Elementos religiosos na Literatura
Brasileira Contemporânea
Religious elements in Contemporary Brazilian Literature
Jaime GINZBURG1
RESUMO: A literatura brasileira contemporânea é caracterizada por uma diversidade de elementos formais e
temáticos. Sendo um importante aspecto da cultura brasileira, a religião se constitui como um ponto de interesse
constante em textos literários. Escritores brasileiros fazem referências a elementos religiosos a partir de variados
enfoques. Entre eles, podemos encontrar: uma perspectiva crítica contra autoridades religiosas que não respeitam
o sofrimento de pessoas; uma posição crítica referente a algumas práticas religiosas; e apropriações irônicas de
escritos sagrados.
PALAVRAS-CHAVE: Religião. Literatura Contemporânea. Bernardo Carvalho. Bernardo Kucinski. Ditadura
Militar.
ABSTRACT: Contemporary Brazilian literature is characterized by a variety of formal and thematic elements. As
an important aspect of Brazilian Culture, Religion is a constant point of interest for literary texts. Brazilian
writers refer to religious elements through multiple approaches. Among them, we can find: a critical perspective
against religious authorities who do not respect people’s suffering; a critical position regarding some religious
practices; and ironic appropriations of sacred writings.
KEYWORDS: Religion. Contemporary Literature. Bernardo Carvalho. Bernardo Kucinski. Military Dictatorship.
Este trabalho foi inicialmente motivado pela leitura dos textos “O velório”, de
Bernardo Kucinski, e “Liturgia do medo”, de Bernardo Carvalho. A aproximação entre eles
desperta questões de interpretação. Muito diferentes um do outro, os textos apresentam
referências a práticas religiosas.
Entre as possibilidades de reflexão abertas pela observação dessas referências, cabe
destacar as construções de personagens caracterizados como autoridades religiosas. No caso
de Kucinski, aparece um padre, e há uma referência a um bispo; em Carvalho, entra em cena
um pastor evangélico.
É possível elaborar uma hipótese de leitura sobre essas autoridades. Guardadas as
especificidades dos textos, em ambos as autoridades estão mais dedicadas aos interesses da
entidade religiosa de que fazem parte, do que em considerar a singularidade dos indivíduos
que aparecem diante deles. Em razão dessas caracterizações, cabe um questionamento: o que
podem significar as maneiras de apresentar elementos religiosos, na literatura brasileira
1
Universidade de São Paulo – USP. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/FFLCH – Professor de
Literatura Brasileira no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. São Paulo – SP – Brasil. CEP: 05508900. E-mail: jaime.ginzburg@hotmail.com
Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 22-34, jan./abr. 2018.
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contemporânea? Dentro do horizonte desse questionamento, este trabalho procura, em
Kucinski, Carvalho e em outros escritores, verificar se prevalece ou não, como tendência
literária, uma concepção afirmativa das práticas religiosas. É possível considerar, para compor
o raciocínio e em antagonismo com essa ideia, outra hipótese. Para esta, a produção literária
poderia estar caracterizada por um interesse pela compreensão do sagrado como ilusão.
No índice do livro O mundo fora dos eixos. Crônicas, resenhas e ficções, de Bernardo
Carvalho, o texto “Liturgia do medo” foi incluído em um conjunto de crônicas. Ainda que
tenha recebido essa classificação editorial, esse texto integra características que remetem a
outros gêneros, como um depoimento, um episódio de uma autobiografia ou um conto. Para
além disso, de acordo com o seu primeiro parágrafo, é um relato de uma experiência
articulada com o trabalho de dramaturgia. Em uma das primeiras páginas de O mundo fora
dos eixos. Crônicas, resenhas e ficções, logo após o índice, é encontrado um parágrafo em
que o escritor afirma a respeito do livro: “os gêneros aqui não são ortodoxos” (CARVALHO,
2005, p. 9). Entre as crônicas estariam “ficções dissimuladas” (CARVALHO, 2005, p. 9).
Essa expressão sugere que “Liturgia do medo” pode ser lido como uma narrativa imaginária,
inteiramente criada por Carvalho, ou como um relato factual, referente a circunstâncias
vividas pelo escritor. Entre essas duas alternativas, poderiam ser considerados diversos graus
de ambiguidade.
O primeiro parágrafo é responsável pela impressão de que se trata de um relato
factual. Há uma especificação de tempo (março de 2004), de espaço (Brasilândia, na zona
norte de São Paulo) e de motivação para realizar as ações narradas. Essa motivação consistiria
na proposição, por parte de um diretor do grupo Teatro da Vertigem, de um exercício
associado à dramaturgia, que consistiria em uma espécie de imersão na periferia de São Paulo.
De acordo com a perspectiva factual, para cumprir a tarefa, Bernardo Carvalho teria entrado
em uma igreja evangélica em Brasilândia.
