Rastros e imagens sobreviventes na
era de Aquarius: corrosão e gentrificação
na metrópole de Kléber Mendonça Filho1
Renato Cordeiro Gomes e Tatiana Oliveira Siciliano
Resumo
Os filmes de Kléber Mendonça Filho, especialmente
Aquarius (2016), propiciam uma reflexão sobre as
representações da metrópole e suas implicações
políticas e éticas. Discute-se o direito à cidade
(Lefebvre) a partir do imperativo do progresso – o
binômio demolição/construção, o apagamento da
memória, combinado aos processos de gentrificação.
A resistência a tais processos marca a trama,
centrando-se na protagonista, à qual podemos atrelar
as categorias “rastro” (Benjamin) e “sobrevivência da
Imagem” (Didi-Huberman). A cidade contemporânea
é alegorizada nas imagens do câncer e dos cupins,
A tarefa do historiador das imagens, por mais
modesta que seja – pois as imagens são vestígios de histórias, traços, sintomas –, não se
assemelha apenas a uma arqueologia, uma vez
que escava o que a representação midiática
tende a recobrir, mas também a uma tomada
de posição crítica, visando a fazer despertar
uma memória na atualidade ou uma atualidade na história. É, com efeito, o que poderíamos
chamar o caráter intempestivo de toda análise
consequente das imagens.
DIDI-HUBERMAN. La condition des images, 2011,
p. 101
que remetem à corrosão: a doença do corpo humano e
urbano, cujo lócus é a metrópole.
Palavras-Chave
Imagens duplas:
Cinema de Kleber Mendonça Filho. Representação da
demolição X construção
cidade contemporânea. Fenômeno de gentrificação.
“O filme é meu e quem manda nele sou eu”2.
Eis a resposta de Kléber Mendonça Filho, por
Facebook, quando questionado sobre a ocultação
das “Torres Gêmeas” – como são chamados os
edifícios Pier Maurício de Nassau e Pier Duarte
Coelho – da sequência de fotos que apresenta
Renato Cordeiro Gomes | renatocorgomes@gmail.com
Doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro – PUC-Rio, Brasil. Professor Associado da PUC-Rio.
Recife logo no início de seu filme Aquarius (2016).
A alusão às torres estadunidenses, derrubadas
Tatiana Oliveira Siciliano | tatianasiciliano@puc-rio.br
em 11 de setembro de 2001, não é gratuita. As
Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ, Brasil. Pós-doutora em Sociologia pela UFRJ e
professora do Departamento de Comunicação da PUC-Rio.
imensas edificações recifenses, com 41 andares
e 134 metros de altura, podem ser vistas de
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DOI: https://doi.org/10.30962/ec.v21i1.1438
retorna, em diferença. Essas imagens (a do
altas da capital. Tal empreendimento, situado no
cartão-postal com os tais edifícios e o fotograma
Recife Antigo, foi realizado pela Moura Dubeux
exibido no filme sem eles) podem remeter à ideia
e protagonizou uma longa batalha judicial,
da demolição (denotação e metáfora), por sua vez,
de 2005 a 2011, cuja sentença foi favorável
conjugada à dialética destruição/construção que
à construtora3. A polêmica foi causada pelo
configura um traço forte da modernidade e seus
desagrado de se ter na paisagem urbana arranha-
paradoxos. Um deles centra-se em sua incessante
céus tão próximos a um conjunto arquitetônico
busca pelo novo, fundando uma ambivalente
histórico, tombado pelo IPHAN, às margens de
tradição de negação que aciona pares antinômicos
um cartão-postal da cidade: o encontro do Rio
como antigo/moderno, tradição/ruptura,
Capibaribe com o Oceano Atlântico.
continuidade/originalidade, atraso/progresso, etc.5.
A construção dessas Torres Gêmeas recifenses
A construção de arranha-céus na parte antiga do
representou uma ruptura com uma antiga tradição
Recife encena o sonho de uma cidade “imaginada
histórica, em favor do progresso. Imagem dupla
como futuro” – com a imagem ascensional
que evidencia a marca de tal “ruptura”4 que
reduplicada, mimetizando o World Trade Center6,
logo se tornará vestígio de história, obsoleta,
a arrogância do poder do mundo financeiro
decadente, mas que pode ser recuperada enquanto
globalizado. Essa mesma imagem é “destruída”
intempestiva, uma memória sedimentada que
no início de Aquarius quando o diretor a apaga
1 Outra versão deste trabalho foi apresentada no GT Cultura das Mídias do XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdade Cásper
Líbero, São Paulo - SP, 06 a 09 de junho de 2017.
2 Cf. sites do JC online e da Folha de São Paulo. Disponíveis em: http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/cinema/
noticia/2016/09/04/foto-postada-no-facebook-de-aquarius-sem-as-torres-gemeas-repercute-nas-redes-251602.php e http://
www1.folha.uol.com.br/poder/2016/12/1838023-torres-gemeas-de-recife-foram-alvo-de-protesto-no-filme-aquarius.shtml.
Acessado em 15/01/2017.
3 Cf: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/12/1838023-torres-gemeas-de-recife-foram-alvo-de-protesto-no-filmeaquarius.shtml. Acessado em 15/01/2017.
4 Para Octavio Paz, o moderno não pressupõe uma continuidade do passado no tempo presente, mas a sua ruptura. “O que
distingue a nossa modernidade da modernidade das outras épocas não é a celebração do novo e surpreendente, embora isso
também conte, mas o fato de ser uma ruptura: crítica do passado imediato, interrupção de continuidade” (2013, p.17).
