Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro
Itala Maduell Vieira
JB, um paradigma jornalístico: Memória
e identidade em narrativas míticas sobre o
Jornal do Brasil
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
Tese de Doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção
do grau de Doutora pelo Programa de Pós-Graduação
em Comunicação Social do Departamento de
Comunicação da PUC-Rio.
Orientadora: Prof.ª Vera Lucia Follain de Figueiredo
Rio de Janeiro
Dezembro de 2019
Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro
Itala Maduell Vieira
JB, um paradigma jornalístico: Memória
e identidade em narrativas míticas sobre o
Jornal do Brasil
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
Tese de Doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para a
obtenção do grau de Doutora pelo Programa de PósGraduação em Comunicação Social do Departamento
de Comunicação Social do Centro de Ciências Sociais
da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora
abaixo assinada.
Prof.ª Vera Lucia Follain de Figueiredo
Orientadora
Departamento de Comunicação Social – PUC-Rio
Prof. Leonel Azevedo de Aguiar
Departamento de Comunicação Social - PUC-Rio
Prof.ª Tatiana Oliveira Siciliano
Departamento de Comunicação Social - PUC-Rio
Prof.ª Marialva Carlos Barbosa
UFRJ
Prof.ª Ana Paula Goulart Ribeiro
UFRJ
Rio de Janeiro, 06 de dezembro de 2019
Todos os direitos reservados. É proibida a
reprodução total ou parcial do trabalho sem
autorização da universidade, da autora e da
orientadora.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
Itala Maduell Vieira
Professora de Jornalismo no Departamento de
Comunicação Social da PUC-Rio desde 2010, é
jornalista formada pela mesma universidade em
1993. Mestra pela Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
(ECO/UFRJ), com dissertação indicada ao Prêmio
Compós de Melhor Dissertação 2017 sobre o
Caderno B do Jornal do Brasil e o jornalismo diário
de cultura no país. É pesquisadora do grupo de
pesquisa Mídia, Memória e Temporalidades
(Memento), no projeto Memória do Jornalismo
Brasileiro, e participa da Rede Historicidades dos
Processos Comunicacionais. No Departamento, foi
editora de jornais-laboratório de 2011 a 2017 e
atualmente é coordenadora de Enade e de
Internacionalização da Graduação. Atuou como
jornalista no Jornal do Brasil (1993-2003) e no jornal
O Globo (2003-2006). Pesquisa o Jornal do Brasil,
história e memória, narrativas, imprensa, práticas e
identidades profissionais e suas historicidades e
temporalidades.
Ficha Catalográfica
Vieira, Itala Maduell
JB, um paradigma jornalístico : memória e
identidade em narrativas míticas sobre o Jornal
do Brasil / Itala Maduell Vieira ; orientadora:
Vera Lúcia Follain de Figueiredo. – 2019.
298 f. : il. color. ; 30 cm
Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de
Comunicação Social, 2019.
Inclui bibliografia
1. Comunicação Social – Teses. 2. Jornalismo. 3. Memória. 4. Nostalgia. 5. Identidade. 6.
Jornal do Brasil. I. Figueiredo, Vera Lúcia Follain
de. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Comunicação Social.
III. Título.
CDD: 302.23
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A Marcelo Kischinhevsky, coautor na vida.
Sofia e Cosmo, meus filhotes amados.
A Darcy Maduell, meu avô.
Agradecimentos
Ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC-Rio, em especial à
professora Vera Lúcia Follain Figueiredo, generosa orientadora, à coordenadora
Claudia Pereira, pelo acolhimento do projeto, e à secretária Marise Lira,
incentivadora de primeira hora, e com quem pude contar em todas as horas.
Ao Departamento de Comunicação da PUC-Rio, onde tenho a honra de ter me
formado e de lecionar, especialmente a Leonel Aguiar e Tatiana Siciliano, pelo
apoio e contribuições a esta pesquisa; e aos alunos das turmas do Laboratório de
Jornalismo e de orientação de TCC, com os quais tanto aprendo.
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A Carla Rodrigues, pela amizade, pela generosidade de me proporcionar
temporadas de imersão acadêmica fora de casa, e pela sugestão de trabalhar o
conceito agambiano de paradigma como método, entre tantas imensuráveis
contribuições que me dedica, acadêmica e afetivamente.
Ao professor Renato Cordeiro Gomes, grande mestre que me incentivou à carreira
acadêmica e a leituras fundamentais.
Aos professores, pesquisadores e colegas do Programa de Pós-Graduação da
Escola de Comunicação da UFRJ, onde me tornei mestra em Comunicação,
especialmente a Ana Paula Goulart Ribeiro, minha orientadora de mestrado, e
Marialva Barbosa, pelas contribuições que tanto ecoam na tese.
Aos professores e colegas do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de
Comunicação da Uerj, onde iniciei o doutorado, em especial a Marcio Gonçalves,
por ter me apresentado a Thomas Kuhn em aulas tão claras quanto interessantes.
Ao CNPq e à Capes, programas que garantem a democratização da pesquisa de
excelência no país.
Aos parceiros pesquisadores Alice Melo, Fernanda Lima Lopes, Igor Sacramento,
Izamara Bastos, Nelson Moreira, Patricia d’Abreu, Rachel Bertol e demais
colegas do Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação (Nepcom/UFRJ) e do
projeto Memória do Jornalismo Brasileiro, coordenado por Ana Paula Goulart
Ribeiro; Phellipy Jácome e pesquisadores da rede nacional Historicidades dos
Processos Comunicacionais; Joëlle Rouchou e colegas da linha O Texto
Jornalístico e a Condição do Jornalista em Perspectiva Histórica, do grupo de
pesquisa Imprensa e Circulação de Ideias: O Papel dos Periódicos nos Séculos
XIX e XX; Adriana Barsotti, Aline Novaes, Natanael Damasceno, Patrícia
Maurício, Roberto Falcão, Simone Marinho e demais colegas do grupo de
pesquisa Teorias do Jornalismo (Tejor) da PUC-Rio, coordenado por Leonel
Aguiar; Eduardo Miranda, Felipe Gomberg, Mariana Dias e colegas do grupo de
pesquisa Comunicação e Livros (ComLivros) da PUC-Rio, coordenado por Vera
Follain Figueiredo, pelas partilhas tão estruturantes.
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A todos os jotabenianos, em especial aos que contribuíram concedendo
entrevistas: Alfredo Herkenhoff, Belisa Ribeiro, Carlos Leonam, Cezar Motta,
Celina Côrtes, Deborah Dumar, Eduardo Miranda, Gilberto Menezes Côrtes,
Joaquim Campelo, Joëlle Rouchou, José Adilson Nunes, Moacyr Andrade,
Octavio Costa, Toninho Nascimento, Regina Zappa, Rogério Daflon, Romildo
Guerrante e Vera Perfeito; e aos que colaboraram em fase exploratória: Adriana
Guimarães Moreira, Aguinaldo Ramos, Aimée Louchard, Antonio Liborio,
Aydano André Motta, Beatriz Bonfim, Carina Almeida, Carlos Franco, Celia
Abend, Cláudia Freitas, Cláudio Arreguy, Clóvis Marques, Eduardo Mack,
Evandro Teixeira, Fábio Lau, Fernanda Pedrosa, Gilberto Scofield Junior, Gloria
O. Castro, Guilherme Berriel, Israel Tabak, Kristina Michahelles, Laerte Gomes,
Lilian Newlands, Luciana Medeiros, Luiz Orlando Carneiro, Marco Antônio Gay,
Marco Terranova, Marcus Veras, Maurício Pedreira, Noenio Spinola, Orivaldo
Perin, Oscar Araripe, Paula Guatimosim, Paula Santa Maria, Paulo Henrique de
Noronha, Paulo Oliveira, Rogério Reis, Rose Esquenazi, Sandra Chaves, Sônia
Araripe, Terezinha Costa, Thais de Mendonça e Vicente Dattoli.
Aos que escreveram sobre o JB, fundamentais para compor este trabalho: Alberto
Dines, Alfredo Herkenhoff, Alzira Alves de Abreu, Ana Arruda Callado, Ana
Paula Goulart Ribeiro, Arthur Dapieve, Artur Xexéo, Belisa Ribeiro, Carlos
Brickmann, Carlos Daniel Trench Bastos, Cecília Costa, Cezar Motta, Cristiane
Costa, Elio Gaspari, Hildegard Angel, Isabel Mauad, João Baptista de Abreu,
Joaquim Ferreira dos Santos, Jorge Antonio Barros, José Sérgio Rocha, Juarez
Bahia, Lucia Rito, Lucia Santa Cruz, Luisa de Bustamante, Luiz Fernando
Mercadante, Marcelo Kischinhevsky, Marcio Castilho, Marcos Sá Corrêa,
Marialva Barbosa, Marieta de Morais Ferreira, Marina Colasanti, Miriam Leitão,
Marceu Vieira, Nilo Dante, Patricia Lima, Paulo Thiago de Mello, PC Guimarães,
Plinio Fraga, Ricardo Kotscho, Ricardo Kotscho, Ruth de Aquino, Sérgio
Montalvão, Sylvia Moretzsohn, Suzana Blass, Talitha Gomes Ferraz, Tiago
Petrik, Wilson Figueiredo e Zuenir Ventura.
A minha avó Zeneda; e a meus pais, Zeila e Nildo, por tudo, e entre tudo porque
recortaram para mim em 1993 o anúncio da seleção de estágio do JB.
A tia Dina, com quem vivi a sintonia das jornadas acadêmicas.
A Alexandre Carauta, Aline Novaes, Ana Paula Daudt, Cristiana Grumbach, Luiz
Pedrosa e Renata Mattos Monteiro de Barros, amigos que a PUC-Rio me deu.
A Flavia Dratovsky, Flavio Araujo, Kathia Ferreira, Luciana Brafman, Lula
Branco Martins, Patricia Paladino, Paula Barcellos e Ulisses Mattos, amigos que o
JB me deu.
A Paladino também pela valiosa leitura, e a Vagner Pessanha pela padronização.
A Thereza Imbroisi, Regina Lucia Branco Martins, Nando Correa e Mahavir, que
sustentaram minha saúde psicológica e física no processo.
A Mel, Sol, Hope e Rock, presentes com seu aconchego nas incontáveis horas de
leitura e trabalho.
Resumo
Vieira, Itala Maduell; Figueiredo, Vera Lúcia Follain de. JB, um
paradigma jornalístico : memória e identidade em narrativas míticas
sobre o Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2019. 298p. Tese de Doutorado Departamento de Comunicação Social, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
O Jornal do Brasil mobiliza certa ideia de jornalismo singular, baseada em
uma série de valores (independência, liberdade, ousadia, credibilidade), símbolos
de um padrão almejado pela comunidade jornalística ressignificados numa longa
duração por ações de memória fortemente marcadas pela nostalgia. A partir de
narrativas sobre o ser e o fazer jornalístico, recorrentes tanto nas páginas do jornal
como nas da história da imprensa – material que tem como fontes, ao fim e ao
cabo, testemunhos de jornalistas –, a tomada do Jornal do Brasil como paradigma
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é analisada tendo em vista a profunda transformação do ethos jornalístico.
Palavras-chave
Jornalismo; memória; nostalgia; identidade; Jornal do Brasil.
Abstract
Vieira, Itala Maduell; Figueiredo, Vera Lúcia Follain de (Advisor). JB, a
journalistic paradigm. Memory and identity in mythical narratives
about Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2019, p. 298. Tese de Doutorado –
Departamento de Comunicação Social. Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
Jornal do Brasil mobilizes a certain idea of singular journalism, based on a
series of values (independence, freedom, boldness, credibility), symbols of a
pattern longed for by the journalistic community re-signified in the long run by
memory actions strongly marked by nostalgia. Starting from narratives about the
journalistic being and doing, recurring both in the pages of the newspaper and in
the history of the press – material that depends anyway on testimony from
journalists –, the taking of Jornal do Brasil as a paradigm is analyzed in view of
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the profound transformation of the journalistic ethos.
Keywords
Journalism; memory; nostalgia; identity; Jornal do Brasil.
Sumário
Introdução ................................................................................................ 12
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1. O jornalismo nas páginas da história ................................................... 20
1.1. Mitos: eram os jornalistas deuses? ................................................... 29
1.2. Memória, experiência, nostalgia ........................................................ 34
1.3. Identidades jornalísticas .................................................................... 43
1.3.1. O campo e o habitus ...................................................................... 50
1.3.2. A ilusão biográfica .......................................................................... 56
1.3.3. O ethos romântico do jornalismo .................................................... 58
1.4. Paradigma como método .................................................................. 62
2. As narrativas ........................................................................................ 69
2.1. Jornal do Brasil, uma odisseia........................................................... 69
2.1.1. Inovador ......................................................................................... 73
2.1.2. A reforma e os reformadores .......................................................... 86
2.1.3. O SDJB .......................................................................................... 90
2.1.4. Entre A(tualidades) e C(lassificados), o B ...................................... 94
2.1.5. Disputas pela paternidade da reforma.......................................... 104
2.1.6. JB, a escola de jornalismo............................................................ 110
2.1.7. O salário-ambiente ....................................................................... 114
2.2. O JB pelo JB: o discurso autorreferente .......................................... 122
2.2.1. ‘Um moço de 74 anos’ .................................................................. 123
2.2.2. JB é notícia................................................................................... 126
2.2.3. O mais premiado .......................................................................... 134
2.2.4. A “tradição de inovar” ................................................................... 139
2.3. Apogeu e declínio: Avenida Brasil 500 ............................................ 150
2.3.1. Um jornal errante .......................................................................... 158
2.3.2. JB On-line..................................................................................... 162
2.3.3. Pejotização e batalha judicial por direitos ..................................... 166
2.4. Funerais do JB ................................................................................ 168
2.4.1. O túmulo do jornal ........................................................................ 169
2.4.2. O gurufim...................................................................................... 172
2.4.3. Réquiem ....................................................................................... 176
3. Vínculos.............................................................................................. 188
3.1. JB, um título de nobreza.................................................................. 191
3.2. Jotabenianos, uma comunidade autointerpretativa ......................... 193
3.2.1. JB no Modo Hard ......................................................................... 203
3.2.2. Memórias de papel ....................................................................... 207
3.2.3. A “ressurreição” ............................................................................ 226
3.3. De volta para ‘casa’ ......................................................................... 233
3.3.1. A primeira edição do “novo JB” .................................................... 236
3.3.2. Passado-presente: 1968-2018 ..................................................... 245
3.4. A derradeira morte .......................................................................... 255
4. Considerações finais .......................................................................... 258
5. Referências bibliográficas .................................................................. 265
Apêndices............................................................................................... 289
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Anexos ................................................................................................... 292
Lista de figuras
Figura 1: Avenida Central, com o Jornal do Brasil e sua torre,
nos anos 1920. .......................................................................... 79
Figura 2: O anúncio com depoimento de Luiz Orlando Carneiro............ 141
Figura 3: Circularidade do discurso. ....................................................... 149
Figura 4: O prédio da Avenida Brasil 500. Acervo Rogério Reis. ........... 151
Figura 5: A redação da Av. Brasil se reuniu na sexta-feira 2 de
fevereiro para último registro ................................................... 157
Figura 6: A redação da Av. Brasil no último dia de atividade,
sábado 3 de fevereiro de 2002. .............................................. 157
Figura 7: Protesto de jornalistas do JB interdita a Avenida Rio
Branco, diante da sede. Agosto de 2004................................ 158
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Figura 8: Ato em defesa do Jornal do Brasil na Praia de Ipanema.
2004. ....................................................................................... 159
Figura 9: A leitora Marly Honorato, 75 anos, lê a edição do JB de
31 de agosto de 2010 .............................................................. 161
Figura 10: O salão do 6º andar da Avenida Brasil 500, onde ficava a
redação, depenado............................................................... 170
Figura 11: O acesso às escadas. ........................................................... 171
Figura 12: A antiga oficina ...................................................................... 171
Figura 13: Dia de Afeto ao JB, na Cinelândia, 31 de agosto de 2010. ... 172
Figura 14: Lançamento do livro de Alfredo Herkenhoff no Capela,
Lapa, 31 de agosto de 2010. ................................................. 173
Figura 15: Ilustração de André Melo para a coluna Funéreo, de
Joaquim Ferreira dos Santos. ............................................... 178
Figura 16: Fernando Gabeira festejado na volta ao Brasil em 1979 ...... 185
Figura 17: Ato por Diretas Já Cinelândia 1984 sobre foto do antigo
estúdio fotográfico do JB na Avenida Brasil. ......................... 186
Figura 18: Capas dos livros .................................................................... 211
Figura 19: Capa do relançamento .......................................................... 239
Figura 20: Capa de despedida (não publicada)......................................255
Introdução
Daqui a duzentos anos, os historiadores dirão do nosso tempo: “A época do
Jornal do Brasil”. Pois o velho órgão, acima de qualquer dúvida ou sofisma,
é um momento da vida brasileira. Assim como houve a época do fraque,
outra do espartilho, uma terceira do charleston, há a do Jornal do Brasil.
No futuro, quando as gerações sapatearem em cima das nossas cinzas,
bastará recorrer às suas coleções. E os curiosos saberão como nós sorríamos e
vestíamos, e calçávamos, e amávamos etc. etc. Eis o que eu queria sublinhar:
há coisas que só o Jornal do Brasil diz, faz, afirma ou insinua.
Nelson Rodrigues1
A epígrafe é trecho de crônica do jornalista, dramaturgo e escritor Nelson
Rodrigues publicada no jornal O Globo. O ano era 1968, e o Jornal do Brasil era
então o principal e mais respeitado jornal do país. Não raro era citado em textos
de Nelson, célebre por sua provocação de que toda unanimidade é burra. Diz-se
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do JB que praticamente todos os jornalistas então sonhavam trabalhar lá nestes
anos de ouro – como o próprio Nelson, o que não se concretizou. Poderia mesmo
o Jornal do Brasil ser considerado uma singularidade e “um momento da vida
brasileira”? A partir da pilhéria de Nelson de que teria havido a época do JB, como a do fraque, do espartilho, do charleston, esta tese propõe pensar o JB como
âncora de certa ideia de jornalismo.
É possível listar um número considerável de jornais que foram referência
no país em determinados períodos, e têm seu valor reconhecido na historiografia
da imprensa brasileira, como o Correio da Manhã, a Tribuna da Imprensa, a Última Hora, para citar três históricos periódicos cariocas. Isso não seria condição
suficiente. Poderia se considerar, ainda, o fato de o JB ter perdurado por mais de
um século em circulação. Mas periódicos centenários não são, por isso, necessariamente paradigmáticos, e outros deixaram sua marca apesar da curta existência. A
pista-chave que seguimos aqui é o fato de o JB ser evocado como modelo e
exemplo singular (AGAMBEN, 2019) de jornalismo, e a incidência e recorrência
dessas evocações, ao longo dos últimos 50 anos, 60 anos, sob a forma de mito
(FINLEY, 1989; BARTHES, 1993; BENJAMIN, 2013; GAGNEBIN, 2014).
1
Ver no Apêndice: A vítima salubérrima. Rodrigues, [1968], 1993.
13
Destaco depoimentos de dois jornalistas que recorrem exatamente à palavra paradigma para se referirem ao JB: o ex-redator do jornal e então presidente
da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Maurício Azêdo2 – “Ele era o paradigma da qualidade e da excelência de um jornal diário” (2010) –, e Ricardo Noblat3: “Isso do JB como paradigma de jornalismo de primeira linha, a gente percebia isso estando fora do Rio” (2010, 1’04). Outros o tratam como modelo, como
Ana Arruda Callado4: “Era o jornal modelo deste país” (2010).
