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AS MUITAS FACES QUE PERFILAM ESSE TAL DE ROCK N’ ROLL Caroline Govari1 Jonas Pilz2 Thiago Pereira Alberto3 No livro X da República, Platão escreveu: ―Deixem-me compor a música de um país e não me preocuparei com quem faz as suas leis‖, equilibrando as manifestações artísticas a outros reguladores sociais, como a política e o direito. O filósofo outorgava, ademais, uma certa dimensão nociva dos artistas, capazes de corromper os indivíduos por afastá-los da verdade. A arte, música incluso, enquanto mimese ou cópia de uma realidade — uma espécie de simulacro degenerativo e performático do real — nos distanciaria cada vez mais do processo de contemplação e do encontro com a verdade; ―pelo fato de atingir apenas uma pequena porção de cada coisa, não passa de uma aparição‖ (PLATÃO, 598a-e, grifo nosso). Passados mais de dois milênios, em 1974 Raul Seixas transfigurou, através da eletricidade de guitarras, baixos e força sônica de baterias, o thelêmico refrão ―Faz o que tu queres pois é tudo da lei‖, inspirado no ocultista britânico Aleister Crowley. O roqueiro baiano, platonicamente, reforçava neste verso o poder da música: a canção e seu título autoexplicativo, Sociedade Alternativa, se apresentavam como um hino contracultural brasileiro, estabelecendo, ao mesmo tempo, potencialidades e permissividades balizadas pelo rock. Raul compunha aqui uma aparição própria do 1 Doutora em Ciências da Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Escola da Indústria Criativa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), com estágio doutoral no Department of Art History & Communication Studies da McGill University, no Canadá. É mestre pelo mesmo Programa da Unisinos e Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: carolgovari@gmail.com 2 Bolsista CAPES de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). E-mail: jonaspilz@gmail.com 3 Doutor em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF), com estágio doutoral na Universidade do Porto, em Portugal. Professor assistente da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: thiagopereiraalberto@gmail.com 1 Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.10, nº2, edição de Dezembro de 2021 imaginário da personalidade roqueira, contrária às normas e padrões sociais, estruturas dominantes e a regularidade da vida ordinária. Na vida e obra de Raul, a mimese cristalizou-se aristotélica, assumindo o rock como instrumento para se inscrever na, e reescrever a realidade muito além da mera reprodução de seus aspectos, sugerindo quimeras que a vida real jamais proporciona. Tais elaborações, partilhadas com seu consorte criativo Paulo Coelho, transformavam da janela temporal, espacial e social da normalidade, da expectativa e do conformismo – através de uma lente ajustada para ver e destacar a diferença – um modo de ser ligado ao rock (não o único) em sua potência política, libertária, desestigmatizadora, de resistência comportamental, contracultural e anti-establishment (FRITH, 1996; GROSSBERG, 1997). Apenas um ano depois do lançamento da Sociedade Alternativa, em 1975, Rita Lee testemunhou sobre esse tal de roque enrow, dando-lhe a alcunha de fruto proibido próprio de um gap etário (―Minha filha é um caso sério, doutor‖; ―Eu procuro estar por dentro dessa nova geração‖), mas também um sedutor e incontornável dispositivo de poder e mudança (―Desconfio que não há mais cura‖) que, em sua capacidade de nos modelar tanto subjetivamente quanto na percepção e criação de identidades e agências coletivas, plurais e comunitárias (―É um menino tão sabido, ele quer modificar o mundo‖) cartografa outras possibilidades de estar no mundo, de modus vivendi. De certa maneira, aquilo que Raul teorizou em uma canção, Rita ilustrou de forma prática em outra, tomando a música e o rock enquanto matrizes de moldagem para novas sensibilidades, percepções e exteriorizações destas (DeNORA, 2004). As duas canções também sugerem uma constatação: Raul e Rita nasceram sob o signo do rock com ascendente