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A caixa de ferramentas de Jeanne Favret-Saada SUZANE DE ALENCAR VIEIRA PPGAS-Universidade Federal de Goiás| Goiânia, Goiás, Brasil suzanealencar@ufg.br CLARA FLAKSMAN Instituto de Filosofia e Ciências Socais da Universidade Federal do Rio de Janeiro | Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil claramflaksman@gmail.com CECÍLIA CAMPELLO DO AMARAL MELLO IPPUR-Universidade Federal do Rio de Janeiro | Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil ceciliamellobr@gmail.com DOI 10.11606/issn.2316-9133.v31i2pe204447 Jeanne Favret-Saada's tool box resumo Jeanne Favret-Saada constrói um plano metodológico inteiramente novo na antropologia, que reconhecemos nas dobras de sua obra. Como uma caixa de ferramentas, seus textos oferecem, mais do que pontos de apoio, linhas de derivação e flutuação que apontam caminhos para a criação etnográfica. Ao apresentar as traduções de três publicações recentes da autora, buscamos ressaltar seu modo de fazer e de conceber a antropologia que fertilizou nossos respectivos trabalhos e a diversidade temática e metodológica das produções da autora. As traduções revisitam três momentos de sua obra: pesquisa etnográfica sobre feitiçaria, pesquisa com material de imprensa sobre polêmicas públicas religiosas e pesquisa em arquivos da Igreja Católica. A proposta de traduzir esses três textos reverbera o desejo de que sua obra, profundamente original e provocadora, seja mais conhecida do público brasileiro. palavras-chave Jeanne Favret-Saada; etnografia; feitiçaria, crença e antropologia pragmática abstract Jeanne Favret-Saada constructs an entirely new methodological plan in anthropology that we recognize in the folds of her work. As a toolbox, her texts offer, more than points of support, lines of derivation and fluctuation that point out paths for ethnographic creation. By presenting the translations of three recent publications by the author, we seek to highlight her way of doing and conceiving anthropology that fertilized our respective works and the thematic and methodological diversity of the author's productions. The translations revisit three moments of her work: ethnographic research on witchcraft, research with press material on public religious polemics, and research in Catholic Church archives. The proposal to translate these three texts echoes the desire that her work, which is profoundly original and provocative, be better known to the Brazilian public. keywords Jeanne Favret-Saada; ethnography, sorcery, belief and pragmatic anthropology e204447 https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v31i2pe204447 VIEIRA; FLAKSMAN; MELLO | A Caixa de ferramentas ... 2 Jeanne Favret-Saada constrói um plano metodológico inteiramente novo na antropologia. Para Arnaud Esquerre1 (2007), o método da autora funcionaria como uma brilhante máquina de costura que, no entanto, ela esconde de seus/suas leitores/as. Concordamos com Esquerre quanto ao brilhantismo da inovação de Favret-Saada; porém, aquilo que ele identifica como ocultação da programação teórico-metodológica dos seus textos, entendemos como a fecundante incompletude da prática de pesquisa em antropologia, que Jeanne Favret-Saada leva às últimas consequências. A antropóloga franco-tunisiana não entrega para o/a leitor/a máquinas teóricas e metodológicas prontas, mas deixa nas dobras de seus textos várias linhas de criação e diferentes ideias-ferramentas que podem ser experimentadas por outros/as praticantes da pesquisa na antropologia. Sua caixa de ferramentas não oferece apenas pontos de apoio, mas linhas de derivação e flutuação. O desenho metodológico de seus textos é, para nós, abertura e liberação de caminhos para a criação etnográfica. Em uma troca de mensagens com a autora, ela assim descreve os traçados de seu modo de trabalho que conferem unidade a diferentes campos temáticos aos quais se dedicou: Sempre pensei que ser etnógrafa consistia em se deixar afetar pelas questões do próprio momento cultural: a guerra da Argélia em minha juventude, o desaparecimento do campesinato francês na década de 1970, a censura islâmica da Europa a partir de 1979 e a questão do antissemitismo cristão na virada do ano 2000 com o falso arrependimento do Papa João Paulo II. Cada vez, investi em campos muito diferentes, inventei um método, tracei as ligações entre evento e estrutura. (Jeanne Favret-Saada em conversa por correio eletrônico com Suzane de Alencar Vieira, em julho de 2021). A ideia de traduzir esses três artigos de Jeanne Favret-Saada surgiu da nossa compreensão comum sobre a importância do modo de fazer e de conceber a antropologia que a autora propagou na disciplina e que fertilizou nossos respectivos trabalhos. A nossa proposta de trazer esses três textos para os/as leitores/as da Cadernos de Campo nasce de um desejo de que sua obra - profundamente original e provocadora - seja mais conhecida do público brasileiro. Entendemos as traduções que se seguem como um passo necessário, embora incipiente, no sentido de uma maior divulgação de sua obra, que conta atualmente apenas com a tradução de poucos artigos e entrevistas2. A tradução do artigo “Ser afetado” feita por Paula Siqueira e Tania Stolze Lima e publicada pela Cadernos de Campos em 2005 já se tornou leitura “obrigatória” dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Antropologia no 1 Comentário de Arnaud Esquerre a respeito da pesquisa de Jeanne Favret-Saada sobre acusações de blasfêmias provocadas pela circulação de caricaturas de Maomé na imprensa europeia. 