Se é reconhecida a importância do Jornal do Brasil como veículo de comunicação na história da imprensa brasileira, entendemos que ainda haja uma
lacuna quanto ao seu “significado para a nossa vida emocional”, para citar o também paradigmático texto de Freud ([1915] 2010) sobre a nossa relação com o passado. Ter feito parte, em algum momento, do expediente do JB é, para muitos
jornalistas, motivo de orgulho incontido, que precisa ser externado, publicado,
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como comprovam narrativas em torno do JB a serem elencadas nesta pesquisa,
que são tomadas aqui como chave de leitura de um ethos jornalístico em profunda
transformação.
O que a tese busca explicitar, sob a perspectiva das historicidades dos processos comunicacionais, é como o Jornal do Brasil tornou-se um ícone particularmente entre jornalistas brasileiros, e por que certo grupo destes mantém sua
história-memória em permanente atualização. Observa-se a conjuntura em que se
deu a tomada do Jornal do Brasil como paradigma de jornalismo, a partir de sucessivos discursos presentes tanto nas páginas do jornal, em narrativas autorreferentes oficiais, como em narrativas de jornalistas sobre o jornal e sobre o próprio
fazer jornalístico. Esse material se divide em obras que se inscrevem no campo do
2
Maurício Azêdo (1934-2013), formado em Direito em 1960, foi repórter, redator, cronista, editor,
chefe de reportagem, editor-chefe e diretor de redação de Jornal do PCB, Jornal do Commercio,
Diário Carioca, Jornal do Brasil, Diário de Notícias, Jornal dos Sports, Última Hora, O Dia, O
Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo e Boletim ABI. Presidiu por duas vezes a Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
3
O pernambucano Ricardo Noblat, começou a carreira no Jornal do Brasil em 1967, na sucursal
de Recife. Trabalhou nos jornais Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio, O Globo, Correio
Braziliense e O Estado de S. Paulo e nas revistas Veja, Manchete e IstoÉ. Mantém desde 2004 o
Blog do Noblat.
4
Ana Arruda Callado, recifense, formada em Jornalismo em 1957, iniciou a carreira profissional
como repórter do Jornal do Brasil em 1958, depois de estagiar na Tribuna da Imprensa. Foi a
primeira mulher em cargo de chefia no Brasil, como chefe de reportagem do Diário Carioca, em
1966. Trabalhou também nos jornais O Sol e Jornal dos Sports e na revista Senhor.
14
testemunho, com o objetivo de não deixar morrer a memória; e outras que se apresentam como estudos históricos, mas cujas fontes principais são, ao fim e ao cabo,
os testemunhos dos jornalistas (havendo, até certo ponto, sobreposição dos dois
tipos); e textos mais glorificadores, quase sempre tomando o jornal como emblema de um tempo passado em tudo melhor que o presente.
Esses gestos de memória estão ligados principalmente a episódios de época
singular do veículo e da imprensa nacional, a chamada modernização da imprensa, na virada dos anos 1950-60. Este trabalho de enquadramento tem origem no
próprio jornal – é da cultura das organizações ou empresas veicular seu próprio
passado e a imagem que forjaram de si mesmas –, mas também conta com a colaboração de atores profissionalizados (historiadores, pesquisadores) e de representantes instituídos por eles ou seus pares, os guardiães “oficiais” desta história, que
retroalimentam uma narrativa grandiloquente. Nela, os altos e baixos, as mudanPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
ças de mãos e de perfis editoriais são reunidas sob a ideia de uma longa origem,
sintetizada nas suas míticas reformas modernizantes dos anos 1950 e 60, quando
se tornou um jornal grande e respeitado (MATHEUS e BARBOSA, 2008), referência da intelectualidade carioca ou mesmo nacional, conquistando mercado e
estabelecendo padrões relacionados à prática profissional do jornalismo, que influenciaram outros veículos do país (ABREU, 1996; RIBEIRO, 2007).
Nota-se então a predominância de uma ideia de ruptura frente ao jornalismo
anterior: inovação, pioneirismo, criatividade, vanguarda, originalidade, escola,
tradição, independência, liberdade são atributos empregados em relação ao JB por
jornalistas e por pesquisadores, muitas vezes apoiados em dados factuais, aparentemente tangíveis e inquestionáveis, e que buscam dar legitimidade ao próprio
campo jornalístico. Ao apontar uma certa singularidade do jornal com esses atributos, endossam crenças sobre o jornalismo e valores atribuídos à profissão.
O passado acionado nos discursos autorreferentes do JB se estende até a redemocratização, com a volta de eleições diretas no Brasil – que coincide com o
início de um processo gradual de crise do jornal, quiçá do jornalismo como praticado neste período, como se discutirá mais adiante. Depreende-se nesse conjunto
de discursos a valorização de algo para sempre perdido – o que me levou a tomar
o JB como símbolo de certo ethos jornalístico ameaçado por mudanças estruturais
15
em curso (MOURA, PEREIRA, ADGHIRNI, 2015). A pesquisa aponta o tom
nostálgico dessas memórias, que ganharam intensidade e volume à medida que o
jornal foi afundando na grave crise econômica e administrativa que resultou na
suspensão de sua versão impressa, em 2010, em meio a uma grande reconfiguração do jornalismo, no Brasil e no mundo.
Justamente no período em que o Jornal do Brasil esteve fora de circulação
foram publicados três livros-reportagem sobre o jornal, escritos por jornalistas:
Jornal do Brasil – Memórias de um secretário, pautas e fontes, de Alfredo Herkenhoff (2010); Jornal do Brasil, história e memória: os bastidores das edições
mais marcantes de um jornal inesquecível, de Belisa Ribeiro (2015); e Até a última página: uma história do Jornal do Brasil, de Cezar Motta (2018). Foi também
em 2010 que se organizou formalmente o grupo Jotabenianos, com o blog Álbum
Jotabeniano5, reunindo registros fotográficos e relatos memorialísticos, além de
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promover encontros anualmente desde então. Criaram-se ainda outros sites, blogs
e comunidades virtuais em torno do JB. No curso da pesquisa, o Jornal do Brasil
voltou às bancas em 2018, em operação de reacionamento desses valores.
A circularidade deste discurso predominantemente nostálgico e homogeneizado é identificada ainda em reportagens do veículo em edições comemorativas, em
depoimentos a projetos de memória do jornalismo, em pesquisas acadêmicas, em
livros e outras iniciativas memorialísticas de jornalistas. Nota-se que esses gestos
de memória não se restringem aos que participaram ou testemunharam a chamada
época áurea do JB, estando também presentes em relatos de jornalistas que atuaram no jornal em fases posteriores, ou mesmo sequer atuaram no Jornal do Brasil,
o que indica uma influência no campo profissional. Busca-se mensurar e avaliar o
papel dessa nostalgia – como movimento de valorização e idealização do passado
– na sustentação de certa aura mítica em torno do jornal e na importância que o
diário teve para muitos profissionais que nele trabalharam.
Encontram-se, no percurso, silenciamentos, omissões e vozes dissonantes,
caso do grupo de Facebook JB no Modo Hard, que reúne jornalistas que atuaram
5
O jornalista Sérgio Fleury lançou o blog colaborativo em 1º de junho de 2010, com 263 postagens até o fim daquele ano. Desde então, houve atualizações esporádicas: 2011 (9), 2012 (23),
2013 (25), 2017 (5), 2019 (4).
16
no veículo durante a gestão do empresário Nelson Tanure, iniciada em 2001. Embora muitos façam parte das duas comunidades, nesta é acionada uma ideia de
singularidade do Jornal do Brasil oposta à dos chamados jotabenianos: a ênfase é
a fase de penúria, à qual estão ligados episódios de abusos trabalhistas, interferências políticas e comerciais e exemplos do mau gerenciamento de recursos e de
estrutura. Estes relatos, que nada têm de nostálgicos, são igualmente ancorados
em uma idealização do jornal e de um modo de fazer jornalismo, baseada numa
série de preceitos e valores que hoje são postos em xeque não apenas pelo ambiente tecnológico e empresarial, mas também pelo novo horizonte político e ideológico, que reconfiguram de maneira drástica o ser jornalista.
Esta tese se insere no conjunto de pesquisas acadêmicas sobre o Jornal do
Brasil e sobre o jornalismo brasileiro. Foi escrita por uma jornalista carioca nascida na década de 1970, formada em Jornalismo na PUC-Rio nos anos 1990, criada
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na redação do Jornal do Brasil e que se tornou professora e pesquisadora de jornalismo. Eric Hobsbawm observa que na história contemporânea inscrevemos
experiências que são, de fato, as nossas experiências: todo pesquisador tem sua
própria vida e é deste lugar que observa o mundo, sendo a diferença de gerações
uma espécie de filtro: “As pessoas com idade suficiente para se recordarem de
outras coisas não veem as mudanças ocorridas como se fossem a coisa mais natural do mundo” (2010, p. 201). Nas aulas da terça-feira 31 de agosto de 2010, em
que circulou a então última edição impressa do Jornal do Brasil, partilhei com os
alunos de Introdução ao Jornalismo da PUC-Rio as memórias afetivas de mais de
uma década vivida na redação do JB, compartilhadas com um círculo de pessoas
tão amplo que, na minha imaginação, era todo mundo. Porém, os estudantes, nascidos nos anos 1990, tinham apenas uma ideia do que representava o JB, diferentemente da minha geração, que ambicionava uma vaga naquele jornal mais que
em qualquer outro, admirando e assediando os colegas que conseguiam. (Eu
mesma, no início dos anos 1990, pedi aos amigos da PUC Luciana Conti e Luiz
Antonio Ryff que me recebessem na redação, onde estagiavam no Informe JB e
em Cidade. Foi assim que conheci a redação.) Entre meus alunos, apenas um ou
outro manifestou certa simpatia herdada dos pais, estes sim detentores da experiência vivida. Tomavam por natural a existência dos cadernos diários de cultura,
que chamavam genericamente de Segundo Caderno, o que me influenciou a pes-
17
quisar o pioneiro Caderno B do JB em dissertação de mestrado, defendida na Escola de Comunicação da UFRJ (VIEIRA, 2016). No percurso, fui entendendo que
eu mesma, como jornalista cria do JB, havia naturalizado a importância do veículo, a partir da minha vida profissional e pessoal e do grupo social do qual fiz e
faço parte. Este trabalho marca um rito de passagem do campo profissional para o
acadêmico, um duplo lugar do qual, com empatia e respeito, me reconheço naqueles que me antecederam, no jornalismo e na academia.
Roger Chartier (1993, p. 23) afirma que o fato de o pesquisador ser contemporâneo de seu objeto faz com que divida as mesmas categorias e referências
com os que fazem a história. Com isso, amalgama-se o tempo presente em tempo
de vivência e de pesquisa. Mas essa falta de distância, longe de ser um inconveniente, pode ser positiva, já que a concomitância pode representar um melhor enten-
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dimento da realidade estudada.
Para compreender os contextos históricos, jornalísticos, sociais e políticos
em que se deram o surgimento, a consolidação e a ressignificação do JB como
jornal modelo, foi realizada uma extensa revisão bibliográfica e hemerográfica:
material institucional do jornal, em edições comemorativas impressas e audiovisuais, como o filme Jornal do Brasil: um moço de 74 anos, de Nelson Pereira dos
Santos (1965), e vídeos do canal do Youtube do Jornal do Brasil no relançamento
(2018); os três livros-reportagem sobre o Jornal do Brasil (HERKENHOFF,
2010; RIBEIRO, 2016; e MOTTA, 2018); depoimentos orais e escritos de jornalistas a pesquisadores de Comunicação e História e a projetos de memória como o
Centro de Cultura e Memória do Jornalismo (CCMJ), do Sindicato dos Jornalistas
do Rio, e o Memória do Jornalismo Brasileiro, da Escola de Comunicação da
UFRJ, e ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil (CPDOC), da Fundação Getulio Vargas; a cobertura jornalística sobre o fim
do jornal impresso em 2010, na imprensa carioca e em programas de TV (Observatório da Imprensa, ESPN Brasil), todos estes referenciados na bibliografia; e
iniciativas independentes – blogs, sites, comunidades de redes sociais – mapeadas
e listadas nos apêndices. Esta revisão tanto confirmou ser uma nova abordagem
do problema a ser pesquisado como permitiu reunir um significativo material disperso, que forma o corpus de análise desta tese. Houve ainda observação de inspi-
18
ração etnográfica nos três últimos almoços anuais de jotabenianos, em 2017, 2018
e 2019, o que permitiu acompanhar in loco a dinâmica do encontro, o planejamento de sua organização e os desdobramentos posteriores, nos registros em manifestações escritas e em imagens. Em 2019, realizei entrevistas em profundidade com
os três autores de livros sobre o JB – Alfredo Herkenhoff, Belisa Ribeiro e Cezar
Motta –, com as jornalistas Vera Perfeito e Joëlle Rouchou, co-organizadoras dos
encontros jotabenianos, e Regina Zappa, idealizadora de encontro na antiga sede
da Avenida Brasil 500 para a realização de um documentário; e com os jornalistas
que participaram do relançamento em 2018: Gilberto Menezes Côrtes, vicepresidente, Octavio Costa, editor de Política; e Toninho Nascimento, editor-chefe.
Também foram colhidos depoimentos de jornalistas no encontro de 2019. Para
identificar as vozes que falam sobre o JB e o que falam sobre o JB, levantei nos
três livros quem são os jornalistas entrevistados e citados, listados no Apêndice.
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A tese está dividida em três capítulos. No primeiro são apresentados os
conceitos e as maneiras como se promove a abordagem dos temas centrais da tese
– um breve panorama das pesquisas sobre e em jornalismo, a busca por maior
legitimidade e autonomia do campo acadêmico, assim como ocorre no próprio
campo profissional; as mitologias em torno do jornalismo; as memórias, a experiência, a nostalgia; as identidades jornalísticas, com as noções de campo, habitus e
ilusão biográfica (BOURDIEU, 1996), o ethos romântico do jornalismo. O capítulo 1 se encerra com “Paradigma como método”, em que apresento a aproximação
metodológica proposta por Giorgio Agamben, cuja função é a de constituir e tornar legível a totalidade de um fenômeno histórico a partir da sua própria singularidade, “um caso singular que, através de sua repetição, adquire a capacidade de
modelar tacitamente comportamentos e práticas” de uma comunidade (AGAMBEN, 2019, p. 14).
O segundo capítulo, nomeado “As narrativas”, mergulha nas produções
sobre o Jornal do Brasil. A odisseia do jornal, desde sua fundação, os mitos de
“origem” dessas narrativas, com a reforma gráfica e editorial dos anos 1950/60,
com disputas pelo protagonismo; o discurso autorreferente consolidado em seu
apogeu, os atributos a ele conferidos, como escola de jornalismo e de tradição de
inovar; até seu declínio, com dívidas trabalhistas e descaracterização no ambiente
19
on-line; os funerais e o luto dos jornalistas. O terceiro capítulo focaliza a comunidade autointerpretativa dos jotabenianos, a partir dos vínculos, das iniciativas independentes de manutenção e preservação da memória do jornal, e da frustrada
tentativa de “ressurreição”.
Busca-se observar como se comportam os códigos deontológicos, certo
prisma jornalístico, em produções textuais autorreferentes (não limitadas ao jornalismo) das quais são autores ou fontes, em livros, produções acadêmicas próprias,
depoimentos a pesquisadores, blogs pessoais, comunidades virtuais. Ou seja, como funciona a comunidade interpretativa dos jornalistas (TRAQUINA, 2008) ao
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se tornar autointerpretativa, dentro e fora de seu campo.
1. O jornalismo nas páginas da história
Mais de 300 anos depois da defesa da primeira tese de doutorado em jornalismo, por Tobias Peucer, em 1690, na Alemanha, o jornalismo ganha cada vez
mais espaço acadêmico, com a criação de grupos de pesquisa, cursos de pósgraduação, revistas especializadas e associações científicas. A variedade de linhas
de pesquisa, a diversidade dos estudos, a quantidade de pesquisadores envolvidos
e a qualidade das revistas especializadas indicariam a vitalidade do jornalismo
como objeto de estudo científico (MACHADO, 2004). No Brasil, nos últimos
anos, registra-se o crescimento das pesquisas em história da mídia e, em especial,
do jornalismo no país, com fóruns destinados a essa discussão, como GTs específicos na Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação), na Associação Latino-Americana de Investigadores em Comunicação
(Alaic) e na Associação Nacional de História (Anpuh); a constituição da AssociaPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
ção Brasileira de História da Mídia (Alcar), em 2001; do GT de Memória nas Mídias pela Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós), em 2015; da Rede Historicidades dos Processos Comunicacionais,
criada em 2015 e que integro desde 2017, e do grupo de pesquisa Imprensa e Circulação de Ideias: O Papel dos Periódicos nos Séculos XIX e XX, que a Fundação
Casa de Rui Barbosa formalizou em 2016, corroboram o crescimento dos estudos
ligados ao tema.
Boa parte desses estudos é conduzida por jornalistas que se tornaram pesquisadores, ou seja, envolvidos, no passado ou concomitantemente, nos processos
produtivos sobre os quais pesquisam. Cabe destacar que o campo acadêmico é
ocupação de significativa parcela de jornalistas. Em levantamento de Bergamo,
Mick e Lima (2012) com 2.731 jornalistas brasileiros de todos os estados e no
exterior, 4,4% dos entrevistados conjugam o trabalho como docentes com outra
função (na mídia ou fora dela), e 4% são exclusivamente docentes (entre os quais
me incluo).
Em análise da produção recente sobre história da mídia, Ribeiro & Barbosa
(2009) identificaram a predominância de estudos que destacam grandes feitos,
personagens emblemáticos específicos, e transformações singulares do mundo do
jornalismo. Para as autoras, mesmo munidos de ferramentas teóricas ou metodo-
21
lógicas, os pesquisadores-jornalistas reproduzem, do ponto de vista histórico,
“uma idealidade das práticas históricas desse universo comunicacional” (2009, p.
10). Operando uma seleção a partir de seu interesse pelo excepcional, pelo sensacional, pelo espetacular, carregariam, de um campo a outro, muito do seu habitus
(BOURDIEU, 1997): parâmetros deontológicos, discursivos e práticas que permeiam o campo profissional, que implica uma construção social da realidade capaz de exercer efeitos sociais de mobilização ou de desmobilização (p. 28). Parece
ocorrer certa intertextualidade acadêmica, no sentido que Bourdieu aponta no jornalismo como “circulação circular da informação”: a importância de uma informação vem também do que as outras publicações falam dela. Para ele, a prática da
intertextualidade midiática funciona como um “jogo de espelhos” que resulta num
“encerramento mental” entre os membros do campo jornalístico (BOURDIEU,
1997, p. 24). Assume-se aqui que o mesmo vale para práticas de outros campos,
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como o acadêmico: se se selecionam as mesmas fontes e se enfatizam os mesmos
aspectos, o resultado tenderá a ser homogêneo. Esse mimetismo pode levar a um
funcionamento em coro da imprensa (e da academia), polarizado sobre os mesmos
temas, superpondo as mesmas temáticas. Para Neveu (2006), esse mimetismo não
é aleatório – segue as linhas de força de um campo:
As publicações mais poderosas do ponto de vista intelectual ou comercial são os
pontos de partida para a reação em cadeia (MARCHETTI, 1998). O fenômeno ilustra uma propriedade dos campos: o poder de “deformar o espaço”, de aspirá-lo na
direção de seus agentes dominantes (NEVEU, 2006, p. 93).
