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Portas Fechadas Portas Fechadas A JUVeNTUde margiinal procura uma saida Renan Colombo 1 Portas Fechadas Livro-reportagem produzido em 2008 como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do curso de Jornalismo da Universidade Positivo (UP), de Curitiba/PR. Professora Orientadora: Elza Aparecida de Oliveira Filha Fotografia: Banco de imagens SXC [www.sxc.hu] Capa: Adriana Pereira Contato com o autor: renancolombo@yahoo.com.br 2 Portas Fechadas “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.” (Bertolt Bretch) 3 Portas Fechadas 4 Portas Fechadas ÍNDICE Nota do autor.......................................................... 7 Prefácio, por José Carlos Fernandes....................... 9 1. Entre celas e salas................................................ 11 I. Gabriel..................................................... 11 II. Amanda.................................................... 35 III. Arthur...................................................... 55 2. Vidas novas e vidas lokas................................... 75 I. Gabriel................................................... 75 II. Amanda................................................ 87 III. Arthur.................................................. 101 Agradecimentos....................................................... 117 5 Portas Fechadas 6 Portas Fechadas NOTA DO AUTOR A fim de preservar a identidade dos adolescentes entrevistados e em cumprimento às determinações do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), seus respectivos nomes, bem como os de seus familiares, amigos e colegas de internação, foram substituídos por outros, ficctícios. Permanecem verdadeiros os nomes dos demais entrevistados. Todas as histórias contidas neste livro-reportagem foram redigidas a partir de informações prestadas pelos entrevistados consultados. No caso específico de infrações penais, admite-se a possibilidade de outras versões para os fatos, mas como não é objetivo deste trabalho investigá-las, são mantidas as versões dos adolescentes. O autor 7 Portas Fechadas 8 Portas Fechadas PREFÁCIO Este texto está sendo cordialmente produzido pelo jornalista José Carlos Fernandes, e estará concluído quando da conclusão definitiva deste livro-reportagem. 9 Portas Fechadas 10 Portas Fechadas 1. ENTRE CELAS E SALAS I. GABRIEL II. AMANDA III. ARTHUR Embora não faça da leitura um hábito, especialmente pela manhã, quando divide o tempo entre o desejo de estender o sono por valiosos minutos e a obrigação de apressar o passo para evitar atrasos no trabalho, José era incapaz de ignorar as novidades anunciadas pelos jornais naquela manhã de dezembro. O que lhe interessava nos periódicos, contudo, não eram as corriqueiras manchetes econômicas e tampouco os enfadonhos embates políticos, sempre custosos a entender; a notícia que, de fato, mudaria o ano prestes a iniciar lhe atraía os olhos no nada nobre caderno policial: “Adolescentes em guerra na Fazenda Rio Grande”. Aquela guerra José conhecia bem. Meses antes, o filho mais velho fora uma de suas vítimas, ao se envolver numa briga de bar com outros adolescentes. Agora, era chegada a vez de experimentar o outro lado do front: o jornal noticiava que o segundo filho, aos 17 anos, estava preso sob a acusação de homicídio. É verdade que a reportagem não identificava o jovem pelo nome, mas nem era preciso: a ineficiente estratégia de usar iniciais deixava claro que G.F.M. era Gabriel, mais um dos meninos da família Franco Medeiros a se envolver em conflitos solucionados de forma bruta e dolorida. A aflição de José tivera início no dia anterior, antes do 11 Portas Fechadas destaque dos jornais, quando da detenção do filho, feita pelas autoridades com a truculência habitual: “Os policiais o agrediram. Já tinham pegado ele, mas deram tiro perto dele quando ele já tava algemado. Aquilo me revoltou. O piá já tá algemado! Pra que fazer o encarceramento, a experiência precoce da punição. A minha crítica vai no sentido de usar uma espécie de língua diferente pra tratar de instituições que, na prática, efetivamente, produzem o mesmo efeito. Como o que acontece lá é uma prisão efetivamente, todo mundo fica tentando exorcizar esses termos”. Gabriel estava conhecendo a polêmica de perto. A possibilidade de receber atendimento psicológico individual indicava que ali realmente havia uma proposta de tratamento diferenciada, ao mesmo tempo em que a organização interna da casa lhe causava a impressão de estar em uma prisão comum. Os Censes possuem, por exemplo, uniforme próprio, regras disciplinares, horários específicos para visitas e, claro, celas. A B-9 era a que Gabriel ocupava naquele momento e de onde saía para encontrar Iracema, quando então se punha a conversar e refletir sobre os próprios passos. No início, porém, o diálogo era bastante truncado, seguindo o ritmo característico das conversas com adolescentes recém-chegados ao Centro: “Geralmente, não é numa primeira conversa que você consegue criar um vínculo com ele. É com o passar dos meses, até pegar confiança”, conta Iracema. Para que seja proveitoso, acrescenta a psicóloga, o diálogo neste momento inicial exige atenção e sensibilidade aguçadas: “Eles escondem bastante coisa. Escondem bastantes informações que você só pega com o tempo, em alguma conversa, alguma palavra ou algum gesto também. Depois eles contam, se abrem e pedem ajuda, acima de tudo”. A Gabriel não faltavam motivos para solicitar auxílio. Nas intimidades que contava a Iracema, que atende a outros 14 jovens do Centro – a tarefa é compartilhada com Márcia Regina Corrêa, também psicóloga e responsável pelo atendimento de igual número de jovens –, o adolescente expunha algumas das dificuldades pelas quais passara antes de chegar àquela sala. 12 Portas Fechadas Entre os depoimentos diversos, o jovem narrava as motivações que o levaram a cometer os primeiros delitos, aos 14 anos. Eram pequenos assaltos, realizados na companhia de amigos e em busca de algo essencial na formatação da identidade juvenil: a roupa. “Eu ia nas casas e, pá, enquadrava... mas não que era direto. Eu não curtia roubar. Roubava só pelos panos. A gente queria ter uns pano e não podia comprar; eu ia lá e roubava”. A sinceridade do relato revela duas informações importantes sobre o interlocutor. A primeira expõe suas preferências. Como a maioria dos jovens do Iguaçu I, bairro periférico de Fazenda Rio Grande onde morava na época, Gabriel se sentia à vontade trajando roupas características do movimento hip-hop – os panos a que se refere, tais quais calças ou bermudas alguns números acima do manequim, camisetas quase chegando aos joelhos e tênis igualmente grandes. Tudo eventualmente acompanhado por bonés e piercings, numa harmonia que se completa com a música feita pelos grupos de rap nacional, liderados pelos versos dos Racionais MC’s. A outra informação contida na fala do adolescente é a dificuldade financeira da família. Á época, o orçamento da casa era formado pelos rendimentos do pai, que oferecia sua força de trabalho a uma olaria; e da mãe, que interrompia os serviços domésticos em casa para repetir o trabalho na residência de terceiros. Embora muito bem-vindo, o reforço trazido por Dora era apertado para, mesmo somado ao salário de José, prover as necessidades dos quatro filhos. Diante da carência de recursos, poucas opções restaram aos pais que não colocar a piazada para trabalhar também, e, com isso, mesmo sem saber, conflitar com os preceitos estabelecidos pelo ECA, cuja preocupação sobre o tema é manifestada no artigo 60: “É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz”. Não era aquela, definitivamente, a situação de Gabriel. O que o adolescente aprendia, de fato, era a fazer tijolos, tarefa desempenhada sob os olhos atentos do pai, oleiro desde os 18 13 Portas Fechadas anos, muito mais por acaso do que por escolha: “Eu não tenho estudo. Faço o serviço pela minha prática, não que eu tenha profissão”. Mais tarde, longe da supervisão paterna, Gabriel ganhou seus trocos em outros labores: foi servente de pedreiro e funcionário de uma grande transportadora de cargas. Os estudos, por sua vez, não foram interrompidos – pelo menos formalmente: “Reprovar, assim, eu nunca reprovei. Estudava quase até o final do ano, e desistia. Se eu continuasse, passava, mas eu sempre desistia”, assume. Para a mãe, o pouco apreço do filho pelas aulas era tão dolorido quanto o potencial de aprendizagem do garoto: “O Gabriel foi um menino que nunca me deu trabalho. Ele era bom estudante. As professoras me chamavam e diziam: ‘Quando eu termino de passar a lição, ele já acabou’”, narra, com uma indisfarçável pitada de orgulho saudosista. Entre trabalhos aqui e aulas gazeadas acolá, pois, Gabriel estudou até a quarta série. Em determinado momento, quando problemas lombares obrigaram o pai a deixar o emprego, os dividendos trazidos pelos jovens se tornaram imprescindíveis, e a condição de estudante, para o filho mais novo, ficou cada vez mais incômoda: “Ia enjoando, cansando. Parecia que o tempo não passava”. Como alternativa à falta de vagas no mercado formal, José e Dora resolveram se dedicar, acompanhados dos filhos, à tarefa de catar materiais recicláveis. Mais cansativa que a rotina de empurrar o carrinho abarrotado de papéis cidade adentro, contudo, era suportar o estigma de inferioridade vindo de olhares alheios: “Os meninos tinham vergonha daquilo. Eles achavam que não era serviço adequado, porque nesses tempos eles já estavam rapazinho. E eu penso que todo rapaz de 15 anos tem vergonha, porque é o tempo que eles estão conhecendo o mundo, conhecendo melhor as meninas. Então, às vezes, eles tinham vergonha de se apresentar pra muitas moças: ‘Eu sou filho do Seu José’. ‘Ah, daquele que 14 Portas Fechadas cata papel?’”. A sensibilidade demonstrada por Dora se justifica: assim como os filhos, ela também se viu obrigada a ingressar cedo no mundo produtivo. “Eu tinha uns sete ou oito anos e já trabalhava cuidando dos filhos dos outros. Por que ninguém me dava nada, eu tive que, cedo, aprender a me virar por conta.” José, igualmente precoce no contato com o trabalho, ocorrido antes de completar dez anos, também faz suas ponderações sobre a adolescência dos filhos. Para ele, entretanto, além das necessidades impostas pelos tímidos rendimentos da família, a decisão de empregar os filhos foi, em certa dose, fruto de uma escolha: “Quando eu arrumava algum trabalho, eles iam junto, e iam mais pra fazer a minha vontade. A gente via os colegas deles se indo, se perdendo na vida, e a gente queria tirar eles fora daquilo ali”. É que no local em que José e a família viviam, o bairro Iguaçu I, o envolvimento de jovens com a criminalidade era rotineiro. A saber, foi lá que Gabriel cometeu os primeiros assaltos, aqueles detalhados a Iracema. Cabia ao pai, portanto, evitar o pior, e era assim que ele, como que numa estratégia torta de compensação, desrespeitava o ECA aqui, ao empregar os filhos, para fazer valer o Estatuto lá, vendo os meninos longe da criminalidade. … A despeito dos momentos de dificuldade, Gabriel guarda muitas lembranças prazerosas dos tempos de piá. Quando criança, a diversão vinha sobretudo nas brincadeiras compartilhadas com o irmão, Joaquim, algo em torno de três anos mais velho. “História é o que mais tem”, trata de ir avisando. Curitibano nascido no Tatuquara, bairro da empobrecida região Sul, Gabriel sabia explorar muito bem a geografia urbanorural da área em que vivia, e fazia das suas em meio à natureza. O que ele e o irmão gostavam mesmo, longe dos videogames, computadores e demais seduções eletrônicas, era de pescar. “Nós 15 Portas Fechadas pescava traíra, lambari... altos peixes mesmo”, detalha. A habilidade com os anzóis, assim como as narrativas sobre os graúdos tirados d’água, ganhou consistência alguns anos mais tarde, quando os pais passaram a cuidar de uma chácara servida de rios e açudes. A mudança de ares se deveu a um imbróglio no terreno em que a família vivia, narrado com pesar por José: “Nós compramos um terreno na Vila Pompéia, no Tatuquara, e construímos a casa. Só que era um terreno, assim, que não era legalizado. Diz o home que era, mas não era. Nós tivemos que arrumar o terreno, tirar árvore e cortar pinheiro pra poder construir a casa. Então construí a casa. Uma casona grande... olha, boa mesmo, a casa! Aí, por pressão do home do terreno, que não era um troço legalizado, nós tivemos que vender”. Apesar da tristeza do trabalho não recompensado e do patrimônio perdido, Dora lembra com alegria da mudança. A nova casa era o paraíso dos filhos pescadores. “Ali os meninos tinham liberdade de brincar, de correr, de fazer aquilo que eles queriam. Porque os meus piá sempre gostavam mais de lugar assim... que dava pra pescar, caçar”, recorda. Um pouco mais velho, já com a idade representada por dois dígitos, Gabriel se mudou com a família para outro dos bairros periféricos de Curitiba, a Caximba. Localizado no extremo Sul da cidade, o bairro faz fronteira com dois municípios da Região Metropolitana: a Oeste, demarca a divisão com Araucária; a Leste, estabelece o limite com Fazenda Rio Grande. Olhando o mapa da Capital de cima para baixo, é a última fatia da cidade. Mas o que caracteriza a Caximba não é exclusivamente sua posição geográfica. O bairro é conhecido por abrigar o lixão da cidade. É para lá que, desde 1989, são enviados os resíduos produzidos pelos moradores e empresas de Curitiba e outros 16 municípios. Era por aquelas redondezas também que Joaquim e Gabriel lançavam suas iscas à sorte. A tarefa de pescar na região, aliás, deve ser facilitada nos próximos anos, já que o Aterro Sanitário está em vias de ser desativado. A Prefeitura de Curitiba 16 Portas Fechadas trabalha na criação de um Consórcio Intermunicipal para administrar o lixo da região e aposentar o maltratado depósito. Para José e o resto da família, a Caximba ficou para trás há cerca de oito anos, quando a turma fez uma nova mudança e passou a morar em Fazenda Rio Grande. Pena que, desta vez, a troca de moradia não foi motivo de contentamento: a nova habitação escolhida ficava em uma das muitas ocupações irregulares que se distribuem pela Região Metropolitana e também pelos bairros mais pobres de Curitiba. “Aconteceu, né? Eu não quis mais ficar na Caximba e nós compramos uma casinha ali na invasão”, explica o pai. Nas ocupações, além da papelada que garanta a legalidade da propriedade, também faz falta uma boa infra-estrutura, como descreve José: “Era bom, só que era na beira das cavas, era um lugar úmido. Quando chovia bastante, enchia de rato, barata... ih, era danado! Só que nós não tinha outra alternativa, tinha que ficar ali”. Lá pelas tantas, quando Gabriel e o irmão cansavam de transitar pelas cavas, espécie de depressões formadas a partir da retirada de areia e, mais tarde, preenchidas pela água, resolviam pegar a BR. É que outra das atividades que os meninos apreciavam era pedalar rodovia afora: “Nós gostava de ir pra São Mateus de magrela. Meu irmão que inventou esta: foi uma vez com o meu vô e, pá, foi convidando meus tios, meu primo, meus camaradas... daí nós ia de magrela pra lá”. Prazerosa, é verdade, a aventura exigia disposição e cadência em quantidade suficiente para superar os cerca de 150 quilômetros que afastam Curitiba de São Mateus do Sul: “Nós saía daqui umas onze horas, meia-noite, porque a BR era sossegada. Passava por Lapa e chegava em São Mateus na tarde do outro dia. Tem que ir sem pressa, porque cansa”. A escolha do destino, aliás, deve-se ao fato de que, entre os pouco mais de 20 mil habitantes da cidade, estão os avós maternos de Gabriel. A cidade, inclusive, seria importante para Gabriel em outro momento de sua vida, um futuro ainda distante, mas que 17 Portas Fechadas começava a tomar forma a partir de um episódio dolorido de ser lembrado. … Aconteceu à noite, justamente as horas do dia que mais preocupavam José e Dora, especialmente depois da mudança da família para o loteamento irregular da Iguaçu I. “Quando nós viemos morar ali, os meninos começaram a se juntar com piazada, e foi onde eles começaram a fazer muitas coisas erradas. Mas a gente, tanto mãe como pai, nem sabia. A gente tava em casa e, quando via, eles já tinham aprontado”, testemunha a mãe. A confusão, naquela sexta-feira, fins de julho de 2006, era mais séria que o habitual. Mal o sol havia se posto, por volta das sete da noite, e Gabriel, como tradicionalmente fazia, tomara emprestado o Corcel II do pai para, na companhia de amigos e do irmão, trafegar à toa pela região. “Nós saía, pá, pra curtir na vila”, relembra. Ocorre que a gasolina terminara antes de o passeio ser concluído, e, para não frustrar a noitada recém-iniciada, a turma decidiu trocar de veículo e continuar o passeio no carro de um amigo. Além da mudança de equipamento, Gabriel e os amigos resolveram também alterar o trajeto do passeio, que foi estendido a uma vila vizinha, a Santarém, local pouco familiar à maioria dos meninos. Em meio às aceleradas e freadas pelas ruas quase desconhecidas, o motorista que conduzia a viagem sentiu abruptamente um tranco. Era a mão de um homem se chocando com o vidro de carro. Preocupado, ele engatou marcha-ré e voltou ao local do acidente, onde teve duas surpresas: constatou que nada de mais grave havia ocorrido, e foi convidado pelo rapaz acidentado a tomar uma cerveja numa lanchonete da região, a fim de deixar o leve contratempo resolvido por meio de uma confraternização. A estranheza da situação dividiu a turma, fazendo Gabriel hesitar: “Eu e meu primo não queríamos ir”. Pressionados pelos 18 Portas Fechadas amigos, que estavam a fim de aceitar a proposta, Gabriel e o primo foram voto vencido, e acompanharam o grupo ao estabelecimento sugerido, onde algumas cervejas os esperavam. Mal deu tempo para tomar os primeiros goles e a desconfiança de Gabriel se mostrou procedente: acompanhado de muitos amigos, inclusive a irmã, o rapaz responsável pelo convite entrou na lanchonete anunciando briga. E foi logo mostrando que estava disposto a uma das grandes: “Eles fecharam a lanchonete. Nós não tinha nem como sair. A hora que eu vi, assim, um maluco entrou com uma facona no bar. Aí começou aquela pancadaria”, narra Gabriel, ainda hoje incapaz de explicar os motivos exatos que desencadearam o conflito. Como estavam despreparados para o confronto e sem qualquer objeto que pudesse subsidiar uma defesa, a exemplo de um casal que tranqüilamente lanchava com a filha na mesa ao lado, a turma da Iguaçu I tratou de procurar com urgência as saídas do local. Gabriel conseguiu: “O cara veio pra cima de mim com a faca, eu cai no chão, joguei umas cadeiras e saí”. Com o irmão, aconteceu diferente: “Quando eu vi, meu irmão caiu no chão. Pensei: ‘Nossa Senhora, o que que aconteceu?!’. A hora que eu olhei, ele tava todo cheio de sangue”. Golpeado no pescoço, Joaquim foi prontamente recolhido pelos amigos, já distantes da confusão e próximos do carro, que, com alguns pneus furados, também trazia as marcas da briga. Tomando o rumo do hospital mais próximo, os colegas aceleravam para que o socorro ainda fosse possível, mas o tempo foi cruelmente curto: “Chegamos e ele já tava morto. O médico falou que entrou só uma pontinha da faca, mas deu hemorragia”. A notícia chegou aos pais instantes mais tarde, cerca de duas horas depois de o Corcel II deixar a garagem de casa, relatada pelo próprio Gabriel, testemunha de tudo. A par do desentendimento difícil de ser compreendido e mais ainda de ser justificado, José não teve alternativa que não lamentar a perda do filho, com precoces 21 anos: “Nós ia fazer o quê? Foi uma 19 Portas Fechadas fatalidade, porque você veja só: o rapaz não mexia com ninguém, não era de confusão, nem nada... até livrava os outros da confusão. Só que saiu com umas pessoas aí... e daí aconteceu isso”. A mãe, de temperamento mais forte, acrescentou os devidos tons de indignação ao luto da família: “Revolta eu sempre senti, porque até hoje não foi esclarecido o que aconteceu. Na realidade, eles nem iam praqueles lado, eles nem freqüentavam aquele bairro. Foram pra lá e, já na primeira vez, aconteceu isso. Então até hoje a gente tem essa revolta por não saber o porquê”. O lamento do pai e a revolta da mãe foram apenas as primeiras de uma série de reações emocionais decorrentes da perda do primogênito. Os abalos mais intensos foram sentidos por Dora, que, fortemente abatida, passou a fumar duas carteiras de cigarro por dia. Mais do que o vício do tabaco mostrando sua força, os cigarros incessantemente tragados eram um sintoma da depressão em que entrara. E, embora sobrassem pitadas, as conversas com a família e os cuidados com os demais filhos se tornaram artigos escassos na rotina de Dora. A ironia é que aquela não era a primeira vez que a mãe experimentava a dor de perder uma de suas crias. A outra aconteceu quando estava grávida do quinto filho, e também foi fruto de uma banalidade: “Eu resvalei, caí e perdi. Era um menino, que tava com quatro meses, e foi muito triste, porque é um pedaço da gente, e a gente queria tanto... o Gabriel já tava grande, e nós não tinha nenhum nenê. E quando eu perdi, já tinha ido no médico e começado o pré-natal, então fiquei chocada”, desgosta-se. Mas somente perdas não são capazes de formar uma família. Em meados de 1998, antes de entristecerem o semblante de Dora, os acasos da vida visitaram-na para dar contornos de alegria às suas expressões. Naquele momento, ela estendia os reduzidos metros da casa em que morava para abrigar Ivana, filha de uma de suas sobrinhas que fora posta na rua pela família depois de engravidar. Eis que, na iminência de dar à luz, a moça propôs a Dora a doação da menina que carregava no útero: “Eu não tenho condições. Não vou ficar com a menina pra andar sofrendo comigo 20 Portas Fechadas pela rua. Se você não quiser, vou abandonar na primeira porta que eu achar”, argumentou, em tom mais próximo da ameaça do que da oferta. Cautelosa no início, com receio precisar abandonar o emprego para dar conta dos afazeres maternos, Dora lançou-se às orações. Religiosa que é, ela costuma absorver das palavras bíblicas e dos cultos evangélicos que freqüenta a força necessária para se decidir em instantes delicados como esse. Depois das preces em número necessário para encher-se de certeza, finalmente se decidiu: “Quando eu voltei pro hospital e vi aquela criança, meu coração não suportou dizer não”. E foi assim que Carolina foi adotada e deixou a família maior, então com dois meninos e duas meninas. Alheios à boa lembrança, os tempos agora eram outros. Não bastasse ver o primeiro filho partir, Dora sentia que o segundo de seus meninos, inconformado com tudo que acontecera, também estava prestes a ir embora, tamanha era a revolta que o envolvia. … A mudança no comportamento de Gabriel foi prontamente notada por quem estava à sua volta. A mãe, sempre mais próxima, é testemunha fiel: “Quando aconteceu a tragédia da morte do irmão dele, parece que o Gabriel virou outro menino, já não era mais aquele. Ele se revoltou com a vida, sabe? Ficou agressivo, não gostava de parar em casa, quebrava as coisas”. A mesma percepção teve o pai, que reconhece, inclusive, a autoridade perdida: “Ih, rapaz, não tinha explicação. Nós não podia com ele”. Como conseqüência do novo jeito de encarar as coisas, Gabriel também trocou de hábitos, deixando de lado as saudáveis pescarias e pedaladas por aí. A nova regra consistia em gastar o tempo nas ruas e voltar para casa apenas nos intervalos que a nova rotina permitisse. Nas próprias palavras do rapaz, era mais ou menos o seguinte: “De dia, eu saia curtir com os pia, pá, andar, ir pras cavas. À noite, me reunia com a piazada pra tomar uns goles”. 