CERÂMICAS ARQUEOLÓGICAS DA AMAZÔNIA
Rumo a uma nova síntese
CRISTIANA BARRETO
HELENA PINTO LIMA
CARLA JAIMES BETANCOURT
Organizadoras
IPHAN |MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI |2016
CRÉDITOS
Presidenta da República do Brasil
DILMA R OUSSEF
Ministro da Ciência, T
ecnologia e Inovação
Tecnologia
C ELSO P ANSERA
Ministro de Estado da Cultura
Diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi
NILSON G ABAS J ÚNIOR
J UCA F ERREIRA
Presidente do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional
J UREMA DE S OUZA M ACHADO
Diretoria do Iphan
MARCOS J OSÉ S ILVA R ÊGO
ANDREY R OSENTHAL S CHLEE
TT C ATALÃO
L UIZ P HILIPPE P ERES T ORELLY
Coordenação Editorial
S YLVIA M ARIA B RAGA
Projeto Gráfico
R ARUTI C OMUNICAÇÃO
E
Coordenadora de Pesquisa e Pós-Graduação
ANA V ILACY G ALÚCIO
Coordenadora de Comunicação e Extensão
MARIA E MÍLIA DA C RUZ S ALES
Coordenação Editorial
NÚCLEO E DITORIAL DE L IVROS
Produção Editorial
I RANEIDE S ILVA
ANGELA B OTELHO
Design Gráfico
A NDRÉA P INHEIRO
( CAPA E EDITORAÇÃO
ELETRÔNICA )
D ESIGN /C RISTIANE D IAS
Editora Assistente
T EREZA L OBÃO
Fotos: Cristiana Barreto, Edithe Pereira, Glenn Shepard, Sivia Cunha Lima; Wagner Souza
Imagem da capa: Vaso da cultura Santarém, acervo Museu Paraense Emílio Goeldi. Foto: Glenn Shepard.
Cobra-canoa (kamalu hai)
(desenho de Aruta Wauja, 1998; Coleção Aristóteles Barcelos Neto).
Kamalu Hai é a gigantesca cobra-canoa que apareceu para os Wauja, há muito tempo, oferecendo-lhes a visão primordial de todos os tipos de
panelas cerâmicas, o que lhes conferiu o conhecimento exclusivo sobre a arte oleira. As panelas chegaram navegando e cantando sobre o dorso
da grande cobra que antes de ir embora defecou enormes depósitos de argila ao longo do rio Batovi para que eles pudessem fazer sua própria
cerâmica. Segundo o mito, esta é a razão pela qual apenas os Wauja sabem fazer todos os tipos de cerâmica (Barcelos Neto, 2000).
Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese / Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes
Betancourt, organizadoras. Belém : IPHAN : Ministério da Cultura, 2016.
668 p.: il.
ISBN 978-85-61377-83-0
1. Cerâmica – Brasil - Amazônia. 2. Cerâmicas Arqueológicas. I. Barreto, Cristiana. II. Lima, Helena Pinto. III.
Betancourt, Carla Jaimes.
CDD 738.098115
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO
AÇÃO DO IPHAN - Andrey Rosenthal Schlee
APRESENT
APRESENT
AÇÃO DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI - Nilson Gabas Jr.
APRESENTAÇÃO
PREFÁCIO - Michael Joseph Heckenberger
INTRODUÇÃO - Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes Betancourt
INTRODUCCIÓN - Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes Betancourt
8
9
10
12
14
TE I - A HISTÓRIA MOLDADA NOS POTES: INTRODUÇÃO A UMA LONGA VIAGEM
PAR
ARTE
17
NOVOS OLHARES SOBRE AS CERÂMICAS ARQUEOLÓGICAS DA AMAZÔNIA
Helena Pinto Lima, Cristiana Barreto, Carla Jaimes Betancourt
19
NÃO EXISTE NEOLÍTICO AO SUL DO EQUADOR: AS PRIMEIRAS CERÂMICAS
AMAZÔNICAS E SUA FFAL
AL
TA DE RELAÇÃO COM A AGRICUL
TURA
ALT
AGRICULTURA
Eduardo Góes Neves
32
TIPOS CERÂMICOS OU MODOS DE VIDA?
ETNOARQUEOLOGIA E AS TRADIÇÕES ARQUEOLÓGICAS CERÂMICAS NA AMAZÔNIA
Fabíola Andréa Silva
40
QUADRO CRONOLÓGICO DOS COMPLEXOS CERÂMICOS DA AMAZÔNIA
50
MAP
A ARQUEOLÓGICO DOS COMPLEXOS CERÂMICOS DA AMAZÔNIA
MAPA
51
PAR
TE II - SUBINDO O AMAZONAS NA COBRA CANOA
ARTE
53
II.1. NORDESTE AMAZÔNICO
54
LA CERÁMICA DE LAS GUY
ANAS
GUYANAS
Stéphen Rostain
55
LA TRADICIÓN ARAUQUINOÍDE EN LA GUY
ANA FRANCESA:
GUYANA
LOS COMPLEJOS BARBAKOEBA Y THÉMIRE
Claude Coutet
OS COMPLEXOS CERÂMICOS DO AMAPÁ: PROPOST
A DE UMA NOV
SISTEMATIZAÇÃO
PROPOSTA
NOVA
TIZAÇÃO
A SISTEMA
João Darcy de Moura Saldanha, Mariana Petry Cabral, Alan da Silva Nazaré
Jelly Souza Lima, Michel Bueno Flores da Silva
ASES”:
AIRE DES V
“C’EST CURIEUX CHEZ LES AMAZONIENS CE BESOIN DE FFAIRE
VASES”:
ALIKUR DE GUY
ARERAS P
ALF
ANA
GUYANA
PALIKUR
ALFARERAS
Stéphen Rostain
O QUE A CERÂMICA MARAJOARA NOS ENSINA
SOBRE FLUXO ESTILÍSTICO NA AMAZÔNIA?
