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Absolute beginning:
ensaio sobre a emergência do rock’n’roll
PAULA GUERRA*
RESUMO: O rock tornou-se, a partir de meados do século XX, uma linguagem de alcance
mundial. Está presente através de sons, imagens e textos nos quotidianos da população,
tornou-se uma mediascape global. Não obstante esta centralidade e importância na
estruturação das culturas populares, tem sido objeto de uma relativa desvalorização enquanto
padrão e matriz de cultura. Assim, o texto apresentado pretende desvendar a importância do
rock, descobrindo o seu potencial de diálogo e cruzamento com os discursos legítimos da
escola e da ciência a respeito das culturas populares. Esta deambulação mostra, assim, como o
rock foi um absolute begginer pois alterou, na sua expressividade, os padrões culturais, a
indústria cultural, as práticas juvenis, as criações artísticas e as manifestações artísticas em
espaços públicos. Partimos do pressuposto de que a música é a transposição dos princípios e
propriedades estruturais da vida social, podendo ser uma matriz de moldagem de novas
subjetividades, metamorfoseando o quotidiano.
PALAVRAS-CHAVE: rock’n’roll; culturas populares; mudança social.
Absolute beginning: essay on the emergence of
rock’n’roll
ABSTRACT: Rock became, from the mid-twentieth century, a worldwide language. It is
present through sounds, images and texts on everyday of the population, and has become a
global mediascape. Despite this centrality and importance in the structuring of popular
culture, rock has been the subject of a relative devaluation as standard and culture matrix.
Thus, the text presented intends to reveal the importance of rock, discovering its potential of
dialogue and cross with the legitimate discourse of school and science about popular cultures.
This ambulation shows, then, how rock was an absolute beginner because it changed, in its
expressiveness, the cultural patterns, cultural industry, youth practices, artistic creations and
artistic manifestations in public spaces. We assume that music is the transposition of the
principles and structural properties of social life, and then it can be a matrix that has shaped
new subjectivities, metamorphosing the everyday.
KEYWORDS: rock’n’roll; popular culture; social change.
Paula Guerra é Professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, Portugal, bem como Professora Associada Adjunta do Griffith Centre for Cultural Research
(GCCR) da Universidade de Griffith. Doutorou-se em Sociologia pela Faculdade de Letras Universidade do Porto (FLUP). Tem procurado realizar um empreendimento investigativo contínuo
em torno de um olhar para temáticas como culturas urbanas, identidades e culturas juvenis,
multiculturalismo, processos de exclusão e inclusão sociais. Atualmente, seu foco está voltado para a
música e, sobretudo, para o rock, sistematizando e abrindo novas pistas de interpretação acerca da
contemporaneidade portuguesa e dos seus incessantes processos de reconfiguração cultural. É autora
e co-autora de vários artigos científicos e livros, bem como de diversas comunicações e conferências.
E-mail: paula.kismif@gmail.com.
*
GUERRA, P. Absolute beginning: ensaio sobre a emergência do rock’n’roll. Música Popular em Revista, Campinas,
ano 3, v. 2, p. 146-64, jan.-jun. 2015.
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I’ve nothing much to offer/ There’s nothing much to take/ I’m an absolute beginner/
But I’m absolutely sane/ As long as we’re together/ The rest can go to hell/ I
absolutely love you/ But we’re absolute beginners/ With eyes completely open/ But
nervous all the same/ If our love song/ Could fly over mountains/ Could laugh at the
ocean/ Just like the films/ There’s no reason/ To feel all the hard times/ To lay down
the hard lines/ It’s absolutely true/ Nothing much could happen/ Nothing we can’t
shake/ Oh we’re absolute beginners/ With nothing much at stake/ As long as you’re
still smiling/ There’s nothing more I need/ I absolutely love you/ But we’re absolute
beginners/ But if my love is your love/ We’re certain to succeed
David Bowie, “Absolute Beginners”, 1988
A
escolha da canção de Bowie1 para a abertura deste artigo marca uma
intencionalidade deliberada de abordar o espaço-tempo de emergência do
rock’n’roll como marco de ruptura, de mudança e de nascimento de uma
nova vivência musical absorvida por um conjunto vasto de atores sociais,
designadamente situados nos escalões etários tipicamente juvenis. Assim, o rock foi
um absolute begginer pois alterou, na sua expressividade, muitos dos padrões
culturais vigentes. Começamos pela origem sócio histórica do rock e da sua
consequente implantação na cultura ocidental e não só, arriscando mesmo a dizer
que se encontra globalizado como outros artefatos que compõem a agitada
modernidade tardia contemporânea. Com isto não pretendemos digladiar pela
defesa de rupturas absolutas no que tange às dinâmicas e mudanças da cultura
popular na linha do que é defendido por Marcus:
Qualquer manifestação nova na cultura reescreve o passado. Novos atores
escavam o passado à procura das origens, porque a ancestralidade é
legitimação e a novidade é dúvida – mas há sempre, em todos os tempos,
atores esquecidos que emergem do passado não como antepassados, mas
como figuras que nos são familiares. (MARCUS, 2000, p. 28)
O propósito é destacar as mudanças operadas com as manifestações
primeiras do rock’n’roll e a sua imensa importância na estruturação dos quotidianos,
práticas juvenis, criações artísticas e desenvolvimento das cidades.