5 Para Compagnon (1996), o pós-moderno por se constituir em uma reação ao moderno, acaba reproduzindo a própria ruptura.
Para outros pensadores, a pós-modernidade perdeu os poderes de negação requeridos pela modernidade (ver Paz, 2013;
Vattimo, 1996 e Lyotard,1993).
6 Em Power inferno, Baudrillard (2003) reflete sobre o acontecimento maior mundial, que foi “o desabamento das torres”,
“que eram o emblema [da] potência” americana (p.14), por isso “ao atacá-las, os terroristas atingiram o centro nevrálgico
do sistema” (p.13). As duas torres, conforme o autor, significavam o protótipo do sistema globalizado e sua força estava na
duplicação, “se houvesse apenas uma, o monopólio não estaria perfeitamente encarnado. Somente a duplicação do signo
acaba realmente com o que ele designa” (p.13). Sobre essa questão ver também Gomes (2004).
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diversos pontos da cidade, por serem as mais
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digitalmente; apagar, aí, pode significar um gesto
como se vê no filme homônimo do mexicano
de resistência e ruptura, por fornecer outro
Alejandro Iñárritu (2006).
As cidades brasileiras – que no projeto
um estado de coisas, considerando que, como
republicano aspiravam a ser Paris, a capital
expressa Didi-Huberman, “numa imagem, não se
do século XIX – foram cedendo em favor da
pergunta somente que história ela documenta e de
imagem norte-americana7, incorporando ao
qual história é contemporânea, mas também qual
nosso imaginário urbano a representação do
memória ela sedimenta, de qual reprimido ela é o
skyline. Uma urbe deseja “imitar” Nova York para
retorno” (2011b, 95).
poder oferecer ao “espectador”, “aos ordinários
da cidade”, aos consumidores do estilo de vida
Por outro lado, esse jogo de aparição e
urbano, a ficção e a ilusão totalizadora, de “um
apagamento, espécie de esconde-esconde
universo que se ergue no ar”. A matriz desse
acionado pela tecla de delete do computador, faz
“discurso utópico” – como denota o próprio
a imagem evocar uma cidade que aspira ao céu e
apelido – “torres gêmeas” – da Moura Dubeux
se mostra sempre em construção, à semelhança
era a visão do 110º andar do World Trade Center,
de Tecla, cidade descrita a Kublai Khan por
antes de 2001, como premonitoriamente explora
Marco Polo (CALVINO, 2008). E mais: remete,
Certeau (2008). Projetos urbanos concebidos
ainda, à Babel bíblica, imagem que frequenta o
como “espetáculos da modernidade”8, exibidos
imaginário ocidental, no urbanismo, nas artes
como mercadorias nos guias de viagem, city tours
plásticas, na literatura, no audiovisual, nas
e cartões postais9, comercializam a “experiência”
redes sociais, transformando-se em imagem
(mais precisamente a vivência, Erlebnis, na
midiática, recorrente (GOMES, 2008). Parece
nomenclatura de Benjamin) ao explorar a
que o mundo tornou-se uma Babel globalizada,
própria sensação do “choque”10 visual provocado
7 Sobre essa questão ver Siciliano, 2016.
8 Jaeho Kan (2009) utiliza a obra de Benjamin, principalmente As Passagens, para discutir a indústria do entretenimento (Lojas
de Departamento, panoramas, cinema, Exposições Universais, etc.) associada à tecnologia que desponta no final do século XIX.
9 As torres aparecem como ponto turístico no TripAdvisor. a href=”https://www.tripadvisor.com.br/LocationPhotoDirectLinkg304560-d2359530-i54374430-Recife_Antigo-Recife_State_of_Pernambuco.html#54374430”><img alt=”” src=”https://
media-cdn.tripadvisor.com/media/photo-s/03/3d/b0/1e/recife-antigo.jpg”/></a><br/>. Acesso 15 jan 20177.
10
Bem Singer (2004) – a partir de Simmel, Kracauer e Benjamin – sublinha como a experiência moderna nas grandes
cidades foi “concebida como um bombardeio de estímulos”, choques e sobressaltos “causado[s] [por] um aumento radical
na estimulação nervosa e no risco corporal” (p.96). Uma modernidade que se forjou por “hiperestímulos” oferecidos pelos
novos meios de comunicação de massa e novidades na encenação do “espetáculo” moderno. Lembre-se que “espetáculo”
é a festa pública.
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apagamento digital é, de fato, um sintoma de
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projeto de cidade. O jogo demolição/construção/
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pelo contraste dos espigões modernos com as
converte-se em pânico e medo generalizado dos
construções antigas, análogas às fotomontagens
“espectros perigosos”. Os pobres passam a ser
de Paul Citroën, aluno da Bauhaus11.
percebidos como potenciais criminosos, ameaças
com seus adornos e objetos, representa o “espaço
entretanto, lado a lado com o imperativo de
fetichista” no qual se imaginam protegidos
“demolir”, cuja consequência, dentre outras,
das ameaças indiscerníveis da vida moderna
é apagar memórias. O imaginário dos bairros
(BENJAMIN, 2007; MATOS, 2006). Quando até
“revitalizados” acaba por expulsar seus antigos
o santuário-lar burguês percebe-se ameaçado,
habitantes para outros locais, devido à elevação
“as metrópoles tendem a estado-policial em
do custo de vida, processo conhecido como
que a força se privatiza como foi privatizado o
gentrificação12. A verticalização favorece a
patrimônio público (...)” (MATOS, 2006, p.264) e
segregação e o isolamento dos habitantes, acabando
os serviços de segurança privados surgem como
por potencializar o medo e o fechamento dos novos
uma opção mercadológica.
