, com a oração-núcleo à qual estão ligadas, relação de circunstância, como pode ser observado no exemplo da figura 17, encontrado em uma narrativa oral. Figura 17 - Relação de circunstância estabelecida entre a oração temporal e a oração-núcleo 4 Considerações finais Neste trabalho, apresentou-se uma classificação das relações da Teoria da Estrutura Retórica do Texto de acordo com a função que elas exercem nas narrativas do corpus. As relações de background, de solução e de resumo exercem função de organização textual e atuam nas primeiras camadas da estrutura retórica das narrativas, tendo como escopo porções de texto maiores do que a oração. As relações de avaliação, de elaboração e de resultado também exercem função de organização textual, mas têm como escopo tanto uma oração como porções de texto maiores do que a oração. As relações de seqüência, de lista e de contraste, por sua vez, atuam tanto na organização textual como na combinação de orações paratáticas. As orações aditivas estabelecem relações de seqüência ou de lista, ao passo que as orações adversativas estabelecem relações de contraste. Por último, há relações que atuam principalmente nas combinações de orações hipotáticas. Trata-se das relações de evidência, de justificativa, de causa, de concessão, de propósito, de modo, de meio e de circunstância. Estão ligadas às orações causais as relações de evidência, de justificativa e de causa. As orações concessivas estabelecem relações de concessão, as orações finais estabelecem relações de propósito, as orações ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008 231 modais estabelecem relações de modo e de meio e, por fim, as orações temporais estabelecem relações de circunstância. Essas observações feitas no corpus são, portanto, uma evidência a favor da afirmação de Matthiessen e Thompson (1988, p. 286) de que “a gramática da combinação de orações reflete a organização do discurso”, uma vez que, na combinação de orações, podem ser encontrados os mesmos padrões de organização retórica do texto, ou seja, relações com um núcleo e um satélite e relações com mais de um núcleo. Referências HALLIDAY, M.A.K. An introduction to functional grammar. Baltimore: Edward Arnold, 1985. _____; HASAN, R. Cohesion in English. Oxford: Oxford University Press, 1976. LABOV, W.; WALETZKY, J. Narrative analysis: oral versions of personal experience. In: HELM, J. (ed.) Essays on the Verbal and Visual Arts. Washington: University of Washington Press, 1967. MANN, W.C.; THOMPSON, S.A. Relational propositions in Discourse. ISI/RR-83115, 1983. _____. Rhetorical Structure Theory: a framework for the analysis of texts. ISI/RS-87185, 1987. _____. Rhetorical Structure Theory: toward a functional theory of text organization. Text 8(3): 243-281, 1988. MANN, W.C.; MATTHIESSEN, C.M.I.M.; THOMPSON, S.A. Rhetorical Structure Theory and text analysis. In: MANN, W.C.; THOMPSON, S.A. (eds.) Discourse description: diverse linguistic analyses of a fund-raising text. Amsterdam/Philadelphia: J. Benjamins, 1992. MATTHIESSEN, C.; THOMPSON, S.A. The structure of discourse and ‘subordination’. In: HAIMAN, J.; THOMPSON, S.A. (eds.) Clause Combining in Grammar and Discourse. Amsterdam/Philadelphia: J. Benjamins, 1988. NEVES, M.H.M. As construções causais. In: _____ (org.) Gramática do português falado: novos estudos. S. Paulo: Humanitas/FFLCH/USP; Campinas: Editora da Unicamp, 1999. v. 7, p. 461-496. _____. Gramática de usos do português. S. Paulo: Editora UNESP, 2000. SWEETSER, Eve. From Etymology to Pragmatics. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. 232 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 223-232, jan.-abr. 2008 A perífrase ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio como indício de inovação lingüística Marcos Rogério Cintra1 Instituto de Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Caixa Postal 6045 – CEP 13083-970 – Campinas – SP – Brasil marcosrogeriocintra@yahoo.com.br Abstract. The aim of the present paper is to investigate the types of text which seem to promote the verbal periphrasis “ir(pres.)+estar+gerund”, often labeled “gerundismo”, considering its manifestation in the topic progression. We assume that the increasing use of this periphrastic form is a trace of innovation in the current spoken Brazilian Portuguese. The data is based on texts of the language in use, from the IBORUNA database (UNESP-SJPR). Keywords: verbal periphrasis; futurity; types of text; discourse topic. Resumo. Neste artigo, investigamos os tipos de texto que parecem favorecer a emergência da perífrase verbal ir(pres.)+estar+gerúndio, comumente rotulada como gerundismo, atentando para sua materialização no desenvolvimento tópico do discurso. Consideramos que o uso crescente dessa forma perifrástica é um indício de inovação no português brasileiro falado contemporâneo. O universo de investigação é composto de ocorrências do banco de dados IBORUNA (UNESP-SJRP). Palavras-chave: perífrase verbal; futuridade; tipos de texto; tópico discursivo. 0. Palavras iniciais A criação de perífrases verbais na história de diferentes línguas revela um processo dinâmico de inovação e renovação constantes. A coexistência de formas perifrásticas e sintéticas relacionadas à expressão da futuridade, historicamente comprovadas na evolução das línguas românicas, por exemplo, evidencia a dinamicidade desse processo, que tem sido considerado, muitas vezes, um padrão cíclico de formas sintéticas e analíticas que se intercalam: formas sintéticas > formas perifrásticas > formas sintéticas... (cf. FLEISCHMAN, 1982). Na passagem do futuro latino às línguas românicas, esse padrão cíclico de síntese de uma forma perifrástica inicial e substituição por uma forma perifrástica inovadora representa o que Castilho (1997, p. 35) denomina “continuidade da inovação”. Assim, muitos verbos auxiliares se morfologizam e são substituídos por outros, desencadeando um processo de competição entre diferentes formas que, embora concorrentes, apresentam diferenças funcionais que permitem apontar implicações discursivas relacionadas a seus usos. No período arcaico da língua portuguesa, ao lado do futuro do presente formado do infinitivo de um verbo (principal) seguido de habere (auxiliar) no indicativo (amare+habeo), o que resultou na forma gramaticalizada amarei , encontramos também a perífrase formada por ir+infinitivo (cf. MATTOS E SILVA, 1993; ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 233-241, jan.-abr. 2008 233 COUTINHO, 1976), cuja produtividade no português brasileiro (PB) já foi atestada por uma série de estudos (cf. BALEEIRO, 1988; SILVA, 2002; OLIVEIRA, 2006; dentre outros). No PB contemporâneo, indícios dessa continuidade de inovação podem ser percebidos pelo crescente uso da forma perifrástica ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio, comumente rotulada como gerundismo, como se observa na ocorrência seguinte, em que a entrevistada (professora primária) fala sobre os benefícios de a criança ter contato com livros desde seus primeiros anos de vida: (1) então eu posso afirmar com certeza que:: quando essa criança ela possui o contato com os livros mesmo que ela não esteja ainda na escola ela já vai estar entrando em contato com o mundo letrado ela vai estar entrando em contato com toda uma riqueza de vocabulário ela vai estar desenvolvendo toda sua capacidade de imaginação toda sua capacidade de criatividade ela vai estar criando uma rotina ela vai estar desenvolvendo né e vai estar adquirindo um go::sto pela leitura que é fundamental ela vai ter vontade de ler você não vai pedir pra ela ler ela por vontade própria ela vai procurar os livros... (ALIP-RO-088:544-551) Nesse trecho, pode-se notar que vai estar entrando, vai estar desenvolvendo, vai estar criando, vai estar adquirindo co-ocorrem com outras formas perifrásticas, como vai ter, vai pedir, vai procurar, na expressão da futuridade. O uso da forma perifrástica ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio tem suscitado muita controvérsia. Desaconselhada pela norma-padrão, essa perífrase tem sido tratada, muitas vezes, como anglicismo e até mesmo vício de linguagem. A polêmica em torno de seu uso, por outro lado, também tem sido abordada em textos de grande divulgação que apresentam um posionamento mais reflexivo sobre essa forma perifrástica, como o artigo de Possenti (2005), publicado na revista Discutindo Língua Portuguesa2. Consideramos aqui a forma perifrástica ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio como um tipo particular do chamado go-future (cf. FLEISCHMAN, 1982; BYBEE et al., 1991; HOPPER, 1991; HEINE, 1993), cuja emergência faz parte de um processo mais amplo de recorrência de formas perifrásticas, na medida em que decresce o uso da forma simples de futuro, especialmente na língua falada, e se constata um aumento de construções que envolvem (es)ta(r)+gerúndio no PB contemporâneo. Assumimos a concepção de que o sistema gramatical de uma língua é sempre emergente (HOPPER, 1991), no sentido de que estão sempre surgindo novos usos para formas já existentes. No presente artigo, nosso interesse se centra, contudo, nos tipos de interlocução verbal que favorecem o uso da forma perifrástica ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio. Abordamos a materialização dessa perífrase no texto, observando como algumas ocorrências se atualizam no desenvolvimento do tópico discursivo, nas situações de interação em que se inserem. Adota-se, para tanto, a noção de tópico como unidade de análise de estatuto textual-discursivo, recentemente retomada por Jubran (2006a, 2006b), que foi desenvolvida pelo Grupo de Organização Textual-Interativa do Projeto de Gramática do Português Falado (PGPF). Nosso universo de investigação se compõe dos inquéritos 018, 022, 024, 036, 042, 045, 047, 110 da amostra censo do banco de dados IBORUNA3, sendo que cada entrevista se compõe de cinco seções textuais, assim denominadas: 234 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 233-241, jan.