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CERÂMICAS ARQUEOLÓGICAS DA AMAZÔNIA Rumo a uma nova síntese CRISTIANA BARRETO HELENA PINTO LIMA CARLA JAIMES BETANCOURT Organizadoras IPHAN |MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI |2016 CRÉDITOS Presidenta da República do Brasil DILMA R OUSSEF Ministro da Ciência, T ecnologia e Inovação Tecnologia C ELSO P ANSERA Ministro de Estado da Cultura Diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi NILSON G ABAS J ÚNIOR J UCA F ERREIRA Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional J UREMA DE S OUZA M ACHADO Diretoria do Iphan MARCOS J OSÉ S ILVA R ÊGO ANDREY R OSENTHAL S CHLEE TT C ATALÃO L UIZ P HILIPPE P ERES T ORELLY Coordenação Editorial S YLVIA M ARIA B RAGA Projeto Gráfico R ARUTI C OMUNICAÇÃO E Coordenadora de Pesquisa e Pós-Graduação ANA V ILACY G ALÚCIO Coordenadora de Comunicação e Extensão MARIA E MÍLIA DA C RUZ S ALES Coordenação Editorial NÚCLEO E DITORIAL DE L IVROS Produção Editorial I RANEIDE S ILVA ANGELA B OTELHO Design Gráfico A NDRÉA P INHEIRO ( CAPA E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA ) D ESIGN /C RISTIANE D IAS Editora Assistente T EREZA L OBÃO Fotos: Cristiana Barreto, Edithe Pereira, Glenn Shepard, Sivia Cunha Lima; Wagner Souza Imagem da capa: Vaso da cultura Santarém, acervo Museu Paraense Emílio Goeldi. Foto: Glenn Shepard. Cobra-canoa (kamalu hai) (desenho de Aruta Wauja, 1998; Coleção Aristóteles Barcelos Neto). Kamalu Hai é a gigantesca cobra-canoa que apareceu para os Wauja, há muito tempo, oferecendo-lhes a visão primordial de todos os tipos de panelas cerâmicas, o que lhes conferiu o conhecimento exclusivo sobre a arte oleira. As panelas chegaram navegando e cantando sobre o dorso da grande cobra que antes de ir embora defecou enormes depósitos de argila ao longo do rio Batovi para que eles pudessem fazer sua própria cerâmica. Segundo o mito, esta é a razão pela qual apenas os Wauja sabem fazer todos os tipos de cerâmica (Barcelos Neto, 2000). Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese / Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes Betancourt, organizadoras. Belém : IPHAN : Ministério da Cultura, 2016. 668 p.: il. ISBN 978-85-61377-83-0 1. Cerâmica – Brasil - Amazônia. 2. Cerâmicas Arqueológicas. I. Barreto, Cristiana. II. Lima, Helena Pinto. III. Betancourt, Carla Jaimes. CDD 738.098115 ÍNDICE APRESENTAÇÃO AÇÃO DO IPHAN - Andrey Rosenthal Schlee APRESENT APRESENT AÇÃO DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI - Nilson Gabas Jr. APRESENTAÇÃO PREFÁCIO - Michael Joseph Heckenberger INTRODUÇÃO - Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes Betancourt INTRODUCCIÓN - Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes Betancourt 8 9 10 12 14 TE I - A HISTÓRIA MOLDADA NOS POTES: INTRODUÇÃO A UMA LONGA VIAGEM PAR ARTE 17 NOVOS OLHARES SOBRE AS CERÂMICAS ARQUEOLÓGICAS DA AMAZÔNIA Helena Pinto Lima, Cristiana Barreto, Carla Jaimes Betancourt 19 NÃO EXISTE NEOLÍTICO AO SUL DO EQUADOR: AS PRIMEIRAS CERÂMICAS AMAZÔNICAS E SUA FFAL AL TA DE RELAÇÃO COM A AGRICUL TURA ALT AGRICULTURA Eduardo Góes Neves 32 TIPOS CERÂMICOS OU MODOS DE VIDA? ETNOARQUEOLOGIA E AS TRADIÇÕES ARQUEOLÓGICAS CERÂMICAS NA AMAZÔNIA Fabíola Andréa Silva 40 QUADRO CRONOLÓGICO DOS COMPLEXOS CERÂMICOS DA AMAZÔNIA 50 MAP A ARQUEOLÓGICO DOS COMPLEXOS CERÂMICOS DA AMAZÔNIA MAPA 51 PAR TE II - SUBINDO O AMAZONAS NA COBRA CANOA ARTE 53 II.1. NORDESTE AMAZÔNICO 54 LA CERÁMICA DE LAS GUY ANAS GUYANAS Stéphen Rostain 55 LA TRADICIÓN ARAUQUINOÍDE EN LA GUY ANA FRANCESA: GUYANA LOS COMPLEJOS BARBAKOEBA Y THÉMIRE Claude Coutet OS COMPLEXOS CERÂMICOS DO AMAPÁ: PROPOST A DE UMA NOV SISTEMATIZAÇÃO PROPOSTA NOVA TIZAÇÃO A SISTEMA João Darcy de Moura Saldanha, Mariana Petry Cabral, Alan da Silva Nazaré Jelly Souza Lima, Michel Bueno Flores da Silva ASES”: AIRE DES V “C’EST CURIEUX CHEZ LES AMAZONIENS CE BESOIN DE FFAIRE VASES”: ALIKUR DE GUY ARERAS P ALF ANA GUYANA PALIKUR ALFARERAS Stéphen Rostain O QUE A CERÂMICA MARAJOARA NOS ENSINA SOBRE FLUXO ESTILÍSTICO NA AMAZÔNIA? Cristiana Barreto 71 86 97 115 A CERÂMICA MINA NO EST ADO DO PARÁ: OLEIRAS DAS ÁGUAS SALOBRAS DA AMAZÔNIA ESTADO Elisângela Regina de Oliveira, Maura Imazio da SilveirA 125 A CERÂMICA MINA NO MARANHÃO Arkley Marques Bandeira 147 O COMPLEXO CERÂMICO DAS ESTEARIAS DO MARANHÃO Alexandre Guida Navarro 158 II.2. BAIXO AMAZONAS E XINGU 170 ARQUEOLOGIA DOS TUPI-GUARANI NO BAIXO AMAZONAS Fernando Ozorio de Almeida 171 CERÂMICAS E HISTÓRIAS INDÍGENAS NO MÉDIO-BAIXO XINGU Lorena Garcia 183 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A CERÂMICA ARQUEOLÓGICA TA GRANDE DO XINGU VOLT DA VOL Letícia Morgana Müller, Renato Kipnis, Maria do Carmo Mattos Monteiro dos Santos, Solange Bezerra Caldarelli CERÂMICAS ARQUEOLÓGICAS DA FOZ DO XINGU: UMA PRIMEIRA CARACTERIZAÇÃO Helena Pinto Lima, Glenda Consuelo Bittencourt Fernandes 196 210 CERÂMICA E HISTÓRIA INDÍGENA DO AL TO XINGU ALTO Joshua R. Toney 224 AJÓS CERÂMICAS DA CUL TURA SANT TAPAJÓS CULTURA SANTARÉM, ARÉM, BAIXO TAP Joanna Troufflard 237 CERÂMICA SANT ARÉM DE ESTILO GLOBULAR SANTARÉM Márcio Amaral 253 AS CERÂMICAS DOS SÍTIOS A CÉU ABER ABERTO TO DE MONTE ALEGRE: ARA A ARQUEOLOGIA DO BAIXO AMAZONAS PARA SUBSÍDIOS P Cristiana Barreto, Hannah F. Nascimento 262 CERÂMICAS POCÓ E KONDURI NO BAIXO AMAZONAS Lílian Panachuck 279 