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revista Fronteiras – estudos midiáticos 16(1):20-27, janeiro/abril 2014 © 2014 by Unisinos – doi: 10.4013/fem.2014.161.03 O pixel da voz The pixel of the voice Thiago Soares1 RESUMO Diante dos processos de digitalização da voz na produção musical contemporânea, com sintetizadores e programas de áudio em computadores que são “corretores” de imperfeições vocais, questionamos que corpos emergem dessas materialidades sonoras. Partimos de um debate sobre as práticas de produção das canções para tentar compreender as formas de escuta e engajamento presentes nas matrizes sonoras digitalizadas. O conceito de “grão da voz”, proposto por Roland Barthes, é apontado como “baliza” conceitual para a discussão em torno do que chamamos de “pixel da voz”: a visualização não apenas de um corpo que emerge da performance vocal, mas um sistema de produção de sentido que envolve a figura do produtor musical, lógicas de metamorfose presentes na cultura digital e a capacidade atual de se gerar matrizes vocais que são emprestadas a corpos que não as cantaram. Palavras-chave: cultura musical, voz, performance. ABSTRACT Voice digitization in contemporary music production, with synthesizers and audio programs in computers that “correct” vocal imperfections, is the starting point to question which bodies emerge from these sound materialities. We start a discussion about the practices in song production trying to understand how listening is affected in the contemporary music culture. The concept of “grain of the voice”, proposed by Roland Barthes, guides us as a “beacon” for the discussion around of what we call “pixel of the voice”: the perception not only of a body emerging from the vocal performance, but a production system of meaning that includes the music producer, the metamorphosis logics in current digital era and the ability to generate voices for bodies that have not even sung. Keywords: music culture, voice, performance. Não, o autotune não basta pra fazer o canto andar pelos caminhos que levam à grande beleza (Gal Gosta). A canção toca. Eu ouço uma cantora brasileira. Sua voz é límpida, encorpada – qualquer adjetivo soa impreciso para descrever o que ouço. Talvez “encorpada” defina a sensação que tenho ao escutar aquela voz. É que percebo que o vocal se sobrepõe aos outros instrumentos musicais do arranjo. A voz está adensada, arrisco dizer que visualizo alguém, numa mesa de som (um produtor musical, um técnico de som), “regulando” a gravação – aumentando o “volume” da voz e, suavemente, destacando-a. Então, ponho-me diante de uma problemática. Ao ouvir essa canção, estou diante de um duplo: consigo ouvir aquele corpo que se apresenta no que ouço (a respiração, o grito, o sussurro, os tons mais graves e os mais agudos, chego a inferir a possibilidade de visualizar a boca mais ou menos aberta, os pulmões plenos diante de um momento dramático da faixa musical cantada), mas passo a visualizar também uma outra camada, para além do corpo que se Universidade Federal da Paraíba. Centro de Comunicação, Turismo e Artes (CCTA). Av. Castelo Branco, s/n, 58051-900, Cidade Universitária, Cabo Branco, João Pessoa, PB, Brasil. E-mail: thikos@gmail.com 1 O pixel da voz apresenta performatizado (Zumthor, 2000) pela sonoridade, a de alguém, num estúdio de gravação, “trabalhando” a voz, “limpando-a”, “processando-a” em softwares, num registro de gravação, dando a essa voz, digamos, um “tratamento” (e quero aqui destacar o mesmo uso da palavra “tratamento” para som e para imagem2) com o intuito de acentuar particularidades no cantar, na relação entre a voz e os instrumentais, no processo de produção de uma faixa musical. O trabalho de produção musical3 que se esconde/ revela “por trás” do meu ouvir, articula noções ligadas aos gêneros musicais. Na MPB, por exemplo, por uma necessidade de se ouvir-a-letra da canção, sabe-se do intento da produção musical destacar a voz diante do arranjo; em outros gêneros, como o punk, a produção musical pode, deliberadamente, “soterrar” a voz em meio a sonoridades de guitarras e baterias, uma vez que estamos diante de diferentes formas de fruição do