2 O artigo “Ah! A cretina, a vizinha miserável...!” com coautoria de Josée Contreras foi traduzido por Adriane Rodolpho e Caroline Borges e publicado na revista Tessituras em 2018. Duas entrevistas traduzidas por Marco Antonio Saretta Poglia e Melissa Moura Mello: entrevista com Jeanne Favret-Saada realizada por Cyril Isnart em 2007 publicada na revista Debates do NER em 2017 e entrevista concedida a Arnaud Esquerre, Emmanuelle Gallienne, Fabien Jobard, Aude Lalande, Sacha Zilberfarb em 2011 e publicada na Cadernos de Campo em 2017. Cadernos de Campo (São Paulo, online) | vol. 31, n. 2 | p.1-14 | USP 2022 VIEIRA; FLAKSMAN; MELLO | A Caixa de ferramentas ... 3 Brasil, o que é indicador de sua potência, mas evidentemente também gerador de apreensões excessivamente rápidas. Para nós, introduzir a autora e os textos que se seguem não é tanto apresentá-los de um ponto de vista externo como se houvesse uma “boa compreensão” ou um modo único e privilegiado de conhecê-la. Decidimos, ao contrário, nos indagar sobre como suas ideias, conceitos e seu modo de fazer antropologia tiveram efeitos sobre nossos respectivos trabalhos, desde o trabalho de campo até a escrita etnográfica. A etnografia sobre feitiçaria em Bocage que inicialmente nos encantou faz parte de uma trajetória independente na antropologia que atravessou consensos acadêmicos e políticos, e apostou em temas e abordagens "não recomendadas". Sua carreira na antropologia passa por um amplo leque de temas e por práticas de pesquisa heterogêneas, algumas das quais os/as leitores/as poderão reconhecer nesses artigos traduzidos. Os artigos são elaborações mais recentes em que a autora retoma três momentos de sua obra: pesquisa etnográfica sobre feitiçaria, pesquisa com material de imprensa sobre polêmicas públicas religiosas e pesquisa em arquivos da Igreja Católica. Nas transições das questões intelectuais de cada artigo, podemos ver as ferramentas criadas por Jeanne FavretSaada. O desenfeitiçamento em Bocage sem distrações conceituais apresenta um novo desenvolvimento de ideias contidas no artigo “Mort aux Trousseau" traduzido para o inglês “Death at your heels” (Favret-Saada, 2014). O artigo revisita circunstâncias de sua pesquisa de campo sobre feitiçaria no interior da França, tema ao qual ela dedicou maior parte de sua carreira, cerca de 40 anos, de idas e vindas entre antropologia e psicanálise. Com uma escrita contestadora, a autora explora o desencaixe na equação antropológica “cultura”, “tradição” e “território” que o tema da feitiçaria provoca, reaproxima o desenfeitiçamento da psicoterapia, retoma sua crítica à crença na chave de gradientes de suposições e certezas e dá alguns retoques à questão lévi-straussiana dos universais. Em Força e Violência das palavras, a autora retoma o sistema da feitiçaria no Bocage para mostrar o dispositivo do desenfeitiçamento que ativa a força das palavras e de outros atos de comunicação para contra-atacar o feiticeiro no lugar do consulente e, assim, romper a série de infortúnios que o acomete. Analisando o dispositivo acusatório em torno do termo blasfêmia, Favret-Saada se interessa por compreender as condições sociais de sua eficácia. O artigo Distinção imprecisa é parte da introdução do livro Le Christianisme et ses juifs, 1800-2000, escrito no ano de 2004 em colaboração com Josée Contreras. Naquela pesquisa, a antropóloga se lança na análise de arquivos que estavam sob proteção do Vaticano e acompanha 200 anos de história do antissemitismo da igreja católica. A autora enuncia sua crítica conceitual ao uso analítico de categorias descritivas nativas como antissemitismo e antijudaísmo e mostra como essa distinção, que aparentemente é justificada por pesquisadores como uma exigência de rigor conceitual, tem consequências sobre a desresponsabilização da Igreja Católica, ocultando sua colaboração histórica com o antissemitismo. As palavras “antisseminismo” e “antijudaísmo” em dispositivos acadêmicos Cadernos de Campo (São Paulo, online) | vol. 31, n. 2 | p.1-14 | USP 2022 VIEIRA; FLAKSMAN; MELLO | A Caixa de ferramentas ... 4 sentenciam a favor da separação entre questões raciais e religiosas como domínios autoexcludentes. O "antissemitismo", pergunta a autora, só começa a existir quando foi denominado como tal – ou seja, quando religião e ciência foram “definitivamente” separadas, em meados do Século XIX? Ou já existia antes, embora atendendo por outro nome? Outro tema abordado pelo artigo é aquele das “situações de crise” (Favret-Saada, 2017), ou melhor, é a defesa, por parte de Favret-Saada, de que as antropólogas devem tomar a instabilidade, o desequilíbrio, as cisões, como fator constitutivo primordial de qualquer sociedade – e não como perturbações transitórias de um equilíbrio subjacente. O conflito entre Cristianismo e Judaísmo, assim, é tomado como um componente fundamental da chamada “civilização judaico-cristã”; não como uma exceção, mas como a própria regra. Em seus 88 anos recém completados em setembro, Jeanne Favret-Saada mantém-se em plena atividade. Ela tem participado de muitas conferências e entrevistas nas quais retoma suas obras, sua trajetória