Elias Machado (2004) analisa a produção de estudos sobre jornalismo em
três partes: o reconhecimento da prática profissional como objeto legítimo de pesquisa; o desenvolvimento de metodologias adequadas às particularidades do campo; e o financiamento às experiências multidisciplinares para pesquisas aplicadas,
aproveitando o mapeamento para, tomando como base a distinção entre estudos
do jornalismo e teorias do jornalismo, discutir alguns pressupostos para a consolidação do jornalismo como campo de conhecimento. Em seu levantamento, Machado encontrou “uma maioria de pesquisadores que permanece numa relação
instrumental com o objeto, utilizado para testar metodologias de outras áreas de
conhecimento, sem a necessidade de compreender a natureza específica da prática
jornalística e interessada em responder a perguntas oriundas de espaços de conhecimento distintos” (p. 4). E postula estimular o desenvolvimento de metodologias
22
adaptadas à compreensão do jornalismo como prática profissional, como objeto
científico ou como campo especializado de ensino.
Enquanto um pesquisador de um outro campo que estuda o jornalismo pode, porque suas perguntas são de outra ordem, satisfazer-se em aplicar metodologias oriundas de suas próprias disciplinas, um pesquisador que esteja interessado em descobrir as especificidades do jornalismo, seja como prática profissional, seja como
campo especializado de ensino, deve preocupar-se, antes de mais nada, em como
viabilizar a criação de metodologias de pesquisa ou de ensino adaptadas às particularidades do jornalismo (MACHADO, 2004, p. 5).
Machado faz a distinção entre os estudos de jornalismo, realizados com metodologias oriundas em outros campos de conhecimento; e as teorias do jornalismo, que a seu ver seria o primeiro passo para “um salto qualitativo nas pesquisas
em jornalismo e para que o jornalismo obtenha o certificado de objeto científico
com status próprio” (MACHADO, 2004, p. 8). A argumentação reforça a defesa
de fronteiras entre campos de saber e de legitimação do campo jornalístico, quesPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
tões mobilizadas nesta tese.
Por exemplo: Silva (2006) fez um levantamento das reportagens vencedoras
do Prêmio Esso de Jornalismo. Classificou as matérias por categorias temáticas, e
concluiu que o prêmio vem privilegiando a reportagem política em detrimento das
temáticas sociais. Os “grandes temas nacionais” também são privilegiados tanto
nos periódicos como nos livros, nas pesquisas acadêmicas e nos discursos autorreferentes e memoráveis da empresa e dos próprios jornalistas. Nos numerosos livros, teses e dissertações produzidos sobre a história da imprensa no Brasil – levantados em revisão bibliográfica e indicados nas referências –, é dado amplo
destaque ao papel político dos veículos, a adesões e resistências, sobretudo, pósmodernização, na última ditadura militar. É sistemática a referência às primeiras
páginas do auge da repressão política nos anos 1960 e 70, com a previsão do tempo sufocante do JB, e as receitas culinárias e os poemas de Camões substituindo
reportagens políticas censuradas no Estado de S. Paulo. Tal seleção decorre de e
implica, simultaneamente, um ideal do jornalismo e da figura do jornalista, ligados ao interesse público, ao bem comum. O período coincide com o momento de
profissionalização do jornalismo no país. Jornalistas que exerceram protagonismo
no período, Alberto Dines, Janio de Freitas, Wilson Figueiredo6, Carlos Lemos,
6
Jornalista apontado como o que por mais tempo trabalhou no JB (50 anos, de depois de Barbosa
23
Ana Arruda Callado, para citar alguns, estão entre os mais procurados, entrevistados, citados. Notabilizam-se pelo caráter sociopolítico de seu trabalho, assim como pela atuação direta no processo de constituição e legitimação de um campo
jornalístico.
Essa ênfase ocorre, por exemplo, em O mundo dos jornalistas, no qual a
jornalista, professora e pesquisadora da imprensa Isabel Travancas (2011) entrevista grandes nomes do jornalismo nacional nos anos 1990. Mesmo personagens
com importante participação na criação de suplementos e cadernos literários e
culturais que marcaram época lembram-se (ou são instados a se lembrar) de momentos “nobres” em editorias tidas como mais importantes. Entre eles estão Sérgio Augusto, que editou o Segundo Caderno do Correio da Manhã, o Caderno B,
publicou Este mundo é um pandeiro e As penas do ofício: ensaios de jornalismo
cultural, e na ocasião da entrevista escrevia para o Caderno 2 de O Estado de S.
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Paulo e para a revista Bravo; Janio de Freitas, o artífice da reforma que deu à cultura o seu espaço fixo; Zuenir Ventura, ex-editor do caderno B e criador do Ideias,
ex-colunista do Caderno B e do Segundo Caderno e hoje em O Globo; Luiz Paulo
Horta (1943-2013), que iniciou no JB em 1964, crítico de música no B e no Segundo Caderno; Cícero Sandroni, ex-editor de Cultura do Jornal do Commercio,
membro da Academia Brasileira de Letras e seu ex-presidente, além de Moacyr
Werneck de Castro e Newton Carlos. Há, portanto, uma clara relação entre os
nomes selecionados pela autora e o jornalismo cultural nacional. Entretanto, esse
“lado B” não aparece, já que as entrevistas se concentram no lado do jornalismo
tido como “sério”, com ênfase no perfil do “jornalista ideal”, a responsabilidade, a
ética, o romantismo e a própria nostalgia (JÁCOME; VIEIRA, 2018).
Na consolidação desse ideal normativo próprio, os jornalistas trataram de
afastá-lo da literatura – uma autonomização do campo jornalístico frente ao campo literário, como indica Bourdieu (1996). Exemplo disso é “O desemprego do
poeta”, que Affonso Romano de Sant’Anna7 publicou em 1961 no Suplemento
Dominical do Jornal do Brasil e em livro no ano seguinte. No texto, o autor des-
Lima Sobrinho (1921-2000), como repórter, colunista e principalmente editorialista.
7
Affonso Romano de Sant’Anna foi cronista no Jornal do Brasil, assumindo o espaço de Carlos
Drummond de Andrade, de 1984 a 1988. Nas décadas de 1950 e 1960 participou de movimentos
de vanguarda poética.
24
taca o que denominava ser a crise da poesia contemporânea, entendendo que naquele momento o poeta parecia ter perdido sua função na sociedade industrial.
Esboçando uma narrativa sobre o papel dos poetas em diversos momentos da história, o autor destacava que durante o romantismo e a partir da revolução industrial houve uma mudança na legitimidade da função da literatura:
assim, a poesia, que no século anterior sobre-existia graças ao prestígio do poeta,
foi substituída, uma vez que o próprio poeta também o foi, na descida da pirâmide,
pelo artista do rádio, cinema, futebol e pelo jornalismo moderno [...] E o poeta passou a ser nome pejorativo... (SANT’ANNA, 1962, grifo meu).
Ou seja, passam-se a valorizar outras atividades na sociedade “moderna”,
nas quais o literato, o poeta, teria perdido sua função em favor dos jornalistas.
Apesar do tom melancólico de Sant’Anna em seu diagnóstico, essa idealização
marca positivamente o discurso de modernização do jornalismo em nosso país, em
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substituição ao que seriam as práticas literárias dos jornais “pré-modernos”, desdizendo Oswald de Andrade, que decretara no Manifesto da Poesia Pau-Brasil,
publicado no Correio da Manhã: “A poesia existe nos fatos” (1924). Ou Carlos
Drummond de Andrade, que sempre bebeu nos jornais para escrever e dissera em
Carta a Stalingrado em 1943: “A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais”
(2008).
Conforme aponta a jornalista, professora e pesquisadora Cristiane Costa
(2005), se na fase dos grandes publicistas como Hipólito da Costa; dos políticosjornalistas-escritores, como José Bonifácio; e mesmo a dos polígrafos, como Olavo Bilac, os dois tipos de homens de letras ocupavam praticamente o mesmo espaço no jornal e na vida literária, a partir da virada do século XX a literatura se
constituiu como um campo em separado, em que um ideal de arte pura e desinteressada se contrapõe à possibilidade de profissionalização, sinônimo de massificação, do texto jornalístico. Aos poucos, os escritores começam a se afastar e a serem afastados dos jornais. O processo se exacerba a partir do great divide modernista, entre as décadas de 1920 e 1950, que, não por acaso, coincide com o primeiro boom do mercado editorial brasileiro e com a crescente industrialização dos
jornais (COSTA, 2005). A considerar a crescente participação de jornalistas na
produção acadêmica e literária, o jornalismo parece ter fugido dos jornais, agora
está nos livros. Não se considera isso uma novidade. Jornalistas sempre escreve-
25
ram livros. Mas parece oportuno pensar num movimento de uso desses para a reafirmação de valores do campo jornalístico.
Em pesquisa realizada na França por Bastin e Ringoot, apresentada no Brasil por Moura, Pereira e Adghirni (2015), os autores tratam dos livros sobre jornalismo escritos por jornalistas, um objeto que identificam como pouco considerado
no estudo do jornalismo. Sua hipótese é a de que jornalistas publicam cada vez
mais livros na França8, e que esta prática pode ser interpretada como um indicador
de mudanças na atividade jornalística. A partir de um levantamento dos livros de
jornalistas publicados na França no século XX, os autores afirmam ter encontrado
o “quadro de uma profissão atraída de forma crescente por essa estratégia profissional e discursiva” (BASTIN & RINGOOT, 2015, p. 195). Chama a atenção o
fato de terem identificado um crescimento da produção nos anos 1980-2000 equivalente ao ocorrido nos anos 1940-50 – períodos bem próximos aos identificados
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nesta pesquisa como emblemáticos no Brasil. Levando em conta as distinções
entre a realidade brasileira e a francesa, parece haver semelhanças significativas,
como a de que o encolhimento do mercado de trabalho “levou jornalistas a procurar em outros mundos um paliativo a situações profissionais degradadas” (p. 200).
Portanto, mesmo não sendo nova, a prática de os jornalistas escreverem livros
adquiriu visibilidade e legitimidade na história da profissão. A questão, continuam, é pensar o quanto os jornalistas que publicam livros participam de uma redefinição das fronteiras do jornalismo, do ponto de vista das condições de exercício
da profissão, de seu status social e da autoridade da qual desfrutam. Este fenômeno, acreditam os autores, pode estar entre as diversas manifestações contemporâneas de enfraquecimento do status profissional dos jornalistas e das capacidades
de mobilização das organizações mediáticas, mas pode também indicar um possível reforço do status simbólico dos jornalistas, por um posicionamento no espaço
público em nome próprio, e pela singularização de formas de atividade e de reputações (p. 213).
Boa parte da historiografia sobre jornalismo está balizada por uma história
orientada, em perspectiva memorialista, que tende a privilegiar a ruptura e uma
concepção linear do tempo (RIBEIRO & BARBOSA, 2009). Eles mudaram a
8
O levantamento foi feito a partir do catálogo da Biblioteca Nacional da França, que recenseia os
autores com informações biográficas detalhadas, permitindo esse recorte.
26
imprensa – Depoimentos ao CPDOC (ABREU et al., 2003), abrindo as comemorações pelos 200 anos da imprensa no país, reúne os depoimentos de seis jornalistas: Evandro Carlos de Andrade, Alberto Dines, Mino Carta, Roberto Müller Filho, Augusto Nunes e Otavio Frias Filho. Na apresentação, a pesquisadora lembra
que houve muitos reformadores antes deles, como Danton Jobim, Samuel Wainer,
Janio de Freitas, Reynaldo Jardim, entre outros. Mas alega que a seleção se deveu
a que esses seis “inauguraram – com outros não citados aqui, é fato – um novo
tipo de jornalismo” (grifo meu). Qual seria, então, este novo tipo de jornalismo
que se elege para a posteridade? O texto dá a pista: os seis foram selecionados por
sua “competência especial” na área de gerência e direção. A Alberto Dines (19322018), que é apontado por muitos como o grande artífice da era de ouro do Jornal
do Brasil, são dedicadas nada menos que 108 páginas. Embora não tivesse formação universitária, é símbolo do jornalismo nacional, por seu trabalho pela profis-
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sionalização e pela valorização dos jornalistas e do jornalismo.
Em outra frente, iniciativas institucionais e/ou corporativas endossam o protagonismo de certos personagens e singularidades do mundo do jornalismo. O
livro Memória de Repórter: lembranças, casos e outras histórias de jornalistas
brasileiros (décadas de 1950 a 1980), que o Centro de Cultura e Memória do Jornalismo (CCMJ) do Sindicato dos Jornalistas do Rio organizou em 2010, é estruturado a partir de depoimentos de 60 jornalistas ao CCMJ. O texto de apresentação da Petrobras, patrocinadora do projeto, explica que são reunidos “depoimentos de jornalistas que ao longo das últimas décadas fizeram jornais e revistas –
fizeram história”. “Jornais contam o cotidiano, a soma de cotidianos faz história.
E quem conta os cotidianos do mundo? Quem fazia os jornais e revistas em seus
tempos de desafio e romantismo? Que lições daquele tempo merecem ser guardadas?”, indaga o texto de apresentação, garantindo que, “por meio desses depoimentos, é possível traçar a trajetória não apenas da imprensa, mas do próprio país” (BLASS, 2010, p. 3). É mais um exemplo de como jornais são tomados como
documentos da história, e jornalistas como testemunhas da história – o que, sem
desmerecer a sua importância, merece ser problematizado como uma construção
de sentidos, ou como um reforço de visões cristalizadas.
27
Dos 60 jornalistas convidados, 38 (63%) passaram pelo Jornal do Brasil9. É
compreensível que a seleção privilegiasse nomes da imprensa carioca, pelo fato de
o sindicato que organizou o projeto ser o do município do Rio. Mas o título do
livro indica se tratar de “histórias de jornalistas brasileiros”. Há, portanto, um reforço conveniente para a imprensa carioca reafirmar a influência do Jornal do
Brasil na imprensa nacional. Há um capítulo específico sobre A nova era inaugurada pelo Jornal do Brasil, título que reitera uma ideia de ruptura. Há um endosso
da figura do repórter como emblema do jornalismo, embora vários dos entrevistados tenham atuado mais tempo e mais significativamente em outras funções.
Também há um evidente recorte político. O livro se divide em duas partes: Anos
Vibrantes, sobre os anos 1950 (que destaca a cobertura do suicídio de Vargas, a
briga de Samuel Wainer, da Última Hora com Carlos Lacerda, da Tribuna da Imprensa, e as reformas do Correio da Manhã e do Jornal do Brasil), e Anos Som-
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brios, do golpe militar de 1964 até a campanha das Diretas Já (BLASS, 2010, p.
9) – corte temporal que acentua a preferência pelo período. Se não havia mais
jornalistas vivos para lembrar fases anteriores, vários dos entrevistados estavam
ainda em redações nos anos 1990, que ficaram de fora.
John Nerone também vê, na historiografia da imprensa norte-americana, certo privilégio da ruptura em relação às continuidades, e certa tendência de se referir
a diferentes processos (como a relação do jornalismo com o mercado e a política)
como sucessivos estágios de desenvolvimento. No entanto, o autor defende que, ao
contrário, “ditos processos deveriam ser vistos como camadas sobrepostas e elementos simultâneos de uma complexa rede de relações que integram as mídias
noticiosas” (2013, p. 448, tradução livre do original em inglês). Nesse sentido,
Koselleck contribui para pensar outras camadas e estratos concorrentes, balizado9
Em ordem alfabética, e em grifo os que trabalharam no JB: Alberto Dines, Alberto Jacob, Álvaro Caldas, Ana Arruda Callado, Arthur Poerner, Audálio Dantas, Augusto Nunes, Bartolomeu Brito, Bertholdo de Castro, Caco Barcellos, Carlos Alberto Caó, Carlos Lemos, Cícero
Sandroni, Clovis Rossi, Dácio Malta, Domingos Meirelles, Evandro Teixeira, Fernando Segismundo, Ferreira Gullar, Flávio Damm, Fritz Utzeri, Fuad Atala, George Vidor, Germana de
Lamare, Henrique Caban, Israel Tabak, Janio de Freitas, Jorge de Miranda Jordão, José Hamilton Ribeiro, José Louzeiro, Lan, Luarlindo Ernesto, Luis Edgar Andrade, Luiz Alberto
Bettencourt, Luiz Carlos Saroldi, Luiz Garcia, Luiz Mendes, Marcelo Beraba, Marcos de Castro, Maria Inês Duque Estrada, Mario Morel, Maurício Azêdo, Milton Coelho da Graça, Murilo
Mello Filho, Mylton Severiano da Silva, Oliveiros Ferreira, Otavio Frias Filho, Oséas de Carvalho, Pedro do Coutto, Percival de Souza, Pery Cotta, Renato Pompeu, Ricardo Kotscho, Roberto
Müller Filho, Sandra Passarinho, Sérgio Cabral, Thomaz Souto Corrêa, Villas-Boas Corrêa,
Wilson Figueiredo e Zuenir Ventura. Note-se que Saroldi ficou conhecido por seu trabalho
como apresentador e entrevistador na Rádio JB AM, emissora do Sistema Jornal do Brasil.
28
res, questionadores ou tangenciais a uma concepção linear e normativa de jornalismo:
toda sequência histórica contém elementos lineares e elementos recorrentes. A circularidade também deve ser pensada em termos teleológicos, pois o fim do movimento é o destino previsto desde o início: o decurso circular é uma linha que remete a si mesma (KOSELLECK, 2014, p. 19).
O autor postula que nossas ações se desenrolam em diferentes estruturas
singulares e repetidas que, estratificadas, coligem e colidem em variados ritmos
temporais. Os distintos processos sociais e políticos nos quais estamos imersos,
ainda que aconteçam cronologicamente ao mesmo tempo, partem de temporalidades múltiplas e não necessariamente dependentes. Nesse sentido, a proposição de
diferentes estratos do tempo permite que tratemos de velocidades de mudança
díspares, sem que sejamos obrigados a optar por uma falsa alternativa entre um
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tempo linear ou circular: “Muitas coisas acontecem ao mesmo tempo, emergindo,
em diacronia ou em sincronia, de contextos completamente heterogêneos” (2014,
p. 9). Tal perspectiva nos ajuda a pensar as múltiplas camadas que compõem os
discursos oficial e corporativo a respeito do JB e do jornalismo, e que vão se imiscuindo tanto em direção ao seu passado quanto ao presente e ao futuro – num
tempo de incertezas próprio da chamada modernidade tardia – no qual o jornalismo está inserido.
Não se trata aqui de tomar partidos ou de confrontar fatos e versões: como
sugere Pollak, “a única saída é admitir a pluralidade da história, das realidades,
das cronologias historicamente admissíveis” (1992, p. 10), como advertem Alfredo Herkenhoff, autor de um dos livros sobre o JB, sobre “os estragos e benefícios
que o tempo, num processo de mitificação, vai impingindo às narrativas orais”
(HERKENHOFF, 2010, p. 53), e Ana Arruda Callado em seu depoimento ao livro
Memórias de repórter, do CCJM:
Contei tudo o que lembrei aqui e agora, mas posso ter fantasiado algumas coisas e
exagerado em outras, porque a memória vai sendo sempre construída, destruída e
reconstruída. Todo depoimento deve ser visto com reservas. Não menti, mas uma
ou outra coisa a gente termina modificando, porque dentro da cabeça mudou mesmo (CALLADO10, em BLASS, 2010, p. 9).