material sonoro. Mudam as formas de fruição (o volume daquilo que é ouvido, os ambientes em que se ouvem, as circunstâncias), mudam também os valores – o bom, o ruim, sobre uma voz numa canção, aquilo que é construído como “uma bela voz”, “um mal cantar”. No heavy metal, por exemplo, a voz gutural4 de um cantor ligado a esse gênero musical dificilmente se “adequaria” às regras do “bem cantar” de um reality show musical como The Voice, The X Factor ou American Idol – exibidos nas emissoras televisivas e com aparatos de valoração construídos sob a égide de gêneros musicais consagrados, como o pop, o sertanejo, o rock, entre outros. Estou aqui tentando construir pontos de coesão – e de fuga – a respeito da(s) forma(s) com que somos agenciados pela voz gravada na canção, com o intuito de debater as particularidades do atual estatuto da voz na cultura musical. Apesar de meu intuito ser o de pensar duas dimensões de produção de sentido – a voz e a cultura –, tentarei debater essa questão a partir daquilo que Roland Barthes chama de grão: o grão da voz. Ou, como dou título a este texto, o pixel da voz. Algumas considerações sobre o grão O grão como uma unidade mínima. Uma metonímia na constituição do solo. Na fotografia, a unidade formadora. O grão de prata da imagem que é “queimado” e faz gerar a imagem fotográfica. Em seu texto, “O Grão da Voz”, escrito em 1972, Roland Barthes conduz a metáfora do grão para debater a música, mais especificamente, a voz na música. Essa relação entre metáforas fotográficas e musicais na obra de Barthes parece sublinhar uma constante inquietação do autor em debater os códigos culturais a partir de movimentos que atravessem os textos, passem de uma dimensão material e tátil para uma outra que se constitui a partir desse texto mas o atravessa, constitui-o para outrem, cria outro senso de pertencimento e vinculação. Foi assim com a noção fotográfica de “punctum” em “A Câmara Clara” (Barthes, 1984, p. 26) e também com a “musicalidade” do “grão” em “O Grão da Voz”. Nos dois conceitos, é possível visualizar o Roland Barthes pós-estruturalista, tentando dar conta dos desafios do entendimento das estruturas textuais, mas reconhecendo que o material investigado conduz a algo – um corpo? uma sensibilidade? – que pode derivar das inscrições previstas no texto. O “punctum” está na fotografia, mas parece querer traí-la. É, antes, um amálgama, um fantasma, uma inquietação que não nos liberta de olhar a imagem. O “grão” é a materialidade da voz, aquilo que podemos “tocar” na voz. O seu volume, o seu gênero (masculino ou feminino), o seu corpo. Mas é, sobretudo, o que profana a minha audição: o corpo de alguém que convoca a minha história, a minha biografia, o momento em que eu ouvi aquela canção, as lágrimas que eu posso derramar ao ouvi-la. Como advertiu Martin Grisel, “Barthes é, paradoxalmente, um escritor que, de maneira bastante racional, escreve ‘contra’ o significado”5 (Grisel, 2000, p. 264). Quero pontuar que já se formatou uma espé- 2 Com a popularização de programas como o Adobe Photoshop, popularizou-se a expressão “tratamento de imagem”, como a ação de corrigir “ruídos” da imagem, ressaltar contrastes, fazer pequenos (ou grandes) “ajustes”. Usa-se o mesmo termo, “tratamento”, em operações análogas com sons. 3 Faço aqui o uso do termo “produção musical” de forma genérica, sem me ater mais detidamente sobre as funções que envolvem tais atividades, como o produtor musical, o profissional de mixagem, o técnico de som, entre outras. Meu interesse não é cartografar as atividades da produção musical, mas reconhecer uma instância de ingerência sobre aquilo que se ouve. 4 O vocal gutural produz um som rouco, grave, que se obtém na relação entre a garganta e o diafragma, juntamente com distorções no som produzido nas pregas vocais e na laringe. Caracterizada como “agressiva”, a voz gutural é muito usada por cantores de bandas derivadas do heavy metal, como o death metal, deathcore, thrash metal, entre outros (Walser, 1992, p. 268). 