https://doi.org/10.14195/2182-7974_33_2_4
O lugar dos ‘Arquivos Pessoais’ na
Arquivística Internacional
The place of ‘Personal Archives’ in the
International Archival Science/Discipline
CARLOS GUARDADO DA SILVA1
Centro de Estudos Clássicos, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa
Professor e Diretor do Mestrado em Ciências da Documentação e Informação
carlosguardado@campus.ul.pt
ORCID: 0000-0003-1490-8709
Artigo entregue em: 26 de maio de 2020
Artigo aprovado em: 12 de agosto de 2020
RESUMO
É notório o aumento recente do estudo dos arquivos pessoais, no âmbito de
diversas áreas científicas. Este estudo, exploratório de natureza qualitativa,
efetua uma reflexão crítica sobre o lugar que os arquivos pessoais ocupam
na arquivística internacional, tendo por base o método de pesquisa e análise
documental. Discute os termos e o conceito de arquivo pessoal, analisa o seu
desenvolvimento desigual em distintos países e termina com a enumeração
de algumas problemáticas. Conclui que a sua valorização se deve à história,
e mormente à história da vida privada.
PALAVRAS-CHAVE: Acervo pessoal; Arquivística; Arquivo pessoal;
Documentos pessoais; História da vida privada.
1 O presente estudo é o resultado da Conferência inaugural “O lugar dos ‘Arquivos Pessoais’
na Arquivística Internacional”, proferida na Jornada O arranjamento dos Arquivos: preservação e
tratamento de Arquivos Pessoais e de Família (2.ª sessão), no dia 29 de outubro de 2016, na
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em Coimbra, uma organização da APAHP –
Associação Portuguesa dos Arquivos Históricos Privados. A este, acrescentámos apenas alguns
breves parágrafos de atualização.
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ABSTRACT
The recent increase in the research of personal archives is notorious, in the
scope of several scientific areas. This exploratory and qualitative study carries
out a critical reflection on the place that ‘personal archives’ occupy in
international archival science / discipline, based on the method of documentary
analysis. It discusses the terminology and the concept of ‘personal archives’,
analyzes their uneven development in different countries and ends with a
enumeration of some issues. It concludes that its valorization is due to history
and, mainly, to the history of private life.
KEYWORDS: Archival Science; History of private life; Manuscripts; Personal
archives; Personal papers.
Introdução
Nas últimas três décadas, os estudos sobre os arquivos pessoais, seja
no contexto da história, da antropologia e da sociologia, seja no contexto
da literatura e da cultura, seja ainda no contexto da arquivística e/ou da
ciência da informação, considerando neste caso a arquivística como disciplina, têm conhecido um renovado interesse por parte dos investigadores,
sobretudo no quadro internacional, reposicionando o seu lugar e reforçando
o seu valor para a investigação. Este seu valor - histórico e/ou cultural – justifica e reclama a sua recolha nos arquivos, bibliotecas ou museus (e não
só!), enquanto instituições de memória, reconhecendo a importância dos
arquivos pessoais como fonte de informação identitária e como parte da
memória de uma sociedade, a evidence of us, como bem notara a investigadora australiana, Sue MCKEMMISH, em Evidence of me (1996: 175).
Para além do registo da memória, são os titulares dos arquivos pessoais,
mas também os seus distintos usos pela sociedade, que permitem singularizar a sua custódia e preservação, bem como o seu estudo. E este é bem
diverso, desde os trabalhos académicos, no âmbito de dissertações de mestrado e doutoramento, a trabalhos de ficção (literatura e cinema), dando
origem a livros (científicos e técnicos, sobretudo neste caso os instrumentos
de acesso à informação - IAI, tradicionalmente designados por Instrumentos
de Descrição Documental - IDD), filmes e exposições (BELLOTTO, 2014: 108).