Do segundo parágrafo em diante, “Liturgia do medo” expõe a inserção do narrador no
interior da igreja, e sua interação com um pastor e uma assistente, dentro desse espaço. Não
há mais ninguém no local, além deles. A sequência de acontecimentos é organizada, de
acordo com a perspectiva do pastor, com o fim de obter do narrador um comprometimento
com a igreja, objetivo que é expresso pelo pedido de preenchimento de um formulário, e por
manifestações orais.
A ambiguidade do texto permite que esse processo possa ser interpretado de pelo
menos duas maneiras. Caso o texto seja entendido como um depoimento, centrado na função
referencial da linguagem, o episódio será compreendido como um fato biográfico na trajetória
do escritor Bernardo Carvalho. Para essa leitura, o texto aborda a preparação do espetáculo
BR-3, dirigido por Antonio Araújo 2 . Caso, por outro lado, seja entendido como “ficção
dissimulada”, é possível afirmar que a construção do narrador, enquanto protagonista, é
delimitada em antagonismo com os dois personagens dentro da igreja. Para efeito deste
raciocínio, pelo menos como hipótese, respeitada a ambiguidade do texto, as observações
levam em conta que o texto poderia ser lido como uma obra ficcional.
A trajetória do pastor na cena percorre três etapas: o ato de falar para o narrador,
buscando imediatamente obter deste uma reação participativa; o estímulo para que o narrador
batesse palmas, propondo um envolvimento físico deste com a situação; a determinação de
2
A experiência de Carvalho em BR-3 como dramaturgo foi tema de uma entrevista concedida a Cleilson
Queiroz Lopes (LOPES, 2017).
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que fosse preenchido um formulário e assumido um compromisso, por escrito, com a
entidade. Essas etapas se sucedem em uma gradação de intimidação, culminando em uma
atitude agressiva, por parte do pastor, no final.
A percepção disso, por parte do narrador, se associa ao título. Lembrando em alguns
aspectos um relato etnográfico, em que um grupo é objeto de observação por alguém externo
a ele, a narrativa mostra que o comportamento do pastor corresponde a um princípio: sua
estratégia de persuasão consiste em provocar medo no ouvinte.
O formulário é descrito como
“um pedido de oração com uma lista de problemas (desemprego, dívidas, barulhos
ou vozes do além, pessoas desaparecidas, vícios que atrapalham, dor de cabeça
estranha etc.) que deviam ser assinalados com um “x”. Apenas uma das opções
pedia esclarecimentos: “Se você sofre de alguma doença que não aparece nos
exames e chapas, ou o médico examina e diz que você não tem nada, descreva o que
sente”. No final, era preciso deixar nome, endereço e telefone” (CARVALHO, 2005,
p. 138-139).
A relação entre o pastor e as pessoas que eventualmente adentrem a igreja seria então
previamente determinada por uma organização burocrática, incluindo uma identificação
cadastral, com referências à saúde. A lista de problemas, dentro dos parênteses, traz termos
heterogêneos, mas que estariam sendo tratados como similares em razão do recurso da
enumeração. A aproximação entre sofrimentos físicos e psíquicos, problemas econômicos
(desemprego, dívidas) e experiências sobrenaturais (vozes do além) deixa a impressão de que
a instituição antecipadamente prevê padrões entre as preocupações dos fiéis. Assinalar com
um “x” expressaria uma adequação de cada fiel a uma tendência coletiva, em que os
problemas seriam frequentes e reiterados. A singularização de um problema que
supostamente não tem comprovação em exames médicos abre margem para que uma pessoa
exponha “o que sente”, como se o pastor pudesse substituir, com vantagem, em sua igreja, um
diagnóstico médico profissional.
O formulário pode ser interpretado como uma metonímia de um sistema de
funcionamento da igreja, de acordo com o qual o fiel seria levado a acreditar que nela
encontraria prestação de serviços. Estão explicitadas as condições propostas pela igreja
evangélica, de acordo com o narrador, para que os fieis se relacionem com a instituição.
Após o preenchimento do formulário, o pastor cobra um compromisso do narrador.
Este responde “Vou ter que pensar” (p.139). A reação do pastor é: “Tem que decidir agora.
Você está com Jesus ou com o diabo?!”. A pressão para uma resposta imediata e positiva não
admite necessidade de reflexão por parte do narrador. De acordo com o discurso do pastor,
aceitar ou não o cumprimento das regras impostas corresponderia diretamente a um problema
de livre arbítrio, como se ao narrador coubesse, naquele exato momento, ceder ou não à
tentação e ao pecado. Como se fosse instalado um inquérito, o narrador é colocado em
julgamento, pouco depois de entrar pela primeira vez naquela igreja.