II.3. AMAZÔNIA CENTRAL 288 AS CERÂMICAS SARACÁ E A CRONOLOGIA REGIONAL DO RIO URUBU Helena Pinto Lima, Luiza Silva de Araújo, Bruno Marcos Moraes 289 AS CERÂMICAS AÇUTUBA E MANACAPURU DA AMAZONIA CENTRAL Helena Pinto Lima 303 CONTEXTO E RELAÇÕES CRONOESTILÍSTICAS DAS CERÂMICAS CAIAMBÉ NO LAGO AMANÃ, MÉDIO SOLIMÕES Jaqueline Gomes, Eduardo Góes Neves 321 UMA MANEIRA AL TERNA TIV A DE INTERPRET AR ALTERNA TERNATIV TIVA INTERPRETAR OS ANTIPLÁSTICOS E A DECORAÇÃO NAS CERÂMICAS AMAZÔNICAS Claide de Paula Moraes, Adília dos Prazeres da Rocha Nogueira 334 A TRADIÇÃO POLÍCROMA DA AMAZÔNIA Jaqueline Belletti 348 A NOS CONTEXTOS DO BAIXO RIO SOLIMÕES A FASE GUARIT GUARITA Eduardo Kazuo Tamanaha 365 A SERPENTE DE VÁRIAS FFACES: ACES: ESTILO E ICONOGRAFIA DA CERÂMICA GUARIT A GUARITA Erêndira Oliveira 373 II.4. SUDOESTE DA AMAZÔNIA 484 VARIABILIDADE CERÂMICA E DIVERSIDADE CUL TURAL NO AL TO RIO MADEIRA CULTURAL ALTO Silvana Zuse 385 A CERÂMICA POLÍCROMA DO RIO MADEIRA Fernando Ozório de Almeida, Claide de Paula Moraes 402 CERÂMICAS DO ACRE Sanna Saunaluoma 414 A FASE BACABAL E SUAS IMPLICAÇÕES P ARA A INTERPRET AÇÃO PARA INTERPRETAÇÃO DO REGISTRO ARQUEOLÓGICO NO MÉDIO RIO GUAPORÉ, RONDÔNIA Carlos A. Zimpel, Francisco A. Pugliese Jr. 420 DOS FFASES ASES CERÁMICAS DE LA CRONOLOGÍA OCUP ACIONAL OCUPACIONAL DE LAS ZANJAS DE LA PROVINCIA ITÉNEZ – BENI, BOLIVIA Carla Jaimes Betancourt 435 CONTINUIDADES Y RUPTURAS ESTILÍSTICAS EN LA CERÁMICA CASARABE DE LOS LLANOS DE MOJOS Carla Jaimes Betancourt 448 II.5. AL TA AMAZÔNIA ALT 462 TRAS EL CAMINO DE LA BOA ARCOÍRIS: LAS ALF ARERÍAS PRECOLOMBINAS DEL BAJO RÍO NAPO ALFARERÍAS Manuel Arroyo-Kalin, Santiago Rivas Panduro 463 LA CERÁMICA DE LA CUENCA DEL PAST AZA, ECUADOR PASTAZA, Geoffroy de Saulieu, Stéphen Rostain, Carla Jaimes Betancourt 480 CERÁMICA ARQUEOLOGICA DE JAEN Y BAGUA, AL TA AMAZONIA DE PERU ALT Quirino Olivera Núñez 496 YO CHINCHIPE MAYO COMPLEJO CERÁMICO: MA Francisco Valdez 510 LA CERÁMICA DEL VALLE DEL UP ANO, ECUADOR UPANO, Stéphen Rostain 526 PAR TE III - P ARA SEGUIR VIAGEM: ARTE PARA ARA A ANÁLISE DAS CERÂMICAS ARQUOLÓGICAS DA AMAZÔNIA PARA REFERÊNCIAS P 541 A CONSER VAÇÃO DE CERÂMICAS ARQUEOLÓGICAS DA AMAZÔNIA CONSERV Silvia Cunha Lima 543 GLOSSÁRIO Processos tecnológicos Denominações formais e funcionais das cerâmicas Contextos arqueológicos das ocupações ceramistas Conceitos e categorias classificatórias 551 553 568 581 589 REFERÊNCIAS ÍNDICE ONOMÁSTICO AGRADECIMENTOS SOBRE OS AUTORES E SUAS PESQUISAS 603 654 659 661 CERÂMICAS ARQUEOLÓGICAS DA FOZ DO XINGU: UMA PRIMEIRA CARACTERIZAÇÃO Helena Pinto Lima Glenda Consuelo Bittencourt Fernandes RESUMEN Cerámicas arqueológicas de la boca del río Xingu: una primera caracterización En este artículo se presenta una caracterización preliminar y el contexto general de un complejo cerámico previamente desconocido, ubicado en la boca del área del río Xingu. La arqueología de esta región aún está floreciendo, los datos fueron recolectados el año 2014, con las primeras investigaciones arqueológicas hechas a profundidad en Gurupá/PA. Aquí presentamos las colecciones recogidas en Carrazedo, así como materiales de otros dos sitios/colecciones del área. Discutimos semejanzas y diferencias de estos materiales en comparación con otros complejos del bajo Amazonas. Aunque todavía es incipiente, la arqueología del área de la confluencia entre los ríos Xingu/Amazonas es prometedora. ABSTRACT Archaeological ceramics from the mouth of the Xingu River: A preliminary characterization In this article we present a preliminary characterization and the general context of a previously unknown ceramic complex at the mouth of the Xingu River area. The archaeology of this region is still blooming. Data was collected in 2014, at the first deep archaeological investigations undertaken in Gurupá/PA. Here we present the ceramics collected at Carrazedo, as well as materials from two other sites/collections of the area. We discuss similarities and distinctions of these materials compared to other lower Amazon ceramic complexes. Although still nascent, the archaeology of the confluence of Xingu/Amazon river area is promising. 210 O município de Gurupá está localizado na confluência do rio Xingu com o delta do rio Amazonas (Mesorregião do Marajó), inserido no setor insular-estuarino da zona costeira paraense (Figura 1). O município encontra-se entre duas importantes áreas culturais da Amazônia no período pré-colonial tardio: Santarém e Marajó. Neste sentido, a área se mostra estratégica, que poderia ser interpretada enquanto entreposto em uma região fronteiriça ou até mesmo um centro ainda não conhecido na Amazônia antiga. Embora Gurupá faça parte do contexto arqueológico geral do Marajó (comportando uma das maiores ilhas do arquipélago), diferentemente do Marajó, poucas pesquisas arqueológicas foram realizadas no local, resumindo-se a um breve inventário realizado em 2008-2009, em que foram localizados 40 sítios, 12 ocorrências e sete áreas com potencialidade arqueológica, além do Forte de Santo Antônio de Gurupá (Schaan; Martins, 2010). A documentação historiográfica (documentos, relatos e iconografias) e os resultados das pesquisas arqueológicas iniciais demonstraram uma grande potencialidade arqueológica, cujos vestígios remontam a uma significativa história ainda por ser desvelada. Os testemunhos