-abr. 2008 a) narrativa de experiência (NE); b) narrativa recontada (NR); c) descrição de local (DL); d) relato de procedimento (RP); e) relato de opinião (RO). A delimitação das porções textuais, para a investigação do momento do desenvolvimento tópico em que a perífrase em análise ocorre, pauta-se pelo princípio da centração tópica (cf. JUBRAN, 2006a, p. 91-92). O texto se organiza em três seções. Na primeira delas, Tendências em curso: uso do gerúndio e de formas perifrásticas, apresentamos constatações de estudos recentes do PB, que sugerem uma inclinação dessa modalidade ao uso de construções perifrásticas que envolvem gerúndio, contexto que favorece o uso de ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio. Na segunda, A perífrase ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio e sua materialização no texto, observamos o efeito de sentido associado a algumas ocorrências que se atualizam no fecho do tópico discursivo. Finalmente, na última seção, procuramos alinhavar nossa exposição, argumentando em favor do uso de ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio como indício de inovação no PB contemporâneo. 1. Tendências em curso: uso do gerúndio e de formas perifrásticas Estudos recentes apontam duas inclinações da sintaxe do PB contemporâneo que parecem favorecer a perífrase ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio: o uso cada vez mais recorrente de formas perifrásticas de futuro (BALEEIRO, 1988; SILVA, 2002; OLIVEIRA, 2006) e de construções que envolvem gerúndio (VIOTTI & SCHER, 2003 [2001]; LONGO & CAMPOS, 2002; MENDES, 2005). É nesse contexto de tendências em curso que ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio se insere num processo de reorganização de usos e funções discursivas das perífrases de futuridade. É consensual, entre os trabalhos que abordam a expressão da futuridade no PB, a constatação de que se processa a diminuição gradual da forma sintética e o crescente uso da forma analítica ir(pres.)+infinitivo, especialmente na modalidade falada. Ao estudar a expressão da futuridade no PB falado, Baleeiro (1988) e Silva (2002) concluem que a perífrase ir(pres.)+infinitivo e o presente simples, acompanhado de adjuntos adverbiais de tempo, são formas muito mais produtivas do que o futuro sintético. O estudo de Oliveira (2006), que corrobora essas constatações, mostra que a diminuição do uso da forma sintética de futuro é uma mudança que tem se acelerado. Ao analisar comparativamente a manifestação das formas sintética e perifrástica de futuro, em amostras do projeto NURC (especificamente dados de DIDs de Salvador e do Rio de Janeiro) dos anos 70 e 90, a autora chega aos seguintes resultados percentuais, que apresentamos na tabela seguinte adaptada: ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 233-241, jan.-abr. 2008 235 ! " #$# #$# % & % ' Como podemos perceber, os resultados percentuais na tabela acima mostram que o decréscimo do futuro simples, cuja ocorrência já é baixa (de 11% para 3%) se processa na medida em que se intensifica o uso da forma perifrástica (de 73% para 82%), tendo em vista que as formas de presente simples se mantêm estáveis. Assim, pode-se dizer que a perífrase ir(pres.)+infinitivo tende a se implementar progressivamente, configurando o que Oliveira (2006, p. 195) define como “um quadro de mudança em progresso quase concluída” na modalidade falada. É fato que a forma perifrástica ir(pres.)+infinitivo desempenha papel determinante na substituição das formas sintéticas de futuro. Por outro lado, supomos que, na medida em que se processa a diminuição progressiva do futuro sintético, configura-se um contexto favorável à recorrência também de outras formas perifrásticas, relacionadas à expressão da futuridade, que passam a ser mais usadas. Associada a essa inclinação, uma outra tendência em curso parece contribuir para a emergência de ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio, qual seja, o uso de construções com estar+gerúndio. Essa tendência, visualizada por Viotti e Scher (2003), é o que leva as autoras a considerarem ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio como parte de um contexto mais amplo de mudanças relacionadas ao aumento significativo do uso do infinitivo perifrástico (estar+gerúndio). As autoras constatam, tendo por base dados de fala espontânea coletados de entrevistas em programas de rádio, uma grande recorrência do infinitivo perifrástico, como notamos em (2), retirado de Viotti e Scher (2003, p. 373): (2) Aí vai (es)tar dando pra (es)tar atendendo pelo menos quatro alunos de uma vez5. De acordo com essa interpretação, tanto (es)tar atendendo como vai (es)tar dando se relacionam ao aumento do infinitivo perifrástico (estar+gerúndio) no português contemporâneo. As autoras relacionam o uso dessas perífrases de gerúndio a “uma possível mudança em curso no português do Brasil” (p. 373). Nesse sentido, também Mendes (2005), ao analisar a variabilidade nos usos de estar(pres.)+gerúndio (EG) e ter(pres.)+particípio (TP) na expressão dos aspectos durativo e iterativo (tipos do imperfectivo), conclui que “‘estar + gerúndio’ vem se tornando a forma preferida nos contextos em que a alternância com ter + particípio é possível” (p. 173), especialmente entre os falantes mais jovens. O autor constata que o uso de ter+particípio está se tornando progressivamente mais restrito, tanto lingüística como socialmente, revelando um processo de mudança em curso, em tempo aparente. Nesse processo, verifica-se uma ampla preferência pelo emprego da perífrase estar+gerúndio na fala dos mais jovens, independentemente de fatores lingüísticos (cf. MENDES, 2005). 236 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 233-241, jan.-abr. 2008 E a essa tendência também fazem referência Longo e Campos (2002, p. 474) que, ao investigarem as perífrases aspectuais, verificam que as construções com estar + gerúndio “parecem (...) estar assumindo o papel de outras perífrases, como andar a, tornar a, voltar a + infinitivo e andar + gerúndio (valor iterativo) e estar a + infinitivo, seguir e vir + gerúndio (valor cursivo)”. 2. A perífrase ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio e sua materialização no texto Partindo da concepção de que toda atividade discursiva se realiza por meio de gêneros (cf. Bakhtin, 1992 [1953]) que, por sua vez, apresentam-se como tipologicamente heterogêneos; podemos dizer que o discurso se materializa por meio do texto, sendo os tipos textuais modos de organização desse discurso. Assim, considerados em sua dimensão qualitativa, os dados selecionados indicam que as situações em que o falante explica e avalia, apresentando argumentos que endossam seu posicionamento, são favoráveis à realização da perífrase ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio. Seu uso está associado a contextos que envolvem as seguintes situações de interlocução das entrevistas do banco de dados IBORUNA: relato de opinião (RO) na maior parte das vezes, e relato de procedimento (RP). E verificamos, em nossas ocorrências, que um dos momentos mais comuns em que a perífrase investigada se materializa é no fecho do tópico discursivo. A extensão das seqüências textuais em que a perífrase ir(pres.)+(es)ta(r)+infinitivo se materializa foi delimitada pelo princípio da centração tópica (cf. JUBRAN, 2006a). Identificada como uma das propriedades particularizadoras da manifestação tópica, a centração se define, em linhas gerais, pela referencialidade textual, em que se considera o tópico no sentido geral de algo sobre o que se fala, isto é, “um conjunto de referentes explícitos e inferíveis concernentes entre si e em relevância num determinado ponto da mensagem” (JUBRAN, URBANO et al., 1992, p. 361, apud JUBRAN, 2006b, p. 35), abrangendo os traços de concernência, relevância e pontualização (cf. JUBRAN, 2006a, p. 92). Estabelecendo uma aproximação com a tipologia textual-discursiva proposta por Travaglia (1991), podemos dizer que, no gênero entrevista (amostra IBORUNA), relato de opinião é um tipo de texto predominantemente dissertativo, em que o entrevistado (interlocutor) é solicitado a “falar sobre algo”. Para o autor, “na dissertação, busca-se o refletir, o explicar, o avaliar, o conceituar, expor idéias para dar a conhecer, para fazer saber, associando-se à análise e à síntese de representações” (p. 50), como notamos no trecho seguinte, em que a entrevistada, fumante, dá sua opinião a respeito do tabagismo: (3) Inf.: então eu acho que é melhor às vezes... você fumar um cigarro do que matar um próprio pai... e uma mãe... como a gente vê ultimamente na televisão... Doc.: e como vê... Inf.: então eu acho assim que é um mal que eu to fa/ causando só pra mim... e por enquanto também porque eu tenho certeza que eu vou me livrar desse mal... mas pelo menos é um mal que atinge só a mim pelo/ então eu num tô fazendo o mal pra ninguém... né? [...] e:: enquanto... eu tiver... que eu não conseguir ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 233-241, jan.-abr. 2008 237 evitar... eu num vou tá prejudicando ninguém... a não ser a si/ a mim mesma... (ALIP-RO-036:400-407) Já relato de procedimento apresenta características do tipo injuntivo (especialmente o subtipo prescrição) (cf. Travaglia, 1991). De acordo com o autor, “na injunção, diz-se a ação requerida, desejada; diz-se que e/ou como fazer; incita-se à realização de uma situação” (p. 50), sendo que na prescrição (subtipo da injunção) o ato de fala “ensina a fazer ou determina uma forma de fazer” (p. 57). Assim, nesse tipo de texto, solicita-se ao interlocutor que “fale sobre como algo se realiza ou deve ser realizado”, embora percebamos que, também nas seqüências injuntivas, o uso da perífrase ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio se associa à manifestação de uma opinião, como no segmento textual (4) a seguir, cujo tópico é como proceder ao cozinhar legumes: (4) Doc.: tem alguma outra coisa que cê aprendeu nesse curso? Inf.: ah como::... cozinhar... legumes que a gente não pode tuxar água na panela... e deixar eles lá boiando lá pra cozinhar... porque a vitamina que ele tem solta... através da água... e aí a gente perde a vitamina que o/ que o legume tem pra gente... então tem que usar pouca água... pôr na panela de pressão com um mínimo assim uma pitadinha de sal... fecha a panela... espera um pouquinho depois que começou fazer aquele barulhinho espera cinco minutos e desliga... aí cê pode abrir... que aí ele não vai tá nem mole e nem durinho vai tá... uhm:: numa/ na temperatura certa e vai tá do jeito correto e aí a gente não vai tá perdendo a vitamina que ele tem... (ALIP-RP-024:267-275) Nesse relato de procedimento, o entrevistador dispõe da informação de que a informante fez um curso ministrado por uma nutricionista e, por isso, convoca a entrevistada a falar sobre assuntos abordados nesse curso. No trecho (4), a apresentação dos procedimentos (prescrição) adequados ao cozimento de legumes se inclui numa argumentação fundamentada na confrontação da crença comum (que a gente não pode tuxar [....] legume tem pra gente...) justificada pelo ponto de vista especializado (então tem que usar pouca água... [...] vai tá do jeito correto). Da relação que se instaura entre essas duas seqüências, resulta uma conclusão respaldada (e aí a gente não vai tá perdendo a vitamina que ele tem) que encaminha o fecho desse tópico. E na seqüência dessa entrevista, um outro tópico já é proposto pelo documentador Doc.: e alguma outra coisa assim que cê saiba cozinhar? como que cozinha? (ALIP-RP-024:276), passando a entrevistada a falar, então, sobre como preparar bife. Vejamos também a seqüência a seguir, em que a entrevistada fala por que pensa em cursar Letras: (5) Doc.: tá certo... éh:: eu queria saber assim... qual é a sua opinião... o que você espera...