moradores em muros protegidos por serviços de
segurança e câmeras de última geração dos olhos e
Embora Clara, a protagonista de Aquarius, ainda
do contato com as “classes perigosas”.
tenha a capacidade de resistência, a narrativa, que
configura um processo de gentrificação, revela que
Olgária Matos (2006 p. 264) adverte que a
“nada mais escapa às leis de mercado; a reificação
insegurança apresenta uma origem dupla: o medo
se torna universal na passagem da economia de
de um perigo concreto e um temor incondicional
mercado para a sociedade de mercado, todas as
inerente à condição humana. Contra uma chuva
dimensões da vida são determinadas pelo fator
torrencial, é possível abrigar-se em local protegido;
econômico, o espaço público, a vida privada e
já no caso de um perigo existencial, a incerteza
a intimidade” (MATTOS, 2010, p.151). Assim,
11
Ver fotomontagem Metropolis(1923). Disponível em: https://www.moma.org/interactives/objectphoto/objects/83984.html.
Acessado em 02/11/2017.
12
A socióloga britânica Ruth Glass foi a primeira a conceituar gentrificação, em 1964, a partir de pesquisa sobre os movimentos
imobiliários e “melhorias materiais” ocorridos em algumas regiões centrais e por vezes, históricas londrinas, antes avaliadas
como deterioradas. Tais movimentos provocam a elitização daquela localidade e substituição da população de origem por
moradores mais abastados e capazes de arcar com o aumento do custo de vida. Cf. Bataller, 2012 e Harvey, 2013. Neil Smith
rediscute o conceito a partir de uma perspectiva contemporânea, baseada no processo de reurbanização de Nova York. Para
Smith, a “regeneração urbana” não pode ser mais compreendida, como na primeira fase estudada por Glass, na chave da
“anomalia local”, mas entendida como parte das transformações econômicas, políticas e sociais urbanas, indissociáveis
das atividades de consumo e de lazer. O desenvolvimento imobiliário, incluindo sua dimensão especulativa, tornou-se vetor
fundamental à economia urbana, coadunando-se com os ventos neoliberais. Por outro lado, crescem os grupos que resistem
ao fenômeno, ocasionando uma tensão (e repressão) entre as diversas instituições públicas e privadas contra esses protestos
(BIDOU-ZACHARIASEN, 2006).
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O fascínio do projeto de “construir” caminha,
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ao patrimônio e à vida. O interior do lar burguês,
serviço da fortaleza de civilização que invadiu,
status quo do progresso faz com que todas as
com marginalização e agressividade, os espaços
coisas percam seu caráter intrínseco, enquanto
urbanísticos do passado” (ARGULLOL, 1994, 58).
a ambiguidade substitui a autenticidade”
Simulacro da construção novaiorquina, as torres
(BENJAMIN, apud MATTOS, 2010, p.151).
da Moura Dubeux, apagadas no filme, encenam a
cidade “selva” e “turbilhão – na qual “a barbárie
Os arquitetos e engenheiros – no filme,
acossa e ameaça transbordar a cada instante”
personificados pelos funcionários da
(ARGULLOL, 1994, p. 65). As duas construções
construtora Bonfim, e na cidade de Recife pela
altíssimas impõem-se aos pequenos edifícios,
construtora Moura Dubeux13 – ao verticalizarem
isolam as elites em torres de marfim climatizadas
hiperbolicamente a cidade, acabam por produzir
e de frente para o mar, destroem a tentativa
uma “micrópolis”, “subcidade” “isolada” e
de integrar e promover o “direito à cidade”14,
“claustrofóbica”, onde “a arquitetura e a arte, sob
corrompendo uma camada média que segue o
o amparo hegemônico da tecnologia, põem-se ao
fluxo e vende o “velho” para adquirir o “novo”.
Figura 1: Foto panorâmica de Recife com as “torres gêmeas”
13
Responsável pelas torres gêmeas do Recife e por polêmicas, como a do condomínio de casas Joana Dhália, no Pina,
cujas unidades a referida construtora tentou adquirir de seus moradores para erguer quatros prédios de 40 andares em
seu lugar. Cf. O Berro, outubro/2011. Disponível para download em: http://www.unicap.br/oberro/jornais/2011-2%20-%20
Patrim%F4nio%20do%20Recife.pdf. Acessado em 14 de janeiro de 2017.
14
Lefebvre considera o “direito à cidade” o principal direito do homem, por indicar “a necessidade objetiva de acesso aos bens
de civilização que são fruto do saber científico, técnico e que necessariamente chegam ao plano da vida imediata, como são
os serviços de saúde, de educação e os bens culturais em geral, também riqueza da sociedade” (SEABRA, 2014, 14). A partir
dos conceitos de Lefebvre, David Harvey (2013) ressalta que um modelo de cidade não pode ser dissociado dos vínculos
sociais, dos estilos de vida, da relação com a natureza, do acesso à tecnologia, dos recursos urbanos e dos valores estéticos
e éticos que se desejam. Uma de suas premissas é que, para mudar as relações sociais e o sistema econômico, precisa-se
adotar o “direito à cidade” como “slogan e ideal político”.