10
A jornalista explica seu conhecimento das operações da memória no livreto Meninos, eu ouvi,
em que conta que estudou Maurice Halbwachs e Jacques Le Goff no seu doutorado em Memória
29
Um dos motes das lutas políticas, seja nas trocas cotidianas ou em maior escala, é a capacidade de impor princípios de visão do mundo (BOURDIEU, 1997).
Toma-se por pressuposto, como Barbosa (2009), que referências ao passado ou ao
presente são estabelecidas em atos comunicacionais: tanto a história como a comunicação se valem de atos narrativos para configurar uma história inteligível
com começo, meio e fim, sendo o fim simultaneamente ponto de chegada e finalidade, como diz Bourdieu. Assim, do presente, olhamos o passado e projetamos o
futuro. Mas o passado só existe como representação mental a partir do olhar de
hoje, também transitório, sempre transformado pela interpretação que fazemos
acerca desse passado. Como o passado não é fixo, também o presente não é.
1.1. Mitos: eram os jornalistas deuses?
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Ao citar os “amontoados de erros, mitos e superstições que inibiram a
acumulação rápida dos elementos constituintes do moderno texto científico”, dentro de suas formulações de paradigma e revoluções científicas, Thomas Kuhn toma mito no sentido de crença para dizer que “mitos podem ser produzidos pelos
mesmos tipos de métodos e mantidos pelas mesmas razões que hoje conduzem ao
conhecimento científico”, e concluindo que “a ciência inclui conjuntos de crenças” (KUHN, [1962] 1997, p. 20-21).
Partindo do senso comum, mito, no Dicionário Aurélio, pode significar “1.
Relato sobre seres e acontecimentos imaginários, acerca dos primeiros tempos ou
épocas heroicas. 2. Narrativa de significação simbólica, transmitida de geração
em geração dentro de determinado grupo, e considerada verdadeira por ele. 3.
Ideia falsa, que distorce a realidade ou não corresponde a ela. 4. Pessoa, fato ou
coisa real valorizados pela imaginação popular, pela tradição, etc. 5. Coisa ou
pessoa fictícia, irreal; fábula” (FERREIRA, 2004). Particularmente a segunda e a
quarta acepções são identificadas na história e nas memórias articuladas em torno
do Jornal do Brasil, problematizadas aqui a partir das concepções de mito em
Barthes (1993), Benjamin (2013), Gagnebin (2014) e Finley (1989).
Social (e que foi repreendida por não usar citações...).
30
No clássico Mitologias, Rolland Barthes (1993) observa que “o mito é uma
fala”, na perspectiva linguística de Saussure, atribuindo sentidos conotativos –
valores subjetivos – àquilo que nomeia. Logo, na medida em que naturaliza valores histórico-culturais e universaliza aqueles particulares e específicos a determinados grupos, é uma ideologia. Observam-se os discursos memorialísticos e autorreferentes sob esta perspectiva.
Na esteira de uma longa tradição filosófica, oriunda em Platão, Walter Benjamin associa mito a história. Como aponta Gagnebin (2002), a atenção de Benjamin com a questão do mito, desde a juventude, parece ser exatamente a outra
face de sua atenção com a história, e, portanto, devem ser pensadas sempre juntas.
Na filosofia grega, opõe-se mythos a logos. Benjamin postula que se trata, na verdade, de distinguir a ordem da vida natural, onde reinam as forças da natureza e
do mito, e a ordem da vida histórica, onde prevalecem as decisões tomadas e asPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
sumidas pelos homens para agir moral e historicamente. Há, portanto, um resquício dos mitos que sobrevive ao tempo, instituindo uma orientação moral e histórica a ser seguida – as tradições. O historiador norte-americano Moses Finley resume a ideia:
Na Grécia antiga certas coisas eram feitas num templo, e o povo concordava que
deixar de fazê-las seria uma heresia. Mas, se você tivesse perguntado por que elas
eram feitas, provavelmente teria recebido várias explicações mutuamente contraditórias, [...] histórias diferentes a respeito das circunstâncias em que o rito foi estabelecido pela primeira vez, por determinação ou exemplo direto do deus. O rito, em
suma, não estava ligado a um dogma, e sim a um mito” (FINLEY, 1989, p. 6).
Finley (1989) também acentua que a atmosfera na qual os pais da história
começaram a trabalhar estava impregnada de mitos. Sem o mito, acredita, nunca
teriam iniciado seu trabalho, na medida em que a busca por saber como as coisas
foram realmente exige estabelecer que coisas merecem consideração. O épico e a
tragédia serviram não só para lembrar os gregos das origens de seus ritos, muito
importante para a comunidade, arraigada a seus padroeiros e ancestrais divinos. O
mito era o grande mestre dos gregos em todas as questões do espírito. Com ele,
aprendiam moralidade e conduta, as virtudes da nobreza e a ameaça da hybris (o
excesso ou o ultraje), entre outras (FINLEY, 1989, p. 6). Portanto, bem antes da
história, o mito deu uma resposta. Uma de suas funções é tornar o passado inteligível e compreensível, selecionando e focalizando algumas partes, que adquirem
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permanência, relevância e significado universal. Vale lembrar a indagação em
Memórias de repórter: “Que lições daquele tempo merecem ser guardadas?”.
Sendo um sistema de comunicação, uma mensagem, o mito não se reduz ao
objeto em si: é, como aponta Benjamin, “uma matéria já trabalhada, pressupondo
uma consciência significante”. Para o autor, o mito não é nem uma mentira nem
uma confissão: é uma inflexão, “encarregada de transmitir um conceito intencional”: “Atingimos assim o próprio princípio do mito: transforma a história em natureza” (1994, p. 150). Nas palavras de Finley, “a tradição não transmitia meramente o passado; ela o criava” (1989, p. 18).
Isso não quer dizer que os mitos não contenham fatos concretos: fazem
parte destes “descrições minuciosas de guerras, viagens marítimas, banquetes,
funerais e sacrifícios, todos muito reais e vívidos, de uma forma que às vezes asPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
semelha-se à história” (p. 18). Mas o interesse não está na cronologia: “apesar de
muitos números serem determinados, não servem de base para cálculos ou sincronizações; simplesmente indicam, de modo amplo, uma magnitude ou escala, e em
sua pseudoprecisão estilizada simbolizam uma longa duração” (p. 6). Fatos e datas, portanto, não têm necessariamente ligação com acontecimentos anteriores ou
posteriores, mas causam um efeito de realidade nas narrativas mitológicas – que
são, fundamentalmente, atemporais.
O historiador lembra que o pensamento grego dividia o passado em duas
partes: a era heroica e a era pós-heroica, ou o tempo dos deuses e o tempo dos
homens. A primeira foi determinada e descrita pelos “criadores de mitos”, que
transmitiam oralmente eventos históricos (inclusive detalhes pessoais sobre as
famílias nobres) e religiosos e “material puramente imaginário”:
A consciência e orgulho pan-helênicos ou regionais, o governo aristocrático e especialmente seu direito de governar, suas notáveis qualificações e virtudes, uma
compreensão dos deuses, o sentido das práticas religiosas – estes e outros propósitos semelhantes eram atendidos pela contínua repetição dos relatos antigos e pela
constante reconstrução destes, pois sempre havia a ocorrência de novas condições
(FINLEY, 1989, p. 6).
Nessa primeira fase, a tradição oral criada e mantida teve como resultado
um passado mítico baseado em elementos díspares, e cuja origem remetia a períodos de tempo bastante esparsos: “Eles estavam voltados para o passado; a princí-
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pio, presumivelmente, para o passado mais recente; com o passar do tempo, porém, foram-se atendo progressivamente a épocas mais remotas – em grande parte
de modo deliberado” (FINLEY, 1989, p. 18).
A segunda fase é simbolizada por relatos dos épicos e outros documentos
mitológicos, que ajudam a estabelecer os textos dos relatos, criando uma versão
autorizada, em meio a interesses políticos e regionais muitas vezes conflitantes. A
criação de mitos prosseguiu com a introdução de novos ritos e deuses, e com a
combinação de elementos antigos a novas formas, exigindo um ajustamento da
mitologia herdada. “O processo de criação mítica não terminou no século VIII;
ele nunca parou totalmente” (FINLEY, 1989, p. 18-19). No entanto, Finley entende que toda essa atividade posterior de criação mítica foi secundária, porque o
“mapa mítico” já estava delineado, com os interesses movendo-se em novas dire-
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ções. O historiador observa a força que exerce a palavra “tradição”.
Há a tradição que estrutura grande parte de nossas vidas, perpetuando costumes,
hábitos de comportamento, ritos, crenças e normas éticas. Nesse sentido, a tradição não guarda mistério algum; ela é transmitida de uma geração a outra, em parte
através do processo comum da vida em sociedade, sem nenhum esforço consciente
de ninguém e, em parte por homens cujas funções consistem exatamente em transmiti-la: padres, professores, parentes, juízes, líderes de partidos, censores, vizinhos
(FINLEY, 1989, p. 20, grifo meu).
Ao mesmo tempo, acentua que a tradição está ligada a uma prática ou crença: “Suas explanações e narrações [...] raramente são muito precisas e, às vezes,
completamente falsas. A confiabilidade, naturalmente, é irrelevante, pois, desde
que seja aceita, a tradição funciona e precisa funcionar; caso contrário, a sociedade deixaria de existir” (p. 20). Como no mito benjaminiano, a memória de grupo
para Finley nada mais é do que a transmissão para muitas pessoas das lembranças
de um ou mais indivíduos, repetida muitas e muitas vezes; e o ato da transmissão
da comunicação e, portanto, da preservação da lembrança, não é espontâneo e
inconsciente, e sim deliberado, com a intenção de servir a um fim conhecido por
quem o executa: “ele pode julgar erroneamente seus motivos, pode formulá-los de
modo obscuro, pode não se dedicar a um processo prévio e longo de reflexão, mas
invariavelmente ele está atuando, fazendo alguma coisa, provocando um resultado
que deseja ou quer”. A tradição oral, portanto, “não é um instrumento com que o
historiador possa contar ‘na natureza das coisas’. Ele sempre deve perguntar Cui
33
bono? [a quem beneficia?] (p. 21). Geralmente, responde Finley, a “famílias nobres” e “sacerdotes”, que tanto tinham interesse de “lembrar” eventos que lhes
convinham como a posição social para sugerir essa lembrança, verdadeira ou falsa, de modo a convertê-la numa tradição pública. O objetivo era imediato e prático, fosse ele consciente ou não, e visava ao aumento de prestígio, à garantia do
poder, ou à justificação de uma instituição (p. 21). Assim, conclui, “o passado só
pode oferecer corroborações paradigmáticas para as conclusões que tiramos do
presente; o passado, em outras palavras, ainda pode ser tratado da mesma forma
atemporal com que tratamos os mitos” (p. 25).
Também na América nossos mitos de origem tensionam a história. Como
aponta a professora e pesquisadora Vera Follain de Figueiredo, com a chegada
dos europeus, os povos originários perderam o domínio do espaço e do próprio
tempo, iniciando um processo contínuo de autoconstrução que nos inserisse na
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tradição ocidental: “sempre nos perseguiu aquela estranha sensação de que a história latino-americana é determinada por fatores que nos são alheios” (FIGUEIREDO, 1994, p. 29). Veio a necessidade de ser moderno, de entrar na era da razão. Fatores econômicos e políticos levaram a uma modernização desigual, em
que “a entrada triunfal na história, com autonomia e independência, foi sendo adiada, ainda que tentássemos romper com o passado colonial, apagar origens, adotar
novos modelos” (p. 17):
Experiência constante de atropelo, nossa trajetória impediu a assimilação do passado, nos aprisionando num ‘presente expectante’, como nos fala Leopoldo Zea. O
sentido desta história, que parece determinada por fatores externos, teima em nos
escapar e tem sido objeto de indagação permanente de nossos intelectuais (FIGUEIREDO, 1994, p. 18).
Em suas pesquisas sobre as imagens da história latino-americana na ficção
contemporânea, Vera observa que nunca foi tranquilo para a literatura latinoamericana trabalhar nossa inserção na história, desde mesmo os primeiros documentos:
[...] as cartas dos viajantes estão impregnadas de imaginação que preenchia as lacunas deixadas por tudo aquilo que escapava ao mundo codificado pelo “saber ocidental”. O relato testemunhal se deixava, assim, invadir pela fábula que conferia ao
novo, ao diferente, o estatuto de maravilha (FIGUEIREDO, 1994, p. 17-29).
34
Vera retoma a leitura que Oswald de Andrade faz da primeira fase da modernidade, que ele nomeia Ciclo das Utopias, desde a descoberta da América até o
Manifesto Comunista. Em sua visão eufórica da América, Oswald vê o papel decisivo do novo continente para a concepção de uma utopia num momento de impasse da Europa, em meio à insatisfação com o presente. Interessa-lhe o pensamento utópico, o sonho de um mundo novo gerado pelos relatos de viajantes sobre
sociedades e formas de organização até então ignoradas. Para Oswald, nossa inserção na história do mundo ocidental se deu pela utopia, sugerindo alternativas,
estimulando mudanças, provocando a imaginação alheia. Neste sentido, busca
chamar atenção para a alteridade como um valor positivo, e como um caminho
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para fugir do impasse gerado pela imposição de uma visão única da história:
A dificuldade de fazer do passado uma experiência, um apoio, de assimilá-lo e dele
partir para algo diferente [...], está na raiz da nossa experiência com o tempo, apontando para uma relação problemática com a modernidade. Se a modernidade é filha
do tempo retilíneo em que o presente não repete o passado, e se o Ocidente se identificou com o tempo, como observa Octavio Paz, ser moderno implica uma forma
específica de experimentar a tríplice dimensão histórica: passado-presente-futuro
(FIGUEIREDO, 1994, p. 28-29).
A temporalidade moderna, guiada por uma lógica de encadeamento entre
passado, presente e futuro, esbarrava com a nossa irrupção abrupta no mundo ocidental, com a difícil relação com o passado e com a impressão de que o futuro
sempre nos escapava. Ao longo do século XX, tentamos, muitas vezes, contornar
esse problema recorrendo ao pensamento mítico para impregnar de esperança
aquela constante sensação de andarmos em círculos.
1.2. Memória, experiência, nostalgia
Ao lembrar os versos da Odisseia de Homero em que a velha ama Euricleia
reconhece Ulisses pela cicatriz deixada pela caçada a um javali, em companhia do
avô, Jeanne Marie Gagnebin atenta para as condições em que se deu a ferida emblemática, num rito de família, que evidencia na história a importância da continuidade das gerações, o tema da filiação e a aliança; e ainda para a força das palavras, encantações que curam. Escava a cicatriz deixada pela experiência, com a
qual e através da qual “guardam-se a continuidade de gerações (filiações), alian-
35
ças e eficácia da palavra, narrativa. É ela – a experiência – memória e lembrança,
história” (2002, p. 125).
Memória é experiência vivida, configurada pela dialética lembrança e esquecimento, lugar de disputas, conflitos, na busca incessante por sentido. A historiografia, por outro lado, é permanente desconstrução, operação intelectual que
exige interpretações, análises, críticas, que aponta para as diferenças, tensões e
interditos (NORA, 1993). A partir de Paul Ricoeur (2007), entende-se que a memória produz a autenticidade do testemunho como algo vivido no passado. O testemunho dá ao portador daquela reminiscência a autoridade de ter presenciado
algo que aconteceu e que poderia trazer de volta. A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida
em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si
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(POLLAK, 1992).
A nostalgia, grosso modo, é um tipo particular de prática mnemônica, na
qual os vínculos entre passado, presente e futuro se tensionam num movimento
que supervaloriza o “campo de experiência” em detrimento do “horizonte de expectativa” (KOSELLECK, 2006). A partir do percurso de negociações e conformações de uma identidade jornalística brasileira tida como ideal e estável, pretende-se investigar a lógica da nostalgia presente na comunidade jotabeniana e no
relançamento do Jornal do Brasil; e os usos do passado configurados no próprio
horizonte de expectativas de jornalistas e empresas jornalísticas.
É nos meios de comunicação que ele ganha maior visibilidade e poder de
agenciamento social: parece haver uma intrínseca relação entre nostalgia, cultura
da memória e cultura da mídia, e a memória e a nostalgia, através da mídia, constroem identidades sociais e processos de subjetivação (RIBEIRO, 2018). Ou seja,
indo além de um espírito de valorização do passado promovido pelas indústrias
ocidentais da cultura – em que a memória se constitui mercadoria, seja ditando
modas e móveis retrôs, na museologização da vida cotidiana em câmeras, filmadoras e redes sociais, em reencontros saudosistas –, que se convencionou chamar
de cultura da memória.
36
Os discursos sobre o Jornal do Brasil que se voltam para o passado do jornal de forma idealizada são construtores de memórias nostálgicas. Os discursos
dos jornalistas que contam a história do Jornal do Brasil são ancorados numa
memória fortemente marcada pela nostalgia, sobretudo em relação ao modelo de
jornalismo que o veículo ajudou a consolidar a partir da reforma dos anos
1950/60. Vale frisar que essa característica não se restringe às memórias do grupo
que participou ou testemunhou a chamada época áurea do JB, estando também
nos relatos de jornalistas que atuaram no jornal até fins dos anos 1990, e recuperadas em momentos-chave, como a saída de circulação e, agora, no relançamento
do periódico, em 2018.
Marialva Barbosa (2007, p. 80) pondera que este tipo de fala que arquiteta o
passado como superior ao presente, instaurando um momento de glórias e virtudes, em contraposição a um presente onde tais valores anteriores se perderam,
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repete-se sistematicamente na mítica do mundo do jornalismo, e não seria diferente em relação às memórias construídas sobre o Jornal do Brasil. Essa operação
nos remete à ideia de memória feliz, à qual Paul Ricoeur (2007) atribui a origem
de toda a fenomenologia da memória, e que estaria dissimulada na definição da
visada cognitiva da memória pela fidelidade. “As histórias pessoais deste país
foram, sem dúvida, escritas um pouco nas páginas do JB. A gente era feliz... e
sabia!”, disse Ziraldo, em entrevista publicada na edição comemorativa dos 30
anos do Caderno B (B, 15/9/1990, p. 10).
Para Ricoeur, “a fidelidade ao passado não é um dado, mas um voto”, cuja
originalidade é não consistir numa ação, mas numa representação retomada numa
sequência de atos de linguagem constitutivos da dimensão declarativa da memória. Tal desejo, para o autor, não é inicialmente percebido como um voto, mas
como “uma pretensão, uma reivindicação, onerado por uma aporia inicial cujo
enunciado me agradou repetir, a aporia que constitui a representação presente de
uma coisa ausente, marcada pelo selo da anterioridade, da distância temporal”
(RICOEUR, 2007, p. 502).
Mas, se esta noção da memória feliz pode ajudar a entender os vínculos em
torno do Jornal do Brasil, o mesmo não se dá em relação à sistemática atualização
de seus atributos em momentos posteriores ao seu apogeu como veículo de comu-
37
nicação. Em incontáveis ocasiões o jornal recorreu ao seu passado para tentar recuperar prestígio, como na retrospectiva apresentada na edição de relançamento,
que rememora seus momentos de glória. Porém, para além disso, o que sobressai
tanto nos discursos autorreferentes como nos depoimentos de jornalistas da casa é
a (suposta) “imortalidade” de sua “alma”: não é que o jornal foi um dia; o jornal
era, é e sempre será, assim como sua comunidade de jornalistas carregaria também esta marca, um sistema de crença que foi fortemente abalado com a saída de
circulação do jornal. Porque, mesmo já desacreditado, ainda era o JB, como diz
Freud sobre os quadros e estátuas que hoje admiramos e que “um dia se reduzirão
a pó”:
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Talvez chegue um dia em que [...] nos suceda uma raça de homens que não mais
entenda as obras de nossos poetas e pensadores, ou que sobrevenha uma era geológica em que os serem vivos deixem de existir sobre a Terra; mas se o valor de tudo
quanto é belo e perfeito é determinado somente por seu significado para a nossa vida emocional, não precisa sobreviver a ela e, portanto, independe da duração absoluta (FREUD, [1915] 2010, grifo meu).