A perspectiva assumida pelo texto de Bernardo Carvalho é caracterizada por uma
ambiguidade. Por um lado, de modo geral, epistemologicamente, prevalece um
posicionamento crítico, distanciado e ponderado com relação aos acontecimentos. Isso pode
ser observado, principalmente, nos momentos em que o narrador passa da concretude da cena
para a abstração, da particularidade momentânea para percepções mais abrangentes, e não
deixa de lado a ironia: “Do lado de fora estava ruim? Seja bem-vindo, aqui dentro não é
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diferente.” (p.139). Por outro lado, a condição para que esse movimento de ponderação seja
possível é a entrega corporal aos estímulos: “Se eu parava de bater palmas, a evangelista
imediatamente retomava a batida, dando a entender que eu não devia esmorecer” (p. 138). A
ambiguidade consiste, nesse sentido, em que o narrador observa criticamente o que acontece,
mas, mesmo tendo uma reação negativa, não deixa de participar. O procedimento narrativo
assume uma variação da distância estética (ADORNO, 2003, p. 61): ora o corpo do
protagonista admite repetir as frases e bater palmas, ora o discurso se constitui como se o
narrador observasse a si mesmo, à distância.
No texto “Eu vivo neste mundo”, Bernardo Carvalho, também incluído na sessão de
crônicas de O mundo fora dos eixos. Crônicas, resenhas e ficções, assim como no caso
anterior, faz referência ao Teatro da Vertigem. Os três primeiros parágrafos trazem elementos
voltados para a contextualização do relato como um episódio biográfico. O texto, entre o
quarto e o sexto parágrafos, elabora observações descritivas, relacionando o Vale do
Amanhecer com a construção da cidade de Brasília. É feita, no quinto parágrafo, uma
referência ao Santo Daime, nos termos de que consistiria em uma religião brasileira.
Nos três últimos parágrafos, o discurso narrativo prevalece com relação ao descritivo e
ao argumentativo. Embora breve, essa parte do texto merece atenção. O assunto,
especificamente, é o contato do narrador com a bebida do Santo Daime. Cabe refletir sobre
um trecho:
De início, tudo parecia não passar de uma cerimônia insossa, regrada por fetiches
patrióticos e escolares, em que homens e mulheres fardados, em grupos separados,
repetiam à exaustão os mesmos passos da marcha, enquanto entoavam os versos
simplórios de um hinário recebido sob o transe pelo mestre e chacoalhavam um
maracá nas mãos.
Três doses de bebida depois, eu já via o ritual com outros olhos. Tudo tinha ganhado
um sentido feérico, embora nada tivesse mudado e os adeptos continuassem num
ritmo capaz de fazer até Philip Glass pedir para trocar de disco. (CARVALHO,
2005, p. 142).
Assim como em Liturgia do medo, a perspectiva é caracterizada por uma
ambiguidade. Um primeiro ângulo que pode ser descrito, como parâmetro para compreensão
do fragmento, consiste no seguinte: expressões como “cerimônia insossa” e “versos
simplórios” indicam uma avaliação negativa, em que a voz da enunciação se apresenta como
diferente das pessoas que observa. Essa diferença é hierárquica, pois o discurso é ofensivo,
tendo como efeito a autoafirmação do narrador, como um sujeito capaz de ter consciência
crítica, em contraste com os que se entregam às ações sem criticá-las.
Um segundo ângulo pode priorizar as expressões “transe” e “sentido feérico”. O
narrador se envolve concretamente com as atividades que critica. O efeito da bebida altera as
percepções do protagonista. De modo ambivalente, esse efeito inclui um deslocamento – a
mudança de sentido – e uma manutenção – “nada tivesse mudado”. Essa ambivalência entre
mudança e permanência não é descrita como um problema lógico que estivesse incomodando
o narrador. Nesse ponto, o discurso assume um estilo cômico, e apresenta uma piada irônica.
Os termos da piada, com uma referência ao músico Philip Glass, propõem uma analogia
improvável, ao mesmo tempo em que criticam o compositor, cujas obras frequentemente se
caracterizam por um elevado grau de repetição de recursos musicais, como no caso da trilha
sonora do filme Koyaanisqatsi (BERG, 1990, p. 320). O narrador constitui uma hipérbole – é
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como se até mesmo um compositor que estiliza a repetição em seu trabalho, e, portanto,
encara esse recurso de modo positivo, se incomodaria com o prolongamento repetitivo da
prática do grupo do Santo Daime.
“Liturgia do medo” e “Eu vivo neste mundo” apresentam alguns aspectos em comum:
as referências ao Teatro da Vertigem, que contribuem para que a leitura das
narrativas considere os relatos como sendo diretamente ligados a vivências
factuais do escritor, situadas no contexto da preparação da montagem do
espetáculo BR-3;
a apresentação de reações imediatas, por parte dos respectivos narradores, a
acontecimentos à sua volta;
a ambiguidade de perspectiva frente a elementos religiosos, articulando
distanciamento crítico e disposição para interagir concretamente.