Diz um provérbio árabe que ‘os homens são mais filhos do seu tempo
do que dos seus próprios pais’. Não são, porém, os arquivos dos homens
simples que se reúnem nas instituições de memória, como representantes
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de uma época, uma área do conhecimento ou uma expressão de um segmento da sociedade, mas os arquivos de homens (e de mulheres) que se
destacaram socialmente ao longo da história – os representative men -,
objeto de culto e memorização em Portugal, a partir da década de 80 do
século XIX, como bem notara o insigne historiador Fernando Catroga (1989).
Todavia, esse crescente interesse, que acompanha o interesse da história pela vida privada, não tem sido sempre acompanhado de reflexão teórica,
grandemente ausente deste campo de estudo, cuja importância não é consensualmente reconhecida. Na verdade, a própria tradição arquivística considerava, até há pouco tempo, apenas a documentação de caráter administrativo, excluindo a de caráter pessoal e biblioteconómico. A título de exemplo refira-se o Manual de arranjo e descrição de arquivos, dos arquivistas
holandeses Muller, Feith e Fruin, publicado em 1898, com a primeira edição
portuguesa (no Brasil) em 1960, para quem os documentos relacionados
com os arquivos pessoais se restringem às atividades de negócio (1973: 19).
Nesta breve introdução ao tema, e sendo este um estudo eminentemente de reflexão, procuraremos discutir e identificar o conceito de ‘arquivo pessoal’,
situar as suas origens e os desenvolvimentos na arquivística internacional,
terminando com a identificação de algumas das problemáticas que incorporam
os estudos dos arquivos pessoais, que permitem compreender o seu lugar na
arquivística em particular e no âmbito mais lato da ciência da informação.
Metodologicamente, partiremos de uma pesquisa documental não sistemática internacional, atendendo com particular ênfase ao lugar dos arquivos pessoais no Reino Unido, em França, nos Estados Unidos, no Canadá e
no Brasil, países onde o seu estudo adquiriu certa relevância, terminando com
o caso português. Não ignoramos, também, ter sido este percurso iniciado
e apresentado por Lucia Maria Velloso de Oliveira, no seu livro intitulado
Descrição e pesquisa: reflexões em torno dos arquivos pessoais (Rio de Janeiro:
Móbile, 2012), que resultou da sua dissertação de doutoramento apresentada à Universidade de São Paulo, dois anos antes, o qual seguimos de perto.
1. Concetualização de ‘Arquivo Pessoal’
Historicamente, foram as bibliotecas e os museus, enquanto instituições
de memória, que abriram as portas à custódia dos arquivos pessoais, referindo-se-lhes, muitas vezes, como ‘collections’/‘coleções’, ‘manuscripts’/‘manuscritos’ e ‘personal papers’/‘papéis pessoais. Na literatura norte americana
(Canadá e Estados Unidos) da área arquivística, ‘manuscripts’ é o termo
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usado para a referência aos documentos históricos ou literários dos arquivos
pessoais ou de família, assim como ‘personal papers’ se utiliza exclusivamente no contexto dos arquivos pessoais e de família. Se aquela referência –
manuscripts - parece expressar um menor entendimento da sua natureza e
identidade, apontando mormente para a técnica da escrita (manuscrito) e
para o suporte (papel), personal papers é um termo igualmente redutor, uma
vez que designa os arquivos exclusivamente em papel, ainda que maioritariamente assim seja, bem como parece referir-se a ‘documentos avulsos’,
cujo uso se encontrava outrora em voga em Portugal, parecendo traduzir
uma parcial ou total ausência de contexto.
Quanto ao conceito de ‘coleção’, que evoca o trabalho do colecionador,
permite apontar, como sabemos, para um conjunto de documentos reunido
de forma intencional, “sem a marca da produção natural e sem a explicitação da relação orgânica entre os documentos” (OLIVEIRA, 2012: 31) e destes com as funções e/ou atividades que os geraram. Todavia, na literatura
arquivística canadiana e dos Estados Unidos, o termo collection expressa
quer a ‘coleção’ quer o ‘arquivo’, designadamente quando se refere a arquivos pessoais, sendo usado para designar as duas realidades indistintamente,
não se aplicando o termo ‘archive(s)’ para designar o conjunto de documentos de uma pessoa ou de uma família, mas apenas em referência ao arquivo
definitivo de uma instituição, pública ou privada.