dessa história são os patrimônios (material e imaterial) existentes no local, que incluem os sítios pré-coloniais e coloniais, remanescentes de ocupações mais recentes (incluem-se aqui os sítios de terra preta arqueológica, o Forte de Gurupá, quilombos, os cemitérios judaicos etc.), bem como a memória e histórias orais relacionadas à cultura e história local. Alguns desses sítios históricos apresentam enormes proporções, compostos por grande variabilidade artefatual, incluindo cerâmicas de origem histórica e pré-colonial, artefatos líticos e outros, aflorando em matrizes de terra preta antropogênica que atingem até 2 km de extensão e até 2,5 m de profundidade. Um estudo aprofundado dos vestígios arqueológicos do município de Gurupá vem a preencher uma grande lacuna no registro arqueológico do Baixo Amazonas, especificamente do sistema regional de trocas, que provavelmente ultrapassou fronteiras temporais e culturais, permanecendo ativa até o período da borracha. O presente artigo é fruto de pesquisas implantadas na região por meio do Projeto “OCA GURUPÁ – Origens, Cultura, e Ambiente”, desenvolvido no âmbito institucional do Museu Paraense Emílio Goeldi, através de um grupo de pesquisadores e bolsistas da Coordenação de Ciências Humanas (CCH-MPEG) e colaboradores externos. Até o momento, o projeto realizou levantamentos de sítios, o mapeamento topográfico digital, a delimitação e escavações estratigráficas no sítio arqueológico Carrazedo, e o registro de coleções cerâmicas sob a guarda de moradores locais. Desse modo, nosso objetivo é evidenciar dados, mesmo que iniciais, obtidos através das análises da coleção cerâmica coletada, para que assim possamos ter uma primeira caracterização tecno-estilística e tipológica para o conjunto. Tal caracterização contribui para compreendermos os significados dessas cerâmicas no contexto da ocupação regional e inserir este complexo cerâmico ainda desconhecido no panorama atual do conhecimento sobre as cerâmicas arqueológicas da Amazônia. Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU Introdução 211 Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU Figura 1. Mapa da área de pesquisa com localização dos sítios arqueológicos identificados. Inventário por Schaan et al. (2010) e novas áreas, com destaque para os três sítios mencionados no texto. Elaboração: Bruno Moraes. O sítio Carrazedo e o material encontrado O sítio Carrazedo foi eleito para a primeira intervenção do OCA, em função de suas características: é um sítio de enormes proporções a céu aberto, implantado no topo de um elevado terraço na margem direita do rio Xingu, próximo a sua foz no rio Amazonas. Configura-se como pré-colonial e histórico, com ruínas de estruturas edificadas (fundações) visíveis no terreno. Do topo do terraço se tem excelente visualização do rio Xingu, assim como acessos secundários aos igarapés que o contornam. Até o momento mapeamos uma porção de aproximadamente 10 ha de terra preta arqueológica (TPA), mas é certo que esta seja ainda maior (estimamos uma área de 30 ha para o sítio). O setor denominado “Terraço” foi investigado em maior detalhe, onde foi possível visualizar composições de montículos, plataformas aplainadas e caminhos interconectando esses complexos, bem como seguindo em direção ao rio. Durante a etapa de campo, em agosto de 2014, esta área estava recentemente aberta para o plantio de roça (coivara). A vantagem em trabalhar em uma área recentemente aberta e limpa é a visualização da superfície do terreno, tanto em termos de feições topográficas (montículos, plataformas e terraços) quanto em termos de exposição dos vestígios arqueológicos na superfície. Além disso, a ausência de estruturas históricas (antigas ou recentes) edificadas neste setor sugere ser esta uma das áreas de maior integridade ou conservação dos vestígios relacionados às ocupações pré-coloniais. 212 Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU Depois do mapeamento digital com Estação Total, este setor foi gradeado em quadrantes de 10x10m, de acordo com os alinhamentos conhecidos do grid (ver croqui, Figura 2). Cada quadrante foi nomeado a partir de seu vértice NE e registrado (fotograficamente) a partir do leste. Cada vértice foi sondado com uma tradagem. Um desses complexos de plataforma plana com montículo adjacente foi escavado, a fim de se testar a hipótese de tratar-se de plataformas habitacionais (casas) com montículos de descarte a elas relacionados, pois, nesta perspectiva, esses montículos possuiriam um papel fundamental no processo de formação das TPA (Schmidt et al., 2014), além de apresentarem uma grande variabilidade de material (cerâmico) descartado. Selecionamos para o presente estudo os materiais do contexto monticular escavado, esperando encontrar, assim, uma amostra da variabilidade representativa dessas ocupações pré-coloniais do sítio e da região. Assim, na área do montículo localizada no topo do montículo do terraço 2 foram abertas duas unidades adjacentes (N490 E598/599), formando uma área de 2x1 m2. O método utilizado para a realização da escavação foi uma combinação de níveis naturais e artificiais (10 cm). Assim sendo, quando se percebia uma mudança na camada dentro do mesmo nível artificial, este foi subdividido. Além disso, foi aberta uma unidade teste de 1 m2 nesta mesma linha E-W (N490) na área plana do