Portas Fechadas
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A JUVeNTUde margiinal procura uma saida
Renan Colombo
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Livro-reportagem produzido em 2008 como Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC) do curso de Jornalismo da
Universidade Positivo (UP), de Curitiba/PR.
Professora Orientadora: Elza Aparecida de Oliveira Filha
Fotografia: Banco de imagens SXC [www.sxc.hu]
Capa: Adriana Pereira
Contato com o autor: renancolombo@yahoo.com.br
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“Do rio que tudo arrasta se diz que é
violento. Mas ninguém diz violentas
as margens que o comprimem.”
(Bertolt Bretch)
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ÍNDICE
Nota do autor.......................................................... 7
Prefácio, por José Carlos Fernandes....................... 9
1. Entre celas e salas................................................ 11
I. Gabriel..................................................... 11
II. Amanda.................................................... 35
III. Arthur...................................................... 55
2. Vidas novas e vidas lokas................................... 75
I. Gabriel................................................... 75
II. Amanda................................................ 87
III. Arthur.................................................. 101
Agradecimentos....................................................... 117
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NOTA DO AUTOR
A fim de preservar a identidade dos adolescentes
entrevistados e em cumprimento às determinações do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), seus respectivos nomes, bem
como os de seus familiares, amigos e colegas de internação, foram substituídos por outros, ficctícios. Permanecem verdadeiros
os nomes dos demais entrevistados.
Todas as histórias contidas neste livro-reportagem foram
redigidas a partir de informações prestadas pelos entrevistados
consultados. No caso específico de infrações penais, admite-se a
possibilidade de outras versões para os fatos, mas como não é
objetivo deste trabalho investigá-las, são mantidas as versões dos
adolescentes.
O autor
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PREFÁCIO
Este texto está sendo cordialmente produzido pelo
jornalista José Carlos Fernandes, e estará concluído quando da
conclusão definitiva deste livro-reportagem.
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1. ENTRE CELAS E SALAS
I. GABRIEL
II. AMANDA
III. ARTHUR
Embora não faça da leitura um hábito, especialmente pela
manhã, quando divide o tempo entre o desejo de estender o sono
por valiosos minutos e a obrigação de apressar o passo para evitar
atrasos no trabalho, José era incapaz de ignorar as novidades
anunciadas pelos jornais naquela manhã de dezembro. O que lhe
interessava nos periódicos, contudo, não eram as corriqueiras
manchetes econômicas e tampouco os enfadonhos embates
políticos, sempre custosos a entender; a notícia que, de fato, mudaria
o ano prestes a iniciar lhe atraía os olhos no nada nobre caderno
policial: “Adolescentes em guerra na Fazenda Rio Grande”.
Aquela guerra José conhecia bem. Meses antes, o filho mais
velho fora uma de suas vítimas, ao se envolver numa briga de bar
com outros adolescentes. Agora, era chegada a vez de experimentar
o outro lado do front: o jornal noticiava que o segundo filho, aos
17 anos, estava preso sob a acusação de homicídio. É verdade que
a reportagem não identificava o jovem pelo nome, mas nem era
preciso: a ineficiente estratégia de usar iniciais deixava claro que
G.F.M. era Gabriel, mais um dos meninos da família Franco
Medeiros a se envolver em conflitos solucionados de forma bruta
e dolorida.
A aflição de José tivera início no dia anterior, antes do
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destaque dos jornais, quando da detenção do filho, feita pelas
autoridades com a truculência habitual: “Os policiais o agrediram.
Já tinham pegado ele, mas deram tiro perto dele quando ele já tava
algemado. Aquilo me revoltou. O piá já tá algemado! Pra que fazer
o encarceramento, a experiência precoce da punição. A minha
crítica vai no sentido de usar uma espécie de língua diferente pra
tratar de instituições que, na prática, efetivamente, produzem o
mesmo efeito. Como o que acontece lá é uma prisão efetivamente,
todo mundo fica tentando exorcizar esses termos”.
Gabriel estava conhecendo a polêmica de perto. A
possibilidade de receber atendimento psicológico individual
indicava que ali realmente havia uma proposta de tratamento
diferenciada, ao mesmo tempo em que a organização interna da
casa lhe causava a impressão de estar em uma prisão comum. Os
Censes possuem, por exemplo, uniforme próprio, regras
disciplinares, horários específicos para visitas e, claro, celas.
A B-9 era a que Gabriel ocupava naquele momento e de
onde saía para encontrar Iracema, quando então se punha a
conversar e refletir sobre os próprios passos. No início, porém, o
diálogo era bastante truncado, seguindo o ritmo característico das
conversas com adolescentes recém-chegados ao Centro:
“Geralmente, não é numa primeira conversa que você consegue
criar um vínculo com ele. É com o passar dos meses, até pegar
confiança”, conta Iracema. Para que seja proveitoso, acrescenta a
psicóloga, o diálogo neste momento inicial exige atenção e
sensibilidade aguçadas: “Eles escondem bastante coisa. Escondem
bastantes informações que você só pega com o tempo, em alguma
conversa, alguma palavra ou algum gesto também. Depois eles
contam, se abrem e pedem ajuda, acima de tudo”.
A Gabriel não faltavam motivos para solicitar auxílio. Nas
intimidades que contava a Iracema, que atende a outros 14 jovens
do Centro – a tarefa é compartilhada com Márcia Regina Corrêa,
também psicóloga e responsável pelo atendimento de igual número
de jovens –, o adolescente expunha algumas das dificuldades pelas
quais passara antes de chegar àquela sala.
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Entre os depoimentos diversos, o jovem narrava as
motivações que o levaram a cometer os primeiros delitos, aos 14
anos. Eram pequenos assaltos, realizados na companhia de amigos
e em busca de algo essencial na formatação da identidade juvenil:
a roupa. “Eu ia nas casas e, pá, enquadrava... mas não que era
direto. Eu não curtia roubar. Roubava só pelos panos. A gente
queria ter uns pano e não podia comprar; eu ia lá e roubava”.
A sinceridade do relato revela duas informações importantes
sobre o interlocutor. A primeira expõe suas preferências. Como a
maioria dos jovens do Iguaçu I, bairro periférico de Fazenda Rio
Grande onde morava na época, Gabriel se sentia à vontade trajando
roupas características do movimento hip-hop – os panos a que se
refere, tais quais calças ou bermudas alguns números acima do
manequim, camisetas quase chegando aos joelhos e tênis igualmente
grandes. Tudo eventualmente acompanhado por bonés e piercings,
numa harmonia que se completa com a música feita pelos grupos
de rap nacional, liderados pelos versos dos Racionais MC’s.
A outra informação contida na fala do adolescente é a
dificuldade financeira da família. Á época, o orçamento da casa
era formado pelos rendimentos do pai, que oferecia sua força de
trabalho a uma olaria; e da mãe, que interrompia os serviços
domésticos em casa para repetir o trabalho na residência de
terceiros. Embora muito bem-vindo, o reforço trazido por Dora
era apertado para, mesmo somado ao salário de José, prover as
necessidades dos quatro filhos.
Diante da carência de recursos, poucas opções restaram aos
pais que não colocar a piazada para trabalhar também, e, com
isso, mesmo sem saber, conflitar com os preceitos estabelecidos
pelo ECA, cuja preocupação sobre o tema é manifestada no artigo
60: “É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de
idade, salvo na condição de aprendiz”.
Não era aquela, definitivamente, a situação de Gabriel. O
que o adolescente aprendia, de fato, era a fazer tijolos, tarefa
desempenhada sob os olhos atentos do pai, oleiro desde os 18
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anos, muito mais por acaso do que por escolha: “Eu não tenho
estudo. Faço o serviço pela minha prática, não que eu tenha
profissão”.
Mais tarde, longe da supervisão paterna, Gabriel ganhou seus
trocos em outros labores: foi servente de pedreiro e funcionário
de uma grande transportadora de cargas. Os estudos, por sua vez,
não foram interrompidos – pelo menos formalmente: “Reprovar,
assim, eu nunca reprovei. Estudava quase até o final do ano, e
desistia. Se eu continuasse, passava, mas eu sempre desistia”, assume.
Para a mãe, o pouco apreço do filho pelas aulas era tão
dolorido quanto o potencial de aprendizagem do garoto: “O Gabriel
foi um menino que nunca me deu trabalho. Ele era bom estudante.
As professoras me chamavam e diziam: ‘Quando eu termino de
passar a lição, ele já acabou’”, narra, com uma indisfarçável pitada
de orgulho saudosista.
Entre trabalhos aqui e aulas gazeadas acolá, pois, Gabriel
estudou até a quarta série. Em determinado momento, quando
problemas lombares obrigaram o pai a deixar o emprego, os
dividendos trazidos pelos jovens se tornaram imprescindíveis, e a
condição de estudante, para o filho mais novo, ficou cada vez mais
incômoda: “Ia enjoando, cansando. Parecia que o tempo não
passava”.
Como alternativa à falta de vagas no mercado formal, José e
Dora resolveram se dedicar, acompanhados dos filhos, à tarefa de
catar materiais recicláveis. Mais cansativa que a rotina de empurrar
o carrinho abarrotado de papéis cidade adentro, contudo, era
suportar o estigma de inferioridade vindo de olhares alheios: “Os
meninos tinham vergonha daquilo. Eles achavam que não era
serviço adequado, porque nesses tempos eles já estavam rapazinho.
E eu penso que todo rapaz de 15 anos tem vergonha, porque é o
tempo que eles estão conhecendo o mundo, conhecendo melhor
as meninas. Então, às vezes, eles tinham vergonha de se apresentar
pra muitas moças: ‘Eu sou filho do Seu José’. ‘Ah, daquele que
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cata papel?’”.
A sensibilidade demonstrada por Dora se justifica: assim
como os filhos, ela também se viu obrigada a ingressar cedo no
mundo produtivo. “Eu tinha uns sete ou oito anos e já trabalhava
cuidando dos filhos dos outros. Por que ninguém me dava nada,
eu tive que, cedo, aprender a me virar por conta.”
José, igualmente precoce no contato com o trabalho,
ocorrido antes de completar dez anos, também faz suas
ponderações sobre a adolescência dos filhos. Para ele, entretanto,
além das necessidades impostas pelos tímidos rendimentos da
família, a decisão de empregar os filhos foi, em certa dose, fruto
de uma escolha: “Quando eu arrumava algum trabalho, eles iam
junto, e iam mais pra fazer a minha vontade. A gente via os colegas
deles se indo, se perdendo na vida, e a gente queria tirar eles fora
daquilo ali”.
É que no local em que José e a família viviam, o bairro Iguaçu
I, o envolvimento de jovens com a criminalidade era rotineiro. A
saber, foi lá que Gabriel cometeu os primeiros assaltos, aqueles
detalhados a Iracema. Cabia ao pai, portanto, evitar o pior, e era
assim que ele, como que numa estratégia torta de compensação,
desrespeitava o ECA aqui, ao empregar os filhos, para fazer valer
o Estatuto lá, vendo os meninos longe da criminalidade.
…
A despeito dos momentos de dificuldade, Gabriel guarda
muitas lembranças prazerosas dos tempos de piá. Quando criança,
a diversão vinha sobretudo nas brincadeiras compartilhadas com
o irmão, Joaquim, algo em torno de três anos mais velho. “História
é o que mais tem”, trata de ir avisando.
Curitibano nascido no Tatuquara, bairro da empobrecida
região Sul, Gabriel sabia explorar muito bem a geografia urbanorural da área em que vivia, e fazia das suas em meio à natureza. O
que ele e o irmão gostavam mesmo, longe dos videogames,
computadores e demais seduções eletrônicas, era de pescar. “Nós
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pescava traíra, lambari... altos peixes mesmo”, detalha.
A habilidade com os anzóis, assim como as narrativas sobre
os graúdos tirados d’água, ganhou consistência alguns anos mais
tarde, quando os pais passaram a cuidar de uma chácara servida
de rios e açudes. A mudança de ares se deveu a um imbróglio no
terreno em que a família vivia, narrado com pesar por José: “Nós
compramos um terreno na Vila Pompéia, no Tatuquara, e
construímos a casa. Só que era um terreno, assim, que não era
legalizado. Diz o home que era, mas não era. Nós tivemos que
arrumar o terreno, tirar árvore e cortar pinheiro pra poder construir
a casa. Então construí a casa. Uma casona grande... olha, boa
mesmo, a casa! Aí, por pressão do home do terreno, que não era
um troço legalizado, nós tivemos que vender”.
Apesar da tristeza do trabalho não recompensado e do
patrimônio perdido, Dora lembra com alegria da mudança. A nova
casa era o paraíso dos filhos pescadores. “Ali os meninos tinham
liberdade de brincar, de correr, de fazer aquilo que eles queriam.
Porque os meus piá sempre gostavam mais de lugar assim... que
dava pra pescar, caçar”, recorda.
Um pouco mais velho, já com a idade representada por dois
dígitos, Gabriel se mudou com a família para outro dos bairros
periféricos de Curitiba, a Caximba. Localizado no extremo Sul da
cidade, o bairro faz fronteira com dois municípios da Região
Metropolitana: a Oeste, demarca a divisão com Araucária; a Leste,
estabelece o limite com Fazenda Rio Grande. Olhando o mapa da
Capital de cima para baixo, é a última fatia da cidade.
Mas o que caracteriza a Caximba não é exclusivamente sua
posição geográfica. O bairro é conhecido por abrigar o lixão da
cidade. É para lá que, desde 1989, são enviados os resíduos
produzidos pelos moradores e empresas de Curitiba e outros 16
municípios. Era por aquelas redondezas também que Joaquim e
Gabriel lançavam suas iscas à sorte. A tarefa de pescar na região,
aliás, deve ser facilitada nos próximos anos, já que o Aterro
Sanitário está em vias de ser desativado. A Prefeitura de Curitiba
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trabalha na criação de um Consórcio Intermunicipal para
administrar o lixo da região e aposentar o maltratado depósito.
Para José e o resto da família, a Caximba ficou para trás há
cerca de oito anos, quando a turma fez uma nova mudança e passou
a morar em Fazenda Rio Grande. Pena que, desta vez, a troca de
moradia não foi motivo de contentamento: a nova habitação
escolhida ficava em uma das muitas ocupações irregulares que se
distribuem pela Região Metropolitana e também pelos bairros mais
pobres de Curitiba. “Aconteceu, né? Eu não quis mais ficar na
Caximba e nós compramos uma casinha ali na invasão”, explica o
pai.
Nas ocupações, além da papelada que garanta a legalidade
da propriedade, também faz falta uma boa infra-estrutura, como
descreve José: “Era bom, só que era na beira das cavas, era um
lugar úmido. Quando chovia bastante, enchia de rato, barata... ih,
era danado! Só que nós não tinha outra alternativa, tinha que ficar
ali”.
Lá pelas tantas, quando Gabriel e o irmão cansavam de
transitar pelas cavas, espécie de depressões formadas a partir da
retirada de areia e, mais tarde, preenchidas pela água, resolviam
pegar a BR. É que outra das atividades que os meninos apreciavam
era pedalar rodovia afora: “Nós gostava de ir pra São Mateus de
magrela. Meu irmão que inventou esta: foi uma vez com o meu vô
e, pá, foi convidando meus tios, meu primo, meus camaradas...
daí nós ia de magrela pra lá”. Prazerosa, é verdade, a aventura
exigia disposição e cadência em quantidade suficiente para superar
os cerca de 150 quilômetros que afastam Curitiba de São Mateus
do Sul: “Nós saía daqui umas onze horas, meia-noite, porque a
BR era sossegada. Passava por Lapa e chegava em São Mateus na
tarde do outro dia. Tem que ir sem pressa, porque cansa”.
A escolha do destino, aliás, deve-se ao fato de que, entre os
pouco mais de 20 mil habitantes da cidade, estão os avós maternos
de Gabriel. A cidade, inclusive, seria importante para Gabriel em
outro momento de sua vida, um futuro ainda distante, mas que
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começava a tomar forma a partir de um episódio dolorido de ser
lembrado.
…
Aconteceu à noite, justamente as horas do dia que mais
preocupavam José e Dora, especialmente depois da mudança da
família para o loteamento irregular da Iguaçu I. “Quando nós
viemos morar ali, os meninos começaram a se juntar com piazada,
e foi onde eles começaram a fazer muitas coisas erradas. Mas a
gente, tanto mãe como pai, nem sabia. A gente tava em casa e,
quando via, eles já tinham aprontado”, testemunha a mãe.
A confusão, naquela sexta-feira, fins de julho de 2006, era
mais séria que o habitual. Mal o sol havia se posto, por volta das
sete da noite, e Gabriel, como tradicionalmente fazia, tomara
emprestado o Corcel II do pai para, na companhia de amigos e do
irmão, trafegar à toa pela região. “Nós saía, pá, pra curtir na vila”,
relembra.
Ocorre que a gasolina terminara antes de o passeio ser
concluído, e, para não frustrar a noitada recém-iniciada, a turma
decidiu trocar de veículo e continuar o passeio no carro de um
amigo. Além da mudança de equipamento, Gabriel e os amigos
resolveram também alterar o trajeto do passeio, que foi estendido
a uma vila vizinha, a Santarém, local pouco familiar à maioria dos
meninos.
Em meio às aceleradas e freadas pelas ruas quase
desconhecidas, o motorista que conduzia a viagem sentiu
abruptamente um tranco. Era a mão de um homem se chocando
com o vidro de carro. Preocupado, ele engatou marcha-ré e voltou
ao local do acidente, onde teve duas surpresas: constatou que nada
de mais grave havia ocorrido, e foi convidado pelo rapaz acidentado
a tomar uma cerveja numa lanchonete da região, a fim de deixar o
leve contratempo resolvido por meio de uma confraternização.
A estranheza da situação dividiu a turma, fazendo Gabriel
hesitar: “Eu e meu primo não queríamos ir”. Pressionados pelos
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amigos, que estavam a fim de aceitar a proposta, Gabriel e o primo
foram voto vencido, e acompanharam o grupo ao estabelecimento
sugerido, onde algumas cervejas os esperavam.
Mal deu tempo para tomar os primeiros goles e a
desconfiança de Gabriel se mostrou procedente: acompanhado
de muitos amigos, inclusive a irmã, o rapaz responsável pelo
convite entrou na lanchonete anunciando briga. E foi logo
mostrando que estava disposto a uma das grandes: “Eles fecharam
a lanchonete. Nós não tinha nem como sair. A hora que eu vi,
assim, um maluco entrou com uma facona no bar. Aí começou
aquela pancadaria”, narra Gabriel, ainda hoje incapaz de explicar
os motivos exatos que desencadearam o conflito.
Como estavam despreparados para o confronto e sem
qualquer objeto que pudesse subsidiar uma defesa, a exemplo de
um casal que tranqüilamente lanchava com a filha na mesa ao
lado, a turma da Iguaçu I tratou de procurar com urgência as
saídas do local. Gabriel conseguiu: “O cara veio pra cima de mim
com a faca, eu cai no chão, joguei umas cadeiras e saí”. Com o
irmão, aconteceu diferente: “Quando eu vi, meu irmão caiu no
chão. Pensei: ‘Nossa Senhora, o que que aconteceu?!’. A hora que
eu olhei, ele tava todo cheio de sangue”.
Golpeado no pescoço, Joaquim foi prontamente recolhido
pelos amigos, já distantes da confusão e próximos do carro, que,
com alguns pneus furados, também trazia as marcas da briga.
Tomando o rumo do hospital mais próximo, os colegas aceleravam
para que o socorro ainda fosse possível, mas o tempo foi cruelmente
curto: “Chegamos e ele já tava morto. O médico falou que entrou
só uma pontinha da faca, mas deu hemorragia”.
A notícia chegou aos pais instantes mais tarde, cerca de duas
horas depois de o Corcel II deixar a garagem de casa, relatada
pelo próprio Gabriel, testemunha de tudo. A par do
desentendimento difícil de ser compreendido e mais ainda de ser
justificado, José não teve alternativa que não lamentar a perda do
filho, com precoces 21 anos: “Nós ia fazer o quê? Foi uma
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fatalidade, porque você veja só: o rapaz não mexia com ninguém,
não era de confusão, nem nada... até livrava os outros da confusão.
Só que saiu com umas pessoas aí... e daí aconteceu isso”. A mãe,
de temperamento mais forte, acrescentou os devidos tons de
indignação ao luto da família: “Revolta eu sempre senti, porque
até hoje não foi esclarecido o que aconteceu. Na realidade, eles
nem iam praqueles lado, eles nem freqüentavam aquele bairro.
Foram pra lá e, já na primeira vez, aconteceu isso. Então até hoje
a gente tem essa revolta por não saber o porquê”.
O lamento do pai e a revolta da mãe foram apenas as
primeiras de uma série de reações emocionais decorrentes da
perda do primogênito. Os abalos mais intensos foram sentidos
por Dora, que, fortemente abatida, passou a fumar duas carteiras
de cigarro por dia. Mais do que o vício do tabaco mostrando sua
força, os cigarros incessantemente tragados eram um sintoma da
depressão em que entrara. E, embora sobrassem pitadas, as
conversas com a família e os cuidados com os demais filhos se
tornaram artigos escassos na rotina de Dora.
A ironia é que aquela não era a primeira vez que a mãe
experimentava a dor de perder uma de suas crias. A outra aconteceu
quando estava grávida do quinto filho, e também foi fruto de uma
banalidade: “Eu resvalei, caí e perdi. Era um menino, que tava
com quatro meses, e foi muito triste, porque é um pedaço da gente,
e a gente queria tanto... o Gabriel já tava grande, e nós não tinha
nenhum nenê. E quando eu perdi, já tinha ido no médico e
começado o pré-natal, então fiquei chocada”, desgosta-se.
Mas somente perdas não são capazes de formar uma família.
Em meados de 1998, antes de entristecerem o semblante de Dora,
os acasos da vida visitaram-na para dar contornos de alegria às
suas expressões. Naquele momento, ela estendia os reduzidos
metros da casa em que morava para abrigar Ivana, filha de uma
de suas sobrinhas que fora posta na rua pela família depois de
engravidar. Eis que, na iminência de dar à luz, a moça propôs a
Dora a doação da menina que carregava no útero: “Eu não tenho
condições. Não vou ficar com a menina pra andar sofrendo comigo
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Portas Fechadas
pela rua. Se você não quiser, vou abandonar na primeira porta
que eu achar”, argumentou, em tom mais próximo da ameaça do
que da oferta.
Cautelosa no início, com receio precisar abandonar o
emprego para dar conta dos afazeres maternos, Dora lançou-se às
orações. Religiosa que é, ela costuma absorver das palavras bíblicas
e dos cultos evangélicos que freqüenta a força necessária para se
decidir em instantes delicados como esse. Depois das preces em
número necessário para encher-se de certeza, finalmente se
decidiu: “Quando eu voltei pro hospital e vi aquela criança, meu
coração não suportou dizer não”. E foi assim que Carolina foi
adotada e deixou a família maior, então com dois meninos e duas
meninas.
Alheios à boa lembrança, os tempos agora eram outros. Não
bastasse ver o primeiro filho partir, Dora sentia que o segundo de
seus meninos, inconformado com tudo que acontecera, também
estava prestes a ir embora, tamanha era a revolta que o envolvia.
…
A mudança no comportamento de Gabriel foi prontamente
notada por quem estava à sua volta. A mãe, sempre mais próxima,
é testemunha fiel: “Quando aconteceu a tragédia da morte do irmão
dele, parece que o Gabriel virou outro menino, já não era mais
aquele. Ele se revoltou com a vida, sabe? Ficou agressivo, não
gostava de parar em casa, quebrava as coisas”. A mesma percepção
teve o pai, que reconhece, inclusive, a autoridade perdida: “Ih,
rapaz, não tinha explicação. Nós não podia com ele”.
Como conseqüência do novo jeito de encarar as coisas,
Gabriel também trocou de hábitos, deixando de lado as saudáveis
pescarias e pedaladas por aí. A nova regra consistia em gastar o
tempo nas ruas e voltar para casa apenas nos intervalos que a nova
rotina permitisse. Nas próprias palavras do rapaz, era mais ou
menos o seguinte: “De dia, eu saia curtir com os pia, pá, andar, ir
pras cavas. À noite, me reunia com a piazada pra tomar uns goles”.
