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O sono weberiano Samuel Barbosa (USP)1 1. É difícil ler esse texto de Teubner. Menos pelo jargão ou apropriação fecunda de teorias de diversas procedências para observar as novas constelações do direito global - traço marcante de outros textos seus. É pelo motivo de ser o comentário de um livro que não é conhecido nem traduzido no Brasil, Livro que, à primeira vista, trata de questões estranhas ao nosso debate, questões quase bizarras como a organização alfabética do saber jurídico disponível. Escrever um comentário de um comentário de um livro fechado não é das tarefas mais fáceis. O livro "O alfabeto do direito", de Rainer-Maria Kiesow, publicado em 2004, foi uma das teses de livre-docência defendida na Universidade de Frankfurt.2 Atualmente o autor é diretor na EHESS em Paris. O livro trata do projeto das enciclopédias jurídicas e dicionários jurídicos, gêneros de publicações com antecedentes medievais, que floresceram no Antigo Regime, e entraram em ocaso com o Código civil francês e a sistemática da ciência do direito alemã. Enciclopédias. dicionários, códigos e ciência são epítomes do esforço de apresentar a unidade do direito. Seria, no entanto, uma péssima propaganda para a capa do livro vendê-lo assim. Seria enganador sugerir que fosse um austero trabalho de história da sistematização (em sentido amplo) ou classificação do direito. O que chama atenção de imediato é que o livro é um experimento formal. Quem o abre, não encontra capítulos, mas verbetes em ordem alfabética: Aurora, Biblioteca, Código, Dalloz, Enciclopédia, Fábrica, Gargantua… Como assinala, Teubner, é um livro autológico: escrito em ordem alfabética sobre o livros em ordem alfabética (dicionários e enciclopédias). É 1 Professor Doutor da Faculdade de Direito da USP. Pesquisador do CNPq e do Merian International Centre for Advanced Studies/Mecila. 2 KIESOW, Rainer Maria. Das Alphabet des Rechts. Frankfurt/M: Fischer, 2004. 1 um experimento pós-estruturalista, com muito de Foucault, Derrida, Pierre Legendre e Luhmann. O comentário de Teubner discute o ganho do experimento formal, o paradoxo da apresentação da unidade do direito e muito resumidamente a relação produtiva entre ciência jurídica e literatura. Seria um despropósito repetir o exercício autológico e escrever um comentário do comentário a fim de apreciar o acerto do que Teubner afirma sobre Kiesow. Minha tentativa será propor uma breve nota ortogonal ao livro de Kiesow e ao comentário de Teubner. 2. "Na manhã seguinte acordei livre das abominações da véspera; chamei-lhes alucinações, tomei café, percorri os jornais e fui estudar uns autos. Capitu e prima Justina saíram para a missa das nove, na Lapa. A figura de Sancha desapareceu inteiramente no meio das alegações da parte adversa, que eu ia lendo nos autos, alegações falsas, inadmissíveis, sem apoio na lei nem nas praxes. Vi que era fácil ganhar a demanda; consultei Dalloz, Pereira e Sousa..." (Cap. CXX). Bento de Albuquerque Santiago (Bentinho/Dom Casmurro) foi bacharel e advogado. Ele mesmo reconhece: "a banca de advogado me rendia bastante" (Cap. CXXXI). A passagem citada está no capítulo "Os autos" que antecede a catástrofe da morte de Escobar. Confiava que era fácil ganhar a demanda. Isso bem pode servir de meta-comentário ao próprio livro que Bentinho está escrevendo, verdadeiro libelo contra Capitu. Como se sabe, por bom tempo ele venceu a demanda ao conseguir confundir os leitores (ou jurados) com a questão errada: houve ou não traição de Capitu? Tentar responder essa questão é capitular diante da lábia do bacharel bom moço. A crítica literária saneou o processo: o réu é Bentinho. 3 A força do romance machadiano não está na representação realista e detalhada ponto a ponto com o contexto, mas na forma literária. Fugiria aos nossos propósitos SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In: ______. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. São Paulo. São Paulo: Perspectiva, 1978. CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro. São Paulo: Ateliê, 2002. 