terraço, que chamamos de piso doméstico. Durante as escavações no montículo revelou-se um contexto com materiais bastante fragmentados (sem quebras ), mistura de materiais, inclusive muitas sementes e ossos de animais em diversos níveis. A escavação evidenciou contextos arqueológicos profundos, até 170 cm, de onde foram coletados apenas microfragmentos. A estratigrafia foi dividida seis camadas. No topo do montículo observa-se um contexto mais profundo, e com maior quantidade de vestígios arqueológicos dispersos e fragmentados. Ao contrário, na área plana (suposta plataforma habitacional), foram evidenciadas feições interpretadas como marcas de poste. Nesta área, denominada “piso doméstico”, aparecem raros fragmentos cerâmicos ou outros materiais, algumas feições e solo mais compactado. Tais características parecem corroborar a hipótese inicial para as duas áreas: a de montículo como lugar de descarte e a plana como espaço de habitação. Além disso notamos, na escavação do montículo, a singularidade e o potencial informativo das cerâmicas pré-coloniais coletadas, que incluem apliques antropozoomorfos, contas de colar e outros pequenos artefatos. Assim, selecionamos o material do montículo para a análise cerâmica detalhada. Em laboratório, depois do processamento curatorial do material (limpeza, triagem, quantificação, numeração, armazenamento), as análises em andamento têm abordado principalmente os aspectos tecno-estilísticos e contextuais do vasilhame (p. ex. Lima, 2008, 2013; Machado, 2006, entre outros). Uma abordagem funcional tem sido dificultada pelo alto índice de fragmentação das cerâmicas do montículo, o que permite pouco avanço das inferências funcionais do vasilhame. Amostras de fragmentos têm sido selecionadas para análises arqueométricas (para identificação da composição elementar das argilas e pigmentos) e para a laminação (para identificação e estudo dos antiplásticos), mas estes dados ainda não estão disponíveis. A maioria do material coletado refere-se a paredes de vasilhas sem decoração, e foi integralmente analisado (todos os maiores do que 3 cm). A técnica de manufatura identificada em toda a coleção foi a roletada, e não mostra predominância clara de um padrão de coloração ou queima sobre outro. Por outro lado, podemos dizer que as inclusões, principalmente as minerais, dão à coleção um aspecto geral rugoso (não polido) e pesado. Há o predomínio de areia fina e grossa, seguido respectivamente de caco moído, hematita, cauixi, caraipé, carvão, houve também o aparecimento de conchas, geralmente associadas a fragmentos com a superfície branca. Os materiais que contêm cauixi associam-se, em sua maioria, com fragmentos que contêm superfície alaranjada, mas também aparecem nos fragmentos com a superfície branca e bege. in situ 213 Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU A B Figura 2. A) Mapa do sítio Carrazedo com localização das intervenções realizadas. Elaboração: A. Browne Rieiro. B) Perfil da escavação realizada no montículo (unidades N490 E598-599), cujas cerãmicas foram analisadas. Elaboração: T. Viana. 214 Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU Como já dito, devido ao alto índice de fragmentação, ainda temos dificuldades nas inferências de morfologia e função, embora alguns conjuntos de formas tenham sido identificados, que serão descritos mais adiante. Um tipo de decoração recorrente e bem característico da coleção, dentre aqueles que possuem decoração, apresentam incisões finas, associadas a apliques circulares ou em filetes, com ponteados ou ungulados. Além das decorações plásticas, são notáveis também os fragmentos com engobo branco e cinza. Sobre a recorrente presença de engobo cinza, ainda não temos clareza se a coloração resulta de um processo intencional ou se trata de um processo tafonômico – de todo modo, peças com estas características estão presentes em grande número na coleção. Além disso, há materiais que apresentam faixas finas e grossas pintadas em vermelho e preto sobre o engobo branco ou cinza. A natureza das associações (forma/pasta/decoração) ainda devem ser melhor investigadas, mas já podemos assinalar alguns conjuntos ou ‘tipos’ bastante acentuados na coleção. Até o momento identificamos sete conjuntos distintos, que nos revelam, mesmo de forma preliminar, informações importantes sobre os seus aspectos técnicos e morfológicos. O conjunto 1 é formado por vasos bem abertos floriformes, com flanges floriformes, lobuladas e lábios recortados. São semelhantes a algumas encontradas em Almerim (ver foto em Barreto e Fernandes, neste volume) e em Monte Alegre/PA. Esses vasos representam uma característica das cerâmicas Koriabo (Van Den Bel, 2010; Barreto, neste volume). Essas bordas ou flanges labiais dão suporte para aplicação da decoração, e tem sua extensão maior que a curvatura da própria altura do vaso. Com relação à pasta, a maioria tem cor alaranjada bem forte ou bege-acinzentada. A decoração apresenta engobo branco e/ou cinza, que, conforme mencionado, pode ser intencional ou não. Apenas alguns fragmentos deste tipo apresentam vestígios de pintura vermelha (linhas). O conjunto 2 compõe-se de vasilhas abertas e/ou pratos, provavelmente com grandes diâmetros, borda extrovertida e acabamento do lábio digitado. Possuem superfície alaranjada ou bege/amarronzada. No conjunto 3, aparentemente