1 Bowie é um músico e ator, conhecido pelo seu trabalho musical dos anos 70 e 80 do século XX e pela
sua alta influência no mundo da música, mais especificamente no glam rock. Associa-se a este músico
uma modalidade performática e artística pautada pelo estilo camaleônico. É conhecido também pela
atuação em filmes como The man who fell to Earth (1975) e Labyrinth (1986).
GUERRA, P. Absolute beginning: ensaio sobre a emergência do rock’n’roll. Música Popular em Revista, Campinas,
ano 3, v. 2, p. 146-64, jan.-jun. 2015.
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A emergência do rock’n’roll
A emergência do rock’n’roll situa-se no pós-Segunda Guerra num período
marcado por mudanças socioeconômicas aceleradas. Podemos mesmo dizer com
Cambiasso que foi um “período que teve as suas raízes em todo o turbilhão do pósguerra, com a revolta da juventude face ao status quo e ao conformismo num quadro
de mudanças mais rápidas e de paradoxos inesperados” (2008, p.11). Não obstante
esta emergência, a origem do rock entronca-se numa matriz social e étnica mais
profunda. Apesar de uma recusa ideológica que alguns insistem em perpetuar, parte
da história americana e, consequentemente, da história do rock’n’roll tem raízes
negras. Na verdade, e embora seja algo pouco cômodo para muitos, o rock’n’roll
começa com a escravatura, por isso, para compreendê-lo é necessário perceber
igualmente o que foi a escravatura e qual o papel desempenhado pelos americanos
de origem africana na construção da cultura americana, em geral, e do rock, em
particular. Atender a este passado do rock permite, de uma forma racional, considerálo como uma forma musical específica, constituindo para muitos, uma revolução
cultural em si mesma (TOWNSEND, 1997). Paralelamente, se não perdermos de vista
estas raízes do rock, facilmente o percebemos como possuindo um caráter híbrido por
ser, no fundo, o resultado da combinação de elementos de duas culturas muito
diferentes. Deste modo, o rock é uma expressão musical híbrida afro-americana,
ainda que as suas raízes mais fortes sejam o sofrimento e a sobrevivência de gerações
de escravos que experienciaram o caráter libertador e transcendente que a música
pode ter, ao permitir-lhes uma abstração em relação ao sofrimento quotidiano. É esta
atribuição à música de significados emocionais e espirituais a principal inovação
introduzida pela população africana (PARAIRE, 1992, p. 48).
O rock’n’roll desenvolve-se inegavelmente a partir destes alicerces,
recompondo uma sonoridade e expressividade que “simultaneamente (…)
incorporou elementos musicais do country, do swing, da música clássica, da big band,
do folk (…), do blues, do R&B e de outros estilos musicais negros indígenas”
(TOWNSEND, 1997, p. 3). Por esta razão é redutor perspectivar o rock unicamente
como música negra, devendo antes ser encarado como o produto do encontro de
GUERRA, P. Absolute beginning: ensaio sobre a emergência do rock’n’roll. Música Popular em Revista, Campinas,
ano 3, v. 2, p. 146-64, jan.-jun. 2015.
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pessoas e culturas diferentes, que fazem dele uma forte e relevante forma de arte
intercultural. Porém, não obstante este caráter híbrido, o rock transformou-se numa
cultura, num elemento da cultura americana, transformou-se em algo único levando
a que “a comunidade do rock refere-se não a uma instituição, a um número de
pessoas, mas sim a uma sensação” (FRITH, 1981, p. 164).
Indústria musical, rock’n’roll e mudanças sociais
Neste processo de construção de uma nova manifestação musical, o rádio
assume um papel decisivo no âmbito da indústria musical. O seu crescimento
enquanto meio de entretenimento no final dos anos 20 do século XX acontece
paralelamente às modificações e interpenetrações de estilos musicais que conduzem
ao surgimento do rock’n’roll, contribuindo para uma metamorfose musical, sendo
esta a principal contribuição deste meio de comunicação: promove o cruzamento de
gêneros musicais distintos ao permitir que diferentes pessoas se encontrem e
partilhem experiências. Tal é especialmente importante do ponto de vista da
inspiração criativa sobretudo quando a audiência é formada por músicos e por
pessoas interessadas em desenvolver as suas variações estilísticas (GROSSBERG,
1984).