e direciona suas contribuições à antropologia, à psicanálise e aos estudos da religião. O primeiro e o segundo artigo são publicações integrais de conferências ministradas respectivamente em 2019 e 2020. E o terceiro artigo foi tema da mais recente conferência da autora, em setembro de 2021, em ocasião do lançamento da segunda edição de seu livro ainda pouco conhecido no Brasil. Agradecemos à autora por ter autorizado, estimulado o trabalho de tradução e apoiado a escolha desses três textos como representativos da diversidade metodológica de sua obra. Agradecemos aos editores das revistas L’Autre e Le Coq Heron pela autorização da publicação da tradução dos respectivos artigos Desenfeitiçamento em Bocage sem distrações conceituais e Força e violência das palavras. Como a revista Hau protege os artigos com a licença creative commons, todos os direitos de Distinção imprecisa pertencem à autora, que autorizou a tradução e publicação. Agradecemos ao PPGAS da UFG pelo apoio financeiro e ao Mensan Benoit pela revisão das traduções Francês-Português. “Sair da Antropologia para fazer Antropologia” (por Cecília Mello) Entendo a obra de Jeanne Favret-Saada e tantos/as outros/as autores/as como caixas de costura onde buscamos nos servir das linhas, agulhas e retalhos que nos permitem alinhavar e dar inteligibilidade à tessitura de nosso texto, ao bordado particular do argumento, em suma, às questões que emergem do encontro etnográfico. Longe do formalismo de um “método”, cuja pretensão é ser copiado e reproduzido por quem o “aplica”, o que Favret-Saada me transmitiu através de suas etnografias não é muito fácil de ser explicado. Talvez por se tratar de algo da ordem de uma sensibilidade, de um jeito de estar no campo, de uma forma de escutar seus interlocutores. Estamos mais no mundo da forma do que do conteúdo, embora o que ela descubra em termos substantivos seja igualmente potente e desafiador para o status quo antropológico e acadêmico, vide sua abordagem sobre o tema da feitiçaria e da blasfêmia. Cadernos de Campo (São Paulo, online) | vol. 31, n. 2 | p.1-14 | USP 2022 VIEIRA; FLAKSMAN; MELLO | A Caixa de ferramentas ... 5 O trabalho de Jeanne Favret-Saada irradiou em diferentes momentos em minha pesquisa sobre um movimento cultural afro-indígena do extremo sul da Bahia (Brasil) e seus modos de composição de lutas políticas, criação artística e proteção dos seres viventes, nãoviventes e dos elementos. Ela é uma dessas autoras com quem se caminha junto, que nos ajudam a pensar as questões com as quais nos defrontamos. No meu caso, não é como se o trabalho dela dialogasse diretamente com o meu em termos temáticos. A questão da feitiçaria apareceu de forma muito tangencial em meu campo para que se tornasse tema da pesquisa. Mas a forma como ela expõe e analisa o próprio trabalho de campo – caminho, método e matéria-prima por excelência de produção do conhecimento antropológico - traz questões que reverberaram com muita força em meu próprio percurso como etnógrafa. A primeira ideia de Jeanne Favret-Saada que desejo destacar é a importância de que o projeto de conhecimento não ocupe todo o espaço, não sufoque o aparecimento de outros possíveis não pensados no momento da ida para campo. Cito-a: “Aceitar a experiência de campo supõe, todavia, que se assuma o risco de ver se esvair seu projeto de conhecimento. Pois se o projeto de conhecimento é onipresente, nada acontece” (Favret-Saada, 2005: 160). Fazer trabalho de campo é ter seus pressupostos questionados, é estar imerso em relações nas quais as objeções de nossos/as interlocutores/as são constantes (Mello, 2016). Se o projeto de conhecimento é onipresente e o antropólogo “cisma” com uma hipótese ou se protege numa teoria, não há espaço para que a pesquisa encontre algo de novo. Jeanne Favret-Saada saúda e abraça os riscos inerentes a esse modo particular de se descobrir novos mundos que é a antropologia. Para isso, chega a afirmar que temos que ser capazes de abrir mão desse projeto para que algo de interessante possa acontecer. No caso de minha pesquisa, fui para o campo com o intuito de investigar uma situação de “conflito ambiental” em torno das apropriações e usos dos manguezais, a partir da perspectiva de diferentes sujeitos (IBAMA, empresas, ONGs e pescadores). No final de meu primeiro período de campo, baseado em entrevistas, vi-me com uma coleção de notas que nada mais eram do que justificativas sobre a adesão ou submissão daqueles diversos agentes ao poderio de uma grande corporação. Quando vi-me confrontada com os dados coletados, fui pouco a pouco sendo acometida por algo que poderia ser definido como uma claustrofobia teórica. Basicamente, a sensação de se estar presa a um esquema teórico que tudo explica. Tive a vívida impressão de que as teorias que buscam explicar a dominação a tomam como fato e não como estado. Definem-na como primeira em relação ao que dela escapa e não é incomum que a pesquisa empírica torne-se refém dessa lógica e acabe por referendá-la tautologicamente. O campo é, assim, engolido e reduzido a um dado que já conhecíamos antes e, no final da análise, é grande o risco de não haver nada de novo sob o sol. Retorna-se ao conceito previamente emitido de modo que a proposição seja sempre uma afirmação verdadeira; o sujeito se desloca, mas não se desterritorializa. O caráter pouco interessante do material derivado de um campo centrado em entrevistas levara-me a desistir desse primeiro projeto de conhecimento. Relendo minhas notas, todavia, encontrei descrito tudo o que acontecia no Cadernos de Campo (São Paulo, online) | vol. 31, n. 2 | p.1-14 | USP 2022 © TAYNÃ RIBEIRO, 2021. VIEIRA; FLAKSMAN; MELLO | A Caixa de ferramentas ... 