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“a fantasmagoria ligada à avaliação crítica do
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O catalão Argullol (1994) ensina que o cinema
ser qualquer metrópole, com a intensificação
antecipa a história da cidade moderna. Nesse
de estímulos sonoros e visuais, seus riscos que
diapasão, o objetivo deste nosso texto é, a partir
geraram em seus habitantes um embotamento
da obra de Kléber Mendonça Filho, especialmente
sensível – o “caráter blasé” – que não deixa de
Aquarius (2016), refletir sobre as representações
ser um mecanismo de proteção contra a crise
da grande cidade contemporânea. Que perguntas
nervosa provocada pelo caos urbano (Cf. SIMMEL,
e que respostas as películas apresentam sobre o
2005[1903]) – a “nevrose”, como nomeava,
modo de viver nas metrópoles? O que é universal
recorrentemente, João do Rio, em suas crônicas,
e o que é local? Quais agentes, instituições e
reportagens e narrativas ficcionais.
ações impedem o “direito à cidade” por seus
heterogêneos habitantes?
Percebe-se, ao longo da película, que o diretor não
naturaliza o discurso da “cidade única”, ao não
Os dilemas ocidentais – tidos como universais
glamourizar as relações entre a cultura urbana e
– da cidade moderna, germe da urbe
o capital, que, como consequência, expulsam os
contemporânea, estão enunciados já na abertura
mais pobres das áreas revitalizadas (ARANTES,
de Aquarius. Ao som da canção “Hoje”, de
2000; VAINER, 2002). Desenha mapas afetivos
Taiguara (1968), aparecem fotografias em preto
e descreve sinais de localização. As pistas para
e branco da orla de uma cidade ao longo de
identificar as cores locais e descobrir-se que
diferentes décadas. Os prédios substituem as
cidade é essa vão sendo dadas pela orla, pelo
casas e, paulatinamente, tornam-se mais altos.
sotaque, pelas placas que alertam para o perigo
Os carros invadem o espaço público, cada vez
do ataque de tubarões, marca da Praia de Boa
mais saturado. A cidade é Recife, mas poderia
Viagem. Escreve uma cidade com fissuras,
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Figura 2: “Torres gêmeas” aparecem removidas no filme Aquarius,
na foto panorâmica a partir da ponte estaiada da Via Mangue
vender seu apartamento, em um prédio pequeno,
com múltiplos pertencimentos, mas sem que tal
no qual só ela restou como moradora, para que
fragmentação produza ausências de ancoragem
a construtora que comprara as demais unidades
(VELHO, 2013). Aborda o presente a partir de
possa erguer um moderno espigão residencial.
rastros do passado, dimensionados na “presença
Reivindicar o direito à cidade também é resistir
do agora”. Tempos que deixam marcas no corpo e
às transformações e ao apagamento das
revelam, em forma de imagens, recordações (pela
lembranças. Cultivar histórias que se localizam
etimologia, volta ao coração e recupera os afetos),
em pontos específicos do mapa urbano é deixar
as experiências dos personagens que as viveram.
rastros, uma presença que aponta para um
Memórias distorcidas, que se amalgamam sem que
tempo já ausente (SEDLMAYER e GINZBURG,
as imagens possam ser facilmente discernidas, e
2012), mas que ecoa no presente.
cujos fragmentos são sempre recombinados, como
um canteiro de obras.
Hoje,
trago em meu corpo as marcas do meu tempo
Meu desespero, a vida num momento (...) (TAIGUARA, 1968)
Kléber Mendonça Filho, à semelhança do trapeiro
baudelairiano (BENJAMIN, 1994) reconstrói,
a partir de rastros e fragmentos, a história de
uma personagem, seus afetos, seus amores, suas
perdas, tudo isso entrelaçado à orla de Recife.
“Assim seus vestígios [Spur] estão presentes de
muitas maneiras nas coisas narradas, seja na
A sequência de fotos – combinada à canção de
qualidade de quem as viveu, seja na qualidade de
Taiguara – anuncia a estratégia narrativa do filme:
quem as relata” (OTTE, 2012,71). Clara pertence
fala de marcas do tempo e de rastros. Memórias
a uma elite cultural e econômica. No entanto,
tecidas com os fios coletivos, repertórios
seu principal capital é a experiência e as marcas
retirados de um patrimônio compartilhado, mas
(inclusive da superação de um câncer) em seu
subjetivamente desenhados em cada trajetória.
corpo. Tal experiência é narrada não pela ótica
Memórias sobre as experiências em uma cidade,
de um vencedor, mas de um bricoleur que junta
lugares de encontro, evocações de saudades,
fragmentos de livros, músicas, álbuns de retratos.
marcas de vidas que vão sendo apagadas em
Sua casa, à semelhança de um colecionador, é
nome do “progresso”. Essa é a luta travada
decorada com livros, discos de vinil, quadros,
pela protagonista Clara, de 65 anos, jornalista e
cultura pop lado a lado do artesanato popular,
escritora de classe média alta.
em um estilo despojado e cheio de significado
pessoal, contrapondo-se à estética ordenada,
Clara é a representação de uma geração e da
impessoal, sem magia e clean dos condomínios
cidade de Recife, que resiste às pressões para
de luxo que se pretendem erguer naquele espaço,
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tensões, conflitos entre indivíduos complexos
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na qual nada se gruda, por ser desprovida de
menos para seus vizinhos, que já abandonaram o
aura (BENJAMIN, 1994).
lugar. Contudo, apesar do contraste com os vazios
de Clara e seus rastros inundam o ambiente e
e dramatiza os rastros (que são imagens)
afirmam a vontade individualista e burguesa de
sempre ameaçados de serem apagados ou de
deixar rastro (BENJAMIN, 1994).
não serem mais reconhecidos como signo de
algo que assinala (GAGNEBIN, 2012). Neste
sentido, a personagem Clara é um rastro
ameaçado de desaparecer, na sua história
de vida, pelo câncer e na sua luta contra um
câncer social e metafórico, representado pelos
O estatuto paradoxal do rastro remete à questão
da manutenção e do apagamento do passado,
isto é, a vontade de deixar marcas [estratégia
da personagem Clara], até monumentos de uma
existência humana fugidia [do apartamento], de
um lado, e às estratégias de conservação ou de
aniquilamento do passado, do outro. (GAGNEBIN, 2012, 27)
cupins, por sua vez, símbolo da construtora.