Existem diferenças fundamentais entre eles. As manifestações orais de personagens
são essenciais para a movimentação dinâmica dos acontecimentos de “Liturgia do medo”, o
que não ocorre no segundo. Em termos de construção, “Eu vivo neste mundo” está mais
marcado do que o primeiro por elementos contextuais que motivam uma atribuição de
significado condicionada pela biografia do autor.
A literatura brasileira contemporânea é muito heterogênea, tanto em termos temáticos,
como formais. As relações entre casos particulares e princípios gerais, em estudos literários,
merecem atenção cuidadosa. O título deste trabalho poderia talvez ser entendido como um
gesto de totalização homogênea, como se o objetivo fosse determinar de maneira unívoca e
inequívoca como a religião é representada nessa literatura. Isso significaria talvez supor uma
proposição de uma fórmula estereotipada de valor invariável para ser aplicada de modo
mecânico em estudos literários. Em termos de abordagem, ao contrário, uma premissa da
presente reflexão é reconhecer a diversidade e complexidade do campo a que nos referimos
como literatura brasileira contemporânea. Outra premissa é de que pode ser promissor, em
termos de compreensão dessa complexidade, levantar questões em torno de afinidades
eletivas entre diferentes obras. Como afinidades eletivas, as ligações entre obras não são
consideradas como resultados de influências.
A observação dessas afinidades não significa que elas possam ser generalizadas, para
serem convertidas em categorias aplicadas de modo imediato, como esquemas simplificados,
em análises de outras obras. Resguardando a singularidade das obras e a diversidade da
produção literária, a observação de afinidades pode motivar reflexões capazes de elaborar
questões abrangentes, que podem ser objetos de reflexões de longa duração, constituindo
contextos para interpretação das obras. A leitura de “Liturgia do medo” e “Eu vivo neste
mundo”, de Bernardo Carvalho evoca, por afinidades eletivas, textos de outros escritores.
Cabe dar atenção à articulação entre uma posição distanciada da fé religiosa e uma
disposição concreta para interagir com atividades a que outros atribuem significação religiosa.
Essa ambiguidade pode ser interpretada como um movimento entre o sagrado e o profano. A
atribuição de função sagrada a ações humanas é feita por personagens diferentes dos
narradores – o pastor em “Liturgia do medo”, e os fiéis ao Santo Daime em “Eu vivo neste
mundo”. O distanciamento do narrador com relação a essa atribuição pode motivar o leitor,
por adesão à voz da enunciação, a compreender o pastor como um sujeito inserido no
capitalismo, cujo interesse principal seria envolver pessoas e controlá-las em acordo com seus
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interesses, e não praticar um culto de fé; e os fiéis do Santo Daime como ingênuos que não
teriam consciência sobre o que haveria de inconsistente ou ridículo em suas práticas. Nos dois
casos, mas especialmente em “Liturgia do medo”, o efeito de leitura é de que existe, no
interior do espaço narrativo, apenas uma ilusão de sagrado, que não resiste a um pensamento
crítico.
As práticas religiosas variam muito no tempo e no espaço. Dentro dessa diversidade,
uma das formas de compreensão do sagrado é de que sua existência tem como propósito uma
pacificação da humanidade. De acordo com Jean-Pierre Dupuy, em diversas práticas
religiosas, “o sagrado nada mais é do que a violência dos homens expulsa, exteriorizada,
hipostasiada” (DUPUY, 2011, p. 202). Essa proposição levaria a distinguir uma ordem e um
caos, ou um modo de viver compreendido e um modo de viver imprevisível, nas experiências
humanas. A arbitrariedade das ações sagradas, nos casos em que elas propõem violência,
como em algumas formas de sacrifício ou em algumas ações justificadas pela ideia de
purificação, constituiria uma ambivalência do sagrado: a destruição restabeleceria uma ordem
(DUPUY, 2011, p. 203).
Seguindo especificamente as ideias de Dupuy sobre a construção do sagrado, o
distanciamento por parte dos narradores em Bernardo Carvalho pode ser interpretado como
uma escolha associada à percepção de que não haveria ordem harmônica a ser restabelecida, e
de que nenhuma ação sagrada de fato conseguiria pacificar processos históricos pautados por
conflitos e sofrimentos coletivos. Essa percepção antitética não elimina, no entanto, um
interesse, ainda que seja justificado pela pesquisa dramatúrgica do escritor para um grupo de
teatro, por olhar algumas práticas, ainda que em simulação ou com fingimento, a partir de um
lugar de dentro delas. Bater palmas, repetir frases do pastor, ou ingerir a bebida do Santo
Daime são ações que representam escolhas feitas.