temos dois subconjuntos, um deles com bordas diretas e incisões paralelas e outro com bordas levemente extrovertidas ou reforçadas externamente, com incisões em linhas finas paralelas e/ou formando motivos geométricos. São panelas abertas, de superfície alaranjada/bege, lábios geralmente com acabamento arredondado e a decoração encontra-se na face externa da vasilha. O conjunto 4 apresenta vasilhas bem abertas, com borda direta ou extrovertida. Na face interna apresenta superfície escovada, tanto no corpo quanto na borda, e suas cores variam entre bege e alaranjado. No conjunto 5 as vasilhas parecem tem pequenas dimensões, com formas globulares com ou sem pescoço. Possuem bordas restritivas, com aplicação de flanges na borda ou lábio. Esses flanges formam uma superfície ampliada na parte superior do vaso, que recebe a decoração. A decoração consiste em incisões largas, filetes ou esferas aplicadas com ponteados ou incisos, formando motivos antropo/zoomorfos. Tanto esta decoração quanto a forma têm grande variabilidade e são bem típicas da cerâmica do sítio Carrazedo. Além disso, esse conjunto pode aparecer em formas mais simples com aplicação de um ou mais roletes junto à borda da vasilha e com acabamento ungulado. No conjunto 6 evidenciamos formas semelhantes as do conjunto 3 – vasilhas irrestritivas simples, com bordas reforçadas externamente, lábios planos ou arredondados. Não possuem decoração. Finalmente, o conjunto 7 apresenta vasilhas irrestritivas (cuias), de paredes finas e com pequenas dimensões. Possuem bordas extrovertidas, decoradas com incisões paralelas horizontais na face superior. Na Tabela 1, elencamos as principais características distintivas dos conjuntos cerâmicos. Outras características não foram apontadas porque a coleção ainda se encontra em análise. 215 216 Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU Tabela 1. Conjuntos cerâmicos identificados no sítio Carrazedo. CONJUNTO FREQUÊNCIA POR MORFOLOGIA NÍVEIS (CM) 1 10-20 (3 frag) Vasos bem abertos floriformes 30-40 (5 frag) com bordas extrovertidas/ 40-50 (8 frag) flanges labiais, lobulares, 50-60 (1 frag) superfície abaulada e lábios 60-70 (1 frag) recortados 2 3 4 5 6 7 10-20 (1 frag) 50-60 (2 frag) 60-70 (2 frag) 10-20 (1 frag) 20-30 (2 frag) 30-40 (7 frag) 40-50 (4 frag) 0-10 (1 frag) 10-20 (1 frag) 40-50 (2 frag) 20-30 (3 frag) 30-40 (2 frag) 40-50 (6 frag) 60-70 (3 frag) 10-20 (5 frag) 20-30 (1 frag) 30-40 (3 frag) 40-50 (1 frag) 40-50 (2 frag) Vasilhas abertas, bordas extrovertidas, lábio digitado PASTA DECORAÇÃO Alaranjada (forte) ou bege acinzentada Engobo branco ou cinza. Pintura vermelha eventual’ Alaranjada/ bege amarronzada Vasilhas abertas, com bordas diretas, Alaranjada/ incisões paralelas (subconjunto 1); bege bordas levemente extrovertidas ou amarronzada reforçadas (Subconjunto 2) Vasilhas abertas, com Bege e borda direta ou Laranja extrovertida Vasilhas pequenas, Alaranjada/ restritivas, com bege aplicação de flanges decoradas Vasilhas simples, irrestritivas, Bege lábios planos ou arredondados Vasilhas pequenas, irrestritivas, borda extrovertida Sem decoração OCORRÊNCIA REGIONAL Almerim/PA (Nimuendaju, 2004) Altamira (Muller et al., neste volume) Amapá (Cabral 2011), Guiana Francesa (Van Den Bel 2010). Monte Alegre/PA (Barreto, 2014, com. Pessoal) Monte Alegre/PA (Barreto, 2014, com. Pessoal) Incisões finas paralelas e/ou formando motivos geométricos Amapá (Cabral, 2011) Escovado na face interna no corpo e na borda Incisões largas c/motivos antropozoomorfos ou esferas aplicadas Monte Alegre/PA (Nimuendaju, 2004) Sem decoração Bege/ Incisões paralelas amarronzado horizontais Monte Alegre/PA (Barreto, 2014, com. Pessoal), Amapá (Cabral, 2011); Guiana Francesa (Van Den Bel, 2010) Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU Na escavação do montículo no sítio Carrazedo, além dos artefatos cerâmicos, também os materiais líticos mostraram informações significativas sobre a ocupação do sítio. Nas duas unidades adjacentes escavadas foram encontrados vários pequenos fragmentos de seixos de quartzo, entre eles alguns com marcas de percussão sob bigorna, provavelmente usados para fazer dentes de ralador ou outros pequenos instrumentos cortantes e perfurantes. Identificamos também pequenos blocos não modificados de caulinita, o que sugere a utilização dela para fabricação de contas: as três contas coletadas na escavação estão em análise geológica, mas suas características sugerem ser da mesma matéria-prima. Somam-se a isto os fragmentos de lâmina de machado e lascas com marcas de retiradas. Portanto, podemos dizer, com base numa análise ainda preliminar, que no sítio Carrazedo existem pelo menos duas indústrias líticas: uma de seixos, restrita aos níveis mais profundos, e uma (possível) ligada à produção de contas1. A variabilidade dos líticos sugere mudanças tecnológicas, de acordo com a profundidade (~70 cm), sendo os níveis mais profundos ligados à transformação de pequenos seixos e os mais recentes com grandes blocos de arenito e óxido de ferro, nem todos visivelmente transformados. Ainda é cedo para fazermos afirmações quanto às diferenças tecno-estilísticas das cerâmicas em relação à profundidade. O conjunto cerâmico parece um tanto homogêneo, mas, se confirmadas variações consistentes, poderíamos interpretar como momentos distintos de ocupação. As datações radiocarbônicas, a serem providenciadas brevemente, também poderão esclarecer nessa questão. Figura 3. Apliques cerâmicos coletados na escavação do montículo no rio Carrazedo. Foto: N. Smith. Outras coleções cerâmicas A fim de oferecer um panorama mais abrangente acerca da variabilidade cerâmica de Gurupá, incluímos neste trabalho dados dos materiais provenientes de outros dois sítios arqueológicos estudados no âmbito do projeto OCA. Trata-se do sítio Gurupá, onde se localiza o Forte de Santo Antônio de Gurupá, uma 1. Análises líticas realizadas por Kelton Mendes (bolsista MPEG), com apoio da Dra. Jaqueline Rodet (Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG). 