Por seu turno, o termo ‘arquivo pessoal’ aparece referido, na literatura
arquivística de França e do Reino Unido na forma do plural, como archives
personnelles e personal archives, respetivamente.
Por ‘arquivo pessoal’, entenda-se ‘um conjunto de documentos produzidos,
ou recebidos, e mantidos por uma pessoa física ao longo de sua vida e em
decorrência de suas atividades e função social’ (OLIVEIRA, 2012: 33). Ou seja,
para nós, o arquivo pessoal consiste na informação produzida, acumulada e
gerida por um indivíduo, ao longo da sua vida, no decurso das suas funções e
papéis sociais. Nesta medida, o arquivo pessoal representa, grosso modo, os
registos do papel do seu titular na sociedade: a sua vida, as suas redes de
relacionamento pessoal e profissional, as suas obras, assim como a sua própria
intimidade (BELLOTTO, 2014: 107). E, tal como nos arquivos institucionais, há
um vínculo arquivístico entre os documentos, pois encontram-se ligados entre
si e entre as funções ou atividades (DURANTI, 1997), que deram lugar ao conjunto de documentos (Informação) produzido e acumulado.
‘Arquivo pessoal’ é o termo mais usado na língua portuguesa, em
Portugal e no Brasil. Todavia, independentemente da sua designação, importa que seja considerado enquanto sistema de informação.
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2. Os arquivos pessoais na arquivística internacional
No Reino Unido, o reconhecimento da importância dos arquivos pessoais
remonta a 2 de abril de 1869, quando da constituição da Royal Commission
on Historical Manuscripts, conhecida por Historical Manuscripts Commission
(HMC)2, que integra o Arquivo Nacional desde 2003. A Comissão, que mantém a sua atividade, tem como principal objetivo a publicação de documentos
de interesse histórico, científico e literário, de instituições e famílias, realizando censos periódicos de arquivos privados, mas com interesse público.
Para o seu surgimento terá, certamente, contribuído o trabalho de George
Harris of Rugby, um advogado e antiquário que, ao escrever a biografia de
Philip York, compreendeu a importância dos documentos dos arquivos pessoais
(private papers) para a história. Sensível para a sua importância, efetuou, em
1857, uma proposta para a realização de um censo para identificar e localizar
os conteúdos dos arquivos privados, projeto que só seria concretizado no
âmbito da Historical Manuscripts Commission (JAMES, cop. 2008).
O reconhecimento do valor dos arquivos pessoais, que muito deve aos
historiadores, recrudesceu de forma particular em momentos de crise, sobretudo no contexto e após os conflitos mundiais, designadamente a Grande
Guerra e a 2.ª Guerra Mundial, devido ao receio generalizado da destruição
dos arquivos históricos e, consequentemente, da perda da memória. Com o
mesmo objetivo, emergiu, em 1920, The British Record Society e, em 1932,
a British Records Association (BRA).
Em França, assim como no Reino Unido, a importância dos arquivos
privados (pessoais e familiares) apenas foi reconhecida, pelo seu valor histórico, na segunda metade do século XIX. O seu reconhecimento foi crescendo
desde então, integrando o património nacional e, consequentemente, considerando-se de interesse público. Para tal teve um papel decisivo o historiador
Melchior de Vogüé, que, em artigo publicado em 1891, no anuário da Societé
d’Histoire de France, chamava a atenção para a importância dos arquivos
familiares para os historiadores, bem como defendia a sua não dispersão
(OLIVEIRA, 2012: 26). Neste mesmo ano, foi publicado o livro Les archives de
l’histoire de France (Paris: Alphonse Picard, 1891), em que os autores Charles-Victor Langlois e Henri Stein dedicaram um capítulo aos ‘arquivos dispersos’
sobre a temática dos arquivos familiares e dos castelos. Os autores realizaram
2 Historical Manuscripts Commission [Em linha]. Disponível em <http://www.nationalarchives.gov.uk/archives-sector/our-archives-sector-role/historical-manuscripts-commission/>. [acedido
em 24.05.2020].