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As excessivas saídas, geralmente noturnas e, como detalha
Gabriel, acompanhadas por bebidas, sacrificavam o sono dos pais,
sabedores dos perigos oferecidos pela rua: “Às vezes, era duas ou
três horas da manhã, e eu tava acordado esperando ele chegar. Eu
só dormia quando ele chegava. Quando eu conseguia dormir um
pouco, já tinha que levantar pra ir trabalhar”, conta o insone pai.
Sob o olhar dos especialistas, o diagnóstico é o mesmo dos
pais. Nas anotações que fez acerca do perfil emocional de Gabriel,
durante as conversas no Cense Fazenda Rio Grande, Iracema logo
percebeu quão relevante foi a perda do irmão no embrutecimento
da personalidade do jovem: “Nele, tem um caso muito sério de
violência, porque o que afetou muito ele foi a morte do irmão, que
foi bem violenta. Ele se revoltou com isso e não soube lidar com
isso, não deu conta disso tudo”, endossa a psicóloga.
O momento mais delicado, contudo, Gabriel não relatou a
Iracema. Coube à mãe revelar que, cerca de três meses depois da
briga na Vila Santarém, numa das longas saídas pela madrugada,
o filho tentou se matar. Dora tudo presenciou porque, atraída por
palavras cujo timbre se assemelhava ao do filho, saiu de casa para
ver quem era o rapaz que tanto barulho fazia: “Lá tava o Gabriel.
Eram quatro horas da manhã. Ele gritava e chamava pelo irmão.
Eu peguei ele pela mão e quando cheguei perto de casa, tava vindo
uma carreta. Nisso ele me empurrou e quis se jogar embaixo da
carreta. Eu pulei nele e nós dois caímos no barranco, e a carreta
passou. Então eu pensava: se eu, que era mãe, não saísse atrás
dele, já era pra ele ter morrido”.
A interpretação da mãe sugere que a tentativa de suicídio,
ainda que providencialmente evitada, era um claro sinal de que as
coisas não iam bem, como num prenúncio de que mais problemas
estavam a caminho.
…
E, de fato, estavam. Em novembro de 2006, pouco mais de
um mês desde o susto vivido às margens da rodovia, Gabriel
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tornaria mais grave os conflitos que mantinha com a Lei. Em vez
de assaltos em busca de dinheiro, o jovem iria responder agora
por homicídios. O plural, a rigor, é devidamente empregado, pois
foram dois os delitos do tipo cometidos por aquele que, a partir de
então, seria identificado pelos jornais somente pelas iniciais do
nome.
Separados por pouco mais de 30 dias, os delitos tinham em
comum a maneira como foram praticados e os motivos pelos quais
se constituíram. Com um revólver calibre 36, herança deixada
pelo irmão, e em virtude de triviais desentendimentos pessoais,
Gabriel vitimaria fatalmente dois jovens com idade e condições de
vida semelhantes às suas.
O primeiro crime foi desencadeado pelo sumiço de alguns
bens materiais do apreço de Gabriel. “Eu e ele tinha umas treta já.
Ele tinha roubado um tênis meu, tinha roubado um som também.”
Irado com a situação e sob efeito do álcool, companhia constante
naquela fase da juventude, o garoto decidiu interromper o descanso
que levava em casa para tirar satisfação com o responsável pelos
furtos, Marcelo Miranda de Lara, de 21 anos. “Eu levantei e... ah,
sei lá, peguei a garrucha e coloquei uma bala. Naquelas horas,
pelo que eu me lembro, eu não tava com o pensamento de matar
ninguém. Daí eu desci pro bar e deu na pinha de querer ir atrás do
cara.”
De acordo com informações preliminares que levantara, o
desafeto seria facilmente identificado: estava numa rua escura e
trajava roupas brancas. Mesmo obtidos nas proximidades do bar,
os dados sobre a futura vítima eram extremamente precisos, de
forma que Gabriel não precisou sequer ver o rosto de Marcelo
para resolver a encrenca ali mesmo: “Cheguei e ele tava lá. Daí,
pá, sei lá o que que eu pensei. Ele estava de costas e eu dei um tiro
na nuca, aí ele caiu. Mas eu nem sei o que tava pensando. Parece
que dá um branco na frente”.
Mesmo sem adotar estratégias para ocultar o delito recémcometido, Gabriel não foi preso pela polícia e tampouco
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denunciado por eventuais testemunhas. Ficou solto, como se o
par de tênis e o aparelho de som lhe tivessem sido devolvidos
pacificamente por Marcelo. A vítima, aliás, era a principal
responsável pela preservação da liberdade de Gabriel: “Eu acho
que fiquei sossegado porque o cara me devia, era nóia e tinha
muita gente querendo matar ele, porque ele roubava na Vila, dos
vizinhos mesmos. Uma vez ele bateu na mulher, grávida... e a
galera ficou meio de cara. Aí os caras nem falaram nada, ficaram
quietos”, explica.
O problema é que o amparo e a cumplicidade da vizinhança
terminaram por aí. Na segunda vez em que levou um
desentendimento às últimas conseqüências, Gabriel não foi
protegido pela comunidade, e sentiu todo o rigor previsto pela
Lei, que, depois de algumas horas na delegacia e mais uns tantos
dias num centro de internação provisória, acomodou-lhe no Cense
Fazenda Rio Grande, onde iria cumprir a medida de privação de
liberdade que lhe cabia.
Trata-se da sanção mais rigorosa estabelecida pelo Estatuto
da Criança e do Adolescente. É definida pelo artigo 121 (por
coincidência, o mesmo do Código Penal que delibera sobre o
homicídio, delito de Gabriel) a partir de alguns preceitos, como o
da excepcionalidade, assim definido: “Em nenhuma hipótese será
aplicada a internação, havendo outra medida adequada”. O
procurador Olympio de Sá Sotto Maior troca em miúdos: “A
primeira análise que você tem que fazer é se ela [a medida de
privação de liberdade] é necessária. Diante do princípio da
excepcionalidade, só em determinadas práticas infracionais é
possível aplicar a internação, só nas situações em que fique patente
a absoluta necessidade da segregação”.
Quando essa constatação não é feita, o jovem que infringe a
Lei pode ser atendido pelo Estado em liberdade. Para isso, cumpre
medidas mais brandas, como advertência, reparação do dano e
prestação de serviços à comunidade. Não era o que se passava
com Gabriel, cujo delito era excessivamente danoso para se
encaixar nessas possibilidades.
24
Portas Fechadas
A gravidade da nova infração já podia ser antevista no estado
em que o rapaz se encontrava instantes antes de cometê-la: havia
bebido e estava suficientemente irritado para carregar a garrucha
calibre 36 e empunhá-la com valentia. “Nossa, aquele dia eu tava
bêbado mesmo! Tinha brigado com a minha mina e tava muito
loco”, assume, em referência aos constantes desentendimentos que
tinha com a namorada, Suzana.
A garota é, aliás, peça importante na compreensão dos
motivos que levaram o namorado a reincidir. Seu irmão, Elias
Diniz Fernandes, era desafeto da vítima, Diego Machado, com
quem não vinha se entendendo nos últimos tempos. A briga,
segundo contam, agravou-se a ponto de surgirem ameaças de
morte.
Havia ainda outra complicação. Diego era cria da Vila
Pantanal, localidade que, num passado curto, alimentava violenta
rivalidade com a vizinha Iguaçu I: “As nossas duas vilas já não
eram muito certas. Elas não se davam muito: os piá da Pantanal
não podiam subir pra minha vila, e a minha não podia ir pra deles”.
As desavenças e provocações entre os jovens ficaram mais intensas
em 2006, quando um projeto de habitação popular conduzido pelo
governo estadual uniu as duas comunidades na recém-criada Vila
Angico, localizada no bairro Santa Terezinha, em Fazenda Rio
Grande.
Foi nesse tenso contexto que, logo após sair de casa, Gabriel
encontrou Diego e Elias discutindo calorosamente. Sobravam
xingamentos e gestos enérgicos. O silêncio, pois, veio novamente
de suas mãos, precedido pelo seco estrondo saído do revólver que
segurava: “Eu fiquei olhando os dois conversando e pensei: ‘Ah,
vou dar um susto neles’. Daí eu mirei e do jeito que eu levantei a
arma, eu atirei. Pegou na testa, e ele caiu”.
Apesar da narrativa segura de Gabriel, nem todos contam a
história dessa forma. Divergências rondam as circunstâncias em
que tudo aconteceu. A imprensa, por exemplo, alinhou-se à versão
25
Portas Fechadas
da polícia, segundo a qual o cunhado dera uma ordem para que
Gabriel fizesse o disparo – é com a reprodução do controverso
diálogo, inclusive, que a reportagem de um dos mais populares
jornais de Curitiba, a Tribuna do Paraná, começa a descrever o
delito. Gabriel rebate a versão: “Ele não falou nada. Eu é que tava
de gole e nem pensei”.
Iracema, por sua vez, vale-se de uma terceira explicação,
segundo a qual a motivação do crime estava além das brigas entre
Elias e Diego e da rivalidade entre a Pantanal e Iguaçu I. Embasada
nas íntimas conversas que teve com Gabriel, a psicóloga volta à
tecla que tudo teve origem na morte do irmão. Era uma desforra.
“Ele vingou: matou quem matou o irmão dele. E foi até meio
chocante pra gente, sabe?”.
Certa mesmo, só a data. Era fim de dezembro, e havia menos
de 20 dias que Gabriel completara 17 anos. Àquela idade, Diego
não chegaria: engrossou a estatística dos brasileiros mortos na
juventude quando tinha 14 anos. Gabriel ainda teria mais
aniversários pela frente, mas o próximo seria comemorado de uma
maneira que ele nunca havia experimentado.
…
Comparado às celebrações que fazia quando estava em
liberdade, o aniversário comemorado intramuros era
significativamente diferente para Gabriel. Além das óbvias ausências
dos amigos, familiares e presentes, a alteração mais representativa
no protocolo de um faz-anos tradicional estava no bolo, cujas velas
não podiam ser apagadas individualmente. A tarefa de somar sopros
para vencer a chama cabia a todos os adolescentes internados no
Cense que aniversariavam naquele mês. Era, portanto, um
exercício coletivo, como quase todos que são oferecidos pelo
Centro.
É em grupo, por exemplo, que os jovens ampliam a bagagem
escolar adquirida na rua. E não é questão de escolha ou gosto:
todos precisam freqüentar as aulas, ministradas pela manhã, de
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Portas Fechadas
segunda a sexta, tal qual um colégio convencional. Básica também
é a grade curricular, que inclui disciplinas como português,
ciências, história e, claro, a mais temida pela gurizada, matemática.
Sincero, Gabriel admite a dificuldade com os cálculos: “Peguei
um curso pra fazer e já me embaçou tudo, principalmente na
matemática”.
O curso que tanta dificuldade lhe causava é uma das muitas
atividades extracurriculares oferecidas pelos Centros de
Socioeducação. A atenção está voltada às oficinas de
profissionalização, que têm por objetivo capacitar o jovem para
que ele, depois do período de internação, encontre vagas no
mercado formal de trabalho e esteja habituado às rotinas laborais.
Pedagogia pura.
Quando esbarrou nos raciocínios numéricos, Gabriel se
credenciava a um emprego de pintor de prédio, uma das oficinas
mais procuradas e bem-sucedidas do Cense Fazenda Rio Grande.
Quem conta, com orgulho, é a diretora do Centro, Margarete
Rodrigues: “Pintura predial foi o curso que facilitou que a gente
tenha três empregados trabalhando fora”.
Juntas, as aulas regulares e as atividades profissionalizantes
constituem o Programa de Educação nas Unidades Socioeducativas
(Proeduse), desenvolvido em parceria entre a Secretaria Estadual
da Educação (Seed), incumbida de formar o quadro de professores,
e a Secretaria Estadual da Criança e da Juventude (Secj), responsável
pela administração dos Censes.
Apesar da disciplina exigida nas classes, há uma atividade
intelectual que, no caso de muitos jovens, dispensa maiores
estímulos: a leitura. Volta e meia com tempo disponível, sobretudo
nos finais de semana, quando descansam os professores, os jovens
do Centro fazem dos livros sua fonte de conhecimento. “Nós temos
uma biblioteca aqui dentro e temos também um trabalho junto
com a Biblioteca Pública [do Paraná]. Nós pegamos uma maleta,
tipo dum baú, com livros pra adolescentes mesmo, a cada quatro
meses. Então a gente traz e eles lêem aqueles livros. Devolvemos,
27
Portas Fechadas
trocamos a mala... um projeto super legal. E vai desenvolvendo
muito. Nós temos meninos aqui que chegam a ler dois, três livros
por semana”, revela a diretora.
Outro meio de comunicação bastante disputado é a tevê. Se
for dia de futebol, então, o interesse é ainda maior. Os rapazes se
reúnem na sala, onde fica o único aparelho acessível aos internos,
e se põem a torcer – e não apenas para ver boas jogadas em campo,
mas também para que a ordem de voltar para as celas chegue
mais tarde que o previsto. “Quando tem jogo, a gente assiste até as
cinco ou cinco e meia, porque nesse horário tem que entrar. Senão
só escuta o barulho... Às vezes também os educadores deixam a
televisão alta pra gente escutar.” Era assim que Gabriel
acompanhava o perde e ganha dos dois verdes do coração: Coritiba
e Palmeiras. Um pouco sem entusiasmo, é verdade, já que não é
dos torcedores mais fanáticos.
O que esperava com ansiedade mesmo, naqueles meses de
internação, eram os passeios realizados fora do Cense. “O legal é
quando você sai pra externa, vai passear em shopping, mas agora
tá meio raro, porque um fugiu um piá.” A frase é quase autoexplicativa: infringir as regras do centro significa perder o direito
de realizar as atividades com maior nível de liberdade e autonomia.
A vantagem de se andar na linha é que o oposto também é
verdadeiro: o bom comportamento é a chave que dá acesso às
atividades mais prazerosas que do Cense. Em linhas grossas, é
uma questão de confiança.
Essa, Gabriel inspirava em abundância. Durante os quase
doze meses em que ficou na unidade, em nenhum instante
desrespeitou as regras da casa. “Sempre conviveu bem. Nunca
tivemos problemas com o Gabriel, mesmo porque ele nunca levou
medidas disciplinares, nada disso”, atesta Iracema. Dos três meses
de convivência que teve com o menino, Margarete, que assumiu a
diretoria da unidade em outubro de 2007, colheu a mesma
impressão: “Não era um menino de se envolver muito com os
outros, ficava mais sozinho. Era um menino que realmente tinha
mais possibilidade de se adequar fora”.
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Portas Fechadas
Foi por isso que Gabriel teve saídas externas aos montes.
Deixava o Cense, em média, uma vez por mês, conforme o
calendário das atividades especiais. O passeio mais recente teria
como destino o Jardim Botânico, na Capital, só que chuvas que
caem com freqüência no verão curitibano mudaram a rota. Nada,
entretanto, capaz de frustrar a turma: “Aí a gente foi passear no
Shopping Curitiba. Ficamos lá a tarde inteira andando... curtimos”,
rememora.
Esse sistema que pune infrações e premia virtudes tem em
jovens como Gabriel seus garotos-propaganda. Crêem os diretores
dos Censes que, ao verem os colegas usufruindo de benefícios
adquiridos na base da disciplina, os meninos mais resistentes à
internação abafem os ímpetos de rebeldia. O momento mais
propício para essa mudança de postura são as cerimônias de
assinatura do Plano Personalizado de Atendimento (PPA). Tratase de um contrato simbólico firmado entre o Cense e o adolescente,
com este se propondo publicamente a respeitar os diversos
compromissos descritos pelo documento, como se dedicar aos
estudos, cumprir as regras da internação e não se envolver em
desentendimentos. Tudo feito na presença dos colegas de centro e
também dos familiares, excepcionalmente convidados. Para
finalizar conforme pede a tradição de todo festejo, uma mesa farta
é servida, com salgadinhos, bolos e refrigerantes – praticamente
artigos de luxo perto da trivialidade das refeições do dia-a-dia.
Quem conhece garante que o mecanismo e seus
instrumentos funcionam: “Aquele que tem mais conquista, tem
privilégios. Por exemplo: os meninos que saem pra trabalhar
comem em horário separado, pois tomam café bem mais cedo;
eles tomam banho em horário diferente, no horário do retorno;
eles vão passar o domingo com a família. Então são conquistas
que os outros também querem ter. Eles vêem que têm perspectivas
de crescer no processo de socioeducação”, explica Margarete.
Outra etapa fundamental do trabalho com os jovens é a
participação da família. Pais e irmãos têm direito a uma visita
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Portas Fechadas
semanal. O mesmo vale para eventuais namoradas ou mesmo
esposas – são muitos os jovens internados já nas condições de
marido e pai. Gabriel, que não se encaixava em nenhuma das duas,
recebia as visitas mais tradicionais, feitas por José e Dora: “Tem
visita sexta e domingo, mas depende de quando a família pode vir.
Sempre vem meu pai e minha mãe. A mãe vem mais, nunca deixou
de me visitar”. Com a namorada, os encontros muro adentro
também aconteceram, mas apenas durante cinco meses. Foi
quando Gabriel, desconfiado dos hábitos da companheira, que
circulava livremente pela noite, achou por bem interromper as
visitas. “Ela tava saindo aí, tomando gole. Aí eu falei que nem
precisava ir. Falei que no dia em que eu saísse, nós conversava”,
conta.
…
Além do papo com os jovens, os parentes que freqüentam
os Censes também têm conversas regulares com a equipe que
trabalha na unidade. A situação em que se encontra a família, capaz
de ser diagnosticada nesses bate-papos, é uma das variáveis
decisivas na análise que os profissionais da socioeducação fazem
antes de pedir a desinternação do adolescente.
Iracema, participante das mais ativas desse processo, resume
os fatores que influenciam essa decisão, que, se aceita, significa a
soltura do interno: “Não foge do bom comportamento, da questão
escolar, se ele está progredindo, se ele teve mudanças
comportamentais, psicológicas. E também a questão de fora: pra
onde ele vai, o que ele vai fazer, pra onde ele vai ser encaminhado”.
Na iminência de completar um ano de internação, o que
corresponde à terça parte do período máximo estabelecido pelo
ECA, de 36 meses, Gabriel respondia satisfatoriamente às duas
exigências: tinha comportamento exemplar e a família se mostrava
apta a recebê-lo novamente. Por isso, Iracema, no segundo dos
relatórios semestrais sobre o garoto que encaminhou ao juiz
responsável pelo caso, pediu a desinternação do jovem. Juntou à
solicitação informações diversas sobre o histórico do menino na
unidade, a fim de provar textualmente que ele estava pronto para
30
Portas Fechadas
retornar à liberdade.
Gabriel sabia que a saída estava próxima. E com os dias de
dezembro ansiosos para encerrar aquele árduo ciclo de doze meses
que passara internado, era inevitável planejar as festas de fim de
ano em liberdade, ao lado da família. Era com ela também que o
adolescente pretendia voltar a morar: “Se pá, vou morar um
tempinho com a minha irmã, que mora mais perto do colégio”,
idealizava.
Mas essa era uma das poucas semelhanças entre a vida que
levava antes da internação e os planos que fazia para depois que
deixasse o Cense. No lugar da rotina caracterizada pelo tempo
ocioso, projetava um dia-a-dia atarefado o suficiente para manterlhe distante das confusões de outrora. “Se eu sair antes de janeiro,
quero ver pra trabalhar de manhã, fazer curso à tarde e estudar à
noite.” O tempo ocupado indicava ainda que estava disposto a uma
guinada radical na escolha dos amigos: “Eu quero curtir amizade
com três, que são gente boa e sossegados. O resto não quero nem
ver”. Novos delitos, então, descartados de imediato: “Eu tô vendo
o veneno aí. É embaçado ficar preso, sem ver a liberdade, sem
sair. Eu quero parar como isso”.
A vontade de mudança em Gabriel era tanta que, na última
visita que recebeu da mãe, o jovem foi às lagrimas para tornar
mais comprometidas as promessas de se afastar dos litígios com a
Lei. “Chorando, ele me disse: ‘Mãe, eu tô vendo a situação de
vocês: o pai tá trabalhando até doente. Quando eu sair de lá, eu
prometo, mãe: eu vou trabalhar e nunca mais eu vou fazer vocês
sofrerem”, conta Dora.
Margarete e Iracema, embora felizes por ver o adolescente
prestes a tomar o rumo de casa, criavam expectativas menos
audaciosas. Não é que não confiassem na capacidade de mudança
do jovem; é que a experiência com a socioeducação lhes ensinou
que a saída é o momento mais delicado. “O menino pode ter a
melhor das intenções, a família até ter boa vontade, mas a
sobrevivência deles é muito difícil. Muito difícil. A gente vai se
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Portas Fechadas
convencendo que o menino só tem chance se ele sair daqui com
alguma referência segura, principalmente pelo trabalho. Porque
senão, sucumbe! E hoje em dia o tráfico está pagando muito bem.
A gente tem um menino aqui que ele trabalhava no tráfico... o
menino ganha R$ 400 por semana. Qual é a empresa que pega
como funcionário um menino que cumpriu uma medida
socioeducativa, com cara de pobre, e vai pagar mil reais, que é o
que tráfico tá pagando?”, questiona.
A dúvida também recai sobre Iracema, que faz coro à
preocupação: “O problema é como e pra onde ele vai. Geralmente,
ele volta pra família de origem, pro local onde ele cometeu o delito,
onde ele teve contato com as drogas. Geralmente é pra esse lugar
que ele retorna, e aí que tá o problema”.
Era em meio a essas incertezas e ameaças que Gabriel
aguardava a carta de liberação que garantiria sua saída. O que
aconteceria depois que ela chegasse eram apenas projeções. Se
seria capaz de colocar em prática todos os planos que tracejava,
ou se provaria justificadas as preocupações que tanto angustiavam
Margarete e Iracema, era cedo pra dizer. Mas o tempo passava, e
a cada volta que o ponteiro completava no relógio a ansiedade
pela saída se quedava maior.
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1. ENTRE CELAS E SALAS
I. GABRIEL
II. AMANDA
III. ARTHUR
Em meio aos diversos estudantes que toda manhã ocupavam
as salas de aula do Colégio Estadual Guido Straube, em Curitiba,
Amanda passava praticamente despercebida. Aos olhos de quase
todos, parecia tão somente mais uma das adolescentes que, naquele
ano de 2007, cursava a primeira série do Ensino Médio a fim de
se preparar para futuras provas de vestibular. E não era mesmo
razoável que houvesse qualquer desconfiança: a exemplo de todos
os colegas, a garota freqüentava as aulas regularmente e cumpria
com boa parte de suas obrigações estudantis, usando, inclusive, o
uniforme alvinegro exigido pela instituição.
O segredo que escondia só não era sigiloso por absoluto
porque, passados os primeiros dias na escola, a jovem tomou a
liberdade de compartilhar a confidência com as duas colegas que
mais confiança lhe inspiravam, Kátia e Danusa. “Eu contei e falei
que não queria que ninguém soubesse”, relembra.
As amigas se mostraram fiéis e, respeitando o pedido, em
nenhuma conversa deixaram escapar a informação de que Amanda
era uma das 27 adolescentes internadas no Centro de
Socioeducação (Cense) Joana Miguel Richa, situado a menos de
três quarteirões do colégio e único abrigo feminino do gênero no
35
Portas Fechadas
Paraná.
O receio de que a notícia chegasse a ouvidos alheios se
justificava pelo perfil dos jovens que dividiam a sala com Amanda:
eram estudantes de classe média – o que ela via com muita suspeita:
“Lá era um colégio de boy, não tem aluno, assim, tão pobrezinho...
é mais ou menos classe média. E daí sempre ia ter um ou outro
que, quando sumisse alguma coisa de dentro da sala, ia falar: ‘Ah,
foi a ladroninha, porque ela já tá presa mesmo’”, revela.
O silêncio exigido por Amanda também se estendia aos
professores, que, embora incumbidos da tarefa de difundir
conhecimentos capazes de formar cidadãos, não raras vezes
lecionavam apoiados no senso comum: “Às vezes, a gente tava
debatendo criminalidade na sala, e eles falavam: ‘É, tem que ir
preso mesmo e não sei o quê!’. E eu ficava só escutando, com
vontade falar: ‘Calem a boca! Vocês nem sabem o que estão
falando’”, protesta.