217 Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU 218 fortificação holandesa datada de 1616 que, mais tarde, passou para o domínio português; e o sítio Jacupi. Ambos encontram-se nos limites (leste e oeste) da área urbana de Gurupá, às margens do rio Amazonas (Figura 1). A presença de cerâmica indígena e outros artefatos históricos em superfície junto à orla da cidade e próximo ao Forte já havia sido documentada anteriormente (Schaan; Martins 2010: 119). O próprio sítio arqueológico “Gurupá” (UTM 22M 0428415/9844882), multicomponencial, é composto pelas edificações do Forte de Gurupá e por cerâmicas pré-coloniais e em todo o seu entorno. De fato, não é exagero dizer que a cidade toda está assentada sobre um grande sítio arqueológico. Mesmo que descontextualizado, este material permite um apanhado sobre a variabilidade artefatual e o processo de ocupação da região de Gurupá. Sua presença na área do Forte é um indício de que esta área foi intensamente ocupada antes da construção do mesmo. Os registros materiais e as fontes documentais históricas demonstram que a área teve também uma ocupação indígena intensa durante o período histórico colonial. Especificamente no Forte, a abordagem arqueológica em campo se deu por meio de uma parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), por ocasião da construção de obras de consolidação da encosta do terraço onde se situa a fortificação. Inicialmente, identificaram-se iconografias antigas que fazem menção ao forte, incluindo gravuras e desenhos de plantas e fotografias antigas. Em campo, foi feito um cuidadoso registro das estruturas edificadas existentes, e coletas de superfície em uma escavação-resgate de um depósito coluvial que estava erodindo da encosta do barranco do forte e monitoramento das obras de consolidação do barranco, peneirando todo o sedimento removido. O trabalho permitiu recolher uma expressiva coleção de materiais arqueológicos, como: lascas de material lítico, uma grande quantidade de fragmentos de bordas, paredes e bases de vasilhas cerâmicas, a maior parte com vestígios de decoração, bem como materiais relativos à época do contato e pós-contato. Foi constatada a presença de mais de vinte contas ou miçangas azuis e brancas, fragmentos de faiança portuguesa decorada em azul, além de alguns pregos, cravos, etc. Foram registrados também ossos de tartaruga e outros animais. Em relação à cerâmica, por se tratar de um conjunto coletado em área de aterro, pouco ou nenhuma inferência crono-estratigráfica pode ser atribuída aos estilos identificados. Trata-se de uma enorme variabilidade, esperada para esta condição de deposição. Algumas características reconhecíveis das cerâmicas indígenas analisadas até o momento são a técnica de manufatura roletada com superfícies alisadas, e uma ampla variação em termos de queima, cor da superfície e de temperos. Entre os antiplásticos foram identificados caco moído, caraipé ( Licania spp.), carvão e concha. Este último relacionado a um tipo específico de forma – tigelas ou pratos de grandes dimensões com borda extrovertida (Figura 4), e muitas delas com ossos (carapaças de quelônio) no seu interior. A maior parte dos fragmentos não decorados apresentou fuligem na superfície externa. Atribuímos alguns desses fragmentos ao período de contato, aonde se nota a tecnologia da cerâmica indígena com elementos europeus (Figura 4). Quanto às decorações, foram registradas tanto as crômicas quanto plásticas, em proporções semelhantes. Entre as crômicas, encontram-se os engobos em variações de vermelho e branco, pintura preta, marrom, alaranjada e vermelha sobre engobo branco em linhas finas e faixas e também pontos, em motivos geométricos. É notável um zoomorfo, que aparenta tratar-se de um escorpião pintado em vermelho sobre engobo branco. As técnicas de decoração plástica incluem incisões finas paralelas, roletes ou filetes aplicados com entalhes ou incisões (Figura 4). Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU Figura 4. Cerâmicas coletadas no Forte de Santo Antônio de Gurupá. Fotos: N. Smith. Essas cerâmicas arqueológicas e os artefatos históricos coletados representam apenas uma pequena amostra do potencial da área em questão, que deve ser investigada em maior detalhe no âmbito das pesquisas arqueológicas futuras. Ainda na área urbana de Gurupá, no outro extremo da cidade, encontra-se o sítio arqueológico Jacupi, cujas cerâmicas provenientes de uma coleção particular (coleção Jean-Marie Royer, proprietário do terreno onde o sítio se encontra) foram estudadas. O sítio arqueológico Jacupi está localizado em uma reserva ambiental particular, delimitada a nordeste pelo Igarapé Jacupi, na margem do rio Amazonas. Os resultados do reconhecimento confirmam que este é um sítio de terra preta de proporções modestas (aprox. 