em aquarius. São filhos da década de 1950, uma época que, como situa Norberto Cambiasso – pesquisador, escritor e editor da revista roqueira Esculpiendo Milagros (Argentina) –, ―teve as suas raízes em todo o turbilhão do pósguerra, com a revolta da juventude face ao status quo e ao conformismo num quadro de mudanças mais rápidas e de paradoxos inesperados‖ (CAMBIASSO, 2008, p.11). Estes então dois jovens, (um homem e uma mulher), territorialmente marcados de maneira 2 Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.10, nº2, edição de Dezembro de 2021 semelhante (brasileiros vivendo sob uma ditadura militar) corporificam essa aparição inconformada, esse tal de rock n‘ roll, e a materializaram sob balizas discursivas próximas, desejosas de cantarem suas próprias leis. Como outras figuras notórias, Rita e Raul ajudaram a compor a música de um país, de uma época, de uma geração. Afirmaram o rock como Zeitgeist e se firmaram enquanto artistas imediatamente associados ao gênero, mesmo além de suas fronteiras de gosto e conhecimento, tomando a afirmação platônica como uma elegia ao poder da música. Rita e Raul, portanto, representam nitidamente o centro de exame que propomos com o dossiê ESSE TAL DE ROQUE ENROW: perfis que amplificam o gênero musical em suas dimensões midiáticas, sociais, políticas e performáticas. A coleção de artigos que o compõem é, de certa maneira, um exercício de percepção e sensibilidade para determinados aspectos das vivências de uma ou um artista/grupo entendidos como rock, que se concatenam com discussões a respeito de gênero, raça, nacionalidade, etarismo, consumo, entre outros atravessamentos sociais, através de um olhar micro analítico de momentos de suas trajetórias. Os investimentos aqui perfilam as personas e obras lotadas no rock que sublinham as tensões de seu papel como ―‗veículo cultural‘ e insumo fundamental para a invenção da ideia de ‗jovem‘ contemporânea‖ (FRITH, 1984, p. 61, destaques no original), onde o espaço-tempo de emergência do rock n‘roll, tal qual situa Paula Guerra, se apresenta como ―marco de ruptura, de mudança e de nascimento de uma nova vivência musical absorvida por um conjunto vasto de atores sociais‖ (GUERRA, 2015, p. 146). Enquanto modo de ser, habitar e mediar o mundo (GROSSBERG, 1984), o rock, em suas dimensões transculturais, se adesivou em notáveis acontecimentos sociais nas últimas sete décadas e constitui-se em uma importante linguagem específica dentro do amplo contexto da cultura pop, das trocas cosmopolitas e da centralidade do consumo (SOARES, 2014; ALBERTO, 2021). Ao se misturar às transformações e agendas comportamentais, sociais e políticas, não raro reivindicando um pretenso protagonismo nestas, além de novas possibilidades de performances artísticas, recriouse periodicamente como um organismo vivo: ramificou-se para diferentes subgêneros 3 Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.10, nº2, edição de Dezembro de 2021 como glam rock, hard rock, indie rock, catalisando movimentos musicais e culturais como o punk rock da subcultura punk (GOVARI, 2020). Assumimos aqui o rock n‘ roll como a fine art, como já defendeu David Bowie: uma das manifestações mais importantes do campo artístico na contemporaneidade, constantemente reintegrada aos debates conectados ao reconhecimento de seu impacto, ressonância e potencial transformador que a arte possui. Como traço marcante da paisagem global e, ainda que visceralmente conectado à indústria fonográfica como uma de suas commodities centrais – ou por causa disso – erige-se como fenômeno social que também marca a partilha de princípios identitários e sensíveis de amantes do gênero musical no mundo inteiro. Em um tempo de questionamentos das ordenações socioculturais, o rock também vocaliza e protagoniza, através de seus agentes e agências principais (artistas, álbuns, expressões midiáticas), as perspectivas urgentes do mundo contemporâneo. O que sugerimos aqui é que, a partir de uma visibilidade exclusiva acerca de determinados artistas e seus episódios específicos, se possa