3 2 nos alongar aqui sobre isso. Feito o registro, ainda assim é preciso reconhecer que os romances trazem minuciosos detalhes do contexto da época.4 Nossos bacharéis consultavam Dalloz e Pereira e Souza. 3. Kiesow tem uma entrada para Dalloz, um dos últimos esforços de enciclopédias jurídicas na França do século XIX.5 Atualmente Dalloz dá nome a uma conhecida casa editorial especializada em livros jurídicos ainda em atividade. Victor Alexis Désiré Dalloz (1795-1869), jurista, político, advogado francês que deu início em 1831/32, com seu irmão Armand Dalloz (1797-1857), à publicação do Répertoire méthodique et alphabétique de Législation de Doctrine et de Jurisprudence en matiére de droit civil, commercial, criminel, administratif, de droit des gens et de droit public. Em 1870 a publicação alcançava 47 volumes. Em ordem alfabética, os irmãos Dalloz colecionaram trechos da legislação, excertos da doutrina e jurisprudência. O tomo 30, (ed. 1853) abre com Laboureur, Lac, Lacération, Lacune, Ladrerie, Lais, Laissez-Passer, Lait, Lamaneur, Landes, Langue, Langue Étrangere, Langue Française, Lapin, Larcin, Lavoir, Lazaret, Lecture, Légalisation… Compendiar o direito em léxicos não é invenção do século XIX. Já conta com o antecedente notório do dicionário do livro 50,16 do Digesto, De verborum significatione que no entanto ainda não está em ordem alfabética e a coleção de brocados no livro 50,17, De regulis iuris. No século XIX, adverte Kiesow, já estamos nos estertores desse gênero de livro. A tarefa de dar unidade à fragmentação do direito vai requerer outros formatos como as revistas jurídicas. Antes de registrar porque é significativo o tipo de pesquisa que animou a Kiesow, qual é o outro livro consultado por Bentinho? O advogado português Joaquim José Caetano Pereira e Souza (1756-1819) publicou em 1810, o primeiro tomo das Primeiras Linhas sobre o processo civil (Lisboa) que contou com o apoio do príncipe regente D. João que ordenou lhe fosse MIÉCIO Táti, Miécio. O mundo de Machado de Assis. Rio de Janeiro, 1991. BARENOT, Pierre-Nicolas, Entre théorie et pratique: les recueils de jurisprudence, miroirs de la pensée juridique française (1789-1914). Thèse, Université de Bordeaux, 2014. BARENOT, Pierre-Nicolas. A View of French Legal Lexicography - Tradition and Change from a Doctrinal Genre to the Modern Era. In Máirtín Mac Aodha (ed). Legal Lexicography: A Comparative Perspective. . London, New York, 2014. pp.11-30. 4 5 3 franqueado o livre acesso à Torre do Tombo.6 Bentinho pode ter usado esse livro ou Classes dos Crimes por ordem systematica (Lisboa, 1803), ou ainda o Esboço de hum Diccionario Juridico, Theoretico e Practico, Remissivo Ás Leis Compiladas e Extravagantes, publicado postumamente em três tomos, entre 1825-1827 em Lisboa. A fortuna do Primeiras Linhas pode ser medida pelo que escreveu Teixeira de Freitas: "Três livros de flôr tem sido Mestres do nosso Foro Civil, e d'êlles pertence a superioridade às - Primeiras Linhas sobre o Processo civil - do abalisado - Joaquim José Caetano Pereira e Souza - Advogado da Casa de Supplicação de Lisboa". Os outros dois livros seriam a Doutrina das Acções de José Homem Corrêa Telles e as Primeiras Linhas do Processo Orphanologico de José Pereira de Carvalho. E continua Freitas, "Praticamente, pode-se affirmar com verdade não haver quasi um só dos nossos Processos, onde as Linhas Civis de Pereira e Souza não sejam citadas uma e muitas vezes, quando não transcriptas em suas passagens, para convencer os Magistrados da primeira e da segunda Instancia na rectidão de seus julgamentos". O elogio está no Prólogo à nova edição das Primeiras Linhas, preparada por Freitas para a casa Garnier. Essa nova edição de 1879 não é um dicionário ou enciclopédia, mas um exemplo de refundir para um outro auditório (o brasileiro) um livro de doutrina (portuguesa) bastante conhecido com notas doutrinárias, legislação em vigor no Brasil, acompanhado com a jurisprudência pátria. A esse tipo de tradução cultural, praticado por outros juristas além de Freitas, se chamava "accomodar ao foro do Brazil". 