Cristiana Barreto
71
86
97
115
A CERÂMICA MINA NO EST
ADO DO PARÁ: OLEIRAS DAS ÁGUAS SALOBRAS DA AMAZÔNIA
ESTADO
Elisângela Regina de Oliveira, Maura Imazio da SilveirA
125
A CERÂMICA MINA NO MARANHÃO
Arkley Marques Bandeira
147
O COMPLEXO CERÂMICO DAS ESTEARIAS DO MARANHÃO
Alexandre Guida Navarro
158
II.2. BAIXO AMAZONAS E XINGU
170
ARQUEOLOGIA DOS TUPI-GUARANI NO BAIXO AMAZONAS
Fernando Ozorio de Almeida
171
CERÂMICAS E HISTÓRIAS INDÍGENAS NO MÉDIO-BAIXO XINGU
Lorena Garcia
183
CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A CERÂMICA ARQUEOLÓGICA
TA GRANDE DO XINGU
VOLT
DA VOL
Letícia Morgana Müller, Renato Kipnis, Maria do Carmo Mattos Monteiro dos Santos,
Solange Bezerra Caldarelli
CERÂMICAS ARQUEOLÓGICAS DA FOZ DO XINGU:
UMA PRIMEIRA CARACTERIZAÇÃO
Helena Pinto Lima, Glenda Consuelo Bittencourt Fernandes
196
210
CERÂMICA E HISTÓRIA INDÍGENA DO AL
TO XINGU
ALTO
Joshua R. Toney
224
AJÓS
CERÂMICAS DA CUL
TURA SANT
TAPAJÓS
CULTURA
SANTARÉM,
ARÉM, BAIXO TAP
Joanna Troufflard
237
CERÂMICA SANT
ARÉM DE ESTILO GLOBULAR
SANTARÉM
Márcio Amaral
253
AS CERÂMICAS DOS SÍTIOS A CÉU ABER
ABERTO
TO DE MONTE ALEGRE:
ARA A ARQUEOLOGIA DO BAIXO AMAZONAS
PARA
SUBSÍDIOS P
Cristiana Barreto, Hannah F. Nascimento
262
CERÂMICAS POCÓ E KONDURI NO BAIXO AMAZONAS
Lílian Panachuck
279
II.3. AMAZÔNIA CENTRAL
288
AS CERÂMICAS SARACÁ E A CRONOLOGIA REGIONAL DO RIO URUBU
Helena Pinto Lima, Luiza Silva de Araújo, Bruno Marcos Moraes
289
AS CERÂMICAS AÇUTUBA E MANACAPURU DA AMAZONIA CENTRAL
Helena Pinto Lima
303
CONTEXTO E RELAÇÕES CRONOESTILÍSTICAS
DAS CERÂMICAS CAIAMBÉ NO LAGO AMANÃ, MÉDIO SOLIMÕES
Jaqueline Gomes, Eduardo Góes Neves
321
UMA MANEIRA AL
TERNA
TIV
A DE INTERPRET
AR
ALTERNA
TERNATIV
TIVA
INTERPRETAR
OS ANTIPLÁSTICOS E A DECORAÇÃO NAS CERÂMICAS AMAZÔNICAS
Claide de Paula Moraes, Adília dos Prazeres da Rocha Nogueira
334
A TRADIÇÃO POLÍCROMA DA AMAZÔNIA
Jaqueline Belletti
348
A NOS CONTEXTOS DO BAIXO RIO SOLIMÕES
A FASE GUARIT
GUARITA
Eduardo Kazuo Tamanaha
365
A SERPENTE DE VÁRIAS FFACES:
ACES: ESTILO E ICONOGRAFIA DA CERÂMICA GUARIT
A
GUARITA
Erêndira Oliveira
373
II.4. SUDOESTE DA AMAZÔNIA
484
VARIABILIDADE CERÂMICA E DIVERSIDADE CUL
TURAL NO AL
TO RIO MADEIRA
CULTURAL
ALTO
Silvana Zuse
385
A CERÂMICA POLÍCROMA DO RIO MADEIRA
Fernando Ozório de Almeida, Claide de Paula Moraes
402
CERÂMICAS DO ACRE
Sanna Saunaluoma
414
A FASE BACABAL E SUAS IMPLICAÇÕES P
ARA A INTERPRET
AÇÃO
PARA
INTERPRETAÇÃO
DO REGISTRO ARQUEOLÓGICO NO MÉDIO RIO GUAPORÉ, RONDÔNIA
Carlos A. Zimpel, Francisco A. Pugliese Jr.
420
DOS FFASES
ASES CERÁMICAS DE LA CRONOLOGÍA OCUP
ACIONAL
OCUPACIONAL
DE LAS ZANJAS DE LA PROVINCIA ITÉNEZ – BENI, BOLIVIA
Carla Jaimes Betancourt
435
CONTINUIDADES Y RUPTURAS ESTILÍSTICAS EN LA
CERÁMICA CASARABE DE LOS LLANOS DE MOJOS
Carla Jaimes Betancourt
448
II.5. AL
TA AMAZÔNIA
ALT
462
TRAS EL CAMINO DE LA BOA ARCOÍRIS:
LAS ALF
ARERÍAS PRECOLOMBINAS DEL BAJO RÍO NAPO
ALFARERÍAS
Manuel Arroyo-Kalin, Santiago Rivas Panduro
463
LA CERÁMICA DE LA CUENCA DEL PAST
AZA, ECUADOR
PASTAZA,
Geoffroy de Saulieu, Stéphen Rostain, Carla Jaimes Betancourt
480
CERÁMICA ARQUEOLOGICA DE JAEN Y BAGUA, AL
TA AMAZONIA DE PERU
ALT
Quirino Olivera Núñez
496
YO CHINCHIPE
MAYO
COMPLEJO CERÁMICO: MA
Francisco Valdez
510
LA CERÁMICA DEL VALLE DEL UP
ANO, ECUADOR
UPANO,
Stéphen Rostain
526
PAR
TE III - P
ARA SEGUIR VIAGEM:
ARTE
PARA
ARA A ANÁLISE DAS CERÂMICAS ARQUOLÓGICAS DA AMAZÔNIA
PARA
REFERÊNCIAS P
541
A CONSER
VAÇÃO DE CERÂMICAS ARQUEOLÓGICAS DA AMAZÔNIA
CONSERV
Silvia Cunha Lima
543
GLOSSÁRIO
Processos tecnológicos
Denominações formais e funcionais das cerâmicas
Contextos arqueológicos das ocupações ceramistas
Conceitos e categorias classificatórias
551
553
568
581
589
REFERÊNCIAS
ÍNDICE ONOMÁSTICO
AGRADECIMENTOS
SOBRE OS AUTORES E SUAS PESQUISAS
603
654
659
661
CERÂMICAS ARQUEOLÓGICAS DA FOZ DO XINGU:
UMA PRIMEIRA CARACTERIZAÇÃO
Helena Pinto Lima
Glenda Consuelo Bittencourt Fernandes
RESUMEN
Cerámicas arqueológicas de la boca del río Xingu: una primera caracterización
En este artículo se presenta una caracterización preliminar y el contexto general de un complejo cerámico
previamente desconocido, ubicado en la boca del área del río Xingu. La arqueología de esta región aún está
floreciendo, los datos fueron recolectados el año 2014, con las primeras investigaciones arqueológicas hechas a
profundidad en Gurupá/PA. Aquí presentamos las colecciones recogidas en Carrazedo, así como materiales de
otros dos sitios/colecciones del área. Discutimos semejanzas y diferencias de estos materiales en comparación
con otros complejos del bajo Amazonas. Aunque todavía es incipiente, la arqueología del área de la confluencia
entre los ríos Xingu/Amazonas es prometedora.