Quanto a isso, parece esclarecedora a contribuição de Augé (2012) em sua
análise sobre os paradoxos do tempo e as culturas da imanência, suas relações
com a história e as tensões provocadas por acontecimentos inoportunos, que
ameaçam a lógica dos seus sistemas de crença. Para o autor, é possível localizar
em todas as sociedades sua dimensão de imanência, na medida em que a maioria
dos indivíduos e grupos humanos privilegia reduzir ao máximo as contingências.
A expressão “cultura da imanência” pode ser entendida como “uma teoria do
acontecimento que tem por objeto e por consequência negar sua existência ou
refutar seu caráter contingente”, e ao mesmo tempo um conjunto de representações da pessoa, da sociedade, da hereditariedade e da herança que as tornam
aptas a praticar essa negação. “Esses componentes são tanto marcas identitárias
quanto princípios de ação, vetores de energia” (AUGÉ, 2012, p. 16). Le Goff
sustenta que “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar
identidade individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais
dos indivíduos e das sociedades de hoje” (2013, p. 435).
A memória, praticamente inseparável da percepção, intercala o passado no
presente, condensa também, numa intuição única, momentos múltiplos da duração, e, por sua dupla operação, faz com que de fato percebamos a matéria em nós,
38
enquanto de direito a percebemos nela (BERGSON, 1999, p. 77). Para Bergson,
há uma consciência individual que nos leva a perceber um mundo material vasto e
amplo, porém de forma seletiva, ou seja, uma consciência que seleciona pontos de
atenção em detrimento de outros, explica que “a imagem é escolhida para fazer
parte de minha percepção, enquanto uma infinidade de outras imagens permanece
excluída” (1999, p. 40).
Svetlana Boym observa que, diferentemente da melancolia, restrita aos planos da consciência individual, a nostalgia trata das relações entre a biografia individual e a biografia de grupos ou nações, entre as memórias pessoal e coletiva.
Para a autora, a nostalgia apenas parece ser a saudade de um lugar, mas é na realidade um anseio por um tempo diferente, o tempo dos ritmos mais lentos de nossos
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sonhos.
Os desejos nostálgicos de transformar a história em uma mitologia individual ou
coletiva, de revistar os tempos como espaço, tencionam-se contra a irreversibilidade do tempo que atormenta a condição humana. O passado da nostalgia, parafraseando William Faulkner, não é sequer passado. Pode ser apenas um tempo melhor,
ou um tempo mais lento – tempo fora do tempo. Assim, a nostalgia não é antimoderna; ela não é necessariamente oposta à modernidade, mas sim contemporânea a
ela. Nostalgia e progresso são como Jekyll e Hyde: pares e imagens espelhadas um
do outro. Em sentido mais amplo, a nostalgia é uma revolta contra a ideia moderna
de tempo, o tempo da história e do progresso (BOYM, 2017, p. 154).
Mas o que essas nostalgias nos dizem sobre o jornalismo como prática social e sobre os contextos específicos de construção das lembranças? E como nos
ajudam a entender a identidade do profissional de imprensa? Valores, crenças,
normas, práticas e representações oferecem fontes de significado para um grupo.
Esses elementos identitários são constantemente organizados e reorganizados,
como Barbie Zelizer (1992) demonstra ao analisar o discurso dos jornalistas norte-americanos a respeito do assassinato do presidente John F. Kennedy: contando
e recontando as histórias da cobertura no seu tempo presente e depois em relatos
memoráveis sobre o episódio dez, vinte anos depois, foram elaborando e reelaborando sua memória sobre este, ao mesmo tempo em que construíram sua própria
celebridade, como ocorre com o Jornal do Brasil.
Ora, se é um fenômeno construído individual e socialmente, e o outro faz
parte desta construção, é natural o conflito entre a memória individual e a me-
39
mória alheia: “A memória e a identidade são valores disputados em conflitos
sociais e intergrupais, particularmente aqueles que opõem grupos políticos diversos” (POLLAK, 1992, p. 200-212).
A memória, “operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do
passado que se quer salvaguardar”, se integra em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais
entre coletividades – partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, famílias, comunidades,
nações e categorias profissionais. A referência ao passado serve para manter a
coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir
seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também posições irredutíveis:
“O que está em jogo na memória é também o sentido da identidade individual e de
grupo; manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem
em comum, eis as duas funções essenciais da memória comum” (POLLAK, 1989,
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p. 3-15), que observam-se em muitos dos discursos memoráveis recolhidos – o
que, convém salientar, ocorre muitas vezes inconscientemente.
Nas últimas décadas, os usos e os sentidos da nostalgia vêm mudando significativamente, apontando para novas problemáticas em relação à temporalidade
(NIEMEYER, 2012; BEAIL & GOREN, 2015). Nesse contexto, a nostalgia passa
a ser entendida como um fenômeno complexo, que por vezes pode acionar sentidos idealizados e conservadores em relação ao passado – se contrapondo às noções lineares de progresso –, mas que também pode fundamentar utopias e projeções em relação ao futuro. Neste sentido, “a nostalgia pode ser uma utopia às
avessas”, e o desejo de passado expressa o esfacelamento de nossa capacidade de
projeção, nossa dificuldade de imaginar “futuros possíveis” (HUYSSEN, 2014, p.
91). Como lembra Huyssen (2014), um novo tipo de estudo sobre a memória surgiu na Europa nos anos 1980 com a reedição da teoria sociológica de Maurice
Halbwachs e com Les lieux de mémoire (Os lugares de memória), de Pierre Nora,
que influenciaram debates que tinham no divisor memória-história o cerne de uma
grande disputa. História e memória são indissociáveis e imprescindíveis uma à
outra, num processo dual. É preciso revisitar as problematizações a respeito dessa
dualidade.
40
Para Chartier, a memória é a primeira abertura em direção ao passado. É pela memória que o passado se torna algo que pode ser representado pela escrita da
história, ao mesmo tempo em que a memória se torna uma espécie de “fiador da
existência de um passado que foi e não é mais” (CHARTIER, 2009, p. 23). Enquanto a história é regida pela epistemologia da verdade, a memória é governada
pela ideia de fidelidade. Enquanto a memória é fundamental para indicar a presença do passado no presente, construindo laços culturais fundadores entre comunidades, indivíduos e grupos, a história é antes de tudo um saber universalmente
reconhecido como científico. Além da memória, Ricoeur aponta o rastro e a sequência de gerações como conectores para se acessar, entre aspas, o passado, proposição que nos parece pertinente no percurso desta pesquisa, tanto quanto seus
desdobramentos quanto à nostalgia.
Como se sabe, hoje o culto nostálgico do passado perpassa toda a sociedade,
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inclusive as práticas pessoais mais cotidianas, como o desejo de guardar, colecionar e arquivar. Para Huyssen, a obsessão pela nostalgia é um sintoma de algo que
está para além dela e que gostaríamos de entender é uma forma específica de experimentar o tempo que diz muito do que somos, como vivemos e como significamos a nós mesmos e ao mundo ao nosso redor. O apego e a valorização do passado não é um fenômeno novo, mas o boom nostálgico das últimas décadas traz
elementos singulares, que são muito significativos para entendermos nossa cultura
e as maneiras de dinamizarmos nossas identidades ou identificações. A nostalgia
está relacionada à nossa própria temporalidade.
Além da seletividade de toda memória, individual e coletiva, há a escolha de
momentos memoráveis em detrimento de outros. É evidente a seleção e repetição
de determinados momentos-chave do jornalismo brasileiro (imprensa e poder,
ditadura, reforma gráfica do JB), assim como de jornalistas “legitimados” para
falar sobre eles (Alberto Dines, Carlos Lemos, Janio de Freitas etc.). Mas, por
mais óbvia que seja a sua relevância, quantas histórias teriam ficado ocultas sobre
as repetidas versões.
Parece haver um acordo tácito dentro da cultura do jornalismo que estabelece aqueles que podem narrar essa cultura, manter suas tradições e regras, contar o passado. Tal qual nas sociedades orais, em que somente alguns tinham au-
41
torização para narrar, pois o que sustentava a cultura era o saber que passava de
pai para filho. Se qualquer um pudesse narrar, haveria o risco de profanar aquela
narrativa, alterando o eixo mesmo da cultura. O lugar de quem pode narrar é
designado para manter aquela tradição sob controle e com continuidade. Vale
lembrar que os conceitos de memória e identidade não remetem a noções como a
de homogeneidade ou perenidade. A memória é sempre instável, e está em permanente construção. É constituída por lembranças e esquecimentos, e motivada
por interesses sempre ancorados no presente. Isso faz com que grupos sociais e
profissionais (como os jornalistas) estejam constantemente reconfigurando aquilo que acham mais importante sustentar como suas lembranças comuns e como
elementos de construção de suas autoimagens.
Sobre que jornalismo falam os jornalistas ao se recordarem de suas experiências no Jornal do Brasil? De que maneira falam de si mesmos, como profissioPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
nais, ao falarem do jornal? A memória recolhe fragmentos do passado e conserva
informações que passam por um processo de organização e reconstituição (LE
GOFF, 1984). A autonarrativa de um grupo e, por consequência, sua identidade
são apoiadas por estas informações e pelo uso que o grupo ou os indivíduos fazem
delas. Ao construírem seus discursos e partilhá-los no espaço social, os jornalistas
constroem sua memória, assumem um lugar de fala e mobilizam uma série de
representações. Com isso, negociam poder e autoridade, silenciando algumas vozes, ampliando outras, promovendo esquecimentos, ressaltando lembranças, enfim, procurando produzir identificações tanto para si como para os que os cercam.
Para Pierre Nora, a mundialização, a democratização, a massificação, a midiatização teriam causado a aceleração da história, e o desmoronamento da memória: a aceleração impassível do tempo seria a causa do enfraquecimento dos elementos de identificação, o fim das sociedades-memória, que asseguravam a conservação e transmissão de valores; o fim das ideologias-memória, que garantiam a
passagem regular do passado para o futuro ou indicavam o que se deveria reter do
passado para preparar este futuro, produzindo cada vez mais rapidamente um passado morto, a percepção geral de algo desaparecido (1993, p. 7-8). Diante do sentimento de que não há memória espontânea, continua Nora, criam-se arquivos:
“Se o que defendem não estivesse ameaçado, não se teria a necessidade de cons-
42
truí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que envolvem, eles seriam
inúteis” (p. 13).
Barbosa (2016) observa que os meios de comunicação procuram um lugar
na história. Também os jornalistas. Huyssen destaca o papel contemporâneo da
mídia na construção da memória, nas disputas envolvendo a promoção de rememorações coletivas e os esquecimentos. “As próprias estruturas da memória
pública midiatizada ajudam a compreender que, hoje, a nossa cultura secular,
obcecada com a memória, tal como ela é, está também de alguma maneira tomada por um medo, um terror mesmo, do esquecimento” (p. 19). No entanto, o
esquecimento, em sua mistura com a memória, é crucial para o conflito e a resolução nas narrativas que compõem a vida pública e a vida íntima. “Esquecer não
apenas torna a vida vivível, como constitui a base dos milagres e epifanias da
própria memória” (HUYSSEN, 2014, p. 158), de que é exemplar o conto de
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Borges Funés, o memorioso, sobre o homem que sofria da patologia da memória
total (BORGES, [1942] 1975).
O que é e o que não é considerado memorável passa por uma operação de
seleção – a que Derrida entende por mal de arquivo, ao trazer à luz a autoridade
que organiza o arquivo, o poder que manda apagar e recriar. Dessa forma, se expõe a relação entre arquivo e poder, presente desde a raiz da palavra arquivo,
arkhé, que implica começo assim como comando. Ou seja, o poder de quem detém o arquivo e o organiza dentro de seus interesses, e as implicações políticas de
seu uso (DERRIDA, 2001).
Um caminho para compreender as identidades promovidas por meio de narrativas é observar, como propõe Dorne (2015), as estratégias mobilizadas na construção discursiva, os sentidos produzidos e postos em circulação por meio dos
enunciados, a memória discursiva que constitui estes enunciados, as posições de
sujeito ocupadas pelos autores nas diferentes séries enunciativas, a materialidade
que permite a existência desses dizeres, as articulações que, nesse processo, são
mobilizadas entre a história e a memória. Busca-se, assim, entender como práticas
discursivas acionam uma rede de memória sobre o que é e o que pode ser o jornalista, conferindo-lhe identidade.
43
1.3. Identidades jornalísticas
A profissão, em si, já representa um risco para a individualidade do jornalista
(HERKENHOFF, 2010, p. 156)
Ricoeur (2000) traz importantes contribuições sobre a noção de identidade,
que entende como uma operação narrativa, e necessariamente relacionada ao tempo, tese central de Tempo e narrativa. Para o autor, o tempo só se torna humano
na medida em que é articulado de forma narrativa; e a narrativa só alcança seu
sentido pleno ao seu tornar uma condição da existência temporal humana. Aquilo
com que a narrativa lida é o tempo da ação humana: narrativa, ação e tempo se
conjugam. Ao narrar seus próprios atos e experiências, o sujeito passa a dispor de
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uma “vida examinada”, autointerpretada por meio da narração. A narrativa reapresenta o mundo da ação e cria as condições para uma reflexão renovada acerca da
compreensão de si, na medida em que liga o indivíduo em suas ações e os conteúdos fornecidos pela interação com a cultura. A identidade narrativa pode ser vista
como este ponto de passagem da ordem da cultura à da existência, tanto individual
como em grupos, que também baseiam suas identidades nas narrativas que se
formam e se fixam em seu interior.
O autor lembra que a ipseidade e a mesmidade são constitutivas da própria
noção de si, duas maneiras pelas quais a identidade pessoal se relaciona ao tempo
– duas maneiras de manifestar a permanência no tempo de um núcleo pessoal. Sob
a mesmidade, ordenam-se diversos critérios de identidade: identidade numérica da
mesma coisa através de suas aparições múltiplas, identidade estabelecida sobre a
base de provas de identificação e de reidentificação; a identidade qualitativa, ou
seja, a semelhança extrema das coisas que podem ser trocadas uma pela outra sem
perda semântica; a identidade genética, atestada pela continuidade ininterrompida
entre o primeiro e o último estado de desenvolvimento deste que nós tomamos
como o mesmo indivíduo (da semente à árvore); a estrutura imutável de um indivíduo reconhecível na existência de um invariante relacional, de uma organização
estável.
44
Para o autor, a identidade pessoal não exclui a mesmidade sob a figura do
caráter, feito de marcas distintivas e de identidades assumidas, em que se reconhece um indivíduo como sendo o mesmo. “Mas a identidade do caráter é somente um dos dois polos do par idem-ipse. À perseverança do caráter se opõe a manutenção de um si a despeito das mudanças que afetam os desejos e as crenças. Estas
duas modalidades da identidade me parecem se combinar na identidade narrativa”
(RICOEUR, 2007, p. 101-102). Assim, a identidade narrativa combina as esferas
da experiência e do sentido, da natureza e da cultura, que ele ilustra com a analogia da semente e do carvalho:
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dizemos de um carvalho que ele é o mesmo da semente à árvore na força da idade;
da mesma forma, de um animal, do nascimento à morte, e mesmo do homem enquanto amostra da espécie, do feto ao velho; a demonstração desta continuidade
funciona como critério anexo do da similitude ao serviço da identidade numérica.
O contrário da identidade tomada neste terceiro sentido é a descontinuidade. Ora,
com este terceiro sentido, entrou em linha de conta a mudança no tempo (RICOEUR, 2007, p. 179).
É a partir da narração das histórias de vida que o indivíduo pode definir uma
identidade, assim como é a partir da narração dos eventos fundadores de uma comunidade que se pode alcançar uma identidade social. Isso vale para a conformação de um grupo tão plural quanto é o dos jotabenianos, que partilham e reiteram
o que têm em comum entre si, e de diferente em relação a outros jornalistas. Para
Ricoeur, a fraqueza do critério de similitude no caso de uma grande distância no
tempo sugere outra noção, que é ao mesmo tempo outro critério de identidade: a
continuidade ininterrupta no desenvolvimento de um ser entre o primeiro e o último estado: “Tornando narrável a perspectiva da verdadeira vida, ela lhe dá os
traços reconhecíveis de personagens amados ou respeitados. A identidade narrativa mantém juntas as duas pontas da cadeia: a permanência no tempo do caráter e a
da manutenção de si” (RICOEUR, 2007, p. 196).
Estudos sobre ideologia profissional no jornalismo (DEUZE, 2005; PEREIRA, 2013; 2014) e sobre as tipologias de papéis sociais geralmente associados aos
jornalistas (CASSIDY, 2005) tendem a assinalar a importância do papel de informante na construção dos valores e da imagem da profissão (PEREIRA, 2014, p.
54). Pereira (2009) propõe uma tipologia para analisar a profissionalização dos
jornalistas com relação aos demais grupos intelectuais. De forma esquemática,
45
esse processo pode ser dividido em três momentos: 1. Um marco inicial de definição identitária, a partir da criação de um conjunto de convenções e uma representação social que possibilita estabelecer parâmetros para atividade jornalística,
além de um princípio de delimitação estatutária, sem que isso acarrete um fechamento formal das fronteiras profissionais junto aos intelectuais (1945 a 1968); 2.
Um processo gradativo de reorganização das redes de cooperação no meio cultural, com a criação de modos de acesso e de sistemas próprios de consagração e
ascensão nas carreiras profissionais (1969 a meados da década de 70); 3. A consolidação dessas mudanças por meio de redes de cooperação autônomas (produtores,
financiadores, público etc.) e também pela interiorização e reificação de um conjunto de ideologias calcadas no profissionalismo, na delimitação de atividades que
compõem o âmago do mundo dos jornalistas.
A defesa de um jornalismo original e individualizado aparece em vários
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momentos, como nas propostas de Medina, que já na década de 80 ressaltava a
possibilidade de criação individual, apesar da percepção dos entraves impostos
pela conformação da comunicação de massas. Em Profissão jornalista: responsabilidade social (1982) por exemplo, fala sobre a possibilidade do jornalista individualizado com capacidade criadora que, “apesar de parecer muito heroico, já que
representa a renovação, a mudança –, na realidade, de épico se torna trágico nas
salas de redação”, “contra um esquema de poder estabelecido” (MEDINA, 1982,
p. 121-122).
As narrativas dos jornalistas apontam para uma crença na “força transformadora do jornalismo” (TABAK, 2014), balizada por uma visão romântica, sobre
a qual já se tratou. Cabe indagar sobre as relações entre o fazer jornalístico e o que
se diz sobre esse fazer: “O romantismo aparecia nos textos metalinguísticos produzidos pelo campo. Essa recorrência colocava o jornalismo como missão, elegia
a reportagem como atividade paradigmática dentro do campo, atribuía ao jornalismo, e por extensão ao jornalista, um fundamental papel social na defesa das
instituições democráticas e da cidadania, por exemplo, e aludia a uma determinada relação com a retratação do real” (LAGO, 2003a).