revisar, revisitar e compor quadros de análise sobre o gênero musical em si, antes e agora. A singularidade deste dossiê, centrado na sujeitificação e corporificação roqueira, no formato de perfis, portanto, está intimamente ligada ao momento histórico em que sujeitos estão sendo revisados e revisionados, sob constante holofotes efêmeros e velozes atribulações de veredictos — o que, a priori, este número tenta contrapor, com exames aprofundados e mais preocupados com as complexidades e dimensionamentos do que com as sentenças. Nosso objetivo é sinalizar as conexões arteriais entre o gênero musical e as ressonâncias culturais e engajamentos subjetivos das mais diversas ordens, uma vez que é inescapável ao gênero musical também estar sob inquirições e ressignificações. O rock é, tal qual sua elaboração oriunda do country, blues, R&B e jazz, um campo do conhecimento transdisciplinar. Pesquisas atravessadas pelo (ou delimitadas no) rock podem ser encontradas em diversas áreas – como Antropologia, Artes Visuais, História, Letras e Sociologia – e níveis – Graduação, Mestrado e Doutorado. Ainda que a organização deste dossiê e a Revista Tropos estejam inseridas na Comunicação, este 4 Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.10, nº2, edição de Dezembro de 2021 número reflete a diversidade de áreas que encontram no rock inspiração, motivação e problematização. No que toca ao campo da Comunicação, o rock sempre teve as portas abertas nos principais eventos da área, figurando sobretudo nos GTs Estudos de Som e Música e Comunicação, Música e Entretenimento, da Compós e da Intercom, respectivamente, além de eventos como Comúsica – Congresso Nacional de Comunicação e Música e Musicom – Rede de Pesquisadores em Música e Mídia. Em 2013 e 2015, foi realizado em Cascavel (PR) o I e II Congresso Internacional de Estudos do Rock, também dando conta da capilaridade de áreas originárias de pesquisadoras e pesquisadores. A ideia de perfilar artistas neste dossiê, focalizando exames em nomes específicos, situados em épocas, gêneros, raças, discursos, territorialidades distintas, nos ajudou a reunir este corpus que sugere, em sua totalidade de vinte e três artigos (que operam na contramão dos enredos mirabolantes e obscuros do mítico Clube dos 27), um brevíssimo inventário do rock. Como baliza, os textos a seguir estão delimitados, cada um, em uma personalidade roqueira e exploram de que modos os eventos e marcas notáveis de sua construção lírica, sônica ou imagética, suas performances ou suas carreiras por inteiro se impregnaram a determinadas macros narrativas, através de diferentes reflexões e abordagens teórico-metodológicas. Nessa direção, talvez seja possível afirmar que o propósito mais eloquente deste dossiê foi reafirmar o rock como objeto central de pesquisas e de um olhar científico que ajuda a configurar aquilo conhecido como rock n´roll studies, não necessariamente um campo de exames estável ou institucionalizado, mas inegavelmente presente, de maneira transversal e pouco afeito às lógicas categóricas, em ciências como a comunicação, a sociologia, as artes visuais, a filosofia etc. A partir das temáticas, os textos foram divididos em três seções: 1) Biografias que contemplam fatos históricos e relativos à memória, análises literárias e de cinebiografias; 2) Performances que se atentem aos comportamentos de atores sociais em diferentes situações, com análises performáticas e reflexões a partir de álbuns, redes sociais, entre outras questões observadas e; 3) Materialidades com delimitação na 5 Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.10, nº2, edição de Dezembro de 2021 produção de presença e análises de artefatos técnicos, descrição de objetos, representações e diversas questões que abordam a hermenêutica. No primeiro eixo, o jornalista Rodrigo Merheb, convidado especial deste dossiê, assina Mods e Godfathers: as múltiplas narrativas possíveis em Quadrophenia do The Who, onde analisa o disco e o filme da banda britânica, apresentando um perfil biográfico com ênfase nos