ABSTRACT
Archaeological ceramics from the mouth of the Xingu River: A preliminary characterization
In this article we present a preliminary characterization and the general context of a previously unknown ceramic
complex at the mouth of the Xingu River area. The archaeology of this region is still blooming. Data was
collected in 2014, at the first deep archaeological investigations undertaken in Gurupá/PA. Here we present
the ceramics collected at Carrazedo, as well as materials from two other sites/collections of the area. We discuss
similarities and distinctions of these materials compared to other lower Amazon ceramic complexes. Although
still nascent, the archaeology of the confluence of Xingu/Amazon river area is promising.
210
O município de Gurupá está localizado na confluência do rio Xingu com o delta do rio Amazonas
(Mesorregião do Marajó), inserido no setor insular-estuarino da zona costeira paraense (Figura 1). O
município encontra-se entre duas importantes áreas culturais da Amazônia no período pré-colonial
tardio: Santarém e Marajó. Neste sentido, a área se mostra estratégica, que poderia ser interpretada
enquanto entreposto em uma região fronteiriça ou até mesmo um centro ainda não conhecido na
Amazônia antiga.
Embora Gurupá faça parte do contexto arqueológico geral do Marajó (comportando uma das maiores
ilhas do arquipélago), diferentemente do Marajó, poucas pesquisas arqueológicas foram realizadas no
local, resumindo-se a um breve inventário realizado em 2008-2009, em que foram localizados 40 sítios,
12 ocorrências e sete áreas com potencialidade arqueológica, além do Forte de Santo Antônio de Gurupá
(Schaan; Martins, 2010).
A documentação historiográfica (documentos, relatos e iconografias) e os resultados das pesquisas
arqueológicas iniciais demonstraram uma grande potencialidade arqueológica, cujos vestígios remontam
a uma significativa história ainda por ser desvelada. Os testemunhos dessa história são os patrimônios
(material e imaterial) existentes no local, que incluem os sítios pré-coloniais e coloniais, remanescentes
de ocupações mais recentes (incluem-se aqui os sítios de terra preta arqueológica, o Forte de Gurupá,
quilombos, os cemitérios judaicos etc.), bem como a memória e histórias orais relacionadas à cultura
e história local.
Alguns desses sítios históricos apresentam enormes proporções, compostos por grande variabilidade
artefatual, incluindo cerâmicas de origem histórica e pré-colonial, artefatos líticos e outros, aflorando
em matrizes de terra preta antropogênica que atingem até 2 km de extensão e até 2,5 m de profundidade.
Um estudo aprofundado dos vestígios arqueológicos do município de Gurupá vem a preencher uma
grande lacuna no registro arqueológico do Baixo Amazonas, especificamente do sistema regional de
trocas, que provavelmente ultrapassou fronteiras temporais e culturais, permanecendo ativa até o período
da borracha.
O presente artigo é fruto de pesquisas implantadas na região por meio do Projeto “OCA GURUPÁ –
Origens, Cultura, e Ambiente”, desenvolvido no âmbito institucional do Museu Paraense Emílio Goeldi,
através de um grupo de pesquisadores e bolsistas da Coordenação de Ciências Humanas (CCH-MPEG)
e colaboradores externos. Até o momento, o projeto realizou levantamentos de sítios, o mapeamento
topográfico digital, a delimitação e escavações estratigráficas no sítio arqueológico Carrazedo, e o registro
de coleções cerâmicas sob a guarda de moradores locais.
Desse modo, nosso objetivo é evidenciar dados, mesmo que iniciais, obtidos através das análises da
coleção cerâmica coletada, para que assim possamos ter uma primeira caracterização tecno-estilística
e tipológica para o conjunto. Tal caracterização contribui para compreendermos os significados dessas
cerâmicas no contexto da ocupação regional e inserir este complexo cerâmico ainda desconhecido no
panorama atual do conhecimento sobre as cerâmicas arqueológicas da Amazônia.
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU
Introdução
211
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU
Figura 1. Mapa da área de pesquisa com localização dos sítios arqueológicos identificados. Inventário por Schaan et al. (2010)
e novas áreas, com destaque para os três sítios mencionados no texto. Elaboração: Bruno Moraes.
O sítio Carrazedo e o material encontrado
O sítio Carrazedo foi eleito para a primeira intervenção do OCA, em função de suas características: é
um sítio de enormes proporções a céu aberto, implantado no topo de um elevado terraço na margem
direita do rio Xingu, próximo a sua foz no rio Amazonas. Configura-se como pré-colonial e histórico,
com ruínas de estruturas edificadas (fundações) visíveis no terreno. Do topo do terraço se tem excelente
visualização do rio Xingu, assim como acessos secundários aos igarapés que o contornam.