1,5-2 ha mapeados) que apresenta relevo da superfície antrópica na forma de montículos circulares que parecem delimitar terraços habitacionais comparáveis aos encontrados em Carrazedo (Figura 2). Quatro terraços foram identificados em parte da propriedade usada atualmente para horticultura, vizinhos a uma área de campinarana (sucessão secundária), onde foi possível obter uma boa visibilidade de solo. Esta área mede, aproximadamente, um hectare. O levantamento mostrou sinais de transformações culturais, com alta frequência de espécies antrópicas indicadoras, especialmente Inajá (Attalea maripa), bem como áreas antrópicas de ocorrência de castanha do Brasil (Bertholletia excelsa). 219 Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU Uma pequena trincheira para construção doméstica, deixada em aberto pelo proprietário para inspeção pela equipe de arqueólogos, mostra que o depósito de terra preta nesta área tem em torno de 20 cm de profundidade. Notavelmente, esta é a trincheira da qual se relata ter extraído uma pequena urna funerária com restos humanos, juntamente com outros pequenos vasos e estatuetas antropomórficas/ zoomórficas (Royer, comunicação pessoal, 2014) (Figura 5). Figura 5. Cerâmicas do sítio Jacupi, coleção Jean-Marie Royer. Fotos e desenhos: H. Lima, prancha elaborada por T. Viana. 220 Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU Apesar de pequena (13 no total, sendo: 4 vasos, 2 fragmentos de borda e 7 apliques), a coleção é bastante representativa (Figura 5). Os temperos, sempre misturados, mostram a presença de areia/rocha triturada, caraipé, carvão, cauixi, além de hematita (óxido de ferro) na confecção das vasilhas, esta última possivelmente oriunda das próprias fontes de matéria-prima. As vasilhas e bordas da coleção possuem pequenas dimensões, com diâmetros da borda variando entre 10 e 20 cm (formas reconstituídas na Figura 5). O vaso que continha ossos em seu interior, uma pequena urna funerária com 12 cm de altura e 14 cm de diâmetro da boca (# 1), possui uma peculiar forma globular, com protuberâncias (empurradas de dentro para fora) abauladas no bojo, um pequeno pescoço e borda extrovertida. Essas protuberâncias foram decoradas com incisões em linhas finas, retas e curvas, em motivo cruciforme. Assim como as demais peças, apresenta queima redutora. O tempero majoritariamente composto por rocha triturada (quartzo) confere à vasilha uma superfície rugosa e maior peso. Possui características semelhantes à cerâmica descrita como Koriabo, tanto no médio Xingu (área da Usina Belo Monte) das Guianas/Amapá. Com exceção de duas peças simples, as demais possuem decoração plástica. Destaca-se uma borda com flange entalhada e esferas aplicadas com ponteados. Os demais apliques e bordas são semelhantes aos materiais analisados do sítio Carrazedo, com a notável presença de esferas e filetes aplicados com ponteados, ungulados e entalhados, associados a incisões em linhas finas, em composições antropomorfas e zoomorfas (Figura 5). De modo geral, todos sugerem a mesma associação já mencionada com as cerâmicas Koriabo. Uma pequena vasilha modelada (# 12), aparenta ser um coletor de látex, que remontaria ao período histórico da borracha (início do séc. XX) em Gurupá. Contextualização regional e interações estilísticas Como dito anteriormente, o município de Gurupá encontra-se entre duas importantes áreas culturais da Amazônia, Santarém e Marajó. Além disso, tem seus limites ao norte e a oeste com o estado do Amapá (Schaan et al., 2010), que se localiza na desembocadura do rio Amazonas e possui grande diversidade de culturas pré-coloniais, muitas relacionadas com a tradição Policroma. Entre elas está a cultura Aristé, que domina o litoral da Guiana oriental, desde o rio Araguari no Amapá e também a baia do Oiapoque, na Guiana Francesa, incluindo a ilha de Caiena (Rostain, 2011). Ainda de acordo com Rostain (2011), no sul do Amapá estão presentes os complexos Mazagão, Maracá e Aruã. Do mesmo modo, refere-se também à cultura Koriabo hipoteticamente originada no interior da planície das Guianas, e que tem suas características presentes em diversos sítios do Brasil, especialmente os localizados na fronteira meridional das Guianas e no centro e Baixo Amazonas. As propriedades estilísticas da cerâmica Koriabo, de acordo com Cabral (2011: 95), são “as decorações incisas associadas com pequenos apliques, seguidamente com uma impressão anelar no seu interior, além de bordas lobadas, com decoração incisa e pequenos rostos”. Com relação ao tempero, suas características são o uso de areia rica em mica, que gera um efeito de brilho na cerâmica, e o pouco uso do cauixi (Evans; Meggers, 1960: 144-115 apud Cabral, 2011: 94). Pesquisas realizadas no Amapá nos últimos anos, pela equipe de arqueologia do Instituto de Estudos e Pesquisas do Estado do Amapá (IEPA), num contexto de arqueologia preventiva, nos anos de 2007 e 221 Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU 2009 foram verificadas as primeiras observações de características Koriabo nos conjuntos cerâmicos da região, em que foram registrados 37 sítios arqueológicos. Com escavações em área ampla foi possível a identificação de estruturas de habitação e