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um trabalho de inventariação dos arquivos privados em arquivos nacionais,
governamentais, departamentais, municipais e hospitalares, entre outros, em
França e em distintos países europeus, incluindo Portugal, assim como constataram a sua presença em bibliotecas. Um trabalho notável que chamaria a
atenção dos historiadores para os arquivos dos castelos e das famílias nobres
enquanto fontes de informação para a sua investigação.
Apesar de estes dois marcos importantes para a valorização dos arquivos privados e, mais especificamente, dos arquivos familiares e pessoais, a
incorporação de arquivos privados no Arquivo Nacional ocorreria apenas
após a Grande Guerra, a exemplo do que acontecera no Reino Unido. Na
verdade, reconheciam o governo francês e a comunidade de historiadores o
interesse histórico dos arquivos pessoais e familiares, tendo o Arquivo Nacional
procedido à sua inventariação. Seguiram-se outras ações diversas, que, ao
longo do século XX, contribuíram para a preservação e a garantia do acesso a arquivos pessoais e familiares, de que referimos, a título de exempla, a
criação, em 1932, da modalidade de contrato de depósito, e, em 1938, com
a publicação do decreto-lei de 17 de junho, a proteção dos arquivos privados
de interesse nacional, bem como a publicação da lei de 3 de janeiro de 1979,
que assegurou a capacidade aos arquivos públicos de recolherem os arquivos
privados com interesse histórico. Em suma, medidas de preservação e visibilidade dos arquivos privados, com valor histórico reconhecido.
Nos Estados Unidos, ocorreram, após a Grande Guerra, iniciativas
idênticas às levadas a cabo no Reino Unido e em França, de identificação e
inventariação das collections relativas a indivíduos americanos com papel
relevante para a história dos Estados Unidos – os representative men – mantidas por instituições de memória (sobretudo bibliotecas) e de investigação
(universidades, sociedades históricas, etc.). Dentre essas iniciativas, destaque-se o recenseamento levado a cabo nos anos de 1916-1917, promovido
pela Biblioteca do Congresso, cujo resultado foi publicado em 1918, com
informações sobre arquivos pessoais e/ou familiares entre 1428 e 1917.
Um lugar distinto concedido aos arquivos pessoais foi, porém, trazido
por Theodore R. Schellenberg no seu livro Modern archives: principles and
tecnhiques, publicado em 1956 (Chicago: The University Chicago Press), ao
integrar os arquivos pessoais, enquanto fontes de informação, no contexto
da Arquivística. No fundo, colocava os arquivos pessoais no ‘seu lugar’,
reconhecendo, porém, o papel dos historiadores e das sociedades históricas,
ao longo do século XIX e da primeira parte do século XX, na recolha dos
arquivos pessoais de figuras de destaque para a história americana, com o
objetivo de garantir o seu acesso a historiadores e a genealogistas.
100
No Canadá, o contexto de afirmação dos arquivos pessoais é similar,
identificando-se a preservação e a recolha com as prioridades dos historiadores
e arquivistas, tendo presente o seu valor cultural, bem como fonte de informação para a investigação familiar e histórica: “Public records and manuscripts
are collected according to the priorities of the historians and archivists in terms
of élites and the view at the centre from the top.” (TAYLOR, 1982-1983: 121).