Até o momento mapeamos uma porção de aproximadamente 10 ha de terra preta arqueológica (TPA),
mas é certo que esta seja ainda maior (estimamos uma área de 30 ha para o sítio). O setor denominado
“Terraço” foi investigado em maior detalhe, onde foi possível visualizar composições de montículos,
plataformas aplainadas e caminhos interconectando esses complexos, bem como seguindo em direção
ao rio. Durante a etapa de campo, em agosto de 2014, esta área estava recentemente aberta para o plantio
de roça (coivara). A vantagem em trabalhar em uma área recentemente aberta e limpa é a visualização
da superfície do terreno, tanto em termos de feições topográficas (montículos, plataformas e terraços)
quanto em termos de exposição dos vestígios arqueológicos na superfície. Além disso, a ausência de estruturas
históricas (antigas ou recentes) edificadas neste setor sugere ser esta uma das áreas de maior integridade
ou conservação dos vestígios relacionados às ocupações pré-coloniais.
212
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU
Depois do mapeamento digital com Estação Total, este setor foi gradeado em quadrantes de 10x10m,
de acordo com os alinhamentos conhecidos do grid (ver croqui, Figura 2). Cada quadrante foi nomeado
a partir de seu vértice NE e registrado (fotograficamente) a partir do leste. Cada vértice foi sondado
com uma tradagem.
Um desses complexos de plataforma plana com montículo adjacente foi escavado, a fim de se testar a hipótese
de tratar-se de plataformas habitacionais (casas) com montículos de descarte a elas relacionados, pois, nesta
perspectiva, esses montículos possuiriam um papel fundamental no processo de formação das TPA (Schmidt
et al., 2014), além de apresentarem uma grande variabilidade de material (cerâmico) descartado. Selecionamos
para o presente estudo os materiais do contexto monticular escavado, esperando encontrar, assim, uma
amostra da variabilidade representativa dessas ocupações pré-coloniais do sítio e da região.
Assim, na área do montículo localizada no topo do montículo do terraço 2 foram abertas duas unidades
adjacentes (N490 E598/599), formando uma área de 2x1 m2. O método utilizado para a realização da escavação
foi uma combinação de níveis naturais e artificiais (10 cm). Assim sendo, quando se percebia uma mudança
na camada dentro do mesmo nível artificial, este foi subdividido. Além disso, foi aberta uma unidade teste
de 1 m2 nesta mesma linha E-W (N490) na área plana do terraço, que chamamos de piso doméstico.
Durante as escavações no montículo revelou-se um contexto com materiais bastante fragmentados (sem
quebras
), mistura de materiais, inclusive muitas sementes e ossos de animais em diversos níveis.
A escavação evidenciou contextos arqueológicos profundos, até 170 cm, de onde foram coletados apenas
microfragmentos. A estratigrafia foi dividida seis camadas. No topo do montículo observa-se um contexto
mais profundo, e com maior quantidade de vestígios arqueológicos dispersos e fragmentados. Ao contrário,
na área plana (suposta plataforma habitacional), foram evidenciadas feições interpretadas como marcas
de poste. Nesta área, denominada “piso doméstico”, aparecem raros fragmentos cerâmicos ou outros
materiais, algumas feições e solo mais compactado. Tais características parecem corroborar a hipótese
inicial para as duas áreas: a de montículo como lugar de descarte e a plana como espaço de habitação.
Além disso notamos, na escavação do montículo, a singularidade e o potencial informativo das cerâmicas
pré-coloniais coletadas, que incluem apliques antropozoomorfos, contas de colar e outros pequenos artefatos.
Assim, selecionamos o material do montículo para a análise cerâmica detalhada. Em laboratório, depois
do processamento curatorial do material (limpeza, triagem, quantificação, numeração, armazenamento),
as análises em andamento têm abordado principalmente os aspectos tecno-estilísticos e contextuais do
vasilhame (p. ex. Lima, 2008, 2013; Machado, 2006, entre outros). Uma abordagem funcional tem sido
dificultada pelo alto índice de fragmentação das cerâmicas do montículo, o que permite pouco avanço
das inferências funcionais do vasilhame. Amostras de fragmentos têm sido selecionadas para análises
arqueométricas (para identificação da composição elementar das argilas e pigmentos) e para a laminação
(para identificação e estudo dos antiplásticos), mas estes dados ainda não estão disponíveis.
A maioria do material coletado refere-se a paredes de vasilhas sem decoração, e foi integralmente analisado
(todos os maiores do que 3 cm). A técnica de manufatura identificada em toda a coleção foi a roletada,
e não mostra predominância clara de um padrão de coloração ou queima sobre outro. Por outro lado,
podemos dizer que as inclusões, principalmente as minerais, dão à coleção um aspecto geral rugoso (não
polido) e pesado. Há o predomínio de areia fina e grossa, seguido respectivamente de caco moído, hematita,
cauixi, caraipé, carvão, houve também o aparecimento de conchas, geralmente associadas a fragmentos
com a superfície branca. Os materiais que contêm cauixi associam-se, em sua maioria, com fragmentos
que contêm superfície alaranjada, mas também aparecem nos fragmentos com a superfície branca e bege.
in situ
213
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU
A
B
Figura 2. A) Mapa do sítio Carrazedo com localização das intervenções realizadas. Elaboração: A. Browne Rieiro. B) Perfil da
escavação realizada no montículo (unidades N490 E598-599), cujas cerãmicas foram analisadas. Elaboração: T. Viana.
214
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU
Como já dito, devido ao alto índice de fragmentação, ainda temos dificuldades nas inferências de morfologia
e função, embora alguns conjuntos de formas tenham sido identificados, que serão descritos mais adiante.
Um tipo de decoração recorrente e bem característico da coleção, dentre aqueles que possuem decoração,
apresentam incisões finas, associadas a apliques circulares ou em filetes, com ponteados ou ungulados.