5 Tradução nossa para: “Barthes, paradoxically, a writer who, in a very rational manner, writes ‘against’ meaning” (Grisel, 2000, p. 264). Vol. 16 Nº 1 - janeiro/abril 2014 revista Fronteiras - estudos midiáticos 21 Thiago Soares cie de senso comum de a crítica acadêmica se referir a Roland Barthes como um autor que escreve “contra” o significado – herança, possivelmente, herdada em função de seus textos ensaísticos e questionadores das máximas estruturalistas. Acrescento ao debate do Roland Barthes “contra” o significado (essas máximas fizeram parte do legado barthesiano, basta lembrarmos de seu “A Morte do Autor” ou “O Prazer do Texto”, entre tantos outros) a premissa de que o interesse de Barthes não era o de ir “contra o significado” (Barthes, 1985, p. 42) – pelo menos não como Susan Sontag abertamente foi em seu texto “Contra a Interpretação” – mas o fato de que o francês talvez estivesse falando em profanações (Agamben, 2012): profanações do(s) texto(s) em derivas não previstas. Uma materialidade que, ao acaso de fruidores e contextos, vai de encontro ao que, supostamente, estaria na sua “partitura”. Tanto o “punctum” fotográfico quanto o “grão” da voz são profanações do estatuto material que os gerou. Naquilo que não nos liberta da imagem fotográfica, o “punctum” parece ir de encontro à própria noção de congelamento da imagem, do que nos é dado, entregue como constituinte do fotográfico, sendo uma espécie de memória/invenção sempre atualizada do que é visto. O “grão”, em seu senso definidor de um corpo, também parece se rebelar contra esse corpo na medida em que nos agencia memórias/invenções que atualizam nossa escuta e vai de encontro ou acrescenta novas biografias (as nossas, as coletivas, as que supomos serem de outros) a essas vozes/ corpos. “Eu sou o que meus fãs inventam sobre mim, eu não existo”, disse a cantora Lady Gaga em seu show “Born This Way Ball” em São Paulo, também indo “contra” o seu próprio corpo: o que é Lady Gaga senão a profanação de seu “grão”, de sua voz, daquilo que materialmente se ouve dela em suas canções? Quero seguir debatendo a noção de “grão” – deixarei o debate sobre “punctum” para outra ocasião – na medida em que tentarei rascunhar aquilo que chamo de “pixel da voz” ou algumas questões que não estavam previstas por Barthes na constituição de seu conceito de “grão da voz”, sobretudo, em função da atual popularização de aparatos de tratamento de áudio, como o Autotune, e diante das lógicas digitais nos processos de produção musical. Antes de arregimentar questões sobre o “pixel da voz”, tenho necessidade de pensar o estatuto da voz digital na cultura contemporânea, a consagração de um modo de escuta que leva em consideração um processo de tratamento da voz e que noção de corpo debate-se diante das vozes digitais. 22 Vol. 16 Nº 1 - janeiro/abril 2014 O grão da voz digital O “grão”, como atesta Barthes, é o corpo na voz: como esse corpo canta, a mão que escreveu a letra cantada, os membros corporais como executam a música (boca, braços, pernas). Numa faixa instrumental, por exemplo, o “grão” da música estaria na corporificação dos dedos de um músico sobre o instrumento musical. O toque. Uma relação tátil e, como Michael Szekely (2013) prefere chamar, erótica. Um certo “erotismo” musical proposto por Barthes, escreve Szekely. Perceber o “grão” em uma canção é o reconhecimento da noção de texto na análise ou a criação de um sistema de avaliação que será individual (“estou ouvindo a minha relação com o corpo do homem ou da mulher cantando/tocando” nos diz Barthes), mas circunscrito numa cultura (“A avaliação será feita além do valor escondido atrás de ‘eu gosto’ ou ‘eu não gosto’” ou “há um movimento progressivo da língua para o poema, do poema para a música e para a música para sua performance” pontua ele). No momento em que pensa o “grão” como uma unidade de tentativa de entendimento de uma voz que nos afeta, Barthes trata, sutilmente, de uma efemeridade no ato de análise (o prazer pode não reforçar o “entendimento do assunto”, mas, ao contrário, perdê-lo e apontar outras questões – já que estamos diante da dicotomia “prazer e jouissance” proposta pelo autor). Quero aqui pontuar diferenças entre as noções de prazer e jouissance na obra de Roland Barthes, sobretudo, porque sabemos que o ato de fruição musical articula