A defesa da objetividade e da responsabilidade social do jornalismo era, por
parte de alguns profissionais, um ato essencialmente político, de resistência, e de
46
construção afirmativa da identidade, como aponta Ana Paula Goulart Ribeiro. Ao
incorporar as novas técnicas e o ideal da objetividade, recusando vínculos explícitos com a literatura e a política, o campo jornalístico transformou-se numa comunidade discursiva própria e criou as condições sociais da sua eficácia. Reformar os
jornais, afiná-los aos padrões norte-americanos, ainda que apenas retoricamente,
significava inseri-los formalmente na “modernidade”. Naquele momento, significava conferir ao campo jornalístico um capital simbólico sem precedentes: significava fazer do seu discurso uma “fala autorizada” e transformar a imprensa em
um ator social reconhecido.
A questão profissional ganha aqui relevo. Ser jornalista profissional é visto
como singular para esta geração, o que a diferenciava daquela que a precedeu e
que legitimava sua ação sobre o campo jornalístico, profissional e técnico, de que
é exemplar a fala de Alberto Dines11, que foi editor-chefe do JB de 1962 a 1973,
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ao afirmar que a nova geração de jornalistas – à qual ele pertencia – “era muito
respeitada” e que não houve reações contra a reforma por parte da geração anterior: “Eles não eram jornalistas; chegavam lá, escreviam uma coisinha. Não eram
jornalistas profissionais” (DINES em RIBEIRO, 2007, grifo meu).
Se para Dines o jornalismo profissional começou ali, para Wilson Figueiredo, de geração anterior, nasceu no fim do Estado Novo – seu início de carreira:
Antes da Segunda Guerra Mundial havia jornalismo e bons jornalistas, mas não
havia a profissão. [....] As notícias eram informações oficiais, enviadas pelo governo ou pelas agências de notícias internacionais. Era aquela coisa seca, pobre, sem
imaginação, sem malícia, sem sentido político. Essa coisa de o jornalismo explodir,
explodiu no começo da minha vida profissional, foi a partir desse episódio. E a liberdade foi uma coisa fantástica. Aconteceu tudo ao mesmo tempo: a Segunda
Guerra Mundial chegando ao fim, o [ex-ministro de Vargas] Zé Américo deu uma
entrevista ao Carlos Lacerda, conclamando o presidente (e ditador) Getúlio Vargas
a seguir o caminho democrático. [...] Ninguém que não tenha vivido aquilo pode
imaginar o impacto. E todos os jornais foram atrás do inesperado e o fim da censura descortinou a volta da democracia. Ali, com 21 anos, eu virei jornalista de vez
(FIGUEIREDO, em RIBEIRO, 2015, p. 79, grifo meu).
Ainda nesse sentido, é bastante recorrente na historiografia nacional a ideia
de que o jornalismo brasileiro se moderniza, a partir da década de 1950, importando o que frequentemente é rotulado de “o modelo americano de jornalismo”
11
Antes do JB, Alberto Dines trabalhou no Diário da Noite, em 1961; e na revista Fatos e Fotos,
em 1962. Sua atuação no JB é apresentada e analisada mais adiante.
47
(LAGE, FARIA, RODRIGUES, 2004; ABREU, 2002; JOBIM, 1954; COSTA,
2011), mais objetivo e factual, padronizado na criação da figura do copidesque e
dos manuais de redação (ambos visando a despersonalização da escrita, próprio do
estilo de cada jornalista). Abandonando o modelo europeu (sobretudo francês) do
jornalismo literário, panfletário e político, a imprensa brasileira adota o tom impessoal, imparcial – e moderno. Mas isto não se deu de um dia para o outro, nem
sem divergências ou resistências, de disputas sobre o que se entende por jornalismo e como professá-lo.
A jornalista e pesquisadora Cremilda Medina propõe um debate sobre essa
tensão entre objetividade e subjetividade e as formas de narrativa, retomando as
teorias positivistas no jornalismo e as contrapondo ao que define como diálogos
dos afetos. Para a autora, o jornalismo necessita da visão particular de seu autor,
porque, do contrário, seria somente um texto frio, ainda que seja bem-acabado
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tecnicamente. Seria necessário pensar um jornalismo mais sensível, uma relação
mais humana entre fonte e entrevistador, porque “só quando se está afeto a [algo]
ocorre o ato comunicativo, o ato poético ou o ato comunicacional que, por sua
vez, se traduz na sala de aula, na obra de arte ou nas narrativas da contemporaneidade” (MEDINA, 2008, p. 93). É exemplo desse pensamento o trecho a seguir,
em que o jornalista Mauro Santana, nos Cadernos de Jornalismo do Jornal do
Brasil, condena o tecnicismo, por implicar em distanciamento do profissional em
relação à notícia:
Temo muito que o tecnicismo subtraia da profissão o que ela tem de mais nobre: o
inconformismo diante da injustiça, a ânsia da denúncia, o espírito de luta. [...] Daí o
meu temor de que o tecnicismo sirva para castrar as nossas qualidades históricas,
inclusive na forma de narração. As receitas, em jornalismo, são ineficazes. Não sou
daqueles que pensam que se deve ser impermeável aos acontecimentos e transmitilos de forma impessoal aos leitores. Ao contrário, creio que o nosso dever é o de
viver os fatos e levá-los, com sua vida, aos que nos leem e confiam no nosso depoimento. E, nesse caso, a forma deve sujeitar-se ao conteúdo; não podemos engarrafar experiências em frascos do mesmo tamanho e mesmas cores. Para que comuniquemos com veracidade e exatidão, a matéria de nossa comunicação deve ser
trabalhada por nossas usinas interiores: deve integrar-se em nós mesmos. Só com
esta marca de autenticidade, o depoimento será comunicável, humanamente, de um
homem a outro homem (CJ nº 16, 1968, em RIBEIRO, 2003, grifos meus).
O Jornal do Brasil talvez tenha encontrado e adotado um modelo singular
de jornalismo, capaz de conjugar técnica e autenticidade.
48
Na articulação de memórias produzidas e transmitidas por sucessivas gerações de profissionais de imprensa, o Jornal do Brasil se constitui como um veículo balizador das práticas jornalísticas no país, sobretudo no Rio de Janeiro. Falar
do JB significa, para muitos jornalistas, falar do diário que melhor definiu o bom
exercício de sua profissão e também, portanto, das experiências que eles, como
profissionais, mais se orgulham de ter participado.
Pode-se dizer que os papéis assumidos pelos jornalistas por meio de suas
atividades fornecem elementos essenciais para sua autodefinição. Identidades,
porém, não são apenas papéis. A identidade do jornalista não pode ser vista estritamente como resultado de suas práticas e rotinas profissionais. Sendo construção
de sentido, identidade considera os fazeres mas também engloba os valores, as
crenças, os mitos, os saberes, as representações sociais, a história, a memória, as
relações de poder, além de outros elementos de ligação para os indivíduos que
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compõem um grupo (LOPES, 2013, p. 29-30).
É importante considerar também o lugar que o grupo ocupa em relação a outros grupos e à sociedade como um todo. Em centros urbanos desenvolvidos, em
que o trabalho exerce centralidade na vida social, o cotidiano dos indivíduos e
suas memórias estão, em geral, profundamente ligadas à profissão que ocupam. A
esfera do trabalho e da produção técnica é local de construção daquilo que Gerard
Namer (1987) denomina “memória funcional”, que é sedimentada a partir de uma
prática laboral. Também no campo do Direito, o lugar do trabalho é compreendido
como “a mais importante entre todas as formações sociais nas quais se desenvolve
a personalidade do homem”: “O trabalho é uma manifestação da pessoa da mesma
forma como o pensamento, a palavra, a consciência”. Ao traçar a evolução histórica do Direito do Trabalho, Paula Jaeger Silva lembra que “o trabalho é tão antigo quanto o homem, são inseparáveis e confundem-se até com a própria personalidade” (FERRAJOLI, 2008, p. 279-291, em SILVA, 2011, p. 281). Observam-se
aí as organizações coletivas em torno das funções desempenhadas por grupos profissionais.
Como entende Bourdieu, cada profissão produz uma ideologia profissional,
um sistema de crenças pelos quais os praticantes dão sentido à sua experiência de
trabalho, numa “representação mais ou menos idealista e mítica de si mesma”
49
(1996, p. 11). Para o autor, a prática jornalística é baseada numa série de assunções e crenças partilhadas, que incluem estruturas cognitivas, perceptivas e avaliativas (1997, p. 47), a que Zelizer nomeia comunidade interpretativa, um enquadramento de referência partilhado para trabalhar” (1992, p. 402). Este sistema é
materializado por Bourdieu na célebre analogia dos óculos: “Os jornalistas têm
lentes especiais através das quais veem certas coisas e não veem outras, e através
das quais veem as coisas que veem da forma especial por que as veem” (BOURDIEU, 1997, p. 19). Sem perder de vista que o mundo jornalístico, internamente,
“é dividido, cheio de conflitos, competição e rivalidades” (1997, p. 23), externamente prevalece um pensamento de grupo.
O campo jornalístico começou a ganhar força no Ocidente no século XIX,
junto ao capitalismo, à industrialização e à urbanização, à ampliação do acesso à
educação, à expansão da imprensa como mass media. “As notícias tornaram-se
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simultaneamente um gênero e um serviço; o jornalismo tornou-se um negócio e
um elo vital na teoria democrática, constituído em dois polos – o econômico e o
ideológico; e os jornalistas ficaram empenhados num processo de profissionalização que procurava maior autonomia e estatuto social” (TRAQUINA, 2008, p. 20),
mobilizando em torno de si valores como a busca da verdade, a independência dos
jornalistas, a exatidão, a noção do jornalismo como um serviço ao público. Há um
reconhecimento coletivo das responsabilidades específicas dos jornalistas no espaço público, julgadas essenciais ao funcionamento do sistema democrático, responsabilidades associadas a toda uma mitologia construída ao longo dos últimos
séculos (RUELLAN, 1997, p. 155, em TRAQUINA, 2008, p. 35). A teoria democrática atribui aos jornalistas uma competência específica, ligada sobretudo à informação da sociedade.
Um contraponto necessário é evidenciado na definição de Proust para o hábito de ler jornais, frontalmente oposto à imagem dos jornalistas:
o abominável e voluptuoso designado pela expressão ler o jornal e graças ao qual
todas as desgraças e cataclismos do universo, durante as últimas vinte e quatro horas, as batalhas que custaram a vida a cinquenta mil homens, os crimes, as greves,
as bancarrotas, os incêndios, os envenenamentos, os suicídios, os divórcios, as
cruéis emoções do estadista e do ator, transmutados para nosso uso pessoal – para
nós que não temos qualquer interesse nessas matérias em um banquete matinal, as-
50
sociam-se excelentemente, de um modo particularmente excitante e tônico, à ingestão recomendada de alguns goles de café com leite (PROUST, 1970, p. 200).
Em artigo sobre atributos profissionais, escrito em meados dos anos 1950, o
professor norte-americano Ernest Greenwood – que havia sido congressista pelo
Partido Democrata – afirmava que a cultura profissional é o atributo mais importante de uma profissão, e neste ponto o jornalismo teria “uma das culturas profissionais mais ricas, se não a mais rica, identificado como é com os valores mais
nobres da história da Humanidade, como é, por exemplo, o valor da liberdade”
(1957, em TRAQUINA, 2008, p. 35). É objetivo declarado de qualquer órgão de
informação e de todo jornalista fornecer relatos dos acontecimentos julgados significativos e interessantes, segundo a ideologia jornalística dominante nos países
democráticos. Os jornalistas foram bem-sucedidos ao forjar uma forte identidade
profissional, uma cultura rica em “crenças, mitos, valores, símbolos, cultos e re-
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presentações que ganharam uma dimensão mitológica dentro e fora da tribo, e
encontraram legitimidade num processo circular entre jornalistas e sociedade, na
aura da teoria democrática” (TRAQUINA, 2008, p. 36-37), embora o mesmo não
tenha ocorrido na tentativa de delimitar seu campo de trabalho.
1.3.1. O campo e o habitus
Bourdieu alega que podemos encontrar no habitus o princípio ativo, irredutível às percepções passivas, da unificação das práticas e das representações. Mas
“essa identidade prática somente se entrega à intuição na inesgotável série de suas
manifestações sucessivas, de modo que a única maneira de apreendê-la como tal
consiste em tentar recuperá-la na unidade de um relato totalizante” (BOURDIEU,
1996, p. 185, grifo meu).
Como ressaltam Marteleto & Pimenta (2017), Bourdieu propositalmente usa
o vocábulo latino habitus em distinção ao sentido mais comum de hábito, sinônimo de costume, evidenciando que a propensão a agir de determinada maneira é
produto da história, mas também um sistema aberto de disposições sujeito a novas
experiências. Portanto, habitus constitui uma noção mediadora que ajuda a romper
com a dualidade do senso comum entre indivíduo e sociedade ao captar “a interio-
51
rização da exterioridade e a exteriorização da interioridade”, levando a transcender a oposição entre objetivismo e subjetivismo, tão comum na sociologia do século XX.
Já a noção de campo vem designar uma espécie de zona cultural que ocupa
uma posição no mapa da estrutura social e se distingue de outras zonas, por seus
interesses, estruturas, regras, leis e formas de poder, hierarquia e prestígio. Da
mesma forma que o habitus, o campo é estruturado e flexível, sujeito à influência
e à concorrência entre os que o compõem e de atores de outros campos dos quais
se aproxima e diferencia (MARTELETO & PIMENTA, 2017, p. 10).
Seguindo a trilha de Bourdieu e outros teóricos da sociologia e de jornalistas, sobretudo da França e dos Estados Unidos, Nelson Traquina buscou uma melhor compreensão teórica das notícias. Lembra que as diversas teorias desenvolviPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
das ao longo de 50 anos (TRAQUINA, 2001) apontam sua complexidade e, com
explicações diversas, enumeram uma série de fatores, como o tempo, os constrangimentos organizacionais, as rotinas instituídas, e o crescente peso do polo econômico do campo jornalístico, que o autor vê como as principais forças que ajudam a construir o produto jornalístico (TRAQUINA, 2008, p. 13). Com base em
sua análise crítica dessa literatura e calcado na sociologia do jornalismo, o pesquisador conclui que a compreensão das notícias implica um conhecimento da cultura dos profissionais que se dedicam a elas, ou seja, da cultura jornalística. Para
Traquina, não é possível entender por que as notícias são como são sem a compreensão dos “agentes especializados” do campo jornalístico (BOURDIEU,
1997). A partir disso, busca identificar as características desses agentes, os contornos de seu microcosmos, os traços fundamentais da sua cultura profissional,
para testar a hipótese de que os jornalistas constituiriam uma comunidade interpretativa transnacional, no tratamento dado a determinadas notícias em diferentes
países, a partir da noção de “comunidade interpretativa” (ZELIZER, 1992).
Phillip Elliot (1972) aponta, em Sociologia das profissões, para a existência
de “crenças comuns” e define a cultura do grupo como “sabedoria coletiva”: “A
adoção de uma identidade profissional tem um impacto no pensamento e no comportamento através do desenvolvimento de ideologias profissionais distintas” (p.
131, em TRAQUINA, 2008, p. 36). Zelizer fala em “quadros de referência co-
52
muns”, que Traquina entende formarem uma identidade, um ethos, uma maneira
como se deve ser jornalista e estar no jornalismo – e fora dele, acrescento, em
outros papéis sociais, como seu representante, agindo em favor do grupo.
Bourdieu (1997) define campo como um “espaço social estruturado, um
campo de forças num campo de força”, em que um grupo afirma deter o monopólio de conhecimentos ou saberes. Com o tempo, o grupo vai se especializando e
seus membros se tornam “profissionais” que dominam uma linguagem específica.
A especialização reforça a autoridade, que reforça a autonomia do campo. O processo de profissionalização engendra a formação de grupos organizados, com um
ethos próprio e “dependentes de uma solidariedade cerrada” na disputa com outros agentes sociais. “Professam conhecer melhor que outros a natureza de certos
assuntos”, e que invocam essa distinção: “Os profissionais reclamam o direito
exclusivo à prática” (HUGHES, 1963, p. 656-7, em TRAQUINA, 2008, p. 20-22),
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e a própria prática é impregnada por esse pensamento de grupo. No caso dos jornalistas, um exemplo é a influência intermediática: os jornalistas acompanham-se
uns aos outros e buscam, entre seus pares, confirmações de seus critérios de seleção e enquadramento.
Há, ao mesmo tempo, mecanismos que controlam direta ou indiretamente o
trabalho em um campo profissional, componentes que demarcam o ambiente em
que os indivíduos se movem profissionalmente, os quais se sobrepõem a “crenças
pessoais” (TRAQUINA, 2001, p. 71). As demandas e exigências – prescritas ou
tidas como saber próprio de cada ambiente ou, em última instância, de todas elas –
afetam o modo de agir desses sujeitos, direcionando-os a certas práticas não exatamente por vontade própria ou por cumprimento aos princípios da profissão, mas,
sim, em atendimento às exigências das empresas para as quais trabalham ou do
próprio mercado. Esses constrangimentos agem em razão da necessidade de socialização e de manutenção do jornalista no espaço em que trabalha, ainda que não
necessariamente lhe seja apresentada formalmente uma “política editorial”. Warren Breed (1999, p. 154-160), autor identificado com o que se convencionou chamar de teoria organizacional, identifica seis “razões do conformismo para com a
orientação” dessa política: 1) a autoridade institucional e suas sanções; 2) um sentimento de obrigação e de estima para com os superiores; 3) aspirações de “mobi-
53
lidade”, isto é, de ascensão profissional); 4) ausência de grupos que se fortaleçam
contrariamente às orientações da empresa; 5) o “prazer” gerado pelo exercício da
atividade; e 6) o “valor” da notícia, isto é, a consciência da importância daquilo
que é gerado pelo esforço. A esses, acrescenta o conceito de “grupo de referência”, formado pelos demais itens e que moldaria os comportamentos nas redações
(em ADGHIRNI, 2003).
O jornalista norte-americano Walter Lippmann sustentou em seu livro Opinião pública, de 1922, que a mídia é a principal ligação entre os acontecimentos e
a percepção das pessoas sobre estes acontecimentos, visão em torno da qual seria
formulado o conceito de agendamento, 50 anos depois, pelos pesquisadores
Maxwell McCombs e Donald Shaw (1972): a mídia não determinaria como as
pessoas devem pensar a respeito dos assuntos, mas sim no que pensar. Duas décadas depois, em revisão de seus estudos sobre as consequências da marcação de
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agenda das mídias, porém, perceberam que os jornalistas não apenas selecionam
os acontecimentos ou temas que consideram noticiáveis, mas também como devem ser noticiados. Ou seja, a operação não era apenas de seleção, mas também
de enquadramento – definido por Goffman como uma “ideia organizadora central
para dar sentido a acontecimentos relevantes e sugerir o que é um tema” a ser
abordado (1975, p. 10-11). Esta contribuição foi valiosa para avaliar os processos
de agendamento, entendendo-se que as mídias “não só nos dizem no que pensar,
mas também como pensar nisso, e consequentemente, o que pensar” (MCCOMBS
& SHAW, 1993, p. 65, em TRAQUINA, 2008, p. 16), o que reconfigurou a percepção de poder do campo jornalístico. A partir disso, propõe-se pensar nas operações de seleção e enquadramento de narrativas sobre o Jornal do Brasil. Como
são selecionados os “acontecimentos” noticiáveis, e como são enquadrados?