Além das decorações plásticas, são notáveis também os fragmentos com engobo branco e cinza. Sobre a
recorrente presença de engobo cinza, ainda não temos clareza se a coloração resulta de um processo
intencional ou se trata de um processo tafonômico – de todo modo, peças com estas características estão
presentes em grande número na coleção. Além disso, há materiais que apresentam faixas finas e grossas
pintadas em vermelho e preto sobre o engobo branco ou cinza.
A natureza das associações (forma/pasta/decoração) ainda devem ser melhor investigadas, mas já podemos
assinalar alguns conjuntos ou ‘tipos’ bastante acentuados na coleção. Até o momento identificamos sete
conjuntos distintos, que nos revelam, mesmo de forma preliminar, informações importantes sobre os
seus aspectos técnicos e morfológicos.
O conjunto 1 é formado por vasos bem abertos floriformes, com flanges floriformes, lobuladas e lábios
recortados. São semelhantes a algumas encontradas em Almerim (ver foto em Barreto e Fernandes, neste
volume) e em Monte Alegre/PA. Esses vasos representam uma característica das cerâmicas Koriabo (Van
Den Bel, 2010; Barreto, neste volume). Essas bordas ou flanges labiais dão suporte para aplicação da
decoração, e tem sua extensão maior que a curvatura da própria altura do vaso. Com relação à pasta, a
maioria tem cor alaranjada bem forte ou bege-acinzentada. A decoração apresenta engobo branco e/ou
cinza, que, conforme mencionado, pode ser intencional ou não. Apenas alguns fragmentos deste tipo
apresentam vestígios de pintura vermelha (linhas). O conjunto 2 compõe-se de vasilhas abertas e/ou
pratos, provavelmente com grandes diâmetros, borda extrovertida e acabamento do lábio digitado. Possuem
superfície alaranjada ou bege/amarronzada. No conjunto 3, aparentemente temos dois subconjuntos,
um deles com bordas diretas e incisões paralelas e outro com bordas levemente extrovertidas ou reforçadas
externamente, com incisões em linhas finas paralelas e/ou formando motivos geométricos. São panelas
abertas, de superfície alaranjada/bege, lábios geralmente com acabamento arredondado e a decoração
encontra-se na face externa da vasilha. O conjunto 4 apresenta vasilhas bem abertas, com borda direta
ou extrovertida. Na face interna apresenta superfície escovada, tanto no corpo quanto na borda, e suas
cores variam entre bege e alaranjado.
No conjunto 5 as vasilhas parecem tem pequenas dimensões, com formas globulares com ou sem pescoço.
Possuem bordas restritivas, com aplicação de flanges na borda ou lábio. Esses flanges formam uma superfície
ampliada na parte superior do vaso, que recebe a decoração. A decoração consiste em incisões largas,
filetes ou esferas aplicadas com ponteados ou incisos, formando motivos antropo/zoomorfos. Tanto esta
decoração quanto a forma têm grande variabilidade e são bem típicas da cerâmica do sítio Carrazedo.
Além disso, esse conjunto pode aparecer em formas mais simples com aplicação de um ou mais roletes
junto à borda da vasilha e com acabamento ungulado. No conjunto 6 evidenciamos formas semelhantes
as do conjunto 3 – vasilhas irrestritivas simples, com bordas reforçadas externamente, lábios planos ou
arredondados. Não possuem decoração. Finalmente, o conjunto 7 apresenta vasilhas irrestritivas (cuias),
de paredes finas e com pequenas dimensões. Possuem bordas extrovertidas, decoradas com incisões paralelas
horizontais na face superior.
Na Tabela 1, elencamos as principais características distintivas dos conjuntos cerâmicos. Outras características
não foram apontadas porque a coleção ainda se encontra em análise.
215
216
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU
Tabela 1. Conjuntos cerâmicos identificados no sítio Carrazedo.
CONJUNTO
FREQUÊNCIA POR MORFOLOGIA
NÍVEIS (CM)
1
10-20 (3 frag) Vasos bem abertos floriformes
30-40 (5 frag) com bordas extrovertidas/
40-50 (8 frag) flanges labiais, lobulares,
50-60 (1 frag) superfície abaulada e lábios
60-70 (1 frag) recortados
2
3
4
5
6
7
10-20 (1 frag)
50-60 (2 frag)
60-70 (2 frag)
10-20 (1 frag)
20-30 (2 frag)
30-40 (7 frag)
40-50 (4 frag)
0-10 (1 frag)
10-20 (1 frag)
40-50 (2 frag)
20-30 (3 frag)
30-40 (2 frag)
40-50 (6 frag)
60-70 (3 frag)
10-20 (5 frag)
20-30 (1 frag)
30-40 (3 frag)
40-50 (1 frag)
40-50 (2 frag)
Vasilhas abertas, bordas
extrovertidas, lábio digitado
PASTA
DECORAÇÃO
Alaranjada
(forte)
ou bege
acinzentada
Engobo branco
ou cinza. Pintura
vermelha eventual’
Alaranjada/
bege
amarronzada
Vasilhas abertas, com bordas diretas, Alaranjada/
incisões paralelas (subconjunto 1); bege
bordas levemente extrovertidas ou amarronzada
reforçadas (Subconjunto 2)
Vasilhas abertas, com
Bege e
borda direta ou
Laranja
extrovertida
Vasilhas pequenas,
Alaranjada/
restritivas, com
bege
aplicação de flanges
decoradas
Vasilhas simples, irrestritivas,
Bege
lábios planos ou arredondados
Vasilhas pequenas, irrestritivas,
borda extrovertida
Sem decoração
OCORRÊNCIA
REGIONAL
Almerim/PA
(Nimuendaju, 2004)
Altamira (Muller et al.,
neste volume)
Amapá (Cabral 2011), Guiana
Francesa (Van Den Bel 2010).