21 Portas Fechadas As excessivas saídas, geralmente noturnas e, como detalha Gabriel, acompanhadas por bebidas, sacrificavam o sono dos pais, sabedores dos perigos oferecidos pela rua: “Às vezes, era duas ou três horas da manhã, e eu tava acordado esperando ele chegar. Eu só dormia quando ele chegava. Quando eu conseguia dormir um pouco, já tinha que levantar pra ir trabalhar”, conta o insone pai. Sob o olhar dos especialistas, o diagnóstico é o mesmo dos pais. Nas anotações que fez acerca do perfil emocional de Gabriel, durante as conversas no Cense Fazenda Rio Grande, Iracema logo percebeu quão relevante foi a perda do irmão no embrutecimento da personalidade do jovem: “Nele, tem um caso muito sério de violência, porque o que afetou muito ele foi a morte do irmão, que foi bem violenta. Ele se revoltou com isso e não soube lidar com isso, não deu conta disso tudo”, endossa a psicóloga. O momento mais delicado, contudo, Gabriel não relatou a Iracema. Coube à mãe revelar que, cerca de três meses depois da briga na Vila Santarém, numa das longas saídas pela madrugada, o filho tentou se matar. Dora tudo presenciou porque, atraída por palavras cujo timbre se assemelhava ao do filho, saiu de casa para ver quem era o rapaz que tanto barulho fazia: “Lá tava o Gabriel. Eram quatro horas da manhã. Ele gritava e chamava pelo irmão. Eu peguei ele pela mão e quando cheguei perto de casa, tava vindo uma carreta. Nisso ele me empurrou e quis se jogar embaixo da carreta. Eu pulei nele e nós dois caímos no barranco, e a carreta passou. Então eu pensava: se eu, que era mãe, não saísse atrás dele, já era pra ele ter morrido”. A interpretação da mãe sugere que a tentativa de suicídio, ainda que providencialmente evitada, era um claro sinal de que as coisas não iam bem, como num prenúncio de que mais problemas estavam a caminho. … E, de fato, estavam. Em novembro de 2006, pouco mais de um mês desde o susto vivido às margens da rodovia, Gabriel 22 Portas Fechadas tornaria mais grave os conflitos que mantinha com a Lei. Em vez de assaltos em busca de dinheiro, o jovem iria responder agora por homicídios. O plural, a rigor, é devidamente empregado, pois foram dois os delitos do tipo cometidos por aquele que, a partir de então, seria identificado pelos jornais somente pelas iniciais do nome. Separados por pouco mais de 30 dias, os delitos tinham em comum a maneira como foram praticados e os motivos pelos quais se constituíram. Com um revólver calibre 36, herança deixada pelo irmão, e em virtude de triviais desentendimentos pessoais, Gabriel vitimaria fatalmente dois jovens com idade e condições de vida semelhantes às suas. O primeiro crime foi desencadeado pelo sumiço de alguns bens materiais do apreço de Gabriel. “Eu e ele tinha umas treta já. Ele tinha roubado um tênis meu, tinha roubado um som também.” Irado com a situação e sob efeito do álcool, companhia constante naquela fase da juventude, o garoto decidiu interromper o descanso que levava em casa para tirar satisfação com o responsável pelos furtos, Marcelo Miranda de Lara, de 21 anos. “Eu levantei e... ah, sei lá, peguei a garrucha e coloquei uma bala. Naquelas horas, pelo que eu me lembro, eu não tava com o pensamento de matar ninguém. Daí eu desci pro bar e deu na pinha de querer ir atrás do cara.” De acordo com informações preliminares que levantara, o desafeto seria facilmente identificado: estava numa rua escura e trajava roupas brancas. Mesmo obtidos nas proximidades do bar, os dados sobre a futura vítima eram extremamente precisos, de forma que Gabriel não precisou sequer ver o rosto de Marcelo para resolver a encrenca ali mesmo: “Cheguei e ele tava lá. Daí, pá, sei lá o que que eu pensei. Ele estava de costas e eu dei um tiro na nuca, aí ele caiu. Mas eu nem sei o que tava pensando. Parece que dá um branco na frente”. Mesmo sem adotar estratégias para ocultar o delito recémcometido, Gabriel não foi preso pela polícia e tampouco 23 Portas Fechadas denunciado por eventuais testemunhas. Ficou solto, como se o par de tênis e o aparelho de som lhe tivessem sido devolvidos pacificamente por Marcelo. A vítima, aliás, era a principal responsável pela preservação da liberdade de Gabriel: “Eu acho que fiquei sossegado porque o cara me devia, era nóia e tinha muita gente querendo matar ele, porque ele roubava na Vila, dos vizinhos mesmos. Uma vez ele bateu na mulher, grávida... e a galera ficou meio de cara. Aí os caras nem falaram nada, ficaram quietos”, explica. O problema é que o amparo e a cumplicidade da vizinhança terminaram por aí. Na segunda vez em que levou um desentendimento às últimas conseqüências, Gabriel não foi protegido pela comunidade, e sentiu todo o rigor previsto pela Lei, que, depois de algumas horas na delegacia e mais uns tantos dias num centro de internação provisória, acomodou-lhe no Cense Fazenda Rio Grande, onde iria cumprir a medida de privação de liberdade que lhe cabia. Trata-se da sanção mais rigorosa estabelecida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. É definida pelo artigo 121 (por coincidência, o mesmo do Código Penal que delibera sobre o homicídio, delito de Gabriel) a partir de alguns preceitos, como o da excepcionalidade, assim definido: “Em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada”. O procurador Olympio de Sá Sotto Maior troca em miúdos: “A primeira análise que você tem que fazer é se ela [a medida de privação de liberdade] é necessária. Diante do princípio da excepcionalidade, só em determinadas práticas infracionais é possível aplicar a internação, só nas situações em que fique patente a absoluta necessidade da segregação”. Quando essa constatação não é feita, o jovem que infringe a Lei pode ser atendido pelo Estado em liberdade. Para isso, cumpre medidas mais brandas, como advertência, reparação do dano e prestação de serviços à comunidade. Não era o que se passava com Gabriel, cujo delito era excessivamente danoso para se encaixar nessas possibilidades. 24 Portas Fechadas A gravidade da nova infração já podia ser antevista no estado em que o rapaz se encontrava instantes antes de cometê-la: havia bebido e estava suficientemente irritado para carregar a garrucha calibre 36 e empunhá-la com valentia. “Nossa, aquele dia eu tava bêbado mesmo! Tinha brigado com a minha mina e tava muito loco”, assume, em referência aos constantes desentendimentos que tinha com a namorada, Suzana. A garota é, aliás, peça importante na compreensão dos motivos que levaram o namorado a reincidir. Seu irmão, Elias Diniz Fernandes, era desafeto da vítima, Diego Machado, com quem não vinha se entendendo nos últimos tempos. A briga, segundo contam, agravou-se a ponto de surgirem ameaças de morte. Havia ainda outra complicação. Diego era cria da Vila Pantanal, localidade que, num passado curto, alimentava violenta rivalidade com a vizinha Iguaçu I: “As nossas duas vilas já não eram muito certas. Elas não se davam muito: os piá da Pantanal não podiam subir pra minha vila, e a minha não podia ir pra deles”. As desavenças e provocações entre os jovens ficaram mais intensas em 2006, quando um projeto de habitação popular conduzido pelo governo estadual uniu as duas comunidades na recém-criada Vila Angico, localizada no bairro Santa Terezinha, em Fazenda Rio Grande. Foi nesse tenso contexto que, logo após sair de casa, Gabriel encontrou Diego e Elias discutindo calorosamente. Sobravam xingamentos e gestos enérgicos. O silêncio, pois, veio novamente de suas mãos, precedido pelo seco estrondo saído do revólver que segurava: “Eu fiquei olhando os dois conversando e pensei: ‘Ah, vou dar um susto neles’. Daí eu mirei e do jeito que eu levantei a arma, eu atirei. Pegou na testa, e ele caiu”. Apesar da narrativa segura de Gabriel, nem todos contam a história dessa forma. Divergências rondam as circunstâncias em que tudo aconteceu. A imprensa, por exemplo, alinhou-se à versão 25 Portas Fechadas da polícia, segundo a qual o cunhado dera uma ordem para que Gabriel fizesse o disparo – é com a reprodução do controverso diálogo, inclusive, que a reportagem de um dos mais populares jornais de Curitiba, a Tribuna do Paraná, começa a descrever o delito. Gabriel rebate a versão: “Ele não falou nada. Eu é que tava de gole e nem pensei”. Iracema, por sua vez, vale-se de uma terceira explicação, segundo a qual a motivação do crime estava além das brigas entre Elias e Diego e da rivalidade entre a Pantanal e Iguaçu I. Embasada nas íntimas conversas que teve com Gabriel, a psicóloga volta à tecla que tudo teve origem na morte do irmão. Era uma desforra. “Ele vingou: matou quem matou o irmão dele. E foi até meio chocante pra gente, sabe?”. Certa mesmo, só a data. Era fim de dezembro, e havia menos de 20 dias que Gabriel completara 17 anos. Àquela idade, Diego não chegaria: engrossou a estatística dos brasileiros mortos na juventude quando tinha 14 anos. Gabriel ainda teria mais aniversários pela frente, mas o próximo seria comemorado de uma maneira que ele nunca havia experimentado. … Comparado às celebrações que fazia quando estava em liberdade, o aniversário comemorado intramuros era significativamente diferente para Gabriel. Além das óbvias ausências dos amigos, familiares e presentes, a alteração mais representativa no protocolo de um faz-anos tradicional estava no bolo, cujas velas não podiam ser apagadas individualmente. A tarefa de somar sopros para vencer a chama cabia a todos os adolescentes internados no Cense que aniversariavam naquele mês. Era, portanto, um exercício coletivo, como quase todos que são oferecidos pelo Centro. É em grupo, por exemplo, que os jovens ampliam a bagagem escolar adquirida na rua. E não é questão de escolha ou gosto: todos precisam freqüentar as aulas, ministradas pela manhã, de 26 Portas Fechadas segunda a sexta, tal qual um colégio convencional. Básica também é a grade curricular, que inclui disciplinas como português, ciências, história e, claro, a mais temida pela gurizada, matemática. Sincero, Gabriel admite a dificuldade com os cálculos: “Peguei um curso pra fazer e já me embaçou tudo, principalmente na matemática”. O curso que tanta dificuldade lhe causava é uma das muitas atividades extracurriculares oferecidas pelos Centros de Socioeducação. A atenção está voltada às oficinas de profissionalização, que têm por objetivo capacitar o jovem para que ele, depois do período de internação, encontre vagas no mercado formal de trabalho e esteja habituado às rotinas laborais. Pedagogia pura. Quando esbarrou nos raciocínios numéricos, Gabriel se credenciava a um emprego de pintor de prédio, uma das oficinas mais procuradas e bem-sucedidas do Cense Fazenda Rio Grande. Quem conta, com orgulho, é a diretora do Centro, Margarete Rodrigues: “Pintura predial foi o curso que facilitou que a gente tenha três empregados trabalhando fora”. Juntas, as aulas regulares e as atividades profissionalizantes constituem o Programa de Educação nas Unidades Socioeducativas (Proeduse), desenvolvido em parceria entre a Secretaria Estadual da Educação (Seed), incumbida de formar o quadro de professores, e a Secretaria Estadual da Criança e da Juventude (Secj), responsável pela administração dos Censes. Apesar da disciplina exigida nas classes, há uma atividade intelectual que, no caso de muitos jovens, dispensa maiores estímulos: a leitura. Volta e meia com tempo disponível, sobretudo nos finais de semana, quando descansam os professores, os jovens do Centro fazem dos livros sua fonte de conhecimento. “Nós temos uma biblioteca aqui dentro e temos também um trabalho junto com a Biblioteca Pública [do Paraná]. Nós pegamos uma maleta, tipo dum baú, com livros pra adolescentes mesmo, a cada quatro meses. Então a gente traz e eles lêem aqueles livros. Devolvemos, 27 Portas Fechadas trocamos a mala... um projeto super legal. E vai desenvolvendo muito. Nós temos meninos aqui que chegam a ler dois, três livros por semana”, revela a diretora. Outro meio de comunicação bastante disputado é a tevê. Se for dia de futebol, então, o interesse é ainda maior. Os rapazes se reúnem na sala, onde fica o único aparelho acessível aos internos, e se põem a torcer – e não apenas para ver boas jogadas em campo, mas também para que a ordem de voltar para as celas chegue mais tarde que o previsto. “Quando tem jogo, a gente assiste até as cinco ou cinco e meia, porque nesse horário tem que entrar. Senão só escuta o barulho... Às vezes também os educadores deixam a televisão alta pra gente escutar.” Era assim que Gabriel acompanhava o perde e ganha dos dois verdes do coração: Coritiba e Palmeiras. Um pouco sem entusiasmo, é verdade, já que não é dos torcedores mais fanáticos. O que esperava com ansiedade mesmo, naqueles meses de internação, eram os passeios realizados fora do Cense. “O legal é quando você sai pra externa, vai passear em shopping, mas agora tá meio raro, porque um fugiu um piá.” A frase é quase autoexplicativa: infringir as regras do centro significa perder o direito de realizar as atividades com maior nível de liberdade e autonomia. A vantagem de se andar na linha é que o oposto também é verdadeiro: o bom comportamento é a chave que dá acesso às atividades mais prazerosas que do Cense. Em linhas grossas, é uma questão de confiança. Essa, Gabriel inspirava em abundância. Durante os quase doze meses em que ficou na unidade, em nenhum instante desrespeitou as regras da casa. “Sempre conviveu bem. Nunca tivemos problemas com o Gabriel, mesmo porque ele nunca levou medidas disciplinares, nada disso”, atesta Iracema. Dos três meses de convivência que teve com o menino, Margarete, que assumiu a diretoria da unidade em outubro de 2007, colheu a mesma impressão: “Não era um menino de se envolver muito com os outros, ficava mais sozinho. Era um menino que realmente tinha mais possibilidade de se adequar fora”. 28 Portas Fechadas Foi por isso que Gabriel teve saídas externas aos montes. Deixava o Cense, em média, uma vez por mês, conforme o calendário das atividades especiais. O passeio mais recente teria como destino o Jardim Botânico, na Capital, só que chuvas que caem com freqüência no verão curitibano mudaram a rota. Nada, entretanto, capaz de frustrar a turma: “Aí a gente foi passear no Shopping Curitiba. Ficamos lá a tarde inteira andando... curtimos”, rememora. Esse sistema que pune infrações e premia virtudes tem em jovens como Gabriel seus garotos-propaganda. Crêem os diretores dos Censes que, ao verem os colegas usufruindo de benefícios adquiridos na base da disciplina, os meninos mais resistentes à internação abafem os ímpetos de rebeldia. O momento mais propício para essa mudança de postura são as cerimônias de assinatura do Plano Personalizado de Atendimento (PPA). Tratase de um contrato simbólico firmado entre o Cense e o adolescente, com este se propondo publicamente a respeitar os diversos compromissos descritos pelo documento, como se dedicar aos estudos, cumprir as regras da internação e não se envolver em desentendimentos. Tudo feito na presença dos colegas de centro e também dos familiares, excepcionalmente convidados. Para finalizar conforme pede a tradição de todo festejo, uma mesa farta é servida, com salgadinhos, bolos e refrigerantes – praticamente artigos de luxo perto da trivialidade das refeições do dia-a-dia. Quem conhece garante que o mecanismo e seus instrumentos funcionam: “Aquele que tem mais conquista, tem privilégios. Por exemplo: os meninos que saem pra trabalhar comem em horário separado, pois tomam café bem mais cedo; eles tomam banho em horário diferente, no horário do retorno; eles vão passar o domingo com a família. Então são conquistas que os outros também querem ter. Eles vêem que têm perspectivas de crescer no processo de socioeducação”, explica Margarete. Outra etapa fundamental do trabalho com os jovens é a participação da família. Pais e irmãos têm direito a uma visita 29 Portas Fechadas semanal. O mesmo vale para eventuais namoradas ou mesmo esposas – são muitos os jovens internados já nas condições de marido e pai. Gabriel, que não se encaixava em nenhuma das duas, recebia as visitas mais tradicionais, feitas por José e Dora: “Tem visita sexta e domingo, mas depende de quando a família pode vir. Sempre vem meu pai e minha mãe. A mãe vem mais, nunca deixou de me visitar”. Com a namorada, os encontros muro adentro também aconteceram, mas apenas durante cinco meses. Foi quando Gabriel, desconfiado dos hábitos da companheira, que circulava livremente pela noite, achou por bem interromper as visitas. “Ela tava saindo aí, tomando gole. Aí eu falei que nem precisava ir. Falei que no dia em que eu saísse, nós conversava”, conta. … Além do papo com os jovens, os parentes que freqüentam os Censes também têm conversas regulares com a equipe que trabalha na unidade. A situação em que se encontra a família, capaz de ser diagnosticada nesses bate-papos, é uma das variáveis decisivas na análise que os profissionais da socioeducação fazem antes de pedir a desinternação do adolescente. Iracema, participante das mais ativas desse processo, resume os fatores que influenciam essa decisão, que, se aceita, significa a soltura do interno: “Não foge do bom comportamento, da questão escolar, se ele está progredindo, se ele teve mudanças comportamentais, psicológicas. E também a questão de fora: pra onde ele vai, o que ele vai fazer, pra onde ele vai ser encaminhado”. Na iminência de completar um ano de internação, o que corresponde à terça parte do período máximo estabelecido pelo ECA, de 36 meses, Gabriel respondia satisfatoriamente às duas exigências: tinha comportamento exemplar e a família se mostrava apta a recebê-lo novamente. Por isso, Iracema, no segundo dos relatórios semestrais sobre o garoto que encaminhou ao juiz responsável pelo caso, pediu a desinternação do jovem. Juntou à solicitação informações diversas sobre o histórico do menino na unidade, a fim de provar textualmente que ele estava pronto para 30 Portas Fechadas retornar à liberdade. Gabriel sabia que a saída estava próxima. E com os dias de dezembro ansiosos para encerrar aquele árduo ciclo de doze meses que passara internado, era inevitável planejar as festas de fim de ano em liberdade, ao lado da família. Era com ela também que o adolescente pretendia voltar a morar: “Se pá, vou morar um tempinho com a minha irmã, que mora mais perto do colégio”, idealizava. Mas essa era uma das poucas semelhanças entre a vida que levava antes da internação e os planos que fazia para depois que deixasse o Cense. No lugar da rotina caracterizada pelo tempo ocioso, projetava um dia-a-dia atarefado o suficiente para manterlhe distante das confusões de outrora. “Se eu sair antes de janeiro, quero ver pra trabalhar de manhã, fazer curso à tarde e estudar à noite.” O tempo ocupado indicava ainda que estava disposto a uma guinada radical na escolha dos amigos: “Eu quero curtir amizade com três, que são gente boa e sossegados. O resto não quero nem ver”. Novos delitos, então, descartados de imediato: “Eu tô vendo o veneno aí. É embaçado ficar preso, sem ver a liberdade, sem sair. Eu quero parar como isso”. A vontade de mudança em Gabriel era tanta que, na última visita que recebeu da mãe, o jovem foi às lagrimas para tornar mais comprometidas as promessas de se afastar dos litígios com a Lei. “Chorando, ele me disse: ‘Mãe, eu tô vendo a situação de vocês: o pai tá trabalhando até doente. Quando eu sair de lá, eu prometo, mãe: eu vou trabalhar e nunca mais eu vou fazer vocês sofrerem”, conta Dora. Margarete e Iracema, embora felizes por ver o adolescente prestes a tomar o rumo de casa, criavam expectativas menos audaciosas. Não é que não confiassem na capacidade de mudança do jovem; é que a experiência com a socioeducação lhes ensinou que a saída é o momento mais delicado. “O menino pode ter a melhor das intenções, a família até ter boa vontade, mas a sobrevivência deles é muito difícil. Muito difícil. A gente vai se 31 Portas Fechadas convencendo que o menino só tem chance se ele sair daqui com alguma referência segura, principalmente pelo trabalho. Porque senão, sucumbe! E hoje em dia o tráfico está pagando muito bem. A gente tem um menino aqui que ele trabalhava no tráfico... o menino ganha R$ 400 por semana. Qual é a empresa que pega como funcionário um menino que cumpriu uma medida socioeducativa, com cara de pobre, e vai pagar mil reais, que é o que tráfico tá pagando?”, questiona. A dúvida também recai sobre Iracema, que faz coro à preocupação: “O problema é como e pra onde ele vai. Geralmente, ele volta pra família de origem, pro local onde ele cometeu o delito, onde ele teve contato com as drogas. Geralmente é pra esse lugar que ele retorna, e aí que tá o problema”. Era em meio a essas incertezas e ameaças que Gabriel aguardava a carta de liberação que garantiria sua saída. O que aconteceria depois que ela chegasse eram apenas projeções. Se seria capaz de colocar em prática todos os planos que tracejava, ou se provaria justificadas as preocupações que tanto angustiavam Margarete e Iracema, era cedo pra dizer. Mas o tempo passava, e a cada volta que o ponteiro completava no relógio a ansiedade pela saída se quedava maior. 32 Portas Fechadas 33 Portas Fechadas 34 Portas Fechadas 1. ENTRE CELAS E SALAS I. GABRIEL II. AMANDA III. ARTHUR Em meio aos diversos estudantes que toda manhã ocupavam as salas de aula do Colégio Estadual Guido Straube, em Curitiba, Amanda passava praticamente despercebida. Aos olhos de quase todos, parecia tão somente mais uma das adolescentes que, naquele ano de 2007, cursava a primeira série do Ensino Médio a fim de se preparar para futuras provas de vestibular. E não era mesmo razoável que houvesse qualquer desconfiança: a exemplo de todos os colegas, a garota freqüentava as aulas regularmente e cumpria com boa parte de suas obrigações estudantis, usando, inclusive, o uniforme alvinegro exigido pela instituição. O segredo que escondia só não era sigiloso por absoluto porque, passados os primeiros dias na escola, a jovem tomou a liberdade de compartilhar a confidência com as duas colegas que mais confiança lhe inspiravam, Kátia e Danusa. “Eu contei e falei que não queria que ninguém soubesse”, relembra. As amigas se mostraram fiéis e, respeitando o pedido, em nenhuma conversa deixaram escapar a informação de que Amanda era uma das 27 adolescentes internadas no Centro de Socioeducação (Cense) Joana Miguel Richa, situado a menos de três quarteirões do colégio e único abrigo feminino do gênero no 35 Portas Fechadas Paraná. O receio de que a notícia chegasse a ouvidos alheios se justificava pelo perfil dos jovens que dividiam a sala com Amanda: eram estudantes de classe média – o que ela via com muita suspeita: “Lá era um colégio de boy, não tem aluno, assim, tão pobrezinho... é mais ou menos classe média. E daí sempre ia ter um ou outro que, quando sumisse alguma coisa de dentro da sala, ia falar: ‘Ah, foi a ladroninha, porque ela já tá presa mesmo’”, revela. O silêncio exigido por Amanda também se estendia aos professores, que, embora incumbidos da tarefa de difundir conhecimentos capazes de formar cidadãos, não raras vezes lecionavam apoiados no senso comum: “Às vezes, a gente tava debatendo criminalidade na sala, e eles falavam: ‘É, tem que ir preso mesmo e não sei o quê!’