O câncer e os cupins alegorizam a dialética do
tempo e do espaço, realizando, nas imagens
O prédio Aquarius e o apartamento de Clara
cinematográficas, o princípio da corrosão,
são centrais, configurando-se em personagens.
ao mesmo tempo em que são também ecos
Ambos se contrapõem ao conflito estruturante
midiáticos dos processos de gentrificação.
do filme: o projeto da construtora Bonfim.
Se o apartamento de Clara carrega marcas e
Memórias involuntárias e afetivas, que, na
vestígios, configurando-se em um local que
personagem Clara (a memória das sensações),
pode ser chamado de lar, o projeto da Bonfim
são acionadas pelo cheiro do mar, pela textura da
é um imóvel frio, impessoal e sem marcas. A
areia, pelo choque da água fria quando mergulha.
resistência é permitir-se cultivar subjetivamente
Imagens e cores de um lugar cuja paisagem do
pela cultura objetiva, ou seja, refinar-se pelos
entorno se transformou, mas que ainda imprimem
livros, pela música, pelo uso “apropriado de
uma percepção de permanência. O apartamento de
objetos formados”, em “um processo que ocorre
Clara conta a sua história a partir dos objetos que
numa adaptação única e num entrelaçamento
o compõem: a rede, os discos de vinil, os livros,
teleológico entre sujeito e objeto”, que leva à
a cômoda usada como aparador (herança de
“totalidade interior” (SIMMEL, 2013[1903]).
família), os objetos. É o ponto de convergência da
É o que Clara faz de sua história. Mas sua
sociabilidade familiar, do repouso, das memórias –
resistência também é denunciar as práticas
rastros submetidos à corrosão. O local imprime a
exteriores que não servem ao cultivo de si, que,
cartografia afetiva de Clara, mas não deixa legado.
em nome do progresso, apaga as lembranças e as
Importa para ela, não para seus filhos e muito
experiências de seus habitantes.
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A narrativa recolhe os restos de um tempo
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das demais unidades do prédio antigo, a presença
A fisionomia urbana e o espírito dos citadinos
de pó... O som da rua, do cotidiano, invade
são moldados pelo pendular movimento da
a cena contando a história de gente comum,
“destruição/construção”. Clara “busca o que
vivendo situações ordinárias que, no entanto,
ainda resta de idílico, de cidade compartilhada,
evidenciam questões candentes da cidade
de maneiras de viver a cidade que resiste à fúria
moderna: o sentimento de medo permanente que
expansionista” (GOMES, 1994,94-95), uma vez
promove novos negócios como segurança privada
que a atrofia da experiência, perda da memória,
(equipe que chega oferecendo seus serviços
converte-se em ruína da sociabilidade.
aos moradores em um bairro de classe média),
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Os discursos sobre Recife no
indiferença protetora (caráter blasé simmeliano),
cinema de Kléber Mendonça Filho
as aspirações de consumo (a televisão maior que
chega a uma casa provocando reação agressiva
O Recife de Kléber Mendonça Filho, sem deixar
da vizinha), a solidão (da dona de casa), a
de ser identificado pela cor local, carrega todas
fragilidade das relações (dificuldade do jovem
as tensões relacionadas ao urbano universal, no
casal de começar e manter uma relação afetiva).
qual o capital financeiro predomina. O curta Recife
São transformações que acontecem no modo de
Frio (2009), uma ficção científica que se constrói
viver dos habitantes de qualquer grande cidade: a
como um documentário jornalístico da televisão
gênese do homo economicus e do homo urbanus,
argentina, mostra os efeitos de um meteorito que
como nos ensina Simmel (2005[1903])
cai sobre a cidade tropical, transformando-a em
uma metrópole gelada. As mudanças climáticas
Ao mesmo tempo, o filme mostra a decadência que
potencializam as estratégias de dominação e
não perde a arrogância de uma forma senhorial
de distinção das elites (o quarto de empregada
de pensar, bem característica do Brasil e com
pequeno e quente, que, com a nova temperatura,
o colorido de Recife, demonstrada por alguns
torna-se o local disputado), a lógica comercial
personagens. Entre eles, está o Sr. Francisco, dono
dos que vivem do turismo praiano, as táticas de
de apartamentos em vários prédios, que tem um
sobrevivência dos artesãos e ambulantes, que se
engenho que está de “fogo morto” (não produz
adaptam e fazem até piadas com as mudanças, e o
mais) e que “manda” no bairro. Há também o
jogo da especulação imobiliária.
neto dele, que apesar de ter outro modo de se
apresentar e de tratar as pessoas, trabalha para
Em O som ao redor (2013), um dos principais
o avô e obedece à lógica do compadrio e das
protagonistas é o som, que irrompe a cena como
alianças. Há o outro neto, viciado – um problema
ruído, como cacofonia urbana: o vendedor, o
das metrópoles – que rouba aparelhos de som de
carro, o cachorro que late sem parar, o aspirador
carros, mas, mesmo assim, continua sustentado
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a sensação de desproteção acompanhada pela
passada a apresentação inicial, com imagens de
combatidos pela segurança de aluguel, numa
Recife a partir de sua orla, a protagonista Clara
demonstração de que, no Brasil, a lei não é igual
é o eixo da narrativa. A câmera a segue em todas
para todos. Tal enredo evidencia a sobrevivência
as cenas, e a história é contada sob a perspectiva
da figura do senhor de engenho no mundo urbano,
de sua trajetória, em um pingue-pongue entre
a sobrevivência do Brasil arcaico.
passado e presente.