Monte Alegre/PA (Barreto, 2014,
com. Pessoal)
Monte Alegre/PA (Barreto, 2014,
com. Pessoal)
Incisões finas paralelas
e/ou formando
motivos geométricos
Amapá (Cabral, 2011)
Escovado na face
interna no corpo
e na borda
Incisões largas c/motivos
antropozoomorfos
ou esferas aplicadas
Monte Alegre/PA
(Nimuendaju, 2004)
Sem decoração
Bege/
Incisões paralelas
amarronzado horizontais
Monte Alegre/PA (Barreto, 2014,
com. Pessoal), Amapá
(Cabral, 2011); Guiana Francesa
(Van Den Bel, 2010)
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU
Na escavação do montículo no sítio Carrazedo, além dos artefatos cerâmicos, também os materiais líticos
mostraram informações significativas sobre a ocupação do sítio. Nas duas unidades adjacentes escavadas
foram encontrados vários pequenos fragmentos de seixos de quartzo, entre eles alguns com marcas de
percussão sob bigorna, provavelmente usados para fazer dentes de ralador ou outros pequenos instrumentos
cortantes e perfurantes. Identificamos também pequenos blocos não modificados de caulinita, o que
sugere a utilização dela para fabricação de contas: as três contas coletadas na escavação estão em análise
geológica, mas suas características sugerem ser da mesma matéria-prima. Somam-se a isto os fragmentos
de lâmina de machado e lascas com marcas de retiradas. Portanto, podemos dizer, com base numa análise
ainda preliminar, que no sítio Carrazedo existem pelo menos duas indústrias líticas: uma de seixos, restrita
aos níveis mais profundos, e uma (possível) ligada à produção de contas1. A variabilidade dos líticos
sugere mudanças tecnológicas, de acordo com a profundidade (~70 cm), sendo os níveis mais profundos
ligados à transformação de pequenos seixos e os mais recentes com grandes blocos de arenito e óxido de
ferro, nem todos visivelmente transformados. Ainda é cedo para fazermos afirmações quanto às diferenças
tecno-estilísticas das cerâmicas em relação à profundidade. O conjunto cerâmico parece um tanto
homogêneo, mas, se confirmadas variações consistentes, poderíamos interpretar como momentos distintos
de ocupação. As datações radiocarbônicas, a serem providenciadas brevemente, também poderão esclarecer
nessa questão.
Figura 3. Apliques cerâmicos coletados na escavação do montículo no rio Carrazedo. Foto: N. Smith.
Outras coleções cerâmicas
A fim de oferecer um panorama mais abrangente acerca da variabilidade cerâmica de Gurupá, incluímos
neste trabalho dados dos materiais provenientes de outros dois sítios arqueológicos estudados no âmbito
do projeto OCA. Trata-se do sítio Gurupá, onde se localiza o Forte de Santo Antônio de Gurupá, uma
1. Análises líticas realizadas por Kelton Mendes (bolsista MPEG), com apoio da Dra. Jaqueline Rodet (Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG).
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fortificação holandesa datada de 1616 que, mais tarde, passou para o domínio português; e o sítio Jacupi.
Ambos encontram-se nos limites (leste e oeste) da área urbana de Gurupá, às margens do rio Amazonas
(Figura 1).
A presença de cerâmica indígena e outros artefatos históricos em superfície junto à orla da cidade e
próximo ao Forte já havia sido documentada anteriormente (Schaan; Martins 2010: 119). O próprio
sítio arqueológico “Gurupá” (UTM 22M 0428415/9844882), multicomponencial, é composto pelas
edificações do Forte de Gurupá e por cerâmicas pré-coloniais e em todo o seu entorno. De fato, não é
exagero dizer que a cidade toda está assentada sobre um grande sítio arqueológico. Mesmo que
descontextualizado, este material permite um apanhado sobre a variabilidade artefatual e o processo de
ocupação da região de Gurupá. Sua presença na área do Forte é um indício de que esta área foi intensamente
ocupada antes da construção do mesmo. Os registros materiais e as fontes documentais históricas
demonstram que a área teve também uma ocupação indígena intensa durante o período histórico colonial.
Especificamente no Forte, a abordagem arqueológica em campo se deu por meio de uma parceria com
o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), por ocasião da construção de obras
de consolidação da encosta do terraço onde se situa a fortificação. Inicialmente, identificaram-se
iconografias antigas que fazem menção ao forte, incluindo gravuras e desenhos de plantas e fotografias
antigas. Em campo, foi feito um cuidadoso registro das estruturas edificadas existentes, e coletas de
superfície em uma escavação-resgate de um depósito coluvial que estava erodindo da encosta do barranco
do forte e monitoramento das obras de consolidação do barranco, peneirando todo o sedimento removido.
O trabalho permitiu recolher uma expressiva coleção de materiais arqueológicos, como: lascas de material
lítico, uma grande quantidade de fragmentos de bordas, paredes e bases de vasilhas cerâmicas, a maior
parte com vestígios de decoração, bem como materiais relativos à época do contato e pós-contato.
Foi constatada a presença de mais de vinte contas ou miçangas azuis e brancas, fragmentos de faiança
portuguesa decorada em azul, além de alguns pregos, cravos, etc. Foram registrados também ossos de
tartaruga e outros animais.
Em relação à cerâmica, por se tratar de um conjunto coletado em área de aterro, pouco ou nenhuma
inferência crono-estratigráfica pode ser atribuída aos estilos identificados. Trata-se de uma enorme
variabilidade, esperada para esta condição de deposição. Algumas características reconhecíveis das
cerâmicas indígenas analisadas até o momento são a técnica de manufatura roletada com superfícies
alisadas, e uma ampla variação em termos de queima, cor da superfície e de temperos. Entre os
antiplásticos foram identificados caco moído, caraipé ( Licania spp.), carvão e concha. Este último
relacionado a um tipo específico de forma – tigelas ou pratos de grandes dimensões com borda extrovertida
(Figura 4), e muitas delas com ossos (carapaças de quelônio) no seu interior. A maior parte dos fragmentos
não decorados apresentou fuligem na superfície externa. Atribuímos alguns desses fragmentos ao período
de contato, aonde se nota a tecnologia da cerâmica indígena com elementos europeus (Figura 4).
Quanto às decorações, foram registradas tanto as crômicas quanto plásticas, em proporções semelhantes.