(porque...) você disse que cê quer fazer letras né... [Inf.: hum] éh::... e como você acha que é o curso de letras... o que você espera do curso de letras? Inf.: ai... eu acho... que assim... eu pretendo... queria fazer português e inglês né... que é o que eu mas gosto assim... agora como que é o curso mesmo eu num tenho muita... muita noção... mas eu... eu tô fazendo com a intenção de depois... prestar concur::so essas coisa sabe... não muito na área de dar aula... porque eu acho que eu num... eu num... [num] 238 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 233-241, jan.-abr. 2008 Doc.: [num quer dar aula] Inf.: tenho o dom assim sabe... num ia saber... mas... também se me aparecer oportunidade né... mas mais mais... com essa... com essa intenção de prestar concur::so... por que daí eu vou tá sabendo português né... já é um grande passo assim Doc.: tá certo... tá jóia (ALIP-RO-042:279-289) Nesse trecho, percebemos que a perífrase ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio se insere no momento enunciativo em que o falante conclui seu raciocínio daí eu vou tá sabendo português né... já é um grande passo assim, também encaminhando o fecho do tópico. Em seguida, a entrevista termina. Como afirma Cervoni (1989), as formas verbais do futuro expressam uma atitude epistêmica particular do falante, contudo, “as distinções [...] só têm interesse se pudermos dizer a que diferenças de significado elas correspondem” (p. 57). Daí a necessidade de compreender a manifestação perifrástica na situação de enunciação. Ao conduzir justamente o fecho do tópico, por meio da perífrase ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio, o interlocutor assume uma atitude comprometida com o seu dizer, como em (4), em que a informante avalia como certa a realização do estado de coisas, a gente não vai tá perdendo a vitamina que ele tem..., cumpridos os procedimentos adequados ao cozimento de legumes. De modo semelhante, em (5), daí eu vou tá sabendo português né, o entrevistado acredita na realização do estado de coisas, que avalia como certo num momento futuro. Considerações finais Neste trabalho, consideramos o uso crescente da perífrase ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio como um indício de inovação no quadro das perífrases relacionadas à expressão da futuridade. Fato que se associa a tendências em curso no PB contemporâneo, dentre elas, o uso cada vez mais recorrente de construções que envolvem estar+gerúndio; sendo que, nesse contexto de tendências em curso, ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio passa a co-ocorrer com mais freqüência ao lado de ir(pres.)+infinitivo, por exemplo. Com base em entrevistas do banco de dados IBORUNA, notamos que ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio tende a se atualizar em textos marcados pelo caráter opinativo do interlocutor, principalmente aqueles predominantemente dissertativos (relatos de opinião), em que o falante avalia, conceitua, expõe idéias para dar a conhecer. Verificamos também que um dos momentos mais comuns em que a perífrase se atualiza é no fecho do tópico discursivo, o que, nos dados analisados, está relacionado a uma atitude comprometida do locutor com seu dizer. Notas 1 Bolsista da Fapesp - DR-1 (Processo 06/51932-7). No artigo intitulado “Defendendo o gerúndio”, Possenti (2005) argumenta que a estrutura ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio não corresponde a nenhum ‘desvio’ lingüístico. O 2 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 233-241, jan.-abr. 2008 239 autor apresenta três razões, uma de ordem sintática (a regularidade da estrutura), outra de ordem semântica (o aspecto durativo) e uma outra de ordem pragmática ou interpessoal (gentileza, deferência, polidez), para justificar a legitimidade dessa forma perifrástica. Não concordamos com Possenti (2005), no entanto, ao referir-se a algumas ocorrências de ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio como estranhas (problemáticas), por considerar que, “se estar é verbo auxiliar durativo, só pode(ria) ocorrer com verbos durativos” (POSSENTI, 2005, p. 11). Dessa forma, vou estar enviando seu novo cartão seria uma construção estranha porque enviar não é durativo, mas não vou estar morando em São Paulo, uma vez que morar é durativo. Não vemos nenhuma impropriedade no uso dessa perífrase com verbos que não são durativos. Talvez sejam esses os casos em que o uso dessa perífrase tem se mostrado mais inovador, uma vez que, não raras vezes, encontramos ocorrências como a seguinte, de uma rádio de S. J. do Rio Preto: “então pra Ana Carolina nossa aniversariante de hoje eu vô tá colocando a música...” (103.1 FM - 30/07/07). 3 O banco de dados IBORUNA (UNESP-SJRP) se compõe de dois diferentes tipos de amostra: uma de interação dialógica, que considera diferentes graus de assimetria social entre os interlocutores, e outra do censo lingüístico da região de São José do Rio Preto, com o controle de variáveis sociais. 4 Utilizamos os resultados a que chega Oliveira (2006) apenas como evidência comprobatória de uma mudança em curso: a diminuição progressiva da forma sintética de futuro. Na análise comparativa que fez da expressão da futuridade na língua escrita, com base em editoriais de jornais das décadas de 70 e 90, Oliveira (2006, p. 168) conclui que se verifica também nessa modalidade a tendência à implementação do futuro sintético pelo analítico ir+infinitivo, ainda que de modo mais gradual (cf. OLIVEIRA, 2006). 5 É necessário ressaltar que Viotti e Scher (2003) propõem uma distinção entre o uso canônico e não canônico de ir(pres.)+(es)ta(r)+gerúndio, sendo este último o de ocorrência crescente. O exemplo oferecido pelas autoras como uso canônico é “No ano de 2004, provavelmente a gente ainda vai estar estudando construções verbais”. Por isso, em seu estudo, Viotti e Scher (2003) sugerem “uma hipótese para explicar uma das possíveis interpretações feitas por falantes do português canônico” (p. 370) frente aos usos não canônicos (cf. VIOTTI & SCHER, 2003). Referências BALEEIRO, M. I. A. O futuro do presente do português culto falado em São Paulo. (Dissertação de Mestrado). Campinas: IEL, Unicamp, 1988. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, [1953] 1992. BYBEE, J. et al. Back to the future. In: TRAUGOTT, E., HEINE, B. Approaches to grammaticalization. Vol. II: Focus on Types of Grammatical Markers. Amsterdam: John Benjamins, 1991, p. 17-58. CASTILHO, A. T de. A gramaticalização. Estudos Lingüísticos e Literários, nº 19. Salvador: Universidade Estadual da Bahia, março 1997, v.19, p. 25-64. CERVONI, J. As modalidades. In: ______. A enunciação. São Paulo: Ática, 1989, p. 5383. 240 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 233-241, jan.-abr. 2008 COUTINHO, I. L. Pontos de gramática histórica. 7 ed. Rio de Janeiro: Livro Técnico, 1976. FLEISCHMAN, S. The Future in Thought and Language: Diachronic Evidence From Romance. Cambridge: University Press, 1982. HEINE, B. Auxiliaries: Cognitive Forces and Grammaticalization. New York: Oxford, 1993. HOPPER, P. J. On Some Principles of Grammaticalization. In: TRAUGOTT, E. C.; HEINE, B. (Eds.). Approaches to Grammaticalization. Vol. I: Focus on Theoretical and Methodological Issues. Amsterdam: John Benjamins, 1991, p. 17-35. JUBRAN, C. C. A. S. Tópico Discursivo. In: JUBRAN, C. C. A. S; KOCH, I. G. V. (Orgs). Gramática do português culto falado no Brasil: a construção do texto falado (Vol. 1). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006a, p. 89-132. JUBRAN, C. C. A. S. Revisitando a noção de tópico discursivo. Cadernos de Estudos Lingüísticos. O Tópico Discursivo 48(1). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006b, p. 33-41. LONGO, B. de O; CAMPOS, O. de S. A auxiliaridade: perífrases de tempo e de aspecto no português falado. In: ABAURRE, M. B. M; RODRIGUES, A. C. (Orgs.) Gramática do Português Falado. Vol. VIII: Novos modelos descritivos. Campinas, SP: Unicamp, 2002, p. 445-477. MATTOS e SILVA, R. V. O português arcaico: morfologia e sintaxe. São Paulo: Contexto, 1993. MENDES, R. B. Ter + particípio e estar + gerúndio: aspecto e variação no português. (Tese de Doutorado). Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Campinas, SP: 2005. OLIVEIRA, J. M. de. O futuro da língua portuguesa ontem e hoje: variação e mudança. (Tese de Doutorado em Língua Portuguesa). Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2006. POSSENTI, S. Defendendo o gerúndio. Discutindo língua portuguesa (revista). Ano 1, nº 1. São Paulo: Escala Educacional: 2005, p. 8-11. SILVA, A. da. A expressão da futuridade no português falado. Araraquara: UNESP, FCL, Laboratório Editorial, 2002. TRAVAGLIA, L. C. Um estudo textual-discursivo do verbo no Português do Brasil. (Tese de Doutorado). Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Campinas, SP: 1991. VIOTTI, E; SCHER, A. P. Semelhanças e diferenças entre o PB e o PE no que diz respeito à forma progressiva do infinitivo. In: Boletim da Associação Brasileira de Lingüística (ABRALIN), v. 26 - Nº Especial - I. Fortaleza: Imprensa Universitária/UFC, 2001 (publicado em 2003), p. 370-374. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 233-241, jan.