O som ao redor faz uma fotografia da
A primeira parte, intitulada “o cabelo de Clara”,
transformação e da convivência de formas de
localiza a época por legenda (1980), e a cidade a
viver modernas e arcaicas, mas já evidencia a
partir da imagem da placa de um carro em uma
dissolução dos laços da comunitas, na passagem
praia, no qual estão o irmão, a namorada do irmão
para societas. O declínio e o desinteresse pelo
(futura cunhada), duas crianças e Clara. O close
espaço público e pelo coletivo (SENNETT, 2014)
da câmera na placa identificando a cidade (Recife),
são mostrados em diversas situações, na própria
plano geral no edifício azul (cenário do filme), com
privatização da segurança e no isolamento
várias casas e prédios baixos ao redor, e o mar
dos prédios e das pessoas que neles habitam,
em frente, situam a ação na Praia de Boa Viagem.
pela vigilância ostensiva acompanhada da
Eis os dois elementos principais do filme: Clara
indiferença ao outro. O tom da transformação
e sua relação com o seu apartamento, herança
já é enunciado no início do filme, assim como
de família, onde seus filhos cresceram, local que
Aquarius, o diretor “abre com fotos antigas
guarda as memórias que a fazem se lembrar de
retratando paisagens das plantações de cana
quem ela é. É nessa cena que uma Clara, de cabelos
de açúcar em Pernambuco, funcionando quase
curtíssimos, por volta de 30 anos, casada e mãe, é
como uma epígrafe cinematográfica inspirada
homenageada pelo marido por ter vencido o câncer.
por Casa Grande e Senzala, tudo isso ao som-
A homenagem se estende à Tia Lúcia, que completa
canção Cadavres en Série, de Serge Gainsbourg”
70 anos, louvada por seu pioneirismo em questões
(PRYSTHON, 2017, p.10).
profissionais e sexuais.
Apesar de dar voz a vários personagens, como
Ainda na primeira parte, acompanha-se a
Clodoaldo (líder dos vigilantes), João, Francisco,
passagem do tempo. Clara é apresentada de
Bia (dona de casa que se enfurece com o latido do
cabelos longuíssimos, aos 65 anos. A paisagem
cachorro da vizinha), O som ao redor não constrói
urbana de Boa Viagem já não mantém a mesma
a narrativa a partir da visão de um deles, pois
fisionomia dos anos 1980. O edifício Aquarius, a
tem a interação cotidiana, o silêncio e o ruído das
moradia de Clara, parece destoar dos altos prédios
ruas como condutores da trama. Já em Aquarius,
construídos ao redor, tanto no tamanho como na
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pela família, que impede que seus delitos sejam
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de todas as formas, inclusive pela imposição
sem porteiro ou vizinhos. Mas o mar que Clara
do medo, a vender o seu apartamento em nome
ora olha pela janela, ora nele mergulha, enfatiza
do progresso. Todos os demais proprietários
o sentido da permanência, da continuidade. A
já venderam e também a pressionam. Clara
praia, no entanto, já não é mais a mesma: o medo
reivindica o direito de não ceder, mesmo com
dos tubarões e dos afogamentos, a vigilância
a “generosa” oferta financeira da construtora.
do salva-vidas, o lazer comunitário destacado
Resiste a diversas coações, desde orgias no
na atividade de gargalhada coletiva da qual os
apartamento de cima, até ameaças veladas
moradores participam na areia. O clima amistoso é
e diretas. Afinal, se ela ainda mora lá e se as
quebrado com a vinda de meninos negros e pobres.
paredes estão firmes, o edifício existe, não é
A tensão aparece no rosto dos participantes e é
um fantasma, nem uma ruína (ou será que
posteriormente dissolvida pela fala do instrutor:
o espectral e os destroços – físicos, éticos e
“Tem lugar para todo mundo, vamos manter o
políticos já estão ali? The time is out of joint
respeito”. É uma passagem que assinala bem a
(SHAKESPEARE, Hamlet, Act 1, scene 5).
tensa convivência, nos espaços públicos, entre
classes sociais distintas. A desigualdade é,
A resistência às sabotagens da construtora
simultaneamente, uma vergonha e uma ameaça.
acontece na parte três, e final, intitulada “o
câncer de Clara”. A metáfora da cidade doente
A parte dois do filme chama-se “O amor de Clara”.
é recorrente. Valores são lentamente corroídos
É quando os afetos e desafetos da personagem são
sem que se sejam claramente objetivados, como
apresentados, os afetos, as relações familiares e
as paredes de uma edificação contaminada por
os amigos, mesmo que nem sempre seus filhos,
cupins ou um corpo tomado aos poucos pelo
especialmente sua filha, a compreendam como
câncer. Quase não se notam seu começo e seu
gostaria. A reivindicação ao cultivo da memória
avanço, só se percebe o mal quando a estrutura
e ao desejo de colecionar objetos sentimentais
desaba ou o corpo já está todo tomado, levando
– como livros, discos e retratos – fazendo-os
à morte do sujeito. No filme, é a lógica do capital
viver dentro de si e renascendo através deles
que promove a naturalização do imaginário de
(BENJAMIN, 1987) não pode ser entendida por
progresso, que “devora a cultura”, em vez de
uma visão mercantil – em que, quando gosta, é
“vincular” o “patrimônio cultural” à própria
“vintage”, e quando não quer mais, classifica como
“experiência” de quem vive (BENJAMIN, 1994).
velho, no sentido de obsoleto.