. E eu ficava só escutando, com vontade falar: ‘Calem a boca! Vocês nem sabem o que estão falando’”, protesta. … O temor de que fosse injustamente acusada de furto tinha fundamento. Foi por este delito que, cerca de quatro meses antes de chegar a Curitiba, Amanda teve sua liberdade interrompida. A ação policial que resultou na prisão aconteceu às portas de casa, em Cascavel, no Oeste do Estado, e a certeza de que passaria os meses seguintes detida veio na fala de um dos soldados envolvidos na operação. Ao revistar a gola da blusa que a garota usava, o guarda anunciou: “É ela mesma. Pode revirar a casa”. O que permitiu a identificação imediata foram as câmeras de segurança da loja que a jovem acabara de assaltar. As lentes flagraram com precisão o anjo que ela traz no pescoço. E se não pôde esconder a tatuagem das autoridades, pelo menos teve tempo de ocultar os artigos que furtara. Eram 40 celulares de diferentes marcas e modelos, que até então aguardavam compradores na revenda que a operadora TIM 36 Portas Fechadas mantém no calçadão de Cascavel. Das vitrines, os equipamentos foram parar entre os moletons que Amanda trajava, tática escolhida para abrigar os telefones depois do furto. Cautelosa, ela imaginava que a polícia em breve poderia ser informada do ocorrido, já que eram muitas as potenciais testemunhas que circulavam pelas ruas centrais da cidade naquela manhã de agosto: “Era umas dez horas e tinha um monte de gente indo trabalhar. Tava bem cheio o calçadão”, recorda. Diante do intenso movimento, a ação, realizada na companhia de dois amigos, precisava ser rápida. E foi, como sinteticamente conta a moça: “Entramos e demos voz de assalto. Sacamos a arma, rendemos as vítimas, catamos os celulares e saímos fora”. Em posse dos bens que agora lhes pertenciam, os jovens deixaram a tenda a passos velozes para, no carro que ficara estacionado nas proximidades da loja, saíram em disparada. A rapidez da fuga, entretanto, não impediu que pedestres anotassem a placa do veículo e repassassem a informação às autoridades. O primeiro jovem a ser capturado, em conseqüência, foi o motorista do carro, Douglas. Entre pôr algemas no rapaz e localizar os demais envolvidos no assalto, a PM não precisou de nada além de alguns murros e pontapés: “Quando ele chegou em casa, a polícia, que tinha pegado a placa, tava esperando ele. Puxou o endereço, né? Aí esperou ele chegar, e começou a bater. Ele não agüentou a pancada e levou a polícia lá em casa”, narra Amanda, recolhida logo em seguida, graças ao depoimento do colega. A truculência empregada na detenção de Douglas, aliás, foi repetida com a garota: “O policial chegou já com pistola apontada pra minha cara, falando que não era pra mim me mexer senão ia sentar a bala ne mim”, acrescenta. O último incluído na trama, Pedrinho, com quem Amanda esporadicamente trocava alguns beijos, também não tardou em ser encontrado. Foi apanhado imediatamente após a ficante, e colocou fim à primeira etapa da missão policial. Todos os acusados 37 Portas Fechadas estavam presos. Cabia às autoridades, então, reaver os bens surrupiados, cujo desfalque totalizava dez mil reais. Parte do prejuízo, quatro celulares, já havia sido recomposta: os equipamentos foram encontrados sob o tapete do carro, onde entraram involuntariamente devido à grande velocidade empregada pelos jovens na fuga. E para que fosse possível resgatar os aparelhos restantes, a polícia novamente agiu à sua maneira. “Eles queriam saber dos outros 36. Falei que não sabia. Apanhei um monte... fiquei o dia inteiro apanhando, mas não entreguei nada”, relembra Amanda, com a voz temperada por certo tom de valentia. Além do fracassado interrogatório imposto à jovem, os peêmes também procuraram pelos celulares na residência da moça. Nada encontraram, como não podia deixar de ser: os eletrônicos estavam enterrados. O serviço foi feito por Amanda, nos arredores de casa, instantes antes da chegada dos guardas: “Foi questão de minuto mesmo. Eu peguei uma sacola, fui pra debaixo da minha casa, enterrei e já saí. Quando eu entrei, eu já escuto barulho de carro... tava rodeado de polícia!”. O plano era manter os celulares escondidos até que as coisas se acalmassem, para então vendê-los. A princípio, o dinheiro seria empregado em festas, como conta a garota: “Foi por bobeira. No momento eu não tinha dinheiro e queria sair, curtir. Então precisava de dinheiro e fui assaltar”. Mas a rapidez da polícia deu novo destino aos recursos. E já que ficaria impedida de usá-los, Amanda combinou com o irmão mais novo, Gilberto, que os aparelhos deveriam ser desenterrados e negociados, com o montante obtido na venda sendo usado para auxiliar nas contas da casa. Como não estenderam as buscas a ponto de empunharem pás e enxadas, os policiais deixaram a casa da menina de mãos abanando, e permitiram que o plano pudesse ser executado. Era o único motivo que os adolescentes tinham a comemorar. No mais, o revés era intenso: em troca de alguns telefones, perderam a liberdade. 38 Portas Fechadas ¼ Durante 27 dias, o trio responsável pelo saque ficou separado apenas por algumas portas. Estavam todos no Cense Cascavel I, uma das três unidades paranaenses destinadas a receber apenas adolescentes provisoriamente internados; ou seja, no aguardo da sentença judicial que estabelece a medida socioeducativa que devem cumprir. As outras duas casas do tipo ficam em Curitiba e Londrina. É nesses locais que as moças e rapazes em conflito com a Lei começam a se habituar à vida cercada por muros a grades. Os centros de internação provisória são bastante parecidos com as unidades de reclusão definitiva, inclusive na rotina que oferecem aos internos. As aulas que integram o Programa de Educação nas Unidades Socioeducativas (Proeduse), por exemplo, começam a ser ministradas ali mesmo. Para Amanda e Douglas, a experiência era bastante válida, pois as sentenças de ambos estabeleciam que a medida a ser cumprida era a privação de liberdade. A garota, com 17 anos, foi encaminhada ao Cense Joana Miguel Richa, voltado à internação definitiva, assim como outros seis no Paraná*. O rapaz, já com 18 completos, teve como destino o Centro de Detenção e Ressocialização (CDR) de Cascavel. Pedrinho, por sua vez, tomou outro rumo. O juiz encarregado de analisar o caso concluiu que os vinte e tantos dias de internação provisória lhe foram suficientes. Com isso, diferentemente dos companheiros de delito, o jovem estava apto a voltar para casa. A decisão, ao contrário do que possa indicar, não revoltou Amanda, que sabia exatamente por que seu julgamento teve outro desfecho: “Ele estudava, e eu tinha desistido logo no começo do ano. Ele trabalhava na Tuicial, uma gráfica de Cascavel, * Além dos três Centros de Socioeducação (Censes) voltados a jovens em internação provisória e dos seis destinados a adolescentes em internação definitiva, o Paraná dispõe ainda de nove Censes mistos, que oferecem ambos os serviços. Quatro unidades dessas unidades possuem também instalações anexas que atendem a jovens com medida socioeducativa de semi-liberdade. 39 Portas Fechadas e eu não trabalhava. Ele nunca teve outro B.O., e eu, uns três meses, antes tinha caído por assalto junto com o irmão”. O último item, a moça faz questão de explicar, não é o que parece. Tratou-se de uma tentativa frustrada de responder por um delito cometido pelo irmão Fábio. Sensível à situação do rapaz, que é mais novo e tivera desentendimentos anteriores com a Lei, a jovem buscou mentir para livrá-lo da internação. “Era uns assalto que teve lá e ele foi reconhecido. E eu tentei segurar o B.O... sei lá, tentei demonstrar ser irmã dele mesmo. Mas não deu. Eles não acreditaram porque a vítima reconheceu ele”, conta. De qualquer forma, a passagem ficou registrada na décima-quinta delegacia da cidade, e, mesmo indevidamente, já fazia parte de sua ficha. Havia ainda outros dois argumentos que depunham contra a jovem: era ela a responsável por uma das armas e pelo planejamento do delito. O revólver, calibre trinta-e-oito, havia sido comprado meses antes, por pouco mais de 450 reais, numa favela da cidade. Já a arquitetura do assalto pegara de surpresa até mesmos os companheiros: “É meio difícil uma menina, no meio de três piá, ter a idéia... mas a idéia foi minha mesmo. Eu peguei e falei: ‘Vâmo ganhar alguma coisa’. E eles, tipo, duvidaram de mim, falaram que eu não ia ter coragem e não sei o quê. Eu falei: ‘Demorô... vâmo ganha e boa’”, assume. Amanda teve coragem, e foi assim, ainda bastante destemida, que chegou ao Cense Joana Richa, em meados outubro. Bastaram alguns dias de internação e a novata da casa já manifestou sua revolta. Agrediu uma adolescente internada sob acusação de estupro, infração que causa repugnância à maior parte das jovens. “Ah, é embaçado. Tem um monte de mãe com filho aqui. Por mais que não se tente julgar os outros, é embaçado você olhar e começar a pensar: ‘Imagine se ela fizesse isso com o meu filho ou com o meu irmãozinho’. Ixi... daí o sangue ferve”. O passo seguinte à repulsa, pois, é a retaliação, e foi o que Amanda fez: acusando a mal-quista jovem de levar informações confidenciais das internas à direção do Cense, decidiu, em nome 40 Portas Fechadas das colegas, tirar satisfação. “Se pegamo no soco mesmo. Em mim, não deu nada. Mas ela ficou com hematoma. Quase foi prestar B.O. contra mim”, detalha. A rebeldia da garota é analisada com cautela pela psicóloga Cleusa Roderjan Benatto, integrante da equipe técnica do Cense e responsável, ao lado da assistente técnica Tânia Mara Bruel, pelo atendimento à Amanda. Na interpretação de Cleusa, o comportamento hostil da adolescente reflete unicamente os medos típicos de jovens recém-chegadas ao Centro. “Ela, quando chegou, tomou posição. Com ela era assim: ‘Eu dou porrada mesmo e comigo não tem’. É é até uma questão de defesa: ‘Estou chegando, não sei que lugar é esse e está se armando aqui uma confusão. Então eu vou tomar o lado das mais fortes’”, pondera. A pedagoga e diretora da unidade, Mariselni Vital Piva, acrescenta que, não obstante as jovens tenham ido às vias de fato, as demonstrações de força das internas geralmente são apenas verbais, ao contrário do que ocorre com freqüência em Centros masculinos. “O que difere a menina do menino é a própria questão da mulher, que usa mais a fala, enquanto o homem usa mais a agressividade, a força física. Então a menina é mais desrespeitosa: ela destrata, xinga... aquilo que ela não usa efetivamente com a força, usa através da fala”. A compreensão das motivações que desencadearam a briga, todavia, não impediu a aplicação de sanções disciplinares a Amanda. A determinação parte do Caderno do Iasp número quatro, “Rotinas de Segurança”, que classifica as faltas cometidas pelos adolescentes em leves, médias e graves, com penas específicas para cada situação. No caso de Amanda, as agressões trocadas com a colega de internação se encaixavam no último e mais intenso caso, conforme prevê o item F: “Agredir fisicamente os demais internos, funcionários ou autoridades”. É regra também que a penalidade imposta ao interno acompanhe a seriedade da infração cometida. Como a transgressão de Amanda era aguda, a punição também precisava ser: dez dias de afastamento do convívio com as demais adolescentes e impedimento de participar de atividades recreativas. 41 Portas Fechadas O caderno demarca ainda que a responsável pela aplicação das sanções é a diretora da unidade. Responsável pela tarefa no Joana Richa, Mariselni mostra firmeza no cumprimento da delicada atribuição: “A instituição trabalha com essa questão de norma muito claramente. No caso daquela menina que mostra que não está tendo condições de convivência com as outras, nós a retiramos do convívio. Ela fica no quarto e o material pedagógico de escolarização é levado para lá até que ela mostre condição de retornar ao grupo”. … Amanda foi rápida em apresentar-se pronta a deixar o isolamento. Passados os dias de contenção e transcorridas as primeiras conversas com as psicólogas do Centro, a garota recuou na conduta agressiva de outrora. “Ela viu que, se ficasse assim, iria continuar a ter mais medidas disciplinares, e que isso, não traria a vida que ela queria de agora em diante. Então, rapidamente, ela começou a tomar um papel até de conciliadora dentro dessas posições, e virou de lado; quer dizer, começou a entender e até a ajudar as outras”, explica Cleusa. Desse momento em diante, a cascavelense começava a viver um novo ciclo em sua internação: a conquista de benefícios. Tal qual ocorre nos centros masculinos, o abrigo feminino também atende às adolescentes amparado em um sistema de concessão gradual de direitos. A prerrogativa para conquistá-los, claro, é o bom comportamento. Exatamente o caminho que Amanda se mostrava disposta a percorrer. A primeira meta que atrai significativamente a maioria das internas é o direito a assistir televisão antes de dormir, cuja concessão é parcelada. Para poder passar 50% das noites da semana entretida entre os telejornais e novelas do horário nobre, a jovem precisa permanecer trinta dias afastada de encrencas. Caso queira tornar a atividade um hábito diário, o período de sossego precisa ser dobrado – dois meses sem penalidades e pronto: a tevê já é uma companheira de todas as noites. 42 Portas Fechadas Outro sedutor objetivo capaz de mover as garotas para um convívio pacífico são as saídas externas, passeios feitos regularmente para pontos distintos da cidade e cercanias, conforme o interesse das jovens. Shoppings e praias geralmente figuram entre as rotas mais solicitadas. Amanda já desfrutava de todos esses benefícios quando alcançou o bem mais significativo de sua internação. Além de momentos de prazer e distração, comuns às demais recompensas, esta atividade permitiria também que ela avançasse em sua escolarização. Única das 27 adolescentes do Cense a possuir diploma de Ensino Fundamental, a garota conquistara o direito a estudar em um colégio público regular, na companhia de alunos com a liberdade em pleno vigor. A decisão da diretoria era arriscada: como assistiria às aulas dispensada da companhia de funcionários do Centro, a jovem poderia inventar de fugir a qualquer momento. “O educador me levava no colégio, me deixava no portão e daí ia me buscar na saída. Se eu quisesse fugir, era mamão mesmo”, reconhece a estudante, que teve oportunidades aos montes para tal, pois freqüentou a escola durante quatro meses. Além de uma eventual escapada, a equipe técnica do Cense se preocupava também com a receptividade dos demais alunos. Como reagiriam ao saber que tinham entre os colegas uma adolescente privada de liberdade? O problema começou a ser solucionado a partir de outra pergunta, formulada em conjunto por Amanda e Cleusa: “E aí, será que a gente mente ou será que não?”, puseram-se a conjecturar. Resolveram-se pelo meio termo: iriam mentir sim, porém baseadas em informações verdadeiras. Amanda não contaria que estava cumprindo medida socioeducativa, mas também não ousaria inventar que era uma curitibana tradicional. A lábia que passaria nos colegas consistia na idéia de que morava na Capital junto de uma tia, funcionária do Cense. Era por isso que, todos os dias, ela saía da aula e se despedia das amigas já tomando o rumo da 43 Portas Fechadas unidade. Quanto à realização de trabalhos e demais atividades extrasala também havia solução traçada, como relata a estudante: “Os educadores me ajudavam. Eu podia usar o computador, que eles passavam o trabalho pro disquete e imprimiam pra mim. Quando eu precisava de ajuda, eles corriam atrás de livro e de pesquisa na internet, pra eu não ter que ficar dependendo muito dos outros”. Mesmo assim, as propostas para tardes de estudo na casa de amigas chegavam em número razoável. Amanda sempre as recusava, alegando que a tal tia era por demais rígida e não lhe permitia participar de atividades como essa. Foi quando a estudante se deu conta de que a história que inventara com Cleusa realmente havia colado. Contrariada com as sucessivas negativas aos convites, uma das colegas de Amanda protestou: “Nossa, essa sua tia é braba mesmo!”. Essas e outras passagens Amanda não precisava guardar para si ou compartilhar por meio de conversas triviais; podia transformar em música. Bastava pedir ajuda à curitibana Inês e à também cascavelense Ana que os versos logo saiam. As três formavam o grupo de rap Unidas MC’s, sempre a rimar sobre as particularidades do dia-a-dia afastado da liberdade. “A gente tentava mostrar um pouco da realidade do que a gente sabe”, resume Amanda. A inspiração também era capaz de vir de fora dos muros, desde que mantivesse em pauta a violência juvenil: “A Inês teve uma amiga que se envolveu no mundo do crime. Foi presa, saiu, acabou se envolvendo de novo, e morreu pela polícia. Daí nós escrevemos a história dela”, exemplifica. As cantorias eram apreciadas sobretudo pelas demais internas, pois raras foram as vezes em que a tríade pôde mostrar as rimas aos familiares. Aldaci, mãe de Amanda, esteve no Cense em apenas duas ocasiões. A escassez de visitas se deve em geral às dificuldades que os entes de jovens do interior têm para se deslocar a Curitiba, dado que os custos com transporte e hospedagem são um obstáculo à maioria. Era o caso de Aldaci. Na ponta do lápis, 44 Portas Fechadas uma viagem para a capital não sairia por menos de 170 reais, contabilizados apenas os gastos com passagem. Um acompanhante pra deixar a viagem menos tediosa e os passivos já beliscariam 350 reais. Para amenizar o problema e impedir que as despesas afastem pais e filhos, o Estado financia uma visita por mês a cada família. A medida é vital para assegurar que os parentes possam se engajar e contribuir com o tratamento do jovem, como destaca Mariselni: “Nós buscamos que essa família esteja o maior tempo possível na instituição visitando a filha, porque nós temos como objetivo também restabelecer laços familiares. Não adianta você fazer qualquer trabalho aqui se, ao retornar, essa adolescente não ter fortalecidos os laços com a família”. O pouco uso que fez dos custeios do governo não significava que Aldaci não compreendesse essa filosofia. Ela sabia muito bem a importância de suas visitas. Acontece que não era somente o Cense Joana Miguel Richa que lhe exigia atenção; a mãe precisava também freqüentar outra unidade, esta masculina e mais próxima de casa, onde Fábio também estava internado. … O envolvimento do garoto com a criminalidade, se comparado à situação de Amanda, era mais antigo e preocupante. Começou aos treze anos, e desde então não deixou de acompanhálo. A relação de delitos acumulada é tamanha que chega a impressionar até mesmo a irmã, calejada no assunto: “Ele tem um monte de B.O.: 121, 155, 157... é feinha a ficha”, conta, em alusão a alguns dos artigos do Código Penal pelos quais o rapaz já respondeu: homicídio, furto e roubo, respectivamente. A bola da vez era o último da lista. Flagrado em um assalto à Central de Abastecimento do Paraná (Ceasa/PR) do município, Fábio foi acomodado no Cense Cascavel II, destinado à internação definitiva e para onde Aldaci precisava se deslocar a fim de ver o filho. 45 Portas Fechadas A unidade não ficava exatamente nos arredores de casa, mas era melhor percorrer alguns bairros da cidade do que se deslocar até Curitiba, onde Amanda estava naquele momento. É na capital também que se situa o primeiro dos Centros de Socioeducação freqüentados por Fábio, o São Francisco, maior unidade do Paraná, com capacidade para receber 130 garotos. O filho de Aldaci passou a estar entre eles em 2006, depois de ser detido por roubo e desmanche de carros. Logo que o rapaz encerrou a internação longe de casa, a família achou por bem deixar um advogado de sobreaviso, pois eram recorrentes os litígios de Fábio com a Lei. E os serviços do doutor logo se mostraram necessários. Em troca de mil reais, o especialista foi encarregado de defender o garoto de uma nova acusação, desta vez mais grave: homicídio. Como boa parte dos confrontos fatais entre jovens, a briga que resultou no delito tinha como motivação discórdias anteriores. A confusão preliminar aconteceu com um amigo de Fábio, baleado depois de uma tentativa de assassinato. O disparo não chegou a ser letal, mas deixou seqüelas graves no rapaz, situação que inclinou Fábio à vingança. “O braço dele começou a secar, e meu irmão se doeu de ver aquilo. Falou: ‘Ô, loco! Olha o tipo do meu camarada, tá com o braço secando por causa daquele cara’. Então meu irmão chegou e matou ele”, relata Amanda. Do escritório em que trabalhava, o advogado mostrou competência, e convenceu o juiz de que não era preciso internar Fábio novamente. Embora o futuro lhe reservasse outras medidas socioeducativas, como a que cumpria agora no Cense Cascavel II, o garoto teve, naquele instante, a liberdade assegurada. … Mesmo antes de enveredar por tais caminhos, Fábio e Amanda já eram familiarizados com o desrespeito às Leis. O exemplo vinha do pai, Álvaro, que desde a mocidade tinha o hábito de usar drogas. O desenvolvimento do vício, inclusive, foi acompanhado pela esposa, então na condição de namorada: “Ele 46 Portas Fechadas falava que maconha não dava nada, que era a mesma coisa que cigarro, que era uma coisa normal, que todo mundo fuma e não sei o quê”. O casamento aconteceu, os primeiros filhos nasceram e a intensidade dos entorpecentes usados por Álvaro ficou maior. Das baforadas iniciais, o homem passou a tragar substâncias mais pesadas, como o crack. A droga era usada principalmente nas viagens que fazia, já que seu ofício era circular por diversos cantos do país vendendo livros didáticos infantis. O quê, para Aldaci, não deixa de ser uma ironia: “Ele vendia material sobre drogas e depois usava drogas. Imagina...”. Os efeitos do vício não ficaram restritos à saúde do vendedor, mas se fizeram sentir em toda a família. Em casa, Álvaro se quedava cada vez mais agressivo, canalizando a violência no trato dispensado à esposa e aos três filhos. Teve surra suficientemente bruta para deixar marcas de barra de ferro nas costas dos jovens. Com Fábio, em especial, o desgosto do pai parecia ainda maior, tal como conta pesarosamente a mãe: “O pai sempre diminuía ele. Era muito apegado à Amanda, a mais velha, e ao Gilberto, o menor. Mas com o Fábio, ele sempre fazia cobrança, reclamava de tudo que o piá fazia. Teve um dia que quebrou uma vassoura na perna do Fábio porque ele tava pisando naquelas gramas que tem rosetinha, e achou que o piá tava rebolando”. A filha entendia exatamente o que se passava, pois algum tempo antes tivera oportunidade de conhecer a fundo a complicada personalidade do pai. Os dois deixaram Cascavel para morar em Rondonópolis, cidade mato-grossense bastante conhecida por Álvaro, que costumava distribuir seus livros didáticos por aquelas bandas. E era justamente na companhia de materiais escolares que Amanda passava a maior parte do tempo. Com poucos amigos na nova cidade, a garota não fazia muita coisa além de rabiscar seus cadernos – dedicação que só lhe valeu o diploma de conclusão da oitava série, pois bastou um ano no Centro-Oeste e o pai decidiu que era hora de voltar ao Paraná. 