enfrentamentos de questões relacionadas à arte como ferramenta de transformação individual ou coletiva. Autor de uma obra importante para os estudos de rock, o livro O Som da Revolução - Uma História Cultural do Rock 19651969 (2012) e vencedor do prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de 2012 na categoria não ficção, Merheb examina Quadrophenia dentro da conjuntura do rock da época e no contexto interno da obra do próprio The Who, que por meio das composições de Pete Townshend questionou as relações dos artistas com as demandas do seu público e o poder do rock como fator de mobilização e mediação social. Em Ascensão & queda do rock do IAPI: a trajetória das bandas Liverpool e Bixo da Seda entre a Porto Alegre e o Rio de Janeiro dos anos 1960 e 1970, o pesquisador e jornalista Arthur de Faria Silva perfila as bandas Liverpool e Bixo da Seda, trazendo uma profunda contextualização do local onde as bandas surgiram (o bairro IAPI, em Porto Alegre/RS), e sua mudança para o Rio de Janeiro, quando se integraram à cena rock do começo dos anos 1970. Os ângulos teórico-metodológicos que o autor utiliza vêm de pesquisa qualitativa, em especial a entrevista biográfica, realizada com os integrantes das bandas. Thiago Meneses Alves, Camila Calado e Gustavo Said, em O ethos roqueiro antinormativo no realismo capitalista: uma análise a partir do diário de Renato Russo analisam a constituição do ethos roqueiro antinormativo no capitalismo contemporâneo, problematizado a partir do conceito de ―realismo capitalista‖, de Mark Fisher (2020). Os autores têm como corpus os escritos autobiográficos de Renato Russo (2015), produzidos no período de internação em uma clínica de reabilitação e reunidos no livro Só Por Hoje e Para Sempre: diário do recomeço. O desenvolvimento e as diferentes fases que integram a trajetória do cantor e compositor José Rodrigues Trindade, mais 6 Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.10, nº2, edição de Dezembro de 2021 conhecido como Zé Rodrix, são compilados por Rainer Gonçalves Sousa em Os rocks rurais e não tão rurais de Zé Rodrix. O autor compreende, neste artigo, o romantismo como uma estrutura de sentimento fundamental para se entender esse período, apontando a obra de Rodrix como uma ferramenta importante para analisar e repensar possibilidades analíticas originalmente elaboradas pelo intelectual britânico Raymond Williams. Em Ruptura Nervosa: redefinindo o papel das mulheres no thrash metal, Danilo Lucio e Bruno Pedrosa Nogueira biografam e evidenciam os espaços de disputas de gênero atravessados na carreira da banda de thrash metal formada em Bragança, São Paulo, no início dos anos 2000, tanto no Brasil quanto fora do país. Para tanto, dialogam com autores como Judith Butler, Pierre Bourdieu, Simon Frith e Franco Fabbri, discorrendo acerca da história do heavy metal em uma análise que visa diminuir seu androcentrismo. Em Chorão, Lobão e Cazuza: valores identitários de celebridades do rock na cultura pop de Rolling Stone, Letícia Rossa busca entender quais são os valores identitários relativos ao Brasil traçados a partir de perfis de celebridades do rock publicados na revista Rolling Stone Brasil, e, para isso, seleciona, três perfis: de Chorão, Lobão e Cazuza. Após a pesquisa teórica e empírica, a autora confirmou que cada perfil publicado em Rolling Stone Brasil contribui para a construção de valores identitários relativos à respectiva celebridade entrevistada. Ou seja, os valores de identidades publicados no conteúdo da revista repercutem na sociedade a partir do momento em que são veiculados. Em Ricardo Iorio e o metal argentino: uma genealogia dos seus nacionalismos, Manuela Calvo faz uma genealogia dos nacionalismos presentes na carreira artística deste músico argentino de heavy metal. A autora analisa o contexto sociopolítico ao longo da trajetória de Iorio, sobretudo suas controvérsias, as expectativas envolvidas em seus comportamentos, onde observa os caminhos pelos quais o metal passa de uma música rebelde e contracultural a uma forma musical que