No país, os arquivos pessoais adquiriram relevo, recrudescendo o interesse da sua custódia nos arquivos nacionais, provinciais, municipais e universitários, sendo procurados, sobretudo, por historiadores e investigadores
na área dos estudos literários (OLIVEIRA, 2012: 31). Os próprios arquivos
pessoais conquistaram um lugar equivalente ao dos arquivos públicos institucionais, servindo ambos, e já não apenas os acta publica (documentos
públicos), à construção da memória social e coletiva, quebrando-se a barreira artificial do caráter particular da observação, presente no contexto
anglo-saxónico, reintegrando na arquivística a dimensão subjetiva com a
finalidade, como defendera Terry Cook, da defesa da perspetiva dos ‘arquivos totais’ (BELLOTTO, 2014: 111). Para o ilustrar, o autor canadiano vai mais
longe, defendendo uma cada vez maior atenção dos arquivistas na governança e menos no governo, entendendo-se por aquela “a trama, isto é, tudo
o que possa comprovar a interação entre cidadão e Estado, o impacto do
Estado na sociedade e as funções e atividades da sociedade em si mesma;
por governo, compreendem-se as estruturas sustentadoras e a ação burocrática”. Ou, nas suas palavras, “A tarefa arquivística é preservar a evidência
documentada da governança da sociedade, não apenas da atividade governante dos governos”, aproximando os arquivos pessoais e os arquivos governamentais (cit. por BELLOTTO, 2014: 111).
No Brasil, destacamos, apenas, o relevante Seminário Internacional
sobre Arquivos Pessoais promovido pelo Centro de Pesquisa e Documentação
(CPDOC), ligado à Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, na comemoração do seu 25.º aniversário, em parceria com o Instituto de Estudos Brasileiros
(IEB), da Universidade de São Paulo (USP), entre 17 e 21 de novembro de
1997, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Os respetivos estudos foram publicados na Revista Estudos Históricos, uma publicação do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC), do CPDOC.
Neste seminário, reuniram-se investigadores da área das ciências sociais,
procurando efetuar uma análise interdisciplinar acerca do lugar dos arquivos
pessoais na arquivística, assim como das questões teóricas e metodológicas
em torno do seu uso e consequente valor. Em torno de quatro mesas redondas, foram discutidos os seguintes eixos temáticos: o arquivo pessoal como
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‘produção de si’, a intervenção do arquivista sobre a informação acumulada
no arquivo pessoal, a utilização do arquivo pessoal como fonte de informação na investigação histórica e, por último, as políticas de preservação e
acesso entre o público e o privado.
Mais recentemente, tomando o campo dos arquivos pessoais, Lucia Velloso
de Oliveira chamou a atenção para a forma redutora como a descrição arquivística tem sido apresentada na literatura, relativamente ao que ela significa e
representa, comumente identificada ou associada à elaboração de instrumentos
de acesso à informação (OLIVEIRA, 2012: 40). Na sua obra intitulada Descrição
e pesquisa: reflexões em torno dos arquivos pessoais (2012), a autora compreende a descrição arquivística como uma representação resultante do processo de
investigação, o que, assim sendo, lhe confere um status científico, quando
outrora se enfatizava e se definia pela sua dimensão técnica, quando não prática. Contrariamente, defende a descrição como um processo de pesquisa
objetivando produzir conhecimento sobre os acervos (OLIVEIRA, 2012: 51).
3. Os arquivos pessoais na arquivística nacional
Em Portugal, encontra-se grandemente por fazer o estudo das origens
e do percurso de reconhecimento da importância dos arquivos pessoais.
Todavia, e de forma empírica, é possível afirmar que, também aqui, a sua
importância se deve à influência da investigação histórica e dos estudos
literários (FILIPE, 2015: 11), de que é exemplo, neste caso, o considerável
número de espólios literários e artísticos, considerados enquanto arquivos
temáticos, à guarda da Biblioteca Nacional e do Museu do Neorealismo (Vila
Franca de Xira). Como acontece nos países referidos anteriormente, grande
número encontra-se sob a custódia de bibliotecas (públicas, de fundações e
universitárias), arquivos e museus, sob a designação de ‘arquivos pessoais’
e ‘acervos’, com informação de natureza biblioteconómica e museológica.