47 Portas Fechadas O retorno da dupla resgatou também os velhos conflitos. O pai seguia usando drogas e distribuindo bordoadas a troco de nada. Só que agora as forças da casa já tinham certo equilíbrio. Fábio havia comemorado mais um aniversário e exibia um porte físico respeitável, o que lhe permitia não mais se encolher diante dos abusos do pai. Era briga atrás de briga. “Os dois iam acabar se matando. Meu irmão não baixava minha cabeça pra ele, nem meu pai baixava a cabeça pro meu irmão. Sei que tava uma guerra, um inferno”, constata Amanda. Parecia não haver outra solução plausível que não a desintegração da família. Separar-se em definitivo do marido, além do mais, era um plano que Aldaci tracejava em silêncio há anos. “Eu nunca fui muito de brigar. Eu era meio quietinha, assim, sabe? E ele chegava bêbado, incomodando... eu deveria ter sido de brigar, porque daí não ia ter vivido com ele nem dois anos. Já tinha largado logo!”. A oportunidade estava novamente posta. Mas para que fosse possível aproveitá-la, a mãe precisava somar sua revolta à dos filhos. Amanda e Fábio, como que entendendo o tácito chamado, trataram de fazer valer a vontade da genitora, e colocaram o pai para fora de casa. Com uma providencial ajuda da vizinhança, é verdade: “O Fábio deu um vale-transporte pra ele e falou que se ele voltasse, a piazada ia erguer ele no cacete. Ele se juntou com uns dez piás pra erguer o pai no cacete se ele tentasse voltar pra cá”, lembra Aldaci. Temendo a resistência que agora era coletiva, Álvaro não confiou retornar. Permaneceu afastado e durante muito tempo ficou sem informações detalhadas da família. Não sabia como viviam os filhos e o que fazia a ex-mulher, que a esta altura já levava uma vida bem diferente daquela que haviam compartilhado por mais de 15 anos. … Quando partiu, o pai levou também parte importante do 48 Portas Fechadas orçamento de casa. O sustento passou a ser responsabilidade exclusiva de Aldaci, que ganhava a vida como babá e, em datas festivas e finais de semana, livrava mais algum montando buquês e arranjos na floricultura de um amigo de infância. Só que a coisa continuava apertada. O jeito então foi voltar aos estudos. Assim como Amanda antes da internação, a mãe tinha freqüentado a escola só até a oitava série. Era pouco para pleitear um emprego bem remunerado, capaz de dar conta das necessidades dos três filhos. Foi quando se matriculou em um curso supletivo que em pouco tempo lhe garantiu também o diploma do Ensino Médio. Agora o currículo era satisfatório. Faltava apenas surgirem as oportunidades. Não demorou muito, meados de 2007, e apareceu uma das boas: concurso público municipal para agente de saúde, com 150 vagas. Aldaci garantiu a sua, e dali em diante dispensou definitivamente qualquer ajuda para arcar com as despesas da casa. Foi a derradeira independência do ex-marido: “Se for pra ele mandar cem reais por mês e vir aqui incomodar, é melhor que não dê nada”, exclama. A concentração das funções até então divididas com pai dá o ensejo necessário para Aldaci abordar a bem humorada e reveladora ambigüidade que envolve seu nome. “Aldaci é um nome masculino, daí os vizinhos fazem muita confusão: pensam que eu sou o homem da casa. Se bem que eu sou mesmo... tenho que providenciar tudo aqui. Acho que meu pai escolheu esse nome pra mim não foi à toa”, diz, com os lábios ensaiando uma gargalhada. Em tom mais sério, Amanda também reconhece o empenho da mãe: “Eu falo que ela é bem uma guerreira mesmo, porque meu pai sumiu e ela faz o papel dos dois: pai e mãe”. Ademais do nome, outra herança deixada pelo pai era especial neste momento para Aldaci. Trata-se da casa onde mora, a mesma em que passou um bocado da infância. A decisão de ali 49 Portas Fechadas abrigar os próprios filhos surgiu em 2003, depois de uma série de mudanças feitas pela família, que durante muito tempo perambulou entre moradias próprias, alugadas e mesmo emprestadas. “Esta casa ia ficar pra um irmão, que era solteiro e faleceu. Aí minha mãe deu pra mim”, esclarece Aldaci. Com dois quartos, cozinha e sala pequenas, e quase sempre bem arrumada, a residência fica em uma das ruas não asfaltadas do bairro Cataratas, na face Leste da cidade. A falta de intraestrutura, diga-se, é uma das queixas dos moradores locais, pois volta e meia o chão de terra batido enche-lhes os calçados de poeira ou barro, conforme o bom humor de São Pedro. Em determinadas ocasiões, o alerta no pisar vale também para as colegas de Aldaci. Quando estão trabalhando pela região, elas elegem a casa da companheira ponto de encontro para o almoço. A visita é sempre bem-vinda, mas desde que as conversas que acompanham a refeição não tenham como tema as intimidades da família. Nenhum problema com o ex-marido; Aldaci não se sente a vontade é de falar sobre a real situação dos filhos: “Eu tenho um certo receio de que se a minha chefe ficar sabendo que meus filhos são, assim, delinqüentes, que já foram pra cadeia, isso possa me afetar no trabalho. Então eu escondo isso deles. Eu não conto nada da minha família”, admite. O ofício que desempenha torna o receio ainda intenso. Aldaci faz parte de um grupo de agentes que realiza campanhas de combate à dengue. Em vez da tradicional visita de casa em casa, a turma faz o trabalho de conscientização em escolas – eis a fonte dos temores da mulher: “Eu acho que é capaz da minha chefe geral não me querer mais. Ela pode falar: ‘Ah, não. Nós não podemos pôr na escola uma pessoa que não cria nem seus filhos direito’. Sei lá... enquanto eu puder, vou escondendo”. … Com pelo menos com duas pessoas Aldaci tinha liberdade total para tocar no delicado assunto: Cleusa e Mariselni, que conheciam as intimidades da filha quase tão bem quanto a mãe. O 50 Portas Fechadas interesse de ambas na situação da jovem, aliás, estava maior nos últimos tempos, pois não havia muito que o primeiro relatório técnico sobre Amanda fora encaminhado ao Fórum. Estava nas mãos do juiz, portanto, a chance de a jovem encerrar sua internação, que se estendia por sete meses. Sempre que há possibilidade de um adolescente se despedir, a equipe técnica dos Censes se vê diante de dois sentimentos polares. O primeiro é satisfação em ver o jovem prestes a ganhar espaço para novamente agir e fazer escolhas. Cleusa é adepta da tese, inclusive, de que reclusões muito extensas acabam por criar condicionamento. Feito o tratamento, acredita ela, o melhor é permitir que o interno tenha assegurada a oportunidade de se mostrar: “A gente corre um risco de perpetuar, alongar demais essa estadia. E aquilo que ele não tem lá fora, ele tem aqui dentro. Então o jovem acaba sendo dependente. Acho que a gente sempre tem que dar chance”. Por outro lado, os profissionais da socioeducação também são acometidos pelas incertezas quanto às possibilidades de o adolescente se manter afastado da marginalidade, objetivo central do trabalho. Nem mesmo os mais fortes indícios de ressocialização são capazes de dar esta garantia. Em suma, é sempre uma aposta: “É difícil fazer uma análise e apostar no outro com essa certeza. É um risco que a gente corre”, explica a psicóloga A imprevisibilidade da situação aumenta à medida que o Centro deixa de tutelar o jovem e supervisionar seu comportamento. Na avaliação de Cleusa, o resultado do trabalho dos Centros é sempre circunscrito ao livre árbitro de cada jovem internado. “Eu acredito que a gente não pode ter o poder de dominar a vida do outro. Você tenta dar algumas ferramentas para que ele possa se virar um pouco lá fora, mas, infelizmente, depende de cada um de nós”. No caso de Amanda, o páreo era bastante equilibrado. As projeções otimistas tinham como base a conduta exemplar da jovem na unidade. Superada a turbulência inicial, ela se tornou referência 51 Portas Fechadas de comportamento na casa. “A Amanda estava um pouco melhor, um pouco mais forte. Pelo menos aqui ela demonstrou que já tinha um juízo de valor, que conseguia distinguir o certo do errado”, avalia Cleusa. Mais um fator que inclinava a balança para um convívio harmonioso com as Leis, acrescenta a psicóloga, era a estabilidade conquistada recentemente pela mãe. “A Amanda teve o ambiente familiar um pouco mais propício, com uma estrutura familiar mais organizada. Ela tem uma mãe que tem emprego fixo, que é funcionária pública, e quando tem alguém com um emprego, você faz uma análise melhor da estrutura familiar”. O problema é que também vinham de casa os argumentos contrários. O temor de que a jovem pudesse novamente cometer delitos tinha em Fábio e seu histórico de infrações um catalisador. “Ela tem um vínculo bem forte com ele. Acho que o nosso medo é esse irmão. Mais do que ela, é ele que nos dá mais insegurança”, conta Cleusa. Mariselni, experiente no tema, aponta outro fator que potencializa o risco de novas infrações: os círculos de amizade. Projeta a diretora que quanto mais próxima Amanda ficasse do antigo grupo de relacionamentos, mais propensa estaria à reincidência: “Essa adolescente tem que estar fortalecida, porque ela vai retornar pra mesma comunidade, pro mesmo grupo. Então não é uma coisa fácil. O que vai acontecer? Ao retornar, aquele grupo vai estar próximo dela, vai estar chamando. Então ela tem que estar instrumentalizada com força pra não retomar a situação anterior”. Amanda tinha consciência de todas as cartas que estavam à mesa, e conhecia também o papel que lhe cabia nesse jogo. Enquanto aguardava a decisão do juiz, pesava os prós e contras de seu processo de ressocialização, e previa dificuldades para quando ele terminasse: “Ah, fácil não vai ser. É normal que seja difícil. Não vai ser fácil chegar e falar: ‘Não, eu mudei de vida’ e começar tudo diferente. Não, porque eu tenho certeza que meus amigos 52 Portas Fechadas vão me buscar pra ir pros fervo, maluco que sabia que fazia função vai me chamar pra roubar... e vou ter que aprender a dizer não”. Era maio de 2008, e todos se perguntavam se a resposta negativa realmente viria. 53 Portas Fechadas 54 Portas Fechadas 1. ENTRE CELAS E SALAS I. GABRIEL II. AMANDA III. ARTHUR O esquema sempre funcionou bem. Bastava o eletricista do grupo ser chamado para um conserto qualquer, e a turma já ficava de sobreaviso. Enquanto visitava a casa do cliente para realizar o serviço, o especialista observava com atenção as particularidades da residência. Se percebesse que ali havia cofres ou bens de valor, o homem terminava o reparo e logo entrava em contato com o restante da trupe. Nas conversas, além de fazer relatos sobre os possíveis esconderijos de dinheiro distribuídos pela casa, o técnico também fornecia instruções detalhadas do que era preciso para entrar na moradia. Um verdadeiro ofício de informante, que lhe valia metade dos dividendos obtidos com a segunda parte do trabalho: o assalto. Mais delicada e perigosa, esta etapa exigia habilidades além do manuseio de cabos e fios. Por isso, era cumprida por três homens mais habituados à tarefa. Um deles era Arthur, o único adolescente do grupo. Embora com precoces 15 anos, o rapaz não era poupado de qualquer afazer necessário para o sucesso do assalto: participava ativamente de todos os momentos, inclusive da rendição das vítimas, já que os ataques eram realizados na presença dos proprietários da casa. “Nós não agredia. Queria só o 55 Portas Fechadas dinheiro e pronto”, ressalva o rapaz. As vítimas geralmente eram levadas para o banheiro, onde permaneciam até que o grupo terminasse de pilhar os bens que lhe interessavam. E para que pudesse deixar a casa com as mãos abarrotadas de pertences valiosos, o trio escolhia com atenção o local de suas ações. “Não era residência humilde. Só coisa bacana”, explica Arthur. Os destinos mais comuns, acrescenta o jovem, eram os bairros Água Verde, Batel, Jardim Social e Bacacheri, entre os mais ricos de Curitiba. Nessa de aguardar o sinal positivo do eletricista, invadir a casa para render os moradores e de lá sair com as principais posses da família, Arthur e os camaradas já tinham livrado sucesso mais de dez vezes. O impressionante histórico de êxitos animava o rapaz, que, a despeito dos riscos que corria, planejava ousados investimentos: “Eu tava juntando dinheiro pra comprar uma casa, que tava valendo trinta mil. Eu já tinha uns dezenove ou vinte, e ia parcelar o resto”. A idéia, complementa, era livrar os parentes da condição de inquilinos: “Ia morar eu e a minha família, porque nós moramos de aluguel”. Mas a poupança ilícita teria de aguardar, pois a próxima ação do grupo não terminaria como as anteriores. Apesar do zelo na seleção das casas, daquela vez o grupo havia escolhido a vítima errada. … Nenhum problema com a condição econômica do sujeito – esta esbanjava vigor, como tinha de ser; o obstáculo estava na atividade desempenhada pelo homem: ele era Elias Vidal, um dos 38 vereadores da Câmara Municipal de Curitiba. A influente posição social da vítima, depositária da confiança de mais de cinco mil curitibanos nas eleições de 2004, fez a polícia agir com a eficiência que faltou na dezena de assaltos anteriores. Foi preciso pouco mais de trinta minutos para que o grupo, que gastou mais de uma semana planejando o roubo e rodeando as 56 Portas Fechadas cercanias da casa, no bairro Jardim Social, acabasse detido por soldados do Batalhão de Choque da Polícia Militar do Paraná. A captura foi presenciada pelos pedestres que circulavam pela Avenida Victor Ferreira do Amaral naquela noite de segundafeira. Se alguma das testemunhas pudesse contar o que viu, narraria uma perseguição bem ao gosto de Hollywood. Começou com o trio fugindo pelo caminho errado, passou pelas vítimas conseguindo avisar as autoridades, e terminou com os fugitivos algemados: “Nós tava no Jardim Social e fomos pro Bacacheri, mas era pra ter ido pro Cristo Rei. E bem na hora que nós tava voltando, demo de frente com a Rotam, que começou a perseguir nós. Aí fizemos um dos carros deles tombar, mas batemos nosso carro uma esquina pra cima do (Estádio) Pinheirão. Deu perda total”, detalha Arthur. A colisão não teve maiores conseqüências para os passageiros, pois o carro em que estavam, um Ford Fiesta modelo sedan, tinha avançados dispositivos de segurança. O veículo pertencia a Vidal, e era apenas uma parcela do que o trio havia saqueado da residência do vereador. “Conseguimos levar cinco mil reais e um quilo e meio de ouro. Só nas jóias nós ia tirar mais do que 50 mil, porque tinha relógio caro: Rolex, Swatch”, conta o rapaz, com a perícia de quem é tarimbado na atividade. Ocorre que dali em diante o jovem enfrentaria situações nem tão familiares assim. Era o roteiro da história ganhando tons menos glamourosos. Após a mal-sucedida fuga, Arthur e os companheiros foram levados para o décimo primeiro distrito policial de Curitiba. Quanto aos colegas, tudo certo, pois eram maiores de 18 anos e não havia qualquer irregularidade nesse encaminhamento; mas Arthur, que sequer tinha 16 completos, não poderia permanecer no local. De acordo com os princípios da socioeducação, era papel do Estado instalá-lo em uma delegacia própria para jovens, como a que fica no bairro Capão da Imbuia. A violação às determinações perdurou por quinze dias, quando então o rapaz foi afastado dos parceiros de delito e internado provisoriamente no Centro de Socioeducação (Cense) 57 Portas Fechadas de Curitiba, agora sim junto de outros adolescentes. A companhia dos novos colegas durou apenas quatro semanas, tempo necessário para as autoridades responsáveis pela análise do caso definirem sua medida socioeducativa. A sentença previa internação definitiva e exigia uma nova mudança, desta vez para Piraquara, município da Região Metropolitana da capital onde mora sua família e, mais importante naquele instante, sede do Cense São Francisco, seu novo abrigo. … Quando chegou à unidade, Arthur ainda matinha vivas as memórias do delito que cometera. E mesmo tendo como conseqüências a privação de liberdade e o convívio irregular com presos mais velhos, a infração enchia-lhe de orgulho. Quem identificou o paradoxo foi a psicóloga Renata Campos Mendonça, que, ao lado da assistente social Rossana Ribeiro Narloch, é responsável pelo atendimento do adolescente. Há dois anos trabalhando com jovens em conflito com a Lei, Renata diagnosticou o entrave logo nas conversas iniciais: “Quando chegou aqui, o Arthur era infantil. Eu sentia nele uma emoção com essa vida. No primeiro atendimento, ele me contou que eles fugiram da polícia em alta velocidade e perguntou se eu não visto passar na televisão... uma aventura!”, revela. A depender da impressão inicial deixada pelo jovem, o trabalho da equipe técnica seria árduo. Não bastassem as preocupações advindas da imaturidade do adolescente, a tarefa se quedava ainda mais complicada ante o local do tratamento. Unidade mais antiga e populosa do Estado, com capacidade oficial para receber 130 jovens do sexo masculino, o Cense São Francisco é tido como o Centro de Socioeducação mais delicado para se trabalhar no Paraná. A avaliação não é feita somente por quem vê o problema à distância, mas é uma espécie de mea-culpa – as dificuldades são reconhecidas inclusive pelo diretor da unidade, Júlio César Botelho: “O São Francisco é diferente por diversos motivos. Primeiro: é a maior unidade do estado e tem um número elevado 58 Portas Fechadas de adolescentes. Segundo: o quadro funcional é antigo, já pegou legislações diferentes, tem baixa escolaridade e tem dificuldade pra compreender a lei e a metodologia de trabalho”, analisa. Renata também dá seu parecer sobre as condições de trabalho do local. Para ela, as barreiras ficam mais nítidas quando o Centro é comparado aos mais recentes Censes construídos pelo Estado*: enquanto as novas unidades possuem alojamentos individuais, o São Francisco abriga até oito adolescentes em um mesmo espaço. E a situação já foi pior. Em 2006, quando a psicóloga começou a trabalhar na casa, o número de jovens internados juntos era um terço maior: “A ala B chegava a ter doze meninos por alojamento”, lembra. Ainda que insuficiente, a redução é fruto de esforços das recentes administrações do Cense para aproximar a unidade cada vez mais das deliberações traçadas pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), a política pública que busca pôr em prática as exigências feitas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no que diz respeito à privação de liberdade. De acordo com o Sinase, os Centros de Socioeducação devem se constituir como espaços com características residenciais, distantes da concepção arquitetônica de um presídio, como a que o São Francisco possui hoje. Para ganhar ares mais caseiros e se adequar às determinações legais, por exemplo, o Cense criou um espaço exclusivo para adolescentes recém-chegados, a ala D. As vantagens do novo ambiente são explicadas por Renata: “A idéia é que eles fiquem de 45 a 60 dias pra que tenham mais atendimentos, pra que possam ser observados em grupo e pra que a gente faça uma avaliação melhor”. É a partir das observações feitas nessa ala que é definido o alojamento definitivo de cada jovem. “O que eu avalio mais é a maturidade que o menino tem”, resume a psicóloga, uma das 14 técnicas da unidade responsáveis pelo encaminhamento dos * Neste ano, a Secretaria de Estado da Criança e da Juventude prevê a inauguração de cinco novas unidades. Elas ficam em Cascavel, Laranjeiras do Sul, Maringá, Ponta Grossa e Piraquara, esta construída nas intermediações do próprio Cense São Francisco. 59 Portas Fechadas internos. No tempo em que Arthur era novato, muitas dessas mudanças ainda não haviam acontecido. O método de recepção dos adolescentes, por exemplo, não oferecia um período de isolamento tão grande. Com isso, pouco tempo depois de ingressar na unidade, o jovem foi colocado em contato com adolescentes mais antigos na casa e mais maduros. Era mais um fator que deixava Renata, sabedora do comportamento infantil de Arthur, preocupada com os dias que viriam. … Conforme previsto, o início foi complicado. Arthur sofreu um bocado para se adaptar ao convívio com os colegas do alojamento que ocupava, na ala A. Surgiram desentendimentos daqui e dali. Mas se há um atributo que salta aos olhos na personalidade do jovem é a simpatia. Usando-a, em pouco tempo o rapaz passou a administrar melhor os conflitos, e logo se integrou plenamente ao ambiente. Renata então ficou mais tranqüila e percebeu que Arthur tinha outras características além das identificadas nas primeiras conversas: “Ele é um menino muito fácil de fazer vínculo, muito afetivo, muito falante. Ele tem carisma”, resume. Com o passar dos meses, o adolescente ganhou também o apreço dos profissionais do Centro. Grande parte da admiração vinha do empenho mostrado por ele nas aulas do Programa de Educação nas Unidades de Socioeducação (Proeduse), freqüentadas com a regularidade exigida. A constante presença, somada a boas notas, já trazia resultados admiráveis: em questão de um ano e pouco, Arthur trocou os livros da terceira série do Ensino Fundamental, nível escolar que possuía assim que chegou à unidade, por cadernos e lições da sétima série. Estava agora a alguns passos de se tornar aluno do Ensino Médio, algo impensável para o período em que estava em liberdade. Também jogava a favor do rapaz a participação em oficinas de profissionalização, atividade muito valorizada pelos Censes. 60 Portas Fechadas Durante oito meses, ele dedicou suas manhãs a aprender técnicas de panificação, transformando misturas de água, farinha e ovos em saborosos confeitos. A qualidade das guloseimas impressionou não apenas os colegas de internação, mas também o padeiro que trabalha no Cense. Como volta e meia ele precisava de um ajudante para dar conta das iguarias encomendadas pela direção da casa, o homem não teve dúvidas em convidar Arthur para lhe ajudar na função: “Não tinha ninguém pra fazer os bolos e, como só tinha eu que aprendi bastante, o padeiro me chamou pra ajudar”, conta o adolescente. Pensando em manter o jovem motivado com a atividade e confiando em seu bom comportamento, a equipe técnica do Centro decidiu encaminhá-lo à Rede Esperança, uma Organização NãoGovernamental (ONG) que oferece diversos cursos de profissionalização e que, como mantém parceria com os Censes, recebe muitos adolescentes em conflito com a Lei. A vantagem de se realizar uma oficina na Rede é que, depois de concluído o aprendizado, o aluno geralmente é encaminhado para o mercado de trabalho. No caso de jovens privados de liberdade, também há o benefício de poder deixar a unidade de internação todas as manhãs, já que as aulas são ministradas na sede da ONG. Arthur começou a se deslocar diariamente para lá em abril de 2008, quando teve início a oficina de panificação. As saídas eram acompanhadas por Carlos, interno que também foi matriculado no curso, e deveriam se estender por cinco meses. Era esse o período de duração do treinamento. Mas os rapazes nem tiveram tempo de memorizar o caminho que separa o São Francisco da ONG, pois percorreram o trajeto por apenas uma semana. De segunda a quinta, as aulas se passaram conforme o previsto, com o ensino de algumas receitas e muitas massas levadas ao forno. O problema veio no dia seguinte, quando a dupla sequer entrou na sala. “Nós conhecemos umas meninas lá, e fazia tempo que nos tava na laje, né?”, começa a explicar Arthur, fazendo referência ao período em que ele o amigo estavam sem trocar beijos ou carícias com garotas. 