…
O temor de que fosse injustamente acusada de furto tinha
fundamento. Foi por este delito que, cerca de quatro meses antes
de chegar a Curitiba, Amanda teve sua liberdade interrompida. A
ação policial que resultou na prisão aconteceu às portas de casa,
em Cascavel, no Oeste do Estado, e a certeza de que passaria os
meses seguintes detida veio na fala de um dos soldados envolvidos
na operação. Ao revistar a gola da blusa que a garota usava, o
guarda anunciou: “É ela mesma. Pode revirar a casa”.
O que permitiu a identificação imediata foram as câmeras
de segurança da loja que a jovem acabara de assaltar. As lentes
flagraram com precisão o anjo que ela traz no pescoço. E se não
pôde esconder a tatuagem das autoridades, pelo menos teve tempo
de ocultar os artigos que furtara.
Eram 40 celulares de diferentes marcas e modelos, que até
então aguardavam compradores na revenda que a operadora TIM
36
Portas Fechadas
mantém no calçadão de Cascavel. Das vitrines, os equipamentos
foram parar entre os moletons que Amanda trajava, tática escolhida
para abrigar os telefones depois do furto. Cautelosa, ela imaginava
que a polícia em breve poderia ser informada do ocorrido, já que
eram muitas as potenciais testemunhas que circulavam pelas ruas
centrais da cidade naquela manhã de agosto: “Era umas dez horas
e tinha um monte de gente indo trabalhar. Tava bem cheio o
calçadão”, recorda.
Diante do intenso movimento, a ação, realizada na
companhia de dois amigos, precisava ser rápida. E foi, como
sinteticamente conta a moça: “Entramos e demos voz de assalto.
Sacamos a arma, rendemos as vítimas, catamos os celulares e
saímos fora”.
Em posse dos bens que agora lhes pertenciam, os jovens
deixaram a tenda a passos velozes para, no carro que ficara
estacionado nas proximidades da loja, saíram em disparada. A
rapidez da fuga, entretanto, não impediu que pedestres anotassem
a placa do veículo e repassassem a informação às autoridades.
O primeiro jovem a ser capturado, em conseqüência, foi o
motorista do carro, Douglas. Entre pôr algemas no rapaz e localizar
os demais envolvidos no assalto, a PM não precisou de nada além
de alguns murros e pontapés: “Quando ele chegou em casa, a
polícia, que tinha pegado a placa, tava esperando ele. Puxou o
endereço, né? Aí esperou ele chegar, e começou a bater. Ele não
agüentou a pancada e levou a polícia lá em casa”, narra Amanda,
recolhida logo em seguida, graças ao depoimento do colega. A
truculência empregada na detenção de Douglas, aliás, foi repetida
com a garota: “O policial chegou já com pistola apontada pra minha
cara, falando que não era pra mim me mexer senão ia sentar a
bala ne mim”, acrescenta.
O último incluído na trama, Pedrinho, com quem Amanda
esporadicamente trocava alguns beijos, também não tardou em
ser encontrado. Foi apanhado imediatamente após a ficante, e
colocou fim à primeira etapa da missão policial. Todos os acusados
37
Portas Fechadas
estavam presos.
Cabia às autoridades, então, reaver os bens surrupiados, cujo
desfalque totalizava dez mil reais. Parte do prejuízo, quatro
celulares, já havia sido recomposta: os equipamentos foram
encontrados sob o tapete do carro, onde entraram
involuntariamente devido à grande velocidade empregada pelos
jovens na fuga. E para que fosse possível resgatar os aparelhos
restantes, a polícia novamente agiu à sua maneira. “Eles queriam
saber dos outros 36. Falei que não sabia. Apanhei um monte...
fiquei o dia inteiro apanhando, mas não entreguei nada”, relembra
Amanda, com a voz temperada por certo tom de valentia.
Além do fracassado interrogatório imposto à jovem, os
peêmes também procuraram pelos celulares na residência da moça.
Nada encontraram, como não podia deixar de ser: os eletrônicos
estavam enterrados. O serviço foi feito por Amanda, nos arredores
de casa, instantes antes da chegada dos guardas: “Foi questão de
minuto mesmo. Eu peguei uma sacola, fui pra debaixo da minha
casa, enterrei e já saí. Quando eu entrei, eu já escuto barulho de
carro... tava rodeado de polícia!”.
O plano era manter os celulares escondidos até que as coisas
se acalmassem, para então vendê-los. A princípio, o dinheiro seria
empregado em festas, como conta a garota: “Foi por bobeira. No
momento eu não tinha dinheiro e queria sair, curtir. Então precisava
de dinheiro e fui assaltar”. Mas a rapidez da polícia deu novo
destino aos recursos. E já que ficaria impedida de usá-los, Amanda
combinou com o irmão mais novo, Gilberto, que os aparelhos
deveriam ser desenterrados e negociados, com o montante obtido
na venda sendo usado para auxiliar nas contas da casa.
Como não estenderam as buscas a ponto de empunharem
pás e enxadas, os policiais deixaram a casa da menina de mãos
abanando, e permitiram que o plano pudesse ser executado. Era o
único motivo que os adolescentes tinham a comemorar. No mais,
o revés era intenso: em troca de alguns telefones, perderam a
liberdade.
38
Portas Fechadas
¼
Durante 27 dias, o trio responsável pelo saque ficou separado
apenas por algumas portas. Estavam todos no Cense Cascavel I,
uma das três unidades paranaenses destinadas a receber apenas
adolescentes provisoriamente internados; ou seja, no aguardo da
sentença judicial que estabelece a medida socioeducativa que
devem cumprir. As outras duas casas do tipo ficam em Curitiba e
Londrina.
É nesses locais que as moças e rapazes em conflito com a
Lei começam a se habituar à vida cercada por muros a grades. Os
centros de internação provisória são bastante parecidos com as
unidades de reclusão definitiva, inclusive na rotina que oferecem
aos internos. As aulas que integram o Programa de Educação nas
Unidades Socioeducativas (Proeduse), por exemplo, começam a
ser ministradas ali mesmo.
Para Amanda e Douglas, a experiência era bastante válida,
pois as sentenças de ambos estabeleciam que a medida a ser
cumprida era a privação de liberdade. A garota, com 17 anos, foi
encaminhada ao Cense Joana Miguel Richa, voltado à internação
definitiva, assim como outros seis no Paraná*. O rapaz, já com 18
completos, teve como destino o Centro de Detenção e
Ressocialização (CDR) de Cascavel.
Pedrinho, por sua vez, tomou outro rumo. O juiz
encarregado de analisar o caso concluiu que os vinte e tantos dias
de internação provisória lhe foram suficientes. Com isso,
diferentemente dos companheiros de delito, o jovem estava apto a
voltar para casa. A decisão, ao contrário do que possa indicar, não
revoltou Amanda, que sabia exatamente por que seu julgamento
teve outro desfecho: “Ele estudava, e eu tinha desistido logo no
começo do ano. Ele trabalhava na Tuicial, uma gráfica de Cascavel,
*
Além dos três Centros de Socioeducação (Censes) voltados a jovens em internação provisória e dos seis destinados
a adolescentes em internação definitiva, o Paraná dispõe ainda de nove Censes mistos, que oferecem ambos os
serviços. Quatro unidades dessas unidades possuem também instalações anexas que atendem a jovens com medida
socioeducativa de semi-liberdade.
39
Portas Fechadas
e eu não trabalhava. Ele nunca teve outro B.O., e eu, uns três
meses, antes tinha caído por assalto junto com o irmão”.
O último item, a moça faz questão de explicar, não é o que
parece. Tratou-se de uma tentativa frustrada de responder por um
delito cometido pelo irmão Fábio. Sensível à situação do rapaz,
que é mais novo e tivera desentendimentos anteriores com a Lei,
a jovem buscou mentir para livrá-lo da internação. “Era uns assalto
que teve lá e ele foi reconhecido. E eu tentei segurar o B.O... sei
lá, tentei demonstrar ser irmã dele mesmo. Mas não deu. Eles não
acreditaram porque a vítima reconheceu ele”, conta. De qualquer
forma, a passagem ficou registrada na décima-quinta delegacia da
cidade, e, mesmo indevidamente, já fazia parte de sua ficha.
Havia ainda outros dois argumentos que depunham contra
a jovem: era ela a responsável por uma das armas e pelo
planejamento do delito. O revólver, calibre trinta-e-oito, havia sido
comprado meses antes, por pouco mais de 450 reais, numa favela
da cidade. Já a arquitetura do assalto pegara de surpresa até mesmos
os companheiros: “É meio difícil uma menina, no meio de três
piá, ter a idéia... mas a idéia foi minha mesmo. Eu peguei e falei:
‘Vâmo ganhar alguma coisa’. E eles, tipo, duvidaram de mim,
falaram que eu não ia ter coragem e não sei o quê. Eu falei:
‘Demorô... vâmo ganha e boa’”, assume.
Amanda teve coragem, e foi assim, ainda bastante destemida,
que chegou ao Cense Joana Richa, em meados outubro. Bastaram
alguns dias de internação e a novata da casa já manifestou sua
revolta. Agrediu uma adolescente internada sob acusação de
estupro, infração que causa repugnância à maior parte das jovens.
“Ah, é embaçado. Tem um monte de mãe com filho aqui. Por
mais que não se tente julgar os outros, é embaçado você olhar e
começar a pensar: ‘Imagine se ela fizesse isso com o meu filho ou
com o meu irmãozinho’. Ixi... daí o sangue ferve”.
O passo seguinte à repulsa, pois, é a retaliação, e foi o que
Amanda fez: acusando a mal-quista jovem de levar informações
confidenciais das internas à direção do Cense, decidiu, em nome
40
Portas Fechadas
das colegas, tirar satisfação. “Se pegamo no soco mesmo. Em mim,
não deu nada. Mas ela ficou com hematoma. Quase foi prestar
B.O. contra mim”, detalha.
A rebeldia da garota é analisada com cautela pela psicóloga
Cleusa Roderjan Benatto, integrante da equipe técnica do Cense e
responsável, ao lado da assistente técnica Tânia Mara Bruel, pelo
atendimento à Amanda. Na interpretação de Cleusa, o
comportamento hostil da adolescente reflete unicamente os medos
típicos de jovens recém-chegadas ao Centro. “Ela, quando chegou,
tomou posição. Com ela era assim: ‘Eu dou porrada mesmo e
comigo não tem’. É é até uma questão de defesa: ‘Estou chegando,
não sei que lugar é esse e está se armando aqui uma confusão.
Então eu vou tomar o lado das mais fortes’”, pondera.
A pedagoga e diretora da unidade, Mariselni Vital Piva,
acrescenta que, não obstante as jovens tenham ido às vias de fato,
as demonstrações de força das internas geralmente são apenas
verbais, ao contrário do que ocorre com freqüência em Centros
masculinos. “O que difere a menina do menino é a própria questão
da mulher, que usa mais a fala, enquanto o homem usa mais a
agressividade, a força física. Então a menina é mais desrespeitosa:
ela destrata, xinga... aquilo que ela não usa efetivamente com a
força, usa através da fala”.
A compreensão das motivações que desencadearam a briga,
todavia, não impediu a aplicação de sanções disciplinares a
Amanda. A determinação parte do Caderno do Iasp número
quatro, “Rotinas de Segurança”, que classifica as faltas cometidas
pelos adolescentes em leves, médias e graves, com penas específicas
para cada situação. No caso de Amanda, as agressões trocadas
com a colega de internação se encaixavam no último e mais intenso
caso, conforme prevê o item F: “Agredir fisicamente os demais
internos, funcionários ou autoridades”.
É regra também que a penalidade imposta ao interno
acompanhe a seriedade da infração cometida. Como a transgressão
de Amanda era aguda, a punição também precisava ser: dez dias
de afastamento do convívio com as demais adolescentes e
impedimento de participar de atividades recreativas.
41
Portas Fechadas
O caderno demarca ainda que a responsável pela aplicação
das sanções é a diretora da unidade. Responsável pela tarefa no
Joana Richa, Mariselni mostra firmeza no cumprimento da
delicada atribuição: “A instituição trabalha com essa questão de
norma muito claramente. No caso daquela menina que mostra
que não está tendo condições de convivência com as outras, nós a
retiramos do convívio. Ela fica no quarto e o material pedagógico
de escolarização é levado para lá até que ela mostre condição de
retornar ao grupo”.
…
Amanda foi rápida em apresentar-se pronta a deixar o
isolamento. Passados os dias de contenção e transcorridas as
primeiras conversas com as psicólogas do Centro, a garota recuou
na conduta agressiva de outrora. “Ela viu que, se ficasse assim,
iria continuar a ter mais medidas disciplinares, e que isso, não
traria a vida que ela queria de agora em diante. Então, rapidamente,
ela começou a tomar um papel até de conciliadora dentro dessas
posições, e virou de lado; quer dizer, começou a entender e até a
ajudar as outras”, explica Cleusa.
Desse momento em diante, a cascavelense começava a viver
um novo ciclo em sua internação: a conquista de benefícios. Tal
qual ocorre nos centros masculinos, o abrigo feminino também
atende às adolescentes amparado em um sistema de concessão
gradual de direitos. A prerrogativa para conquistá-los, claro, é o
bom comportamento. Exatamente o caminho que Amanda se
mostrava disposta a percorrer.
A primeira meta que atrai significativamente a maioria das
internas é o direito a assistir televisão antes de dormir, cuja
concessão é parcelada. Para poder passar 50% das noites da semana
entretida entre os telejornais e novelas do horário nobre, a jovem
precisa permanecer trinta dias afastada de encrencas. Caso queira
tornar a atividade um hábito diário, o período de sossego precisa
ser dobrado – dois meses sem penalidades e pronto: a tevê já é
uma companheira de todas as noites.
42
Portas Fechadas
Outro sedutor objetivo capaz de mover as garotas para um
convívio pacífico são as saídas externas, passeios feitos
regularmente para pontos distintos da cidade e cercanias, conforme
o interesse das jovens. Shoppings e praias geralmente figuram entre as rotas mais solicitadas.
Amanda já desfrutava de todos esses benefícios quando
alcançou o bem mais significativo de sua internação. Além de
momentos de prazer e distração, comuns às demais recompensas,
esta atividade permitiria também que ela avançasse em sua
escolarização. Única das 27 adolescentes do Cense a possuir diploma de Ensino Fundamental, a garota conquistara o direito a
estudar em um colégio público regular, na companhia de alunos
com a liberdade em pleno vigor.
A decisão da diretoria era arriscada: como assistiria às aulas
dispensada da companhia de funcionários do Centro, a jovem
poderia inventar de fugir a qualquer momento. “O educador me
levava no colégio, me deixava no portão e daí ia me buscar na
saída. Se eu quisesse fugir, era mamão mesmo”, reconhece a
estudante, que teve oportunidades aos montes para tal, pois
freqüentou a escola durante quatro meses.
Além de uma eventual escapada, a equipe técnica do Cense
se preocupava também com a receptividade dos demais alunos.
Como reagiriam ao saber que tinham entre os colegas uma
adolescente privada de liberdade? O problema começou a ser
solucionado a partir de outra pergunta, formulada em conjunto
por Amanda e Cleusa: “E aí, será que a gente mente ou será que
não?”, puseram-se a conjecturar.
Resolveram-se pelo meio termo: iriam mentir sim, porém
baseadas em informações verdadeiras. Amanda não contaria que
estava cumprindo medida socioeducativa, mas também não ousaria
inventar que era uma curitibana tradicional. A lábia que passaria
nos colegas consistia na idéia de que morava na Capital junto de
uma tia, funcionária do Cense. Era por isso que, todos os dias, ela
saía da aula e se despedia das amigas já tomando o rumo da
43
Portas Fechadas
unidade.
Quanto à realização de trabalhos e demais atividades extrasala também havia solução traçada, como relata a estudante: “Os
educadores me ajudavam. Eu podia usar o computador, que eles
passavam o trabalho pro disquete e imprimiam pra mim. Quando
eu precisava de ajuda, eles corriam atrás de livro e de pesquisa na
internet, pra eu não ter que ficar dependendo muito dos outros”.
Mesmo assim, as propostas para tardes de estudo na casa
de amigas chegavam em número razoável. Amanda sempre as
recusava, alegando que a tal tia era por demais rígida e não lhe
permitia participar de atividades como essa. Foi quando a estudante
se deu conta de que a história que inventara com Cleusa realmente
havia colado. Contrariada com as sucessivas negativas aos convites,
uma das colegas de Amanda protestou: “Nossa, essa sua tia é braba
mesmo!”.
Essas e outras passagens Amanda não precisava guardar para
si ou compartilhar por meio de conversas triviais; podia
transformar em música. Bastava pedir ajuda à curitibana Inês e à
também cascavelense Ana que os versos logo saiam. As três
formavam o grupo de rap Unidas MC’s, sempre a rimar sobre as
particularidades do dia-a-dia afastado da liberdade. “A gente tentava
mostrar um pouco da realidade do que a gente sabe”, resume
Amanda. A inspiração também era capaz de vir de fora dos muros,
desde que mantivesse em pauta a violência juvenil: “A Inês teve
uma amiga que se envolveu no mundo do crime. Foi presa, saiu,
acabou se envolvendo de novo, e morreu pela polícia. Daí nós
escrevemos a história dela”, exemplifica.
As cantorias eram apreciadas sobretudo pelas demais
internas, pois raras foram as vezes em que a tríade pôde mostrar
as rimas aos familiares. Aldaci, mãe de Amanda, esteve no Cense
em apenas duas ocasiões. A escassez de visitas se deve em geral às
dificuldades que os entes de jovens do interior têm para se deslocar
a Curitiba, dado que os custos com transporte e hospedagem são
um obstáculo à maioria. Era o caso de Aldaci. Na ponta do lápis,
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Portas Fechadas
uma viagem para a capital não sairia por menos de 170 reais,
contabilizados apenas os gastos com passagem. Um acompanhante
pra deixar a viagem menos tediosa e os passivos já beliscariam
350 reais.
Para amenizar o problema e impedir que as despesas afastem
pais e filhos, o Estado financia uma visita por mês a cada família.
A medida é vital para assegurar que os parentes possam se engajar
e contribuir com o tratamento do jovem, como destaca Mariselni:
“Nós buscamos que essa família esteja o maior tempo possível na
instituição visitando a filha, porque nós temos como objetivo
também restabelecer laços familiares. Não adianta você fazer
qualquer trabalho aqui se, ao retornar, essa adolescente não ter
fortalecidos os laços com a família”.
O pouco uso que fez dos custeios do governo não significava
que Aldaci não compreendesse essa filosofia. Ela sabia muito bem
a importância de suas visitas. Acontece que não era somente o
Cense Joana Miguel Richa que lhe exigia atenção; a mãe precisava
também freqüentar outra unidade, esta masculina e mais próxima
de casa, onde Fábio também estava internado.
…
O envolvimento do garoto com a criminalidade, se
comparado à situação de Amanda, era mais antigo e preocupante.
Começou aos treze anos, e desde então não deixou de acompanhálo. A relação de delitos acumulada é tamanha que chega a
impressionar até mesmo a irmã, calejada no assunto: “Ele tem um
monte de B.O.: 121, 155, 157... é feinha a ficha”, conta, em alusão
a alguns dos artigos do Código Penal pelos quais o rapaz já
respondeu: homicídio, furto e roubo, respectivamente.
A bola da vez era o último da lista. Flagrado em um assalto
à Central de Abastecimento do Paraná (Ceasa/PR) do município,
Fábio foi acomodado no Cense Cascavel II, destinado à internação
definitiva e para onde Aldaci precisava se deslocar a fim de ver o
filho.
45
Portas Fechadas
A unidade não ficava exatamente nos arredores de casa, mas
era melhor percorrer alguns bairros da cidade do que se deslocar
até Curitiba, onde Amanda estava naquele momento. É na capital
também que se situa o primeiro dos Centros de Socioeducação
freqüentados por Fábio, o São Francisco, maior unidade do Paraná,
com capacidade para receber 130 garotos. O filho de Aldaci passou
a estar entre eles em 2006, depois de ser detido por roubo e
desmanche de carros.
Logo que o rapaz encerrou a internação longe de casa, a
família achou por bem deixar um advogado de sobreaviso, pois
eram recorrentes os litígios de Fábio com a Lei. E os serviços do
doutor logo se mostraram necessários. Em troca de mil reais, o
especialista foi encarregado de defender o garoto de uma nova
acusação, desta vez mais grave: homicídio.
Como boa parte dos confrontos fatais entre jovens, a briga
que resultou no delito tinha como motivação discórdias anteriores.
A confusão preliminar aconteceu com um amigo de Fábio, baleado
depois de uma tentativa de assassinato. O disparo não chegou a
ser letal, mas deixou seqüelas graves no rapaz, situação que inclinou
Fábio à vingança. “O braço dele começou a secar, e meu irmão se
doeu de ver aquilo. Falou: ‘Ô, loco! Olha o tipo do meu camarada,
tá com o braço secando por causa daquele cara’. Então meu irmão
chegou e matou ele”, relata Amanda.
Do escritório em que trabalhava, o advogado mostrou
competência, e convenceu o juiz de que não era preciso internar
Fábio novamente. Embora o futuro lhe reservasse outras medidas
socioeducativas, como a que cumpria agora no Cense Cascavel
II, o garoto teve, naquele instante, a liberdade assegurada.
…
Mesmo antes de enveredar por tais caminhos, Fábio e
Amanda já eram familiarizados com o desrespeito às Leis. O
exemplo vinha do pai, Álvaro, que desde a mocidade tinha o hábito
de usar drogas. O desenvolvimento do vício, inclusive, foi
acompanhado pela esposa, então na condição de namorada: “Ele
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Portas Fechadas
falava que maconha não dava nada, que era a mesma coisa que
cigarro, que era uma coisa normal, que todo mundo fuma e não
sei o quê”.
O casamento aconteceu, os primeiros filhos nasceram e a
intensidade dos entorpecentes usados por Álvaro ficou maior. Das
baforadas iniciais, o homem passou a tragar substâncias mais
pesadas, como o crack. A droga era usada principalmente nas
viagens que fazia, já que seu ofício era circular por diversos cantos
do país vendendo livros didáticos infantis. O quê, para Aldaci, não
deixa de ser uma ironia: “Ele vendia material sobre drogas e depois
usava drogas. Imagina...”.
Os efeitos do vício não ficaram restritos à saúde do vendedor,
mas se fizeram sentir em toda a família. Em casa, Álvaro se quedava
cada vez mais agressivo, canalizando a violência no trato dispensado
à esposa e aos três filhos. Teve surra suficientemente bruta para
deixar marcas de barra de ferro nas costas dos jovens. Com Fábio,
em especial, o desgosto do pai parecia ainda maior, tal como conta
pesarosamente a mãe: “O pai sempre diminuía ele. Era muito
apegado à Amanda, a mais velha, e ao Gilberto, o menor. Mas
com o Fábio, ele sempre fazia cobrança, reclamava de tudo que o
piá fazia. Teve um dia que quebrou uma vassoura na perna do
Fábio porque ele tava pisando naquelas gramas que tem rosetinha,
e achou que o piá tava rebolando”.
A filha entendia exatamente o que se passava, pois algum
tempo antes tivera oportunidade de conhecer a fundo a complicada
personalidade do pai. Os dois deixaram Cascavel para morar em
Rondonópolis, cidade mato-grossense bastante conhecida por
Álvaro, que costumava distribuir seus livros didáticos por aquelas
bandas. E era justamente na companhia de materiais escolares
que Amanda passava a maior parte do tempo. Com poucos amigos
na nova cidade, a garota não fazia muita coisa além de rabiscar
seus cadernos – dedicação que só lhe valeu o diploma de conclusão
da oitava série, pois bastou um ano no Centro-Oeste e o pai decidiu
que era hora de voltar ao Paraná.
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Portas Fechadas
O retorno da dupla resgatou também os velhos conflitos. O
pai seguia usando drogas e distribuindo bordoadas a troco de nada.