diferentes engajamentos. Talvez, debater as instâncias de prazer e jouissance possa ser um artefato interessante para discutir aspectos ligados à permanência e à efemeridade nas formas de escuta (Barthes, 1987, p. 22). São inúmeras traduções para os termos “plaisir” (prazer) e “jouissance” (gozo) dentro das obras barthesianas, no entanto, o que parece premente de ser debatido, sobretudo, em “O Prazer do Texto”, é um aspecto, digamos, musical dos termos investigados: a noção de “prazer”, como proposta por Barthes em “O Prazer do Texto”, possivelmente, trate da continuidade de um engajamento, na permanência de um sensível que envolve o fruidor na instância enunciativa, uma vez que a ideia de “jouissance” estaria na ordem da dissipação, do gozo, mas, sobretudo, tratando de análises textuais (a mecânica proposta por Barthes em seu “O Prazer do Texto”), da descontinuidade, do acaso, de um engajamento intenso, porém efêmero na enunciação. Essas questões rascunham pressupostos que são levados em consideração nas dinâmicas de produção da música. revista Fronteiras - estudos midiáticos O pixel da voz Parece sintomático, portanto, pensarmos em novas – nem tão novas, é verdade – formas de produção e escuta da voz para debatermos o “grão” nessas vozes digitalizadas. Os processos de digitalização da voz foram possíveis graças a instrumentais de captação de áudio de natureza elétrica. Não cabe aqui historiografar esses artefatos, mas quero destacar três deles, como agentes fundamentais da compreensão de um estatuto particular do “grão” da voz digital: (i) o microfone; (ii) os sintetizadores; e (iii) o Autotune. Como lembra Simon Frith (1996), o microfone elétrico tornou possível ouvintes perceberem algumas sonoridades até então não identificáveis em atos performáticos ao vivo. “O microfone nos permitiu ouvir pessoas numa maneira que, normalmente, implicava em alguma intimidade com elas: o sussurro, o murmúrio” (Frith, 1996, p. 187) Essa disposição apresentada por Frith parece evocar aquilo que Barthes chama de um certo “erotismo” no ouvir, a presença de um corpo que se faz na performance. Além disso, foi o microfone na gravação que transformou a voz numa disposição digital: uma matéria-prima bruta pronta para ser “lapidada” no estúdio. Uma vez captada ao microfone, a voz, para ser digitalizada, precisava de um artefato capaz de sintetizála. Chamados, genericamente, de “sintetizadores de voz”, esses dispositivos adentraram a seara da música vindos das telecomunicações, na herança de transmissão de dados através da voz sintética. Entre os sintetizadores, os “vocalizadores” tinham como finalidade codificar a voz para transmissão eletrônica de rádio segura e foram incorporados pelos produtores musicais, sobretudo, nos anos 1970, durante o período da “disco music” – em que, de alguma forma, havia ecos de uma estética futurista, eletrônica, ligada ao imaginário tecnológico da pista de dança (Echols, 2010, p. 12). Um sintetizador de voz ficou famoso pelas formas com as quais foi usado na indústria fonográfica: o Moog, que trazia o nome de seu criador Robert Arthur Moog. Entre os diversos modelos de sintetizadores de voz (Moog Music Inc., usado, por exemplo, na trilha sonora de “Laranja Mecânica”; o Moog Taurus, sintetizador para ser “tocado” com os pés; o PolyMoog, que vinha com sons pré-gravados para serem articulados a outras gravações), quero destacar aqui o Vocoder, que era ligado a um microfone, permitia alteração de voz e constituía uma estética semelhante a de alguém falando ao telefone. Para além do Vocoder, um dos mais populares softwares de processamento e síntese vocal foi o Autotune (do inglês “auto afinar”) e, ao contrário do Vocoder, que previa Vol. 16 Nº 1 - janeiro/abril 2014 um “distanciamento” de uma certa sonoridade natural da voz através de efeitos semelhantes a falas em alto-falantes ou radioamadores, o Autotune era um “corretor” de voz, cuja principal função, quando de seu uso na indústria fonográfica, foi o de atenuar supostas “falhas” vocais ou “desafinadas”. Trata-se de um processador de áudio criado pela empresa Antares Audio Technologies em 1994, que usa uma matriz sonora para corrigir as