-abr. 2008 241 “Eu peguei e falei: eu vou!” As noções de movimento e mudança nas contruções com o verbo pegar Natália Sathler Sigiliano∗ Mestranda em Lingüística – Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Rua Senador Salgado Filho, 510/501 – Bom Pastor Juiz de Fora, MG – 36021-660 nataliasigiliano@yahoo.com.br Abstract. this paper is aimed at demonstrating that the concepts of movement and change are present in all of the constructions with the verb pegar. Such constructions are highly productive in the Brazilian Portuguese, revealing, at first, a vast range of meanings. Through the analysis of linguistic data, we will attempt to make clear that the various instances of this construction do not occur occasionally, reinforcing the hypothesis of the existence of a meaning network. Keywords. Constructions with the verb pegar; Polysemy; Movement; Change Resumo. este trabalho visa a demonstrar que as noções de movimento e mudança perpassam as construções com o verbo pegar. Tais construções são bastante produtivas no Português do Brasil, revelando, a princípio, uma vasta gama de significados. Através da análise de dados, buscar-se-á tornar evidente que as diversas instanciações da construção não ocorrem ocasionalmente, o que reforça a hipótese da existência de uma rede de significados. Palavras-chave. Construções com verbo pegar; Polissemia; Movimento; Mudança ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008 243 Introdução As construções com o verbo pegar têm se mostrado muito produtivas no Português do Brasil (PB). Talvez isso se deva ao fato de essa construção apresentar as mais diversas instanciações que podem indicar desde o ato concreto de usar as mãos para segurar algo até noções abstratas como mudança de turno de fala. Vejam-se os dados da fala mineira, coletados na cidade de Ibitipocai e nas audiências do Procon de Juiz de Foraii : (1) não, eu pego um pintor, eu pego um pintor nosso. é porque o pintor é seu ele vai falar o que ele quer ué.= .. eu pego um pintor (PROCON JF) (2) INF.- É...mas ieu acho que lá por riba, quando tá pingano, lá também móia por riba...num desce por causa do forro, né? e a mia cama lá dentro, as menina fala: “ah, (inint)da mia mãe tá moiano tudo”...pega uma lona, até que alargo ela até os pé da cama, pá tampá a cama mai...menina essa casa móia, ma móia pa incardí...cuiz credo...móia demais... (Corpus Conceição de Ibitipoca) (3) INQ.- Onde trabalha, né? INF.- Onde nós trabaiava. INQ.- Então a senhora pegou na enxada, dona Maria? (Corpus Conceição de Ibitipoca) (4) INF.- Não sei, não sei... mas deve sê uma figuera, algum tipo assim de madera, dessa espécie. INQ.- Será que ela pegô fogo, por isso que ficô oco? INF.- Possivelmente, né? porque naquela época também aconteciam muitos incêndios, né? (Corpus Conceição de Ibitipoca (5) INF.- Tomo... eu tomo um chá, eu faço xaropim de horta, junto no mei do mato aqueles camarazim, (fruta de loro), vô juntano aqueles punhadim (prendeno e debaxo aquele lambedô) pra í bebendo pra (cudí) a pedra, pra num pegá (gripe). (Corpus Conceição de Ibitipoca) (6) INF.- Foi os padre aí na rua, já tem muitos ano, sabe? aí, benzeu o coquero...chegô aqui tirei (inint) guardei pa quando (andá) chuva a gente botá queimá fumacinha é bão, né? (inint) pegô, prantô a muda, falô: “oh...eu vô prantá essa uma aqui, pruque às veiz um dia num tem jeito de saí pra ir levá, nós vem na horta e rebenta e panha, né?”...tá lá, pegô, mas tá um brute de coquero. Se pensarmos no sentido atribuído por cada construção nos exemplos acima, rapidamente perceberemos que não parece, num primeiro olhar, haver algo em comum entre todos esses usos. Assumimos, porém, uma perspectiva sócio-funcionalcognitivista, a qual: é representada pelo grupo de teorias mais comumente chamado de lingüística cognitivo-funcional, mas também conhecido como lingüística baseada no uso, o que enfatiza sua máxima do processamento central que afirma que as estruturas da língua emergem dos usos da língua. (...) As teorias baseadas no uso defendem que a essência da linguagem é a sua dimensão simbólica, enquanto a gramática é derivada desta. (TOMASELLO, 2003, p.5 [tradução nossa]) 244 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008 Essa perpectiva teórica é adotada visando a explicar tamanha produtividade semântica do verbo e sua possível base comum. Com isso, partindo de dados reais de fala, procura-se pelos processos figurativos de herança que possibilitaram a polissemia da construção. 1. Pistas para a análise Nossa proposta de trabalho se enquadra na tentativa de diálogo entre as abordagens cognitivistas e funcionalistas americanas para o tratamento da linguagem, utilizando-nos de dados de amostras do Corpus Conceição de Ibitipoca, Corpus do Procon Juiz de Fora, e jornais de grande circulação na região. Para tal, lidamos com a noção de construções conforme definida por Goldberg (1995) como sendo pareamentos de forma e sentido, tais que há no sentido aspectos não preditíveis pela soma das partes que compõem a forma. Sendo assim, nos é de muita valia também a Teoria da Metáfora, proposta por Lakoff e Johnson (1980). Isso porque podemos buscar nas metáforas propostas por estes lingüistas pistas que apontem para os processos figurativos que operaram na polissemia das construções com o verbo pegar. Buscando tais pistas, postulamos alguns aspectos básicos que podem vir a indicar respostas ou caminhos para uma dissertação de mestrado que vem sendo realizada a respeito do assunto. Primeiramente, procuramos pelo sentido do verbo conforme indicado no dicionário Houaiss (2001), a fim de perceber quais são aqueles sentidos mais básicos do verbo – mais lexicais – além da tentativa de se perceber as semelhanças entre o sentido etimológico do verbo e seu sentido usual: (sXIV cf. FichIVPM) 1 t.d.,t.i. segurar; prender segurando <p. a (ou na) xícara> <pegou o ladrão> <p. pelo pé> 2 t.d.bit.int. e pron. fixar(-se), aderir, colar <é preciso p. o papel (à parede)> <o feijão pegou (no fundo da panela)> <este papel não pega> <a roupa pegava-se ao corpo> 3 int. lançar ou criar raízes <a roseira finalmente pegou> 4 int. firmar-se, estabilizar-se, funcionar bem, ter continuidade <a moda pegou> <a chuva pegou> <a proposta pegou> <o motor pegou> <esta desculpa não pega> 5 int. começar a funcionar, dar a partida <o carro a álcool custa mais a p.> (…) ETIM lat. pico,as,ávi,átum,áre 'sujar(-se) com breu ou piche, impregnar(-se) de breu ou piche; ter em si, trazer para si', der. de pix,ìcis 'pez, piche'; é voc. român. de complexa ampliação semântica, a partir do signf. restrito de orig. lat.; ver peg-; f.hist. sXIV pegar 'fixar', sXV pegão, sXV peguar 'apanhar' SIN/VAR ver sinonímia de 2colar, colher, prender, segurar e tomar ANT despegar; ver tb. antonímia de tomar e sinonímia de libertar e soltar HOM pega(3ªp.s.)/ pega(s.f., s.m., s.2g., interj. e adj.2g.); pega /ê/ (f.part.irreg.)/ pega /ê/ (s.f., s.m. e adj.2g.); pegas(2ªp.s) e pegas /ê/ (f.pl.part.irreg.)/ pegas /ê/ (s.m.2n. e pl.pega /ê/ [s.f.s.m. e adj.2g.] e Pegas /ê/ (antr.); pego(1ªp.s.) e pego /ê/ (part.irreg.)/ pego /é/ (s.m.) e pego /ê/ (s.m.) iii (HOUAISS, p. 2167, 2001) Como indicado pela etimologia do verbo, este está ligado à idéia de “sujar(-se) com breu ou piche, impregnar(-se) de breu ou piche; ter em si, trazer para si”. Esses sentidos trazem a idéia de que há um movimento (e conseqüente mudança) entre os participantes da predicação. Isso porque ao trazer para si, quem traz, o que é trazido ou ambos podem ser movidos na direção desejada, a um container desejado e/ou específico. A partir dessa noção, analisamos as construções com o verbo pegar do ponto de vista dos movimentos e/ou mudança entre containers estabelecida entre predicadores ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008 245 ou participantes do discurso. Essa continuidade de sentidos que permeiam os diversos significados de pegar demonstra o fato de que estamos lidando com um verbo polissêmico, ou seja, nas palavras de Lyons (1996 [1995]): “a polissemia (o sentido múltiplo) é uma propriedade dos lexemas específicos, de um mesmo lexema” (LYONS, 1995, p.58 [tradução nossa]). Lyons comenta que uma diferenciação comumente feita entre polissemia e homonímia diz respeito à idéia de que a etimologia da palavra determinará se esta é ou não polissêmica. Tal critério vem, como vê-se na busca feita no dicionário Houaiss, reforçar a noção de que temos vários sentidos associados aos esquemas de movimento e relação entre containers. Por um critério de tornar essas idéias “mais didáticas”, adotaremos “esquemas” que ilustrarão o sentido já comentado que acredita-se perpassar todas as contruções com o pegar. 2. Esquemas de movimento/mudança do verbo pegar Os esquemas que ilustram as construções com o verbo pegar são usados de forma a facilitar a visualização de algo que, na realidade, parece ser intrínseco à nossa cognição. Esses são demonstrações de esquemas conceptuais de que nos utilizamos sem sequer notar como estes estão presentes no dia-a-dia. De acordo com Johnson (1987), Lakoff (1987) e Lakoff e Johnson (2002), as categorias mentais e lingüísticas não são categorias abstratas, desencarnadas ou independentes dos seres humanos. Essas categorias são criadas com base em nossas experiências concretas, tendo como limites os nossos corpos. Sendo assim, esses lingüistas perceberam que os seres humanos conceptualizam um gigantesco número de atividades em termos de containers. Lakoff, 1987 (apud Lindner, 1982), observa que existem muitas metáforas baseadas no esquema do container, sendo que elas somente são entendidas devido à nossa percepção corporalmente baseada. Com isso, um grande número de conceitos abstratos formados a partir da noção de container podem constituir em inovações lingüísticas, como defendemos ser o caso do verbo pegar. Desta maneira, os nossos corpos e as coisas podem funcionar como containers, os quais são estruturados com elementos que representam o interior, a fronteira e o exterior. Desta mesma maneira, metaforicamente criamos situações projetamos a noção de movimento e mudança para as mais diversas instanciações lingüísticas. Como será no presente trabalho abordado, acreditamos que esta noção de container e de movimento estão presentes, implicitamente, nos momentos em que utilizamos os mais diversos sentidos do verbo pegar. Para demonstrar tal fato, apresentaremos os seis esquemas que espelham como se processa o sentido da construção com o pegar em nossa mente e, em seguida, disponibilizaremos dados de fala que embasaram a montagem desses esquemas. As letras A e B, presentes nos esquemas, representam a ordem dos constituintes participantes com a construção com o verbo pegar, sendo que A espelha o primeiro constituinte sintático e B, o segundo. As linhas em círculo e quadrado representam uma noção de container mais abstrato e, por fim, as setas indicam os movimentos realizados pelos elementos da construção. 