6 cotidiano do movimento cultural afro-indígena, suas práticas artísticas e seu modo de fazer política. Percebi que algo ali vibrava e intuí que essa pista poderia trazer vida e oxigênio para a pesquisa, o que me fez abandonar completamente meu projeto inicial e recomeçar sobre outras bases. Aprendi igualmente com Favret-Saada (e, evidentemente, com meus interlocutores) os limites da chamada “observação participante”. No campo, fazer da participação um instrumento de conhecimento significou deixar-me afetar pelas ondas de intensidades específicas – os “afetos” – que atravessam e irradiam através das pessoas, eventos e obras de arte com quem me relacionei. Esta escolha funcionou de modo semelhante à descrição que os integrantes do movimento fazem da produção artística: ela abre um canal, uma porta, uma possibilidade de comunicação com algo que é desconhecido. Mas não há garantias. Um artista, diz-se em Caravelas, não é bom porque é capaz de “abrir esse canal”. O que importa no final das contas é o que ele faz com isso, isto é, as consequências que ele tira dessa abertura para sua criação artística. Poderíamos dizer o mesmo para a produção antropológica. Outro ponto, que Jeanne Favret-Saada enfatiza e que me é bastante caro, é a necessidade de se “sair da Antropologia para fazer Antropologia”. Essa frase, por certo enigmática, dá o tom da coragem dessa autora em transgredir fronteiras disciplinares e se lançar numa investigação que não sabia onde iria chegar. Mais do que isso, enquanto estava imersa no campo, o fato de não conseguir dar sentido ao que vivenciava e experimentava não a impediu de persistir. Ela avançava no escuro, às cegas, mas sempre anotando tudo, inclusive e sobretudo aquilo que não entendia. Em meu próprio percurso de pesquisa, após um ano e meio de campo, era hora de voltar para a casa e trabalhar em cima do material coletado. O momento em que deveria parar coincidiu com o início do processo de implementação de um grande projeto de aquicultura que destruiria os manguezais bem preservados da região e, em consequência, o modo de vida das pessoas que eram meus interlocutores e amigos. Já estava de malas prontas, mas, na última hora, decidi não embarcar no ônibus que me levaria embora. Lembro de ter pensado: “mesmo que tudo dê errado e essa seja uma luta perdida, vai ter valido a pena permanecer”. Naquele momento, pensei em Jeanne Favret-Saada e na importância de que o projeto de conhecimento não seja tudo, de que ele possa se transformar quando outros chamados mais potentes e vitais atravessam nosso horizonte. Foi preciso sair da antropologia e me engajar numa luta política repleta de incógnitas, para que depois pudesse fazer antropologia, analisando esse processo de luta3 do ponto de vista da disciplina (Mello, 2010 e 2015). Por fim, no que diz respeito à postura de Jeanne Favret-Saada no campo, entendo que ainda temos muito o que aprender. Crítica ferrenha de uma pesquisa baseada em 3 No final das contas, a luta foi surpreendentemente vitoriosa. Uma coalizão entre o movimento cultural afroindígena, pescadores, marisqueiras da Bahia e do Ceará, pesquisadores de universidades públicas, ONGs nacionais e internacionais, com o apoio de parlamentares de partidos de esquerda, conseguiu não apenas impedir a implementação do que seria a maior fazenda de camarão do Brasil, como também criar a Resex Cassurubá, decretada pelo presidente Lula em 2009. Cadernos de Campo (São Paulo, online) | vol. 31, n. 2 | p.1-14 | USP 2022 VIEIRA; FLAKSMAN; MELLO | A Caixa de ferramentas ... 7 entrevistas, Favret-Saada nos traz o exemplo de um trabalho de campo de longa duração em torno de uma escuta sincera, profunda, sem julgamentos e extremamente respeitosa e interessada nas questões que mobilizam seus interlocutores. Não é à toa que seu modo de se relacionar com “o outro” em sua diferença própria teve efeitos terapêuticos para seus interlocutores, camponeses acostumados a verem suas práticas rotuladas pela Mídia, o Estado, a Escola, a Ciência e a Igreja como “crenças” retrógradas. Levando-os a sério, Jeanne Favret-Saada foi levada a sério por eles, pessoas que lhe permitiram o acesso à sua rica ontologia, que vê soma ou adição onde a ciência moderna viu dicotomia ou exclusividade. Um modo de estar no mundo no qual magia e ciência fazem parte do mesmo plano de consistência e em que as pessoas podem transitar livremente de uma leitura científica do mundo para um mundo em que forças invisíveis e seres não-viventes convivem em continuidade com os seres viventes. “O que acontece quando um ator social pronuncia certas palavras?” (por Suzane de Alencar Vieira) Algo que aprendi com as leituras da obra de Jeanne Favret-Saada foi prestar atenção às palavras, a sua força e seus efeitos concretos. Essa atenção não parece ser pautada pela exegese, mas se direciona aos efeitos pragmáticos da fala, como ela afirma em um dos artigos traduzidos, Força e violência das palavras. “O que acontece quando um ator social pronuncia certas palavras?”