Só que agora as forças da casa já tinham certo equilíbrio. Fábio
havia comemorado mais um aniversário e exibia um porte físico
respeitável, o que lhe permitia não mais se encolher diante dos
abusos do pai. Era briga atrás de briga. “Os dois iam acabar se
matando. Meu irmão não baixava minha cabeça pra ele, nem meu
pai baixava a cabeça pro meu irmão. Sei que tava uma guerra, um
inferno”, constata Amanda.
Parecia não haver outra solução plausível que não a
desintegração da família. Separar-se em definitivo do marido, além
do mais, era um plano que Aldaci tracejava em silêncio há anos.
“Eu nunca fui muito de brigar. Eu era meio quietinha, assim, sabe?
E ele chegava bêbado, incomodando... eu deveria ter sido de brigar,
porque daí não ia ter vivido com ele nem dois anos. Já tinha largado
logo!”.
A oportunidade estava novamente posta. Mas para que fosse
possível aproveitá-la, a mãe precisava somar sua revolta à dos filhos.
Amanda e Fábio, como que entendendo o tácito chamado, trataram
de fazer valer a vontade da genitora, e colocaram o pai para fora
de casa. Com uma providencial ajuda da vizinhança, é verdade:
“O Fábio deu um vale-transporte pra ele e falou que se ele voltasse,
a piazada ia erguer ele no cacete. Ele se juntou com uns dez piás
pra erguer o pai no cacete se ele tentasse voltar pra cá”, lembra
Aldaci.
Temendo a resistência que agora era coletiva, Álvaro não
confiou retornar. Permaneceu afastado e durante muito tempo
ficou sem informações detalhadas da família. Não sabia como
viviam os filhos e o que fazia a ex-mulher, que a esta altura já
levava uma vida bem diferente daquela que haviam compartilhado
por mais de 15 anos.
…
Quando partiu, o pai levou também parte importante do
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Portas Fechadas
orçamento de casa. O sustento passou a ser responsabilidade
exclusiva de Aldaci, que ganhava a vida como babá e, em datas
festivas e finais de semana, livrava mais algum montando buquês
e arranjos na floricultura de um amigo de infância. Só que a coisa
continuava apertada. O jeito então foi voltar aos estudos.
Assim como Amanda antes da internação, a mãe tinha
freqüentado a escola só até a oitava série. Era pouco para pleitear
um emprego bem remunerado, capaz de dar conta das
necessidades dos três filhos. Foi quando se matriculou em um
curso supletivo que em pouco tempo lhe garantiu também o diploma do Ensino Médio. Agora o currículo era satisfatório. Faltava
apenas surgirem as oportunidades.
Não demorou muito, meados de 2007, e apareceu uma das
boas: concurso público municipal para agente de saúde, com 150
vagas. Aldaci garantiu a sua, e dali em diante dispensou
definitivamente qualquer ajuda para arcar com as despesas da casa.
Foi a derradeira independência do ex-marido: “Se for pra ele
mandar cem reais por mês e vir aqui incomodar, é melhor que
não dê nada”, exclama.
A concentração das funções até então divididas com pai dá
o ensejo necessário para Aldaci abordar a bem humorada e
reveladora ambigüidade que envolve seu nome. “Aldaci é um nome
masculino, daí os vizinhos fazem muita confusão: pensam que eu
sou o homem da casa. Se bem que eu sou mesmo... tenho que
providenciar tudo aqui. Acho que meu pai escolheu esse nome
pra mim não foi à toa”, diz, com os lábios ensaiando uma
gargalhada.
Em tom mais sério, Amanda também reconhece o empenho
da mãe: “Eu falo que ela é bem uma guerreira mesmo, porque
meu pai sumiu e ela faz o papel dos dois: pai e mãe”.
Ademais do nome, outra herança deixada pelo pai era especial neste momento para Aldaci. Trata-se da casa onde mora, a
mesma em que passou um bocado da infância. A decisão de ali
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Portas Fechadas
abrigar os próprios filhos surgiu em 2003, depois de uma série de
mudanças feitas pela família, que durante muito tempo perambulou
entre moradias próprias, alugadas e mesmo emprestadas. “Esta
casa ia ficar pra um irmão, que era solteiro e faleceu. Aí minha
mãe deu pra mim”, esclarece Aldaci.
Com dois quartos, cozinha e sala pequenas, e quase sempre
bem arrumada, a residência fica em uma das ruas não asfaltadas
do bairro Cataratas, na face Leste da cidade. A falta de intraestrutura, diga-se, é uma das queixas dos moradores locais, pois
volta e meia o chão de terra batido enche-lhes os calçados de poeira
ou barro, conforme o bom humor de São Pedro.
Em determinadas ocasiões, o alerta no pisar vale também
para as colegas de Aldaci. Quando estão trabalhando pela região,
elas elegem a casa da companheira ponto de encontro para o
almoço. A visita é sempre bem-vinda, mas desde que as conversas
que acompanham a refeição não tenham como tema as intimidades
da família. Nenhum problema com o ex-marido; Aldaci não se
sente a vontade é de falar sobre a real situação dos filhos: “Eu
tenho um certo receio de que se a minha chefe ficar sabendo que
meus filhos são, assim, delinqüentes, que já foram pra cadeia, isso
possa me afetar no trabalho. Então eu escondo isso deles. Eu não
conto nada da minha família”, admite.
O ofício que desempenha torna o receio ainda intenso. Aldaci
faz parte de um grupo de agentes que realiza campanhas de
combate à dengue. Em vez da tradicional visita de casa em casa, a
turma faz o trabalho de conscientização em escolas – eis a fonte
dos temores da mulher: “Eu acho que é capaz da minha chefe
geral não me querer mais. Ela pode falar: ‘Ah, não. Nós não
podemos pôr na escola uma pessoa que não cria nem seus filhos
direito’. Sei lá... enquanto eu puder, vou escondendo”.
…
Com pelo menos com duas pessoas Aldaci tinha liberdade
total para tocar no delicado assunto: Cleusa e Mariselni, que
conheciam as intimidades da filha quase tão bem quanto a mãe. O
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Portas Fechadas
interesse de ambas na situação da jovem, aliás, estava maior nos
últimos tempos, pois não havia muito que o primeiro relatório
técnico sobre Amanda fora encaminhado ao Fórum. Estava nas
mãos do juiz, portanto, a chance de a jovem encerrar sua internação,
que se estendia por sete meses.
Sempre que há possibilidade de um adolescente se despedir,
a equipe técnica dos Censes se vê diante de dois sentimentos polares.
O primeiro é satisfação em ver o jovem prestes a ganhar espaço
para novamente agir e fazer escolhas. Cleusa é adepta da tese,
inclusive, de que reclusões muito extensas acabam por criar
condicionamento. Feito o tratamento, acredita ela, o melhor é
permitir que o interno tenha assegurada a oportunidade de se
mostrar: “A gente corre um risco de perpetuar, alongar demais
essa estadia. E aquilo que ele não tem lá fora, ele tem aqui dentro.
Então o jovem acaba sendo dependente. Acho que a gente sempre
tem que dar chance”.
Por outro lado, os profissionais da socioeducação também
são acometidos pelas incertezas quanto às possibilidades de o
adolescente se manter afastado da marginalidade, objetivo central
do trabalho. Nem mesmo os mais fortes indícios de ressocialização
são capazes de dar esta garantia. Em suma, é sempre uma aposta:
“É difícil fazer uma análise e apostar no outro com essa certeza. É
um risco que a gente corre”, explica a psicóloga
A imprevisibilidade da situação aumenta à medida que o
Centro deixa de tutelar o jovem e supervisionar seu
comportamento. Na avaliação de Cleusa, o resultado do trabalho
dos Centros é sempre circunscrito ao livre árbitro de cada jovem
internado. “Eu acredito que a gente não pode ter o poder de
dominar a vida do outro. Você tenta dar algumas ferramentas para
que ele possa se virar um pouco lá fora, mas, infelizmente, depende
de cada um de nós”.
No caso de Amanda, o páreo era bastante equilibrado. As
projeções otimistas tinham como base a conduta exemplar da jovem
na unidade. Superada a turbulência inicial, ela se tornou referência
51
Portas Fechadas
de comportamento na casa. “A Amanda estava um pouco melhor,
um pouco mais forte. Pelo menos aqui ela demonstrou que já tinha
um juízo de valor, que conseguia distinguir o certo do errado”,
avalia Cleusa.
Mais um fator que inclinava a balança para um convívio
harmonioso com as Leis, acrescenta a psicóloga, era a estabilidade
conquistada recentemente pela mãe. “A Amanda teve o ambiente
familiar um pouco mais propício, com uma estrutura familiar mais
organizada. Ela tem uma mãe que tem emprego fixo, que é
funcionária pública, e quando tem alguém com um emprego, você
faz uma análise melhor da estrutura familiar”.
O problema é que também vinham de casa os argumentos
contrários. O temor de que a jovem pudesse novamente cometer
delitos tinha em Fábio e seu histórico de infrações um catalisador.
“Ela tem um vínculo bem forte com ele. Acho que o nosso medo
é esse irmão. Mais do que ela, é ele que nos dá mais insegurança”,
conta Cleusa.
Mariselni, experiente no tema, aponta outro fator que
potencializa o risco de novas infrações: os círculos de amizade.
Projeta a diretora que quanto mais próxima Amanda ficasse do
antigo grupo de relacionamentos, mais propensa estaria à
reincidência: “Essa adolescente tem que estar fortalecida, porque
ela vai retornar pra mesma comunidade, pro mesmo grupo. Então
não é uma coisa fácil. O que vai acontecer? Ao retornar, aquele
grupo vai estar próximo dela, vai estar chamando. Então ela tem
que estar instrumentalizada com força pra não retomar a situação
anterior”.
Amanda tinha consciência de todas as cartas que estavam à
mesa, e conhecia também o papel que lhe cabia nesse jogo.
Enquanto aguardava a decisão do juiz, pesava os prós e contras de
seu processo de ressocialização, e previa dificuldades para quando
ele terminasse: “Ah, fácil não vai ser. É normal que seja difícil.
Não vai ser fácil chegar e falar: ‘Não, eu mudei de vida’ e começar
tudo diferente. Não, porque eu tenho certeza que meus amigos
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Portas Fechadas
vão me buscar pra ir pros fervo, maluco que sabia que fazia função
vai me chamar pra roubar... e vou ter que aprender a dizer não”.
Era maio de 2008, e todos se perguntavam se a resposta
negativa realmente viria.
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Portas Fechadas
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Portas Fechadas
1. ENTRE CELAS E SALAS
I. GABRIEL
II. AMANDA
III. ARTHUR
O esquema sempre funcionou bem. Bastava o eletricista do
grupo ser chamado para um conserto qualquer, e a turma já ficava
de sobreaviso. Enquanto visitava a casa do cliente para realizar o
serviço, o especialista observava com atenção as particularidades
da residência. Se percebesse que ali havia cofres ou bens de valor,
o homem terminava o reparo e logo entrava em contato com o
restante da trupe.
Nas conversas, além de fazer relatos sobre os possíveis
esconderijos de dinheiro distribuídos pela casa, o técnico também
fornecia instruções detalhadas do que era preciso para entrar na
moradia. Um verdadeiro ofício de informante, que lhe valia metade
dos dividendos obtidos com a segunda parte do trabalho: o assalto.
Mais delicada e perigosa, esta etapa exigia habilidades além
do manuseio de cabos e fios. Por isso, era cumprida por três
homens mais habituados à tarefa. Um deles era Arthur, o único
adolescente do grupo. Embora com precoces 15 anos, o rapaz
não era poupado de qualquer afazer necessário para o sucesso do
assalto: participava ativamente de todos os momentos, inclusive
da rendição das vítimas, já que os ataques eram realizados na
presença dos proprietários da casa. “Nós não agredia. Queria só o
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Portas Fechadas
dinheiro e pronto”, ressalva o rapaz.
As vítimas geralmente eram levadas para o banheiro, onde
permaneciam até que o grupo terminasse de pilhar os bens que
lhe interessavam. E para que pudesse deixar a casa com as mãos
abarrotadas de pertences valiosos, o trio escolhia com atenção o
local de suas ações. “Não era residência humilde. Só coisa bacana”,
explica Arthur. Os destinos mais comuns, acrescenta o jovem,
eram os bairros Água Verde, Batel, Jardim Social e Bacacheri,
entre os mais ricos de Curitiba.
Nessa de aguardar o sinal positivo do eletricista, invadir a
casa para render os moradores e de lá sair com as principais posses da família, Arthur e os camaradas já tinham livrado sucesso
mais de dez vezes. O impressionante histórico de êxitos animava
o rapaz, que, a despeito dos riscos que corria, planejava ousados
investimentos: “Eu tava juntando dinheiro pra comprar uma casa,
que tava valendo trinta mil. Eu já tinha uns dezenove ou vinte, e ia
parcelar o resto”. A idéia, complementa, era livrar os parentes da
condição de inquilinos: “Ia morar eu e a minha família, porque
nós moramos de aluguel”.
Mas a poupança ilícita teria de aguardar, pois a próxima
ação do grupo não terminaria como as anteriores. Apesar do zelo
na seleção das casas, daquela vez o grupo havia escolhido a vítima
errada.
…
Nenhum problema com a condição econômica do sujeito –
esta esbanjava vigor, como tinha de ser; o obstáculo estava na
atividade desempenhada pelo homem: ele era Elias Vidal, um dos
38 vereadores da Câmara Municipal de Curitiba.
A influente posição social da vítima, depositária da confiança
de mais de cinco mil curitibanos nas eleições de 2004, fez a polícia
agir com a eficiência que faltou na dezena de assaltos anteriores.
Foi preciso pouco mais de trinta minutos para que o grupo, que
gastou mais de uma semana planejando o roubo e rodeando as
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Portas Fechadas
cercanias da casa, no bairro Jardim Social, acabasse detido por
soldados do Batalhão de Choque da Polícia Militar do Paraná.
A captura foi presenciada pelos pedestres que circulavam
pela Avenida Victor Ferreira do Amaral naquela noite de segundafeira. Se alguma das testemunhas pudesse contar o que viu, narraria
uma perseguição bem ao gosto de Hollywood. Começou com o
trio fugindo pelo caminho errado, passou pelas vítimas conseguindo
avisar as autoridades, e terminou com os fugitivos algemados: “Nós
tava no Jardim Social e fomos pro Bacacheri, mas era pra ter ido
pro Cristo Rei. E bem na hora que nós tava voltando, demo de
frente com a Rotam, que começou a perseguir nós. Aí fizemos um
dos carros deles tombar, mas batemos nosso carro uma esquina
pra cima do (Estádio) Pinheirão. Deu perda total”, detalha Arthur.
A colisão não teve maiores conseqüências para os
passageiros, pois o carro em que estavam, um Ford Fiesta modelo
sedan, tinha avançados dispositivos de segurança. O veículo
pertencia a Vidal, e era apenas uma parcela do que o trio havia
saqueado da residência do vereador. “Conseguimos levar cinco
mil reais e um quilo e meio de ouro. Só nas jóias nós ia tirar mais
do que 50 mil, porque tinha relógio caro: Rolex, Swatch”, conta o
rapaz, com a perícia de quem é tarimbado na atividade.
Ocorre que dali em diante o jovem enfrentaria situações nem
tão familiares assim. Era o roteiro da história ganhando tons menos
glamourosos. Após a mal-sucedida fuga, Arthur e os companheiros
foram levados para o décimo primeiro distrito policial de Curitiba.
Quanto aos colegas, tudo certo, pois eram maiores de 18 anos e
não havia qualquer irregularidade nesse encaminhamento; mas
Arthur, que sequer tinha 16 completos, não poderia permanecer
no local. De acordo com os princípios da socioeducação, era papel
do Estado instalá-lo em uma delegacia própria para jovens, como
a que fica no bairro Capão da Imbuia.
A violação às determinações perdurou por quinze dias,
quando então o rapaz foi afastado dos parceiros de delito e
internado provisoriamente no Centro de Socioeducação (Cense)
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Portas Fechadas
de Curitiba, agora sim junto de outros adolescentes. A companhia
dos novos colegas durou apenas quatro semanas, tempo necessário
para as autoridades responsáveis pela análise do caso definirem
sua medida socioeducativa. A sentença previa internação definitiva
e exigia uma nova mudança, desta vez para Piraquara, município
da Região Metropolitana da capital onde mora sua família e, mais
importante naquele instante, sede do Cense São Francisco, seu
novo abrigo.
…
Quando chegou à unidade, Arthur ainda matinha vivas as
memórias do delito que cometera. E mesmo tendo como
conseqüências a privação de liberdade e o convívio irregular com
presos mais velhos, a infração enchia-lhe de orgulho. Quem
identificou o paradoxo foi a psicóloga Renata Campos Mendonça,
que, ao lado da assistente social Rossana Ribeiro Narloch, é
responsável pelo atendimento do adolescente. Há dois anos
trabalhando com jovens em conflito com a Lei, Renata diagnosticou
o entrave logo nas conversas iniciais: “Quando chegou aqui, o
Arthur era infantil. Eu sentia nele uma emoção com essa vida. No
primeiro atendimento, ele me contou que eles fugiram da polícia
em alta velocidade e perguntou se eu não visto passar na televisão...
uma aventura!”, revela.
A depender da impressão inicial deixada pelo jovem, o
trabalho da equipe técnica seria árduo. Não bastassem as
preocupações advindas da imaturidade do adolescente, a tarefa se
quedava ainda mais complicada ante o local do tratamento.
Unidade mais antiga e populosa do Estado, com capacidade oficial
para receber 130 jovens do sexo masculino, o Cense São Francisco é tido como o Centro de Socioeducação mais delicado para
se trabalhar no Paraná.
A avaliação não é feita somente por quem vê o problema à
distância, mas é uma espécie de mea-culpa – as dificuldades são
reconhecidas inclusive pelo diretor da unidade, Júlio César
Botelho: “O São Francisco é diferente por diversos motivos.
Primeiro: é a maior unidade do estado e tem um número elevado
58
Portas Fechadas
de adolescentes. Segundo: o quadro funcional é antigo, já pegou
legislações diferentes, tem baixa escolaridade e tem dificuldade
pra compreender a lei e a metodologia de trabalho”, analisa.
Renata também dá seu parecer sobre as condições de
trabalho do local. Para ela, as barreiras ficam mais nítidas quando
o Centro é comparado aos mais recentes Censes construídos pelo
Estado*: enquanto as novas unidades possuem alojamentos
individuais, o São Francisco abriga até oito adolescentes em um
mesmo espaço. E a situação já foi pior. Em 2006, quando a
psicóloga começou a trabalhar na casa, o número de jovens
internados juntos era um terço maior: “A ala B chegava a ter doze
meninos por alojamento”, lembra.
Ainda que insuficiente, a redução é fruto de esforços das
recentes administrações do Cense para aproximar a unidade cada
vez mais das deliberações traçadas pelo Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo (Sinase), a política pública que busca
pôr em prática as exigências feitas pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) no que diz respeito à privação de liberdade.
De acordo com o Sinase, os Centros de Socioeducação devem se
constituir como espaços com características residenciais, distantes
da concepção arquitetônica de um presídio, como a que o São
Francisco possui hoje.
Para ganhar ares mais caseiros e se adequar às determinações
legais, por exemplo, o Cense criou um espaço exclusivo para
adolescentes recém-chegados, a ala D. As vantagens do novo
ambiente são explicadas por Renata: “A idéia é que eles fiquem de
45 a 60 dias pra que tenham mais atendimentos, pra que possam
ser observados em grupo e pra que a gente faça uma avaliação
melhor”. É a partir das observações feitas nessa ala que é definido
o alojamento definitivo de cada jovem. “O que eu avalio mais é a
maturidade que o menino tem”, resume a psicóloga, uma das 14
técnicas da unidade responsáveis pelo encaminhamento dos
* Neste ano, a Secretaria de Estado da Criança e da Juventude prevê a inauguração de cinco novas unidades. Elas
ficam em Cascavel, Laranjeiras do Sul, Maringá, Ponta Grossa e Piraquara, esta construída nas intermediações do
próprio Cense São Francisco.
59
Portas Fechadas
internos.
No tempo em que Arthur era novato, muitas dessas
mudanças ainda não haviam acontecido. O método de recepção
dos adolescentes, por exemplo, não oferecia um período de
isolamento tão grande. Com isso, pouco tempo depois de ingressar
na unidade, o jovem foi colocado em contato com adolescentes
mais antigos na casa e mais maduros. Era mais um fator que
deixava Renata, sabedora do comportamento infantil de Arthur,
preocupada com os dias que viriam.
…
Conforme previsto, o início foi complicado. Arthur sofreu
um bocado para se adaptar ao convívio com os colegas do
alojamento que ocupava, na ala A. Surgiram desentendimentos
daqui e dali. Mas se há um atributo que salta aos olhos na
personalidade do jovem é a simpatia. Usando-a, em pouco tempo
o rapaz passou a administrar melhor os conflitos, e logo se integrou
plenamente ao ambiente. Renata então ficou mais tranqüila e
percebeu que Arthur tinha outras características além das
identificadas nas primeiras conversas: “Ele é um menino muito
fácil de fazer vínculo, muito afetivo, muito falante. Ele tem carisma”,
resume.
Com o passar dos meses, o adolescente ganhou também o
apreço dos profissionais do Centro. Grande parte da admiração
vinha do empenho mostrado por ele nas aulas do Programa de
Educação nas Unidades de Socioeducação (Proeduse),
freqüentadas com a regularidade exigida. A constante presença,
somada a boas notas, já trazia resultados admiráveis: em questão
de um ano e pouco, Arthur trocou os livros da terceira série do
Ensino Fundamental, nível escolar que possuía assim que chegou
à unidade, por cadernos e lições da sétima série. Estava agora a
alguns passos de se tornar aluno do Ensino Médio, algo impensável
para o período em que estava em liberdade.
Também jogava a favor do rapaz a participação em oficinas
de profissionalização, atividade muito valorizada pelos Censes.
60
Portas Fechadas
Durante oito meses, ele dedicou suas manhãs a aprender técnicas
de panificação, transformando misturas de água, farinha e ovos
em saborosos confeitos. A qualidade das guloseimas impressionou
não apenas os colegas de internação, mas também o padeiro que
trabalha no Cense. Como volta e meia ele precisava de um ajudante
para dar conta das iguarias encomendadas pela direção da casa, o
homem não teve dúvidas em convidar Arthur para lhe ajudar na
função: “Não tinha ninguém pra fazer os bolos e, como só tinha eu
que aprendi bastante, o padeiro me chamou pra ajudar”, conta o
adolescente.
Pensando em manter o jovem motivado com a atividade e
confiando em seu bom comportamento, a equipe técnica do Centro
decidiu encaminhá-lo à Rede Esperança, uma Organização NãoGovernamental (ONG) que oferece diversos cursos de
profissionalização e que, como mantém parceria com os Censes,
recebe muitos adolescentes em conflito com a Lei. A vantagem de
se realizar uma oficina na Rede é que, depois de concluído o
aprendizado, o aluno geralmente é encaminhado para o mercado
de trabalho. No caso de jovens privados de liberdade, também há
o benefício de poder deixar a unidade de internação todas as
manhãs, já que as aulas são ministradas na sede da ONG.
Arthur começou a se deslocar diariamente para lá em abril
de 2008, quando teve início a oficina de panificação. As saídas
eram acompanhadas por Carlos, interno que também foi
matriculado no curso, e deveriam se estender por cinco meses.
Era esse o período de duração do treinamento. Mas os rapazes
nem tiveram tempo de memorizar o caminho que separa o São
Francisco da ONG, pois percorreram o trajeto por apenas uma
semana. De segunda a quinta, as aulas se passaram conforme o
previsto, com o ensino de algumas receitas e muitas massas levadas
ao forno. O problema veio no dia seguinte, quando a dupla sequer
entrou na sala. “Nós conhecemos umas meninas lá, e fazia tempo
que nos tava na laje, né?”, começa a explicar Arthur, fazendo
referência ao período em que ele o amigo estavam sem trocar
beijos ou carícias com garotas.
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Portas Fechadas
Com os hormônios em polvorosa, fruto de mais de um ano
de internação, os adolescentes trataram de tomar o caminho da
rua, onde duas jovens os esperavam para um encontro às
escondidas. O sumiço dos meninos foi prontamente notado pelo
professor, que comunicou o fato à direção do Cense. “Eu não queria
acreditar, mas eles só podiam ter fugido”, revela Renata.