A indústria musical tem passado por várias transformações, sobretudo
motivadas pelos avanços tecnológicos com repercussões, principalmente, nos
suportes através dos quais a música chega até nós, não ignorando também as
alterações induzidas pelos próprios gêneros musicais que vão surgindo. No início, há
que se destacar o aparecimento do equipamento de gravação magnética e das
respectivas fitas cassete. Uma outra inovação a assinalar é a introdução do transístor
que atuou no sentido da descentralização ao nível da gravação e da difusão. Com
este aparelho é agora possível a existência de receptores de rádio portáteis que, entre
outras coisas, possibilitam aos adolescentes a exploração dos seus gostos musicais em
total privacidade. No mesmo ano em que o transístor é descoberto, é inventada a
alta-fidelidade, que torna possível a produção do formato conhecido como LP e de
discos de vinil com excelente qualidade de som e com uma maior durabilidade.
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Todos estes avanços tecnológicos permitem que os discos surjam como um suporte
relativamente econômico, o que, por sua vez, atua no sentido da descentralização da
indústria musical (GAROFALO, 1999).
Paralelamente, no final dos anos 40 e início dos anos 50, os DJ
independentes
assumem-se
papel
central
ao
nível
das
rádios
locais
e,
consequentemente, na indústria musical como um todo, assinalando uma relação de
interdependência entre a rádio e as companhias discográficas. A partir do momento
em que a música gravada se torna a regra geral nas rádios, as companhias fornecem
livremente aos DJ cópias dos novos projetos, esperando que estes os transformem em
grandes sucessos. No fundo, estamos perante uma troca, definidora da indústria
musical de então, entre uma programação musical sem encargos ou sem encargos de
maior e uma promoção gratuita. É neste contexto que os discos se tornam o principal
produto e suporte da música não apenas nas rádios, mas na indústria musical em
geral. E é também este o contexto que permite questionar o monopólio deste setor até
então nas mãos das grandes companhias (GAROFALO, 1999, p.3).
A emergência do rock’n’roll provoca igualmente alterações inquestionáveis
e permanentes na indústria musical, podendo ser compreendido não só como uma
ameaça cultural e política à sociedade estabelecida, pelo seu caráter de rebeldia e
rebelião, mas também como uma ameaça à configuração tradicional da indústria
musical, nomeadamente através do crescimento das companhias/ editoras
independentes que estimula. Além disso, o rock, o primeiro gênero musical dirigido
especificamente para um público jovem, foi responsável pela elevação da música ao
estatuto de arte, mas nem por isso deixa de ser influenciado e limitado pelos
interesses capitalistas que o produziram. Prova de uma tal imersão nas lógicas do
capitalismo é o fato dos anos 60 terem sido um período de forte expansão comercial
da indústria musical, para além de ser marcado por sucessivas fusões ao nível das
companhias discográficas, considerando-se aqui as fusões verticais, horizontais e de
aglomeração2. Neste cenário de valorização das interligações entre as companhias, as
editoras independentes, mais do que entrarem em competição com as grandes
Atente-se, por exemplo em 1971 à fusão da Seimens e da Dutch formando-a a PolyGram, que inclui
também a MGM e a Mercury.
2
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companhias, fazem antes parte da rede corporativa que então emerge; se surgiram
com o intuito de preencherem uma falha existente no mercado, hoje a sua maior
função é fornecer às grandes companhias informações relativas aos mercados, às
tendências que neles de desenvolvem e às procuras que se geram.
Mas não se pense que esta experimentação musical e este início do
rock’n’roll foi acompanhado pela população em geral. Pelo contrário, a maior parte
dos americanos pouco ou nada se preocupava com a música. Esta não era um
elemento central na vida das pessoas, como aconteceu com todos aqueles que
cresceram na chamada Era Rock. Tal tipo de posicionamento face à música não pode
ser desligado do contexto vivido nos anos 30 e 40, período em que outras prioridades
e interesses surgiam, no âmbito de um contexto marcado por depressões económicas
e pelas duas Grandes Guerras. De fato, em dezembro de 1941, a guerra parece ter se
tornado a maior preocupação da população americana, uma vez que toda a era
rock’n’roll e toda a geração rock são fenômenos do pós-guerra, pois o contexto foi
favorável para um new (e absolute) beggining.
Tagg sistematizou as razões de contexto que explicaram o surgimento do
rock’n’roll3: a grande proporção de pessoas com idades compreendidas entre os 15 e
os 25 anos (nos E.U.A, representavam 15% da população em 1958), a disponibilidade
de maiores rendimentos por parte das famílias, o baixo ou inexistente nível de
despesas por parte do grupo etário que mediava os 15 e os 25 anos, o
prosseguimento nos estudos por parte das populações juvenis, a emergência de um
grupo social sem identidade muito fixa face ao trabalho, o aumento da importância
das regiões do sul e do oeste dos E.U.A (resultantes da expansão da indústria do
petróleo e da defesa), as mudanças na indústria dos média e publicidade nos E.U.A e
as modificações nos padrões de audição (TAGG, 2003). Se juntarmos a estas
condicionantes, o trabalho feito pelos precursores do rock’n’roll (Hillbilly & Country,
Jump bands & Boogie, o New Orleans R&B, o Chicago R&B…), podemos perceber
bem o surgimento deste gênero que se tornou em mais que um gênero, mas a face
mais visível da música popular. De fato, o que se pode arrematar quando se reflete
3 O espaço onde o rock’n’roll enquanto som e fenômeno nasceu: 5 de julho de 1954, The Memphis
Recording Service – o nome original de Sam Philips Sun Records Studio na 706 Union Av. em
Memphis (CAVE, 2004).