Em alguns textos literários contemporâneos, a presença de elementos religiosos é
caracterizada por essa posição antitética. Referências intertextuais a textos sagrados surgem
em diversos textos nos quais os narradores não manifestam fé religiosa.
Um caso em que isso ocorre é um texto atribuído a José Nêumanne Pinto, que integra
uma coletânea chamada Contos cruéis – as narrativas mais violentas da literatura brasileira
contemporânea. Embora esteja, pelo título da coletânea, sendo apresentado como um conto, o
texto é breve e se restringe a um único parágrafo.
A Paixão de Cristo
Primeiro, deu-lhe um murro de mão fechada que lhe quebrou os dentes.
Antes que se levantasse, lhe chutou as ilhargas com brutalidade e força e, depois, o
levantou pela gola de camisa. Esmurrou-o novamente tentando atingir o baço e,
quando a vítima se dobrou, o carrasco acertou outro soco na ponta do queixo.
Introduziu-lhe um cassetete ânus adentro. Envolveu o pênis em fios e lhe deu
choques. Para completar, aplicou com força um golpe com mãos abertas nos dois
ouvidos. O tímpano ainda zunia quando ele ouviu o tiro de misericórdia ser
disparado. Sentiu a bala penetrar-lhe a nuca. Ei, você aí, leitor incauto, não pare de
ler: isto é só literatura. Como cantou o Belchior, a vida é muito pior. E, como dizia
minha avó, mais sofreu Jesus, que morreu na cruz. (PINTO, 2006, p. 209).
O texto apresenta uma cena de tortura. Como não há especificações de data e lugar
para a cena, ela pode ser lida tendo como horizonte histórico a ditadura militar brasileira, ou
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como um relato de uma prática exercida em um período de tempo posterior, e mais próximo
do presente 3 . O movimento discursivo pode ser delimitado em duas partes. A primeira
corresponde ao trecho desde a primeira frase até “a nuca”. A segunda inicia em “Ei” e é
concluída no final do texto.
Na primeira parte, é apresentado um discurso em terceira pessoa, em que a sequência
de frases corresponde, de modo linear, a uma sucessão de golpes violentos praticados contra
um homem. Os termos “chutou”, “esmurrou-o”, “acertou”, “introduziu-lhe”, “envolveu” e
“aplicou” constituem uma base semântica para constituir o impacto da cena. O texto não
destaca pausas ou interrupções digressivas, de modo que prevalece, em termos de delimitação
das condições de recepção, um horizonte de contemplação de violência física.
Na segunda parte, o texto se volta para a segunda e a primeira pessoas do discurso. O
interlocutor é insultado, como “leitor incauto”, e é insinuada uma desistência de seguir com a
leitura. O sujeito termina evocando uma lembrança familiar. A avó teria enunciado a
expressão “mais sofreu Jesus, que morreu na cruz”, como um dito popular de tradição oral.
A frase “O tímpano ainda zunia quando ele ouviu o tiro de misericórdia ser disparado”
prejudica a narrativa, pois o sujeito dos verbos mencionados anteriormente (“chutou”,
“esmurrou-o”, “introduziu-lhe” e outros) é o perpetrador. Por paralelismo e continuidade, o
provável sujeito do verbo principal seria ele. Mas o tímpano danificado é da vítima, e por isso
o pronome “ele” fica ambíguo. Não é uma ambiguidade que contribua para enriquecer a
narrativa, ao contrário. Esse problema de construção reforça a impressão geral de que o texto
tende mais a uma provocação do que a uma motivação para pensar criticamente sobre a
tortura.
Em “A paixão de Cristo”, é priorizada a função linguística de apelo ao interlocutor. A
linguagem, na segunda parte, explicitamente projeta uma situação de conversa, evocando a
presença do leitor. Nesse caso, o apelo provocador é constitutivo da redação. A primeira parte
é diferente. O procedimento para apelo ao interlocutor é similar ao de um narrador de um
espetáculo televisivo de lutas. O encadeamento de atos violentos demanda uma atenção por
parte do leitor. Sem introdução, contextualização ou mediação verbal com relação às ações, a
primeira parte conta com um hipotético interesse do leitor pela contemplação direta da
violência e do sofrimento.
Em razão da construção formal e das escolhas de linguagem, o texto não permite
elaborar uma perspectiva crítica sobre a tortura. A primeira parte interessará a um leitor que
não exija mediações críticas com relação à violência. A segunda parte trivializa a
configuração de um leitor exposto ao choque (ele seria fraco, por ser incapaz de assimilar um
choque, e por isso precisaria ser provocado para continuar lendo).