2.1 – Esquema 1: 246 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008 Figura 1 Este esquema visa representar o duplo movimento realizado entre os argumentos A e B, que é indicado pela seta de duas pontas. Esse movimento evolui para que B se insira no container de A. Acreditamos estar neste esquema a característica do pegar [+concreto], o que pode ser visto através dos dados: (7) INF.- Ibitipoca ainda era muito movimentado...num era igual tá hoje (inint)...começamo a fazê um forró ali...fui em casa, peguei sanfona, uma motinha...aí começamo a tocá...dali todos os dias...e caiu na rotina aquela mania de tá sempre encontrano os mesmo pessoal, as mesma coisa, decidimo nós...decidimo montá uma banda... (Corpus Conceição de Ibitipoca) Em (7), temos um sujeito “eu” (A) que realiza um movimento em relação à sanfona (B). Ao alcançar a sanfona (B), o sujeito (A) movimenta o seu corpo em direção a esse objeto e o aproxima-o de seu corpo. Desta forma, o sujeito inclui a sanfona em seu container abstrato, que é representado pela idéia de trazer a sanfona para perto de seu corpo, de seu container. 2.2 – Esquema 2: Figura 2 O segundo esquema ilustra um movimento único firmado entre os argumentos da construção com o verbo pegar, em que A “escolhe” B e o encaminha para um container determinado. Leiamos os exemplos: (8) [nós não te]mos condições de fazer isso, ué, o resto,eu já tô, já vou pegar outra firma, entendeu, já vou ligar pra o já vou conversar com a[mazinha ela vai lá, vai esperar vê o que que eles vão terminar lá pra acabar de dar jeito no resto, porque não tem jeito, cê viu o estado da minha sala, não tem jeito (Corpus Procon) ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008 247 Em (8), o constituinte e sujeito “eu” (A) demonstra querer escolher outra firma (B) para realizar o serviço que não foi terminado em um lugar específico, que é representado pela circunferência acima. Assim, A escolhe B e o insere no container do lugar específico – que pode ser, neste caso, uma casa em reforma. 2.3- Esquema 3: Figura 3 O constituinte (B) vai em direção a (A), caracterizando um movimento único, e se insere no container de (A). Eis os dados: (9) INF.- Não sei, não sei... mas deve sê uma figuera, algum tipo assim de madera, dessa espécie. INQ.- Será que ela [a madeira] pegô fogo, por isso que ficô oco? (Corpus Conceição de Ibitipoca) (10) INF.- Tomo... eu tomo um chá, eu faço xaropim de horta, junto no mei do mato aqueles camarazim, (fruta de loro), vô juntano aqueles punhadim (prendeno e debaxo aquele lambedô) pra í bebendo pra (cudí) a pedra, pra num pegá (gripe) INQ.-Acudi o que, Dona APA? (Corpus Conceição de Ibitipoca) Nestes exemplos, temos que o fogo e a gripe (constituintes (B)) realizam um movimento até os elementos representados pelo constituinte (A) – “madeira”, em (10) e “eu”, em (11) – e se inserem no container dos mesmos. Assim, o fogo se insere no container da madeira, queimando-a; e a gripe se insere no container do ser humano, o corpo humano. 2.4- Esquema 4 Figura 4 248 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008 No esquema 4, o constituinte (A) se movimenta até (B) e se insere no container do mesmo. Vejamos um exemplo: (11) INF.- Ah, ali diz que é...mas graças a Deus eu já desci ali uma porção de veiz, até de noite nóis num tinha condução pra...pra vir, nóis ia as veiz na cidade fazê consurta pra nós, pras criança, mas ia de caminhão mia fia, pegava lá no Gerardo de Parma...cê sabe aonde é Gerardo de Parma? ia pegá um caminhão ali naquele Gerardo de Parma, nós ia a pé...saía de noite ainda daí...pra lá...ah já passei muito trabaio na mia vida. (Corpus Conceição de Ibitipoca) Neste caso, “nóis” (A) movimenta-se até o caminhão (B) que se encontra no “Gerardo de Parma” e se insere nele. 2.5- Esquema 5 Figura 5 Em 5, o constituinte (A) realiza movimento único em direção a (B) e (B) se insere no container de (A): (12) então tá que eu te pego de carro porque minha obra é longe, eu te pego de carro". ele falou assim, "daqui a pouco eu te ligo". meio dia, meio dia e meia, uma hora, duas horas, pergunta se ele me ligou e eu esperando. eu tinha que tá na embratel meio dia. ligo eu pra embratel, "olha eu vou atrasar tá mas daqui a pouco eu tô chegando". até que chegou o ponto que eu liguei pro meu esposo e falei, "olha ,lucas, são duas e pouca eu tenho que ir embora, eu não posso esperar mais o carlos" porque a gente foi ao cara do vidro que ele indicou o cara fez o [ projeto entregou por lucas] (Corpus Procon) Aqui, “eu” (A) se movimenta até “te”, o falante (B) e o insere no container em que estava A – o container do carro. 2.6- Esquema 6 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008 249 Figura 6 Neste esquema há um movimento duplo de (A) para (B) e vice-versa e ambos, realizados os movimentos, compartilham um mesmo container: (13) Vasco encara pedreira contra o Atlético-PR. Embalado pela vitória de 3 a 1 sobre o Flamengo, o Vasco pega outro Rubro-Negro hoje: o Atlético-PR, em Curitiba. (Tribuna de Minas – 1 novembro 2006) Em (13), o Vasco (A) se direciona para o local de encontro com o Atlético (B) e vice-versa, a fim de se enfrentarem no campo que é o container “englobador” de A e B. 3- Pegar no discurso Para finalizar, mostraremos que, além dos sentidos apresentados acima, as construções com o verbo pegar podem estar ligadas a noções discursivas, em que se associam a uma construção de discurso reportado ou, até, a outros tipos construcionais – como as resultativas, por exemplo –, sendo que estes últimos serão tratados, dada a necessidade de análises mais aprofundadas, em trabalhos posteriores. Observem-se os exemplos abaixo: (14) aí ele ainda me mostrou, no quarto aonde ela tá falando ali, no projeto que ela fez com a (gessoteto) teria forro igual cê tá vendo aqui. nós sugerimos (tipo isso aqui) só que fechando no teto, tá . não é forro liso igual a gesso teto ia fazer era morrendo no teto lá em cima. eu peguei e falei com ele, "ó eu quebrei aqui que vou ter que passar a fiação" (Procon/JF) (15) que na realidade com com com o que eu tinha e com a virada foram setecentos e quarenta e quatro minutos, que eu perdi, eu fiz as contas, eu peguei eu falei vou, vou contar. (Procon/JF) Há quem pense que este pegar no discurso nada mais tem a ver com as noções postuladas até agora relacionadas a um sentido que perpassa todas as instanciações da construção estudada. Defendemos, porém, a idéia de que, ainda neste caso, a construção com o verbo pegar traz o movimento e/ou conseqüente mudança embutida em seu sentido semântico. Isso porque o que é movimentado/mudado nas construções com o verbo pegar + verbo dicendi é o turno de fala. Assim, o falante usa a construção para marcar a mudança de turno em sua fala ou uma mudança de discurso indireto para direto, o que mostra, mais uma vez, que há um sentido comum, básico, do qual as demais estruturas derivar-se-ão. Conclusão Pudemos demonstrar, por meio deste trabalho, que as construções com o verbo pegar têm se revelado muito produtivas no Português do Brasil, espelhando a noção de que existem processos figurativos de herança que possibilitam a polissemia da 250 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008 construção. Tentamos, através dos esquemas ilustrativos das ocorrências da construção demonstrar que há uma explicação para essa polissemia, baseada nas relações metafóricas existentes entre os seus diversos significados e a necessidade humana de reduzir eventos abstratos a uma escala física tangível (LAKOFF & JOHNSON, 1980; FAUCONNIER & TURNER, 2002). Notas ∗ Mestranda em Lingüística, UFJF i O corpus de dados de fala Conceição de Ibitipoca utilizado neste trabalho foi gentilmente cedido pela pesquisadora Terezinha Cristina Campos de Resende. ii Agradeço aos coordenadores do grupo de pesquisa Linguagem e Sociedade, Sônia Silveira e Paulo Gago, por cederem dados de fala do Procon/JF para o presente trabalho. iii Trecho de verbete selecionado pela autora. Referências Bibliográficas: FAUCONNIER, Gilles. & TURNER, Mark. The Way We Think – Conceptual Blending and The Mind’s Hidden Complexities. New York: Basic Books, 2002; GOLDBERG, Adele. Constructions: A construction grammar approach to argument structure. Chicago: University of Chicago Press, 1995; HOUAISS, Antônio & VILLAR, Mauro. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001; JOHNSON, Mark. The Body in Mind: The Body Basis of Meaning, Imagination, and Reason. Chicago: University of Chicago Press, 1987. LAKOFF, George. Women, Fire and Dangerous Things: What Categories Reveal about the Mind. Chicago: University of Chicago Press, 1987. LAKOFF, George & JOHNSON, Mark. Metáforas da Vida Cotidiana. Trad. Vera Maluf. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2002 [1980]; TOMASELLO, Michael. Constructing a Language: A usage-based theory of language acquisition. Harvard: Harvard University Press, 2003. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 243-251, jan.-abr. 2008 251 Construções de foco em português e espanhol sob a perspectiva da Gramática Discursivo-Funcional Sandra Denise Gasparini-Bastos1 1 Departamento de Letras Modernas – IBILCE/UNESP Rua Cristóvão Colombo, 2265 – 15054-000 – S. J. Rio Preto – SP – Brasil sandradg@ibilce.unesp.br Abstract. The purpose of this paper is to analyze how pragmatic function of focus can be seen under Functional Discourse Grammar, a new approach to Dutch Functional Grammar. This new approach is still being developed and understands discursive acts as basic units of analysis. Positive and negative polarity will be taken into account, i.e., yes and no particles, in Portuguese and Spanish answers. The occurrence of these forms was identified in news interviews from Brazilian magazine Veja and Spanish magazine El País Semanal. Keywords. focus; Functional Discourse Grammar; positive polarity; negative polarity. Resumo. Este trabalho tem por objetivo analisar como a função pragmática de foco pode ser tratada dentro da Gramática Discursivo-Funcional, nova vertente da Gramática Funcional de linha holandesa, ainda em desenvolvimento, a qual toma atos discursivos como unidades básicas de análise. Meu interesse volta-se especialmente para as formas de polaridade positiva e negativa (sim e não) em função de resposta, em português e em espanhol. Para realizar a análise, identifiquei ocorrências dessas formas em entrevistas jornalísticas impressas retiradas da revista brasileira Veja e da revista espanhola El País Semanal. Palavras-chave. foco; Gramática Discursivo-Funcional; polaridade positiva; polaridade negativa. 