As incertezas perduraram por uma hora e meia, período
que durou o passeio. Para alívio geral, a escapulida foi encerrada
com o retorno dos internos à ONG. “A gente saiu nove horas e
voltou dez e meia, antes que a Kombi do Educandário chegasse.
Só que não adiantou nada. Chegamos e todo mundo já sabia”,
explica Arthur.
Mesmo terminando em frente à Rede Esperança e com o
menor dos prejuízos possíveis, a aventura de Arthur e Carlos
custou-lhes o direito de continuar participando do curso. “Pode
parecer duro demais, mas é importante que eles saibam que a
saída é uma coisa muito séria. Eles não podem sair passear sem
nenhum sentido pedagógico. Eles estão presos”, justifica Renata.
O episódio, assim, freava a série de avanços que o jovem
vinha tendo desde que chegara ao Cense. A preocupação central
da equipe que o acompanhava estava nas circunstâncias em que a
infração aconteceu, bastante ligadas ao passado do rapaz.
…
Por coincidência, a Rede Esperança fica no mesmo bairro
em que Arthur passou boa parte da adolescência, o Capão da
Imbuia, na face Leste de Curitiba. Foi esse acaso que permitiu a
saída com as garotas, a quem o rapaz era chegado de outros
carnavais: “Eu conhecia as meninas porque morei ali perto. Elas
sabiam que eu tava preso, só que não podiam me visitar. Aí ficaram
sabendo que tava lá na Rede, e a gente foi fazer um passeio”, conta.
Curitibano nascido no bairro Cajuru, o jovem foi criado em
Piraquara e se mudou para o Capão da Imbuia pouco antes de
completar 14 anos. Até então, tivera uma infância típica entre os
62
Portas Fechadas
jovens da periferia, com muitas brincadeiras ao ar livre e incontáveis
pipas empinadas pelos céus. A partir da mudança para o novo
bairro, contudo, passou a freqüentar a rua com mais afinco,
firmando novas amizades e tomando gosto pela vida noturna.
Arthur é sincero ao reconhecer que foi essa mudança de
rotina que originou seu envolvimento com atividades ilícitas,
iniciado no contato com as drogas: “Eu comecei a fumar maconha
e ir pro som... ixi, daí azedou tudo!”.
A despeito da satisfação instantânea que proporcionavam,
os hábitos de freqüentar festas e animá-las com entorpecentes logo
se tornaram um empecilho para o rapaz, pois ambos não custavam
barato. Com oito filhos em casa e sem contar com o auxílio do
marido, de quem era separada, a mãe de Arthur, Laura, não estava
apta a sustentar os prazeres do filho. Ganhava a vida como diarista,
atividade cujo rendimento era destinado a cobrir as despesas da
casa, como bem lembra o adolescente: “Eu não podia pedir muitas
coisas pra minha mãe porque ela não tinha condições de comprar”.
A limitação se tornou ainda mais pesada quando, em uma
das muitas boates que costumava freqüentar, o jovem se interessou
por Beatriz. Menina de classe média e bem-vestida, a garota
chamou sua atenção, e Arthur não tardou em puxar papo. Conversa
vai e conversa vem, e os dois se tornaram namorados. A nova
condição exigia agora mais cuidados e vaidades por parte do
adolescente, que passou a cultivar novas necessidades. “Eu gostava
de coisa cara. Queria tênis de 200 reais e curtia pano bom.”
Frustrado com a impossibilidade de concretizar o desejo,
Arthur sabia que seu raio de ação era um tanto quanto limitado.
Sem emprego nem mesada, o jovem desistiu de usar os meios
honestos, e se rendeu às tentações e facilidades do dinheiro ilícito:
“Eu não tinha dinheiro, não trabalhava... o que que vou fazer?
Vou roubar”, explica.
O método escolhido para os furtos era ambicioso: sem antes experimentar abordar transeunte pelas ruas ou motoristas pelos
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Portas Fechadas
semáforos, atividades mais simples, o jovem de cara se pôs a assaltar
residências, delito que cometeu até ser capturado. Como a atividade
era rentável, permitia-lhe gastos além dos previstos inicialmente:
“Passou um tempo eu comprei uma bizzinha também. Fiz uns
cambalachos de uma carteira e andava muito louco”, relembra.
A namorada, conta o jovem, de nada sabia. Acreditava que
os pertences ostentados por ele eram fruto de labuta honesta. A
idéia, claro, estava equivocada, mas não era um devaneio absoluto,
pois o rapaz já tivera fontes estáveis de renda, sempre auxiliando
familiares. Com o tio, trabalhou de jardineiro; junto do padrasto,
fez as vezes de ajudante de construção. Nada muito duradouro.
A experiência mais significativa no mercado formal se passou
em uma fábrica de remédios situada no bairro Campo Comprido,
na região Oeste da capital. Durante alguns meses, o rapaz, então
com 15 anos, fez dali seu destino de todas as tardes. Certo dia,
entretanto, os serviços que prestava foram dispensados pelo patrão,
depois que este lhe fez algumas exigências, que, embora simples,
Arthur era incapaz de cumprir: “Saí porque eu não tinha
documento. Só tinha a identidade e a certidão de nascimento, mas
precisava de um CPF e de uma carteira de trabalho”, revela.
Beatriz estava a par dessa história, mas permaneceu no
escuro quanto ao ganha-pão do namorado por um bom tempo,
até que a verdade lhe bateu à porta. Literalmente, e trazida por
alguns amigos do namorado que, na companhia de outros jovens,
haviam assaltado um bordel. De passagem pelo litoral, Arthur não
participou da ação – pelo menos diretamente. Sua contribuição
para o delito se deu pelo empréstimo da arma utilizada, que fora
comprada nas cercanias de casa meses antes, por seiscentos reais.
A polícia de pronto deteve a turma, e não demorou a
perguntar pelo dono do revólver usado no crime, um calibre trintae-oito. Mediante ameaças, cada participante do assalto foi
entregando um colega. De casa em casa, as autoridades acabaram
por visitar a residência de Beatriz, acreditando que lá poderia ser
o refúgio de Arthur. Os peêmes não o encontraram, mas jogaram
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Portas Fechadas
luzes sobre a real atividade do rapaz. O namorou terminou ali
mesmo. “Os pais da guria pensavam que eu trabalhava...”, lamenta
o jovem.
Ao regressar da viagem, Arthur soube de tudo que
acontecera, e, inconformado com o término da relação,
imediatamente quis saber quem colocara a polícia em contato com
sua namorada, agora na condição de ex. O responsável pela
informação, Tadeu, então se apresentou, e ganhou o desprezo
definitivo do jovem, que o agrediu com violência.
Novamente solteiro, Arthur seguia varando as madrugadas
em casas noturnas, onde conhecia outras garotas e se alienava da
perda recente. Mas em uma das festas, realizada nas proximidades
da Praça Rui Barbosa, em Curitiba, as lembranças voltaram com
intensidade suficiente para interromper a diversão. Não se tratava
da presença de Beatriz, mas de Tadeu. Antigo companheiro, o
rapaz agora era desafeto de Arthur, que, entre músicas e bebidas,
resolveu deixar a situação clara mais uma vez, aplicando-lhe uma
nova surra.
O desentendimento teria acabado ali, não fosse uma série
de coincidências ocorridas ao término da festa. Acompanhados
das respectivas turmas, os dois jovens tomaram o mesmo ônibus
para voltar para casa. Como eram vizinhos, percorreram todo o
trecho juntos, desembarcando, inclusive, no mesmo ponto, uma
das estações-tubo do bairro Capão da Imbuia. Era proximidade
demais para a revolta de Arthur.
Sob os olhos atentos dos colegas, o adolescente se aproximou
de Tadeu para iniciar outra conversa. Como era anunciado, o
diálogo rapidamente se inflamou, e, com a ajuda dos parceiros
que até então assistiam passivamente ao bate-boca, foi transformado
em uma nova agressão, muito mais violenta que a anterior.
“Primeiro, foi na pancada. Aí apareceu um tronco e os piás jogaram
na pinha dele”, conta Arthur, relembrando os golpes que fatalmente
vitimaram o rapaz.
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Portas Fechadas
A polícia, peça chave na motivação do delito, não foi
informada da nova infração, e manteve os responsáveis pela
agressão em liberdade. A elucidação completa do caso só viria a
ocorrer meses mais tarde, quando Arthur já estava internado sob
a acusação de furto. Seus litígios com a Lei então foram revistos e,
somados, deixavam sua ficha um tanto mais longa: além do roubo
e do homicídio, ela incluía também uma tentativa de assassinato,
registrada nas primeiras surras que o rapaz aplicou em Tadeu.
Era encrenca suficiente para render conversas e mais conversas
com Renata.
…
Depois de tanto ouvir, a psicóloga se sente à vontade para
apontar os dois fatores que mais atraíram o jovem paciente para a
via da criminalidade. O primeiro é comum à maior parte – e de
tal forma grande que se aproxima da totalidade – dos jovens
internados no Cense: “A gente tem a exclusão social como um
grande fator, e sabemos que ela causa violência, sim. O próprio
sentimento de exclusão, de não fazer parte, também causa. Por
exemplo, a gente fala que eles não seguem as leis que há na
sociedade, mas às vezes eles nem fazem parte dessa sociedade”,
avalia, não sem antes tomar o cuidado de afastar sua análise de
determinismos: “Eu acho que não dá pra dizer que é só isso, mas
isso contribui muito pra esses meninos estarem aqui”.
O outro elemento formador desse quadro também se aplica
a diversos garotos, mas é especialmente intenso no caso de Arthur:
“A motivação dele vem mais de estar na rua e sem regras. Esse
ambiente favorece muito o envolvimento. Acho que era também
uma inconseqüência, não ter noção da gravidade mesmo, porque
ele entrou nesse caminho muito novo”, diagnostica.
Embora não conheça Arthur e trabalhe exclusivamente com
meninas, a diretora do Cense Joana Miguel Richa, Mariselni Vital
Piva, faz uma reflexão muito pertinente à condição do garoto. Diz
respeito ao abandono escolar: “Geralmente, nós percebemos que
os jovens começam a infringir quando estão em torno da quinta
série. São fatos que andam meio juntos: eles deixam a escola e
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Portas Fechadas
começam com os envolvimentos que os trazem para a situação de
internação”.
Há uma situação específica, contudo, que apenas quem vive
o dia-a-dia do São Francisco é capaz de compreender integralmente:
as rebeliões. Não é que elas não aconteçam em outros Centros; há
casos registrados em várias unidades, sim. Ocorre que o Cense
de Piraquara tem um triste histórico de motins, que inclui o mais
violento na história recente da socioeducação paranaense.
Aconteceu em 2004, e terminou com o óbito de sete adolescentes.
Arthur, felizmente, não estava lá, mas desde que chegou à
unidade passou por duas situações de conflito agudo. A mais recente
ocorreu na metade deste ano, quando um grupo de jovens se
rebelou e tentou fugir, sem sucesso. Em tempo: a iniciativa não
tinha o aval de Arthur e dos colegas mais próximos: “Nossa ala
não tinha nada a ver”, esclarece o rapaz.
Mesmo assim, como é costumeiro em situações do gênero,
a direção da unidade impôs penalidade a todos os internos.
Algumas deliberações, em especial, atingiram Arthur, como a
interrupção de todas as atividades externas. Tratava-se de um direito
que ele havia recuperado há pouco, depois da travessura aprontada
na Rede Esperança. No lugar dos pães e massas, porém, desta vez
o jovem estava pondo as mãos em temperos e legumes, já que
cuidava da horta mantida pelo Cense. “Eu ficava lá a manhã inteira.
Parecia que passava mais azul, mais rápido o tempo. Eu nem via
passar”, relembra, com o pesar do benefício perdido.
Outra medida adotada pós-crise foi a substituição temporária
de educadores sociais por agentes penitenciários. A regra é prevista
pelo regulamento do Cense, com validade de 60 dias, renováveis
por igual período. Para quem considera a decisão abusiva, o diretor
da unidade, Júlio César Botelho, argumenta: “A rebelião é a
expressão da violência, do mando, do domínio. É um marco da
ascensão dos adolescentes. É como se eles dessem o golpe final.
Ou ali você retoma, ou ali você perde de vez. E a vinda dos agentes
foi um pedido da equipe para ajudar a controlar a situação”.
67
Portas Fechadas
Entre os adolescentes, as explicações surtem pouco efeito,
já que os educadores sociais são os funcionários com quem os
jovens mais têm contato. É papel desses profissionais acompanhar
e auxiliar os internos nas atividades cotidianas mais simples, como
ir ao banheiro, por exemplo. É verdade que também há
desentendimentos, tamanho é o convívio a que estão expostos, mas
ainda sim a resolução era motivo de revolta entre os garotos: “Eu
sempre respeitei os educadores. O convívio era muito bom, só
que agora tem esses agentes penitenciários... aí mudou tudo. Mudou
tudo. E eu acho que eles não podem trabalhar aqui, porque são da
penitenciária, e aqui é um negócio de menor, entendeu?”, comenta
Arthur, a despeito da legalidade da decisão.
O tenso ambiente que se estabelecia no Cense contrastava
com o fio de esperança que envolvia Arthur. Em pouco tempo,
ele completaria 18 meses de internação, o que significa que era
chegada a hora do envio de seu terceiro relatório técnico. Os outros
dois não permitiram sua saída; este, acreditava Renata, poderia
viabilizá-la: “Eu dizia que o Arthur e outro menino foram os dois
casos em que eu mais vi evolução aqui dentro. O Arthur era muito
maduro num último momento”.
Ciente de que a egressão poderia estar próxima, o
adolescente traçava ene planos para o retorno à liberdade. Animado
com a evolução escolar conseguida no Cense, planejava
primordialmente continuar na companhia dos livros e cadernos:
“A coisa que eu mais quero é terminar meu estudo, pelo menos
até o primeiro grau. E depois que fez o primeiro, que que custa
fazer o resto?”.
Outra decisão fundamental era encontrar um sustento
distante dos litígios com a Lei: “Quando eu sair daqui, vou sair
com um serviço. Não vou ganhar bastante: vai ser uns trezentos
ou quatrocentos reais, mas vou indo. Se aparecer uma
oportunidade boa pra mim, eu tô enfrentando”, anunciava.
Do lado de fora, os entes também se preparavam para o
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Portas Fechadas
retorno do jovem. Para que isso fosse possível, a juíza responsável
pelo caso exigiu que toda a família deixasse o Capão da Imbuia e
passasse a morar em outra localidade, o mais distante possível. A
determinação, prontamente cumprida, veio porque a magistrada
entendeu que Arthur corria perigo caso retornasse ao bairro em
que cometeu os delitos: “Tiveram que mudar... eles falaram que
eu tava correndo risco de vida por causa dos problemas que eu
tinha na rua”, resume o rapaz.
Logo que saísse e arrumasse um cantinho na nova casa,
Arthur teria uma grata surpresa. A irmã mais velha deixara a
família maior: “Ela nem grávida não tava. Eu vim preso, ela ficou
grávida, ganhou e ele já ta com nove meses”, conta, em referência
ao sobrinho que mal conhecia.
Ansioso para cumprir seu papel de tio e assumir as
responsabilidades de filho mais velho da casa, pois os dois irmãos
maiores já estavam casados, Arthur tocava seu dia-a-dia no Cense,
entre a horta, a escola e algumas atividades recreativas. Apesar de
se concentrar na lida com a terra e nas lições transmitidas pelo
professor, era difícil desviar o pensamento da possibilidade de sair.
E a cada vez que Renata ou Rossana lhe chamavam para uma
conversa, seu coração palpitava envolto na esperança de que o
momento havia chegado.
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Portas Fechadas
2. VIDAS NOVAS
E VIDAS LOKAS
I. GABRIEL
II. AMANDA
III. ARTHUR
Era para ser apenas mais uma visita domiciliar de fim de
ano. Garoto de confiança dos diretores do Cense Fazenda Rio
Grande, Gabriel ganhara o direito de passar a festa de réveillon
em casa, na companhia dos pais e das irmãs. Despediu-se da equipe
técnica da unidade com a promessa de que, ao término do
foguetório que colore os céus e dos champanhes que são
festivamente estourados na virada de ano, retornaria ao Centro de
Socioeducação. Era onde deveria permanecer até a chegada do
alvará de soltura que poria fim à sua medida de privação de
liberdade, iniciada um ano antes.
Mas Gabriel não resistiu à espera, e fugiu. Seduzido pela
rara autonomia desfrutada durante as comemorações e
desapontado com a demora na expedição do tal documento,
decidiu interromper a internação por conta própria. Alheou-se aos
trâmites oficiais para resolver que não retornaria ao Cense coisa
nenhuma. Era como se, durante a tradicional contagem regressiva
que anuncia o Ano Novo, aproveitasse o coro de números
decrescentes para computar também os instantes que o separavam
da liberdade. “Eu peguei e pensei: ‘Ah, nem vou voltar’. Já tinha
subido meu relatório pra desligamento, mas eu não conseguia mais
ficar naquele lugar!”, revela.
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Portas Fechadas
Antes de levar a cabo a corajosa decisão, Gabriel consultou
os pais, na esperança de receber apoio para aquela que seria sua
mais recente violação à Lei. A exemplo das infrações anteriores, o
aval não veio: “Eu disse: ‘Volte e espere’”, sintetiza a mãe.
Sem acatar o conselho, Gabriel também foi reprovado por
José, que considerava o regresso ao convívio social por vias tortas
outro dos erros cometidos pelo filho. “Pra mim não foi boa coisa.
Eu não gostei, porque eu queria que ele cumprisse conforme a lei.
Eu não queria que ele saísse fugitivo, pra cada passo estarem atrás
dele. Eu quero um negócio certinho”, exige o pai.
À desaprovação da família se somava o temor por eventuais
buscas da policia, o que tornou as horas iniciais de liberdade tão
angustiantes quanto os momentos finais da reclusão no Cense. Foi
então que Gabriel lançou mão de outra de suas soluções. Logo no
segundo dia de janeiro, decidiu passar um tempo em São Mateus
do Sul, onde moram os avós maternos, refúgio ideal para encontrar
a segurança e a tranqüilidade que lhe faltavam na condição de
foragido. “Peguei um ônibus e fui pra ficar meio pá, pra dar uma
abaixada na poeira, como dizem.”
A figura de linguagem empregada por ele parece mais
apropriada do que nunca. Precisando de dinheiro para suprir as
necessidades que a liberdade também lhe devolvera, o jovem
chegou a São Mateus e imediatamente começou a trabalhar em
uma das muitas plantações de fumo do município. Poeira era o
que não faltava. Em troca de uma rotina que lhe exigia quase dez
horas de trabalho por dia, recebia, ao final do expediente, trinta
reais. Quase nada, se observado o esforço que a atividade exige.
“Você pega uma carreira de fumo e vai arrancando as folhas mais
amarelas que tem embaixo. Começa a arrancar de baixo pra cima.
Aí faz um maço e leva no trator. A gente não é acostumado, porque
lá você trabalha mais no sol, não trabalha em sombra. É
embaçado”, conta.
…
72
Portas Fechadas
Enquanto o filho peleava para se adaptar novamente à lida,
os pais, de casa, empenhavam-se em encontrar uma solução para
o imbróglio em que estava envolvido. Ela veio por telefone, pouco
menos de uma semana depois da fuga, quando a psicóloga do
Cense, Márcia, do outro lado da linha, informou a Dora que a tão
esperada carta de liberação de Gabriel estava em suas mãos, sem
nenhuma alteração decorrente da fuga. Embora não tivesse
retornado ao Cense no dia previsto, o garoto reconquistara a
liberdade: “O juiz foi informado da fuga e mesmo assim decidiu
liberá-lo”, explica a psicóloga.
A decisão não deixou de causar certo espanto aos funcionários
do Cense, já que, em situações dessa natureza, o parecer da justiça
costuma ser diferente, como esclarece Iracema: “A gente avisa o
juiz. Faz um ofício dizendo que houve a fuga, e é o juiz que
geralmente toma as providências. Expede um mandado de busca
e apreensão e a polícia é que tem que dar conta da captura”.
Surpresa por surpresa, aliás, a própria evasão de Gabriel já tinha
sido umas das grandes: “Foi um susto pra todo mundo, porque
ninguém esperava”, acrescenta.
Embora com a medida de privação de liberdade encerrada,
Gabriel não estava totalmente quite com a Lei. Como todo
adolescente que deixa a internação, ele precisava cumprir agora
outra medida socioeducativa, algo como a última etapa do acerto
de contas com a justiça: a liberdade assistida. O fato de representar
uma nova medida pode assustar, mas o procedimento é simples,
como explica Iracema: “Ele tem que se apresentar no Fórum uma
vez por mês, durante seis meses, e dizer o que está fazendo: se está
estudando, se está se comportando, se não está usando droga etc”.
Gabriel deixou a nova medida o aguardando por mais
algumas semanas, e prolongou a estada no interior. Tempo
suficiente para juntar cerca de quinhentos reais no labor com as
folhas de fumo e pagar com tranqüilidade os trinta reais da
passagem entre São Mateus do Sul e Fazenda Rio Grande. O
montante era empregado também em algumas chamadas
telefônicas para casa: “De lá ele ligava sempre: conversava comigo
73
Portas Fechadas
e dizia quer não era pra se preocupar que ele tava trabalhando,
não tava fazendo nada de errado”, narra Dora.
Nas conversas que levava com a mãe, Gabriel não precisava
gastar tempo descrevendo as peculiaridades de São Mateus do Sul.
Aquelas bandas Dora conhecia bem, e não apenas em virtude das
lembranças da infância ou das visitas que fazia de tempos em
tempos. Não havia muito que ela, o marido e os filhos, temendo
represálias pelos delitos cometidos por Gabriel, tinham passado
uma curta temporada por lá.
Aconteceu pouco mais de dois meses depois que a polícia
deteve o garoto. Com ele internado, ouvia-se nos comentários da
vizinhança, a desforra pelos crimes seria feita contra a família, que
permanecia em liberdade e, portanto, encontrava-se indefesa. “Foi
tudo sob pressão. O pessoal dizia: ‘Prenderam o Gabriel. Agora
vão vir aqui e vão matar a senhora’”, detalha a mãe.
Como gastavam quase todas as horas do dia trabalhando,
Dora e José eram obrigados a deixar em casa, sem companhia, as
duas filhas mais novas. Era a oportunidade que a turma da rua
aproveitava para intensificar o diz-que-me-diz-que em torno da
suposta vingança. “Os vizinhos falavam: ‘Vão quebrar a casa, vão
roubar as crianças’.”
O teor dos comentários assustou a todos. Dora, bastante
fragilizada desde a perda do filho mais velho, não suportou a nova
carga emocional, e resolveu pôr a casa à venda: já que era questão
de vida ou morte, pelo menos de acordo com a versão que corria
à boca pequena, iriam se mudar de mala e cuia pra São Mateus –
e de imediato, antes que qualquer mal lhes fosse feito. A urgência
em se deslocar, no entanto, não foi a melhor das estratégias, já
que, ancorada nas inexoráveis regras de mercado, desvalorizou
um dos raros bens que a família possuía: “A casa tá na faixa de 22
mil, e nós vendemos por oito, por causa da pressa, da afobação.
Foi colocada a placa ali e já apareceu comprador, já vendemos”.
O pior foi perceber, mais tarde, que tudo não passava de
boataria. Decorridos alguns meses, a família, então hospedada na
74
Portas Fechadas
casa da mãe de Dora, concluiu que era hora de deixar o interior e
retornar para Fazenda Rio Grande, a fim de verificar como iam as
coisas. Foi quando veio a constatação de que tudo permanecia na
mais rotineira normalidade, ao contrário da intriga que custara
quase dois terços do imóvel: “Não era verdade, porque se eles
quisessem mesmo ter feito vingança, assim que prenderam o
Gabriel, teriam vindo fazer. Mas nunca ninguém veio perto da
nossa casa. Nem depois que ele saiu do educandário, nem antes”,
elucida a mãe.
Para Gabriel, a partida às pressas rumo a São Mateus foi
bem mais proveitosa. Além do dinheiro arduamente ganho, o jovem
se certificou de que a polícia não estava mais à sua procura, pois a
mãe tratara de lhe transmitir a novidade anunciada por Iracema.