. Essa formulação condensa, a meu ver, a problemática de uma antropologia pragmática da linguagem. Para entender melhor a proposta da autora, recorro à concepção de Espinosa sobre a ação dos afetos. A insistência da autora na força das palavras tangencia os atos de fala de Austin, passa pelas condições de felicidade e compõe sua força de sentido com dispositivos locais de agressão e violência. A pesquisa sobre feitiçaria ofereceu à autora uma percepção diferencial em relação às palavras e seus efeitos. Ao descrever a feitiçaria como uma guerra, como observou Barbosa Neto (2012), a autora inviabiliza o uso representacional das palavras. O processo comunicativo da pesquisa, desde as conversas em campo até o texto etnográfico, possui riscos que não estão apenas numa chave representacional ou simbólica. As palavras são perigosas porque interferem pragmaticamente sobre as condições de afetabilidade das pessoas, inclusive, vulnerabiliza a/o etnógrafa/o em campo. As palavras são lançadas como pedradas e seu impacto não se reduz a efeitos de sentido. Na descrição etnográfica de Jeanne Favret-Saada despojada de distinções e distrações conceituais exógenas ao trabalho de criação da pesquisa, as palavras, quando ativadas por dispositivos específicos de violência, podem matar ao romper relações constitutivas seja nas encantações feiticeiras, nas batalhas do desenfeitiçamento, seja nas controvérsias religiosas públicas, nas acusações de blasfêmia, nos debates da ONU sobre a “difamação das religiões”. As recomendações de cuidado com a fala que a autora aprendeu com a feitiçaria e repercutiu em sua etnografia Les mots, la mort et les sorts ressoaram fortemente durante minha Cadernos de Campo (São Paulo, online) | vol. 31, n. 2 | p.1-14 | USP 2022 VIEIRA; FLAKSMAN; MELLO | A Caixa de ferramentas ... 8 pesquisa de campo na qual acompanhei os movimentos de resistência de comunidades camponesas e quilombolas das serra de Caetité, na Bahia, atingidas pela contaminação radioativa da mina de urânio e por projetos de construção de parques eólicos (Vieira, no prelo). As estratégias de resistência das comunidades negras rurais consistiam justamente em rir das formas majoritárias de poder e de conhecimento. O humor local desarmava hierarquias pré-constituídas para então produzir o envolvimento social em um plano de comunicação horizontal. Para me engajar na comunicação era necessário transformar também a cena da pesquisa em um jogo de zombarias. O falar e o silenciar atuavam numa guerra contra forças que ameaçavam a vida dos/as agricultores/as. As palavras empunhadas em ações de resistência política e de proteção eram pragmaticamente calibradas contra ameaças visíveis e invisíveis de afetos feiticeiros e da contaminação radioativa. Palavras, gestos e silêncios, importantes atos de comunicação, como insiste Favret-Saada (2020), eram usados como armas estratégicas para proteger e enfrentar ameaças diversas. A linguagem ali estava a serviço de uma luta pela vida, como sintetiza Favret-Saada (2014), “pessoas que têm a morte nos seus calcanhares não têm os meios para se distrair com diferenças culturais”. A função de representar o mundo, sentimentos, valores das palavras ditas é apenas um dos momentos da comunicação. Não é aquele mais decisivo em um combate contra forças da feitiçaria, dos encantos e dos poderosos empreendimentos do setor energético e mineral. Há momentos em que as palavras atuam de outro modo para ferir, proteger, contraatacar e fazer rir. Na pesquisa etnográfica, o que costumamos chamar de informação ou dados de pesquisa está envolto em uma pragmática da linguagem complexa e desconhecida que cabe à/ao etnógrafa/o buscar entender, reconhecer sua consistência e, principalmente, lidar com sua força. Para ocupar um lugar na guerra de palavras da pirraça, precisei mergulhar toda a comunicação da pesquisa no dispositivo do humor que calibra a força dos enunciados de camponeses e quilombolas. E para a pesquisa de campo funcionar em outra estratégia comunicativa foi preciso que eu fosse tomada pelo humor, afetada pela zombaria e, assim, também aprendesse a usar as palavras em combate discursivo. O dispositivo etnográfico precisou ser fecundado pela criatividade do humor e entrar em um devir-brincante. Aprendi com a pirraça a jogar com equívocos e tomá-los como matéria de trabalho da criação etnográfica. Assim como a feitiçaria forneceu à Favret-Saada importantes lições de método, como abordei em outro momento (Vieira, 2021), na minha pesquisa, foi a pirraça que legou a minha etnografia um modo de trabalho que colhe sua produtividade dos equívocos do humor. Para mim, essa é a incompletude fecundante da pesquisa de campo na qual outro dispositivo, outras pragmáticas e éticas da linguagem que, a princípio, desconhecemos transtornam radicalmente nosso projeto de conhecimento e, desse abalo, podemos extrair linhas de criação para retraçar nosso modo de trabalhar, escrever e fazer antropologia. Cadernos de Campo (São Paulo, online) | vol. 31, n. 2 | p.1-14 | USP 2022 VIEIRA; FLAKSMAN; MELLO | A Caixa de ferramentas ... 