A inclusão de elementos religiosos tem efeito irônico. A cena de tortura estaria sendo
comparada com a Paixão de Cristo, tal como é exposta na Bíblia, em razão de que esta inclui
imagens de sofrimento físico. Em termos religiosos, a Paixão de Cristo poderia ser
interpretada de acordo com as ideias de Dupuy. A trajetória de Cristo estaria associada à
manifestação de Deus que, através de seu filho sacrificado, traria a redenção para os seres
humanos.
3
A antologia não apresenta informações sobre a presença desse texto em publicações prévias. Por essa razão, a
data de publicação do texto, considerada para os fins desse estudo, é o ano de lançamento do volume, 2006.
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A frase final, em articulação com o título, propõe que o sofrimento do homem
agredido seria inferior ao que Jesus viveu em seu sacrifício, na crucificação. Isso sugere que a
importância da agressão e da morte seria menor do que o leitor poderia, talvez, conceber antes
de ler a frase final.
A banalização se dirige tanto à religião, tomada pelo texto como fonte de expressões
muito conhecidas, como ao leitor, que é ridicularizado. Essas escolhas esgotam as
possibilidades de valorizar artisticamente o texto, que quase se reduz, na segunda parte, a
jogos de palavras.
É possível afirmar que, diferentemente de “Liturgia do medo” e “Eu vivo neste
mundo”, o texto de José Nêumanne Pinto não elabora uma perspectiva crítica ou antitética
com relação a práticas consideradas religiosas. Os elementos ligados ao cristianismo, nesse
caso, são reduzidos a clichês. O texto não se interessa pela possibilidade de abordar, de
maneira apropriada, relações entre tortura e cristianismo, incluindo a crítica à violência em
Roma, ou a presença de fé religiosa entre perpetradores ou vítimas de tortura no Brasil.
Portanto, as abordagens de temas religiosos, em casos de perspectivas que não são
expressões de fé, variam, e dentro dessa heterogeneidade, estão incluídas a posição crítica e
antitética, presente em Carvalho, e a redução da religiosidade a clichê, no caso de Nêumanne
Pinto. Uma situação bem diferente pode ser encontrada em textos de Bernardo Kucinski.
O conto “O velório”, integrado ao volume Você vai voltar para mim e outros contos,
apresenta o relato de um enterro considerado especial. O protagonista é Antunes, um homem
velho, que perdeu um filho, chamado Roberto. Alguns elementos sugerem que esse filho teria
sido alvo do Estado durante a ditadura militar brasileira. Por exemplo, o seguinte fragmento:
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Mas quando o Beto desapareceu o Teixeira se mexeu mais que ninguém. Era
gamado no Roberto, seu primeiro sobrinho. Chegou a ir para Brasília falar com uns
homens que ele conhecia. Não adiantou. (KUCINSKI, 2014, 52).
Esse trecho pode ser interpretado como uma referência ao governo militar em Brasília,
no sentido de que o tio tivesse tentado, com interferência pessoal, libertar o rapaz, caso ele
estivesse detido e sem comunicação, como preso político. É possível ler o conto dentro do
horizonte das discussões referentes aos desaparecidos políticos, associadas às manifestações
de familiares que perderam entes queridos e não tiveram, por parte do Estado, o
reconhecimento de responsabilidade por essas perdas (GALLO, 2014, p. 3). A expressão “se
mexeu”, nesse sentido, significaria uma tentativa de obter do Estado uma posição formal,
referente à situação de um desaparecido. Como indica o texto, o Estado não atendeu a
solicitação do personagem Teixeira.
Com relação à presença de religiosidade aparece no conto, é importante a seguinte
passagem:
Devota, dona Rita foi consultar o padre Gonçalves, que não disse nem sim nem não;
pediu tempo para poder consultar o bispo. Na semana seguinte, o padre explicou
que, nas circunstâncias, não oficiaria missa de corpo presente nem de sétimo dia,
mas levaria conforto à família no velório e no sepultamento. (KUCINSKI, 2014, p.
50).
A recusa do padre em realizar uma missa para Roberto se deve ao fato de que o seu
corpo nunca foi encontrado. Antunes sentia necessidade de realizar o funeral, por sentir que,
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envelhecido, vivia uma situação extrema: “Não quero morrer sem enterrar o meu Roberto”
(KUCINSKI, 2014, p. 50).
O padre, no entanto, prioriza convenções institucionais, e não o respeito ao sentimento
de perda, por parte do pai. A consulta ao bispo indica que ele não quis decidir por si mesmo
como proceder. A palavra “circunstâncias” mostra, em contraste, a diferença entre o
tratamento impessoal no discurso do padre e a intensidade dos sentimentos de Antunes.
No romance K, do mesmo autor, é construído um episódio muito semelhante. A estória
é centrada na procura, por parte de um pai, de uma filha que desapareceu por razões políticas,
em meio à ditadura militar. No capítulo “A matzeivá”, o protagonista K recebe uma posição
negativa de um rabino, para um pedido de uma lápide para a filha no cemitério.