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sobre o rock’n’roll é o seu inegável caráter de fenômeno pós-guerra e sua
contextualização num cenário de transformações, de novas possibilidades. Um novo
contexto económico e politicamente mais estável cria não só tempo livre, como
também a possibilidade de os jovens investirem o seu dinheiro em música, para além
de promoverem a entrada no mercado de pequenas companhias, suscetíveis de
desempenharem um papel inovador no seio da indústria musical. Assim, o
desenvolvimento da cultura rock nunca pode ser desligado de uma tal
contextualização (também ela ideológica).
Os anos 50 são, sem dúvida, o período dourado do rock, um contexto
tantas vezes abordado em vários filmes, programas de televisão, artigos de revistas,
biografias e antologias, um período que ficará para sempre gravado na memória
americana. São precisamente a energia, a vitalidade e a originalidade desse contexto
temporal, e consequentemente da música nele produzida, que marcam a
especificidade do rock’n’roll e que faz com que este se assuma como uma forma de
estar na vida, mais do que como um mero gênero musical. Os anos 50, e sobretudo o
período compreendido entre 1954 e 19584, representam um momento em que se
vivenciava e sentia uma autêntica revolução, em que o rock’n’roll era um estilo de
vida, uma paixão, uma vontade de mais e mais, que proclamava uma mensagem de
euforia, amor e juventude. É justamente esta mensagem e esta forma intensa de estar
e de viver que se encontra nas músicas que marcaram o surgimento do rock’n’roll. E
assim se conta o início da Era Rock, disparada por uma confluência de ideias,
sentimentos e experimentações criativas, protagonizados por uma juventude
americana do pós-guerra, uma juventude sem causas, que se refugia na música. Neil
Young descreveu bem este contexto: “O rock’n’roll é abandono inconsequente”.
(citado em MARCUS, 2006, p. 139).
O período entre 1954-1958 é muitas vezes declarado como correspondente à primeira vaga do
rock’n’roll (PARAIRE, 1992, p.48).
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ano 3, v. 2, p. 146-64, jan.-jun. 2015.
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Rock’n’roll e advento da cultura popular
Em termos sonoros e estilísticos, como se caracteriza a música rock?
Paraire responde:
Não é possível limitar o conteúdo da palavra rock ao da expressão
“rock’n’roll”. A música rock adquiriu desde 1955 uma tal envergadura,
diversificando-se em gêneros, subgêneros, escolas e andamentos que só o
sectarismo e a ignorância podem considerar como exteriores ao rock, estilos
como o jazz rock, o afro rock, o rock planante, o funk, a soul music e o blues
rural. (PARAIRE, 1992, p. 15)
E continua:
O rock não se resume a Presley. De qualquer forma, não apenas Presley. Os
Beatles, embora pareçam tocar cançonetas, são rock. Para os diferenciar dos
Rolling Stones, no passado classificava-se os Beatles na área da “pop music”.
Mas na Inglaterra, “popular music” é uma expressão que cobre todos os
gêneros da música ligeira, incluindo o rock… Nos Estados Unidos, a
expressão “rock music” abrange todos os gêneros da música rock: daquilo
que os norte-americanos chamam “rock’n’roll” e “country music” ao electrofunk de Jackson passando pelos blues de Chicago e pela pop music inglesa.
Esta terminologia é, de longe, a mais eficaz e a menos contestável.
(PARAIRE, 1992, p. 15)
Do ponto de vista sociológico, o rock será uma forma de cultura popular,
pois implica um acesso a espaços e instrumentos particulares de expressividade e de
comunicação, o incremento e a ativação de padrões cognitivos, emocionais e
simbólicos, a criação de produtos culturais próprios, a possibilidade de experiências
estéticas e a mobilização de agentes sociais oriundos dos meios populares e das
classes médias urbanas (GUERRA, 2013). Esta definição não pretende ser unívoca
mas pretende ter a plasticidade suficiente para demonstrar que o rock’n’roll tal como
o concebem os especialistas foi produto estruturado e estruturante de uma tripla
conflitualidade existente na sociedade americana (PARAIRE, 1992). Assim, resultou
de um conflito racial que colocou em confronto duas culturas diferentes e opostas: o
blues negro e a música branca (TOSCHES, 2006). Igualmente se moveu enquanto
conflito moral, pois o rock’n’roll na sua modalidade inicial é e reivindica para si uma
linha de reivindicações face à sociedade adulta vigente por parte de uma juventude
ávida pela afirmação de valores num cenário de conflito de gerações mais ou menos
estabelecido, não sendo inocente a proliferação de ídolos “no cinema, Brando e Dean;
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na música, Presley, Chocran e Jerry Lee Lewis, Geny Vincent assaltam o puritanismo
sexual e o conformismo do vestuário5” (PARAIRE, 1992, p.48). Também se desenhou
enquanto conflito comercial pois inicialmente o rock era um artesanato sulista
passando rapidamente a uma intensidade industrial coincidente com toda a América,
foi-o também um conflito entre a arte e o comércio. O rock’n’roll é pois um fenômeno
social e cultural cuja expressão está muito para além da sua mera musicalidade como
atestam os dados recentes acerca da sua importância nos consumos (Tabela 1).