1. Introdução Em sua Teoria da Gramática Funcional, proposta para analisar a estrutura da frase, Dik (1997a e 1997b) considerou a existência de elementos que só poderiam ser descritos em níveis mais amplos de análise, os chamados constituintes extrafrasais. Em trabalhos anteriores (GASPARINI-BASTOS 2005 e 2006), observei o comportamento dos constituintes extrafrasais em função de resposta, especialmente as formas de polaridade positiva e as formas de polaridade negativa, sim/sí e não/no, no português e no espanhol, respectivamente. Ao analisar as ocorrências dessas formas em entrevistas jornalísticas do português e do espanhol, verifiquei que esses elementos podem receber atribuição de foco, função pragmática definida por Dik (1997a) como a informação relativamente mais importante ou saliente num dado contexto comunicativo. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 253-258, jan.-abr. 2008 253 Com a evolução da teoria da Gramática Funcional de linha holandesa, atualmente chamada de Gramática Discursivo-Funcional, meu objetivo é analisar como a noção de foco pode ser tratada dentro do novo modelo, que considera atos discursivos como unidades básicas de análise. Para tanto, identifiquei ocorrências de formas sim e não no português e sí e no no espanhol, em função de resposta, em vinte entrevistas jornalísticas impressas, sendo dez entrevistas retiradas da revista brasileira Veja e dez entrevistas retiradas da revista espanhola El País Semanal, selecionadas entre os anos de 2000 e 2001, no Brasil e na Espanha, respectivamente. 2. A Gramática Discursivo-Funcional O modelo teórico que adoto para a presente análise consiste na Gramática Discursivo-Funcional (doravante GDF), proposta por Hengeveld (2004a e 2004b) e por Hengeveld e Mackenzie (2006 e 2007 no prelo). Tal teoria, ainda em desenvolvimento, compartilha algumas das características básicas da Gramática Funcional de Dik (1997a e 1997b), mas oferece contribuições, apresentadas a seguir, no sentido de descrever elementos maiores ou menores do que a frase: a) a GDF tem uma organização top down, que parte da intenção do falante para a articulação das formas lingüísticas. Essa proposta sugere que o falante primeiro decide qual vai ser seu propósito comunicativo para depois selecionar e codificar a informação gramaticalmente; b) a GDF toma o ato discursivo e não a frase como unidade básica de análise, podendo tratar de unidades maiores ou menores do que a frase; c) a GDF consiste em uma abordagem hierárquica e modular, com quatro níveis de análise – interpessoal (nível pragmático), representacional (nível semântico), morfossintático e fonológico. Os quatro níveis interagem para produzir as formas lingüísticas apropriadas. O modelo da GDF está em conformidade com a busca de adequação psicológica das gramáticas funcionais, já que se baseia no processo de produção da fala descrito por Levelt (1989), cuja análise sugere que o falante primeiro decide qual vai ser seu propósito comunicativo, seleciona a informação mais adequada para alcançar esse propósito, codifica a informação gramaticalmente e fonologicamente e, por fim, realiza o processo de articulação. Embora o modelo busque abranger de forma mais completa o processo de interação, não se trata um modelo de análise do discurso, mas sim de um modelo gramatical. 3. O foco na GDF Enquanto função pragmática, a atribuição de foco ocorre no nível interpessoal da Gramática Discursivo-Funcional, cujas unidades relevantes são organizadas hierarquicamente. No nível mais alto está o move, que consiste de um ou mais atos discursivos. Cada ato compreende uma ilocução (ILL), os participantes da comunicação (P1 e P2) e um conteúdo comunicado (C). Dentro do conteúdo comunicado pode haver um ou mais subatos. O move é a maior unidade de interação relevante para a análise gramatical e está formado por um ou mais atos. Os atos são definidos como as menores unidades de comportamento comunicativo. Dentro do ato, o conteúdo comunicado contém tudo o 254 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 253-258, jan.-abr. 2008 que o falante deseja evocar em sua comunicação. Cada conteúdo comunicado pode conter um ou mais subatos e pelo menos um deles oferecerá a informação comunicativamente mais “saliente” e receberá a atribuição da função pragmática de foco. Conforme explicitado em Keiser e van Staden (no prelo), dentro do novo modelo a noção de foco restringe-se a três tipos: a) foco novo: assinala a seleção estratégica do falante da informação nova; b) foco enfático: assinala o desejo do falante de que o ouvinte dê atenção especial a um subato; c) foco contrastivo: assinala o desejo do falante de destacar diferenças e similaridades particulares entre um conteúdo comunicado e uma informação contextualmente disponível. Foco novo e foco enfático são atribuídos a um subato dentro do conteúdo comunicado, enquanto a noção de contraste pode envolver mais que um subato. 4. Análise dos dados A análise das ocorrências das formas de polaridade positiva (sim no português e sí no espanhol) e das formas de polaridade negativa (não no português e no no espanhol), em função de resposta, mostra que os casos mais freqüentes são de foco novo, típico de pares adjacentes (pergunta-resposta), comuns em entrevistas jornalísticas, como nos exemplos: (01) (Veja) A separação assusta os homens? (Cuschnir) Sim. Separação e desemprego, nesta ordem, são os grandes cataclismos na vida de um homem. (Veja, ano 33, nº 15, 12 de abril de 2000, p. 15) (02) (Veja) Vocês se casaram com separação de bens. Foi difícil a negociação? (Ronaldo) Não. Hoje em dia todo mundo toma esses cuidados. (Veja, ano 33, nº 1, 5 de janeiro de 2000, p. 14) (03) (El País Semanal) ¿Era usted más artista de niña que Lolita? (Rosario Flores) Sí, yo era la más artista de los tres hermanos. (El País Semanal, nº 1313, 25 de novembro de 2001, p. 17) (04) (El País Semanal) Se advierte cierto toque de desesperanza en sus manifestaciones. ¿Es una persona pesimista? (Pepa Flores) No. A pesar de todo lo que estoy diciendo, yo tengo mucha esperanza y creo en los seres humanos por encima de todo. (El País Semanal, nº 1235, 28 de maio de 2000, p. 22) Nos exemplos de (01) a (04), tem-se um move de ação do entrevistador (a pergunta) e um move de reação do entrevistado (a resposta). Nos quatro casos, o move de resposta está composto por um único ato discursivo, formado cada qual por dois subatos. As ocorrências de sim/sí e de não/no, nesses casos, que constituem o primeiro subato de ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 253-258, jan.-abr. 2008 255 cada ato, recebem atribuição de foco novo, pois compreendem a informação que completa o que foi perguntado pelo entrevistador. Os subatos subseqüentes trazem, em seus conteúdos comunicados, informações que complementam a resposta. Nos exemplos (01) e (03), o move de pergunta do entrevistador compreende um único ato interrogativo. Nesse caso, move e ato coincidem. Já nos exemplos (02) e (04), o move do entrevistador é composto por dois atos discursivos, com estatutos ilocucionários diferentes, sendo o primeiro deles declarativo e o outro interrogativo. Conforme Hengeveld e Mackenzie (no prelo), a relação estabelecida entre esses dois atos é de dependência, já que o primeiro ato prepara a pergunta contida no segundo. Além das seqüências típicas pergunta-resposta, são identificadas também, tanto nos dados do português como nos dados do espanhol, algumas ocorrências das chamadas “perguntas retóricas”, feitas pelo entrevistado a ele mesmo, conforme os exemplos (05) e (06): (05) (Scolari) Pioramos tanto num espaço tão curto de tempo? Não. Mas, por motivos que não me cabe comentar, meus antecessores, Wanderley Luxemburgo e Leão, deixaram de lado a base daquele time de 1998. (Veja, ano 34, nº 44, 7 de novembro de 2001, p. 11) (06) (Héctor Cúper) Ahora, ¿un premio Nobel tiene por eso menos capacidad de influencia que un jugador? No. Si lo medimos con la vara económica, un jugador gana más que un premio Nobel. (El País Semanal, nº 1249, 3 de setembro de 2000, p. 12) Embora os enunciados pertençam ao mesmo falante, há dois moves diferentes, sendo um de ação e outro de reação. Os moves de resposta estão constituídos, ambos, por um ato discursivo, com dois subatos cada. O processo de focalização funciona de maneira semelhante aos exemplos discutidos anteriormente, sendo as ocorrências de não e de no tratadas como casos de foco novo. A seqüência pergunta-resposta é típica das entrevistas do português, diferentemente do que ocorre nas entrevistas do espanhol que analisei. Embora existam pares típicos de pergunta e resposta nos dados do espanhol, na maioria dos casos as perguntas explícitas são substituídas por solicitações implícitas, como ocorre no exemplo (07): (07) (El País Semanal) El lío de los recuentos volvió a aportar una mala imagen de Florida. (Mel Martínez) Sí, y no fue justo. (El País Semanal, nº 1293, 8 de julho de 2001, p. 14) Apesar da ausência da ilocução interrogativa, comum nas entrevistas, o move de resposta do entrevistado constitui uma reação ao move do entrevistador e está constituído por um ato discursivo, composto por dois subatos. A forma sí do exemplo (07) representa igualmente um caso de atribuição de foco novo. Embora a posição de início de move seja a prototípica para as formas sim/sí e não/no, tanto no português como no espanhol, são encontradas no córpus algumas ocorrências de dupla negação, com a forma de polaridade aparecendo como o segundo subato. Exemplos: 256 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 253-258, jan.