funerárias, sendo que a cerâmica com características Koriabo estava associada a um conjunto não identificado de vasilhas domésticas e com pouca decoração. Posteriormente, ainda em 2009, o sítio Laranjal do Jari 1 foi escavado também no contexto da arqueologia preventiva, e os dados preliminares do material analisado indicam, mais uma vez, uma separação entre os conjuntos tipicamente Koriabo e um conjunto de vasilhas sem decoração (Cabral, 2011). De acordo com análises preliminares, pode-se dizer que alguns componentes dos conjuntos cerâmicos do baixo rio Xingu (do sítio Carrazedo e de Gurupá) partilham características da cerâmica Koriabo, especialmente quanto à decoração, pois não são raros os fragmentos que apresentam decoração com incisões finas e largas, juntamente a apliques modelados circulares (esferas aplicadas) com ponteado central, algumas vezes sugerindo rostos. Ao mesmo tempo, na cerâmica de Carrazedo há predominância da areia como tempero. Vale ressaltar que os elementos semelhantes elencados não nos permitem dizer, de fato, que a cerâmica de Gurupá pertence à fase Koriabo. Para além das semelhanças, é importante também destacarmos as diferenças e as características próprias da cerâmica de Gurupá. Neste sentido, podemos citar, entre as decoradas, o uso frequente do engobo branco/cinza, barbotina, vermelho e bege/alaranjado respectivamente. Já nas cerâmicas simples, além das superfícies alisadas, há também as que apresentam polimento externo. Com relação ao seu tempero, nos primeiros níveis há predominância do caco moído associado à rocha triturada e cauixi, respectivamente; nos níveis mais profundos houve maior presença de carvão e caraipé, juntamente com caco moído, rocha triturada e cauixi. Em menor proporção, e em morfologias específicas, há também a presença de concha moída. Essas características podem nos apontar um caminho a ser seguido quanto aos marcadores culturais da cerâmica de Carrazedo, pois não é nossa intenção negligenciar a cerâmica doméstica (Van den Bel, 2010), mas sim inseri-las em análises mais aprofundadas, uma vez que somente assim poderemos ter dados mais concretos e completos com relação à ocupação da região do baixo rio Xingu. Considerações finais As observações preliminares das cerâmicas da foz do rio Xingu demonstram elementos estilísticos que sugerem intercâmbio cultural (pelo menos de atributos cerâmicos) com as distintas da foz do Amazonas e Guianas. A hipótese, baseada na localização estratégica do Baixo Amazonas, sugere que Gurupá possa ter ocupado um papel de destaque no contexto sociopolítico das ocupações pré-coloniais da Amazônia e tem norteado as pesquisas em andamento na região, especialmente no sítio Carrazedo. Como visto, as semelhanças de alguns elementos da cerâmica da confluência dos rios Xingu e Amazonas com a fase Koriabo existem, porém, é difícil afirmar tal classificação, pois isso seria “engessar” o registro arqueológico em um conjunto homogêneo. Neste sentido, características cerâmicas parecem não se enquadrar diretamente aos conjuntos arqueológicos já estabelecidos para a Amazônia, tais como as Tradição Polícroma da Amazônia ou a Tradição Incisa e Ponteada, o que, em nosso entendimento, não se trata de um problema, visto que o conjunto cerâmico de Gurupá é ainda desconhecido da comunidade científica e tentar encaixá-lo sem a devida reflexão em uma ou outra tradição seria perder 222 Agradecimentos Agradecemos aos moradores do Carrazedo e ao Sr. Jean-Marie Royer, que trabalham pela salvaguarda de importantes sítios e coleções arqueológicas. Do mesmo modo, agradecemos ao Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Agroextrativistas de Gurupá; à Associação dos Remanescentes de Quilombos do Município de Gurupá (ARQMG); e à Prefeitura Municipal de Gurupá, pelo apoio prestado nas etapas de campo. Igualmente, aos colaboradores científicos do OCA-Gurupá, entre eles Anna Browne-Ribeiro, que conseguiu o primeiro aporte financeiro do projeto; a Kevin McDaniel, pelo apoio com as análises cerâmicas; a Kelton Mendes e Jaqueline Rodet, pelas análises líticas, ao Bruno Moraes pela leitura crítica, sugestões no texto e confecção de mapa. Entre 2013-2014, o projeto contou com financiamento do Programa de Capacitação Institucional do Museu Goeldi (PCI-MPEG) e da National Geographic Foundation (BrowneRibeiro, 2013). Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia ! BAIXO AMAZONAS E XINGU a oportunidade de percebemos os processos de mudança cultural da região (Schaan, 2007). Neste sentido, o desafio então recai em conhecermos toda a coleção cerâmica de Carrazedo, para que, dessa forma, concordando com as reflexões de Cabral (2011), possamos nos voltar para suas características particulares e refletir sobre o seu contexto individualmente, para, a partir disso, buscar comparações. A caracterização que apresentamos aqui, embora preliminar, pode contribuir para compreender os significados dessas cerâmicas no contexto da ocupação regional do baixo rio Xingu e inseri-las no panorama atual do conhecimento sobre as cerâmicas arqueológicas da baixa Amazônia. Podemos afirmar que os traços das cerâmicas Koriabo, anteriormente pensados como um fenômeno material restrito ao nordeste Amazônico (Guianas, Amapá), aparece também na margem sul do rio Amazonas, mostrando que a calha do Amazonas não era uma fronteira. 223