O interesse pela investigação de arquivos pessoais acompanha o interesse
pelos arquivos de família, com “um significativo florescimento desde a década
de ’80 do século 20” (ROSA, 2012: 26). Algumas ações contribuíram também
para esse reconhecimento, de que é exemplo a criação da Área de Espólios da
Biblioteca Nacional, em 1982, ainda que a sua designação seja menos interessante, como bem notara Ivo de Castro, dada a sua origem no termo latino
spolia (‘roubo’, ‘saque’) (1999-2000: 165), tornando a sua utilização pouco
rigorosa e acrítica (SILVA, 2004: 62), tendo-a transformado, uma década depois
(1992), devido ao crescimento da área, em Arquivo de Literatura Portuguesa
102
Contemporânea. Uma nova alteração ocorreu, porém, em 1997, passando a
denominar-se Arquivo de Cultura Contemporânea Portuguesa, dada a “expansão contínua e a abertura às ciências, às artes, aos movimentos sociais e à
política”, que lhe conferiu uma natureza mais abrangente (COUTO, 2007: 11).
No que se refere à preservação, à comunicação e à promoção do acesso aos ‘arquivos pessoais’ de escritores, o Arquivo de Cultura Contemporânea
Portuguesa publicou, em 2000, o Contributo para um levantamento nacional
de espólios literários, com informação relevante sobre a sua identificação e
localização em diversas instituições portuguesas (FILIPE, 2015: 15).
Os arquivos pessoais relativos a figuras políticas de maior relevo dos
séculos XVIII e XIX encontram-se na Biblioteca Nacional, assim como no
Arquivo Nacional, tendo sido adquiridos por compra, doação ou depósito
(GARCIA, 1998: 180). Neste caso, assume particular relevo o Centro de
Documentação 25 de Abril, criado em 1984 e integrado na Universidade de
Coimbra, que reúne essencialmente arquivos pessoais de militares e políticos,
que participaram no movimento preparatório do 25 de Abril e que exerceram
cargos políticos entre 1974 e 1976.
Sobre o desenvolvimento dos estudos relativos aos arquivos pessoais em
Portugal, nos últimos vinte anos, veja-se o estudo de Abel Rodrigues (2018),
em que o autor procura contextualizar o seu desenvolvimento, porém restringindo-se à investigação desenvolvida na Universidade do Porto e no Instituto
de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade
Nova de Lisboa, deixando de lado os diversos estudos sobre arquivos pessoais
promovidos nas Faculdades de Letras das Universidades de Coimbra e Lisboa.
Todavia, contata-se que, os arquivos pessoais se têm tornando objeto
de estudo, em diversas áreas, sobretudo sob a forma de dissertações de
mestrado, incluindo no âmbito da ciência da informação. Dissertações com
objetivos de contribuírem para um recenseamento deste tipo de arquivos
em diversas instituições, ou sobre um arquivo pessoal particular, procurando
sobretudo estudar o seu produtor e o contexto de produção da informação
acumulada, para nessa sequência se proceder à elaboração de um quadro
de classificação, desejavelmente facetado, de modo a melhor poder organizá-lo e representá-lo, como também notara Abel Rodrigues (2018).
Para além desta dimensão, e talvez mais interessante, ainda que ímpares,
surgem estudos como o de Sofia Carvalho (2018), que procuram estudar os
arquivos pessoais a partir de uma determinada perspetiva. Neste caso, e pela
sua qualidade, refira-se o trabalho final de mestrado da autora, O arquivo
pessoal como construção auto/biográfica: a (re)construção da narrativa de
vida do arquivo pessoal Godofredo Ferreira, cujo título é bem elucidativo do
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arquivo enquanto construção autobiográfica), que procura estabelecer uma
narrativa (pessoal) do seu produtor.