-abr. 2008 (08) (Veja) Na Itália, apedrejaram seu carro depois da derrota para a Udinese. Você chegou a ameaçar deixar a Inter... (Ronaldo) Não é só na Itália, não. (Veja, ano 33, nº 1, 5 de janeiro de 2000, p. 14) (09) (El País Semanal) ¿Pero qué quiere decir, que los chicos deben estar con usted, que deben estar en el juego? (Camacho) No significa que deben estar conmigo…, no. (El País Semanal, nº 1236, 4 de junho de 2000, p. 24) Nesses exemplos, a informação nova está contida no conteúdo comunicado do primeiro subato (“não é só na Itália” no exemplo (08) e “não significa que devem estar comigo” no exemplo (09)), que recebe atribuição de foco novo. Os subatos representados pelas formas de polaridade negativa constituem um reforço da informação. Tem-se, nesse caso, a ocorrência de foco enfático. Identifiquei, ainda, casos em que as formas sim e não no português e sí e no no espanhol não seguem uma pergunta explícita nem uma solicitação implícita, aparecendo como subatos que ocupam uma posição intermediária dentro do move do falante, conforme exemplos (10) e (11): (10) (João Ubaldo) Não há explicação para esse tipo de coisa, de forma que eu não tenho nenhuma prescrição, nenhuma receita a dar a ninguém. Tenho, sim, uma experiência de vida. (Veja, ano 33, nº 7, 16 de fevereiro de 2000, p. 15) (11) (Vilhena) Os alunos que conseguiram entrar para dividir espaço com a pequena elite que dominava o acesso à universidade chegaram a fazer mestrado ou doutorado no exterior. Foi uma revolução. Não baixou a qualidade, não. Ao contrário. (Veja, ano 34, nº 41, 17 de outubro de 2001, p. 12) No exemplo (10), observa-se um caso de contraste marcado por dois subatos (“eu não tenho nenhuma prescrição” e “tenho uma experiência de vida”). O entrevistado destaca as diferenças entre os dois conteúdos comunicados, sendo a forma sim uma marca de foco contrastivo. Conforme aponta Martínez Caro (1998), ao analisar dados do espanhol em contextos semelhantes ao do exemplo (10) em português, o contraste estabelecido pela forma sim (sí) pode estar explícito ou implícito. O exemplo (10) mostra uma ocorrência de contraste explícito. Já a ocorrência da dupla negativa em (11) não é motivada por uma pergunta do entrevistador, mas sim por uma suposta dúvida existente na situação de interação. Ao discorrer sobre a abertura de vagas na universidade em que trabalha, o entrevistado antecipa-se a uma possível pergunta do entrevistador, informando que a expansão do número de vagas na universidade não baixou a qualidade do ensino. A forma não, nesse tipo de ocorrência, marca um caso de foco contrastivo, por meio do qual o falante destaca sua posição contrária em relação a um conteúdo disponível no contexto. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 253-258, jan.-abr. 2008 257 5. Considerações finais Este trabalho procurou avaliar as ocorrências de foco nas construções de resposta constituídas pelas formas de polaridade positiva (sim e sí) e pelas formas de polaridade negativa (não e no), em entrevistas jornalísticas impressas do português e do espanhol. Os dados mostram que essas formas, enquanto componentes de atos discursivos no interior do move, podem receber atribuição dos três tipos de foco previstos pela Gramática Discursivo-Funcional, nova vertente da Gramática Funcional, ainda em desenvolvimento. Os casos mais comuns são de foco novo, seguidos das ocorrências de foco enfático e de foco contrastivo, sendo que os últimos podem contrastar conteúdos comunicados explícitos ou apenas presentes contextualmente. Referências DIK, S. The theory of Functional Grammar. Dordrecht: Foris, 1997a. _____ . The theory of Functional Grammar: Part II. Berlin, New York: Mouton de Gruyter, 1997b. GASPARINI-BASTOS, S. D. As construções de polaridade positiva e negativa como constituintes extrafrasais. Estudos lingüísticos, v. 34, p.439-444, 2005. Disponível em http://www.gel.org.br. Acesso em: 11 ago. 2005. ____ . A relação entre construções de polaridade positiva e negativa e a função pragmática de foco. Estudos Lingüísticos, v. 35, p.1780-1785, 2006. Disponível em http://www.gel.org.br. Acesso em: 10 ago. 2006. HENGEVELD, K. The architecture of a Functional Discourse Grammar. In: GÓMEZGONZÁLES, M.; MACKENZIE, L. (eds.). A new architecture for Functional Grammar. Berlin: Mouton de Gruyter, 2004a. p.1-21. _____. Epilogue. In: GÓMEZ-GONZÁLEZ, M.; MACKENZIE, L. (eds.). A new architecture for Functional Grammar. Berlin: Mouton de Gruyter, 2004b. p.365378. HENGEVELD, K.; MACKENZIE, J. L. Functional Discourse Grammar. In: BROWN, K. (ed.). Encyclopedia of Language and Linguistics, 2.ed. Amsterdam: Elsevier, 2006. p.668-676. ____ . Functional Discourse Grammar. Oxford: Oxford University Press. 2007. No prelo. KEISER, E.; Van STADEN, M. The interpersonal level in Functional Discourse Grammar. No prelo. LEVELT, W. J. M. Speaking: from intention to articulation. Cambridge: MIT Press, 1989. MARTÍNEZ CARO, E. Parallel focus in English and Spanish: evidence from conversation. In: HANNAY, M.; BOLKESTEIN, A. M. (eds.). Functional Grammar and verbal interaction. Amsterdam: John Benjamins, 1998. p.215-242. 258 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 253-258, jan.-abr. 2008 Verbos de processo: causatividade & consecutividade Sebastião Expedito Ignácio1, Ana Carolina Sperança2 1 2 Departamento de Lingüística – Universidade Estadual Paulista (UNESP - Araraquara) Programa de Pós-Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa – Universidade Estadual Paulista (UNESP – Araraquara) expedito@techs.com.br, carolinasperanca@yahoo.com.br Abstract. In this paper, we discuss the relation causativity & consecutivity, studying the mechanisms that form process clause structures and the possibilities (and conditionings) of occurrence of corresponding active-process sentences, concerning the different process verbs’ properties. This work is based on verb centrality principle and on the argument theory according to the valency grammar and case grammar. Keywords: process verbs; causativity; consecutivity; themathic roles. Resumo. Pretende-se, neste trabalho, discutir a relação de causatividade & consecutividade, estudando-se os mecanismos de realização das estruturas oracionais processivas e as possibilidades (e condicionamentos) de ocorrência de frases ativo-processivas correspondentes, tendo em vista as propriedades dos diversos tipos de verbos de processo. O trabalho fundamenta-se no princípio da centralidade do verbo e na teoria da argumentação segundo a gramática de valência e a gramática de casos. Palavras-chave: verbos de processo; causatividade; consecutividade; papéis temáticos. 1. Preliminares Considerando-se que o verbo de processo assim se caracteriza por selecionar um argumento afetado na posição de sujeito, infere-se que essa classe de verbos pressupõe, em princípio, um elemento causativo, responsável pelo afetamento do primeiro argumento (Ignácio, 1994). Essa causa, que pode vir explícita ou implícita, demonstra-se ora lingüisticamente, ora logicamente. Dessa forma, na falta de outra nomenclatura, chamaremos os verbos de processo de verbos consecutivos e os dividiremos em dois grandes grupos: - os que pressupõem um verbo causativo correspondente (cair < derrubar; morrer < matar, etc.: O copo caiu./Ele derrubou o copo.) - os que não possuem um correspondente causativo determinado (crescer; balançar(-se); entristecer(-se), correr; escorrer, etc.: O suor corria/escorria pelo seu corpo; etc.). ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 259-266, jan.-abr. 2008 259 Entende-se por processo a relação de afetamento (mudança de estado físico ou psicológico) sofrida por um ser em conseqüência do fato expresso pelo verbo numa estrutura oracional. Dessa forma, entende-se por verbo de processo aquele que seleciona um sujeito afetado, física ou psicologicamente: (i) O vaso quebrou1. (ii) Janaína entristeceu. O sujeito desse tipo de verbo se caracteriza como Paciente e se subcategoriza como Experimentador, no caso dos seres animados que “experimentam” uma sensação, como é o caso do exemplo (ii), Janaína entristeceu. Conforme lembra Chafe (1979), o verbo de processo indica um acontecer em relação ao nome que o acompanha na construção da frase, seja esse nome o que preenche a função de sujeito, como nos exemplos acima, seja o que funciona como objeto nas estruturas oracionais em que há, ao mesmo tempo, ação e processo: (iii) João quebrou o vaso. (iv) Este fato entristeceu Janaína. Nos dizeres de Borba (1996, p.58), “Os verbos de processo expressam um evento ou sucessão de eventos que afetam um sujeito paciente ou experimentador. Por isso traduzem sempre um acontecer ou um experimentar, isto é, algo que se passa com o sujeito ou que ele experimenta”. Tendo-se em vista, pois, que o nome associado ao verbo de processo, sendo afetado, “sofre” ou “experimenta” um efeito ou conseqüência do fato expresso pelo verbo, é lícito afirmar que esse verbo se possa considerar como consecutivo, isto é, expressa o resultado de uma causa que pode vir explícita ou implícita, ora se realizando lingüisticamente, ora se pressupondo logicamente. No primeiro caso, o elemento causativo pode vir expresso como complemento: (v) A árvore caiu com o vento. (vi) A porta do carro abriu com o impacto da colisão. Essas estruturas processivas correspondem sempre a uma estrutura ativo-processiva, onde o complemento causativo é alçado a sujeito, ora se conservando a mesma raiz verbal, ora se realizando com um verbo causativo correspondente ao verbo consecutivo, como será demonstrado adiante. 2. Papéis temáticos (casos semânticos) que compõem as estruturas em que há processo Nas estruturas meramente de processo, o sujeito, na proposta de Chafe (1979), é Paciente. Na verdade, o termo “Paciente” constitui aí um caso genérico, aplicado tanto a 260 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 259-266, jan.-abr. 2008 seres animados como não-animados. Propomos aqui a subcategorização desse termo, considerando como Experimentador ou Experienciador (Exp), segundo a classificação de Fillmore (1971 e 1977), o caso de seres animados que experimentam um afetamento nas estruturas com verbos psicológicos (Cançado, 1997), reservando o termo Paciente (Pac) aos seres não-animados. Ex.: (1) Paulo magoou-se. (Exp) (2) Joana entristeceu(-se). (Exp) (3) O muro caiu. (Pac) (4) A porta abriu. (Pac) Ainda nestas estruturas, podem-se explicitar, na posição de complemento, os papéis temáticos Instrumental (Instr) e Causativo (Ca), responsáveis pela causatividade. Ex.: (5) Paulo magoou-se com as palavras ásperas da esposa. (Instr) (6) Joana entristeceu-se com a notícia. (Ca) (7) O muro caiu com o vento. (Ca) (8) A porta abriu com a chave. (Instr) Nas estruturas de ação-processo, esses mesmos papéis temáticos acrescentados do Agentivo (Ag) se revezam na posição de sujeito, aparecendo na posição de complemento o Paciente e o Experimentador. Ex.: (9) A esposa de Paulo o magoou com sua atitude. (Ag; Exp; Instr) (10) A atitude da esposa magoou Paulo. (Instr; Exp) (11) A notícia entristeceu Joana. (Ca; Exp) (12) O vento derrubou o muro. (Ca; Pac) (13) A chave abriu a porta. (Instr; Pac) 3. Elementos causativos relacionados à consecutividade dos verbos de processo Constitui uma evidência dizer que não pode haver efeito sem causa. Assim, é forçoso reconhecer que todo verbo de processo pressupõe um elemento ou um fato responsável pelo evento expresso por ele. Como já dito, esse elemento ou esse fato podem vir expressos ou ser recuperados lingüisticamente, ou poderão estar implícitos logicamente. No primeiro caso, a causatividade poderá estar expressa no complemento, ou pode ser recuperada numa estrutura pressuposta, de ação-processo, na forma de um sujeito Agente, Causativo ou Instrumental. Ex.: ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 259-266, jan.