O rock é americano? Neste início parece ser sobretudo um elemento
cultural americano, mas com ramificações relevantes anunciando desde já a sua
futura globalização. Nos meados da década de 50, em Londres viviam-se dias
cinzentos, com as dificuldades econômicas do pós-guerra, a ideia de uma cultura
juvenil era remota. Na realidade, a cultura existente era uma tentativa de imitação do
que chegava da próspera América. O rock’n’roll era visto como algo exótico, ou então
como a música do diabo (devil’s music). As possibilidades de mobilidade social eram
reduzidas; assim, a maior parte dos relacionamentos eram intraclassistas, o que fazia
com que os jovens das classes mais desfavorecidas não tivessem acesso aos bens de
consumo mais custosos. De igual forma, a indústria musical britânica era
praticamente inexistente e a que existia tendia a editar folk music britânica. Fora de
Londres, nas cidades de média dimensão britânica, com forte tradição industrial ou
com importantes portos marítimos, o cenário era diferente – a revolução musical
estava a acontecer (BIDDLE, 2008). A música americana que chegava aos portos tinha
uma grande aceitação face ao que acontecia em Londres. No início da década de 60,
nas cidades do norte de Inglaterra, emergiu um vasto leque de pequenas bandas de
rock que competiam entre si. Simultaneamente, uma avalanche de produtos culturais
americanos invadiu a Europa e especialmente a Grã-Bretanha, devido à falta da
barreira da língua e ao grande número de militares americanos a permanecer de
serviço após a Guerra. Houve com efeito uma apropriação britânica que não se
limitou ao desenvolvimento de estilos subculturais, mas levou à formação de
diferentes tendências da música rock. Os Yardbirds e os Cream criaram uma base de
5
A tese de Barry (2006) é a este título exemplar.
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blues-rock fundamental para o delineamento de dois subgêneros musicais de rock nos
anos 70: o rock progressivo e o heavy metal (OLIVEIRA, 2004, p. 9-12).
Gêneros
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
Rock
25.2
24.8
24.4
24.7
25.2
23.9
31.5
34.0
32.4
31.8
Rap/Hip-hop
10.8
12.9
11.4
13.8
13.3
12.1
13.3
11.4
10.8
10.7
R&B/Urbano
10.5
9.7
10.6
11.2
10.6
11.3
10.2
11.0
11.8
10.2
Country
10.8
10.7
10.5
10.7
10.4
13.0
12.5
13.0
11.5
11.9
Pop
10.3
11.0
12.1
9.0
8.9
10.0
8.1
7.1
10.7
9.1
Religiosa
5.1
4.8
6.7
6.7
5.8
6.0
5.3
5.5
3.9
6.5
Clássica
3.5
2.7
3.2
3.1
3.0
2.0
2.4
1.9
2.3
1.9
Jazz
Bandas
Sonoras
Oldies
3.0
2.9
3.4
3.2
2.9
2.7
1.8
2.0
2.6
1.1
0.8
0.7
1.4
1.1
1.4
1.1
0.9
0.8
0.8
0.8
0.7
0.9
0.8
0.9
1.3
1.4
1.1
1.1
0.4
0.7
New Age
0.5
0.5
1.0
0.5
0.5
1.0
0.4
0.3
0.3
0.6
Infantil
0.4
0.6
0.5
0.4
0.6
2.8
2.3
2.9
2.9
3.0
Outra
9.1
8.3
7.9
8.1
7.6
8.9
8.5
7.3
7.1
9.1
Tabela 1 - Importância dos diferentes gêneros musicais entre 1999-2008 nos E.U.A. (%)
(Fonte: The Recording Industry Association of America, 2008. www.riaa.com)
Rock, culturas juvenis, gênero e diferenciações sociais
A música enquanto elemento básico no desenvolvimento quotidiano dos
jovens parece algo indiscutível. Para eles é parte de uma linguagem universal que
cria códigos de comunicação sem fronteiras, permanecendo atual como modo de
expressão e elemento configurador ou catalisador de todos os símbolos da
identidade juvenil. Na medida em que articula toda uma série de significantes e de
significados, desde elementos puramente estéticos até aos mais diversos modos de
estar e referências de comportamento, a música constitui um importante reflexo da
realidade social e por corolário, da diversidade de tipos juvenis que alberga
(QUIRÓS e SAN JULIÁN, 2001). O rock’n’roll surge como o maior símbolo dessa nova
cultura juvenil. No período pós-guerra, a juventude rapidamente se tornou num alvo
preferencial em termos de mercados econômicos (música, cinema, roupas,
cosméticos, …). Surge, então, uma juventude consumidora, dividida em diferentes
subculturas, que é acompanhada pela emergência de uma série de pânicos morais em
GUERRA, P. Absolute beginning: ensaio sobre a emergência do rock’n’roll. Música Popular em Revista, Campinas,
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relação aos jovens. Pelo contrário, na década de 60 parece construir-se um mundo
jovem utópico, no qual os pânicos morais são substituídos por uma aceitação geral
da vitalidade da juventude na promoção da renovação social.