61 Portas Fechadas Com os hormônios em polvorosa, fruto de mais de um ano de internação, os adolescentes trataram de tomar o caminho da rua, onde duas jovens os esperavam para um encontro às escondidas. O sumiço dos meninos foi prontamente notado pelo professor, que comunicou o fato à direção do Cense. “Eu não queria acreditar, mas eles só podiam ter fugido”, revela Renata. As incertezas perduraram por uma hora e meia, período que durou o passeio. Para alívio geral, a escapulida foi encerrada com o retorno dos internos à ONG. “A gente saiu nove horas e voltou dez e meia, antes que a Kombi do Educandário chegasse. Só que não adiantou nada. Chegamos e todo mundo já sabia”, explica Arthur. Mesmo terminando em frente à Rede Esperança e com o menor dos prejuízos possíveis, a aventura de Arthur e Carlos custou-lhes o direito de continuar participando do curso. “Pode parecer duro demais, mas é importante que eles saibam que a saída é uma coisa muito séria. Eles não podem sair passear sem nenhum sentido pedagógico. Eles estão presos”, justifica Renata. O episódio, assim, freava a série de avanços que o jovem vinha tendo desde que chegara ao Cense. A preocupação central da equipe que o acompanhava estava nas circunstâncias em que a infração aconteceu, bastante ligadas ao passado do rapaz. … Por coincidência, a Rede Esperança fica no mesmo bairro em que Arthur passou boa parte da adolescência, o Capão da Imbuia, na face Leste de Curitiba. Foi esse acaso que permitiu a saída com as garotas, a quem o rapaz era chegado de outros carnavais: “Eu conhecia as meninas porque morei ali perto. Elas sabiam que eu tava preso, só que não podiam me visitar. Aí ficaram sabendo que tava lá na Rede, e a gente foi fazer um passeio”, conta. Curitibano nascido no bairro Cajuru, o jovem foi criado em Piraquara e se mudou para o Capão da Imbuia pouco antes de completar 14 anos. Até então, tivera uma infância típica entre os 62 Portas Fechadas jovens da periferia, com muitas brincadeiras ao ar livre e incontáveis pipas empinadas pelos céus. A partir da mudança para o novo bairro, contudo, passou a freqüentar a rua com mais afinco, firmando novas amizades e tomando gosto pela vida noturna. Arthur é sincero ao reconhecer que foi essa mudança de rotina que originou seu envolvimento com atividades ilícitas, iniciado no contato com as drogas: “Eu comecei a fumar maconha e ir pro som... ixi, daí azedou tudo!”. A despeito da satisfação instantânea que proporcionavam, os hábitos de freqüentar festas e animá-las com entorpecentes logo se tornaram um empecilho para o rapaz, pois ambos não custavam barato. Com oito filhos em casa e sem contar com o auxílio do marido, de quem era separada, a mãe de Arthur, Laura, não estava apta a sustentar os prazeres do filho. Ganhava a vida como diarista, atividade cujo rendimento era destinado a cobrir as despesas da casa, como bem lembra o adolescente: “Eu não podia pedir muitas coisas pra minha mãe porque ela não tinha condições de comprar”. A limitação se tornou ainda mais pesada quando, em uma das muitas boates que costumava freqüentar, o jovem se interessou por Beatriz. Menina de classe média e bem-vestida, a garota chamou sua atenção, e Arthur não tardou em puxar papo. Conversa vai e conversa vem, e os dois se tornaram namorados. A nova condição exigia agora mais cuidados e vaidades por parte do adolescente, que passou a cultivar novas necessidades. “Eu gostava de coisa cara. Queria tênis de 200 reais e curtia pano bom.” Frustrado com a impossibilidade de concretizar o desejo, Arthur sabia que seu raio de ação era um tanto quanto limitado. Sem emprego nem mesada, o jovem desistiu de usar os meios honestos, e se rendeu às tentações e facilidades do dinheiro ilícito: “Eu não tinha dinheiro, não trabalhava... o que que vou fazer? Vou roubar”, explica. O método escolhido para os furtos era ambicioso: sem antes experimentar abordar transeunte pelas ruas ou motoristas pelos 63 Portas Fechadas semáforos, atividades mais simples, o jovem de cara se pôs a assaltar residências, delito que cometeu até ser capturado. Como a atividade era rentável, permitia-lhe gastos além dos previstos inicialmente: “Passou um tempo eu comprei uma bizzinha também. Fiz uns cambalachos de uma carteira e andava muito louco”, relembra. A namorada, conta o jovem, de nada sabia. Acreditava que os pertences ostentados por ele eram fruto de labuta honesta. A idéia, claro, estava equivocada, mas não era um devaneio absoluto, pois o rapaz já tivera fontes estáveis de renda, sempre auxiliando familiares. Com o tio, trabalhou de jardineiro; junto do padrasto, fez as vezes de ajudante de construção. Nada muito duradouro. A experiência mais significativa no mercado formal se passou em uma fábrica de remédios situada no bairro Campo Comprido, na região Oeste da capital. Durante alguns meses, o rapaz, então com 15 anos, fez dali seu destino de todas as tardes. Certo dia, entretanto, os serviços que prestava foram dispensados pelo patrão, depois que este lhe fez algumas exigências, que, embora simples, Arthur era incapaz de cumprir: “Saí porque eu não tinha documento. Só tinha a identidade e a certidão de nascimento, mas precisava de um CPF e de uma carteira de trabalho”, revela. Beatriz estava a par dessa história, mas permaneceu no escuro quanto ao ganha-pão do namorado por um bom tempo, até que a verdade lhe bateu à porta. Literalmente, e trazida por alguns amigos do namorado que, na companhia de outros jovens, haviam assaltado um bordel. De passagem pelo litoral, Arthur não participou da ação – pelo menos diretamente. Sua contribuição para o delito se deu pelo empréstimo da arma utilizada, que fora comprada nas cercanias de casa meses antes, por seiscentos reais. A polícia de pronto deteve a turma, e não demorou a perguntar pelo dono do revólver usado no crime, um calibre trintae-oito. Mediante ameaças, cada participante do assalto foi entregando um colega. De casa em casa, as autoridades acabaram por visitar a residência de Beatriz, acreditando que lá poderia ser o refúgio de Arthur. Os peêmes não o encontraram, mas jogaram 64 Portas Fechadas luzes sobre a real atividade do rapaz. O namorou terminou ali mesmo. “Os pais da guria pensavam que eu trabalhava...”, lamenta o jovem. Ao regressar da viagem, Arthur soube de tudo que acontecera, e, inconformado com o término da relação, imediatamente quis saber quem colocara a polícia em contato com sua namorada, agora na condição de ex. O responsável pela informação, Tadeu, então se apresentou, e ganhou o desprezo definitivo do jovem, que o agrediu com violência. Novamente solteiro, Arthur seguia varando as madrugadas em casas noturnas, onde conhecia outras garotas e se alienava da perda recente. Mas em uma das festas, realizada nas proximidades da Praça Rui Barbosa, em Curitiba, as lembranças voltaram com intensidade suficiente para interromper a diversão. Não se tratava da presença de Beatriz, mas de Tadeu. Antigo companheiro, o rapaz agora era desafeto de Arthur, que, entre músicas e bebidas, resolveu deixar a situação clara mais uma vez, aplicando-lhe uma nova surra. O desentendimento teria acabado ali, não fosse uma série de coincidências ocorridas ao término da festa. Acompanhados das respectivas turmas, os dois jovens tomaram o mesmo ônibus para voltar para casa. Como eram vizinhos, percorreram todo o trecho juntos, desembarcando, inclusive, no mesmo ponto, uma das estações-tubo do bairro Capão da Imbuia. Era proximidade demais para a revolta de Arthur. Sob os olhos atentos dos colegas, o adolescente se aproximou de Tadeu para iniciar outra conversa. Como era anunciado, o diálogo rapidamente se inflamou, e, com a ajuda dos parceiros que até então assistiam passivamente ao bate-boca, foi transformado em uma nova agressão, muito mais violenta que a anterior. “Primeiro, foi na pancada. Aí apareceu um tronco e os piás jogaram na pinha dele”, conta Arthur, relembrando os golpes que fatalmente vitimaram o rapaz. 65 Portas Fechadas A polícia, peça chave na motivação do delito, não foi informada da nova infração, e manteve os responsáveis pela agressão em liberdade. A elucidação completa do caso só viria a ocorrer meses mais tarde, quando Arthur já estava internado sob a acusação de furto. Seus litígios com a Lei então foram revistos e, somados, deixavam sua ficha um tanto mais longa: além do roubo e do homicídio, ela incluía também uma tentativa de assassinato, registrada nas primeiras surras que o rapaz aplicou em Tadeu. Era encrenca suficiente para render conversas e mais conversas com Renata. … Depois de tanto ouvir, a psicóloga se sente à vontade para apontar os dois fatores que mais atraíram o jovem paciente para a via da criminalidade. O primeiro é comum à maior parte – e de tal forma grande que se aproxima da totalidade – dos jovens internados no Cense: “A gente tem a exclusão social como um grande fator, e sabemos que ela causa violência, sim. O próprio sentimento de exclusão, de não fazer parte, também causa. Por exemplo, a gente fala que eles não seguem as leis que há na sociedade, mas às vezes eles nem fazem parte dessa sociedade”, avalia, não sem antes tomar o cuidado de afastar sua análise de determinismos: “Eu acho que não dá pra dizer que é só isso, mas isso contribui muito pra esses meninos estarem aqui”. O outro elemento formador desse quadro também se aplica a diversos garotos, mas é especialmente intenso no caso de Arthur: “A motivação dele vem mais de estar na rua e sem regras. Esse ambiente favorece muito o envolvimento. Acho que era também uma inconseqüência, não ter noção da gravidade mesmo, porque ele entrou nesse caminho muito novo”, diagnostica. Embora não conheça Arthur e trabalhe exclusivamente com meninas, a diretora do Cense Joana Miguel Richa, Mariselni Vital Piva, faz uma reflexão muito pertinente à condição do garoto. Diz respeito ao abandono escolar: “Geralmente, nós percebemos que os jovens começam a infringir quando estão em torno da quinta série. São fatos que andam meio juntos: eles deixam a escola e 66 Portas Fechadas começam com os envolvimentos que os trazem para a situação de internação”. Há uma situação específica, contudo, que apenas quem vive o dia-a-dia do São Francisco é capaz de compreender integralmente: as rebeliões. Não é que elas não aconteçam em outros Centros; há casos registrados em várias unidades, sim. Ocorre que o Cense de Piraquara tem um triste histórico de motins, que inclui o mais violento na história recente da socioeducação paranaense. Aconteceu em 2004, e terminou com o óbito de sete adolescentes. Arthur, felizmente, não estava lá, mas desde que chegou à unidade passou por duas situações de conflito agudo. A mais recente ocorreu na metade deste ano, quando um grupo de jovens se rebelou e tentou fugir, sem sucesso. Em tempo: a iniciativa não tinha o aval de Arthur e dos colegas mais próximos: “Nossa ala não tinha nada a ver”, esclarece o rapaz. Mesmo assim, como é costumeiro em situações do gênero, a direção da unidade impôs penalidade a todos os internos. Algumas deliberações, em especial, atingiram Arthur, como a interrupção de todas as atividades externas. Tratava-se de um direito que ele havia recuperado há pouco, depois da travessura aprontada na Rede Esperança. No lugar dos pães e massas, porém, desta vez o jovem estava pondo as mãos em temperos e legumes, já que cuidava da horta mantida pelo Cense. “Eu ficava lá a manhã inteira. Parecia que passava mais azul, mais rápido o tempo. Eu nem via passar”, relembra, com o pesar do benefício perdido. Outra medida adotada pós-crise foi a substituição temporária de educadores sociais por agentes penitenciários. A regra é prevista pelo regulamento do Cense, com validade de 60 dias, renováveis por igual período. Para quem considera a decisão abusiva, o diretor da unidade, Júlio César Botelho, argumenta: “A rebelião é a expressão da violência, do mando, do domínio. É um marco da ascensão dos adolescentes. É como se eles dessem o golpe final. Ou ali você retoma, ou ali você perde de vez. E a vinda dos agentes foi um pedido da equipe para ajudar a controlar a situação”. 67 Portas Fechadas Entre os adolescentes, as explicações surtem pouco efeito, já que os educadores sociais são os funcionários com quem os jovens mais têm contato. É papel desses profissionais acompanhar e auxiliar os internos nas atividades cotidianas mais simples, como ir ao banheiro, por exemplo. É verdade que também há desentendimentos, tamanho é o convívio a que estão expostos, mas ainda sim a resolução era motivo de revolta entre os garotos: “Eu sempre respeitei os educadores. O convívio era muito bom, só que agora tem esses agentes penitenciários... aí mudou tudo. Mudou tudo. E eu acho que eles não podem trabalhar aqui, porque são da penitenciária, e aqui é um negócio de menor, entendeu?”, comenta Arthur, a despeito da legalidade da decisão. O tenso ambiente que se estabelecia no Cense contrastava com o fio de esperança que envolvia Arthur. Em pouco tempo, ele completaria 18 meses de internação, o que significa que era chegada a hora do envio de seu terceiro relatório técnico. Os outros dois não permitiram sua saída; este, acreditava Renata, poderia viabilizá-la: “Eu dizia que o Arthur e outro menino foram os dois casos em que eu mais vi evolução aqui dentro. O Arthur era muito maduro num último momento”. Ciente de que a egressão poderia estar próxima, o adolescente traçava ene planos para o retorno à liberdade. Animado com a evolução escolar conseguida no Cense, planejava primordialmente continuar na companhia dos livros e cadernos: “A coisa que eu mais quero é terminar meu estudo, pelo menos até o primeiro grau. E depois que fez o primeiro, que que custa fazer o resto?”. Outra decisão fundamental era encontrar um sustento distante dos litígios com a Lei: “Quando eu sair daqui, vou sair com um serviço. Não vou ganhar bastante: vai ser uns trezentos ou quatrocentos reais, mas vou indo. Se aparecer uma oportunidade boa pra mim, eu tô enfrentando”, anunciava. Do lado de fora, os entes também se preparavam para o 68 Portas Fechadas retorno do jovem. Para que isso fosse possível, a juíza responsável pelo caso exigiu que toda a família deixasse o Capão da Imbuia e passasse a morar em outra localidade, o mais distante possível. A determinação, prontamente cumprida, veio porque a magistrada entendeu que Arthur corria perigo caso retornasse ao bairro em que cometeu os delitos: “Tiveram que mudar... eles falaram que eu tava correndo risco de vida por causa dos problemas que eu tinha na rua”, resume o rapaz. Logo que saísse e arrumasse um cantinho na nova casa, Arthur teria uma grata surpresa. A irmã mais velha deixara a família maior: “Ela nem grávida não tava. Eu vim preso, ela ficou grávida, ganhou e ele já ta com nove meses”, conta, em referência ao sobrinho que mal conhecia. Ansioso para cumprir seu papel de tio e assumir as responsabilidades de filho mais velho da casa, pois os dois irmãos maiores já estavam casados, Arthur tocava seu dia-a-dia no Cense, entre a horta, a escola e algumas atividades recreativas. Apesar de se concentrar na lida com a terra e nas lições transmitidas pelo professor, era difícil desviar o pensamento da possibilidade de sair. E a cada vez que Renata ou Rossana lhe chamavam para uma conversa, seu coração palpitava envolto na esperança de que o momento havia chegado. 69 Portas Fechadas 70 Portas Fechadas 2. VIDAS NOVAS E VIDAS LOKAS I. GABRIEL II. AMANDA III. ARTHUR Era para ser apenas mais uma visita domiciliar de fim de ano. Garoto de confiança dos diretores do Cense Fazenda Rio Grande, Gabriel ganhara o direito de passar a festa de réveillon em casa, na companhia dos pais e das irmãs. Despediu-se da equipe técnica da unidade com a promessa de que, ao término do foguetório que colore os céus e dos champanhes que são festivamente estourados na virada de ano, retornaria ao Centro de Socioeducação. Era onde deveria permanecer até a chegada do alvará de soltura que poria fim à sua medida de privação de liberdade, iniciada um ano antes. Mas Gabriel não resistiu à espera, e fugiu. Seduzido pela rara autonomia desfrutada durante as comemorações e desapontado com a demora na expedição do tal documento, decidiu interromper a internação por conta própria. Alheou-se aos trâmites oficiais para resolver que não retornaria ao Cense coisa nenhuma. Era como se, durante a tradicional contagem regressiva que anuncia o Ano Novo, aproveitasse o coro de números decrescentes para computar também os instantes que o separavam da liberdade. “Eu peguei e pensei: ‘Ah, nem vou voltar’. Já tinha subido meu relatório pra desligamento, mas eu não conseguia mais ficar naquele lugar!”, revela. 71 Portas Fechadas Antes de levar a cabo a corajosa decisão, Gabriel consultou os pais, na esperança de receber apoio para aquela que seria sua mais recente violação à Lei. A exemplo das infrações anteriores, o aval não veio: “Eu disse: ‘Volte e espere’”, sintetiza a mãe. Sem acatar o conselho, Gabriel também foi reprovado por José, que considerava o regresso ao convívio social por vias tortas outro dos erros cometidos pelo filho. “Pra mim não foi boa coisa. Eu não gostei, porque eu queria que ele cumprisse conforme a lei. Eu não queria que ele saísse fugitivo, pra cada passo estarem atrás dele. Eu quero um negócio certinho”, exige o pai. À desaprovação da família se somava o temor por eventuais buscas da policia, o que tornou as horas iniciais de liberdade tão angustiantes quanto os momentos finais da reclusão no Cense. Foi então que Gabriel lançou mão de outra de suas soluções. Logo no segundo dia de janeiro, decidiu passar um tempo em São Mateus do Sul, onde moram os avós maternos, refúgio ideal para encontrar a segurança e a tranqüilidade que lhe faltavam na condição de foragido. “Peguei um ônibus e fui pra ficar meio pá, pra dar uma abaixada na poeira, como dizem.” A figura de linguagem empregada por ele parece mais apropriada do que nunca. Precisando de dinheiro para suprir as necessidades que a liberdade também lhe devolvera, o jovem chegou a São Mateus e imediatamente começou a trabalhar em uma das muitas plantações de fumo do município. Poeira era o que não faltava. Em troca de uma rotina que lhe exigia quase dez horas de trabalho por dia, recebia, ao final do expediente, trinta reais. Quase nada, se observado o esforço que a atividade exige. “Você pega uma carreira de fumo e vai arrancando as folhas mais amarelas que tem embaixo. Começa a arrancar de baixo pra cima. Aí faz um maço e leva no trator. A gente não é acostumado, porque lá você trabalha mais no sol, não trabalha em sombra. É embaçado”, conta. … 72 Portas Fechadas Enquanto o filho peleava para se adaptar novamente à lida, os pais, de casa, empenhavam-se em encontrar uma solução para o imbróglio em que estava envolvido. Ela veio por telefone, pouco menos de uma semana depois da fuga, quando a psicóloga do Cense, Márcia, do outro lado da linha, informou a Dora que a tão esperada carta de liberação de Gabriel estava em suas mãos, sem nenhuma alteração decorrente da fuga. Embora não tivesse retornado ao Cense no dia previsto, o garoto reconquistara a liberdade: “O juiz foi informado da fuga e mesmo assim decidiu liberá-lo”, explica a psicóloga. A decisão não deixou de causar certo espanto aos funcionários do Cense, já que, em situações dessa natureza, o parecer da justiça costuma ser diferente, como esclarece Iracema: “A gente avisa o juiz. Faz um ofício dizendo que houve a fuga, e é o juiz que geralmente toma as providências. Expede um mandado de busca e apreensão e a polícia é que tem que dar conta da captura”. Surpresa por surpresa, aliás, a própria evasão de Gabriel já tinha sido umas das grandes: “Foi um susto pra todo mundo, porque ninguém esperava”, acrescenta. Embora com a medida de privação de liberdade encerrada, Gabriel não estava totalmente quite com a Lei. Como todo adolescente que deixa a internação, ele precisava cumprir agora outra medida socioeducativa, algo como a última etapa do acerto de contas com a justiça: a liberdade assistida. O fato de representar uma nova medida pode assustar, mas o procedimento é simples, como explica Iracema: “Ele tem que se apresentar no Fórum uma vez por mês, durante seis meses, e dizer o que está fazendo: se está estudando, se está se comportando, se não está usando droga etc”. Gabriel deixou a nova medida o aguardando por mais algumas semanas, e prolongou a estada no interior. Tempo suficiente para juntar cerca de quinhentos reais no labor com as folhas de fumo e pagar com tranqüilidade os trinta reais da passagem entre São Mateus do Sul e Fazenda Rio Grande. O montante era empregado também em algumas chamadas telefônicas para casa: “De lá ele ligava sempre: conversava comigo 73 Portas Fechadas e dizia quer não era pra se preocupar que ele tava trabalhando, não tava fazendo nada de errado”, narra Dora. Nas conversas que levava com a mãe, Gabriel não precisava gastar tempo descrevendo as peculiaridades de São Mateus do Sul. Aquelas bandas Dora conhecia bem, e não apenas em virtude das lembranças da infância ou das visitas que fazia de tempos em tempos. Não havia muito que ela, o marido e os filhos, temendo represálias pelos delitos cometidos por Gabriel, tinham passado uma curta temporada por lá. Aconteceu pouco mais de dois meses depois que a polícia deteve o garoto. Com ele internado, ouvia-se nos comentários da vizinhança, a desforra pelos crimes seria feita contra a família, que permanecia em liberdade e, portanto, encontrava-se indefesa. “Foi tudo sob pressão. O pessoal dizia: ‘Prenderam o Gabriel. Agora vão vir aqui e vão matar a senhora’”, detalha a mãe. Como gastavam quase todas as horas do dia trabalhando, Dora e José eram obrigados a deixar em casa, sem companhia, as duas filhas mais novas. Era a oportunidade que a turma da rua aproveitava para intensificar o diz-que-me-diz-que em torno da suposta vingança. “Os vizinhos falavam: ‘Vão quebrar a casa, vão roubar as crianças’.” O teor dos comentários assustou a todos. Dora, bastante fragilizada desde a perda do filho mais velho, não suportou a nova carga emocional, e resolveu pôr a casa à venda: já que era questão de vida ou morte, pelo menos de acordo com a versão que corria à boca pequena, iriam se mudar de mala e cuia pra São Mateus – e de imediato, antes que qualquer mal lhes fosse feito. A urgência em se deslocar, no entanto, não foi a melhor das estratégias, já que, ancorada nas inexoráveis regras de mercado, desvalorizou um dos raros bens que a família possuía: “A casa tá na faixa de 22 mil, e nós vendemos por oito, por causa da pressa, da afobação. Foi colocada a placa ali e já apareceu comprador, já vendemos”. O pior foi perceber, mais tarde, que tudo não passava de boataria. Decorridos alguns meses, a família, então hospedada na 74 Portas Fechadas casa da mãe de Dora, concluiu que era hora de deixar o interior e retornar para Fazenda Rio Grande, a fim de verificar como iam as coisas. Foi quando veio a constatação de que tudo permanecia na mais rotineira normalidade, ao contrário da intriga que custara quase dois terços do imóvel: “Não era verdade, porque se eles quisessem mesmo ter feito vingança, assim que prenderam o Gabriel, teriam vindo fazer. Mas nunca ninguém veio perto da nossa casa. Nem depois que ele saiu do educandário, nem antes”, elucida a mãe. Para Gabriel, a partida às pressas rumo a São Mateus foi bem mais proveitosa. Além do dinheiro arduamente ganho, o jovem se certificou de que a polícia não estava mais à sua procura, pois a mãe tratara de lhe transmitir a novidade anunciada por Iracema. Mas os gatos escaldados sempre têm companhia: quando encerrou a estada no interior e decidiu voltar para casa, ele ainda alimentava algumas desconfianças acerca da conquista da liberdade definitiva, expressa numa sentença judicial que precisava apenas ser retirada para se tornar oficial. “Ah, mãe, acho que isso é uma armadilha. Quando eu chegar lá, eles vão me prender por eu ter fugido”, revelou instantes antes de entrar no Fórum