4. A pesquisa sobre enciclopedias e dicionários empreendida por Kiesow coloca a questão dos modos de apresentação do direito nos impressos. É disso que se trata também o exemplo dos livros accomodados ao foro. Em outras palavras, o direito depende das mídias, como os livros impressos, o jornal, a revista e cada vez mais do computador. O empreendimento Kiesow pode ser situado no campo de estudos da medialidade do direito. LOUREIRO, José Pinto. Jurisconsultos Portugueses do século XIX. Vol. I. Lisboa: Ed. Do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, 1947. BARAHONA, Henrique. Joaquim José Caetano Pereira e Sousa e as “primeiras linhas” da modernidade jurídica luso-brasileira (sécs. XVIII/XIX). Anais do XVI Encontro Regional de História da Anpuh-Rio, 2014. 6 4 Como Teubner lê Kiesow, trata-se de um estudo dos efeitos paradoxais de reduzir a fragmentação do direito a uma unidade que é apresentada de forma fragmentada. O alfabeto permite a expansão de mais e mais fragmentos (verbetes). O ocaso das enciclopédias e dos dicionários como gênero predominante ocorre nos quadros de uma dupla tentativa oitocentista de sistematização: o código e a ciência do direito, representado respectivamente pelo caso francês e o alemão. Mas ainda aqui se pode falar em fracasso da sistematização. A fragmentação, a especialização temática de novas áreas, a canibalização de saberes sociais pelo direito não é bloqueada pela sistemática e passam a exigir novos impressos e mídias. Teubner lamenta que o livro seja a história de um declínio que não procura o potencial novo. Em linguagem sistêmica, destaca o mérito do livro em expor que a auto-reprodução do direito não se explica pelos nexos sistemáticos de conceitos, mas lamenta que o livro não explora como a auto-reprodução de operações faz emergir novas formas de ordem. No comentário, diferentemente de pesquisas mais recentes, Teubner ainda não se vislumbra as consequências dos computadores e algoritmos para a reprodução do direito. Seja como for, com a leitura cruzada de Kiesow e Teubner e com o programa de pesquisa das mídias e direito, que abriu a Thomas Vesting7 uma campo de investigação produtivo, é possível entrever a chance de matizar a grande narrativa weberiana de racionalização formal do direito. Os tipos construídos a partir dos pares racional/irracional e formal/material permitiu estudar um dos percursos de racionalização e de aquisição de características formais do direito. A codificação moderna e a dogmática jurídica, respectivamente sistematização interna de regras e sistematização externa de conceitos, são casos que se aproximam da racionalização formal. O estudo dos modos de apresentação e constituição do direito nas mídias, por outro lado, permite enfatizar os limites da sistematização ao A tetralogia Die Medien des Rechts, publicada entre 2011 e 2015, agora está traduzida em inglês em um volume. Cf. VESTING, Thomas. Legal Theory and the Media of Law. Cheltenham: Edward Elgar, 2017. Para questões de teoria social sobre esse programa de pesquisa, vide BACHUR, João Paulo. Schrift und Gesellschaft: Die Kraft der Inskriptionen in der Produktion des Sozialen. Velbrück Wissenschaft, 2017. 7 5 investigar outros modos de produção da cognição jurídica. Também retira o privilégio da cientifização do direito para a produção da regulação jurídica com generalização, abstração e sistematização. Como vejo, a pesquisa dos paratextos e dos gêneros dos livros levanta a hipótese de que a forma legal não é um prius com identidade fixa, mas é configurada em uma variedade de mídias impressas: compilações resumidas e paráfrases "para uso do povo", livros com fins mneumônicos (vg. dicionários alfabético das regras). Características da racionalização do direito (generalização, abstração, sistematização) são inventadas a partir do design do livro. Outra hipótese é que a rotinização da legislação é mediada por livros que combinam a forma legal e a forma doutrinária: livros de doutrina são usados como códigos com validade empírica, livros combinam regras legisladas com regulae juris e topoi doutrinários, livros de doutrina estrangeiros servem de template for atualização legislativa e uso no foro brasileiro (livros "accomodados ao foro do Brazil"). 6