performances no vocal e instrumental. O Autotune também pôde ser “aplicado” como um efeito deliberadamente preparado para distorcer a voz humana. O “efeito” Autotune está, ainda hoje, disponível tanto como um “plug-in” para profissionais de áudio utilizarem em estúdios quanto para o processamento ao vivo, em shows e espetáculos musicais. Os três artefatos elencados aqui – o microfone, o sintetizador vocal Vocoder e o Autotune – foram/são usados no sistema de produção musical, articulando premissas ligadas aos horizontes de expectativas dos gêneros musicais, aos corpos cantantes performatizando canções e os ambientes de circulação dessas músicas. Tentar compreender o grão da voz digital significa ir em busca dos corpos gerados por estas sonoridades digitalizadas, as bocas que entoaram os versos, os pulmões que inflaram e tiveram a respiração corrigida como uma suposta “falha” do “bem cantar”, os olhos fechados diante de um momento estridente da canção, aquilo que nos leva a crer na existência de um corpo cantante, mas, também, em que medida, esse corpo tenta ser “corrigido”, “adequado”, constituído dentro de modelos hegemônicos de vocalização da canção em ambientes midiáticos. O grão da voz digital tenta romper com a premissa de que existiria uma voz “natural” e outra “processada”, uma vez que a constituição de uma voz “natural” é possível dentro de padrões e efeitos também em softwares. Ou seja, quando interrogamos o grão da voz digital, visualizamos corpos notadamente alterados pelos programas de distorção de som, mas, não nos esqueçamos, também, de enxergarmos os corpos que tentam emular a naturalidade do usual, os “robôs-humanos”, com pouquíssimas – e muitas vezes imperceptíveis – diferenças do homem comum. Pensemos que todos os processos de produção musical são atravessados por softwares que “trabalham” e “corrigem” a voz. Cabe questionar que efeito se almeja dentro das lógicas específicas de cada canção entoada, álbum lançado. Para migrarmos dessa dimensão micro – do grão da voz – em direção a uma lógica macro – uma cultura musical – investigamos, a seguir, o grão da voz digital num momento específico: quando a cantora Donna Summer teve seu sussurro processado por sintetizadores na canção “I Feel revista Fronteiras - estudos midiáticos 23 Thiago Soares Love” (1977), um dos momentos emblemáticos de um gênero musical chamado “disco music”. Essa experiência se configura naquilo que se chama de “mito fundador” ou fenômenos que iniciam fenômenos que serão incorporados como hegemônicos posteriormente6. “I Feel Love” traz uma relação peculiar entre os usos de microfones e sintetizadores no processo de produção da faixa que gera aquilo que chamamos de uma corporificação erótico-robô, em seguida, largamente utilizada por outros artistas da indústria da música. O grão da voz digital de Donna Summer A alteração da voz sintetizada durante o período da “disco music” quase sempre pendia para uma sonoridade que se assemelhasse àquilo que imaginávamos ser a voz de um robô, uma espécie de utopia futurista ligada à retórica dos espaços das pistas de dança: globos luminosos, luzes estroboscópicas, corpos-robôs bailantes (Echols, 2010, p. 72). Um dos momentos mais emblemáticos da gênese de estética futurista se deu na canção “I Feel Love”, da cantora Donna Summer, lançada em seu álbum conceitual “Remember Yesterday”, de 1977. O disco tentava traduzir sonoridades de épocas específicas: a canção “I Remember Yesterday” representaria a década de 40; “Love’s Unkind”, a década de 50; “Back in Love Again” seria a faixa da sonoridade dos anos 60 e o álbum é encerrado com a faixa “I Feel Love”, que seria “o som do futuro”. Até então, grande parte das gravações da “disco music” eram apoiadas por guitarra, baixo e bateria, uma formatação, digamos, de produção de música “orgânica”7. “I Feel Love”, produzida por Giorgio Moroder, foi gravada com acompanhamento inteiramente feito por sintetizadores: todos os sons foram processados eletronicamente, inclusive a voz de Donna Summer (Echols, 2010, p. 34). No entanto, o uso dos sintetizadores, na canção, tem a função de criar uma ambiência futurista que não perpassa a voz de Donna Summer. Ou