O rabino justifica sua posição com referências ao Talmud e à Mishné Torá. Ele afirma:
“Sem corpo não há rito, não há nada” (KUCINSKI, 2011, 80). O rabino insinua que a moça
fosse suicida e, em certo ponto da conversa com o pai, diz: “mas ela era terrorista, não era? E
você quer que a nossa comunidade honre uma terrorista no campo sagrado, que seja posta em
risco por causa de uma terrorista? Ela não era comunista?” (KUCINSKI, 2011, p. 82-83).
A tensão estabelecida nesse diálogo entre o rabino e K expressa uma diferença entre
uma concepção institucionalizada da religião, que fundamenta suas práticas em princípios
rígidos, defendidos por autoridades, e uma percepção individual, baseada no sofrimento e na
dor, para a qual a lápide no cemitério judaico expressaria um senso de conclusão, ao menos
simbólico, para o percurso de busca; isso, de fato, não corresponderia a uma conclusão efetiva
dessa busca, uma vez que o corpo da filha não foi encontrado.
Tanto em “O velório” como em K, os elementos religiosos estão associados ao
desaparecimento de pessoas durante a ditadura militar, e os protagonistas das narrativas são
pais de desaparecidos. Em ambos os casos, esses personagens procuram se aproximar de um
ritual tradicional, um rito fúnebre, para tentar lidar com o inominável constituído pelo corpo
desaparecido.
A inserção de elementos religiosos em Bernardo Kucinski tem ligação com um
sofrimento melancólico, e eles atuam como recursos para que os personagens possam dar uma
forma a aquilo que sentem, uma forma que possa ser reconhecida de modo legítimo, no
espaço público, como um tributo afetivo.
No caso de K, o narrador expõe que o protagonista tem uma relação antagônica com
lideranças religiosas. Ele afirma: “Na verdade, não era das pessoas e suas crenças que ele não
gostava, era dos sacerdotes, fossem padres, rabinos ou bispos; ele os tinha como hipócritas”
(KUCINSKI, 2011, p. 25). Esse aspecto permite observar uma afinidade entre o romance e a
Liturgia do medo, de Bernardo Carvalho. Aparecem atitudes críticas quanto a práticas
religiosas, enunciadas a partir de um distanciamento. Mesmo assim, os personagens principais
se dispõem realizar uma inserção em um espaço destinado a essas práticas.
Tanto em K, como em “O velório”, a ênfase não está em abordar a fé religiosa em si
mesma, mas em observar como representantes institucionais de entidades religiosas são
capazes, em nome de suas normas, excluir pessoas. Especificamente no caso do rabino, no
romance, além de uma exclusão, ocorre um ataque à imagem e à memória da filha, através de
estereótipos políticos difundidos pelo governo militar.
A seriedade com que Bernardo Kucinski elabora conflitos em torno da religiosidade
não é comum na literatura brasileira contemporânea. O livro Os cem menores contos
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brasileiros do século, organizado por Marcelino Freire, se propõe a apresentar textos de
vários escritores, com um padrão comum: eles deviam ser escritos com até cinquenta letras.
Como o título indica, a proposta é considerar os textos como contos, ou ainda como
“microcontos”, segundo a apresentação. No que se refere a elementos religiosos, esse livro
estabelece um total contraste com relação aos textos de Kucinski. Cabe observar alguns casos:
No princípio era o Verbo. João I:I-3.
Abertura do volume (FREIRE, 2004, p. 7).
A BÍBLIA (SPECIAL FEATURES)
Olha, Pai, eu tentei,
Mas acho que
Não deu muito certo não...
Antonio Prata (PRATA, 2004, p.31)
CRIAÇÃO
No sétimo dia, Deus descansou.
Quando acordou, já era tarde.
Tatiana Blum (BLUM, 2004, p.205)
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DIA ZERO
Disse o Homem: haja Deus!
E houve Deus.
Whisner Fraga (FRAGA, 2004, p. 207).
Em acordo com a proposta editorial, os textos foram escritos com brevidade. A citação
de Gênesis na abertura parece, à primeira impressão, remeter para a ideia de que a linguagem
constrói o mundo, sugerindo que o livro expressaria um princípio similar, referente à função
das palavras. A leitura do volume mostra que essa citação não é um indicador filosófico ou
estético do que foi publicado, mas um registro irônico. Nada no livro sugere um interesse por
apresentar, a partir da Bíblia, uma explicitação de fundamentos para escrita literária, seja
metafórica ou ilustrativa. Como epígrafe do volume, a frase é deslocada do campo sagrado e
recontextualizada em um contexto de expressão minimalista. O movimento de expansão
apresentado no Gênesis é oposto à busca de síntese e contenção determinada pela regra do
número máximo de letras. A priorização de uma regra formal rígida sobre a espontaneidade
da expressão motivou alguns escritores a restringirem a oportunidade a jogos de palavras
despretensiosos.