Entre as crômicas, encontram-se os engobos em variações de vermelho e branco, pintura preta, marrom,
alaranjada e vermelha sobre engobo branco em linhas finas e faixas e também pontos, em motivos
geométricos. É notável um zoomorfo, que aparenta tratar-se de um escorpião pintado em vermelho sobre
engobo branco. As técnicas de decoração plástica incluem incisões finas paralelas, roletes ou filetes aplicados
com entalhes ou incisões (Figura 4).
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Figura 4. Cerâmicas coletadas no Forte de Santo Antônio de Gurupá. Fotos: N. Smith.
Essas cerâmicas arqueológicas e os artefatos históricos coletados representam apenas uma pequena amostra
do potencial da área em questão, que deve ser investigada em maior detalhe no âmbito das pesquisas
arqueológicas futuras.
Ainda na área urbana de Gurupá, no outro extremo da cidade, encontra-se o sítio arqueológico Jacupi,
cujas cerâmicas provenientes de uma coleção particular (coleção Jean-Marie Royer, proprietário do
terreno onde o sítio se encontra) foram estudadas. O sítio arqueológico Jacupi está localizado em uma
reserva ambiental particular, delimitada a nordeste pelo Igarapé Jacupi, na margem do rio Amazonas.
Os resultados do reconhecimento confirmam que este é um sítio de terra preta de proporções modestas
(aprox. 1,5-2 ha mapeados) que apresenta relevo da superfície antrópica na forma de montículos circulares
que parecem delimitar terraços habitacionais comparáveis aos encontrados em Carrazedo (Figura 2). Quatro
terraços foram identificados em parte da propriedade usada atualmente para horticultura, vizinhos a
uma área de campinarana (sucessão secundária), onde foi possível obter uma boa visibilidade de solo.
Esta área mede, aproximadamente, um hectare. O levantamento mostrou sinais de transformações culturais,
com alta frequência de espécies antrópicas indicadoras, especialmente Inajá (Attalea maripa), bem como
áreas antrópicas de ocorrência de castanha do Brasil (Bertholletia excelsa).
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Uma pequena trincheira para construção doméstica, deixada em aberto pelo proprietário para inspeção
pela equipe de arqueólogos, mostra que o depósito de terra preta nesta área tem em torno de 20 cm de
profundidade. Notavelmente, esta é a trincheira da qual se relata ter extraído uma pequena urna funerária
com restos humanos, juntamente com outros pequenos vasos e estatuetas antropomórficas/ zoomórficas
(Royer, comunicação pessoal, 2014) (Figura 5).
Figura 5. Cerâmicas do sítio Jacupi, coleção Jean-Marie Royer. Fotos e desenhos: H. Lima, prancha elaborada por T. Viana.
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Apesar de pequena (13 no total, sendo: 4 vasos, 2 fragmentos de borda e 7 apliques), a coleção é bastante
representativa (Figura 5). Os temperos, sempre misturados, mostram a presença de areia/rocha triturada,
caraipé, carvão, cauixi, além de hematita (óxido de ferro) na confecção das vasilhas, esta última possivelmente
oriunda das próprias fontes de matéria-prima. As vasilhas e bordas da coleção possuem pequenas dimensões,
com diâmetros da borda variando entre 10 e 20 cm (formas reconstituídas na Figura 5). O vaso que
continha ossos em seu interior, uma pequena urna funerária com 12 cm de altura e 14 cm de diâmetro
da boca (# 1), possui uma peculiar forma globular, com protuberâncias (empurradas de dentro para
fora) abauladas no bojo, um pequeno pescoço e borda extrovertida. Essas protuberâncias foram decoradas
com incisões em linhas finas, retas e curvas, em motivo cruciforme. Assim como as demais peças, apresenta
queima redutora. O tempero majoritariamente composto por rocha triturada (quartzo) confere à vasilha
uma superfície rugosa e maior peso. Possui características semelhantes à cerâmica descrita como Koriabo,
tanto no médio Xingu (área da Usina Belo Monte) das Guianas/Amapá.
Com exceção de duas peças simples, as demais possuem decoração plástica. Destaca-se uma borda
com flange entalhada e esferas aplicadas com ponteados. Os demais apliques e bordas são semelhantes
aos materiais analisados do sítio Carrazedo, com a notável presença de esferas e filetes aplicados com
ponteados, ungulados e entalhados, associados a incisões em linhas finas, em composições antropomorfas
e zoomorfas (Figura 5). De modo geral, todos sugerem a mesma associação já mencionada com as
cerâmicas Koriabo.
Uma pequena vasilha modelada (# 12), aparenta ser um coletor de látex, que remontaria ao período
histórico da borracha (início do séc. XX) em Gurupá.
Contextualização regional e interações estilísticas
Como dito anteriormente, o município de Gurupá encontra-se entre duas importantes áreas culturais
da Amazônia, Santarém e Marajó. Além disso, tem seus limites ao norte e a oeste com o estado do Amapá
(Schaan et al., 2010), que se localiza na desembocadura do rio Amazonas e possui grande diversidade
de culturas pré-coloniais, muitas relacionadas com a tradição Policroma. Entre elas está a cultura Aristé,
que domina o litoral da Guiana oriental, desde o rio Araguari no Amapá e também a baia do Oiapoque,
na Guiana Francesa, incluindo a ilha de Caiena (Rostain, 2011).
Ainda de acordo com Rostain (2011), no sul do Amapá estão presentes os complexos Mazagão, Maracá
e Aruã. Do mesmo modo, refere-se também à cultura Koriabo hipoteticamente originada no interior da
planície das Guianas, e que tem suas características presentes em diversos sítios do Brasil, especialmente
os localizados na fronteira meridional das Guianas e no centro e Baixo Amazonas.
As propriedades estilísticas da cerâmica Koriabo, de acordo com Cabral (2011: 95), são “as decorações
incisas associadas com pequenos apliques, seguidamente com uma impressão anelar no seu interior, além
de bordas lobadas, com decoração incisa e pequenos rostos”. Com relação ao tempero, suas características
são o uso de areia rica em mica, que gera um efeito de brilho na cerâmica, e o pouco uso do cauixi
(Evans; Meggers, 1960: 144-115 apud Cabral, 2011: 94).