No âmbito de um doutoramento em ciência da Informação, Zélia Pereira
defendeu a sua tese na Universidade de Évora, em 23 de abril de 2018,
intitulada O universo dos arquivos pessoais: características, usos e valorização
(2017), em que efetua um recenseamento dos arquivos pessoais em Portugal.
A autora identifica-os, bem como as instituições de custódia (arquivos,
bibliotecas, museus, fundações, universidades, etc.), e, entre outros aspetos,
estuda as formas de aquisição, motivações para a sua preservação, critérios
de seleção e sua representação social. Este é, enfim, um estudo que testemunha a valorização dos arquivos pessoais ao torná-los objeto de investigação no âmbito de uma tese doutoramento.
4. Problemáticas em torno do ‘lugar’ dos arquivos pessoais
Procuramos, de seguida, identificar algumas das problemáticas em torno
do lugar dos ‘arquivos pessoais’ na arquivística internacional.
1.
A organização da informação como construção autobiográfica - A
organização da informação pessoal é incomum, encontrando-se
perdida a ordem original ou primitiva, que nos possa dizer do
arquivo e sobre o arquivo. Todavia, permite-nos efetuar uma analogia com o género literário autobiográfico, evidenciando a intenção
da construção do eu autobiográfico, isto é, a existência de arquivos
que acrescentam à faceta profissional aspetos de vida pessoal e
familiar, quando não íntima, de determinada pessoa com documentos de carácter autobiográfico, na perspetiva do ‘arquivo total’ ou,
melhor, do ‘sistema de informação’.
2. Do lugar da fabricação da memória do eu à ‘inventio’ da identidade
- O arquivo assume, desde o princípio, o papel de guardião da memória, sabendo nós que o arquivo é sempre um lugar de memória, como
lhe chamou Pierre Nora, e o resultado da organização e da reorganização
constante da informação, a reconstrução permanente de um sentido
para si cada vez que se ‘reconstrói’ ou reorganiza a própria vida, a
inventio (construção) de uma identidade (NORA, 1984).
3. O arquivo do eu como lugar de constituição e afirmação da subjetividade - O arquivo pessoal é um lugar da constituição e da afirmação da subjetividade, tal como se verifica nos escritos autobio-
104
gráficos, algo que não é novo, que se verificava já na antiguidade
clássica, trazida por Foucault, em A escrita de si (1992)3.
4. A afirmação do lugar do privado na esfera do público – O retorno
ao privado, marcadamente no século XIX, bem como a crescente
valorização do indivíduo e do intimismo, que tem em Jean Jacques
Rousseau o seu primeiro grande teórico, imprimiria características
especiais à nova conceção jurídica do privado.
5. A exigência do arquivo como lugar de reconhecimento do ‘social’
e da própria existência... - Os arquivos pessoais, os ‘arquivos domésticos’, designação esta que serve os arquivos de família e pessoais,
na senda de Daniel Fabre e dos antropólogos da escrita comum,
não deixam de ter uma função e um valor sociais 4.
6. O lugar de defesa ou imitando Alice do outro lado do espelho O arquivamento do eu não é, porém, uma prática neutra; é muitas
vezes a única ocasião de um indivíduo se fazer ver tal como ele se
vê (ARTIÈRES, 1998: 31) a si próprio e tal como desejaria ser visto.
7. Um lugar entre o direito de acesso à informação e o direito à privacidade – o arquivo pessoal é, também ele, o lugar da garantia
dos direitos (de realização da plena cidadania), entre os quais o
direito à informação inscrito na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, em 1948, passando, desde então, a ser regulado o acesso aos arquivos por legislação específica, deixando de ser privilégio
de eruditos, com destaque para os historiadores.