-abr. 2008 261 (14) A porta abriu. pressupõe: (15) João (Ag) / O vento (Ca) / Uma chave falsa (Instr) abriu a porta. No segundo caso, a causatividade se pressupõe logicamente, mas não se tem um elemento ou uma estrutura lingüística correspondente recuperável. Ex.: (16) Os rios correm para o mar. (17) Joãozinho cresceu de repente. (18) O suor escorria pelo seu rosto. Evidentemente há uma causa responsável pelo movimento das águas dos rios, pelo crescimento de Joãozinho e pelo fato de o suor escorrer pelo rosto. Todavia, essa causa não é recuperável lingüisticamente, a não ser através de uma paráfrase imaginativa. Nesta etapa do trabalho, entretanto, não tratamos destes casos. Analisamos apenas os verbos que pressupõem como causativo um elemento lingüístico facilmente recuperável ou que enseja uma paráfrase real. Os elementos lingüísticos que representam a causatividade nas estruturas processivas se associam, basicamente, a três casos ou funções semânticas: Agentivo, Causativo e Instrumental. Como já exemplificado, essas funções ocupam a posição de sujeito em estruturas ativo-processivas reconstituídas a partir de estruturas processivas. E nestas são o Causativo e o Instrumental que ocorrem mais freqüentemente como elementos que explicitam a causatividade. Em raríssimos casos o Agentivo pode ocupar a posição de complemento, e nesses casos não se caracteriza propriamente como causa, mas como origem. Ex.: (19) Marta apanhou do marido. Nesse exemplo, a paráfrase possível não recupera, na posição de sujeito, a causatividade no sentido que a estamos considerando, mas sim o desencadeador ou a origem da ação: (20) O marido bateu em Marta. Neste caso, a tentativa de se detectar uma causa fica no plano das especulações, a menos que o contexto a explicite, e aí a análise deixa de se restringir aos limites da oração e se estende ao âmbito do discurso. 4. Propriedade dos papéis temáticos (casos semânticos) responsáveis pela causatividade nas estruturas processivas 262 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 259-266, jan.-abr. 2008 Como visto, Agentivo, Causativo e Instrumental se revezam nas representações das causas que dão origem ao afetamento do nome (sujeito, nas estruturas meramente de processo, e complemento, nas estruturas de ação-processo). Disso se infere que esses papéis temáticos têm propriedades comuns, todavia apresentam certos traços característicos que os distinguem e que, conseqüentemente, implicam em algumas limitações e condicionamentos na realização das estruturas oracionais, bem como nas derivações ou transformações permitidas ou pressupostas. Em princípio, o traço causatividade se faz presente em todos eles, uma vez que são igualmente os responsáveis, diretos ou indiretos, pelo desencadeamento da ação ou do evento que resulta no afetamento do nome. O traço animacidade é obrigatório para o Agentivo e facultativo para o Causativo e o Instrumental. Isto se pode demonstrar na dimensão pragmática. Sejam os exemplos: (21) Paulo magoou a esposa com sua atitude. [Ag +animado] (22) A atitude de Paulo magoou a esposa. [Instr –animado] (23) Paulo utilizou-se de um amigo para magoar a esposa. [Instr +animado] (24) O carro tombou devido a um buraco na pista. [Ca –animado] (25) O carro tombou devido a um animal atravessando a pista. [Ca +animado] Os traços voluntariedade e manipulação são definitivamente distintivos: enquanto o Agentivo é voluntário e manipulador, o Instrumental é não-voluntário e manipulado, e o Causativo é não-voluntário, não-manipulado. Dessa forma, o Instrumental sempre pressupõe um Agentivo que o manipula, sendo, neste caso, o primeiro a causa imediata e o segundo a causa mediata. Nas estruturas exclusivamente de processo, em que o sujeito é afetado (Paciente, Experimentador), apenas o Causativo e o Instrumental se realizam, na posição de complementos, como responsáveis pela causatividade do afetamento do sujeito e pela consecutividade que se estabelece entre o verbo e o sujeito. O Agentivo, como visto, não se realiza como complemento causativo, no entanto sempre se pressupõe como causa mediata quando há um Instrumental, uma vez que este não se realiza sem que haja um manipulador. Ex.: (26) A árvore caiu com o vento. (Ca) (27) O pugilista foi a nocaute com apenas um golpe. (Instr) Em (26) “o vento” se caracteriza como Causativo por não ser manipulado. Em (27) “um golpe” se caracteriza como Instrumental por pressupor um Agente (alguém desferiu o golpe). Note-se que, neste caso, o Agentivo poderia se explicitar na forma de adjunto adnominal, como a causa mediata, isto é, o manipulador do Instrumental, e aí esse Agentivo não se caracterizaria propriamente como papel temático, que seria o conjunto nome+adjunto adnominal, portanto Instrumental: ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 259-266, jan.-abr. 2008 263 (28) O pugilista foi a nocaute com apenas um golpe do adversário. Aqui se poderiam pressupor duas estruturas parafrásticas de ação-processo: (29) Apenas um golpe do adversário nocauteou o pugilista. (30) O adversário nocauteou o pugilista com apenas um golpe. Em (28), o papel temático Instrumental é representado pelo conjunto “um golpe do adversário” que se realiza na posição de sujeito; em (30), o Agentivo, realizando-se como sujeito, desmembra-se do Instrumental que passa a posição de complemento. Note-se que em (28) a forma “foi a nocaute”, formada por um verbo suporte mais um nome abstrato, correspondendo virtualmente a um uma raiz verbal cognata do nome, funciona como um verbo de processo. Já em (29) e (30), a forma “nocauteou” lexicaliza tanto a ação (causa) como o processo (conseqüência). Esse fato, como se verá adiante, tem conseqüências nas transformações de estruturas processivas em estruturas ativoprocessivas. Desde já pode-se dizer que, sendo tanto o Causativo como o Instrumental portadores do traço causatividade, fica evidente o traço consecutividade nos verbos de processo. E ainda que não se possa recuperar formalmente aqueles papéis temáticos, o fato de ser o sujeito afetado implica aí uma relação de causa e efeito. 5. Alguns condicionamentos para as transformações de estruturas processivas em estruturas ativo-processivas As estruturas ativo-processivas podem realizar-se com a mesma raiz verbal da estrutura processiva ou com um verbo de outra raiz, porém caracteristicamente causador do evento expresso pelo verbo de processo. Isso ocorre nas seguintes condições: a) se o verbo lexicaliza apenas o processo, a estrutura ativo-processiva correspondente se realiza com um verbo causativo, de raiz diversa, correspondente à ação que resulta no evento expresso: (31) A árvore caiu com o vento. (32) A garota morreu com uma bala perdida. Correspondem a: (33) O vento derrubou a árvore. (34) Uma bala perdida matou a garota. Observações: 264 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 259-266, jan.-abr. 2008 I. Uma vez que esses verbos lexicalizam apenas o processo, não podem, evidentemente, participar de uma estrutura de ação-processo, por isso se tornam agramaticais estruturas como: (35) *O vento caiu a árvore. (36) *Uma bala perdida morreu a garota. II. Há certos verbos que, embora lexicalizem apenas o processo, não possuem um causativo correspondente. Neste caso, emprega-se o modalizador FAZER seguido do infinitivo do verbo de processo: (37) A criança dormiu com a canção de ninar. (38) A canção de ninar fez a criança dormir. Pela mesma razão apresentada em I, será agramatical: (39) *A canção de ninar dormiu a criança. III. Os verbos que lexicalizam exclusivamente o processo são consecutivos por excelência. b) se o verbo pode lexicalizar tanto a ação quanto o processo, a estrutura ativo-processiva se realiza com o mesmo verbo: (40) A criança acordou com o barulho. (41) O barulho acordou a criança. (42) O gelo derreteu com o calor. (43) O calor derreteu o gelo. Neste caso, o verbo adquire na estrutura ativo-processiva um caráter misto de causatividade e consecutividade, ou seja, ao mesmo tempo em que indica um FAZER por parte do sujeito, indica um ACONTECER em relação ao complemento. 5. Conclusão O fato de os verbos de processo selecionarem um sujeito afetado implica que estabelecem uma relação de consecutividade. Tem-se, portanto, que os verbos de processo pressupõem sempre uma causa responsável pela conseqüência por eles desencadeada. Essa causa se explicita pelos papéis temáticos Causativo e Instrumemntal, na posição de ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 259-266, jan.-abr. 2008 265 complemento nas estruturas meramente processivas, e por Agentivo, Causativo e Instrumental, nas estruturas ativo-processivas. Uma estrutura meramente processiva [sujeito afetado + verbo de processo ± complemento] pressupõe sempre uma estrutura ativo-processiva correspondente, cujo verbo poderá ser de raiz diversa do verbo de processo da estrutura primitiva, indicando apenas a causatividade, ou será o mesmo verbo da estrutura primitiva, indicando, ao mesmo tempo, a causatividade e a consecutividade. 6. Referências Bibliográficas BORBA, F. S. Uma gramática de valências para o português. São Paulo: Ática, 1996. CANÇADO, M. Verbos psicológicos do português brasileiro e a análise inacusativa de Belletti & Rizzi: indícios para uma proposta semântica. D.E.L.T.A., São Paulo, v. 13, n. 1, 1997. CHAFE, W. Significado e estrutura lingüística. Trad. de M. H. M. Neves et al. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, 1979 [1970]. FILLMORE, C. Some problems for case grammar. In: O´BRIEN, R.J. (ed.) Monograph series on language and linguistic, n. 24. Washington: Georgetown Univ. Press, 1971. ______ The case for case reopened. In: COLE, (ed). Et alii – Sintax and semantics: grammatical relations, 8. New York: Academic Press, 1977. IGNÁCIO, S. E. O processo da derivação frasal nas frases dinâmicas do português escrito contemporâneo do Brasil. ALFA Revista de Lingüística, 1994, p. 33-45. 1 Os exemplos citados são estruturas representativas das constantes do corpus (Centro Lexicográfico da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP-Araraquara), simplificadas, mas que conservam a mesma configuração sintática. 266 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 259-266, jan.-abr. 2008