se relaciona com o conservadorismo e ideologias de extrema direita. Marta Maia e Marcelo Muraro, em O perfil contestador de Carlos Lopes na cena cultural brasileira, 7 Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.10, nº2, edição de Dezembro de 2021 traçam a relação de Lopes com o rock brasileiro, mostrando uma dissonância de sua voz às regras do mercado, tanto no sentido operacional quanto estético — o que trouxe um outro olhar para o metal brasileiro por meio das narrativas das letras, voltadas às questões históricas e culturais do país. Além de inspirar o título do dossiê, Rita Lee aparece em dois artigos: Rita Lee e a jornada da heroína rock'n'roll, de Jéssica Feijó e Glória Rabay, e Com a boca no mundo: a importância da produção musical de Rita Lee, de Jéssica Rodrigues Araújo Cunha. No primeiro, as autoras examinam o livro Rita Lee: Uma autobiografia, de 2016, a partir da narrativa da Jornada da Heroína, proposta por Murdock (1990). O diálogo entre as obras, argumentam, se justifica pela necessidade de pensar e fomentar narrativas femininas. O recorte da Jornada da Heroína, embora não contemple todos os meandros na aventura da realidade, permite observar como os arquétipos feminino e masculino se manifestam na narrativa de Rita Lee. O segundo texto privilegia o modo com que Rita Lee utiliza sua produção artística, não somente como uma possibilidade de falar sobre ser mulher, mas também como um local para falar sobre outras mulheres dentro do universo rock n‘ roll. A autora levanta questões que revelam um diálogo que permite discutir tópicos relacionados à desigualdade de gênero tanto dentro do rock, como também fora dele. Abrindo a segunda seção, Rodrigo Cupertino e Graziela Mello Vianna, em Profundo / Superficial: politização versus esvaziamento do sujeito melancólico em canções da banda, examinam canções lançadas nos dois álbuns mais recentes da banda paulistana. A autora e o autor verificam, por um lado, índices de esvaziamento e melancolia dos sujeitos das canções e, por outro lado, índices de politização desses sujeitos, que podem ser relacionados aos contextos sociais e políticos do país em um momento de fragilização da democracia. O fim do instrumento: a performance musical em Nirvana e a arte autodestrutiva de Kurt Cobain apresenta uma reflexão do autor João Luiz Teixeira Brito sobre a relação instrumento-instrumentista no contexto da performance destrutiva do falecido herói grunge, cuja breve carreira ficou marcada, também, pelo hábito de aniquilar suas guitarras ao fim das apresentações da banda. 8 Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.10, nº2, edição de Dezembro de 2021 Brito revisa como tais eventos se entrelaçam no imagético construído a respeito de Cobain, propondo um diálogo entre tecnologia e arte no desenvolvimento da obra do Nirvana, em representações imagéticas, líricas e performáticas. Busca em Martin Heidegger, Maurice Merleau-Ponty, Graham Harman amparo para discutir o uso de instrumentos e sua relação com o artesão e com o mundo para gerir um debate acerca da performance de Cobain. A partir de elementos da produção e montagem, José César Fernandes Gomes apresenta Do ofício à arte: aspectos de produção e montagem em The Man who Sold the World de David Bowie, detalhando práticas e experimentações musicais acerca dos discos lançados no final da década de 1960 e começo da década seguinte. O autor elabora The Man Who Sold The World, lançado em 1970, como parte de um conjunto de produções do período que têm como característica fundamental uma certa sonoridade das músicas, o desenvolvimento de experimentações com instrumentos e tecnologias em estúdio. Em Os primeiros passos do The Cure e o mergulho na alma torturada do gótico, Denise Azevedo Duarte Guimarães e Antonio Carlos Persegani Florenzano examinam a fase inicial da banda britânica, através de um recorte temporal que contempla obras a partir de 1978, ano de formação, até 1982, com o lançamento do álbum Pornography. A autora e o autor privilegiam como aporte teórico discussões sobre linguagem