Clara, contudo, segue a lógica progressista
tropical, que, quando se faz necessária, não hesita
Como desafeto, a construtora Bonfim antagoniza
em se valer do privilégio patrimonialista (“quem
o grande embate da trama. Clara é pressionada
não é Cavalcanti, é cavalgado”) para descobrir “os
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simplicidade. Também parece bem menos povoado,
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cupins” que podem corroer as paredes do próprio
se agitam, atuam (DIDI-HUBERMAN, 2013). Os
sistema e interferir em seus interesses.
rastros agregam os nós temporais em que cada
lugares e de tempos diferentes, assegurando que
ressignificam o jogo destruição/construção, essa
as imagens também sofrem de reminiscências
polaridade que molda o modernismo do século
(DIDI-HUBERMAN, 2011b). Fundida às imagens
XX, que se associa a estilhaçamento, trituração
dos cupins e do câncer, quando também amalgama
da vida/desenvolvimento, renovação (BERMAN,
a personagem Clara e o prédio Aquarius, ambos
1986). Tal pragmatismo moderno estende-se pelo
sobreviventes, a doença de Clara, que mutila
século XXI, no qual o sonho utópico da cidade
o seu corpo, remete à ameaça de mutilação
ideal caiu por terra, levando as intervenções
de seu apartamento, extensão dela própria. O
urbanas do estado e das corporações a atrelarem
apartamento (e o prédio Aquarius) também
tais valores à gentrificação, que vai se agudizando
sobrevive(m), mas alegoriza a doença social
nas megalópoles contemporâneas. De acordo
da cidade: o câncer urbano, a prepotência da
com Argan, a demolição é a “enlutada alegoria da
construtora (o poder do dinheiro).
radical incompatibilidade do que resta da cidade
com a vida de metrópole” (1992, p.7).
Os cupins podem ser associados à peça A torre
de Babel, de Fernando Arrabal, que dramatiza a
Esta premissa marca a era de Aquarius, o filme
decadência da duquesa de Latídia, cujo castelo é
que busca preservar a dimensão da capital da
leiloado pela Justiça, mas ela se recusa a entregá-
cinematografia de Kleber Mendonça Filho, ao
lo aos proprietários americanos que construirão
colocar em relevo os rastros que resistem à fúria
em seu terreno um hotel e um supermercado. Para
urbanística contemporânea. Esses rastros (Spur)
defender seu território, a nobre cega reúne um
que indicam um momento reminiscente como
exército de bêbados e mendigos, e, à maneira de
essencialmente anacrônico (intempestivo) é um
Dom Quixote, acredita que sua tropa é formada
presente em que as sobrevivências (Nachleben)15
de heróis e poetas. Enquanto a ação se desenrola,
15
Seria bastante rentável rastrear o conceito de Nachleben (sobrevivência), a partir, por exemplo, dos textos de Didi-Huberman
sobre Aby Warburg, ou na deriva dele. Entretanto, não há espaço, neste ensaio sobre o cinema de Kleber Mendonça Filho,
para essa tarefa, remontando à origem do conceito e estendendo para outros pensadores que o retomam. Esse estudo sobre
as teorias de Warburg se deve, sobretudo, ao colossal trabalho de Didi-Huberman, que pode nos oferecer rastros do conceito
de Nachleben. Tal conceito, no entanto, não pode ser pensado sem outros termos da obra do autor do Atlas Mnemosyne, a
exemplo de a “ciência sem nome”, o tempo e a história, o anacronismo, a imaginação, a palavra e a imagem, a sobrevivência
da Antiguidade, as fórmulas de pathos (Pathosformel), o objeto de contemplação como algo vivo, motivo de tensão, o
sofrimento como forma de conhecimento e de saber etc. Como diz Didi-Huberman: “trabalhar com Warburg é que nele nada é
seguro, pois não conseguiu comentar seu Atlas nem escrever um livro sequer, não conseguiu dar uma ideia clara e pública de
sua teoria”. Ver DIDI-HUBERMAN, 2011a; CARTA, 2011 e REINALDO, 2015.
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O contraste e a tensão encenados na película
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imagem leva a pensar como uma montagem de
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Sobrevive, contudo, a capacidade humana de
ARGULLOL, Rafael. “A cidade turbilhão”. In: Revista
do Patrimônio. Número 23, 1994.
resistir e de sonhar. Os cupins são, portanto,
BAUDRILLARD, Jean. Power Inferno. Porto Alegre:
a metástase que, silenciosamente, corrói a
Sulina, 2003.
integridade sadia do corpo humano e urbano.
BATTALLER, Maria Alba Sargatal. “O estudo da
Ou como no poema “O espelho partido” de João
gentrificação”. In: Revista Continentes (UFRRJ), ano
Cabral de Melo Neto (1988, 309):
1, número 1, 2012.
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ouve-se o ruído dos cupins destruindo o castelo.
A morte pôs ponto final (...)
escolhidas. Volume II. São Paulo: Brasiliense, 1987.
Como câncer não como quisto.