Na verdade, o mito sobre a rebeldia e o caráter revolucionário da
juventude começa a cair, dando lugar a uma perspectiva crítica que vê a juventude
como um produto da sociedade moderna, como tendo sido engolida pelo capitalismo.
No entanto, o mito continua a ser alimentado, nomeadamente através de uma
inflação mediática que continua a apresentar a juventude como estando associada à
revolta; de tal forma é criada uma imagem poderosa que, no extremo, a própria
juventude se esquece de participar nessa revolta. Perante este cenário, resta aos
jovens duas hipóteses: a escolha entre a perda do caráter de resistência através da
assimilação e do envolvimento nas lógicas da sociedade ou contrariamente, a
perpetuação da juventude como uma categoria subversiva, ainda que aqueles que
protagonizam essa imagem sejam os maiores exemplos da subjugação às lógicas
dominantes em relação às quais se espera a sua revolta.
Desde logo uma primeira constatação relativa à emergência do rock’n’roll
na década de 50 é a sua invulgar estratificação ao nível do gênero, da idade e da
etnia. De uma forma geral, as jovens do sexo feminino eram excluídas das bandas
locais, a música era produzida para um grupo etário muito específico, estando
associada ao desenvolvimento de uma subcultura juvenil e, apesar de não serem
ignoradas as influências das tradições musicais afro-americanas, era produzida por
adolescentes brancos e orientada igualmente para uma audiência branca.
Simultaneamente, as primeiras bandas funcionavam de forma informal e mais ou
menos autônoma em relação a escolas, locais de trabalho ou outras instituições.
O que explica o seu afastamento da esfera da criação do rock’n’roll? Uma
explicação remete para o mito, a imagem construída do rock como uma metáfora da
rebelião juvenil, da sexualidade masculina, da virilidade, imortalizada numa série de
filmes e canções. Deste modo se percebe que, enquanto os rapazes utilizavam
guitarras elétricas e todo o seu potencial sonoro como forma de exprimir a sua
revolta em relação à sociedade, as mulheres se envolviam em esferas mais suaves da
música
popular,
desenhando
frequentemente
formas
musicais
com
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acompanhamento orquestral. As origens do rock’n’roll não eram dominadas nem por
homens nem por mulheres e, ao mesmo tempo, também não parecia haver diferenças
ao nível das preferências, do talento e do envolvimento com a música entre os dois
gêneros. Neste sentido, a ausência das mulheres no âmbito das bandas então
formadas não pode ser interpretada através de gostos distintos, nem através de
respostas diferenciadas às narrativas musicais relacionadas com a revolta e rebeldia e
com o romance. Pelo contrário, esta exclusão pode ser explicada pelas diferentes
formas pelas quais o envolvimento com o rock’n’roll do ponto de vista criativo atua
no sentido da obtenção de um estatuto independente e autônomo. Desta forma, em
meados da década de 60, as origens do rock’n’roll estavam completamente
institucionalizadas enquanto um domínio masculino, cabendo às mulheres
desempenhar papéis secundários.
A emblemática de Elvis
Elvis assume uma relevância no processo de afirmação e canonização do
próprio rock’n’roll. Trata-se de algo revelador, pois foi o primeiro jovem branco do sul
a cantar rock’n’roll. Ao ser artista de rock’n’roll, Elvis condensou toda uma
comunidade e seus valores e fez o processo de transmissão com glamour, presença e
carisma. Do blues trouxe humor, risco e drama; do country, a beleza e a paz de
espírito; do rockabilly, uma atitude e uma presença rock’n’roller. Por isso Greil Marcus
assevera que:
No seu melhor, Elvis não só corporiza, como personaliza muito do que de
melhor existe neste lugar [América]: um encantamento pelo sexo que é, por
vezes simples, por vezes complexo, mas sempre aberto; um amor pelas
raízes e um respeito pelo passado; uma rejeição do passado e uma procura
da novidade; uma espécie de harmonia racial que para Elvis, um homem
branco, significa uma profunda afinidade com as mais sutis nuances da
cultura negra, combinada com uma compreensão igualmente profunda da
sua condição de branco; um desejo ardente de ficar rico e de se divertir; uma
afeição natural por carros grandes, por roupas superficiais, pelos símbolos
de status que conferem prazer enquanto símbolos e enquanto objetos. Elvis
tornou-se ele próprio um desses símbolos (MARCUS, 2000, p. 194).