seja, escutamos um arranjo que apela para ambiências futuristas, mas, em contrapartida, a voz de Donna Summer surge “humana”, sem variações vocais que descaracterizem a sua “naturalidade”. Ouvimos em “I Feel Love” os sussurros de Donna Summer em simulações a gemidos de prazer. De fundo, o arranjo é futurista, com nuances de batidas eletrônicas e farto uso de texturas sonoras graves. A constituição do sentido se dá no atrito entre este ambiente sonoro futurista gerado na canção e a voz humana e “natural” de Donna Summer. O que significa perceber o grão da voz de Donna Summer em “I Feel Love”? Talvez, estejamos diante de uma boa metáfora para pensar o imaginário de grande parte da música pop dançante: a relação entre homens e máquinas. Mas o grão em “I Feel Love” é o corpo de Donna Summer que emerge de sua voz: sussurrado, manso, tateante. Esse corpo que se esconde entre as penumbras do som futurista é fugidio e nos direciona a visualizarmos a cena de uma mulher sentindo prazer entre robôs e cenários futuristas. Como moldura pensada por Roland Barthes, a noção de grão da voz nos interpela sobre a materialidade que emerge da performance inscrita na canção, aquilo que deliberadamente nos faz constituir uma certa tatilidade no que ouvimos, de uma biografia, um corpo, alguém que nos diz algo, nos sussurra, nos afeta. Mas, o que o conceito de grão da voz não parece discutir é a própria construção de um senso vocal que não está na instância do cantor/ performer, mas sim, na dinâmica da produção musical. As vozes que ouvimos nas canções são construídas em estúdios de gravação, moldadas por volumes, texturas, corretores, ou seja, dispositivos que as alteram ou tentam emular o que seria uma voz “correta” ou “original”. Estou tentando aqui construir uma argumentação que leve em conta a ideia de que, de fato, a noção de grão da voz é um importante aporte conceitual para pensar os estatutos biográficos, retóricos e estéticos da música popular, e tento rascunhar uma instância não prevista nos escritos barthesianos: a da produção musical e seu fundamental papel na produção de sentido daquilo que ouvimos nas canções, refletindo também sobre os gêneros musicais e as dinâmicas performáticas oriundas desses fenômenos. Voltando à faixa “I Feel Love”, que tem a voz de Donna Summer nos guiando pelos itinerários da canção, A experiência de Donna Summer usando sua voz com sintetizadores está longe de ser o marco inicial desse uso na indústria fonográfica. O grupo de música eletrônica Kraftwerk, por exemplo, já no início dos anos 1970, adotou vocais “sintetizados”, simulando robôs, em suas canções. No entanto, foi com a “disco music” que esses efeitos passaram a se popularizar. 7 O termo era corrente à época e opunha a ideia de música orgânica, como aquela produzida com instrumentos musicais como guitarra, baixo, violão e bateria, à de música sintética, como a que construía suas sonoridades diante de sons oriundos de instrumentos eletrônicos e programas de computador. 6 24 Vol. 16 Nº 1 - janeiro/abril 2014 revista Fronteiras - estudos midiáticos O pixel da voz há que se lançar luz sobre o corpo que emerge da voz, este grão material a que Roland Barthes se refere, mas não se pode descolar que esta voz que ouvimos na canção integra uma engrenagem guiada pela figura do produtor musical, no caso dessa faixa, Giorgio Moroder. Ou seja, pensar o grão da voz de Donna Summer em “I Feel Love” significa também visualizar o que Giorgio Moroder, o produtor, deliberadamente, fez com a voz dela: a escolha por tirar efeitos que pudessem deixar a textura vocal robotizada, a mão do produtor sobre uma mesa de som testando texturas vocais, a discussão sobre que volume de voz ser disposto na faixa (um volume mais “baixo” misturando-se ao arranjo ou uma voz que se sobressaia do instrumental, por exemplo), enfim, quero pontuar aqui um outro corpo que se materializa na dinâmica de produção de sentido de uma canção: o do produtor. O grão da voz digital é, portanto, aquilo que ouvimos de um cantor/performer mas também as formas com que o produtor “trata” aquela voz. Estamos diante de algo que estaria na ordem da execução, da busca por uma