______. Magia e Técnica. Arte e Política. Obras
Como câncer: signo da vida
Que multiplica e é destrutiva,
escolhidas. Volume I. São Paulo: Brasiliense, 1994.
______. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG,
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
Câncer que leva outro mais dentro,
2007.
O câncer do câncer, o tempo.
______. “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade
técnica”[1939]. In: Benjamin e a obra de arte:
técnica, imagem e percepção. Rio de Janeiro:
Na era de Aquarius, tempos de homens
partidos, o tempo é o câncer do câncer, e, nas
Contraponto, 2012.
BERMAN, Marshal. Tudo o que é sólido desmancha
imediações do presente, realiza o princípio
no ar. A aventura da modernidade. São Paulo:
da corrosão, que mata pelo excesso, embora
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possibilite resistir às pressões urbanas e
BIDOU-ZACHARIASEN, Catherine (org.). De volta à
reivindicar o direito à cidade, seja ela Recife,
cidade: dos processos de gentrificação às políticas
ou todas, quaisquer. Se a cidade é de seus
de “revitalização” dos centros urbanos. São Paulo:
habitantes e suas fantasias, ela já não oferece
tudo, porque ela mesma nos escapa. Torna-se
estranha, estrangeira, porque o urbano é o que
diariamente vem de fora para nos urbanizar.
Annablume, 2006.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo
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VELHO, Gilberto. Um antropólogo na cidade: ensaios
de antropologia urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
Filmografia:
AQUARIUS. Direção: Kleber Mendonça Filho. Brasil,
2016, 145 min.
BABEL. Direção: Alejandro González Iñárritu. Estados
Unidos, México e França, 2006, 143 min.
RECIFE frio. Direção: Kleber Mendonça Filho.Brasil,
2009, 24 min.
SOM ao redor, O. Direção: Kleber Mendonça Filho.
Brasil, 2013, 131 min.
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Notas sobre a estratégia discursiva do planejamento
Rastros y imagenes sobrevivientes
in the Aquarius age: corrosion
en Acuarius era: corrosión y
and gentrification in Kléber
gentrificación en la metropolis
Mendonça Filho metropolis
de Kléber Mendonça Filho
Abstract
Resumen
The films made by Kléber Mendonça Filho, especially
Las películas de Kléber Mendonça Filho,
Aquarius (2016), provide a reflection about the
especialmente Aquarius (2016), proponem una
contemporary metropolis representations and its
reflexión sobre las representaciones de las
political and ethical. The problematic of the right to
metrópoles y sus implicaciones políticas y éticas.
the city (Lefebvre) is discussed from the imperative
El derecho a la ciudad (Lefebvre) del punto de
of progress - relationship between demolition /
vista de lo imperativo del progreso - la demolición
construction, erasure of memory, combined with the
y construción, lo borramiento de la memoria, junto
gentrification processes. The protagonist resistance
con los procesos de gentrificación. La resistencia
action may be associated with the categories “trace”
de la acción de la protagonista marca la trama,
(Benjamin) and “survival of the Image”(Didi-
que podemos relacionar a las categorías “rastro”
Huberman). The contemporary city is allegorized in
(Benjamin) y la “sobrevivencia de la imagen”
an idea of corrosion: images of cancer and termites.
(Didi-Huberman). La ciudad contemporanea
The disease of the human body and of the urban
es alegorizada en las imágenes de cáncer y de
body, whose locus is the metropolis.
las termitas, que remetem a la corrosión: una
Keywords
enfermedad del cuerpo humano y urbano, propia de
Kleber Mendonça Filho films. Representation of the
la grand ciudad.
contemporary city. Phenomena of gentrification.
Palabras-clave
Películas de Kleber Mendonça Filho. Representación de
la ciudad contemporanea. Fenómenos de gentrificación.
Recebido em:
Aceito em:
02 de novembro de 2017
19 de março de 2018
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Trace and survival images
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passa a ser volume anual com três números.
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Marco Roxo
Programa de Pós-Graduação em Comunicação – UFF
marcos-roxo@uol.com.br
Vice-Presidente
Isaltina Gomes
Programa de Pós-Graduação em Comunicação – UFPE
Afonso de Albuquerque, Universidade Federal Fluminense, Brasil | Cláudia Lago,
Universidade de São Paulo, Brasil | Cesar Baio Santos, Universidade Federal do Ceará,
Brasil | Eduardo Pellanda, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil
| Francisco Rüdiger, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil |
Karina Woitowicz, Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil | Luis Mauro Sa
Martino, Faculdade Cásper Líbero, Brasil | Norval Baitello Jr, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, Brasil | Pedro Guimarães, Universidade de Campinas, Brasil
isaltina@gmail.com
EQUIPE TÉCNICA
castro.gisela@gmail.com
ASSISTENTES EDITORIAIS Márcio Zanetti Negrini e Melina Santos |
REVISãO DE TEXTOS Fátima Áli | EDITORAÇãO ELETRÔNICA Roka Estúdio
Secretária-Geral
Gisela Castro
Programa de Pós-Graduação em Comunicação
e Práticas de Consumo – ESPM
CONTATO | revistaecompos@gmail.com
ID 1438
A revista E-Compós é a publicação científica em formato eletrônico
da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em
Comunicação (Compós). Lançada em 2004, tem como principal
finalidade difundir a produção acadêmica de pesquisadores da área
de Comunicação, inseridos em instituições do Brasil e do exterior.
E-COMPÓS | www.e-compos.org.br | E-ISSN 1808-2599
Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação | E-compós, Brasília, v.21, n.1, jan./abr. 2018.
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