Uso “narrativa” por entender que toda notícia é uma construção (HALL,
1984), uma realidade construída, como qualquer documento (TUCHMAN, [1976]
1993), seguindo “padrões persistentes de cognição, interpretação e apresentação,
de seleção, ênfase e exclusão” (GITLIN, 1980, p. 7). Esse entendimento se contrapõe à ideia do jornalismo como espelho da realidade, reprodução fiel e autêntica dos acontecimentos, em que se assenta a sua ideologia profissional: “A estratégia pela qual os jornalistas apresentam sua personalidade profissional própria in-
54
siste em fatos, todos os fatos, nada mais senão os fatos [...] este é um dogma de fé
universal, profundamente enraizado na comunidade profissional” (ROEH, 1989,
p. 161, em TRAQUINA, 2008, p. 18).
A noção de que o repórter está invariavelmente comprometido com a verdade, não se subordinando a qualquer interesse que não seja o público, forneceu
historicamente as condições de aceitabilidade do discurso jornalístico, muito embora a atuação do jornalista estivesse relacionada diretamente à conjuntura política e social em que ele estivesse inserido (CASTILHO, 2010, p. 127-128). A “missão social”, reiterada como marca distintiva da imprensa, é um valor constituinte
da identidade jornalística.
Com mais de cinco décadas de atuação profissional como repórter em paralelo à vida acadêmica, Cremilda Medina aponta, em Ciência e jornalismo: Da
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herança positivista ao diálogo dos afetos (2008), uma matriz positivista nas fórmulas jornalísticas predominantes ainda hoje. Medina – que registra a influência
da obra de Thomas Kuhn desde os anos 1970 – retoma em 2008 texto próprio de
1995 em que afirmava que a linguagem jornalística, como discurso de atualidade
legitimado pela sociedade e estruturada pelos princípios positivo-funcionalistas,
defrontava-se então com “os impasses da crise de paradigmas”.
O jornalismo, inscrito na trajetória nitidamente assinalada pela modernidade, foi
construindo sua linguagem segundo postulados da racionalidade que vem desaguar,
como outras formas de codificação do real, em fórmulas gramaticais do século
XIX. Dessa herança estratificada saem os principais problemas contemporâneos
(MEDINA, 2008, p. 15).
A autora volta ao Discurso sobre o espírito positivo de Augusto Comte
(1844), que organiza as ideias fundamentais do positivismo, regime definitivo da
razão em que a observação é a base dos conhecimentos acessíveis à verdade, adaptados às necessidades. A eficácia científica, seja a abstração racional, seja o laboratório experimental, dependeria da relação direta ou indireta com os fenômenos
observados. Assim, para o pensador, a investigação científica só é positiva se o
pesquisador opera com o que é, voltando-se aos dados relativos à organização e à
situação observada. Este princípio, lembra Cremilda Medina, conquistou as mentes
do fim do século XIX e se mostrou operante em todo o século XX. E provoca:
“Que meditem os jornalistas e os cientistas se não é esse o princípio que rege a
55
pesquisa empírica – coleta de informações de atualidade ou coleta de dados sobre
fenômenos em estudo no laboratório científico” (p. 16). Na direção apontada por
Kuhn ([1962] 1997) e seguida por Agamben (2019), Medina acentua que essa concepção positivista não considerava a compreensão científica da indeterminação nos
processos materiais e sociais, a noção de caos dinâmico, a compreensão de atos
emancipatórios imprevisíveis. Tampouco incorporava a noção de produção simbólica, que transcende os fenômenos aparentes. A realidade objetiva é, pois – conclui
–, o privilégio do espírito positivo, e de lugar teórico surge como única saída intelectual para enfrentar a crise social no Ocidente europeu, como resposta ao contexto conturbado da modernidade, organizando não só o campo das ideias mas os costumes e instituições, sob os ditames da ordem e do progresso, que vieram parar na
bandeira brasileira.
Na expansão urbana e industrial que atravessa o século XX, as sociedades
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que se modernizam legitimam a informação distribuída pelos meios de comunicação. As formas de captação do acontecimento noticioso, bem como as formas de
edição da narrativa, vão sendo disciplinadas e o jornalismo ambiciona, já no fim
do século XIX, um lugar no conjunto de áreas de conhecimento. O jornalismo,
que se estruturava como o discurso de atualidade, não ficou imune aos princípios
doutrinários do positivismo, cujo discurso de apelo moral influenciou jornalistas,
cientistas e educadores, que o dogmatizaram nas suas metodologias operacionais.
Medina aponta marcas epistemológicas herdadas do Discurso sobre o espírito
positivo comtiano no fazer cotidiano do jornalista e na formação universitária
(também de fins do século XIX). E lista: a noção de real e a relação objetiva com
o real; a tendência para diagnosticar o acontecimento social no âmbito da invariabilidade das leis naturais; a ênfase na utilidade pública dos serviços informativos;
o tom afirmativo perante os fatos jornalísticos; a busca obsessiva pela precisão
dos dados como valor de mercado; a fuga das abstrações; a delimitação de fatos
determinados.
Em resumo, os princípios positivistas dão garantia aos operadores da informação
jornalística de que se constrói um relato da ordem natural das coisas. O ingrediente
pragmático – ou seja, a intervenção positiva dessa construção – tem sido precioso
para a discussão da cidadania e da função do jornalismo na reorganização de ideias,
costumes, instituições, palavras de ordem e progresso comtianas. [...] E essa herança é poderosamente operante nos dias de hoje (MEDINA, 2008, p. 19).
56
1.3.2. A ilusão biográfica
Em relação à escolha de etapas e fatos memoráveis para compor a biografia
do JB, seja pelo próprio ou por seus biógrafos jornalistas, é razoável supor que
sejam pinçados, como aponta Bourdieu, “em função de uma intenção global, certos acontecimentos significativos e estabelecendo entre eles conexões para lhes
dar coerência, como as que implicam a sua instituição como causa ou, com mais
frequência, como fins, com a cumplicidade natural do biógrafo” (BOURDIEU,
1996, p. 185). Esta estrutura como relato linear, própria do romance, uma visão da
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vida como existência dotada de sentido – como significação e como direção.
Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como relato
coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência
que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar”. Porém, o advento do romance moderno está ligado precisamente a esta descoberta: o real é
descontínuo, formado de elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de modo incessantemente
imprevisto, fora de propósito, aleatório (ROBBE-GRILLET, em BOURDIEU,
1996, p. 185, grifo meu).
Bourdieu vê a noção de trajetória como uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é
ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações. Para o sociólogo, tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de
acontecimentos sucessivos é quase tão absurdo quanto tentar explicar uma linha
de metrô sem levar em conta a estrutura da rede, a matriz das relações entre as
diferentes estações. Os acontecimentos biográficos se definem como colocações e
deslocamentos no espaço social, afetados pelo capital que está em jogo no campo
em questão naquele momento. Portanto, diz Bourdieu, não podemos compreender
uma trajetória sem levar em conta os estados sucessivos do campo no qual ela se
desenrolou, “o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado
ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com
o mesmo espaço dos possíveis (BOURDIEU, 1996, p. 189-190).
Ao selecionar e descartar elementos ao construir sua narrativa, mantém-se a
dialética do lembrar/esquecer. Bourdieu já alertara, em A ilusão biográfica, que a
história de vida é como um contrabando que entrou sem alarde no universo científico, pressupondo um caminho linear que teria começo, etapas e um fim, no duplo
57
sentido, de término e finalidade (BOURDIEU, 1996, p. 183). Atenta para a armadilha de se considerar
primeiramente, o fato de que a vida constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido como expressão unitária de uma ‘intenção’
subjetiva e objetiva, de um projeto, que a noção sartriana de “projeto original” explicita o que está implícito nos “já”, “desde então’, “desde pequeno” das biografias
comuns ou nos “sempre” das “histórias de vida”. Essa vida organizada como uma
história transcorre, segundo uma ordem cronológica que também é uma ordem lógica, desde um começo, uma origem, no duplo sentido de um ponto de partida, de
início, e também de princípio, de razão de ser, de causa primeira, até seu término,
que é também um objetivo (BOURDIEU, 1996, p. 184, grifo meu).
O relato, seja ele biográfico ou autobiográfico, como o do investigado que
se entrega a um investigador – caso dos depoimentos dados a pesquisas acadêmicas e a livros de jornalistas –, propõe acontecimentos que, sem terem se desenrolado em estrita sucessão cronológica, tendem ou pretendem organizar-se em se-
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quências ordenadas segundo relações inteligíveis: “O sujeito e o objeto da biografia (o investigador e o investigado) têm de certa forma o mesmo interesse em aceitar o postulado do sentido da existência narrada” (BOURDIEU, 1996, p. 184).
Tudo leva a crer que o relato de vida tende a aproximar-se do modelo oficial da
apresentação oficial de si, carteira de identidade, ficha de estado civil, curriculum
vitae, biografia oficial, bem como da filosofia da identidade que o sustenta, quanto
mais nos aproximamos dos interrogatórios oficiais das investigações oficiais
(BOURDIEU, 1996, p. 188).
Como observa Renato Cordeiro Gomes (2016) sobre as memórias de Marques Rebelo registradas no diário de seu personagem em O espelho partido, efetua-se via rememoração a traição da memória que, ao quebrar o continuum da
história, revela seu caráter lacunar, ao mesmo tempo em que possibilita rearrumar fatos em função do presente da subjetividade de quem lembra, sabendo
do trabalho do esquecimento. O narrador explicita os mecanismos do trabalho da
memória:
É impossível rememorar os acontecimentos em ordem cronológica. [...] eles nos
acodem com infinita versatilidade. Anotamos a corrente das lembranças, e quando
menos esperamos, teremos formado, ponto a ponto, o manto que veste a nossa vida. Esquisito manto de retalhos! Quanta cor enganosa, quanto som desafinado,
quanta forma adversa. E nos é vedado, quanta vez absurdo, compreender os fatos
imediatamente – seríamos vítimas de fantasmagoria universal que nos cerca, e as
nossas conveniências como deformam tudo! (REBELO, 1984, p. 56).
58
1.3.3. O ethos romântico do jornalismo
E tem mais: nós éramos românticos
Ana Arruda Callado, 2010
A última “profissão romântica” foi assim definida por conta da penosa dualidade que sujeita as emoções do relato à frieza da razão. [...]
De qualquer forma persistiria a cruel lógica deste romantismo
que tenta fazer do cotidiano algo trepidante, nobre, memorável,
ajustando-o ao dever de torná-lo apenas justo e verdadeiro
Alberto Dines (RIBEIRO, 2015).
Não sou a primeira a problematizar a evocação do sentido romântico no jornalismo brasileiro. É cara a esta pesquisa a contribuição de Claudia Lago (2002,
2003a, 2003b) ao interpretar um conjunto de disposições e valores presentes no
campo jornalístico que apontam para a presença de um “algo” romântico junto ao
jornalismo, perceptível nas falas dos jornalistas e nos textos que são produzidos
sobre o significado de ser/exercer o jornalismo, que propõe conceituar como um
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ethos, “um conjunto de disposições, percepções e valorações que jornalistas têm
de si e do mundo, uma dimensão do habitus (BOURDIEU, 1989) que contém a
autoimagem e, nesse sentido, orienta as representações” (LAGO, 2003a, p. 2).
Esse ethos romântico no jornalismo se constitui em oposição ao que Weber chamou, dentro da lógica burocrática do capitalismo, de “impessoalidade formalista”
na qual o trabalho se desenvolve sem ódio nem paixão, ou sem amor nem entusiasmo, submetida puramente à pressão do dever. A essa lógica, prossegue, “o ethos
romântico contrapõe um jornalismo que deve ser realizado sob o signo da paixão
e do envolvimento”. Nesse sentido, também resgata o comprometimento do sujeito jornalista. Esse comprometimento se dá em relação à profissão em si, que se
confunde com uma missão a ser realizada. O individualismo do ethos romântico é
egocêntrico – valorizando a figura do gênio criador – mas é também coletivo: este
ser com capacidades e características pessoais insubstituíveis só o é quando em
comunhão com a coletividade.
Outro aspecto do ethos romântico no jornalismo é a vinculação nostálgica
com um passado recente, profundamente idealizado. Um passado em que o exercício da profissão confundia-se com a possibilidade de intervenção social, tomada
como possibilidade de mudança. Lago cita como exemplo o testemunho de um
59
jornalista que entrevistou sobre o momento em que ingressou na profissão, em
fins dos anos 1970:
Eu peguei o jornalismo romântico com sentido social. Era o trabalho que se fazia,
tendo em vista, um pouco de olho na repercussão que aquilo tivesse, ou na interferência que o seu trabalho, a sua matéria, podia ter na realidade. Eu posso mudar o
rumo de um caso policial com a minha matéria. Eu posso mudar o rumo da história, da política, com uma série de matérias ou investigação na qual o jornal invista
(LAGO, 2003b, p. 4).
Daí se depreende que a profissão foi algum dia romântica, e que agora provavelmente não é mais, em função da dominação econômica, política e tecnológica. O ethos romântico no jornalismo resgata a noção de utopia, tão cara ao romantismo. Utopia que se exercita também por meio da exaltação das virtudes: a ética,
o comprometimento, o rigor e o desprendimento.
Para Lago (2003b), esse romantismo tem vínculos intrínsecos com mecaPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
nismos que conformam o próprio jornalismo: são uma lógica de legitimação dentro do campo, evocada conforme as necessidades dos agentes, assim como aquela
que prega o comprometimento do jornalista com certo “profissionalismo”. São,
ambas, categorias de legitimação, alusões presentes em discursos sobre a profissão, referências a um jornalismo que permanece como ideário tanto junto a jornalistas mais jovens quanto aos mais velhos.
O termo “romântico” é recorrente para designar, nomear, identificar, pelos
atores do campo jornalístico. Seu emprego aparece sempre conectado a uma ruptura temporal: era romântico algo que se fazia (sentia, defendia, pensava) no passado, designava um jornalismo distante no tempo, diferente do praticado no presente. Em termos de forma, o romantismo indicava um jornalismo voltado para a
prática da reportagem, investigativa e profunda – como “atividade paradigmática” (LAGO, 2003b, p. 15).
Outro aspecto em relação ao romântico merece ser levantado: sua ocorrência no discurso de profissionais com tempos de inserção distinto dentro do jornalismo. Ora, se o romântico identifica uma ruptura, ser mencionado por jornalistas
de diversas faixas etárias indica sua apreensão indiscriminada, sua existência
transcendendo um grupo específico.
60
Entendendo que não existem jornalistas como grupo social homogêneo, mas
“jornalistas diferentes segundo o sexo, a idade, o nível de instrução, o jornal, o
meio de informação” (BOURDIEU, 1997, p. 30), a alusão ao romântico por um
conjunto diferenciado de jornalistas indica que essa recorrência faz parte do conjunto simbólico que permeia o campo.
A concepção da imprensa como um “quarto poder” é anterior aos processos
de profissionalização do jornalismo, ainda no século XIX, a partir da referência
aos três états da Revolução Francesa: o clero, a nobreza e um terceiro englobando
os burgueses e o povo (TRAQUINA, 2005, p. 48). Na França, a ideia do jornalista
como um profissional comprometido com a busca da verdade e a denúncia dos
problemas sociais se consolida logo após a Primeira Guerra Mundial, sendo sobretudo uma resposta da sociedade à falta de credibilidade da propaganda oficial. De
acordo com Néveu (2001), a imprensa é instituída do direito e da responsabilidade
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de fiscalizar as instituições políticas, como representante considerada legítima e
crível pela sociedade francesa. Segundo Medina (1982), é esse processo que desencadeia a busca por modelos profissionais idealizados por certo caráter missionário da prática jornalística. Dessa forma, a identidade do jornalista francês – que
mais tarde influenciaria outras partes do mundo, como o Brasil – é construída com
base numa cultura de aliança com a sociedade e a ética profissional, vinculadas ao
espírito de missão, como define o jornalista Alfredo Herkenhoff: “[O jornalista]
vê-se imbuído de uma vocação quase sacerdotal” (HERKENHOFF, 2010, p. 190).
Nos anos 50, o jornalismo foi deixando de ser apenas uma ocupação provisória e se tornou uma profissão, com identidade própria, diferenciada da dos literatos e da dos políticos. Essa identidade dos jornalistas se construiu em torno de
determinados valores e associada a um processo de valorização da atividade jornalística: a salarial (aumento dos rendimentos), a educacional (criação das escolas
de jornalismo), a jurídica (regulamentação da profissão), a sindical e associativa
(construção de espaço de resistência, negociação e sociabilidade), a ética (criação
de uma nova deontologia, baseada no compromisso com a objetividade e na responsabilidade social) e a liberdade de imprensa (RIBEIRO, 2003, p. 2).
É parte do ethos romântico do jornalismo a visão idealizada do jornalista
como personagem ímpar e heroico, ligado por vínculos de paixão e estoicismo à
61
busca da verdade, ao exercício da profissão como missão, relacionada a uma responsabilidade social concreta que pressupõe um engajamento com o ofício, não
comparável a outras profissões. Essas disposições, que estruturam o campo, não
se sustentam na prática num país em que o campo jornalístico tem pouca autonomia, e a forma como se vincula ao polo comercial, é, para Lago (2003a), o que
permite que as resistências se articulem por meio desse ethos, que muitas vezes
fala de um jornalismo idealizado e dificilmente realizável.
O ideal de responsabilidade social parece se constituir num elo entre a prática
jornalística do Brasil, da França e dos Estados Unidos em meio aos diferentes modos de funcionamento das redações e dos jornais e a diversidade da configuração
profissional. Segundo Néveu (2001) e Weber (1985), ambos os modelos – informacional e interpretativo – buscam uma politização da identidade profissional, ainda
que desvinculada dos conflitos partidários e dos veículos panfletários. Ou seja, a
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noção primeira de “quarto poder” pressupõe o comprometimento apenas com o
cidadão, com o interesse público, livre de interesses políticos e/ou mercadológicos.
Na visão de Néveu (2001), é nesse contexto que a função do jornalista nas sociedades que se apresentam como democráticas estaria relacionada à do educador, responsável por conceder uma certa orientação diante do caos dos acontecimentos,
sem a imposição de uma determinada visão ou grupo majoritário, pelo menos numa
perspectiva ideal. Dessa forma, a imagem do jornalista como um mediador neutro, a
parte dos jogos sociais e da disputa de interesses, se encontra vinculada à busca de
objetividade no exercício da profissão. Moretzsohn (2002) afirma que é esse ideal
que move o imaginário coletivo em torno da preservação ética dos jornalistas frente
aos constrangimentos políticos e econômicos a que são submetidos diariamente na
produção da notícia. Como observa Fábio Henrique Pereira (2009), “sob discurso
da objetividade, o jornalista aparenta o que não é (alguém que influencia os próprios
acontecimentos) e assegura seu lugar como autoridade independente, capaz de fiscalizar os atos do governo perante a sociedade”. Um dos críticos mais enfáticos
contra a defesa de uma pretensa objetividade jornalística foi Nelson Rodrigues, que
cunhou a expressão “os idiotas da objetividade” para se referir aos copidesques e
aos profissionais “modernos” em geral:
Falo muito no “idiota da objetividade”. Ele é justamente quem vive dos fatos, depende dos fatos, morreria afogados sem os fatos. E, se alguém me diz que os fatos
62
não são bem assim como eu conto, respondo: pior para os fatos (RODRIGUES em
RIBEIRO, 2003).
Mas a caravana moderna avançou, e a responsabilidade social passou a ter
na objetividade um ideal ou modelo, ao se constituir no marco de passagem do
jornalismo opinativo do século XIX para o jornalismo informativo, de que parece
exemplar a declaração de Dines sobre seu objetivo profissional, em 1966, então
com cinco anos no comando do JB, à revista Realidade: “Conservar o subjetivismo da profissão e solidificá-la com o objetivismo da comunicação de massas”
(DINES em MERCADANTE, 1966, p. 137).