Elvis nasceu e cresceu numa comunidade do Sul dos E.U.A assentada
numa economia que exigia cooperação, lealdade e obediência e estava organizada em
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torno da moral, da religião e da música. Na verdade, a música, pela partilha de
valores que pressupõe, pode atuar no sentido da coesão da comunidade. Mas, por
outro lado, pode também surgir como um escape em relação à comunidade, para
além de revelar o seu lado mais underground e oculto. Tentando concretizar, os
cantores são muitas vezes excluídos da comunidade em virtude do seu estilo de vida,
mas permanecem ligados a ela, uma vez que se constituem enquanto símbolos das
esperanças mais secretas da comunidade, das suas fantasias, dos seus medos e
representam os extremos ou excessos de emoção, de risco, de prazer, de sexo e de
violência que a comunidade quer controlar. Porém, apesar deste background, Elvis
criou uma cultura pessoal para além deste enquadramento que lhe foi concedido,
assente numa vontade de expressão num quadro de liberdade. É exatamente essa
vontade e esse desejo que estão presentes no espírito do blues e do rockabilly que
configuram a voz de Elvis. Elvis foi o portador e incorporador de uma aura, de um
espírito e carisma do rock’n’roll, edificou com sucesso o star-system e a divinização do
cantor pop, e nessas incursões, consagrou o rock tal como o conhecemos hoje. Elvis
tornou-se num íntimo, num próximo, deflagrador de sentimentos e companhia
perene para ultrapassar as vicissitudes da existência quotidiana. A sua voz
simbolizou uma comunidade de afetos, uma sede de emoções fundamentais para o
prosseguimento do mundo da vida (SEGRÉ, 2001).
João Lisboa compreendeu muito bem esse processo ao considerar que “foi
com Elvis que o cantor se transformou no sacerdote, no mediador entre o secreto
culto maçónico e o público. A cultura acontece em segredo, toda a arte é secreta”
(LISBOA, 2007). Também Lester Bangs o intuiu ao referir que: “é por isso que me é
um pouco mais difícil vislumbrar Elvis como uma figura trágica: eu vejo-o mais
como o Pentágono, uma gigantesca instituição blindada da qual ninguém sabe nada,
exceto que seu poder é lendário” (BANGS, 2005, p. 214).
Reconfigurações e desafios
Importa também discutir aqui o processo pelo qual o rock’n’roll foi
ajustado aos contextos das organizações dominantes ainda que mobilizado por uma
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discursividade e estética de rebeldia e de afronta ao status quo. O rock assumiu-se
como um meio de comunicação de massas: desde o início dos anos 60 ultrapassou
progressivamente todo o espectro das classes sociais (GROSSBERG, 1984). O rock
parece assumir a função clássica que Durkheim conferiu ao sagrado, a de celebrar e
reforçar a integração grupal e em simultâneo, a ânsia por um simbolismo de revolta e
de confronto. É precisamente nesta função que devemos colocar a sua
mercantilização e transformação em indústria, pois como indústria de nova natureza,
o rock é um objeto mercantil de compra e venda das indústrias culturais (MARTIN,
1979). Firth já tinha apontado o estabelecimento de uma aparente contradição:
Rock music, como o maior veículo cultural da juventude é [por conseguinte]
afastado do plano de uma contradição dupla que por vezes desempenha o
papel de simbiose e outras vezes ameaça rasgar o pano em pedaços. Em
primeiro lugar existe a tensão contínua em todos os adolescentes de todas as
classes sociais entre a necessidade de símbolos de anti-estrutura que
expressem liberação de papéis e convenções e a necessidade oposta de
rituais de afirmação grupal. Mas além disso há uma contradição – tensão de
classe dentro do rock (FRITH, 1984, p.61).
Vale a pena recordar as considerações de Adorno a respeito da música. A
análise das indústrias culturais pré e pós Segunda Guerra Mundial da Escola de
Frankfurt postularam um modelo de produção cultural baseado na estandardização
estrutural (ADORNO, 1962). Adorno abordou a vida musical defendendo a sua
análise numa lógica de relação entre forças produtivas (esfera da produção e das
técnicas) e relações de produção (condições econômicas e ideológicas de produção e
esfera da recepção). Assume particular interesse a abordagem que Adorno faz da
música ligeira, pois Adorno parte para a problematização da definição de música
através daquela propriedade intrínseca, que segundo os países industrializados a
caracteriza, que é a estandardização. Dentro desta conceptualização, a canção de
sucesso revela-se o paradigma da música ligeira. As canções de sucesso obedecem a
um determinado esquema, não havendo nelas propriamente lugar para a liberdade
de composição (o que não implica que o compositor de música ligeira não tenha
possibilidade de se mostrar talentoso). Independentemente do tipo de música ligeira
que atinge o sucesso, as canções de sucesso acabam todas elas por ser
estandardizadas.