Conclusão
Em suma, os arquivos pessoais têm ganhado cada vez maior importância para a investigação do quotidiano, tendência crescente da historiografia
ocidental, europeia e americana. O seu reconhecimento deve-se, antes de
mais, ontem e hoje, a um renovado olhar da história, e mormente à história
3
A edição portuguesa (cf. FOUCAULT, 1992) traz a referência do texto original e uma nota explicativa, a saber: “L’écriture de soi”, in Corps Écrit, n° 5, L’auto-portrait, février 1983, p. 3-23. “Estas
páginas fazem parte de uma série de estudos sobre ‘as artes de si mesmo’, isto é, sobre a estética da
existência e o governo de si e dos outros na cultura greco-romana, nos dois primeiros séculos do Império.
A série de estudos a que Foucault alude veio a culminar, como é sabido, nos dois últimos volumes publicados da sua Histoire de la sexualité: L’usage des plaisirs e Le souci de soi (Paris : Gallimard, 1984).
4 FABRE, D. (sous la dir. de) - Écritures ordinaires. Paris : POL, 1993. E, mais recentemente,
FABRE, D. (sous la dir. de) - Par écrit : Ethnologie des écritures quotidiennes. Paris : Éditions de la
Maison des Sciences de l’Homme, 1997.
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da vida privada, com enfoque em sentimentos, hábitos e comportamentos,
que vem elegendo de uma forma especial, entre outros documentos, diários
íntimos, anotações, correspondência pessoal, agendas, encontrados nos
arquivos de escritores, artistas e políticos.
A publicação de este tipo de fontes, isoladamente ou em série (como
no caso da correspondência), tem sido amplamente utilizada pelos historiadores para incentivar o debate e a compreensão de temas, personagens e
épocas, a partir de novos enfoques metodológicos, para os quais a contribuição da antropologia, da teoria literária, da sociologia e da ciência política
tem sido fundamental.
Públicos ou privados e mesmo pessoais, os arquivos são espaços de
memória. E na construção da memória coletiva importa ter presente que
‘recordar’ para o indivíduo é, afinal, tanto pessoal quanto social, tanto interno quanto externo, tanto privado quanto público. Assim também deve sê-lo,
coletivamente, para os arquivos, que são criados para ajudar a sociedade a
lembrar-se de seu passado, das suas raízes, da sua história que, por definição,
combina o público e o pessoal. Esta é uma visão que os arquivistas deverão
ter no século XXI, continuando a promover a recolha, o estudo, a organização, o acesso e o uso dos arquivos pessoais (que, na sua essência, são
familiares, mas que não deixam de ter a sua individualidade), não esquecendo necessidade de conciliar um profundo estudo biográfico, que integre as
redes de relações e os múltiplos papéis com os usos ou potenciais usos da
informação a descrever, assim como importa estudar os arquivos sob diversos prismas, alguns dos quais enumeramos supra. Assim como não se poderá olvidar que a acumulação de documentos no arquivo pessoal é consequência não apenas das atividades e experiências do produtor do arquivo,
mas também das suas escolhas ou de terceiros realizadas ‘em seu nome’, e
que estas têm naturalmente um significado e uma interpretação.
Por último, algumas das problemáticas supra enunciadas estão sempre,
ou quase sempre, presentes nos arquivos pessoais, fazendo destes, como
escrevera Heloísa Liberalli Bellotto, “uma espécie de ‘reino’ das contradições,
das transgressões, do inesperado e da perplexidade” (2014: 110).
Referências bibliográficas
ARTIÈRES, Philippe (1998) – “Arquivar a própria vida”. Revista Estudos Históricos. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas. vol. 11, n. 21, p. 9-34. Disponível em <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2061> (Acedido em 25/05/2020).
106
BELLOTTO, Heloísa Liberalli (2014) – “Arquivos pessoais em face da teoria arquivística
tradicional: debate com Terry Cook”. In: Arquivo: estudos e reflexões. Belo Horizonte:
UFMG, 2014. p. 107-114.
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