de Fazenda Rio Grande, onde se achava o documento. Diante do receio do filho, Dora tomou as frentes e foi ao encontro do promotor, que, sem qualquer artimanha ou interesse oculto, entregou-lhe a papelada que oficializava o término dos litígios do filho com a Lei. Agora estava nos trinques, bem ao gosto do pai: “Quando eu vi que deu tudo certo, que foi feito os papel, tudo certinho, aquilo me tranqüilizou 100%. Foi limpa a ficha dele”. Aquela tranqüilidade, mal sabia José, ainda tinha muito para crescer. Iracema e Margarete, receosas quanto ao futuro do jovem, sobretudo depois da fuga, também seriam gratamente surpreendidas. O adolescente que cerca de um ano antes chegara ao Cense revoltado e respondendo por homicídio já era difícil de ser encontrado no rapaz que regressou de São Mateus do Sul para zerar seus conflitos com a Lei. 75 Portas Fechadas … O caminho de Gabriel longe das infrações começou a ser trilhado com o cumprimento de uma promessa que havia feito a então namorada, Suzana, enquanto ainda estava preso. Naquele momento, ele desconfiava da fidelidade da garota, que permanecia em liberdade, e por isso definiu que não valia a pena manter o namoro atrás das grades. Voltariam a conversar assim que retornasse à liberdade. Pois a tal conversa aconteceu, e rendeu que só vendo. Gabriel e Suzana decidiram não apenas reatar o namoro, como também passar a morar juntos, tal qual marido e mulher. A união só não é um casamento ao pé da letra porque não foi oficializada no cartório – o que não os impede de se considerarem um casal devidamente matrimoniado. Quem explica o raciocínio é Gabriel: “Nós tamo junto, morando junto. Se nós tivesse namorando, ela taria na casa do pai”. Já que se encontravam em vias de formar um núcleo independente, coube aos dois também encontrar um abrigo próprio. A tarefa foi facilitada pelo empenho de José, que, enquanto o filho esteve internado, começou a construir, nos fundos de casa, um galpão encomendado pela pastora do templo evangélico que freqüenta. A idéia era aproveitar uma centena de tábuas e outras sobras de construções para erguer uma igreja. Mas a desinternação do jovem motivou Dora a mudar a finalidade da obra. “O Gabriel está com a gente e vai ter que arrumar um cantinho pra morar”, tratou de comunicar à pastora. Naquele instante, o templo convertido em casa precisava apenas do piso, do reboco e de uma parede lateral para ficar pronto. Foi então que Gabriel, animado com a condição de futuro proprietário, passou a ajudar o pai nas vezes de pedreiro. E como cada tijolo que colocava dava formas a um bem que seria seu, caprichou no serviço: “Ele falou: ‘Pai, quero comprar o forro’. Depois ele falou: ‘Pai, eu quero colocar lajota também’”, revela José. 76 Portas Fechadas A casa ficaria do que jeito que Gabriel gosta, não fosse o sempre apertado orçamento da família. Com o dinheiro miúdo e já tendo investido mil e duzentos reais na compra dos materiais necessários, o pai teve de frear o entusiasmo do filho: “Bom, então agora você vê o que você quer: quer colocar lajota ou quer colocar o forro? Os dois, não dá”, respondeu-lhe. Até o momento, o jovem ainda não se decidiu. Está esperando o inverno terminar para se certificar do investimento mais vantajoso para a família, já que, na casa de um quarto, um banheiro e uma sala mesclada com cozinha, também vivem Suzana e Tânia, cuidada por eles como a filha que não têm. José, mais experiente em reformas, dá a dica: “Você vê: o período mais crítico, que era o inverno, bem dizer está passando. E logo vem o verão. Então eu sugiro fazer a cerâmica”. Morando assim, numa construção projetada pra ser uma igreja, os residentes não poderiam deixar de ser religiosos. São assíduos freqüentadores do templo evangélico que fica nas cercanias de casa, daqueles que não passam uma semana sem participar das preces e cantorias comandadas pelo pastor Agenor. Os hábitos sacros, aliás, representam outra grande modificação no comportamento de Gabriel: “Antes de eu ir preso, eu não ia pra Igreja. Era difícil. Depois que eu saí do Educandário, comecei a ir direto”. É mais fácil encontrá-lo no templo durante os finais de semana, quando tem folga no trabalho. Esta característica o jovem parece não mudar: é um operário e tanto. “Eu cheguei aqui em fevereiro e fiquei só uma semana parado”, conta. O emprego que arrumou não veio dos cursos de profissionalização que realizou no Cense, mas dos ensinamentos regulares transmitidos pelo pai, oleiro de fazer inveja. Foi intermediado por José que Gabriel conseguiu o ofício atual, na Cerâmica Barbosa, onde, até agora, tem honrado a indicação do pai: “Ele tá firme. O home gostou do trabalho dele e vai até registrar”, orgulha-se José. O salário que o rapaz ganha na labuta é destinado quase integralmente a cobrir as despesas da casa. A época de investir em 77 Portas Fechadas roupas e bebidas é agora apenas uma lembrança da adolescência amarga que tivera. Quem também não o acompanha na vida pósinternação são os antigos amigos, cuja companhia e influência tanto preocupavam os diretores do Cense. O único remanescente é Marcos, vizinho e colega de profissão. É na companhia dele e do pai que Gabriel entretém a meia hora de pedalada que o separa da firma onde trabalha: “Nós vamos de bicicleta: eu, o Marcos e o pai, que trabalha lá perto e sempre vai junto. Só quando tá meio chovendo que a gente pega o carro dele”. Se depender dos planos do jovem, São Pedro pode mandar chuva à vontade, pois os dias de bicicleta e carona estão fadados a terminar. “Eu tô fazendo minha habilitação, e vou começar a guardar dinheiro no banco pra comprar um carro pra mim”, conta. Além do carro, a independência financeira que planeja para a família passa ainda pela aquisição de uma casa própria, em substituição ao improvisado puxado nos fundos da casa do pai. Atentos, Gabriel e Suzana se cadastraram em mais um programa habitacional desenvolvido na região onde residem. Embora ainda não tenha sido confirmada a participação do casal no projeto, as características e a forma de pagamento da moradia eles já sabem de cor: “É dois quarto, uma sala, uma cozinha e um banheiro. Nós vamos pagar cento e cinqüenta por mês, por uns vinte anos”, fala o rapaz. A parcela não assusta, mas pode, no futuro, ser um empecilho. É que, se houve projeto não concretizado por Gabriel, este foi o retorno aos estudos. O ensino regular e os cursos profissionalizantes que planejava continuar depois de encerrada a internação não lhe acompanharam na saída do Cense. Longe da escola também está Suzana, cujo tempo é dedicado a cuidar de Tânia, que, com um ano, requer atenção constante, inclusive nos horários que seriam reservados aos livros. José e Dora sabem bem a falta que fazem alguns anos de banco escolar. Apenas com a segunda e a terceira séries do Ensino 78 Portas Fechadas Fundamental concluídas, respectivamente, os pais ficam contrariados ao verem os jovens afastados das lições. O lamento do pai vem em forma de depoimento pessoal: “Era pra eu ter feito um curso de eletricista e mecânico, que é a coisa que eu mais gosto, mas não consegui. Eu era piazão e falei: ‘Ah, não vou fazer’. Mas um colega meu fez, e, até esses tempos, era eletricista predial da Refrigeração Paraná... se deu bem, né?”. Eletricista predial, o serviço que garante sucesso ao amigo e causa certa melancolia a José, é uma das profissões que o Cense Fazenda Rio Grande ensina a seus meninos. Gabriel não chegou a aprendê-la, em grande parte, limitado pela matemática, disciplina que integra o curso e que lhe causa especiais dificuldades. Mesmo assim, foi no Centro que adquiriu muitos ensinamentos úteis para conseguir manter-se distante da criminalidade. Desde que encerrou sua internação, há mais de oito meses, o jovem não teve mais conflitos com a Lei, exatamente como prometera à mãe pouco antes de deixar a unidade. … O principal trunfo do Cense Fazenda Rio Grande para impedir a reincidência de seus internos é o atendimento personalizado. Mais que um slogan publicitário bastante comum atualmente, a expressão significa que todo adolescente deve receber atenção individual da equipe técnica do Centro. A determinação faz parte das diretrizes definidas pela Secretaria de Estado da Criança e da Juventude (Secj), órgão responsável pela gestão dos Censes no Paraná, para o trabalho socioeducativo. Reunidas em cinco estudos denominados “Cadernos do Iasp”*, essas orientações e deliberações definem de que forma o atendimento deve ser realizado. “A organização do trabalho deve ter como foco principal as necessidades, possibilidades e potencialidades de cada adolescente. É exatamente para ele que se trabalha, é por sua causa que o Centro de Socioeducação existe; é para que ele possa * Os “Cadernos do Iasp” estão disponíveis na página eletrônica da Secretaria de Estado da Criança e da Juventude do Paraná. O endereço é www.secj.pr.gov.br 79 Portas Fechadas aprender a ser e a conviver que todos se mobilizam, a fim de que seu processo socioeducativo tenha um bom resultado”, estabelece o caderno número dois, nomeado Gestão de Centro de Socioeducação. As condições de o Cense Fazenda Rio Grande respeitar as deliberações podem ser medidas a partir da equação entres os funcionários que emprega e os adolescentes que atende. Do lado de cá, entre profissionais das áreas de saúde, administração e assistência social, possui um time de 46 trabalhadores. Do lado de lá, não ultrapassa o número de 30 jovens internados, sua capacidade máxima. Em dezembro de 2007, data do mais recente relatório detalhado, a unidade abrigava 25 adolescentes, o que resulta numa média de aproximadamente dois profissionais para cada jovem internado. Não é à toa que o índice de reincidência dos egressos da unidade é bastante baixo. Desde janeiro, dos 12 jovens que deixaram o Centro, apenas um está novamente envolvido com a criminalidade, atraído pelo tráfico de drogas, infração pela qual fora detido anteriormente. Os demais, como Gabriel, mantêm-se longe dos delitos. Para que cheguem a essa condição, reconhece a diretora da unidade, Margarete Rodrigues, a infra-estrutura do Cense é fundamental: “É um Centro que, pelo fato de ser menor, tem muito mais possibilidade de intervir junto ao adolescente na sua mudança de vida. Acho que a unidade propicia que o adolescente seja, enfim, um protagonista de si mesmo, da própria história, porque nós temos um conjunto de medidas voltadas pra ele: nós sabemos o nome de todos, conhecemos a família de todos”. Antes de assumir a gerência de um Cense, Margarete, psicóloga formada pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) na década de 1980, trabalhou por 23 anos em penitenciárias de adultos. A diferença entre o trabalho que desenvolve hoje e a realidade que encontrava naquela época é brutal: “No sistema penitenciário, tudo é massificado. Foi por este motivo, inclusive, que eu saí de lá: a atual política é política de contenção. E isso não resolve. Não resolve. O tratamento individualizado é muito mais eficiente. Não tem nem dúvida”, atesta. 80 Portas Fechadas … A comparação proposta pela diretora traz a reboque uma das mais controversas discussões atualmente em curso no parlamento brasileiro: a redução da maioridade penal. Vários foram os senadores que, nos últimos anos, apresentaram Propostas de Emenda à Constituição (PECs) buscando encurtar de 18 para 16 (em certos casos, até 13) anos o limite de inimputabilidade penal definido pela Carta Magna de 1988. Demóstenes Torres (DEM-GO) reuniu todas as proposições em um substitutivo que estabelece que jovens sentenciados por crimes hediondos, como latrocínio, seqüestro e tráfico de drogas, devem ser presos se comprovado seu nível de consciência sobre o ato cometido. O sistema atual, baseado em medidas socioeducativas, valeria apenas para crimes brandos. Na opinião de Torres, a mudança deve ser feita na medida em que “a questão da criminalidade é principalmente de fundo moral” e também porque “um adolescente entre 16 e 18 anos já tem capacidade de discernir sobre atos corretos ou não”, conforme noticia o Jornal do Senado, veículo oficial do parlamento, na edição de 27 de abril de 2007. No dia anterior, o substitutivo havia passado por sua primeira e, até o momento, única votação, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal. O que os 23 parlamentares que compõem essa comissão definem é se a proposta é constitucional e tem condições de ser votada por todos os senadores da casa. No caso da proposta da maioridade penal, por apertados 12 votos a 10, ficou decidido que, sim, ela poderia seguir adiante. Com isso, o substitutivo está agora aguardando a votação. O novo pleito, que deve ser feito em dois turnos e com a participação de todos os senadores, está na iminência de acontecer, embora a conturbada agenda da casa nem sempre permita previsões seguras. Para ser aprovada, a proposta necessita de apoio de três quintos dos parlamentares (o significa 54 senadores, se todos comparecerem à sessão), quando então segue para a Câmara dos Deputados, onde também precisa ser referendada, em dois turnos, 81 Portas Fechadas por três quintos dos políticos da casa (neste caso, 342 parlamentares). Se depois de todo esse trâmite a preposição de Torres não atingir os votos necessários, só poderá ser referendada novamente no ano legislativo seguinte. Mas, em caso de aprovação, uma sessão parlamentar conjunta entre a Câmara e o Senado a promulga, e ela então passa a valer, sem possibilidade de veto por parte do presidente da República. Embora longo, o caminho para que a proposta seja aprovada assusta o advogado René Ariel Dotti, especialista em Direito Penal e ex-presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Para ele, os parlamentares estão conduzindo a discussão de maneira superficial, baseados essencialmente nos recorrentes casos de violência juvenil expostos pelos meios de comunicação: “O Congresso Nacional não tem dado a esse assunto o cuidado que ele exige, do ponto de vista de se cercar melhor de opiniões de especialistas das universidades. Não pode o Congresso legislar a toque de caixa e sob influência dessa mídia sensacionalista, pois ela se alimenta do escândalo e não é raro, independentemente de qual seja a televisão ou o jornal, que eles se nutrem da tragédia para efeito publicitário”. A conseqüência do trabalho parlamentar nessas circunstâncias, acrescenta, é a criação de leis pouco sedimentadas. “Nesses momentos inadequados, o legislador passa a trabalhar sob uma pressão da mídia e produz o que eu chamo de ‘legislação de pânico’.” Quem também rechaça os argumentos pró-redução é Margarete: “Eu acho isso um engodo. Um engodo. Uma visão bem distorcida de quem são esses jovens infratores. Quem propõe isso realmente não conhece nada sobre a juventude ‘desviada’, vamos assim dizer. Eles não são diferentes de todos os meninos que estão lá fora. Eles são apenas mais vulneráveis e estão mais expostos que os outros”, protesta. Quando se refere às condições de vida dos jovens internados, a diretora fala com propriedade. Dados do Cense mostram que, em dezembro de 2007, nenhum dos 25 adolescentes do Centro 82 Portas Fechadas tinha concluído o Ensino Fundamental. Quase a metade, aliás, já havia deixado a escola. A situação também era grave no que diz respeito ao uso de drogas e à condição econômica dos internos: 18 já haviam experimentado entorpecentes ilícitos, enquanto apenas dois tinham rendimento familiar acima de três salários mínimos. Essa é uma realidade que o procurador-geral de Justiça do Paraná, Olympio de Sá Sotto Maior Neto, conhece de perto. Foi a partir de tristes estatísticas como essas que ele, promotor de justiça há 31 anos, decidiu tornar os direitos da infância e adolescência seu objeto de defesa. A ação mais significativa de Olympio nesse sentido foi a participação na elaboração do ECA, justamente o principal mecanismo de defesa de um tratamento digno e adequado aos jovens infratores. Por isso, o procurador endossa o discurso de Dotti e Margarete, e também compra briga em repúdio à proposta de redução da maioridade penal. “Você imuniza o Estado de críticas quando você faz este juízo de analisar o ato infracional como uma questão individual, como uma opção do adolescente. A verdadeira fórmula pra se prevenir a criminalidade é a garantia dos direitos”, argumenta. Usando uma metáfora, Olympio deixa mais claro por que proteger as crianças e jovens do país é o passo decisivo na redução dos índices de violência: “Não há dúvida de que a marginalidade; ou seja, estar à margem dos benefícios produzidos pela sociedade, implica, não raras vezes, no encaminhamento pra delinqüência. O que nós precisamos é destruir esta ponte da marginalidade pra delinqüência, e construir outra – e eu digo que é uma ponte de ouro – da marginalidade pra cidadania”. Gabriel transitou por essas duas pontes, e com a experiência de quem passou parte importante da vida na contramão da Lei, também se manifesta: “Eu acho que não adianta, porque um piá de 16 anos não tem a mente igual a um cara de maior. E se os caras de maior que vão presos e já apanham, imagine os de 16 anos!”. 83 Portas Fechadas Dora aceita o exercício, e se põe a imaginar o futuro dos jovens em conflito com a Lei caso a queda-de-braço seja vencida pelos adeptos da redução: “Se os adolescentes forem presos com 16 anos, eles não vão ter chance pra mudar, porque numa cadeia pra adulto eles vão cair no sofrimento, vão apanhar. E o meu filho, que teve a chance de mudar num educandário, não vai ter a mesma chance. Se ele fosse pra uma prisão, doente como ele tava, com a cabeça confusa, ia ficar de que jeito?”, questiona. A dúvida da mãe não pode ser respondida. E nem precisa. Gabriel respondeu por seus delitos de acordo com as ainda vigentes determinações do ECA, o que lhe permitiu percorrer os primeiros metros da ponte dourada idealizada por Olympio. É verdade que ainda tem muitos passos a dar até a conquista plena da cidadania, mas já pode fazê-lo sem precisar ter a identidade ocultada pelas páginas policiais dos jornais. É muito mais provável, aliás, que agora passe a ser notícia no caderno de classificados, onde são os anunciados os carros que lhe interessam. Aos comerciantes de sobreaviso, o jovem anuncia que busca um Volkswagen Gol, modelo 1994. Se o possante estiver em bom estado, com um preço atraente e condições macias de pagamento, pode até sair negócio. 84 Portas Fechadas 85 Portas Fechadas 86 Portas Fechadas 2. VIDAS NOVAS E VIDAS LOKAS I. GABRIEL II. AMANDA III. ARTHUR Amanda não se sentia muito à vontade quando precisava pular cedo da cama. Em dias de frio, como os que dão as caras na meia-estação curitibana, o caloroso aconchego de leito se torna ainda mais precioso. Mas com os educadores batendo à porta do quarto onde repousava, no Cense Joana Miguel Richa, não restou alternativa à garota que não tratar de levantar. A contragosto, dirigiu-se à sala de Cleusa, sua psicóloga na casa e responsável pelo prematuro chamado, que tinha algumas coisas a lhe dizer. Diante da expressão sonolenta da jovem, a técnica ainda propôs adiar o conversa: “Quer que eu te chame mais tarde?”. Amanda, com algum mau-humor e muita ansiedade, respondeu: “Agora pode falar. Só espero que não seja notícia ruim”. O medo da adolescente era ser informada de que a tão esperada sentença que encerraria sua medida privativa de liberdade não tivesse sido expedida pelo juiz. Cleusa percebeu o olhar repleto de temores, mas teve firmeza suficiente para encará-lo e anunciar: “Infelizmente você pegou mais seis meses”. O sorriso que a psicóloga abriu instantes depois de dar a notícia levantava em Amanda a suspeita de que alguma estava 87 Portas Fechadas errada. Qual o quê! Era apenas uma pequena travessura da mulher, que logo se pôs a esclarecer o gracejo para desfazer o abatimento instantâneo que já era notado na garota: “Tô brincando! Hoje mesmo você tá indo embora. Chegou a tua liberação”. Exatos 268 dias depois de ser detida em frente de casa, Amanda estava novamente em liberdade, ainda que assistida, conforme prevê a medida que lhe caberia cumprir a partir de então. Mas agora poderia fazê-lo sentindo o calor de uma cama que não usava há muito tempo, a sua. … A novidade foi transmitida à mãe por telefone, instantes depois de aliviado o susto. Enquanto festejava a saída junto de Aldaci, Amanda precisou interromper a conversa para dar vazão a outro dos sentimentos que lhe surgiam naquela arrebatadora manhã de outono. “Não agüentei de felicidade. Acabei chorando!”, conta. Telefone no gancho e a adolescente voltou ao alojamento para recolher seus pertencentes e tomar em mãos os materiais de higiene que usaria para tomar o último banho na unidade. O dia ainda amanhecia quando a jovem, ostentando cabelos molhados, encontrou-se com as colegas na sala de refeições para tomar o café-da-manhã mais saboroso que o Cense já lhe oferecera. Como demarcava seus momentos finais na casa, o desjejum foi acompanhado por abraços e lágrimas. “Teve muita menina lá que chorou. Levantou e foi me abraçar falando que a hora que saísse, ia na minha casa”, conta, em referência especial às adolescentes que moravam próximas de sua residência. E foi justamente uma de suas conterrâneas, Priscillinha, que protagonizou a mais emocionada das despedidas. Esperando o primeiro filho, a jovem aproveitou o ensejo e convidou a amiga Amanda para ser também sua comadre: “Ela tava grávida, e pediu que eu batizasse o filho dela”. Antes de comemorar a própria despedida, a futura madrinha 88 Portas Fechadas já tinha celebrado o adeus de muitas internas. Por isso, conhecia com exatidão o anseio provocado pela partida de uma colega: “Você fica feliz porque tá vendo que ela tá indo embora e que uma hora vai chegar o momento da gente também”. Satisfeita também por renovar as esperanças das excompanheiras, Amanda deixou o Cense para tomar o rumo de casa. O ponteiro do relógio indicava oito horas. Em questão de mais seis ou sete, estaria novamente junto da família, conduzida por um carro destacado pelo Cense para a viagem, visto que ainda estava sob os cuidados dos profissionais da unidade. Depois de percorrer os quase quinhentos quilômetros que separam a capital do Oeste, num corte horizontal que atravessa o Estado praticamente de fora à fora, o motorista estacionou o veículo em frente à casa da garota. Campainha tocada, palmas batidas, e nada. Ninguém em casa. Amanda lembrou então que a mãe poderia estar no Fórum da cidade, onde se encontrava o documento que garantiria sua liberdade. A suspeita se confirmou. Chegando ao juizado, a jovem logo avistou a mãe, com quem trocou apressados carinhos antes de assinar a papelada que a aguardava na mesa do magistrado: “Ah, demos um abraço, mas o que eu queria mesmo era assinar logo aquele papel e sair do Fórum antes que o juiz mudasse de idéia”, revela, em tom espirituoso. Com o documento rubricado, a quitação definitiva de seus débitos judiciais chegava à última etapa: a Liberdade Assistida, cujas ações, em Cascavel, são desenvolvidas pela Prefeitura Municipal. O destino imediato de Amanda, entretanto, não era o do Paço, mas o de casa. No caminho entre o Fórum e a residência, a mãe pôde observar com mais atenção os tons dourados que coloriam o cabelo da filha. Eram luzes, feitas no Cense, com auxílio das colegas freqüentam o curso de cabeleireira: “Quando tem festa lá, tipo Natal ou Dias das Mães, pode pintar o cabelo. Quase todas pintam, acho que só as meninas que estão grávidas que não”, conta. 