do cinema, da televisão e da música popular, além de estudos identitários e fenomenológicos, história da arte e história do rock n‘ roll, especificamente as perspectivas de Gaston Bachelard, Gilbert Durand, Michel Maffesoli, Antonio Candido, José Castello e Arlindo Machado. “Meninas não tocam percussão”: o rock underground a partir da perspectiva de uma percussionista do Saravá Metal, assinado por Beatriz Medeiros, expõe discussões que abrangem o papel de mulheres bateristas e percussionistas no rock underground a partir de entrevistas semiestruturadas com Gê Vasconcelos, percussionista da banda de saravá metal Gangrena Gasosa. A autora propõe possíveis justificativas ou argumentos que explicam a baixa representação feminina na bateria, enquanto instrumento básico no rock underground, além de perpassar questões sobre 9 Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.10, nº2, edição de Dezembro de 2021 papéis, ou funções, assumidos por mulheres para serem entendidas como profissionais qualificadas. Paulo Henrique Raulino dos Santos e Charles Albuquerque Ponte, em Os limites da rebeldia: indústria cultural e experimentação em In The Court Of The Crimson King, revisitam o álbum da banda britânica e sua tensa relação com a indústria cultural. Os autores dialogam com Adorno e Horkheimer (2006) e Benjamin (2019), nos paralelos e causalidades da reprodutibilidade técnica e indústria cultural, além de Atton (2012), Dowd (2011), Grenfel (2017) e Keister e Smith (2008), com perspectivas típicas da relação específica do rock progressivo, e do King Crimson, com a indústria cultural e fonográfica. Em A cidade como problema e espaço de reinvenção na obra da banda Cidadão Instigado, Matheus Santiago Moreira se debruça sobre a produção musical da banda de rock cearense para investigar como esta processa a presença da cidade, da urbe, seja como um problema ou um espaço de reinvenção. Para tanto, o autor privilegia canções e álbuns específicos, como ―O caboré e o presidente‖, do disco Ciclo da Dê.Cadencia (2002) e ―Fortaleza‖, do disco Fortaleza (2015). Na terceira seção, que inicia com o artigo A força afetiva do timbre na obra de Rakta: rituais sônicos e transformações corpóreas, Marcelo Bergamin Conter e Eric Lima Pedott refletem acerca dos processos sígnicos que emergem das construções de timbragem realizadas pelo trio paulista em suas composições. Os autores concebem o timbre como um agente de comunicação afetiva que opera através de uma lógica imanente, a partir de perspectiva teórica sobre a filosofia da diferença de Deleuze e Guattari. O timbre, portanto, não se reduz sua forma atual, há ainda seu lado virtual, que se expande a cada atualização, efetuando uma dobra afetiva de si. Como metodologia de análise, Conter e Pedott mapeiam a máquina sociotécnica que condiciona as timbragens; as atualizações dos timbres ao vivo e no estúdio e descrevem as semioses afetivas que decorrem dessas atualizações. Com Banda Antidemon: experiência estética e representação no combate do mal em “Demonocídio”, Giselle Xavier d‘Ávila Lucena e Laan Mendes de Barros exploram os elementos identificados como suportes para a construção e a manutenção 10 Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.10, nº2, edição de Dezembro de 2021 de uma poética visual do death metal e sua ressignificação estética em um contexto cristão. Sob a perspectiva do autodeclarado cristianismo da Antidemon, examinam a capa do álbum Demonocídio, a partir de três passos metodológicos propostos por Erwin Panofsky: descrição pré-iconográfica; análise iconográfica e interpretação iconológica. Djenane Arraes Moreira elabora a constituição, manutenção e proximidade da relação fã-artista no início da popularização no Brasil dos softwares de troca de mensagens síncronas em A construção das relações entre a banda Pato Fu e o fandom na era do IRC. Moraes elege o grupo mineiro de pop rock, uma das bandas brasileiras mais engajadas na internet nos anos 1990, como foco de entrevistas semiestruturadas com integrantes da banda e fãs, os patofãs, inspirada