Mas os gatos escaldados sempre têm companhia: quando encerrou
a estada no interior e decidiu voltar para casa, ele ainda alimentava
algumas desconfianças acerca da conquista da liberdade definitiva,
expressa numa sentença judicial que precisava apenas ser retirada
para se tornar oficial.
“Ah, mãe, acho que isso é uma armadilha. Quando eu chegar
lá, eles vão me prender por eu ter fugido”, revelou instantes antes
de entrar no Fórum de Fazenda Rio Grande, onde se achava o
documento. Diante do receio do filho, Dora tomou as frentes e foi
ao encontro do promotor, que, sem qualquer artimanha ou
interesse oculto, entregou-lhe a papelada que oficializava o término
dos litígios do filho com a Lei. Agora estava nos trinques, bem ao
gosto do pai: “Quando eu vi que deu tudo certo, que foi feito os
papel, tudo certinho, aquilo me tranqüilizou 100%. Foi limpa a
ficha dele”.
Aquela tranqüilidade, mal sabia José, ainda tinha muito para
crescer. Iracema e Margarete, receosas quanto ao futuro do jovem,
sobretudo depois da fuga, também seriam gratamente
surpreendidas. O adolescente que cerca de um ano antes chegara
ao Cense revoltado e respondendo por homicídio já era difícil de
ser encontrado no rapaz que regressou de São Mateus do Sul para
zerar seus conflitos com a Lei.
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Portas Fechadas
…
O caminho de Gabriel longe das infrações começou a ser
trilhado com o cumprimento de uma promessa que havia feito a
então namorada, Suzana, enquanto ainda estava preso. Naquele
momento, ele desconfiava da fidelidade da garota, que permanecia
em liberdade, e por isso definiu que não valia a pena manter o
namoro atrás das grades. Voltariam a conversar assim que
retornasse à liberdade.
Pois a tal conversa aconteceu, e rendeu que só vendo. Gabriel
e Suzana decidiram não apenas reatar o namoro, como também
passar a morar juntos, tal qual marido e mulher. A união só não é
um casamento ao pé da letra porque não foi oficializada no cartório
– o que não os impede de se considerarem um casal devidamente
matrimoniado. Quem explica o raciocínio é Gabriel: “Nós tamo
junto, morando junto. Se nós tivesse namorando, ela taria na casa
do pai”.
Já que se encontravam em vias de formar um núcleo
independente, coube aos dois também encontrar um abrigo próprio.
A tarefa foi facilitada pelo empenho de José, que, enquanto o filho
esteve internado, começou a construir, nos fundos de casa, um
galpão encomendado pela pastora do templo evangélico que
freqüenta. A idéia era aproveitar uma centena de tábuas e outras
sobras de construções para erguer uma igreja.
Mas a desinternação do jovem motivou Dora a mudar a
finalidade da obra. “O Gabriel está com a gente e vai ter que
arrumar um cantinho pra morar”, tratou de comunicar à pastora.
Naquele instante, o templo convertido em casa precisava apenas
do piso, do reboco e de uma parede lateral para ficar pronto. Foi
então que Gabriel, animado com a condição de futuro proprietário,
passou a ajudar o pai nas vezes de pedreiro. E como cada tijolo
que colocava dava formas a um bem que seria seu, caprichou no
serviço: “Ele falou: ‘Pai, quero comprar o forro’. Depois ele falou:
‘Pai, eu quero colocar lajota também’”, revela José.
76
Portas Fechadas
A casa ficaria do que jeito que Gabriel gosta, não fosse o
sempre apertado orçamento da família. Com o dinheiro miúdo e
já tendo investido mil e duzentos reais na compra dos materiais
necessários, o pai teve de frear o entusiasmo do filho: “Bom, então
agora você vê o que você quer: quer colocar lajota ou quer colocar
o forro? Os dois, não dá”, respondeu-lhe.
Até o momento, o jovem ainda não se decidiu. Está
esperando o inverno terminar para se certificar do investimento
mais vantajoso para a família, já que, na casa de um quarto, um
banheiro e uma sala mesclada com cozinha, também vivem Suzana
e Tânia, cuidada por eles como a filha que não têm. José, mais
experiente em reformas, dá a dica: “Você vê: o período mais crítico,
que era o inverno, bem dizer está passando. E logo vem o verão.
Então eu sugiro fazer a cerâmica”.
Morando assim, numa construção projetada pra ser uma
igreja, os residentes não poderiam deixar de ser religiosos. São
assíduos freqüentadores do templo evangélico que fica nas cercanias
de casa, daqueles que não passam uma semana sem participar das
preces e cantorias comandadas pelo pastor Agenor. Os hábitos
sacros, aliás, representam outra grande modificação no
comportamento de Gabriel: “Antes de eu ir preso, eu não ia pra
Igreja. Era difícil. Depois que eu saí do Educandário, comecei a ir
direto”.
É mais fácil encontrá-lo no templo durante os finais de
semana, quando tem folga no trabalho. Esta característica o jovem
parece não mudar: é um operário e tanto. “Eu cheguei aqui em
fevereiro e fiquei só uma semana parado”, conta. O emprego que
arrumou não veio dos cursos de profissionalização que realizou
no Cense, mas dos ensinamentos regulares transmitidos pelo pai,
oleiro de fazer inveja. Foi intermediado por José que Gabriel
conseguiu o ofício atual, na Cerâmica Barbosa, onde, até agora,
tem honrado a indicação do pai: “Ele tá firme. O home gostou do
trabalho dele e vai até registrar”, orgulha-se José.
O salário que o rapaz ganha na labuta é destinado quase
integralmente a cobrir as despesas da casa. A época de investir em
77
Portas Fechadas
roupas e bebidas é agora apenas uma lembrança da adolescência
amarga que tivera. Quem também não o acompanha na vida pósinternação são os antigos amigos, cuja companhia e influência tanto
preocupavam os diretores do Cense.
O único remanescente é Marcos, vizinho e colega de
profissão. É na companhia dele e do pai que Gabriel entretém a
meia hora de pedalada que o separa da firma onde trabalha: “Nós
vamos de bicicleta: eu, o Marcos e o pai, que trabalha lá perto e
sempre vai junto. Só quando tá meio chovendo que a gente pega o
carro dele”.
Se depender dos planos do jovem, São Pedro pode mandar
chuva à vontade, pois os dias de bicicleta e carona estão fadados a
terminar. “Eu tô fazendo minha habilitação, e vou começar a
guardar dinheiro no banco pra comprar um carro pra mim”, conta.
Além do carro, a independência financeira que planeja para
a família passa ainda pela aquisição de uma casa própria, em
substituição ao improvisado puxado nos fundos da casa do pai.
Atentos, Gabriel e Suzana se cadastraram em mais um programa
habitacional desenvolvido na região onde residem. Embora ainda
não tenha sido confirmada a participação do casal no projeto, as
características e a forma de pagamento da moradia eles já sabem
de cor: “É dois quarto, uma sala, uma cozinha e um banheiro.
Nós vamos pagar cento e cinqüenta por mês, por uns vinte anos”,
fala o rapaz.
A parcela não assusta, mas pode, no futuro, ser um
empecilho. É que, se houve projeto não concretizado por Gabriel,
este foi o retorno aos estudos. O ensino regular e os cursos
profissionalizantes que planejava continuar depois de encerrada a
internação não lhe acompanharam na saída do Cense. Longe da
escola também está Suzana, cujo tempo é dedicado a cuidar de
Tânia, que, com um ano, requer atenção constante, inclusive nos
horários que seriam reservados aos livros.
José e Dora sabem bem a falta que fazem alguns anos de
banco escolar. Apenas com a segunda e a terceira séries do Ensino
78
Portas Fechadas
Fundamental concluídas, respectivamente, os pais ficam
contrariados ao verem os jovens afastados das lições. O lamento
do pai vem em forma de depoimento pessoal: “Era pra eu ter feito
um curso de eletricista e mecânico, que é a coisa que eu mais
gosto, mas não consegui. Eu era piazão e falei: ‘Ah, não vou fazer’.
Mas um colega meu fez, e, até esses tempos, era eletricista predial
da Refrigeração Paraná... se deu bem, né?”.
Eletricista predial, o serviço que garante sucesso ao amigo e
causa certa melancolia a José, é uma das profissões que o Cense
Fazenda Rio Grande ensina a seus meninos. Gabriel não chegou a
aprendê-la, em grande parte, limitado pela matemática, disciplina
que integra o curso e que lhe causa especiais dificuldades. Mesmo
assim, foi no Centro que adquiriu muitos ensinamentos úteis para
conseguir manter-se distante da criminalidade. Desde que encerrou
sua internação, há mais de oito meses, o jovem não teve mais
conflitos com a Lei, exatamente como prometera à mãe pouco
antes de deixar a unidade.
…
O principal trunfo do Cense Fazenda Rio Grande para
impedir a reincidência de seus internos é o atendimento
personalizado. Mais que um slogan publicitário bastante comum
atualmente, a expressão significa que todo adolescente deve receber
atenção individual da equipe técnica do Centro. A determinação
faz parte das diretrizes definidas pela Secretaria de Estado da Criança
e da Juventude (Secj), órgão responsável pela gestão dos Censes
no Paraná, para o trabalho socioeducativo. Reunidas em cinco
estudos denominados “Cadernos do Iasp”*, essas orientações e
deliberações definem de que forma o atendimento deve ser
realizado. “A organização do trabalho deve ter como foco principal
as necessidades, possibilidades e potencialidades de cada
adolescente. É exatamente para ele que se trabalha, é por sua causa
que o Centro de Socioeducação existe; é para que ele possa
* Os “Cadernos do Iasp” estão disponíveis na página eletrônica da Secretaria de Estado da Criança e da Juventude
do Paraná. O endereço é www.secj.pr.gov.br
79
Portas Fechadas
aprender a ser e a conviver que todos se mobilizam, a fim de que
seu processo socioeducativo tenha um bom resultado”, estabelece
o caderno número dois, nomeado Gestão de Centro de
Socioeducação.
As condições de o Cense Fazenda Rio Grande respeitar as
deliberações podem ser medidas a partir da equação entres os
funcionários que emprega e os adolescentes que atende. Do lado
de cá, entre profissionais das áreas de saúde, administração e
assistência social, possui um time de 46 trabalhadores. Do lado de
lá, não ultrapassa o número de 30 jovens internados, sua capacidade
máxima. Em dezembro de 2007, data do mais recente relatório
detalhado, a unidade abrigava 25 adolescentes, o que resulta numa
média de aproximadamente dois profissionais para cada jovem
internado.
Não é à toa que o índice de reincidência dos egressos da
unidade é bastante baixo. Desde janeiro, dos 12 jovens que
deixaram o Centro, apenas um está novamente envolvido com a
criminalidade, atraído pelo tráfico de drogas, infração pela qual
fora detido anteriormente. Os demais, como Gabriel, mantêm-se
longe dos delitos. Para que cheguem a essa condição, reconhece a
diretora da unidade, Margarete Rodrigues, a infra-estrutura do
Cense é fundamental: “É um Centro que, pelo fato de ser menor,
tem muito mais possibilidade de intervir junto ao adolescente na
sua mudança de vida. Acho que a unidade propicia que o
adolescente seja, enfim, um protagonista de si mesmo, da própria
história, porque nós temos um conjunto de medidas voltadas pra
ele: nós sabemos o nome de todos, conhecemos a família de todos”.
Antes de assumir a gerência de um Cense, Margarete,
psicóloga formada pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) na
década de 1980, trabalhou por 23 anos em penitenciárias de
adultos. A diferença entre o trabalho que desenvolve hoje e a
realidade que encontrava naquela época é brutal: “No sistema
penitenciário, tudo é massificado. Foi por este motivo, inclusive,
que eu saí de lá: a atual política é política de contenção. E isso não
resolve. Não resolve. O tratamento individualizado é muito mais
eficiente. Não tem nem dúvida”, atesta.
80
Portas Fechadas
…
A comparação proposta pela diretora traz a reboque uma
das mais controversas discussões atualmente em curso no
parlamento brasileiro: a redução da maioridade penal. Vários
foram os senadores que, nos últimos anos, apresentaram Propostas
de Emenda à Constituição (PECs) buscando encurtar de 18 para
16 (em certos casos, até 13) anos o limite de inimputabilidade
penal definido pela Carta Magna de 1988.
Demóstenes Torres (DEM-GO) reuniu todas as proposições
em um substitutivo que estabelece que jovens sentenciados por
crimes hediondos, como latrocínio, seqüestro e tráfico de drogas,
devem ser presos se comprovado seu nível de consciência sobre o
ato cometido. O sistema atual, baseado em medidas
socioeducativas, valeria apenas para crimes brandos. Na opinião
de Torres, a mudança deve ser feita na medida em que “a questão
da criminalidade é principalmente de fundo moral” e também
porque “um adolescente entre 16 e 18 anos já tem capacidade de
discernir sobre atos corretos ou não”, conforme noticia o Jornal
do Senado, veículo oficial do parlamento, na edição de 27 de abril
de 2007.
No dia anterior, o substitutivo havia passado por sua primeira
e, até o momento, única votação, na Comissão de Constituição e
Justiça (CCJ) do Senado Federal. O que os 23 parlamentares que
compõem essa comissão definem é se a proposta é constitucional
e tem condições de ser votada por todos os senadores da casa. No
caso da proposta da maioridade penal, por apertados 12 votos a
10, ficou decidido que, sim, ela poderia seguir adiante.
Com isso, o substitutivo está agora aguardando a votação.
O novo pleito, que deve ser feito em dois turnos e com a participação
de todos os senadores, está na iminência de acontecer, embora a
conturbada agenda da casa nem sempre permita previsões seguras.
Para ser aprovada, a proposta necessita de apoio de três quintos
dos parlamentares (o significa 54 senadores, se todos
comparecerem à sessão), quando então segue para a Câmara dos
Deputados, onde também precisa ser referendada, em dois turnos,
81
Portas Fechadas
por três quintos dos políticos da casa (neste caso, 342
parlamentares).
Se depois de todo esse trâmite a preposição de Torres não
atingir os votos necessários, só poderá ser referendada novamente
no ano legislativo seguinte. Mas, em caso de aprovação, uma sessão
parlamentar conjunta entre a Câmara e o Senado a promulga, e
ela então passa a valer, sem possibilidade de veto por parte do
presidente da República.
Embora longo, o caminho para que a proposta seja aprovada
assusta o advogado René Ariel Dotti, especialista em Direito Penal
e ex-presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária. Para ele, os parlamentares estão conduzindo a
discussão de maneira superficial, baseados essencialmente nos
recorrentes casos de violência juvenil expostos pelos meios de
comunicação: “O Congresso Nacional não tem dado a esse assunto
o cuidado que ele exige, do ponto de vista de se cercar melhor de
opiniões de especialistas das universidades. Não pode o Congresso
legislar a toque de caixa e sob influência dessa mídia sensacionalista,
pois ela se alimenta do escândalo e não é raro, independentemente
de qual seja a televisão ou o jornal, que eles se nutrem da tragédia
para efeito publicitário”. A conseqüência do trabalho parlamentar
nessas circunstâncias, acrescenta, é a criação de leis pouco
sedimentadas. “Nesses momentos inadequados, o legislador passa
a trabalhar sob uma pressão da mídia e produz o que eu chamo de
‘legislação de pânico’.”
Quem também rechaça os argumentos pró-redução é
Margarete: “Eu acho isso um engodo. Um engodo. Uma visão
bem distorcida de quem são esses jovens infratores. Quem propõe
isso realmente não conhece nada sobre a juventude ‘desviada’,
vamos assim dizer. Eles não são diferentes de todos os meninos
que estão lá fora. Eles são apenas mais vulneráveis e estão mais
expostos que os outros”, protesta.
Quando se refere às condições de vida dos jovens internados,
a diretora fala com propriedade. Dados do Cense mostram que,
em dezembro de 2007, nenhum dos 25 adolescentes do Centro
82
Portas Fechadas
tinha concluído o Ensino Fundamental. Quase a metade, aliás, já
havia deixado a escola. A situação também era grave no que diz
respeito ao uso de drogas e à condição econômica dos internos:
18 já haviam experimentado entorpecentes ilícitos, enquanto
apenas dois tinham rendimento familiar acima de três salários
mínimos.
Essa é uma realidade que o procurador-geral de Justiça do
Paraná, Olympio de Sá Sotto Maior Neto, conhece de perto. Foi a
partir de tristes estatísticas como essas que ele, promotor de justiça
há 31 anos, decidiu tornar os direitos da infância e adolescência
seu objeto de defesa. A ação mais significativa de Olympio nesse
sentido foi a participação na elaboração do ECA, justamente o
principal mecanismo de defesa de um tratamento digno e adequado
aos jovens infratores.
Por isso, o procurador endossa o discurso de Dotti e
Margarete, e também compra briga em repúdio à proposta de
redução da maioridade penal. “Você imuniza o Estado de críticas
quando você faz este juízo de analisar o ato infracional como uma
questão individual, como uma opção do adolescente. A verdadeira
fórmula pra se prevenir a criminalidade é a garantia dos direitos”,
argumenta. Usando uma metáfora, Olympio deixa mais claro por
que proteger as crianças e jovens do país é o passo decisivo na
redução dos índices de violência: “Não há dúvida de que a
marginalidade; ou seja, estar à margem dos benefícios produzidos
pela sociedade, implica, não raras vezes, no encaminhamento pra
delinqüência. O que nós precisamos é destruir esta ponte da
marginalidade pra delinqüência, e construir outra – e eu digo que
é uma ponte de ouro – da marginalidade pra cidadania”.
Gabriel transitou por essas duas pontes, e com a experiência
de quem passou parte importante da vida na contramão da Lei,
também se manifesta: “Eu acho que não adianta, porque um piá
de 16 anos não tem a mente igual a um cara de maior. E se os
caras de maior que vão presos e já apanham, imagine os de 16
anos!”.
83
Portas Fechadas
Dora aceita o exercício, e se põe a imaginar o futuro dos
jovens em conflito com a Lei caso a queda-de-braço seja vencida
pelos adeptos da redução: “Se os adolescentes forem presos com
16 anos, eles não vão ter chance pra mudar, porque numa cadeia
pra adulto eles vão cair no sofrimento, vão apanhar. E o meu filho,
que teve a chance de mudar num educandário, não vai ter a mesma
chance. Se ele fosse pra uma prisão, doente como ele tava, com a
cabeça confusa, ia ficar de que jeito?”, questiona.
A dúvida da mãe não pode ser respondida. E nem precisa.
Gabriel respondeu por seus delitos de acordo com as ainda vigentes
determinações do ECA, o que lhe permitiu percorrer os primeiros
metros da ponte dourada idealizada por Olympio. É verdade que
ainda tem muitos passos a dar até a conquista plena da cidadania,
mas já pode fazê-lo sem precisar ter a identidade ocultada pelas
páginas policiais dos jornais. É muito mais provável, aliás, que
agora passe a ser notícia no caderno de classificados, onde são os
anunciados os carros que lhe interessam.
Aos comerciantes de sobreaviso, o jovem anuncia que busca
um Volkswagen Gol, modelo 1994. Se o possante estiver em bom
estado, com um preço atraente e condições macias de pagamento,
pode até sair negócio.
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Portas Fechadas
2. VIDAS NOVAS
E VIDAS LOKAS
I. GABRIEL
II. AMANDA
III. ARTHUR
Amanda não se sentia muito à vontade quando precisava
pular cedo da cama. Em dias de frio, como os que dão as caras na
meia-estação curitibana, o caloroso aconchego de leito se torna
ainda mais precioso. Mas com os educadores batendo à porta do
quarto onde repousava, no Cense Joana Miguel Richa, não restou
alternativa à garota que não tratar de levantar.
A contragosto, dirigiu-se à sala de Cleusa, sua psicóloga na
casa e responsável pelo prematuro chamado, que tinha algumas
coisas a lhe dizer. Diante da expressão sonolenta da jovem, a técnica
ainda propôs adiar o conversa: “Quer que eu te chame mais tarde?”.
Amanda, com algum mau-humor e muita ansiedade, respondeu:
“Agora pode falar. Só espero que não seja notícia ruim”.
O medo da adolescente era ser informada de que a tão
esperada sentença que encerraria sua medida privativa de liberdade
não tivesse sido expedida pelo juiz. Cleusa percebeu o olhar repleto
de temores, mas teve firmeza suficiente para encará-lo e anunciar:
“Infelizmente você pegou mais seis meses”.
O sorriso que a psicóloga abriu instantes depois de dar a
notícia levantava em Amanda a suspeita de que alguma estava
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Portas Fechadas
errada. Qual o quê! Era apenas uma pequena travessura da mulher,
que logo se pôs a esclarecer o gracejo para desfazer o abatimento
instantâneo que já era notado na garota: “Tô brincando! Hoje
mesmo você tá indo embora. Chegou a tua liberação”.
Exatos 268 dias depois de ser detida em frente de casa,
Amanda estava novamente em liberdade, ainda que assistida,
conforme prevê a medida que lhe caberia cumprir a partir de então.
Mas agora poderia fazê-lo sentindo o calor de uma cama que não
usava há muito tempo, a sua.
…
A novidade foi transmitida à mãe por telefone, instantes
depois de aliviado o susto. Enquanto festejava a saída junto de
Aldaci, Amanda precisou interromper a conversa para dar vazão
a outro dos sentimentos que lhe surgiam naquela arrebatadora
manhã de outono. “Não agüentei de felicidade. Acabei chorando!”,
conta.
Telefone no gancho e a adolescente voltou ao alojamento
para recolher seus pertencentes e tomar em mãos os materiais de
higiene que usaria para tomar o último banho na unidade. O dia
ainda amanhecia quando a jovem, ostentando cabelos molhados,
encontrou-se com as colegas na sala de refeições para tomar o
café-da-manhã mais saboroso que o Cense já lhe oferecera.
Como demarcava seus momentos finais na casa, o desjejum
foi acompanhado por abraços e lágrimas. “Teve muita menina lá
que chorou. Levantou e foi me abraçar falando que a hora que
saísse, ia na minha casa”, conta, em referência especial às
adolescentes que moravam próximas de sua residência. E foi
justamente uma de suas conterrâneas, Priscillinha, que
protagonizou a mais emocionada das despedidas. Esperando o
primeiro filho, a jovem aproveitou o ensejo e convidou a amiga
Amanda para ser também sua comadre: “Ela tava grávida, e pediu
que eu batizasse o filho dela”.
Antes de comemorar a própria despedida, a futura madrinha
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Portas Fechadas
já tinha celebrado o adeus de muitas internas. Por isso, conhecia
com exatidão o anseio provocado pela partida de uma colega:
“Você fica feliz porque tá vendo que ela tá indo embora e que uma
hora vai chegar o momento da gente também”.
Satisfeita também por renovar as esperanças das excompanheiras, Amanda deixou o Cense para tomar o rumo de
casa. O ponteiro do relógio indicava oito horas. Em questão de
mais seis ou sete, estaria novamente junto da família, conduzida
por um carro destacado pelo Cense para a viagem, visto que ainda
estava sob os cuidados dos profissionais da unidade.
Depois de percorrer os quase quinhentos quilômetros que
separam a capital do Oeste, num corte horizontal que atravessa o
Estado praticamente de fora à fora, o motorista estacionou o veículo
em frente à casa da garota. Campainha tocada, palmas batidas, e
nada. Ninguém em casa. Amanda lembrou então que a mãe
poderia estar no Fórum da cidade, onde se encontrava o documento
que garantiria sua liberdade.
A suspeita se confirmou. Chegando ao juizado, a jovem logo
avistou a mãe, com quem trocou apressados carinhos antes de
assinar a papelada que a aguardava na mesa do magistrado: “Ah,
demos um abraço, mas o que eu queria mesmo era assinar logo
aquele papel e sair do Fórum antes que o juiz mudasse de idéia”,
revela, em tom espirituoso. Com o documento rubricado, a
quitação definitiva de seus débitos judiciais chegava à última etapa:
a Liberdade Assistida, cujas ações, em Cascavel, são desenvolvidas
pela Prefeitura Municipal.