Em acordo com isso, Tatiana Blum sintetiza o processo de criação do mundo,
incorporando, como um clichê, a referência ao sétimo dia, em que Deus teria descansado, em
acordo com a perspectiva judaico-cristã. A frase “Quando acordou, já era tarde” sugere que os
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desígnios divinos fracassaram, e que o mundo não teve uma criação bem-sucedida. O humor
estaria em que a situação é tratada como uma banalidade cotidiana. Alguém perde a hora
dormindo, digamos, e quando acorda algo negativo ocorreu, alguma coisa que poderia ter sido
impedida, se não tivesse deixado de acordar na hora certa.
A ideia de que os desígnios divinos não foram bem-sucedidos sustenta também o texto
de Antonio Prata, em que a palavra “Pai” sugere que Jesus Cristo estaria falando. Essa fala
expressa um fracasso divino, e a palavra “acho” sugere uma falta de convicção. O registro
informal – “não deu muito certo não” se distingue da linguagem bíblica e atribui a Jesus uma
fala trivial. O título incorpora uma expressão comum em DVDs de filmes, que se refere a
vídeos complementares, o que acentua a ausência de sacralidade.
O texto de Whisner Fraga propõe, esquematicamente, uma inversão na narrativa
bíblica. O homem teria criado Deus. Não há dúvida de que essa inversão consiste em um tema
relevante em debates contemporâneos, e os questionamentos de Maria Rita Kehl podem ser
lembrados como uma importante contribuição a eles (KEHL, 2011, p. 76). Porém, não é esse
o horizonte a ser contemplado pela regra de um máximo de cinquenta letras. A ideia é tomar
um clichê – “haja Deus!” – e deslocar sua função. Como expressão trivial, ela poderia ser uma
reclamação, um lamento por um sofrimento. O texto propõe a leitura do verbo “haja” como se
fosse uma ordem, no imperativo, que teria sido obedecida com a criação de Deus.
Nos três casos, os elementos religiosos aparecem em perspectiva irônica,
dessacralizados e destituídos de qualquer aspecto doutrinário. Como construções lúdicas, os
textos podem ser lidos como pequenas piadas. Diferentemente dos casos de Bernardo
Kucinski e de Bernardo Carvalho, essas referências à religião não estão associadas a
vivências, nem demonstram interesse por ritos.
Considerando o conjunto de textos escolhidos para este estudo, é possível observar
variações nos modos como a religiosidade é abordada. Talvez seja importante indicar pelo
menos três aspectos fundamentais:
− a observação de práticas religiosas a partir de perspectivas distanciadas e
críticas, como no caso de “Liturgia do medo”;
− a crítica de autoridades institucionais de entidades religiosas, para as quais os
seus próprios interesses são mais importantes do que o sofrimento de seres
humanos; no caso dos textos de Bernardo Kucinski, o sofrimento de pais que
perderam os filhos;
− a apropriação de referências religiosas por discursos que as dessacralizam,
subvertendo sua significação original, e incorporando-as a pensamentos triviais
ou jogos lúdicos.
Essas observações não são exaustivas e, como foi indicado anteriormente, não têm
valor invariável e não servem a aplicações mecânicas. Outros casos despertam interesse, no
que se refere à diversidade de formas de elaboração literária de referências religiosas no
Brasil. É necessário reforçar que a produção literária contemporânea é heterogênea. Sem
dúvida, há muito a ser estudado. Mesmo dentro das limitações deste trabalho, é possível
constituir uma possibilidade de leitura, para questionamento.
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Pelo menos no que se refere a este corpus, não ocorre nenhuma manifestação
efetivamente afirmativa a respeito de práticas religiosas. Quando elas são buscadas por
personagens (como em Bernardo Kucinski), a institucionalização pode representar uma
desumanização. É importante a perspectiva, exposta em Bernardo Carvalho, de que alguém
possa elaborar uma espécie de jogo teatral, e participar de atividades consideradas religiosas,
na prática, sem que a motivação seja a fé. De acordo com essa perspectiva, o envolvimento
concreto com práticas religiosas dependeria mais de performances do que de uma crença.
Cabe ainda observar como escritores podem se apropriar de elementos religiosos com o fim
de produzir jogos de linguagem que subvertem as funções originais desses elementos. Talvez
o estudo destas e de outras obras permita, mais adiante, reconhecer afinidades eletivas entre
escritores, de modo a compreender com maior clareza e precisão formas e temas da literatura
contemporânea que remetem a práticas religiosas.
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Recebido em 10/01/2018
Aprovado em 04/04/2018
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