na hermenêutica de Hans-Georg Gadamer (1998), dissertando acerca das potencialidades e concretudes do serviço de chat em tempo real IRC para a relação fã-banda. Em Pequenas bandas, grandes negócios: um estudo de caso da banda Lyria e suas incursões no empreendedorismo na música independente, Júlia Ourique e Leonardo De Marchi apresentam um estudo de caso da banda Lyria, do Rio de Janeiro, investindo no processo de financiamento da sua carreira por meio do crowdfunding. A descrição leva em conta a participação, relevância e poder de decisão de fãs do grupo, responsáveis financeiramente por seus lançamentos e até mesmo, mas também em aspectos artísticos. Ourique e De Marchi discutem, além disso, como a financeirização da economia da música sobrecarrega o trabalho do artista independente que, além de ser criativo, precisa executar multifunções. Em Relações simbólicas, consumo e indústria da música: o caso da Trooper, cerveja oficial do Iron Maiden, Swellen Danuza e Elaine Javorski investigam as relações comerciais e simbólicas entre um produto cultural – a banda Iron Maiden – e um produto da indústria de bens materiais – a cerveja Trooper, desenvolvida pelo grupo britânico. Por meio de uma análise quanti qualitativa, com pesquisa documental e questionário online aplicado a fãs da banda, as autoras sinalizam e inferem acerca do consumo de um produto material a partir das relações simbólicas com o produto cultural. Os resultados apontam que a marca Iron Maiden desfruta de uma relação sólida e emocional com fãs da banda e que estes, por sua vez, encontram 11 Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.10, nº2, edição de Dezembro de 2021 tanto na marca Iron Maiden quanto na Trooper dispositivos simbólicos para projeção de suas autoimagens. Dessa maneira, entendemos que o presente dossiê oferece um panorama amplo de análises que partem do pessoal (os perfis) em busca de contemplar um coletivo (o gênero musical). Apresentamos aqui um conjunto de exames heterogêneos quanto a objetos, angulações teóricas, autoras, autores e áreas de pesquisa, mas que têm entre si um cerne comum: a avaliação das mais diversas implicações que o rock n‘ roll possui para a sociedade contemporânea e como ele se anuncia, através de alguns de seus praticantes, como uma lente de leitura possível para uma narrativa cultural ampla, densa e, evidentemente, divertida. A história escrita e desenhada, muito ou pouco ensaiada, desse tal de roque enrow se desdobra em perfis delineados por linhas tortas, nos típicos atritos atrativos da cultura pop, conforme ficará nítido nos textos aqui selecionados. Boa leitura! REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERTO, Thiago Pereira. Vida Pop: representações e reconhecimentos da cultura pop em ficções de Nick Hornby. Curitiba: Ed. Appris, 2021. CAMBIASSO, Norberto. Introducción. In; BONO, Julián Ruesga; CAMBIASSO, Norberto (ed.) Más allá del rock. Madrid: Instituto Nacional de las Artes Escénicas y de la Música, 2008. DeNORA, Tia. Historical perspectives in music sociology. Poetics, n. 32, 2004. FRITH, Simon. Rock and the politics of memory. Social Text, n. 9/10, 1984. GOVARI, Caroline. Govari “Duas notas chegam para mim. Dois acordes repetidos sem fim”: a constituição musical, midiática e identitária do rock gaúcho na década de 1980. Tese (doutorado) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 2020, 375p. GROSSBERG, Lawrence. The Politics of Youth Culture: Some Observations on Rock and Roll in American Culture. Social Text, n. 8, p. 104-126, 1984. TOSCHES, Nick. Criaturas flamejantes. São Paulo: Conrad Editora, 2006. GUERRA, P. Absolute beginning: ensaio sobre a emergência do rock‘n‘roll. Música Popular em Revista, Campinas, ano 3, v. 2, p. 145-63, jan.-jun. 2015. 12 Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.10, nº2, edição de Dezembro de 2021 SOARES, Thiago. Abordagens Teóricas para Estudos Sobre Cultura Pop. Logos, [S.l.], v. 2, n. 24, dez. 2014. 13 Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.10, nº2, edição de Dezembro de 2021