9 Jeanne Favret-Saada em seu trabalho de reconstituição da etnografia, a partir da rede de lugares da feitiçaria, forneceu-me, portanto, um guia para que pudesse perceber como as formas de enfrentamento discursivo de meus/minhas interlocutores transformaram o campo de comunicação em que me movia, assim como toda a prática da etnografia, dos diálogos em campo ao texto etnográfico. Vislumbramos essa pragmática da linguagem no artigo O desenfeitiçamento em Bocage sem distrações conceituais, nos limites da precária estabilidade do “social” e na sutil transição de ontologias que ela reputa como “animistas” e “modernistas”. Termos que apresentam em nova roupagem a noção de ontologia minimalista enunciada em “Death at your heels” (Favret-Saada, 2014). Essa antropologia pragmática é, para mim, uma produtiva orientação para pesquisa, que, a cada novo texto, ela retoma em outra derivação expressiva e conceitual mantendo a abertura para futuras reelaborações. Jeanne Favret-Saada descortina um modo de criação etnográfica que enfrenta a herança colonialista na antropologia. Uma de suas invenções é o já conhecido dispositivo do “ser afetado" que convida a experimentar a etnografia como um sistema de lugares desconhecidos ao/à etnógrafo/a, no qual é preciso deixar-se ser posicionado pelas pessoas com quem interagimos na pesquisa, deixar-se afetar pela relação com elas e com os mundos que elas habitam. Acredito que esse modo de fazer etnografia descreve um desvio em relação a essa antropologia apressada de hoje que não dá tempo para a pesquisa de longa duração, para a convivência prolongada, para os riscos da imersão, para ser afetada/o. “‘Crença’, um termo que seria melhor eliminar do vocabulário das ciências sociais” (Por Clara Flaksman) A leitura da obra de Jeanne Favret-Saada teve grande importância em muitos momentos do meu percurso na Antropologia. Gostaria de destacar dois deles, relacionados a dois temas fundamentais em seu trabalho. Nesses momentos, suas colocações serviram como uma bússola, apontando um caminho que eu poderia seguir. Durante a minha pesquisa de campo de doutorado, feita em um terreiro de Candomblé de Salvador, Bahia, escutei inúmeras vezes a pergunta: "por que você está aqui?" O mais notável não era a repetição da pergunta, e sim a contínua reiteração do comentário feito à minha resposta, que também se repetia. "Não sei", dizia eu, com uma sinceridade que considerava desconcertante. "Mas eu sei", replicava o meu ou a minha interlocutor(a). "Você tem enredo". Aos poucos, pude entender como o termo enredo representa uma questão fundamental para aqueles que me faziam a pergunta: o fato de eu ter enredo significava que eu teria um motivo válido para estar ali, independente da minha simples vontade ou do acaso. No candomblé o acaso não existe; e dentro de um terreiro, a vontade principal não é a dos seres humanos, e sim a dos Orixás (e da Divindade Suprema, Olodumare). Enredar, nesse caso, significa não somente envolver-se numa trama, numa história, num roteiro. Ter enredo é ter uma relação; ou melhor, um complexo de relações. A utilização mais frequente do termo diz respeito aos laços familiares; ou seja, quando alguém me dizia Cadernos de Campo (São Paulo, online) | vol. 31, n. 2 | p.1-14 | USP 2022 VIEIRA; FLAKSMAN; MELLO | A Caixa de ferramentas ... 10 que eu tinha enredo, estava querendo dizer, em última instância, que eu tinha uma relação familiar, ancestral — fosse direta ou indireta — com algum Orixá; e seria então pela vontade deste que eu estaria ali naquele momento. Aos poucos, entendi que no candomblé, costuma se considerar que quem se aproxima de algum terreiro está seguindo alguma designação cuja competência lhe foge. Qualquer um que se aproxime — e sempre se imagina que isso obedeça a um desígnio dos Orixás, fora do alcance dos humanos comuns — pode ser chamado a fazer parte da religião. Se toda pessoa tem Orixá e todo Orixá pode querer ser feito, qualquer pesquisador que chegue num terreiro pode ter que se submeter à feitura. Ao contrário do que se passa em outras situações, em que há uma diferença estabelecida a priori entre o pesquisador e aqueles que ele pesquisa, no caso do candomblé isso (e tudo o mais) só pode ser definido a posteriori. Antes de chegar ao terreiro, eu nunca havia tido nenhum contato com religiões de matriz africana. Não tenho conhecimento de nenhum membro da minha família que tenha pertencido a algum terreiro de qualquer tipo. Ainda assim, aceitar o fato de que eu pudesse ter enredo me parecia fundamental para que eu pudesse fazer parte daquele grupo e ser aceita como uma pessoa em quem se pudesse confiar. Por outro lado, havia muitos comentários no terreiro aonde eu fui de antropólogos que efetivamente entraram para a religião, o que não era muito bem visto (os membros do terreiro consideravam que eles usavam a pesquisa como uma “desculpa”) – além do que, não era algo que eu desejasse. Porém, ter enredo significava fazer parte do sistema de relações do candomblé, o que durante a fase inicial da pesquisa (que, para os padrões de hoje em dia, foi bem longa) não era algo que estava claro para mim. Nesse momento, compreender o conceito de afecção de Favret-Saada como uma metodologia de pesquisa foi fundamental. Lendo Les Mots, les morts, les sorts, pude compreender como fazer parte do sistema de lugares da feitiçaria foi a condição de possibilidade fundamental para que Favret-Saada pudesse fazer a sua pesquisa no Bocage francês. Tratase tanto de se deixar afetar pelas mesmas forças que afetam os nativos, quanto (o que talvez seja o mais importante) de conseguir usar isso em prol da etnografia, tornando assim o