89 Portas Fechadas Mal acomodou pela casa as bagagens que trouxera de Curitiba, e a adolescente já se mandou para a rua a fim de desfrutar da liberdade recém-conquistada. A mãe é testemunha da gana que envolvia a garota: “Saiu bem louca achar conhecido”, relembra, em meio a risos. … O ponto de encontro escolhido para as primeiras prosas do lado de fora do Cense foi um mercado que fica nas imediações de casa. Há no local, perto de onde são guardados os carrinhos de compra, um convidativo pedaço de muro que chega à altura da canela. Parece feito sob medida para quem busca um assento que possa viabilizar um bate-papo. Ao se acomodarem na bancada improvisada e verem a amiga novamente entre si, os amigos reagiram com surpresa. Inicialmente pelo próprio retorno, inesperado para a ocasião: “Eles achavam que eu fosse sair mais pra frente, dali a quinze dias ou uma semana, e quando viram, eu já tava lá”. Em seguida, pelas novidades na aparência da moça: “Falaram: ‘Nossa, você tá diferente. Meio gordinha... cabelo loiro...’”. Amanda então lhes explicou de onde vinham as transformações – citou a destreza das adolescentes que tingem os cabelos das colegas e esclareceu como a rotina do Cense, com poucas atividades físicas intensas, contribui para o aumento de peso. Eram os primeiros relatos que fazia sobre a temporada de internação. E para acompanhá-los, a jovem devolveu vida a um hábito que deixara adormecido por todo aquele período: fumar. “Naquela noite já peguei dinheiro e comprei cigarro”. A rapidez com que dera suas tragadas impressionou até os colegas, que também tinham o vício. “Os meus amigos disseram: ‘Meu Deus! Você sai e já vai começar a fumar, em de vez de parar’”. Manter-se longe dos velhos comportamentos não era tarefa simples, como a própria adolescente previa antes de deixar a unidade. “Não vai ser fácil chegar e falar: ‘Não, eu mudei de vida’ e começar tudo diferente”, calculou à época, com elevado grau de 90 Portas Fechadas acerto. Na primeira noite após o regresso, algumas amigas já a convidaram para dormir fora. A mãe não gostou necas da idéia, que lembrava antigos costumes da jovem, e tratou de frear os planos: “Quê? Vai nada!”, reagiu com vigor. Mas nem sempre era possível afastar o assédio e segurar a filha em casa. Nos finais de semana, por exemplo, a garota voltou a acompanhar os amigos na balada tradicional da turma, a Mahay Club. “É uma danceteria bem vileira... não vai muita gente de classe alta, é mais classe média e classe baixa. É bem o encontro dos amigos”, detalha. Entre os parceiros de noitada, encontrava-se o irmão Fábio, que havia saído do Cense Cascavel II quase ao mesmo tempo em que ela deixara o Centro Joana Richa. Em liberdade, os dois tinham hábitos e amigos em comum, combinação que em pouco tempo colocou–a em contato com Serginho, um dos integrantes da trupe. Algumas conversas e baladas depois, e os dois já estavam de caso. Mesmo acompanhadas pelo novo namorado e pelo irmão, as saídas da moça não deixavam de causar preocupações à mãe, que alimentava dúvidas quanto à segurança da danceteria. “Essa Mahay que eles gostam de ir é perigosa. A Amanda já se envolveu numa briga lá. É muita encrenca. O que eu vejo de gente que morre...”, protesta. Receio parecido despertava o filho, cuja rotina rendia-lhe constantes dores de cabeça: “A verdade é a seguinte: o Fábio não para em casa. Ele se enfia num carro com um monte de piazada e sai pra baixo e pra cima, numa meia dúzia”. Aos olhos da mãe, o comportamento de ambos tinha um quê de semelhança à forma como agiam quando infringiram a Lei. Notava as dificuldades de Amanda para romper velhos costumes, e percebia que o caso do filho era ainda mais grave. … As desconfianças sobre um novo envolvimento marginal surgiram quando o rapaz, sem fonte estável de renda, desembestou 91 Portas Fechadas a consumir eletrônicos. “Ele comprava celular e radinho de ouvido sem eu dar dinheiro. Ele aparecia com coisas que não tinha condições de comprar, porque não trabalhava”, explica As suspeitas de Aldaci recaíam sobre um dos delitos mais comuns entre os jovens do Oeste paranaense, o tráfico de drogas. Próximo da fronteira com Argentina e Paraguai, o local é trânsito freqüente de substâncias ilícitas. A pulga saltitava ainda atrás da orelha mais diante da conduta de alguns amigos do filho, que eram vistos constantemente tragando cigarros de maconha. Anunciando-se pouco a pouco, a notícia enfim se consolidou. Bastou uma batida policial e, na companhia dos parceiros com quem costumava andar, Fábio foi detido sob a acusação de três infrações: formação de quadrilha, porte ilegal de arma e tráfico de drogas, tal qual antevia Aldaci: “Esses dias, eu falei pra ele: ‘Tô vendo que você vai ser preso porque não pára de andar com esses meninos’. E ele falou: ‘Ah, a mãe fica gorando a gente’. Eu respondi: ‘Que gorando! Mãe pressente que isso vai acontecer’”. A nova apreensão aconteceu menos de três meses desde o encerramento da mais recente internação do garoto; rapidez digna de assustar a previdente Aldaci: “O Fábio faz tempo que vive indo preso. A gente até desacostumou com ele aqui, até estranha. Eu falo que ele vem tirar férias e volta pra lá”. Tamanha assiduidade provoca também receios quanto ao futuro do filho: “Ah, o meu medo é que ele vire um bandido de carteira, que vá passar a vida inteira preso. Ou então o que ele não chegue nem aos vinte, né? Porque a polícia daqui já está enjoada da cara dele”, teme. Para Amanda, a captura teve peso dobrado, já que entre os demais jovens apanhados, inclui-se o namorado. A detenção, aliás, coloca em risco a relação do casal, junto há cerca de um mês, pois como cumpre medida de liberdade assistida, a jovem está impedida de ver o rapaz: “Vamos ter até quando agüento esperar”, reage. Por coincidência, a internação provisória acontece no Cense Cascavel I, o mesmo onde ela, um ano antes, passou seus primeiros dias de reclusão. 92 Portas Fechadas A proibição imposta à Amanda se aplica também a Fábio, que, então, só conta com as visitas da mãe e do irmão mais novo, Gilberto. O problema é que, nas vezes anteriores em que visitaram uma unidade, os dois entes conheceram de perto os rígidos métodos adotados para se entrar na casa. As regras são definidas pelo Caderno do Iasp número quatro, “Rotinas de Segurança”, que, ademais de outras exigências, estabelece o seguinte: “Os visitantes e seu vestuário devem ser rigorosamente revistados”. Gilberto não se adaptou ao invasivo procedimento, que exige nudez completa, por exemplo, e decidiu não mais repetir a experiência: “Ele falou que não vai ficar tirando a roupa pra visitar irmão”. A mãe, assim, figura como única familiar apta a encontrar o filho, e por isso teve de se acostumar à falta de privacidade imposta pela revista: “Eu não ligo. Falo que é que nem médico: tem que tirar a roupa”. É verdade que Amanda não mais exigia da mãe esforços como esse, mas também é fato que a jovem ainda demandava atenção constante de Aldaci. Pouco depois de voltar a Cascavel, ela foi mais uma vez convidada para ganhar dinheiro de forma ilícita. Não se tratava de outro corajoso furto, mas do contrabando de mercadorias falsificadas, atividade comum entre jovens de Cascavel. Novamente, o caminho é a fronteira: cada ida ao Paraguai é recompensada com duzentos e cinqüenta reais. O montante animou algumas amigas de Amanda, que a invitaram para tentar uma viagem. O plano não foi realizado graças à intervenção de Aldaci: “Eu falei que se eu desconfiasse que ela tava indo pro Paraguai, ia mandar a polícia pegar ela na volta; não na ida, na volta, que é pra perder as coisas!”. Precisando acompanhar a internação de Fábio e impedir novas aventuras de Amanda, Aldaci simboliza com precisão os questionamentos feitos em relação à eficácia da privação de liberdade. Muitos são os teóricos e profissionais ligados ao tema que discutem os resultados da medida. Um dos principais é o sociólogo Pedro Bodê, cético quanto à validade de tratamentos 93 Portas Fechadas baseados na reclusão. “A noção de ressocialização tem a idéia de melhorar as pessoas, por isso é que vivem inventando palavras novas, como reeducando e readaptando. Todas indicam a idéia de que a prisão melhorar o indivíduo, mas ela tem por fim te injuriar, te tirar direitos; enfim, te tornar pouco mais que um objeto. E como uma instituição que é feita pra injuriar pode melhorar? Há autores que falam que isso é como você curar um resfriado dentro de uma geladeira. A prisão é uma forma de punição que não tem eficácia nenhuma”, opina. As conseqüências da clausura para os jovens são ainda mais intensas, já que a metodologia de tratamento infracional prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), avalia o estudioso, possui falhas: “O Estatuto prevê possibilidade de encarceramento com muita facilidade. Você tem hoje, entre os encarcerados, menos de 8%* que cometeram homicídios. Todo o restante cometeu delitos de menor potencial ofensivo, como tráfico. Então eu acho que um regulamento que tem 8% de homicidas é um instrumento excessivo de encarceramento”. A diretora do Cense Fazenda Rio Grande, Margarete Rodrigues, identifica problemas de outra natureza. Para ela, o equívoco não está nas determinações do ECA, mas na maneira como o Estatuto é interpretado pelos magistrados que trabalham com jovens: “Eu acho que a medida socioeducativa de restrição de liberdade, muitas vezes, é só pra punição. Você vê: temos casos em que o menino já absorveu muito bem a medida. Então a gente faz um relatório pedindo a desinternação, com toda a explicação de como ele viveu o tratamento, e a resposta da Vara (da Infância e da Juventude) diz apenas o seguinte: ‘Foi muito pouco tempo’. Então é meramente punitivo”, endossa. No caso das garotas do Cense Joana Richa, Mariselni percebe outra implicação negativa: o estigma lançado sobre as internas quando estas retornam ao convívio social. No momento seguinte ao término do tratamento, a unidade busca uma colocação * As estatísticas fazem parte dos estudos desenvolvidos por Pedro Bodê na Universidade Federal do Paraná (UFPR). 94 Portas Fechadas profissional para as adolescentes, e é neste contato com empresas e entidades que possam oferecer as oportunidades requisitadas que a diretora, não raro, depara-se com reações preconceituosas: “Eles já sabem que são adolescentes que cumpriram medida, então quererem saber o que a adolescente fez... É utópico a gente dizer que eles não têm curiosidade sobre isso. Existe um preconceito”. Na iminência de completar dois meses de liberdade, Amanda teria possibilidade de tirar a história a limpo. É que o Cense, apesar dos questionamentos que recebe e da autocrítica que faz, conseguiu encaixá-la em um emprego, dando-lhe a chance de ganhar dinheiro sem precisar pilhar lojas ou transportar contrabandos. … A vaga foi conseguida por meio da Lei do Menor Aprendiz. Promulgada em 2000, ela obriga empresas a contratarem jovens com idade entre 14 e 18 para o desempenho de atividades de caráter educativo, semelhantes a de um estágio. O projeto faz parte de um programa de acompanhamento de egressos criado em 2007 pela Secretaria Estadual da Criança e da Juventude (Secj), responsável pela administração dos Censes no Paraná. A iniciativa funciona em parceria entidades como escolas, centros profissionalizantes, Organizações NãoGovernamentais (Ongs) e mesmo empresas privadas, que colaboram oferecendo seus serviços aos adolescentes. Amanda compreendeu todas essas explicações assim que assumiu o cargo de auxiliar de cobrança da Companhia Paranaense de Energia (Copel), uma empresas das participantes do Aprendiz. A função que lhe foi reservada não figura nem de longe entre as mais altas da empresa, mas permite que, pela primeira vez, a jovem tenha uma fonte de renda da qual possa se orgulhar: "É meio saláriomínimo, mas eles dão vale-alimentação, cesta básica e meio-passe. Tá bom, né?” Para a família, está ótimo, pois parte dos benefícios é trazida 95 Portas Fechadas para casa, como conta Amanda: “O vale-alimentação dou pra minha mãe”. O restante do dinheiro também já tem destino certo: “Gasto em roupa. Ah, e como eu vou fazer 18 anos, tava pensando em começar a carteira de habilitação, pra pelo menos ter alguma coisa, senão gasta, gasta e, quando vê, não tem nada”. A carta de motorista e as novas vestes lhe exigem dedicação de meio período, entre terça e sexta-feira. A exceção fica por conta de segunda, dia em que, no lugar de bater cartão, a jovem se dedica a assistir às palestras e discussões que fazem parte do seu programa de Liberdade Assistida, realizado sem muito entusiasmo: “É chato. Mas fazer o quê? Tem que ir”, reclama. Amanda terá de aturar os encontros que considera maçantes por mais 90 dias, quando a medida completará seis meses e então chegará ao fim. O que não terminará tão cedo é a rotina de despachar documentos e boletos na Copel, pois o contrato entre a jovem e a empresa vence apenas no segundo semestre de 2009. “Quando completar um ano, tenho que sair. Só que pelo menos já fica na carteira registrado que eu trabalhei como estagiária. É uma coisa a mais pra colocar no currículo mais tarde, né?”. Os planos de emendar um emprego ao estágio são um bom indicativo de que Amanda tem outros horizontes além da reincidência. A constatação é reforçada também pelos frustrantes resultados do delito que cometeu, cujo desfecho ela ficou sabendo tão logo deixou o Cense. À época, a jovem ainda nutria esperança de lucrar algum, pois, instantes antes de ser apanhada pela polícia, enterrou os celulares no lote de casa. Coube ao irmão menor desenterrar os aparelhos e entregálos a Pedrinho, único participante do assalto que se manteve solto. O rapaz, segundo haviam combinado, usaria de sua liberdade para vender os trinta e seis telefones e dividir o dinheiro com os parceiros que fizeram o serviço. Para a frustração de Amanda, o jovem quebrou o acordo. “Ele vendeu os celulares, gastou com mulherada e com uma moto, 96 Portas Fechadas e não me pagou nada”. Ruíram ali as derradeiras esperanças de obter alguma vantagem com o delito. Terminou também o vínculo amistoso entre os ex-namorados. "Eu já vi ele na rua, mas um nem olha pra cara do outro", revela. O esquecimento dos antigos delitos e dos velhos parceiros, somado aos projetos de conseguir um emprego fixo, contrapõe os riscos de reincidência a que Amanda está exposta, representados pela atual condição do irmão e do namorado. As perspectivas de manter distante das infrações remetem, então, a novas reflexões sobre a eficácia da medida socioeducativa. Vêm à tona agora os fatos e argumentos que dão crédito ao tratamento. Quem começa é Mariselni, concedendo tons estatísticos à conversa. De acordo com o relatório anual produzido pelo Cense Joana Richa em 2007, apenas duas entre as 27 garotas da unidade estavam privadas de liberdade pela segunda vez. A cifra orgulha a diretora: “Nosso índice de reincidência é de 7%. Então se subentende que a grande maioria está reinserida e que não voltou a infrigir a Lei”. Na avaliação do procurador-geral de Justiça do Paraná, Olympio de Sá Sotto Maior Neto, tais índices são possíveis porque o Estado está imune à grande parte dos problemas que afetam os Censes distribuídos pelo país: “Falando do Brasil como um todo, nós ainda temos muitas unidades na mesma concepção das Febens, da violência, que faz com que adolescente que nem eram violentos acabem absorvendo a idéia de que é através da violência que você resolve os conflitos do cotidiano. No Paraná, diferentemente, nós caminhamos para a construção de um sistema socioeducativo de acordo com as previsões do Estatuto da Criança e do Adolescente. É um processo que não está acabado, não com a velocidade que a gente gostaria, mas o Paraná está numa posição de vanguarda”, conclui. Motivada pela experiência da filha, Aldaci também participa do debate. Para ela, a internação foi bastante benéfica, pois rompeu com boa parte dos hábitos negativos de Amanda: “Eu acho que foi 97 Portas Fechadas uma experiência pra ela. Ela conheceu muita gente, viu coisas diferentes, viveu um tempo longe das pessoas daqui e voltou mais calminha, mais tranqüila. Porque, por exemplo: se aquele assalto tivesse dado certo, se eles tivessem vendido os celulares e pegado um dinheiro, eles iam praticar outros, já que aquele deu certo, né?”, especula. … Todas essas reflexões formariam um prato cheio para as Unidas MC’s, o trio de rap que Amanda integrou enquanto se encontrou detida. Mas desde sua saída do Cense, os microfones se calaram. “Paramos, né?”, entristece-se. O empecilho para a continuidade do projeto não é a internação, já que todas as unidas estão em liberdade. O que inviabiliza novas cantorias e contradiz o nome do grupo é o mais óbvio dos contratempos, como conta adolescente: “Não é por falta de vontade. Depende de dinheiro pra gente poder se encontrar e voltar. É por isso eu empaca”. Frente ao problema, o jeito é sustentar a amizade com conversas virtuais. Sempre que deseja se conectar à rede, Amanda dá um pulo na lan-house que fica a alguns metros de casa. Deixa sobre o caixa os dois reais que lhe valerão uma hora de interatividade e, já no controle do mouse, apressa-se em abrir um programa do tipo Messenger. È por esse meio que a jovem não perde o contato com muitas das amigas que moram distante, inclusive as ex-colegas do Colégio Guido Straube, em Curitiba. Foi com os dedos a bater no teclado, aliás, que Amanda pôde finalmente sair do anonimato que sustentava diante dos ex-companheiros de classe. Deixou tudo em pratos limpos, e foi compreendida: “Não, tudo bem. Eu entendo”, respondeu-lhe uma das curitibanas brindada com a verdade. Nos computadores que aluga na lan, Amanda também costuma abrir o perfil que mantém na página de relacionamentos Orkut. Quem visita o avatar da garota, depara-se com uma das mais precisas sínteses de seus contrastantes rumos desde a internação. A dualidade parte das definições que a jovem faz sobre 98 Portas Fechadas si mesma, a um só tempo pacíficas e rebeldes. De um lado, usa doces palavras e demais sinais gráficos para se apresentar como “?penas uma pequena com sonhos de uma grande menina, vivendo num mundo surreal e estressante, tentando apenas ser 'feliz'{?}”. De outro, lança mão de expressões dotadas de certo teor de revolta para garantir que é “Vida loka até o fim”. E dessa forma, como que seguindo por uma corda bamba cercada de antagonismos, Amanda vai se equilibrando, enquanto os ventos continuam a soprar forte no Oeste, ora pra lá, ora pra cá, formando uma corrente de ar ainda sem rumo definido, exatamente como o futuro das Unidas MC’s. 99 Portas Fechadas 100 Portas Fechadas 2. VIDAS NOVAS E VIDAS LOKAS I. GABRIEL II. AMANDA III. ARTHUR Era dia de Brasil e Argentina. As duas tradicionais seleções colocariam a rivalidade em campo para definir quem passaria à final do torneio olímpico de futebol. A disputa ocorreria em Pequim, mas mexia com os nervos de torcedores a quilômetros de distância, inclusive na pequena Piraquara. Ali o educador social Francisco Miranda, como fazia todas as manhãs, coordenava o trabalho de cinco adolescentes na horta do Cense São Francisco, entre eles Arthur. Depois de um período de interrupção, conseqüência de uma tentativa de fuga, as atividades haviam sido retomadas há pouco. Naquela terça-feira, contudo, o instrutor decidira que a turma deveria encerrar os afazeres mais cedo. Como bom patriota, não queria perder um só instante do jogo. Os adolescentes se entretinham na labuta com a terra quando Francisco comunicou-lhes a decisão, certo de estar fazendo um agrado aos jovens. Arthur, surpreendentemente, não recebeu a proposta com satisfação, e insistiu em respeitar a rotina habitual: “Vamos terminar o que a gente tá fazendo”, sugeriu. O pedido não deixava de soar estranho, pois eram raras as oportunidades que os jovens do Cense tinham para assistir a uma partida inteira de futebol, ainda mais da Seleção, ainda mais contra a Argentina, ainda mais valendo vaga na final. 101 Portas Fechadas Não foi preciso que o professor fizesse muitas conjecturas acerca da postura de Arthur, pois bruscamente tudo se esclareceu. Já se preparando para concluir a jornada de trabalho, Francisco notou que um automóvel se aproximava da horta. Suspeitou ser apenas mais veículo se dirigindo às dependências do Centro, o que é bastante comum, dado o elevado número de funcionários da instituição. Mas depois de chegar ao ponto final da estrada, o carro fez meia-volta e postou-se novamente ao lado dos canteiros, agora com as portas abertas. Arthur, neste momento, não estava mais com as ferramentas na mão. Já havia disparado a correr – freneticamente, pois sabia que alguns obstáculos lhe esperavam à frente. “Tem uma cerca de arame farpado. O Arthur pulou por baixo e fugiu”, detalha Renata Campos Mendonça, psicóloga responsável pelo atendimento do adolescente. Já do lado de fora da horta, o jovem entrou no carro que o aguardava e, conforme havia planejado, deixou o São Francisco em alta velocidade. Antes, teve tempo ainda de oferecer carona a um colega de atividade que, vendo toda a movimentação, aproveitou o ensejo para fugir também. “Acho que esse outro que não tava no esquema”, supõe a psicóloga. O fato é que ambos fugiram. As evasões poderiam ter sido evitadas à custa de uma singela palavra: “Fuga”. É isso que os funcionários do Cense devem pronunciar em voz alta, ou mesmos aos gritos, se preciso for, para que os policiais responsáveis pela segurança da unidade, que ficam instalados em bases nas cercanias do Centro, partam em busca do jovem que escapou. No caso de Arthur, a ação não foi possível porque Francisco era novo na função, e, ante o misto de desespero e surpresa que sentiu ao ver os internos em fuga, olvidou-se do procedimento. “A horta fica do lado da polícia, e os policias viram eles correr, mas não puderam fazer nada”, explica Renata. Manhã conturbada aquela de agosto. Em Pequim, o Brasil perdia para a Argentina por goleada. Em Piraquara, o São Francisco via escapar dois de seus internos. Decepções das grandes. 102 Portas Fechadas … Renata, certamente, era quem mais se achava desapontada, especialmente depois do que acontecera nos dias que antecederam a fuga. Cerca de um mês antes do fato, as autoridades incumbidas de avaliar o caso haviam recebido do Cense o terceiro relatório comportamental sobre o garoto. Elaborado por Renata e Rossana, assistente social que também atendia Arthur, o documento expunha detalhadamente os avanços obtidos por ele durante o tratamento, e por isso deixava a psicóloga confiante no encerramento da medida. A avaliação seria feita por uma juíza com quem Renata conversara pessoalmente dias antes, o que fortalecia ainda mais sua convicção: “O relatório é passado pra promotoria, pra defensoria e pro juiz. A decisão é do juiz, que pode ir com a promotoria ou com a defensoria. Normalmente eles conversam e discutem isso. Nesse caso, eu tinha quase certeza que a juíza ia com o meu parecer, porque a gente já tinha discutido esse caso”, revela. Só que, por uma coincidência de datas, a magistrada entrou em férias justamente nos dias em que o relatório chegou à sua mesa. A decisão, então, ficou a cargo de uma árbitra substituta, menos convencida da argumentação da psicóloga. Assim, a canetada que poria novamente Arthur em liberdade não veio: “Deu continuidade de medida”, sintetiza Renata, em tom de surpresa. No dia seguinte, a técnica chamou o jovem à sua sala com a complicada atribuição de lhe deixar a par da resolução. Com o relatório em mãos, temia as possíveis reações do garoto: “Acho que o Arthur vai ter que sair da horta, porque senão vai fugir”, comentou com Rossana instantes antes de conversar com o rapaz. Logo que ele chegou a sua sala, Renata novamente empunhou o documento e se pôs a ler a justificativa das autoridades. Num primeiro momento, como previa, o jovem ouviu os argumentos com certo inconformismo. Mas estava coberto por uma raiva apenas momentânea, pois, em questão de minutos, já transparecia 103 Portas Fechadas serenidade. E foi assim, tranqüilo, que tomou o telefone em mãos e ligou para a mãe, repassando a informação: “Eu tô de boa, mãe. Fica tranqüila que vou ficar sossegado, não vou fazer nada”, falou. O modo lúcido como acolheu o fato se devia também à outra notícia transmitida por Renata. Enquanto explicava toda a situação ao garoto, a psicóloga deixou claro que a decisão da juíza não era definitiva. Havia possibilidade de se fazer um pedido de revisão do relatório e também de se dialogar novamente com a magistrada – tarefas que prontamente se comprometeu a realizar, dando sobrevida às possibilidades de saída de Arthur. Seria preciso, contudo, aguardar aproximadamente um mês até a chegada da nova resposta. O jovem se manteve firme no aguardo da réplica praticamente até o último momento, como rememora a psicóloga: “Eu disse pra ele na segunda-feira: ‘Arthur, a sua resposta está pra vir amanhã!’”