O destino imediato de Amanda, entretanto, não era o do
Paço, mas o de casa. No caminho entre o Fórum e a residência, a
mãe pôde observar com mais atenção os tons dourados que
coloriam o cabelo da filha. Eram luzes, feitas no Cense, com auxílio
das colegas freqüentam o curso de cabeleireira: “Quando tem festa
lá, tipo Natal ou Dias das Mães, pode pintar o cabelo. Quase todas
pintam, acho que só as meninas que estão grávidas que não”, conta.
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Portas Fechadas
Mal acomodou pela casa as bagagens que trouxera de
Curitiba, e a adolescente já se mandou para a rua a fim de desfrutar
da liberdade recém-conquistada. A mãe é testemunha da gana que
envolvia a garota: “Saiu bem louca achar conhecido”, relembra,
em meio a risos.
…
O ponto de encontro escolhido para as primeiras prosas do
lado de fora do Cense foi um mercado que fica nas imediações de
casa. Há no local, perto de onde são guardados os carrinhos de
compra, um convidativo pedaço de muro que chega à altura da
canela. Parece feito sob medida para quem busca um assento que
possa viabilizar um bate-papo.
Ao se acomodarem na bancada improvisada e verem a
amiga novamente entre si, os amigos reagiram com surpresa.
Inicialmente pelo próprio retorno, inesperado para a ocasião: “Eles
achavam que eu fosse sair mais pra frente, dali a quinze dias ou
uma semana, e quando viram, eu já tava lá”. Em seguida, pelas
novidades na aparência da moça: “Falaram: ‘Nossa, você tá
diferente. Meio gordinha... cabelo loiro...’”.
Amanda então lhes explicou de onde vinham as
transformações – citou a destreza das adolescentes que tingem os
cabelos das colegas e esclareceu como a rotina do Cense, com
poucas atividades físicas intensas, contribui para o aumento de
peso. Eram os primeiros relatos que fazia sobre a temporada de
internação. E para acompanhá-los, a jovem devolveu vida a um
hábito que deixara adormecido por todo aquele período: fumar.
“Naquela noite já peguei dinheiro e comprei cigarro”. A rapidez
com que dera suas tragadas impressionou até os colegas, que
também tinham o vício. “Os meus amigos disseram: ‘Meu Deus!
Você sai e já vai começar a fumar, em de vez de parar’”.
Manter-se longe dos velhos comportamentos não era tarefa
simples, como a própria adolescente previa antes de deixar a
unidade. “Não vai ser fácil chegar e falar: ‘Não, eu mudei de vida’
e começar tudo diferente”, calculou à época, com elevado grau de
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Portas Fechadas
acerto. Na primeira noite após o regresso, algumas amigas já a
convidaram para dormir fora. A mãe não gostou necas da idéia,
que lembrava antigos costumes da jovem, e tratou de frear os
planos: “Quê? Vai nada!”, reagiu com vigor.
Mas nem sempre era possível afastar o assédio e segurar a
filha em casa. Nos finais de semana, por exemplo, a garota voltou
a acompanhar os amigos na balada tradicional da turma, a Mahay
Club. “É uma danceteria bem vileira... não vai muita gente de classe
alta, é mais classe média e classe baixa. É bem o encontro dos
amigos”, detalha.
Entre os parceiros de noitada, encontrava-se o irmão Fábio,
que havia saído do Cense Cascavel II quase ao mesmo tempo em
que ela deixara o Centro Joana Richa. Em liberdade, os dois tinham
hábitos e amigos em comum, combinação que em pouco tempo
colocou–a em contato com Serginho, um dos integrantes da trupe.
Algumas conversas e baladas depois, e os dois já estavam de caso.
Mesmo acompanhadas pelo novo namorado e pelo irmão,
as saídas da moça não deixavam de causar preocupações à mãe,
que alimentava dúvidas quanto à segurança da danceteria. “Essa
Mahay que eles gostam de ir é perigosa. A Amanda já se envolveu
numa briga lá. É muita encrenca. O que eu vejo de gente que
morre...”, protesta. Receio parecido despertava o filho, cuja rotina
rendia-lhe constantes dores de cabeça: “A verdade é a seguinte: o
Fábio não para em casa. Ele se enfia num carro com um monte de
piazada e sai pra baixo e pra cima, numa meia dúzia”.
Aos olhos da mãe, o comportamento de ambos tinha um
quê de semelhança à forma como agiam quando infringiram a
Lei. Notava as dificuldades de Amanda para romper velhos costumes, e percebia que o caso do filho era ainda mais grave.
…
As desconfianças sobre um novo envolvimento marginal
surgiram quando o rapaz, sem fonte estável de renda, desembestou
91
Portas Fechadas
a consumir eletrônicos. “Ele comprava celular e radinho de ouvido
sem eu dar dinheiro. Ele aparecia com coisas que não tinha
condições de comprar, porque não trabalhava”, explica
As suspeitas de Aldaci recaíam sobre um dos delitos mais
comuns entre os jovens do Oeste paranaense, o tráfico de drogas.
Próximo da fronteira com Argentina e Paraguai, o local é trânsito
freqüente de substâncias ilícitas. A pulga saltitava ainda atrás da
orelha mais diante da conduta de alguns amigos do filho, que eram
vistos constantemente tragando cigarros de maconha.
Anunciando-se pouco a pouco, a notícia enfim se consolidou.
Bastou uma batida policial e, na companhia dos parceiros com
quem costumava andar, Fábio foi detido sob a acusação de três
infrações: formação de quadrilha, porte ilegal de arma e tráfico de
drogas, tal qual antevia Aldaci: “Esses dias, eu falei pra ele: ‘Tô
vendo que você vai ser preso porque não pára de andar com esses
meninos’. E ele falou: ‘Ah, a mãe fica gorando a gente’. Eu respondi:
‘Que gorando! Mãe pressente que isso vai acontecer’”.
A nova apreensão aconteceu menos de três meses desde o
encerramento da mais recente internação do garoto; rapidez digna
de assustar a previdente Aldaci: “O Fábio faz tempo que vive indo
preso. A gente até desacostumou com ele aqui, até estranha. Eu
falo que ele vem tirar férias e volta pra lá”. Tamanha assiduidade
provoca também receios quanto ao futuro do filho: “Ah, o meu
medo é que ele vire um bandido de carteira, que vá passar a vida
inteira preso. Ou então o que ele não chegue nem aos vinte, né?
Porque a polícia daqui já está enjoada da cara dele”, teme.
Para Amanda, a captura teve peso dobrado, já que entre os
demais jovens apanhados, inclui-se o namorado. A detenção, aliás,
coloca em risco a relação do casal, junto há cerca de um mês, pois
como cumpre medida de liberdade assistida, a jovem está impedida
de ver o rapaz: “Vamos ter até quando agüento esperar”, reage.
Por coincidência, a internação provisória acontece no Cense
Cascavel I, o mesmo onde ela, um ano antes, passou seus primeiros
dias de reclusão.
92
Portas Fechadas
A proibição imposta à Amanda se aplica também a Fábio,
que, então, só conta com as visitas da mãe e do irmão mais novo,
Gilberto. O problema é que, nas vezes anteriores em que visitaram
uma unidade, os dois entes conheceram de perto os rígidos
métodos adotados para se entrar na casa. As regras são definidas
pelo Caderno do Iasp número quatro, “Rotinas de Segurança”,
que, ademais de outras exigências, estabelece o seguinte: “Os
visitantes e seu vestuário devem ser rigorosamente revistados”.
Gilberto não se adaptou ao invasivo procedimento, que exige
nudez completa, por exemplo, e decidiu não mais repetir a
experiência: “Ele falou que não vai ficar tirando a roupa pra visitar
irmão”. A mãe, assim, figura como única familiar apta a encontrar
o filho, e por isso teve de se acostumar à falta de privacidade imposta
pela revista: “Eu não ligo. Falo que é que nem médico: tem que
tirar a roupa”.
É verdade que Amanda não mais exigia da mãe esforços
como esse, mas também é fato que a jovem ainda demandava
atenção constante de Aldaci. Pouco depois de voltar a Cascavel,
ela foi mais uma vez convidada para ganhar dinheiro de forma
ilícita. Não se tratava de outro corajoso furto, mas do contrabando
de mercadorias falsificadas, atividade comum entre jovens de
Cascavel. Novamente, o caminho é a fronteira: cada ida ao
Paraguai é recompensada com duzentos e cinqüenta reais. O
montante animou algumas amigas de Amanda, que a invitaram
para tentar uma viagem. O plano não foi realizado graças à
intervenção de Aldaci: “Eu falei que se eu desconfiasse que ela
tava indo pro Paraguai, ia mandar a polícia pegar ela na volta; não
na ida, na volta, que é pra perder as coisas!”.
Precisando acompanhar a internação de Fábio e impedir
novas aventuras de Amanda, Aldaci simboliza com precisão os
questionamentos feitos em relação à eficácia da privação de
liberdade. Muitos são os teóricos e profissionais ligados ao tema
que discutem os resultados da medida. Um dos principais é o
sociólogo Pedro Bodê, cético quanto à validade de tratamentos
93
Portas Fechadas
baseados na reclusão. “A noção de ressocialização tem a idéia de
melhorar as pessoas, por isso é que vivem inventando palavras
novas, como reeducando e readaptando. Todas indicam a idéia
de que a prisão melhorar o indivíduo, mas ela tem por fim te
injuriar, te tirar direitos; enfim, te tornar pouco mais que um objeto.
E como uma instituição que é feita pra injuriar pode melhorar?
Há autores que falam que isso é como você curar um resfriado
dentro de uma geladeira. A prisão é uma forma de punição que
não tem eficácia nenhuma”, opina.
As conseqüências da clausura para os jovens são ainda mais
intensas, já que a metodologia de tratamento infracional prevista
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), avalia o
estudioso, possui falhas: “O Estatuto prevê possibilidade de
encarceramento com muita facilidade. Você tem hoje, entre os
encarcerados, menos de 8%* que cometeram homicídios. Todo
o restante cometeu delitos de menor potencial ofensivo, como
tráfico. Então eu acho que um regulamento que tem 8% de
homicidas é um instrumento excessivo de encarceramento”.
A diretora do Cense Fazenda Rio Grande, Margarete
Rodrigues, identifica problemas de outra natureza. Para ela, o
equívoco não está nas determinações do ECA, mas na maneira
como o Estatuto é interpretado pelos magistrados que trabalham
com jovens: “Eu acho que a medida socioeducativa de restrição
de liberdade, muitas vezes, é só pra punição. Você vê: temos casos
em que o menino já absorveu muito bem a medida. Então a gente
faz um relatório pedindo a desinternação, com toda a explicação
de como ele viveu o tratamento, e a resposta da Vara (da Infância
e da Juventude) diz apenas o seguinte: ‘Foi muito pouco tempo’.
Então é meramente punitivo”, endossa.
No caso das garotas do Cense Joana Richa, Mariselni
percebe outra implicação negativa: o estigma lançado sobre as
internas quando estas retornam ao convívio social. No momento
seguinte ao término do tratamento, a unidade busca uma colocação
* As estatísticas fazem parte dos estudos desenvolvidos por Pedro Bodê na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
94
Portas Fechadas
profissional para as adolescentes, e é neste contato com empresas
e entidades que possam oferecer as oportunidades requisitadas
que a diretora, não raro, depara-se com reações preconceituosas:
“Eles já sabem que são adolescentes que cumpriram medida, então
quererem saber o que a adolescente fez... É utópico a gente dizer
que eles não têm curiosidade sobre isso. Existe um preconceito”.
Na iminência de completar dois meses de liberdade,
Amanda teria possibilidade de tirar a história a limpo. É que o
Cense, apesar dos questionamentos que recebe e da autocrítica
que faz, conseguiu encaixá-la em um emprego, dando-lhe a chance
de ganhar dinheiro sem precisar pilhar lojas ou transportar
contrabandos.
…
A vaga foi conseguida por meio da Lei do Menor Aprendiz.
Promulgada em 2000, ela obriga empresas a contratarem jovens
com idade entre 14 e 18 para o desempenho de atividades de caráter
educativo, semelhantes a de um estágio.
O projeto faz parte de um programa de acompanhamento
de egressos criado em 2007 pela Secretaria Estadual da Criança e
da Juventude (Secj), responsável pela administração dos Censes
no Paraná. A iniciativa funciona em parceria entidades como
escolas, centros profissionalizantes, Organizações NãoGovernamentais (Ongs) e mesmo empresas privadas, que
colaboram oferecendo seus serviços aos adolescentes.
Amanda compreendeu todas essas explicações assim que
assumiu o cargo de auxiliar de cobrança da Companhia Paranaense
de Energia (Copel), uma empresas das participantes do Aprendiz.
A função que lhe foi reservada não figura nem de longe entre as
mais altas da empresa, mas permite que, pela primeira vez, a jovem
tenha uma fonte de renda da qual possa se orgulhar: "É meio saláriomínimo, mas eles dão vale-alimentação, cesta básica e meio-passe.
Tá bom, né?”
Para a família, está ótimo, pois parte dos benefícios é trazida
95
Portas Fechadas
para casa, como conta Amanda: “O vale-alimentação dou pra
minha mãe”. O restante do dinheiro também já tem destino certo:
“Gasto em roupa. Ah, e como eu vou fazer 18 anos, tava pensando
em começar a carteira de habilitação, pra pelo menos ter alguma
coisa, senão gasta, gasta e, quando vê, não tem nada”.
A carta de motorista e as novas vestes lhe exigem dedicação
de meio período, entre terça e sexta-feira. A exceção fica por conta
de segunda, dia em que, no lugar de bater cartão, a jovem se dedica
a assistir às palestras e discussões que fazem parte do seu programa
de Liberdade Assistida, realizado sem muito entusiasmo: “É chato.
Mas fazer o quê? Tem que ir”, reclama.
Amanda terá de aturar os encontros que considera maçantes
por mais 90 dias, quando a medida completará seis meses e então
chegará ao fim. O que não terminará tão cedo é a rotina de
despachar documentos e boletos na Copel, pois o contrato entre a
jovem e a empresa vence apenas no segundo semestre de 2009.
“Quando completar um ano, tenho que sair. Só que pelo menos já
fica na carteira registrado que eu trabalhei como estagiária. É uma
coisa a mais pra colocar no currículo mais tarde, né?”.
Os planos de emendar um emprego ao estágio são um bom
indicativo de que Amanda tem outros horizontes além da
reincidência. A constatação é reforçada também pelos frustrantes
resultados do delito que cometeu, cujo desfecho ela ficou sabendo
tão logo deixou o Cense. À época, a jovem ainda nutria esperança
de lucrar algum, pois, instantes antes de ser apanhada pela polícia,
enterrou os celulares no lote de casa.
Coube ao irmão menor desenterrar os aparelhos e entregálos a Pedrinho, único participante do assalto que se manteve solto.
O rapaz, segundo haviam combinado, usaria de sua liberdade para
vender os trinta e seis telefones e dividir o dinheiro com os parceiros
que fizeram o serviço.
Para a frustração de Amanda, o jovem quebrou o acordo.
“Ele vendeu os celulares, gastou com mulherada e com uma moto,
96
Portas Fechadas
e não me pagou nada”. Ruíram ali as derradeiras esperanças de
obter alguma vantagem com o delito. Terminou também o vínculo
amistoso entre os ex-namorados. "Eu já vi ele na rua, mas um nem
olha pra cara do outro", revela.
O esquecimento dos antigos delitos e dos velhos parceiros,
somado aos projetos de conseguir um emprego fixo, contrapõe os
riscos de reincidência a que Amanda está exposta, representados
pela atual condição do irmão e do namorado. As perspectivas de
manter distante das infrações remetem, então, a novas reflexões
sobre a eficácia da medida socioeducativa. Vêm à tona agora os
fatos e argumentos que dão crédito ao tratamento.
Quem começa é Mariselni, concedendo tons estatísticos à
conversa. De acordo com o relatório anual produzido pelo Cense
Joana Richa em 2007, apenas duas entre as 27 garotas da unidade
estavam privadas de liberdade pela segunda vez. A cifra orgulha a
diretora: “Nosso índice de reincidência é de 7%. Então se
subentende que a grande maioria está reinserida e que não voltou
a infrigir a Lei”.
Na avaliação do procurador-geral de Justiça do Paraná,
Olympio de Sá Sotto Maior Neto, tais índices são possíveis porque
o Estado está imune à grande parte dos problemas que afetam os
Censes distribuídos pelo país: “Falando do Brasil como um todo,
nós ainda temos muitas unidades na mesma concepção das Febens,
da violência, que faz com que adolescente que nem eram violentos
acabem absorvendo a idéia de que é através da violência que você
resolve os conflitos do cotidiano. No Paraná, diferentemente, nós
caminhamos para a construção de um sistema socioeducativo de
acordo com as previsões do Estatuto da Criança e do Adolescente.
É um processo que não está acabado, não com a velocidade que a
gente gostaria, mas o Paraná está numa posição de vanguarda”,
conclui.
Motivada pela experiência da filha, Aldaci também participa
do debate. Para ela, a internação foi bastante benéfica, pois rompeu
com boa parte dos hábitos negativos de Amanda: “Eu acho que foi
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Portas Fechadas
uma experiência pra ela. Ela conheceu muita gente, viu coisas
diferentes, viveu um tempo longe das pessoas daqui e voltou mais
calminha, mais tranqüila. Porque, por exemplo: se aquele assalto
tivesse dado certo, se eles tivessem vendido os celulares e pegado
um dinheiro, eles iam praticar outros, já que aquele deu certo,
né?”, especula.
…
Todas essas reflexões formariam um prato cheio para as
Unidas MC’s, o trio de rap que Amanda integrou enquanto se
encontrou detida. Mas desde sua saída do Cense, os microfones
se calaram. “Paramos, né?”, entristece-se. O empecilho para a
continuidade do projeto não é a internação, já que todas as unidas
estão em liberdade. O que inviabiliza novas cantorias e contradiz
o nome do grupo é o mais óbvio dos contratempos, como conta
adolescente: “Não é por falta de vontade. Depende de dinheiro
pra gente poder se encontrar e voltar. É por isso eu empaca”.
Frente ao problema, o jeito é sustentar a amizade com
conversas virtuais. Sempre que deseja se conectar à rede, Amanda
dá um pulo na lan-house que fica a alguns metros de casa. Deixa
sobre o caixa os dois reais que lhe valerão uma hora de
interatividade e, já no controle do mouse, apressa-se em abrir um
programa do tipo Messenger.
È por esse meio que a jovem não perde o contato com muitas
das amigas que moram distante, inclusive as ex-colegas do Colégio
Guido Straube, em Curitiba. Foi com os dedos a bater no teclado,
aliás, que Amanda pôde finalmente sair do anonimato que
sustentava diante dos ex-companheiros de classe. Deixou tudo em
pratos limpos, e foi compreendida: “Não, tudo bem. Eu entendo”,
respondeu-lhe uma das curitibanas brindada com a verdade.
Nos computadores que aluga na lan, Amanda também
costuma abrir o perfil que mantém na página de relacionamentos
Orkut. Quem visita o avatar da garota, depara-se com uma das
mais precisas sínteses de seus contrastantes rumos desde a
internação. A dualidade parte das definições que a jovem faz sobre
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Portas Fechadas
si mesma, a um só tempo pacíficas e rebeldes.
De um lado, usa doces palavras e demais sinais gráficos para
se apresentar como “?penas uma pequena com sonhos de uma
grande menina, vivendo num mundo surreal e estressante, tentando
apenas ser 'feliz'{?}”. De outro, lança mão de expressões dotadas
de certo teor de revolta para garantir que é “Vida loka até o fim”.
E dessa forma, como que seguindo por uma corda bamba
cercada de antagonismos, Amanda vai se equilibrando, enquanto
os ventos continuam a soprar forte no Oeste, ora pra lá, ora pra
cá, formando uma corrente de ar ainda sem rumo definido,
exatamente como o futuro das Unidas MC’s.
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Portas Fechadas
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Portas Fechadas
2. VIDAS NOVAS
E VIDAS LOKAS
I. GABRIEL
II. AMANDA
III. ARTHUR
Era dia de Brasil e Argentina. As duas tradicionais seleções
colocariam a rivalidade em campo para definir quem passaria à
final do torneio olímpico de futebol. A disputa ocorreria em
Pequim, mas mexia com os nervos de torcedores a quilômetros
de distância, inclusive na pequena Piraquara. Ali o educador social Francisco Miranda, como fazia todas as manhãs, coordenava
o trabalho de cinco adolescentes na horta do Cense São Francisco,
entre eles Arthur. Depois de um período de interrupção,
conseqüência de uma tentativa de fuga, as atividades haviam sido
retomadas há pouco. Naquela terça-feira, contudo, o instrutor
decidira que a turma deveria encerrar os afazeres mais cedo. Como
bom patriota, não queria perder um só instante do jogo.
Os adolescentes se entretinham na labuta com a terra quando
Francisco comunicou-lhes a decisão, certo de estar fazendo um
agrado aos jovens. Arthur, surpreendentemente, não recebeu a
proposta com satisfação, e insistiu em respeitar a rotina habitual:
“Vamos terminar o que a gente tá fazendo”, sugeriu. O pedido não
deixava de soar estranho, pois eram raras as oportunidades que os
jovens do Cense tinham para assistir a uma partida inteira de
futebol, ainda mais da Seleção, ainda mais contra a Argentina,
ainda mais valendo vaga na final.
101
Portas Fechadas
Não foi preciso que o professor fizesse muitas conjecturas
acerca da postura de Arthur, pois bruscamente tudo se esclareceu.
Já se preparando para concluir a jornada de trabalho, Francisco
notou que um automóvel se aproximava da horta. Suspeitou ser
apenas mais veículo se dirigindo às dependências do Centro, o
que é bastante comum, dado o elevado número de funcionários
da instituição. Mas depois de chegar ao ponto final da estrada, o
carro fez meia-volta e postou-se novamente ao lado dos canteiros,
agora com as portas abertas.
Arthur, neste momento, não estava mais com as ferramentas
na mão. Já havia disparado a correr – freneticamente, pois sabia
que alguns obstáculos lhe esperavam à frente. “Tem uma cerca de
arame farpado. O Arthur pulou por baixo e fugiu”, detalha Renata
Campos Mendonça, psicóloga responsável pelo atendimento do
adolescente. Já do lado de fora da horta, o jovem entrou no carro
que o aguardava e, conforme havia planejado, deixou o São Francisco em alta velocidade. Antes, teve tempo ainda de oferecer
carona a um colega de atividade que, vendo toda a movimentação,
aproveitou o ensejo para fugir também. “Acho que esse outro que
não tava no esquema”, supõe a psicóloga. O fato é que ambos
fugiram.
As evasões poderiam ter sido evitadas à custa de uma singela
palavra: “Fuga”. É isso que os funcionários do Cense devem
pronunciar em voz alta, ou mesmos aos gritos, se preciso for, para
que os policiais responsáveis pela segurança da unidade, que ficam
instalados em bases nas cercanias do Centro, partam em busca do
jovem que escapou. No caso de Arthur, a ação não foi possível
porque Francisco era novo na função, e, ante o misto de desespero
e surpresa que sentiu ao ver os internos em fuga, olvidou-se do
procedimento. “A horta fica do lado da polícia, e os policias viram
eles correr, mas não puderam fazer nada”, explica Renata.
Manhã conturbada aquela de agosto. Em Pequim, o Brasil
perdia para a Argentina por goleada. Em Piraquara, o São Francisco via escapar dois de seus internos. Decepções das grandes.
102
Portas Fechadas
…
Renata, certamente, era quem mais se achava desapontada,
especialmente depois do que acontecera nos dias que antecederam
a fuga.
Cerca de um mês antes do fato, as autoridades incumbidas
de avaliar o caso haviam recebido do Cense o terceiro relatório
comportamental sobre o garoto. Elaborado por Renata e Rossana,
assistente social que também atendia Arthur, o documento expunha
detalhadamente os avanços obtidos por ele durante o tratamento,
e por isso deixava a psicóloga confiante no encerramento da medida.
A avaliação seria feita por uma juíza com quem Renata conversara
pessoalmente dias antes, o que fortalecia ainda mais sua convicção:
“O relatório é passado pra promotoria, pra defensoria e pro juiz.
A decisão é do juiz, que pode ir com a promotoria ou com a
defensoria. Normalmente eles conversam e discutem isso. Nesse
caso, eu tinha quase certeza que a juíza ia com o meu parecer,
porque a gente já tinha discutido esse caso”, revela.