próprio texto antropológico permeável ao efeito de tais forças. Me deixar enredar pelo sistema de forças do candomblé, portanto, foi uma escolha metodológica inspirada pelo que pude aprender com, entre outras coisas, o trabalho de Jeanne Favret-Saada. Mas não foi só isso que aprendi com sua obra. Desde a pesquisa de campo que engendrou a minha dissertação de mestrado, feita em uma unidade da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (mais conhecida como Mórmon), a questão da crença sempre se colocou como algo fundamental em meu trabalho. No caso da minha experiência com a religião mórmon, o ponto fundamental advinha da seguinte questão: como descrever a experiência dos mórmons com a divindade sem atribuí-la a outros fatores que não os que eles próprios julgam relevantes? A questão me parecia relacionada à problemática da crença na antropologia. Porém, a abordagem, neste caso específico, estava ancorada em uma observação etnográfica, já que os mórmons com quem convivia afirmavam sempre que sua filiação àquela Igreja baseava-se em um saber. Foi o contraste entre esse tipo de assertiva e a Cadernos de Campo (São Paulo, online) | vol. 31, n. 2 | p.1-14 | USP 2022 VIEIRA; FLAKSMAN; MELLO | A Caixa de ferramentas ... 11 doutrina da Igreja Mórmon, qualificada com frequência como fantasiosa, que me trouxe essa reflexão específica. Na minha experiência de campo nesta igreja mórmon, logo em meu primeiro encontro com os missionários que lá estavam (cf. Flaksman 2018), ganhei um Livro de Mórmon com a veemente sugestão de lê-lo e perguntar diretamente a Deus se o livro era verdadeiro. Quando acabei de ler, a seguinte questão se instaurou: como contemplar a possibilidade de haver ou não uma resposta divina sem que isso afetasse o resultado final da pesquisa? Ou, em outras palavras, como construir uma etnografia que não presumisse a impossibilidade de realmente haver uma resposta sem supor, em contrapartida, que sua existência fosse óbvia? Jeanne Favret-Saada afirma que, quando iniciou sua pesquisa de campo no Bocage, a literatura antropológica sobre feitiçaria disponível na ocasião se dividia em dois grupos, “dois corpos heterogêneos que ignoravam a existência um do outro” (Favret-Saada, 1990, 189). De um lado, para os folcloristas europeus (que, segundo ela, haviam assumido havia pouco a alcunha de “etnógrafos”), a feitiçaria era exemplo do “atraso” das sociedades camponesas, pesquisadas por meio de entrevistas, ou acessadas através de membros das elites locais. De outro lado, os antropólogos anglo-saxões, em sua maior parte africanistas e funcionalistas, de forma geral negavam a existência da feitiçaria rural na Europa. Favret-Saada chama atenção para o fato de que a literatura sobre a feitiçaria no Bocage, produzida majoritariamente por folcloristas, mas também por antropólogos, tratava as práticas feiticeiras como uma “crença”, em oposição a um suposto “saber” – reproduzindo assim a ‘Grande Divisão’ entre “nós” (seres cientes, detentores do saber erudito, do conhecimento “neutro”) e “eles” (os “outros”, representantes de um dado papel social, falando em nome de seu grupo) (Favret-Saada, 1977, 56). Essa possibilidade, porém, não significa, tal como os adeptos da “Grande Divisão” parecem crer, uma adesão incondicional a esse sistema de crença. A autora aponta que um de seus pontos fundamentais é justamente a ambiguidade. Favret-Saada mostra que, de certa forma, o crédulo é o cientista social; o camponês do Bocage consegue transitar com facilidade entre ontologias distintas.4 Conforme ela ressalta, o termo “crença” foi banido de seu vocabulário justamente por evocar a adesão do “outro” a certas ontologias, ao mesmo tempo que eclipsa a concepção particular de ser humano a que adere o/a pesquisador/a – que não crê, mas sabe.5 4 No artigo "O desenfeitiçamento em Bocage sem distrações conceituais", que compõe este dossiê, Favret-Saada detalha sua crítica à noção de crença. De acordo com ela, “’acreditar’ é um verbo de atitude, que pode expressar certeza, bem como suposição com seus infinitos graus, desde quase certeza até quase ceticismo. (...) Ávidos por eliminar a ambiguidade, os etnólogos, portanto, atribuem a seus entrevistados uma única atitude: aquela de plena convicção. Mas, ao fazê-lo, eles mutilam a realidade que deveriam descrever: nos fatos, há um jogo entre as mil flutuações de atitudes nativas no campo da feitiçaria, e é esse espaço de oscilação que deveria constituir o objeto de uma etnografia da "crença", um termo que seria melhor eliminar do vocabulário das ciências sociais." 5 Para uma discussão mais aprofundada sobre este tema, ver Flaksman (no prelo). Cadernos de Campo (São Paulo, online) | vol. 31, n. 2 | p.1-14 | USP 2022 VIEIRA; FLAKSMAN; MELLO | A Caixa de ferramentas ... 