Pesquisas realizadas no Amapá nos últimos anos, pela equipe de arqueologia do Instituto de Estudos e
Pesquisas do Estado do Amapá (IEPA), num contexto de arqueologia preventiva, nos anos de 2007 e
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2009 foram verificadas as primeiras observações de características Koriabo nos conjuntos cerâmicos da
região, em que foram registrados 37 sítios arqueológicos. Com escavações em área ampla foi possível a
identificação de estruturas de habitação e funerárias, sendo que a cerâmica com características Koriabo
estava associada a um conjunto não identificado de vasilhas domésticas e com pouca decoração.
Posteriormente, ainda em 2009, o sítio Laranjal do Jari 1 foi escavado também no contexto da arqueologia
preventiva, e os dados preliminares do material analisado indicam, mais uma vez, uma separação entre
os conjuntos tipicamente Koriabo e um conjunto de vasilhas sem decoração (Cabral, 2011).
De acordo com análises preliminares, pode-se dizer que alguns componentes dos conjuntos cerâmicos
do baixo rio Xingu (do sítio Carrazedo e de Gurupá) partilham características da cerâmica Koriabo,
especialmente quanto à decoração, pois não são raros os fragmentos que apresentam decoração com
incisões finas e largas, juntamente a apliques modelados circulares (esferas aplicadas) com ponteado
central, algumas vezes sugerindo rostos. Ao mesmo tempo, na cerâmica de Carrazedo há predominância
da areia como tempero.
Vale ressaltar que os elementos semelhantes elencados não nos permitem dizer, de fato, que a cerâmica
de Gurupá pertence à fase Koriabo. Para além das semelhanças, é importante também destacarmos as
diferenças e as características próprias da cerâmica de Gurupá. Neste sentido, podemos citar, entre as
decoradas, o uso frequente do engobo branco/cinza, barbotina, vermelho e bege/alaranjado
respectivamente. Já nas cerâmicas simples, além das superfícies alisadas, há também as que apresentam
polimento externo. Com relação ao seu tempero, nos primeiros níveis há predominância do caco moído
associado à rocha triturada e cauixi, respectivamente; nos níveis mais profundos houve maior presença
de carvão e caraipé, juntamente com caco moído, rocha triturada e cauixi. Em menor proporção, e
em morfologias específicas, há também a presença de concha moída. Essas características podem nos
apontar um caminho a ser seguido quanto aos marcadores culturais da cerâmica de Carrazedo, pois
não é nossa intenção negligenciar a cerâmica doméstica (Van den Bel, 2010), mas sim inseri-las em
análises mais aprofundadas, uma vez que somente assim poderemos ter dados mais concretos e completos
com relação à ocupação da região do baixo rio Xingu.
Considerações finais
As observações preliminares das cerâmicas da foz do rio Xingu demonstram elementos estilísticos que
sugerem intercâmbio cultural (pelo menos de atributos cerâmicos) com as distintas da foz do Amazonas
e Guianas. A hipótese, baseada na localização estratégica do Baixo Amazonas, sugere que Gurupá possa
ter ocupado um papel de destaque no contexto sociopolítico das ocupações pré-coloniais da Amazônia
e tem norteado as pesquisas em andamento na região, especialmente no sítio Carrazedo.
Como visto, as semelhanças de alguns elementos da cerâmica da confluência dos rios Xingu e Amazonas
com a fase Koriabo existem, porém, é difícil afirmar tal classificação, pois isso seria “engessar” o registro
arqueológico em um conjunto homogêneo. Neste sentido, características cerâmicas parecem não se
enquadrar diretamente aos conjuntos arqueológicos já estabelecidos para a Amazônia, tais como as
Tradição Polícroma da Amazônia ou a Tradição Incisa e Ponteada, o que, em nosso entendimento,
não se trata de um problema, visto que o conjunto cerâmico de Gurupá é ainda desconhecido da
comunidade científica e tentar encaixá-lo sem a devida reflexão em uma ou outra tradição seria perder
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Agradecimentos
Agradecemos aos moradores do Carrazedo e ao Sr. Jean-Marie Royer, que trabalham pela salvaguarda
de importantes sítios e coleções arqueológicas. Do mesmo modo, agradecemos ao Sindicato dos Trabalhadores
e Trabalhadoras Rurais Agroextrativistas de Gurupá; à Associação dos Remanescentes de Quilombos do
Município de Gurupá (ARQMG); e à Prefeitura Municipal de Gurupá, pelo apoio prestado nas etapas
de campo. Igualmente, aos colaboradores científicos do OCA-Gurupá, entre eles Anna Browne-Ribeiro,
que conseguiu o primeiro aporte financeiro do projeto; a Kevin McDaniel, pelo apoio com as análises
cerâmicas; a Kelton Mendes e Jaqueline Rodet, pelas análises líticas, ao Bruno Moraes pela leitura crítica,
sugestões no texto e confecção de mapa. Entre 2013-2014, o projeto contou com financiamento do Programa
de Capacitação Institucional do Museu Goeldi (PCI-MPEG) e da National Geographic Foundation (BrowneRibeiro, 2013).
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU
a oportunidade de percebemos os processos de mudança cultural da região (Schaan, 2007). Neste sentido,
o desafio então recai em conhecermos toda a coleção cerâmica de Carrazedo, para que, dessa forma,
concordando com as reflexões de Cabral (2011), possamos nos voltar para suas características particulares
e refletir sobre o seu contexto individualmente, para, a partir disso, buscar comparações.
A caracterização que apresentamos aqui, embora preliminar, pode contribuir para compreender os
significados dessas cerâmicas no contexto da ocupação regional do baixo rio Xingu e inseri-las no panorama
atual do conhecimento sobre as cerâmicas arqueológicas da baixa Amazônia. Podemos afirmar que os
traços das cerâmicas Koriabo, anteriormente pensados como um fenômeno material restrito ao nordeste
Amazônico (Guianas, Amapá), aparece também na margem sul do rio Amazonas, mostrando que a calha
do Amazonas não era uma fronteira.
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