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O sucesso na música processa-se de uma forma semelhante, ou pode
mesmo dizer-se através de esquemas de identificação. Para que a música se revele
um sucesso é necessário que quem a ouve se identifique potencialmente com ela. É a
partilha dessa identificação que gera as comunidades de fãs, reflexo dos rituais de
socialização que a música permite:
o efeito dos sucessos, ou talvez mais exatamente o seu papel social, pode ser
esboçado como o dos esquemas de identificação. (…) Como indivíduo entre
todos aqueles que se identificam com o seu sujeito fictício, ele sente o seu
isolamento diminuir. (ADORNO, 1962, p.32-33)
À estandardização da música ligeira associa-se necessariamente o
elemento vulgar; ao obedecer a esquemas, as músicas de sucesso se munem desse
elemento. Esta simplicidade intrínseca é uma propriedade imanente da música
ligeira que faz com que ela gere reações estandardizadas, das quais é de destacar o
fato de a música ligeira ser uma fácil de escutar, que não exige concentração para a
sua captação. Esta questão das reações estandardizadas revela todo o sentido quando
a música ligeira é associada ao fenómeno do sucesso.
Com o desenrolar do tempo a música deixou de ser um elemento de
exceção na vida quotidiana, como acontecia na época feudal e nos concertos
burgueses, para passar a integrá-la. Ao abordar os meios de comunicação de massa,
no âmbito da vida musical oficial, Adorno volta a reforçar a questão da socialização
do gosto ao apontar dados de estudos americanos que concluem que as pessoas que
entram em contato com a música ao vivo têm gostos musicais mais qualificados do
que aquelas que com ela contatam pela rádio. Mais do que os critérios de qualidade
da seleção radiofônica, tal constatação reflete a importância da socialização, uma vez
que a frequência de concertos implica hábitos criados. Para além da rádio, o disco é
assumido como outro media musical que acaba por permitir um conhecimento muito
mais aprofundado da música pela possibilidade de repetição da escuta. Também
aqui a lógica econômica entra, visto que no mercado musical a escolha de discos a
registar assume muitas vezes critérios que mostram o quanto as condições de
produção social podem contrair a cultura musical.
Partimos do pressuposto de que a música é a transposição dos princípios e
propriedades estruturais da vida social, podendo ser uma matriz de moldagem de
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novas subjetividades e das exteriorizações destas (DENORA, 2004). Assim, após a
sua emergência, o rock’n’roll continua a ter futuro? A perdurar até aos dias de hoje?
Sim, reconfigurando-se e metamorfoseando-se (Figura 1). Poderíamos enunciar
bandas, gêneros e subgêneros de rock incessantemente, pois a contemporaneidade é
profícua nessa matéria mostrando que o rock veio para ficar (GUERRA, 2010). Não é
possível passar ao lado das declarações de Lou Reed a este respeito:
Lou Reed: O rock’n’roll é de tal forma genial, as pessoas poderiam mesmo
morrer por ele. (…) A música dá uma pulsação que permite sonhar. Toda
uma geração que anda ao som de um baixo Fender… É necessário que as
pessoas morram pela música, é tudo. As pessoas morrem não importa
porquê, então porque não da música? Morrer por ela. Não é bonito? Quer
morrer por qualquer coisa de bonito? (apud MCNEIL; MCCAIN, 2006, p.45).
No presente, se a internet leva a música a um maior número de pessoas, é
a possibilidade de se desfazerem barreiras entre gêneros musicais e de um maior
número de pessoas poder criar e difundir mais facilmente a sua obra que lança
maiores desafios no entendimento desta relação complexa entre música, globalização
e internet. A relação entre música e internet é complexa. Os grandes paradigmas
musicais não se irão alterar com a internet, nem esta oferece ainda todas as
potencialidades, enquanto plataforma, que poderá vir a oferecer. Tal como a
televisão, a rádio, a edição discográfica, também a internet irá contribuir para a
coisificação e reificação dos usos da música e para os grandes cortes, que hoje
conhecemos. Se a internet potencializa a globalização e o pluralismo, a globalização
de gêneros musicais é consequência da globalização ao nível econômico, político,
tecnológico e cultural.
Quando falamos de pluralismo, somos transportados para o conceito de
rede, de infra-estruturas tecnológicas e de superestruturas culturais. No caso da
música não se trata de se desfazerem hierarquias, mas sim de um sistema de
coexistência de gêneros. Se a internet veio facilitar as conexões e a comunicação, a
grande mudança no que respeita à música é computacional, com o desenvolvimento
de softwares que permitem a composição, edição e produção, e que estão cada vez
mais ao dispor de todos. A grande novidade reside no fato de que através da internet
é possível uma estandardização de suportes e, como consequência, uma maior
circulação e recepção da música através dela. Com a interatividade na criação, surgiu
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o conceito de obra-aberta, questão que nos transporta para os efeitos da tecnologia
sobre a arte. Se a música aceitar esta interatividade, tal como tem acontecido,
podemos sempre pensar no rock como Marcel Duchamp: “uma obra de arte que não
é uma obra de arte”.
Figura 1 - Esquema da emergência e da evolução temporal dos diferentes subgêneros e ramificações no
pop rock (Fonte: Elaboração da autora)
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