12 Já no doutorado, a mesma questão se colocou, embora em outros termos. Para quem conviveu com pessoas de candomblé, a ideia de perguntar a alguém sobre a crença nos Orixás parece estranha. Um amigo do terreiro me falou, a respeito disso: "Como a pessoa não acredita em Orixá? Ela não acredita no mar? No vento? Na água do rio?" Como se manifesta claramente nessas palavras, o que leva as pessoas a crerem nos Orixás é sua atuação, a eficácia de sua ação combinada no mundo. A questão que se colocava, nesse caso, estava relacionada à maneira tradicional com que a Antropologia sempre tratou destas divindades: ou como símbolos de elementos da natureza ou, mais diretamente, como elementos que representam aspectos e/ou necessidades de determinados grupos sociais. Ambas as explicações têm em comum o fato de que Orixás não existiriam. O/a antropólogo/a sabe disso; o “nativo” não, e portanto acredita em sua existência. Porém, a questão é um pouco mais complexa: como descrever o sistema do candomblé sem incorrer em uma dualidade em que a narrativa tenha que deslizar ou para o simbolismo ou para o realismo absoluto?6 As colocações de Favret-Saada foram fundamentais nas minhas escolhas ao narrar tanto a experiência que pude compartilhar com os mórmons da unidade da Igreja em que fiz a minha pesquisa de campo durante o mestrado quanto aquela que tive em um terreiro de Candomblé durante o doutorado. Em ambos os casos, a crença era uma ‘não questão’ – ou seja, estava, de fato, e como defendia Favret-Saada, mais na cabeça da etnógrafa do que efetivamente na vida das pessoas com quem ela estava fazendo pesquisa. Ao redigir a minha dissertação, ao refletir sobre a postulada crença nativa e a possível descrença antropológica, concluí que não podia tratar como crença algo que se apresentava como um saber. E, durante a escrita da minha tese, tomei como ponto de partida pensar quais caminhos seguir a partir desse ponto em termos etnográficos, ou seja: como escrever sobre a minha experiência de campo sem tomar como pressuposto nem a existência, nem a inexistência das entidades sobrenaturais com as quais tive a chance de lidar durante a pesquisa. Aqui, mais uma vez, a metodologia criada por Favret-Saada serviu como um farol: pois o “ser afetado” inclui também dois outros momentos lógicos articulados entre si. O segundo momento é relativo à escrita do diário de campo, quando a etnógrafa deve registrar os acontecimentos em seu diário da forma mais detalhada possível. O terceiro momento é a análise desse material, que “inevitavelmente leva a uma quebra das certezas científicas mais bem estabelecidas” (FavretSaada, 2005: 160). Referências Bibliográficas BARBOSA NETO, Edgar. 2012. "O quem das coisas: etnografia e feitiçaria em Les mots, la mort, les sorts". Horizontes Antropológicos [online], vol. 18, no. 37 [Acessado 12 Novembro 2017], pp. 235-260. DOI: 10.1590/S0104-71832012000100010 6 Tobie Nathan afirma que a noção de crença e o simbolismo são indissociáveis na análise de sistemas de pensamento de “universo múltiplo”, como eu caracterizaria o candomblé. Sobre isso, ver Nathan e Stengers (1995) e Flaksman (2018). Cadernos de Campo (São Paulo, online) | vol. 31, n. 2 | p.1-14 | USP 2022 VIEIRA; FLAKSMAN; MELLO | A Caixa de ferramentas ... 13 CONTRERAS, Josée; FAVRET-SAADA, Jeanne. 2018. "Ah! A cretina, a vizinha miserável...!" Tessituras, vol. 6, no. 2: 28-44, jul./dez. 2018. ESQUERRE, Arnaud. 2007. La machine à coudre le monde de Jeanne Favret-Saada. EspacesTemps.net, 30.07. Disponível em: http://www.espacestemps.net/articles/lamachine-a-coudre-le-monde-de-jeanne-favret-saada/ FAVRET-SAADA, Jeanne; ISNART, Cyril. 2017. Debates do NER, Porto Alegre, vol.18, no. 32: 291-307, jul./dez. FAVRET-SAADA, Jeanne. Esquerre, A., Gallienne, E., Jobard, F., Lalande, A., & Zilberfarb, S. 2011. "Deslizamentos de campos Glissements de terrains: entretien avec Jeanne FavretSaada". Cadernos De Campo, vol. 20: 194-203. DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v20i20p194203 FAVRET-SAADA, Jeanne. 1977. Les Mots, la mort, les sorts. Paris: Gallimard. FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990. “About Participation”. Culture, Medicine and Psychiatry, no. 14; 189-99. FAVRET-SAADA, Jeanne. 1977. 2005. “Ser afetado”. Cadernos de campo, no. 13: 155-61. FLAKSMAN, Clara. 2018. "Sobre saberes e crenças: o Livro de Mórmon". Revista de Antropologia v. 61 n. 1, pp. 191-214. FLAKSMAN, Clara. "Jeanne Favret-Saada". In: Antropologia da religião. Org: MENEZES, Renata e TEIXEIRA, Faustino. Rio de Janeiro: Vozes [No prelo]. MELLO, Cecília C. A. 2016. "Notas para uma teoria afroindígena da ação". Anais do 40o Encontro Anual da ANPOCS. ST 01 – Antropologias Afroindígenas: contradiscursos e contramestiçagens. Caxambu: ANPOCS. MELLO, Cecília C. A. 2010. 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Doutora em Cadernos de Campo (São Paulo, online) | vol. 31, n. 2 | p.1-14 | USP 2022 VIEIRA; FLAKSMAN; MELLO | A Caixa de ferramentas ... 14 Antropologia Social pelo PPGAS do Museu Nacional/ UFRJ. Cecília Campello do Amaral Mello Professora Associada do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da UFRJ. Doutora em Antropologia Social pelo PPGAS do Museu Nacional/ UFRJ. Clara Flaksman Professora adjunta do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Doutora em Antropologia Social pelo PPGAS do Museu Nacional/ UFRJ. Autoria: As autoras traduziram os artigos de Jeanne Favret-Saada e construíram coletivamente o texto de apresentação a partir de estudos bibliográficos sobre a obra da autora e de seus próprios percursos de pesquisa. Financiamento: As revisões das traduções "O desenfeitiçamento em Bocage sem distrações conceituais" e “Força e violência das palavras” contaram com apoio financeiro do PPGAS da UFG por meio de verba PROAP/CAPES. Recebido em 14/11/2022. Aprovado para publicação em 30/11/2022. Cadernos de Campo (São Paulo, online) | vol. 31, n. 2 | p.1-14 | USP 2022