perfeição, uma verdade, uma idiossincrasia, a voz do cantor que está no estúdio, no palco, executando o exercício de cantar, notas que tentam traduzir algo fugidio e impreciso que chamamos tão apressadamente de emoção, enfim, um corpo dionisíaco por natureza; mas junto a esta premissa dionisíaca, emerge uma outra, apolínea, centrada na figura do produtor, na racionalidade, na tentativa de construir um sentido para o texto musical, integrá-lo a um sistema classificatório, a um gênero musical, deliberadamente “moldar” este texto sonoro, fazer com que ele circule, ambiente-se em outros contextos. A noção de grão da voz digital me ajuda a pensar a canção “I Feel Love”, de Donna Summer, como uma espécie de “mito fundador” de uma estética musical ligada à cultura dançante, das boates, dos clubes noturnos: de um corpo que emerge daquele material sonoro (um tipo específico de cantar, “movimentos vocais”, expressões, vocabulários de uma língua), as configurações vocais que estão circunscritas a gêneros musicais (neste caso, em específico, a “disco music”, mas em consequência, uma série de outros gêneros musicais que trazem resíduos sonoros/imagéticos da “era disco”, como as formas classificatórias chamadas de “dance music”, “música eletrônica”, “europop”, entre tantas outras), as lógicas de produção agenciadas pelos horizontes de expectativas dos gêneros musicais e também das disposições econômicas e de ordens mercadológicas. Ou seja, pensar o grão da voz digital significa estar diante de um complexo quadro que tem a voz como uma espécie de “emblema” de questões ligadas a uma forma de fazer música no contexto da cultura musical contemporânea. Vol. 16 Nº 1 - janeiro/abril 2014 Quero agregar uma metáfora à de “grão” empreendida por Roland Barthes e tentar arregimentar alguns questionamentos sobre o novo estatuto do “grão da voz”. Ou quando o “grão” passa a ser chamado de “pixel da voz”. Do grão ao pixel da voz Diante de um quadro de digitalização dos processos de captação e produção vocais, quero rascunhar algumas premissas que levem a debater o pixel da voz. Mais uma vez, voltamo-nos às metáforas fotográficas: a noção de grão como uma espécie de técnica ótica de formação da imagem, ligada a uma cultura analógica, passa a conviver com o pixel, o processo de formação de pontos de imagem de forma digital, através de combinações numéricas dentro da cultura digital. O pixel da voz lança luz sobre um sistema de produção vocal que está atrelado ao computador e aos programas de ajuste, correção ou distorções vocais, gerando aparatos que tangenciem noções prévias de original-e-cópia e turvando premissas que indiquem uma relação binária de causa-e-consequência para o processo de vocalização digital. Na medida em que a voz, nos sistemas de produção musical, desde a sua captação, já se transforma num arquivo de áudio pronto para ser modulado e processado, emerge uma questão ligada à própria dinâmica de simulação existente nos meios de produção digital (Campanelli, 2010). Debater o pixel da voz significa discutir o sistema de produção musical que tenta enxergar a convivência de variadas experiências vocais na cultura contemporânea: desde a ideia idílica dos trovadores, cantadores populares, que se apresentam nas feiras livres, não usam microfones, cantam a plenos pulmões; passando pelas apresentações ao vivo, com dispositivos elétricos, microfones, instrumentos musicais, nos shows de rock, de música pop, etc; chegando às experiências nos estúdios musicais, nos computadores caseiros, nos programas baixados na internet que “mixam” vozes, nos aplicativos baixados em celulares que “brincam” com a digitalização das vozes. A ideia de pixel da voz tenta dar conta do fato de que, quando se trata de um artefato construído digitalmente, as formas de agenciamento, correção, distorção se dão na matriz numérica gerada de um arquivo, ou seja, tem-se a clara ideia de ubiquidade, de uma lógica calcada na manipulação como uma práxis. O pixel da voz nos permite perceber que é possível testar diversos modelos vocais a partir da multiplicação dos revista Fronteiras - estudos midiáticos 25 Thiago Soares arquivos de voz. Ou seja, estamos diante de