Só que, por uma coincidência de datas, a magistrada entrou
em férias justamente nos dias em que o relatório chegou à sua
mesa. A decisão, então, ficou a cargo de uma árbitra substituta,
menos convencida da argumentação da psicóloga. Assim, a
canetada que poria novamente Arthur em liberdade não veio: “Deu
continuidade de medida”, sintetiza Renata, em tom de surpresa.
No dia seguinte, a técnica chamou o jovem à sua sala com a
complicada atribuição de lhe deixar a par da resolução. Com o
relatório em mãos, temia as possíveis reações do garoto: “Acho
que o Arthur vai ter que sair da horta, porque senão vai fugir”,
comentou com Rossana instantes antes de conversar com o rapaz.
Logo que ele chegou a sua sala, Renata novamente empunhou
o documento e se pôs a ler a justificativa das autoridades. Num
primeiro momento, como previa, o jovem ouviu os argumentos
com certo inconformismo. Mas estava coberto por uma raiva
apenas momentânea, pois, em questão de minutos, já transparecia
103
Portas Fechadas
serenidade. E foi assim, tranqüilo, que tomou o telefone em mãos
e ligou para a mãe, repassando a informação: “Eu tô de boa, mãe.
Fica tranqüila que vou ficar sossegado, não vou fazer nada”, falou.
O modo lúcido como acolheu o fato se devia também à outra
notícia transmitida por Renata. Enquanto explicava toda a situação
ao garoto, a psicóloga deixou claro que a decisão da juíza não era
definitiva. Havia possibilidade de se fazer um pedido de revisão
do relatório e também de se dialogar novamente com a magistrada
– tarefas que prontamente se comprometeu a realizar, dando
sobrevida às possibilidades de saída de Arthur. Seria preciso,
contudo, aguardar aproximadamente um mês até a chegada da
nova resposta.
O jovem se manteve firme no aguardo da réplica
praticamente até o último momento, como rememora a psicóloga:
“Eu disse pra ele na segunda-feira: ‘Arthur, a sua resposta está pra
vir amanhã!’”. Mas, como bem viram os colegas de horta no dia
seguinte, o garoto não suportou estender a espera.
…
Como presumia a psicóloga, o novo parecer dos magistrados
veio mesmo na terça-feira. A reavaliação do processo coube à juíza
titular, que regressara do repouso e, pelo visto, não se esquecera
da conversa que tivera com Renata. “A juíza contou que ia aceitar
o meu pedido e liberar o Arthur”, relembra a técnica.
Era dolorido para ela concluir que, por questão de algumas
horas e um tanto mais de paciência, a internação de Arthur, que já
perdurava por um ano e meio, deixasse de ser encerrada. “Eu
fiquei muito mal, porque sei que ele tava pronto pra ir embora”,
assume. Triste também era olhar para os planos que aguardavam
o rapaz do lado de fora, deveras promissores.
Conta Renata que, em parceria com assistentes sociais de
Piraquara, onde mora a família do jovem, o Cense São Francisco
buscava encaixá-lo no Projeto Aprendiz. O contato para viabilizar
104
Portas Fechadas
a vaga fora feito junto a diversas empresas, com especial atenção
às estatais, que abrem espaço para adolescentes em conflito com a
Lei mais facilmente. Em pouco tempo o trabalho de prospecção
surtiu efeito: a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar)
abriu uma vaga, e a oferecia a Arthur.
O problema é que há uma semana o rapaz não estava mais
no Centro. A oportunidade, então, seria repassada adiante, e o
rapaz perdia uma chance rara: “O Arthur ia ser o primeiro menino
do São Francisco a ser inserido no Projeto Aprendiz mesmo
estando internado. A proposta é que todos os dias ele saísse pra
trabalhar e depois voltasse pra cá”, conta Renata, com ar de
lamento.
O jovem até sabia que estava na iminência de ser
contemplado com uma vaga do projeto, mas fazia pouco caso.
Nos dias que precederam a fuga, a descrença em novos horizontes
era total, como recorda a técnica: “Ele achava que não ia conseguir
a vaga. Chegou na última semana, ele falou: ‘Ah, não vai sair nada,
não vai dar nada certo!’”.
Ante o ceticismo do garoto, a direção da casa buscava novas
formas de mantê-lo estimulado. Para isso, lançou mão da principal ferramenta motivadora do Cense: o Plano Personalizado de
Atendimento (PPA), documento que sela o compromisso do
interno com o afastamento da criminalidade. “É um programa
onde o próprio garoto nos diz o que quer pra vida dele e que
compromissos se propõe para começar a vivenciar coisas
saudáveis e valores morais positivos”, detalha o diretor do Centro,
Júlio César Botelho, entusiasta da idéia.
Além de possuir caráter estimulante, acrescenta Júlio, o
Plano também traz reconhecimento público ao interno que o
subscreve. Era perfeito para o momento que Arthur vivia: “Os
garotos que assinam o PPA já estão em condições de se propor
algo, de se propor metas. Estão eles estão numa condição cultural
e intelectual melhor que aqueles que ainda não conseguem
estabelecer essas metas a si próprios”.
105
Portas Fechadas
No caso de Arthur, a cerimônia de assinatura do documento,
que conta com convidados e um pequeno coquetel, fora realmente
especial. Na semana anterior, o rapaz havia, na companhia de uma
turma de internos, colorido parte dos muros da unidade, atividade
pela qual também seria homenageado. Renata, que presenciou a
cerimônia, lembra os detalhes de tudo que aconteceu: “Pegaram
pela lista e o primeiro nome era o dele. Então chamaram o Arthur
pra representar os meninos e pra ser homenageado. E bem na
hora em que ele subiu e começaram os elogios, a mãe dele entrou.
Foi muito legal”.
Os aplausos e abraços que recebeu, porém, não foram
suficientes para persuadi-lo a desistir da fuga, que ocorreria na
semana seguinte. E a surpresa advinda da evasão do jovem não
era a única novidade que chegaria aos ouvidos de Renata naqueles
dias.
…
Exatas duas semanas após o episódio, o telefone do São Francisco voltou a tocar para trazer novas informações sobre o rapaz.
Até então, os profissionais do Centro estavam às cegas quanto a
real condição de Arthur, pois nem a família sabia de seu paradeiro.
As incertezas tiveram fim quando, do outro lado da linha,
autoridades policiais avisaram que haviam recapturado o jovem.
A notícia despertava dois sentimentos opostos na equipe
técnica do Cense: de um lado, oferecia tranqüilidade, pois
assegurava que o adolescente estava a salvo e que seu tratamento
poderia ser retomado; de outro, causava preocupação, pois a nova
detenção fora fruto de mais um delito – um assalto, mesma infração
responsável pela primeira internação de Arthur.
Desta vez, entretanto, a ação não teve como alvo grandes
residências, como ocorria outrora; mas sim uma dupla de
universitários de São José dos Pinhais, município a Leste de
Curitiba. Em uma motocicleta, os dois voltavam da faculdade para
casa quando Arthur e mais três rapazes, também sobre duas rodas,
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Portas Fechadas
aproximaram-se. O quarteto, que estava organizado em duas
duplas, então sacou um par de armas e anunciou o assalto, com a
intenção de furtar o veículo das vítimas e rapidamente bater em
retirada.
Mas o plano começou a ser frustrado quando os dois
acadêmicos reagiram com vigor e, inesperadamente, revelaram
que, além de estudantes, eram também policiais militares. O
anúncio deflagrou uma intensa troca de tiros, e a maior parte dos
disparos foi direcionada à moto que Arthur guiava. As
conseqüências do confronto foram terríveis: baleado quatro vezes,
o rapaz viu o amigo que estava consigo ser atingido por mais uma
porção de disparos e, gravemente ferido, falecer ali mesmo.
Debilitado e em choque, Arthur não pôde acompanhar os
colegas da outra moto, que conseguiram escapar. Estático, o rapaz
foi detido pelos policiais, que nada sofreram além de alguns
arranhões. Como sabiam que o adolescente precisava de cuidados
médicos, os soldados levaram-no diretamente ao Hospital Cajuru,
para que recebesse os primeiros socorros. Dali, o rapaz voltou a
tomar o rumo da internação: primeiro, foi encaminhado ao Juizado
de Menores; mais tarde, seguiu à Delegacia do Adolescente; por
fim, regressou ao São Francisco.
Toda a versão da história tem o carimbo da PM e é
referendada pela imprensa, mas não pode ser contestada por
Arthur. Até o momento, o jovem está impedido de comentar
publicamente o caso. A proibição parte de Júlio, diretor do Cense,
que busca mantê-lo afastado de entrevistas e depoimentos para
não que “a nova infração não seja valorizada”.
Como o retorno à unidade ainda é recente, Arthur está
privado até mesmo de falar com Renata. O isolamento faz parte
da sanção disciplinar que recebeu por conta da fuga e da
reincidência, e é quebrado apenas nas conversas que tem com o
médico psiquiatra da casa e responsável por seu atendimento nesse
período.
107
Portas Fechadas
A penalidade também se reflete no local em que o garoto
está instalado: ao contrário da primeira passagem pelo Cense,
quando ocupou um alojamento da ala A, o jovem permanece agora
em um abrigo da ala C, destinada a jovens que precisam se quedar
afastados do convívio comum. “É muito diferente. É um alojamento
individualizado, onde os meninos fazem atividades em pequenos
grupos. Mas ele, como está em contenção, não participa de
atividade nenhuma”, detalha Renata.
O tratamento dispensado ao garoto gera indignação na mãe
do rapaz, Laura. Para ela, a mudança no alojamento e na forma
do atendimento psicológico tem sido prejudicial ao filho. Mas as
críticas de Laura terminam por aí. Bastante abatida com a
ocorrência e suas conseqüências, quase fatais para o filho, ela
prefere guardar silêncio sobre tudo que aconteceu.
Renata, ao contrário, tem muito interesse em esclarecer tudo,
principalmente as motivações de Arthur. Para isso, contudo, terá
de esperar que o período de isolamento do jovem termine, o que
deve acontecer em breve.
…
Mesmo sem ficar face a face com o garoto, a psicóloga já
delineia algumas explicações para a triste sucessão de
acontecimentos iniciada naquela manhã de Brasil e Argentina.
Colhendo informações junto ao psiquiatra e aos demais
profissionais que têm algum contato com o adolescente, ela
começou lentamente a colocar os pingos nos is.
A primeira teoria que sustenta é a de que a fuga foi provocada
por um sentimento de revolta contra o Cense, que com freqüência
alimentava suas expectativas quanto às possibilidades de saída. “Ele
fugiu jogando a culpa na gente, dizendo que nós fizemos a mãe
dele se mudar pra ele ser desinternado, e ele não foi; que a gente
prometeu que ele ia sair, e ele não saiu”, fala Renata, referindo-se
à mudança de residência feita pela família na metade deste ano,
em atendimento a uma solicitação da juíza que cuida do caso.
Para a técnica, parte da justificativa é legítima e parte é
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Portas Fechadas
inválida. O excesso de esperança criado em torno de liberação é,
de fato, reconhecido: “Às vezes a gente deposita mais do que eles
podem suportar. Isso é, mesmo, um problema nosso”.
Já a alegação de que a transferência de cidade tenha sido
enganosa, pondera, é inconsistente: “É uma maneira de o Arthur
racionalizar tudo isso e justificar a fuga dele, porque a mãe já queria
se mudar pra Piraquara, por causa do PAC [Programa de
Aceleração do Crescimento, do Governo Federal, que prevê
investimentos no município], que vai regular a situação da família.
Mas ele culpa a gente porque precisa culpar alguém”.
Renata também buscou se inteirar dos ferimentos que a troca
de tiros em São José dos Pinhais deixou no rapaz. Em conversa
com os médicos da unidade, que permanecem observando o
jovem, descobriu que escapar praticamente ileso do confronto foi
um lance de muita ventura. “Sei que três [tiros] foram na virilha e
que outro pegou perto da barriga. O médico diz que não acredita
como os tiros desviaram da [artéria] femoral. Pelo que o médico
explicou, mesmo que mirassem de novo, não iam errar na femoral. Três! E todos os tiros entraram e saíram. Nenhum pegou órgão
vital. Todos pegaram músculo. Ele teve uma sorte...”, comenta.
A última investigação empreendida pela técnica dá conta do
estado emocional do rapaz, bastante frágil, dizem, sobretudo pelo
cruel fato que testemunhou no dia do assalto aos peêmes. “O
menino que foi morto já esteve aqui no São Francisco. E, segundo
os recados que me chegam, o Arthur falou que o menino pedia
socorro e ele não podia fazer nada. Então ele deve ter passado por
momentos horrorosos vendo o menino ser assassinado. Ah, não
posso dizer ‘assassinado’, tem que ser ‘sendo morto’, porque a foi
polícia, né?”, especula, com afiada ironia.
Também preocupa a psicóloga um indício de rebeldia que
o garoto manifesta contra ela. “Ele tá brabo comigo porque eu não
fui atendê-lo ainda, mas eu não posso. O responsável é o psiquiatra.
Além disso, na cabeça dele, fui eu quem liguei pra Delegacia
dizendo que ele estava foragido.”
109
Portas Fechadas
Nesse caso, contudo, Renata crê que a resistência seja apenas
passageira, dada a forte relação que ambos construíram nas muitas
confidências que compartilharam. “Ele tem um vínculo, sim. Tanto
é que, mesmo ele dizendo que está brabo porque acha que eu
trouxe ele pra cá, ele tá preocupado em saber se eu ainda vou ser
a técnica dele. E, pelo que me falaram, ele quer que eu seja.”
A psicóloga também projeta o futuro do menino na unidade.
Para isso, contudo, ela não precisa consultar ninguém e tampouco
se basear em informações de corredor. A experiência que tem na
socioeducação é suficiente para lhe indicar que o caminho que
Arthur deve percorrer daqui pra frente é a um só tempo longo e
tortuoso: “Eu acho que ele vai ficar mais um ano e meio, que é o
tempo que falta pra completar os três anos, e é muita coisa pra um
adolescente. Isso aqui é um ambiente artificial, que tem uma
cultura de penitenciária e que mexe com a auto-estima”, lamenta.
O diretor da unidade, Júlio, sabe bem do que Renata está
falando, e por isso assegura que o Centro concentra esforços em
minimizar o sofrimento causado pela privação de liberdade: “A
medida de internação tem seu aspecto de sanção, e a gente tem
que deixar isso claro pro garoto. Ora, ser privado da liberdade é
uma punição, claro que é, mas não precisa ser um período de
sofrimento. Pode ser um período de aprendizagem, um período
de reflexão e de entender que o que ele fez foi muito errado, grave
ao ponto de ser preso”.
…
O procurador-geral de Justiça do Paraná, Olympio de Sá
Sotto Maior Neto, concorda que humanizar o atendimento
socioeducativo é uma medida essencial para que os adolescentes
tenham condições de se manter distantes da criminalidade assim
que a reclusão termine – objetivo central da internação, pois. Mas
a aposta principal de Olympio para que a juventude não enverede
por trilhas marginais, tal qual ocorreu com Arthur, não está nos
Censes, mas no respeito aos direitos capitais por lei assegurados
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às crianças e adolescentes.
Ao lado da Constituição Federal de 1988, o documento-base
para a garantia de cidadania aos jovens brasileiros é o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), criado em 1990 com destacada
participação do procurador.
Depois de concluído, o Estatuto substituiu o Código de
Menores, antiga legislação sobre o tema e que muito desagradava
Olympio e outros tantos juristas dedicados à área: “Ao mesmo
tempo em que eu me preocupava com a situação da infância, eu
via a justiça de menores caminhando para um lado absolutamente
equivocado por não reconhecer as crianças e adolescentes como
sujeitos de direitos fundamentais, e responder, na maioria das vezes,
de forma injusta aos problemas que aconteciam”.
O procurador pede licença para, falando simples,
aprofundar-se na discussão. De acordo com ele, a falha principal
é que a antiga legislação tinha caráter emergencial, o que significa
que só agia quando o problema já estava configurado: “Na
concepção e na doutrina adotada pelo Código de Menores, a
chamada ‘Doutrina da Situação Irregular’, o juízo que se fazia era
o seguinte: uma vez identificada uma patologia social é que surge a
legitimidade para a intervenção da justiça do menor”.
Com o ECA, passou a ser valorizada a prevenção, o que
antecipou o momento de a justiça entrar em cena: “O que se quer
é que as crianças e os adolescentes sejam reconhecidos como
sujeitos de direito, e que se implementem esses direitos da
população sem aguardar a instalação de uma situação irregular
para então haver a intervenção”.
Para que a filosofia contida no Estatuto não se tornasse
conversa para boi dormir, os juristas engajados na elaboração do
documento se empenharam em criar mecanismos concretos que
viabilizassem tal atuação preventiva. Daí nascem os filhos ilustres
do ECA: os Conselhos Municipais dos Direitos da Infância e
Adolescência e os Conselhos Tutelares.
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Olympio inicialmente se debruça sobre o primeiro. Tratase de entidades formadas por representantes da sociedade civil
organizada e do poder público, em igual número de participantes
e com a presidência compartilhada, para a definição das ações do
governo nessa área. “É o órgão incumbido de formular em todos
os níveis a política de atendimento à infância e à juventude. A política
que eles definirem é a política oficial”, sintetiza o procurador.
Os Conselhos Tutelares, por sua vez, constituem um
mecanismo que, para evitar burocracia e lentidão, procura resolver
os problemas da infância e adolescência antes da justiça. Evita,
com isso, que problemas emergenciais, como falta de escola ou
violência doméstica, sejam prolongados: “Diante da urgência de
respostas, há a intervenção desse órgão administrativo, que aplica
medidas e pode requisitar os serviços públicos necessários para a
área da saúde, educação etc. São medidas protetivas que podem
impedir o encaminhamento para a delinqüência”.
Neste ano, como em breve vai acontecer com muitos
adolescentes internados no Cense, inclusive Arthur, o ECA atinge
sua maioridade. É uma data simbólica para quem defende o
Estatuto, celebrada com muita análise do que precisa ser
melhorado para que o documento atinja resultados melhores que
os atuais.
Olympio vê dois desafios centrais. O primeiro diz respeito
ao funcionamento dos dois órgãos que acabou de citar. Em relação
aos Conselhos Tutelares, considera necessário o aporte de mais
dinheiro e atenção por parte das prefeituras: “Ainda hoje são raros
os Conselhos que se encontram em situação adequada de
funcionamento, seja no que diz respeito a recursos humanos e a
apoio técnico, seja no que diz respeito até a recursos materiais
para o seu funcionamento. Falta orçamento”.
Já sobre os Conselhos de Direitos, defende a melhor
utilização do poder que possuem: “O administrador é obrigado a
canalizar os recursos orçamentários para a implementação dos
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programas e ações que forem definidos pelo Conselho. Se esses
órgãos funcionassem direito, se elaborassem adequadamente a
política de atendimento à infância e à juventude, poderiam mudar
o país”, fala, ousadamente.
O outro desafio, no entanto, parece ser mais difícil de ser
superado. Não diz respeito apenas a governantes e representantes
da sociedade civil organizada; mas engloba todos os cidadãos. É a
priorização da infância e juventude como elemento definidor do
futuro do país. Mais que um clichê, para Olympio, a medida é a
fórmula para afastar os jovens paranaenses, sejam eles de Fazenda
Rio Grande, Cascavel, Piraquara ou de qualquer outro município,
das oportunidades oferecidas pela criminalidade.
Sempre que participa de eventos públicos sobre o tema,
Olympio faz questão de bater nesta tecla. “Nós temos que avançar
no sentido de fazer com que o município garanta os direitos
fundamentais da população infanto-juvenil, para que não seja
necessário, no futuro, internar um adolescente”.
…
Em uma ocasião recente, enquanto convencia os
interlocutores da necessidade de se dedicar atenção às crianças e
jovens do país, Olympio deparou-se com uma grata surpresa. Ao
final das discussões, foi abordado por uma senhora que
acompanhara todo o falatório.
Interessada no assunto e mostrando notável compreensão
do conteúdo exposto, Dona Sebastiana, como se chamava a
mulher, então lhe fez uma em tom de reflexão: “Doutor, eu entendi
esse tal do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ele diz que é
para a gente querer para os filhos do outros o mesmo bem que a
gente quer pros nossos filhos”. Impressionado com o poder de
síntese e entendimento do tema apresentado por ela, o procurador
não viu necessidade de qualquer réplica mais longa: “É isso”,
respondeu.
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Quem dera fossem comuns interpretações como a da mulher.
A regra, ressalva Olympio, é olhar a questão da infância e
adolescência de outra forma:
“Cada vez que os nossos filhos têm uma conduta anti-social,
a gente imagina o quê? ‘Ai, é porque ele tá passando pela crise da
adolescência’. E o que se recomenda para os nossos filhos é mais
atenção, mais demonstração de afeto e ajuda na construção dos
caminhos para transpor essa fase do mundo infantil para o mundo
adulto. Agora, quando é com os filhos dos outros, o que as pessoas
querem? Privação de liberdade, cadeia, chamar a polícia. A
sociedade brasileira não enxerga os seus filhos. É este o grande
problema”.
Desse mal, Dona Sebastiana não padece. É verdade que,
quando liga a tevê ou o rádio, nota que muito políticos, sobretudo
os que defendem a redução da maioridade penal, pensam de forma
diferente. Com a privilegiada compreensão que tem do tema,
gostaria apenas de um dedinho de prosa com eles. Não perderia
tempo com discussões elaboradas, mas apenas levaria a mão ao
bolso, pois já sabe identificar quais chaves realmente são capazes
de abrir as portas que a juventude ainda encontra fechadas.
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AGRADECIMENTOS
Embora singelo, este livro-reportagem pôde ser realizado
apenas porque encontrou apoio e respaldo de muitos profissionais
e instituições ligadas ao tema, que merecem, pois, meus mais
sinceros agradecimentos. São eles:
Profissionais da Secretaria de Estado da Criança e da
Juventude (Secj), pela permissão e apoio para a realização do
projeto;
Jornalistas e estagiários da Central de Notícias dos Direitos
da Infância e Adolescência – Ciranda, pela oportunidade dada de
conhecer os três Centros de Socioducação (Censes) estudados e
pelo importante trabalho que realizam;
Margarete Rodrigues e Iracema Elise da Costa (diretora e
psicóloga do Cense Fazenda Rio Grande), Mariselni Vital Piva e
Cleusa Roderjan Benatto (diretora e psicóloga do Cense Joana
Miguel Richa), Júlio César Botelho e Renata Campos Mendonça
(diretor e psicóloga do Cense São Francisco), pela atenção e
cordialidade com que me receberam, e pela sinceridade com que
me concederam entrevista;
Procurador-geral de Justiça do Paraná, Olympio de Sá Sotto
Maior Neto; secretária da Criança e Juventude do Paraná, Thelma
Alves de Oliveira; e sociólogo e professor da Universidade Federal
do Paraná (UFPR) Pedro Rodolfo Bodê, pelos preciosos instantes
de conversa concedidos e pelos esclarecimentos diversos sobre o
tema.
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Cabe também um agradecimento especial aos companheiros
que contribuíram de forma decisiva para a realização do projeto.
São eles:
Adriana Pereira, minha querida amiga Adre, pelo chamado
prontamente atendido na etapa final do trabalho;
Elza Oliveira, minha orientadora, pelas constantes conversas,
correções, conselhos e estímulos, vitais para a elaboração do
trabalho;
Estelita Carazzai, minha namorada, pelo incansável ombro
que me acolheu nos momentos mais tensos, pelas incontáveis idéias
compartilhadas e sugestões feitas, e pelo entusiasmo com que
sempre encarou o projeto;
José Carlos Fernandes, novo amigo que este trabalho deixa,
pelo prefácio dedicado e pela inspiração que seu trabalho há muito
me causa;
Juliana Motta e Leônidas Vinício, nobres amigos, pelas
incontáveis conversas, reflexões e rebeldias compartilhadas, vitais
em minha formação intelectual;
Guylherme Custódio e Rodrigo Scandelari, ilustres
companheiros, pelos chamados prontamente atendidos.
Por fim:
À minha família, que compreendeu minha ausência
momentânea;
À minha mãe e meus avós, que durante toda a minha vida
me educaram e me prepararam para obstáculos como este.
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