. Mas, como bem viram os colegas de horta no dia seguinte, o garoto não suportou estender a espera. … Como presumia a psicóloga, o novo parecer dos magistrados veio mesmo na terça-feira. A reavaliação do processo coube à juíza titular, que regressara do repouso e, pelo visto, não se esquecera da conversa que tivera com Renata. “A juíza contou que ia aceitar o meu pedido e liberar o Arthur”, relembra a técnica. Era dolorido para ela concluir que, por questão de algumas horas e um tanto mais de paciência, a internação de Arthur, que já perdurava por um ano e meio, deixasse de ser encerrada. “Eu fiquei muito mal, porque sei que ele tava pronto pra ir embora”, assume. Triste também era olhar para os planos que aguardavam o rapaz do lado de fora, deveras promissores. Conta Renata que, em parceria com assistentes sociais de Piraquara, onde mora a família do jovem, o Cense São Francisco buscava encaixá-lo no Projeto Aprendiz. O contato para viabilizar 104 Portas Fechadas a vaga fora feito junto a diversas empresas, com especial atenção às estatais, que abrem espaço para adolescentes em conflito com a Lei mais facilmente. Em pouco tempo o trabalho de prospecção surtiu efeito: a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) abriu uma vaga, e a oferecia a Arthur. O problema é que há uma semana o rapaz não estava mais no Centro. A oportunidade, então, seria repassada adiante, e o rapaz perdia uma chance rara: “O Arthur ia ser o primeiro menino do São Francisco a ser inserido no Projeto Aprendiz mesmo estando internado. A proposta é que todos os dias ele saísse pra trabalhar e depois voltasse pra cá”, conta Renata, com ar de lamento. O jovem até sabia que estava na iminência de ser contemplado com uma vaga do projeto, mas fazia pouco caso. Nos dias que precederam a fuga, a descrença em novos horizontes era total, como recorda a técnica: “Ele achava que não ia conseguir a vaga. Chegou na última semana, ele falou: ‘Ah, não vai sair nada, não vai dar nada certo!’”. Ante o ceticismo do garoto, a direção da casa buscava novas formas de mantê-lo estimulado. Para isso, lançou mão da principal ferramenta motivadora do Cense: o Plano Personalizado de Atendimento (PPA), documento que sela o compromisso do interno com o afastamento da criminalidade. “É um programa onde o próprio garoto nos diz o que quer pra vida dele e que compromissos se propõe para começar a vivenciar coisas saudáveis e valores morais positivos”, detalha o diretor do Centro, Júlio César Botelho, entusiasta da idéia. Além de possuir caráter estimulante, acrescenta Júlio, o Plano também traz reconhecimento público ao interno que o subscreve. Era perfeito para o momento que Arthur vivia: “Os garotos que assinam o PPA já estão em condições de se propor algo, de se propor metas. Estão eles estão numa condição cultural e intelectual melhor que aqueles que ainda não conseguem estabelecer essas metas a si próprios”. 105 Portas Fechadas No caso de Arthur, a cerimônia de assinatura do documento, que conta com convidados e um pequeno coquetel, fora realmente especial. Na semana anterior, o rapaz havia, na companhia de uma turma de internos, colorido parte dos muros da unidade, atividade pela qual também seria homenageado. Renata, que presenciou a cerimônia, lembra os detalhes de tudo que aconteceu: “Pegaram pela lista e o primeiro nome era o dele. Então chamaram o Arthur pra representar os meninos e pra ser homenageado. E bem na hora em que ele subiu e começaram os elogios, a mãe dele entrou. Foi muito legal”. Os aplausos e abraços que recebeu, porém, não foram suficientes para persuadi-lo a desistir da fuga, que ocorreria na semana seguinte. E a surpresa advinda da evasão do jovem não era a única novidade que chegaria aos ouvidos de Renata naqueles dias. … Exatas duas semanas após o episódio, o telefone do São Francisco voltou a tocar para trazer novas informações sobre o rapaz. Até então, os profissionais do Centro estavam às cegas quanto a real condição de Arthur, pois nem a família sabia de seu paradeiro. As incertezas tiveram fim quando, do outro lado da linha, autoridades policiais avisaram que haviam recapturado o jovem. A notícia despertava dois sentimentos opostos na equipe técnica do Cense: de um lado, oferecia tranqüilidade, pois assegurava que o adolescente estava a salvo e que seu tratamento poderia ser retomado; de outro, causava preocupação, pois a nova detenção fora fruto de mais um delito – um assalto, mesma infração responsável pela primeira internação de Arthur. Desta vez, entretanto, a ação não teve como alvo grandes residências, como ocorria outrora; mas sim uma dupla de universitários de São José dos Pinhais, município a Leste de Curitiba. Em uma motocicleta, os dois voltavam da faculdade para casa quando Arthur e mais três rapazes, também sobre duas rodas, 106 Portas Fechadas aproximaram-se. O quarteto, que estava organizado em duas duplas, então sacou um par de armas e anunciou o assalto, com a intenção de furtar o veículo das vítimas e rapidamente bater em retirada. Mas o plano começou a ser frustrado quando os dois acadêmicos reagiram com vigor e, inesperadamente, revelaram que, além de estudantes, eram também policiais militares. O anúncio deflagrou uma intensa troca de tiros, e a maior parte dos disparos foi direcionada à moto que Arthur guiava. As conseqüências do confronto foram terríveis: baleado quatro vezes, o rapaz viu o amigo que estava consigo ser atingido por mais uma porção de disparos e, gravemente ferido, falecer ali mesmo. Debilitado e em choque, Arthur não pôde acompanhar os colegas da outra moto, que conseguiram escapar. Estático, o rapaz foi detido pelos policiais, que nada sofreram além de alguns arranhões. Como sabiam que o adolescente precisava de cuidados médicos, os soldados levaram-no diretamente ao Hospital Cajuru, para que recebesse os primeiros socorros. Dali, o rapaz voltou a tomar o rumo da internação: primeiro, foi encaminhado ao Juizado de Menores; mais tarde, seguiu à Delegacia do Adolescente; por fim, regressou ao São Francisco. Toda a versão da história tem o carimbo da PM e é referendada pela imprensa, mas não pode ser contestada por Arthur. Até o momento, o jovem está impedido de comentar publicamente o caso. A proibição parte de Júlio, diretor do Cense, que busca mantê-lo afastado de entrevistas e depoimentos para não que “a nova infração não seja valorizada”. Como o retorno à unidade ainda é recente, Arthur está privado até mesmo de falar com Renata. O isolamento faz parte da sanção disciplinar que recebeu por conta da fuga e da reincidência, e é quebrado apenas nas conversas que tem com o médico psiquiatra da casa e responsável por seu atendimento nesse período. 107 Portas Fechadas A penalidade também se reflete no local em que o garoto está instalado: ao contrário da primeira passagem pelo Cense, quando ocupou um alojamento da ala A, o jovem permanece agora em um abrigo da ala C, destinada a jovens que precisam se quedar afastados do convívio comum. “É muito diferente. É um alojamento individualizado, onde os meninos fazem atividades em pequenos grupos. Mas ele, como está em contenção, não participa de atividade nenhuma”, detalha Renata. O tratamento dispensado ao garoto gera indignação na mãe do rapaz, Laura. Para ela, a mudança no alojamento e na forma do atendimento psicológico tem sido prejudicial ao filho. Mas as críticas de Laura terminam por aí. Bastante abatida com a ocorrência e suas conseqüências, quase fatais para o filho, ela prefere guardar silêncio sobre tudo que aconteceu. Renata, ao contrário, tem muito interesse em esclarecer tudo, principalmente as motivações de Arthur. Para isso, contudo, terá de esperar que o período de isolamento do jovem termine, o que deve acontecer em breve. … Mesmo sem ficar face a face com o garoto, a psicóloga já delineia algumas explicações para a triste sucessão de acontecimentos iniciada naquela manhã de Brasil e Argentina. Colhendo informações junto ao psiquiatra e aos demais profissionais que têm algum contato com o adolescente, ela começou lentamente a colocar os pingos nos is. A primeira teoria que sustenta é a de que a fuga foi provocada por um sentimento de revolta contra o Cense, que com freqüência alimentava suas expectativas quanto às possibilidades de saída. “Ele fugiu jogando a culpa na gente, dizendo que nós fizemos a mãe dele se mudar pra ele ser desinternado, e ele não foi; que a gente prometeu que ele ia sair, e ele não saiu”, fala Renata, referindo-se à mudança de residência feita pela família na metade deste ano, em atendimento a uma solicitação da juíza que cuida do caso. Para a técnica, parte da justificativa é legítima e parte é 108 Portas Fechadas inválida. O excesso de esperança criado em torno de liberação é, de fato, reconhecido: “Às vezes a gente deposita mais do que eles podem suportar. Isso é, mesmo, um problema nosso”. Já a alegação de que a transferência de cidade tenha sido enganosa, pondera, é inconsistente: “É uma maneira de o Arthur racionalizar tudo isso e justificar a fuga dele, porque a mãe já queria se mudar pra Piraquara, por causa do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento, do Governo Federal, que prevê investimentos no município], que vai regular a situação da família. Mas ele culpa a gente porque precisa culpar alguém”. Renata também buscou se inteirar dos ferimentos que a troca de tiros em São José dos Pinhais deixou no rapaz. Em conversa com os médicos da unidade, que permanecem observando o jovem, descobriu que escapar praticamente ileso do confronto foi um lance de muita ventura. “Sei que três [tiros] foram na virilha e que outro pegou perto da barriga. O médico diz que não acredita como os tiros desviaram da [artéria] femoral. Pelo que o médico explicou, mesmo que mirassem de novo, não iam errar na femoral. Três! E todos os tiros entraram e saíram. Nenhum pegou órgão vital. Todos pegaram músculo. Ele teve uma sorte...”, comenta. A última investigação empreendida pela técnica dá conta do estado emocional do rapaz, bastante frágil, dizem, sobretudo pelo cruel fato que testemunhou no dia do assalto aos peêmes. “O menino que foi morto já esteve aqui no São Francisco. E, segundo os recados que me chegam, o Arthur falou que o menino pedia socorro e ele não podia fazer nada. Então ele deve ter passado por momentos horrorosos vendo o menino ser assassinado. Ah, não posso dizer ‘assassinado’, tem que ser ‘sendo morto’, porque a foi polícia, né?”, especula, com afiada ironia. Também preocupa a psicóloga um indício de rebeldia que o garoto manifesta contra ela. “Ele tá brabo comigo porque eu não fui atendê-lo ainda, mas eu não posso. O responsável é o psiquiatra. Além disso, na cabeça dele, fui eu quem liguei pra Delegacia dizendo que ele estava foragido.” 109 Portas Fechadas Nesse caso, contudo, Renata crê que a resistência seja apenas passageira, dada a forte relação que ambos construíram nas muitas confidências que compartilharam. “Ele tem um vínculo, sim. Tanto é que, mesmo ele dizendo que está brabo porque acha que eu trouxe ele pra cá, ele tá preocupado em saber se eu ainda vou ser a técnica dele. E, pelo que me falaram, ele quer que eu seja.” A psicóloga também projeta o futuro do menino na unidade. Para isso, contudo, ela não precisa consultar ninguém e tampouco se basear em informações de corredor. A experiência que tem na socioeducação é suficiente para lhe indicar que o caminho que Arthur deve percorrer daqui pra frente é a um só tempo longo e tortuoso: “Eu acho que ele vai ficar mais um ano e meio, que é o tempo que falta pra completar os três anos, e é muita coisa pra um adolescente. Isso aqui é um ambiente artificial, que tem uma cultura de penitenciária e que mexe com a auto-estima”, lamenta. O diretor da unidade, Júlio, sabe bem do que Renata está falando, e por isso assegura que o Centro concentra esforços em minimizar o sofrimento causado pela privação de liberdade: “A medida de internação tem seu aspecto de sanção, e a gente tem que deixar isso claro pro garoto. Ora, ser privado da liberdade é uma punição, claro que é, mas não precisa ser um período de sofrimento. Pode ser um período de aprendizagem, um período de reflexão e de entender que o que ele fez foi muito errado, grave ao ponto de ser preso”. … O procurador-geral de Justiça do Paraná, Olympio de Sá Sotto Maior Neto, concorda que humanizar o atendimento socioeducativo é uma medida essencial para que os adolescentes tenham condições de se manter distantes da criminalidade assim que a reclusão termine – objetivo central da internação, pois. Mas a aposta principal de Olympio para que a juventude não enverede por trilhas marginais, tal qual ocorreu com Arthur, não está nos Censes, mas no respeito aos direitos capitais por lei assegurados 110 Portas Fechadas às crianças e adolescentes. Ao lado da Constituição Federal de 1988, o documento-base para a garantia de cidadania aos jovens brasileiros é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado em 1990 com destacada participação do procurador. Depois de concluído, o Estatuto substituiu o Código de Menores, antiga legislação sobre o tema e que muito desagradava Olympio e outros tantos juristas dedicados à área: “Ao mesmo tempo em que eu me preocupava com a situação da infância, eu via a justiça de menores caminhando para um lado absolutamente equivocado por não reconhecer as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos fundamentais, e responder, na maioria das vezes, de forma injusta aos problemas que aconteciam”. O procurador pede licença para, falando simples, aprofundar-se na discussão. De acordo com ele, a falha principal é que a antiga legislação tinha caráter emergencial, o que significa que só agia quando o problema já estava configurado: “Na concepção e na doutrina adotada pelo Código de Menores, a chamada ‘Doutrina da Situação Irregular’, o juízo que se fazia era o seguinte: uma vez identificada uma patologia social é que surge a legitimidade para a intervenção da justiça do menor”. Com o ECA, passou a ser valorizada a prevenção, o que antecipou o momento de a justiça entrar em cena: “O que se quer é que as crianças e os adolescentes sejam reconhecidos como sujeitos de direito, e que se implementem esses direitos da população sem aguardar a instalação de uma situação irregular para então haver a intervenção”. Para que a filosofia contida no Estatuto não se tornasse conversa para boi dormir, os juristas engajados na elaboração do documento se empenharam em criar mecanismos concretos que viabilizassem tal atuação preventiva. Daí nascem os filhos ilustres do ECA: os Conselhos Municipais dos Direitos da Infância e Adolescência e os Conselhos Tutelares. 111 Portas Fechadas Olympio inicialmente se debruça sobre o primeiro. Tratase de entidades formadas por representantes da sociedade civil organizada e do poder público, em igual número de participantes e com a presidência compartilhada, para a definição das ações do governo nessa área. “É o órgão incumbido de formular em todos os níveis a política de atendimento à infância e à juventude. A política que eles definirem é a política oficial”, sintetiza o procurador. Os Conselhos Tutelares, por sua vez, constituem um mecanismo que, para evitar burocracia e lentidão, procura resolver os problemas da infância e adolescência antes da justiça. Evita, com isso, que problemas emergenciais, como falta de escola ou violência doméstica, sejam prolongados: “Diante da urgência de respostas, há a intervenção desse órgão administrativo, que aplica medidas e pode requisitar os serviços públicos necessários para a área da saúde, educação etc. São medidas protetivas que podem impedir o encaminhamento para a delinqüência”. Neste ano, como em breve vai acontecer com muitos adolescentes internados no Cense, inclusive Arthur, o ECA atinge sua maioridade. É uma data simbólica para quem defende o Estatuto, celebrada com muita análise do que precisa ser melhorado para que o documento atinja resultados melhores que os atuais. Olympio vê dois desafios centrais. O primeiro diz respeito ao funcionamento dos dois órgãos que acabou de citar. Em relação aos Conselhos Tutelares, considera necessário o aporte de mais dinheiro e atenção por parte das prefeituras: “Ainda hoje são raros os Conselhos que se encontram em situação adequada de funcionamento, seja no que diz respeito a recursos humanos e a apoio técnico, seja no que diz respeito até a recursos materiais para o seu funcionamento. Falta orçamento”. Já sobre os Conselhos de Direitos, defende a melhor utilização do poder que possuem: “O administrador é obrigado a canalizar os recursos orçamentários para a implementação dos 112 Portas Fechadas programas e ações que forem definidos pelo Conselho. Se esses órgãos funcionassem direito, se elaborassem adequadamente a política de atendimento à infância e à juventude, poderiam mudar o país”, fala, ousadamente. O outro desafio, no entanto, parece ser mais difícil de ser superado. Não diz respeito apenas a governantes e representantes da sociedade civil organizada; mas engloba todos os cidadãos. É a priorização da infância e juventude como elemento definidor do futuro do país. Mais que um clichê, para Olympio, a medida é a fórmula para afastar os jovens paranaenses, sejam eles de Fazenda Rio Grande, Cascavel, Piraquara ou de qualquer outro município, das oportunidades oferecidas pela criminalidade. Sempre que participa de eventos públicos sobre o tema, Olympio faz questão de bater nesta tecla. “Nós temos que avançar no sentido de fazer com que o município garanta os direitos fundamentais da população infanto-juvenil, para que não seja necessário, no futuro, internar um adolescente”. … Em uma ocasião recente, enquanto convencia os interlocutores da necessidade de se dedicar atenção às crianças e jovens do país, Olympio deparou-se com uma grata surpresa. Ao final das discussões, foi abordado por uma senhora que acompanhara todo o falatório. Interessada no assunto e mostrando notável compreensão do conteúdo exposto, Dona Sebastiana, como se chamava a mulher, então lhe fez uma em tom de reflexão: “Doutor, eu entendi esse tal do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ele diz que é para a gente querer para os filhos do outros o mesmo bem que a gente quer pros nossos filhos”. Impressionado com o poder de síntese e entendimento do tema apresentado por ela, o procurador não viu necessidade de qualquer réplica mais longa: “É isso”, respondeu. 113 Portas Fechadas Quem dera fossem comuns interpretações como a da mulher. A regra, ressalva Olympio, é olhar a questão da infância e adolescência de outra forma: “Cada vez que os nossos filhos têm uma conduta anti-social, a gente imagina o quê? ‘Ai, é porque ele tá passando pela crise da adolescência’. E o que se recomenda para os nossos filhos é mais atenção, mais demonstração de afeto e ajuda na construção dos caminhos para transpor essa fase do mundo infantil para o mundo adulto. Agora, quando é com os filhos dos outros, o que as pessoas querem? Privação de liberdade, cadeia, chamar a polícia. A sociedade brasileira não enxerga os seus filhos. É este o grande problema”. Desse mal, Dona Sebastiana não padece. É verdade que, quando liga a tevê ou o rádio, nota que muito políticos, sobretudo os que defendem a redução da maioridade penal, pensam de forma diferente. Com a privilegiada compreensão que tem do tema, gostaria apenas de um dedinho de prosa com eles. Não perderia tempo com discussões elaboradas, mas apenas levaria a mão ao bolso, pois já sabe identificar quais chaves realmente são capazes de abrir as portas que a juventude ainda encontra fechadas. 114 Portas Fechadas 115 Portas Fechadas 116 Portas Fechadas AGRADECIMENTOS Embora singelo, este livro-reportagem pôde ser realizado apenas porque encontrou apoio e respaldo de muitos profissionais e instituições ligadas ao tema, que merecem, pois, meus mais sinceros agradecimentos. São eles: Profissionais da Secretaria de Estado da Criança e da Juventude (Secj), pela permissão e apoio para a realização do projeto; Jornalistas e estagiários da Central de Notícias dos Direitos da Infância e Adolescência – Ciranda, pela oportunidade dada de conhecer os três Centros de Socioducação (Censes) estudados e pelo importante trabalho que realizam; Margarete Rodrigues e Iracema Elise da Costa (diretora e psicóloga do Cense Fazenda Rio Grande), Mariselni Vital Piva e Cleusa Roderjan Benatto (diretora e psicóloga do Cense Joana Miguel Richa), Júlio César Botelho e Renata Campos Mendonça (diretor e psicóloga do Cense São Francisco), pela atenção e cordialidade com que me receberam, e pela sinceridade com que me concederam entrevista; Procurador-geral de Justiça do Paraná, Olympio de Sá Sotto Maior Neto; secretária da Criança e Juventude do Paraná, Thelma Alves de Oliveira; e sociólogo e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Pedro Rodolfo Bodê, pelos preciosos instantes de conversa concedidos e pelos esclarecimentos diversos sobre o tema. 117 Portas Fechadas Cabe também um agradecimento especial aos companheiros que contribuíram de forma decisiva para a realização do projeto. São eles: Adriana Pereira, minha querida amiga Adre, pelo chamado prontamente atendido na etapa final do trabalho; Elza Oliveira, minha orientadora, pelas constantes conversas, correções, conselhos e estímulos, vitais para a elaboração do trabalho; Estelita Carazzai, minha namorada, pelo incansável ombro que me acolheu nos momentos mais tensos, pelas incontáveis idéias compartilhadas e sugestões feitas, e pelo entusiasmo com que sempre encarou o projeto; José Carlos Fernandes, novo amigo que este trabalho deixa, pelo prefácio dedicado e pela inspiração que seu trabalho há muito me causa; Juliana Motta e Leônidas Vinício, nobres amigos, pelas incontáveis conversas, reflexões e rebeldias compartilhadas, vitais em minha formação intelectual; Guylherme Custódio e Rodrigo Scandelari, ilustres companheiros, pelos chamados prontamente atendidos. Por fim: À minha família, que compreendeu minha ausência momentânea; À minha mãe e meus avós, que durante toda a minha vida me educaram e me prepararam para obstáculos como este. 118 Portas Fechadas 119