um substrato simbólico passível de experimentos, de simulações e de variações de parâmetros previamente previstos. A voz passa a ser metonímia de um corpo, mas, sobretudo, metamorfose desse corpo na medida em que ela não mais se refere apenas àquela boca cantante, mas a um processo que leva em consideração o corpo em lógicas dispersivas, autônomas, não-previstas – apresentando-se numa espécie de ideal de autonomia do resultado final com o corpo-origem. O pixel da voz prevê ideias ligadas à remixagem, à bricolagem, ao sampleamento, ou seja, a junção de texturas de outras vozes junto a uma matriz vocal que está sendo “trabalhada”. Outros corpos são agregados a uma matriz, gerando o que podemos chamar de matrizes vocais sincréticas – e que não se pode sequer elencar que vozes foram usadas na formatação de um determinado manancial. A possibilidade de trocas de arquivos na internet, a disponibilidade de vocais em ambientes de compartilhamentos de som, entre outras dinâmicas, agem sobre as formas de produção de vocais de corpos que cantaram, mas, também, foram remixados a outros vocais. Dentro do sistema de produção musical, o conceito de pixel da voz tenta arregimentar, portanto, a ideia de que, hoje, diante do farto aparato de arquivos de som, talvez seja mais complexo enxergar uma relação tão linear entre voz e corpo, como a proposta por Roland Barthes em seu “O Grão da Voz”. Poderíamos estar ouvindo hoje a voz de um corpo que, na verdade, é a bricolagem de outras vozes, outros corpos, centrados num modelo que vai ser “acoplado” a um performer. Pensar o pixel da voz parece nos ser útil para discutir que, diante dos aparatos de produção musical, é possível “dar a voz” a alguém e não simplesmente captar essa voz. Cria-se uma voz e se diz que essa voz pertence a um corpo. Vou me servir de uma metáfora bastante simples para tentar traduzir essa máxima: a do ventríloquo. As vozes que ouvimos hoje nas canções, no rádio, nos nossos aparelhos de MP3 podem não ser as vozes dos artistas que as cantaram, mas sim, simulações construídas em estúdio, geradas dentro de parâmetros consagrados pela indústria fonográfica e do audiovisual e cujos cantores passam a apenas “dublar” as “suas” vozes. Há obviamente uma relação tensa de valores dentro da cultura da música e toda uma gama de discursos ligados a noções de autenticidade e sinceridade de artistas que “cantam ao vivo”, “não dublam”, “são verdadeiros artistas da música e não invenção de gravadoras e de produtores”, entre outros argumentos largamente disseminados pela crítica – seja ela profissional em veículos jornalísticos ou na internet, em fóruns e redes sociais. 26 Vol. 16 Nº 1 - janeiro/abril 2014 Em suma, o que tentamos discutir neste texto são rascunhos sobre os processos de digitalização do “grão” da voz a algumas premissas sobre o pixel da voz como um conceito capaz de dar conta de processos complexos de produção, execução e escuta musical. Reconhecemos assim, como nas premissas barthesianas, que há uma reconfiguração do ethos da música e dos processos de significação – que são constituídos historicamente. Voltando a Barthes, seguimos na ânsia de tratar a voz como um dispositivo de linguagem, sempre a partir de uma dinâmica dual. Ele nos diz: “o que vou tentar dizer do “grão” é apenas o lado aparentemente abstrato, a conta impossível de uma emoção individual que eu sempre experimento em ouvir alguém cantar” (Barthes, 1977, p. 185). Parafraseando: o que vou dizer do pixel é apenas o lado metamorfoseante da voz na cultura digital, a síntese de uma emoção que experimento ao ouvir alguém cantar e a incerteza de não saber a origem daquela voz, daquele corpo-ventríloquo que eu escuto, não sei de onde vem a voz, mas, ainda assim, me toca e me afeta. Referências AGAMBEN, G. 2012. Profanações. São Paulo, Boitempo, 95 p. BARTHES, R. 1977. The Grain of the Voice. In: R. BARTHES, Image, Music, Text. New York, Hill and Wang, p. 180-187. BARTHES, R. 1984. A Câmara Clara. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 192 p. BARTHES, R. 1985. Cy Twombly: Works on Paper. In: R. BARTHES, The Responsibility of Forms. 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