1.4. Paradigma como método
Em Signatura rerum: sobre o método, o filósofo italiano Giorgio Agamben
(2019) dedica um capítulo a explicar como entende o uso de paradigmas na filoso-
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fia e nas ciências humanas, e como utilizou a noção de paradigma como método
para suas análises sobre o homo sacer, o muçulmano, o campo de concentração e
o estado de exceção. Agamben busca deixar claro que sua intenção não se limitava a oferecer teses de caráter meramente historiográfico, mas a tratar essas figuras
como paradigmas, no sentido de constituir e tornar legível um contexto históricoproblemático mais vasto. Este exercício pareceu apropriado para apresentar o modo como se percebe o Jornal do Brasil, lançando mão do paradigma ao modo
agambeniano, que foi formulado sobretudo a partir de Thomas Kuhn em Estrutura
das revoluções científicas ([1962] 1997).
Agamben observa que Kuhn usa o conceito de paradigma em dois sentidos:
no primeiro, que ele chama de “matriz disciplinar”, paradigma designa o que os
membros de certa comunidade científica têm em comum, o conjunto das técnicas,
dos modelos e dos valores a que os membros da comunidade aderem mais ou menos conscientemente; no segundo sentido, o paradigma é um elemento singular
deste conjunto – os Principia de Newton ou o Almagesto de Ptolomeu, que, “servindo de exemplo comum, toma o lugar das regras explícitas e permite definir
uma tradição de pesquisa particular e coerente” (2019, p. 12). Este segundo seria,
para Kuhn, mais novo e profundo: o paradigma é simplesmente um exemplo, um
caso singular que, pela sua repetição, ganha a capacidade de modelar tacitamente
o comportamento e as práticas de determinada comunidade.
63
Mais parecido com a alegoria do que com a metáfora, o paradigma é um caso individual que é isolado do contexto do qual faz parte apenas na medida em que ele,
exibindo sua própria singularidade, torna-se inteligível um novo conjunto, cuja
homogeneidade é constituída por ele mesmo. Assim, dar um exemplo é um ato
complexo, que supõe que o termo que serve de paradigma esteja desativado de seu
uso normal, não para ser transferido para outro âmbito, mas, ao contrário, para
mostrar o cânone daquele uso, que não é possível exibir de outro modo (AGAMBEN, 2019, p. 22-23).
O ponto de partida de Kuhn em Estrutura das revoluções científicas é a
ideia de que a ciência, em vez de cumulativa e progressiva, como vinha sendo
entendida, não se desenvolve pela acumulação de descobertas e invenções individuais, num processo gradativo no qual esses itens foram adicionados, isoladamente ou em combinação, ao estoque crescente que constituiria o conhecimento e a
técnica. Diz Kuhn que, se a ciência é a reunião de fatos, teorias e métodos, então
os cientistas são homens que, com ou sem sucesso, empenharam-se em contribuir
com um ou outro elemento para essa constelação específica, ou seja, formam uma
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comunidade com disposição para defender determinados pressupostos. Nesta operação, desprezam um conjunto de situações em que fatos não tenham sido confirmados pelas teorias ou métodos vigentes, “amontoados de erros, mitos e superstições que inibiram a acumulação rápida dos elementos constituintes do moderno
texto científico” (KUHN, [1962] 1997, p. 20). Essas dificuldades o levam a pensar
que a ciência está sujeita à incomensurabilidade, à maneira de ver o mundo num
dado momento, o que inclui um conjunto de crenças:
A observação e a experiência podem e devem restringir drasticamente a extensão
das crenças admissíveis, porque de outro modo não haveria ciência. Mas não podem, por si só, determinar um conjunto específico de semelhantes crenças. Um
elemento aparentemente arbitrário, composto de acidentes pessoais e históricos, é
sempre um ingrediente formador de crenças esposadas por uma comunidade científica numa determinada época (KUHN, [1962] 1997, p. 23).
Se essas crenças obsoletas devem ser chamadas de mitos, então os mitos podem ser
produzidos pelos mesmos tipos de métodos e mantidos pelas mesmas razões que
hoje conduzem ao conhecimento científico. Se, por um lado, elas devem ser chamadas de ciências, então a ciência inclui conjuntos de crenças (p. 21).
Para Kuhn, esse elemento de arbitrariedade está presente e também tem
efeito importante no desenvolvimento científico:
Quando os membros da profissão não podem mais se esquivar das anomalias que subvertem a tradição existente da prática científica, começam as
investigações extraordinárias que finalmente conduzem a profissão a um
novo conjunto de compromissos, a uma nova base para a prática da ciê n-
64
cia. São denominados de revoluções científicas os episódios extraordin ários nos quais ocorre essa alteração de compromissos profissionais. As r evoluções científicas são os complementos desintegradores da tradição à
qual a atividade da ciência normal está ligada ( KUHN, [1962] 1997, p.
25).
Acúmulo, estoque, sucessão de descobertas e invenções individuais são entendidas como uma sucessão de paradigmas. Nas palavras de Agamben, o império
da regra como um cânone científico é assim substituída pela do paradigma; a lógica universal da lei, pela lógica específica e singular do exemplo. E, quando um
velho paradigma é substituído por um novo, incompatível com ele, é produzido o
que Kuhn chama de revolução científica (p. 15).
Foucault descreve algo que para Agamben parece corresponder aos paradigmas de Kuhn, mas que ele prefere chamar de figuras epistemológicas ou limia-
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res de epistemologização:
Quando, no jogo de uma formação discursiva, um conjunto de enunciados adquire
relevância, pretende fazer valer (mesmo sem conseguir) normas de verificação e
coerência e exerce, em relação ao saber, uma relação dominante (de modelo, de crítica ou de verificação), diremos que a formação discursiva transpõe um limiar de
epistemologização (FOUCAULT, [1969] 2012, em AGAMBEN, 2019, p 16).
Outro conceito de Foucault que Agamben põe em diálogo com as proposições de Kuhn é o saber. O “saber” foucaultiano é aquilo que “indica todos os procedimentos e todos os efeitos de conhecimento que a certa altura um campo científico se dispõe a aceitar”. E ressalta ainda que um elemento de saber precisa
atender a “um conjunto de regras e constituições próprias de certo tipo de discurso
científico numa determinada época” e ser “dotado dos efeitos de coerção típicos
do que é convalidado como científico, ou simplesmente racional ou comumente
admitido” (FOUCAULT, em AGAMBEN, 2019, p. 10). Em entrevista concedida
em 1976, Foucault enfatiza a interioridade desta operação:
Não, é portanto, uma mudança de conteúdo (refutação de velhos erros, descoberta
de novas verdades), não é tampouco uma alteração da forma teórica (renovação do
paradigma, modificação dos conjuntos sistemáticos); o que está em questão é aquilo que governa [régit] os enunciados e o modo como uns e outros se governam [régissent], para constituírem um conjunto de proporções cientificamente aceitáveis e
passíveis, por conseguinte, de ser verificadas ou invalidadas através de procedimentos científicos. É, em suma, um problema de regime [régime], de política do
enunciado científico. Neste nível, não se trata de saber qual é o poder que pesa do
exterior sobre a ciência, mas quais efeitos de poder circulam entre os enunciados
científicos; qual é, de certo modo, seu regime interno de poder; e como e por que,
65
em determinados momentos, eles se modificam de forma global (FOUCAULT,
1976, em AGAMBEN, 2019, p. 15-16).
Esse regime interno de poder é analisado em Vigiar e punir, no qual Foucault ([1975] 2014) recorre à ideia de panóptico, construção circular para manter
sob vigilância um grupo de pessoas, a partir de seu centro. Mas o panóptico, como
lembra Agamben, citando Foucault, é ao mesmo tempo um “modelo generalizável
de funcionamento”, “o princípio de um conjunto”, uma modalidade de poder.
Como tal, ele é uma “figura de tecnologia política que pode e deve ser destacado de
seu uso específico”: não é apenas um “edifício onírico”, mas o “diagrama de um
mecanismo de poder reconduzido à sua forma ideal”. Em suma, ele funciona como
um paradigma em sentido próprio: um objeto singular que, valendo para todos os
outros da mesma classe, define a inteligibilidade do qual faz parte e que, ao mesmo
tempo, constitui (AGAMBEN, 2019, p. 21).
Os latinos distinguem exemplo e exemplar: o primeiro, apreciado com os
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sentidos, indica o que devemos imitar; o segundo requereria uma avaliação mais
complexa (não apenas sensível), e tem um significado sobretudo moral e intelectual. Para Agamben, o paradigma foucaultiano é as duas coisas: “não apenas
exemplar e modelo, que impõe a constituição de uma ciência normal, mas também
e acima de tudo exemplum, que permite reunir enunciados e práticas discursivas
num novo conjunto inteligível e num novo contexto problemático” (AGAMBEN,
2019, p. 23).
A seguir, as seis principais características que Agamben atribui ao paradigma como método (2019, p. 41), acompanhadas de suas sínteses:
1. O paradigma é uma forma de conhecimento analógica, que vai de uma
singularidade a outra singularidade;
Agamben recupera em Aristóteles o locus clássico de uma epistemologia do
exemplo: “O paradigma não funciona como uma parte em relação ao todo, nem
como um todo em relação à parte, mas como parte em relação à parte”, sob as
mesmas condições, sendo um mais conhecido que outro (AGAMBEN, 2019, p.
23). Ou seja, enquanto a indução procede do particular para o universal e a dedu-
66
ção do universal para o particular, o que define o paradigma é uma terceira e paradoxal espécie de movimento, que vai do particular para o particular (p. 24).
2. O paradigma neutraliza a dicotomia entre o geral e o particular e substitui
à lógica dicotômica um modelo analógico bipolar;
Para Agamben, a analogia intervém nas dicotomias lógicas (particular/universal; forma/conteúdo; legalidade/exemplaridade, etc.) não para compô-las
em uma síntese superior, mas para transformá-las num campo de forças de tensões
polares, em que, como num campo eletromagnético, perdem sua identidade:
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É somente do ponto de vista da dicotomia que o análogo (ou o paradigma) pode
aparecer como um tertium comparationis. [...] É impossível separar claramente
num exemplo sua condição paradigmática, seu valor para todos, do seu ser um
caso singular entre os demais. Como num campo magnético, não estamos lidando
com grandezas extensivas e escalares, mas com intensidades vetoriais” (AGAMBEN, 2019, p. 25).
3. O caso paradigmático suspende e ao mesmo tempo expõe seu pertencimento ao conjunto, de forma que dele não se pode separar nem a exemplaridade
nem a singularidade;
O paradigma na realidade pressupõe a impossibilidade da regra; mas, se ela falta ou
é impossível de ser formulada, de onde o exemplo poderá tirar seu valor probatório? E como é possível fornecer os exemplos de uma regra inatribuível? A aporia
só é resolvida quando se compreende que o paradigma implica o abandono incondicional do par particular-geral como modelo de inferência lógica. A regra (se aqui
ainda é possível falar de regra) não é uma generalidade que preexiste aos casos singulares e se aplica a eles, nem algo que resulta da enumeração exaustiva dos casos
particulares. Ao invés disso, é a mera exibição do caso paradigmático que constitui
a regra, que, como tal, não pode nem ser aplicada nem enunciada (AGAMBEN,
2019, p. 27).
Agamben lembra que, nos registros mais antigos, regra significava simplesmente conversatio fratrum, o modo de vida dos monges, e é identificada como
forma vitae, o modo de vida do fundador, o exemplo a ser seguido. Com o desenvolvimento das ordens monásticas e o crescente controle da Cúria romana, o termo regula assume a forma de um texto escrito, a ser lido aos novatos que aceita se
submeter às suas prescrições e proibições.
67
4. O conjunto paradigmático nunca está pressuposto nos paradigmas, permanecendo imanente;
Agamben conclui que “o paradigma implica um movimento que vai da singularidade à singularidade e que, sem sair desta, transforma cada caso individual
em exemplar de uma regra geral que nunca é possível formular a priori (p. 28).
5. No paradigma não há nem origem nem arké, todo fenômeno é origem e
toda imagem é arcaica;
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O paradigma nunca é já dado, mas se gera e produz mediante um “pôr ao lado”, um
“juntar” e, sobretudo, um “mostrar” e um “expor”. Em outros termos, a relação paradigmática não se dá simplesmente entre cada objeto sensível, nem entre eles e
uma regra geral, mas acima de tudo entre a singularidade (que assim se torna paradigma) e sua exposição (isto é, sua inteligibilidade) (AGAMBEN, 2019, p. 30).
6. A historicidade do paradigma não está nem na diacronia nem na sincronia,
mas no cruzamento entre eles.
Na verdade, minhas investigações, como as de Foucault, têm um caráter arqueológico, e os fenômenos de que eles lidam com o desenvolvimento ao longo do tempo
e envolvem portanto uma atenção aos documentos e à diacronia que não podem
deixar de seguir as leis da filologia histórica. Mas o arché que eles alcançam – e isso vale, talvez, para toda pesquisa histórica – não é uma origem pressuposta no
tempo, mas, situando-se na interseção da diacronia e da sincronia, torna inteligível
o presente do pesquisador não menos do que o passado seu objeto. Nesse sentido, a
arqueologia é sempre uma paradigmatologia, e a capacidade de reconhecer e articular paradigmas define a posição do pesquisador, bem como sua capacidade de
examinar documentos de um arquivo (AGAMBEN, 2019, p. 41).
Com essa breve lista, Agamben pensa ter tornado mais explícito que as figuras não são hipóteses de explicação da modernidade, remetidas a um sentido histórico, mas paradigmas cujo objetivo é tornar inteligível certos fenômenos, ou
seja, o paradigma é um método que dispõe singularidades lado a lado. Em última
análise, argumenta Agamben, o paradigma depende da possibilidade de produzir,
no interior de um arquivo cronológico em si inerte, planos de clivagem que permitem torná-los legíveis.
Tomo a noção agambeniana do paradigma para ler as narrativas sobre o
Jornal do Brasil como um arquivo e produzir recortes e clivagens que as tornem
68
legíveis à luz deste momento. Proponho pensar o JB como um paradigma que
suspende e ao mesmo tempo expõe seu pertencimento a um conjunto de regras –
em sentido expandido, incluindo crenças e mitos – e de valores jornalísticos que
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só podem existir inscrevendo nelas mesmas a sua possibilidade de exceção.
2. As narrativas
O ato de narrar introduz o tempo mítico, e mito poético nos socorre
da ação degradante da história ao tornar possível a recriação. O que se
procura quebrar é, exatamente, o tempo linear da história, sua irreversibilidade
(FIGUEIREDO, 1994, p. 31-32)
2.1. Jornal do Brasil, uma odisseia
Constrói-se aqui uma versão da história do JB composta por fragmentos de
pesquisas acadêmicas, depoimentos, livros, reportagens. Se “os mitos dos heróis
estavam tão arraigados na mente e eram tão indispensáveis que não podiam ser
deixados de lado”, como aponta Finley (1989, p. 9), essa colcha de retalhos – a
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regra do mito, com seus pontos rústicos e costuras defeituosas – pareceu a medida
justa nesse exercício de indicar aproximações e tensionamentos entre mito, memória e história na circularidade de discursos sobre o jornalismo no e do Jornal
do Brasil.
Barbosa (2017) chama atenção ainda para que, no processo de reconstrução
do passado como história, os meios de comunicação exercem papel estratégico, na
medida em que se apregoam como produtores de uma história imediata e reconstrutores da integralidade deste passado. Nos tempos midiáticos temos, portanto, ao
lado da construção desse presente estendido, que inclui o futuro, um uso particular
do passado. Por outro lado, há que se considerar que essas narrativas já possuem
um desejo de futuro, e são reconstruídas visando sua reutilização em outro momento. São produzidas como arquivos da e para a história (BARBOSA, 2017),
como explicita esta afirmação de Danton Jobim sobre a imprensa:
somos incapazes de inventariar o imenso conteúdo histórico de um jornal de hoje,
mas nossos descendentes vão encontrar nele o seu melhor guia e auxiliar na reconstituição destes tempos atribulados em que nos tocou viver. É nele, mais que em
qualquer outro documento, que se apoiará o processo de nossa época (JOBIM,
1992, p. 37, grifo meu).
Esse aspecto diz respeito à visão de história adotada pelos meios de comunicação, na qual sobressai a ideia de recuperação de um passado verdadeiro. Dependentes dessa visão de verdade inquestionável, produzem um discurso sobre o
70
passado repleto da essencialidade histórica. Daí a repetição sistemática daquilo
que foi fixado pelos próprios meios no passado como verdade histórica no presente. Referendam o passado verdadeiro construído pelos meios de comunicação, e
reinserem novamente essas narrativas na cena pública. As retrospectivas, as efemérides, em jogos de lembrança e esquecimento reproduzem um sentido de passado supra-histórico no qual se sobressai o valor de verdade, valor-chave para o
jornalismo, no qual se baseia sua credibilidade. Ou seja, a evocação do passado
tem um sentido político, que serve à construção de figurações importantes no presente.
Quando há um consenso historiográfico no país acerca da modernização do
jornalismo nacional, do qual o Jornal do Brasil é emblema, há também uma história que privilegia um único fluxo temporal possível, bem como um combate explícito que cria vencedores (os modernos) e os vencidos (aqueles ultrapassados
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que, uma vez superados, já não existem ou, pelo menos, não deveriam existir).
Costuma-se dividir a história do Jornal do Brasil em seis diferentes fases: a
monarquista (1891-1893), com Joaquim Nabuco; a republicana de oposição (sob a
direção de Rui Barbosa, 1893), a de perfil popular (1894-1918); a do boletim de
anúncios (a era do conde Pereira Carneiro, 1918 a 1953); a moderna (da condessa
Pereira Carneiro e de Manuel Francisco do Nascimento Brito, de 1954 a 200112),
em que se consolida como um jornal de referência (RIBEIRO, 2007, p. 153); e a
contemporânea, quando passou às mãos do empresário Nelson Tanure, arrendatário da marca em 2001, que suspende a circulação em 2010, e sublicencia o título
em 2017 a outro empresário, Omar Catito Peres, que relança o jornal em fevereiro
de 2018, tirando-o novamente de circulação em março de 2019.
Esses cortes temporais, estabelecidos por critérios da historiografia, devem
ser entendidos como esforços de organização, e, embora didáticos e algo reducionistas, são constituintes da mítica que marca não só a história do jornalismo brasileiro, como também a memória e a identidade dos profissionais de imprensa, que
retomam estas efemérides e personagens geração após geração. Assim, sem a pretensão de dar conta de 128 anos da história do Jornal do Brasil, o que não é obje12
Nascimento Brito, braço direito da condessa, assume a presidência da empresa em 1983, após a
morte da sogra.
71
tivo desta pesquisa, apresenta-se a seguir uma narrativa polifônica sobre o jornal,
após um breve panorama do desenvolvimento da imprensa nacional. O intuito é
situar o leitor sobre a trajetória do periódico e também sobre as construções memorialísticas, historiográficas e identitárias dos jornalistas jotabenianos.
A imprensa no Brasil é tardia. Como se sabe, foi proibida a circulação de
qualquer impresso na então colônia sem a autorização de Portugal, o que atrasou a
instalação de uma produção tipográfica, diferentemente de outros países do continente. Ainda em 1533, o México inaugurava a primeira tipografia do continente.
Em 1584, surgia a segunda, no Peru; nos anos 1600, são os Estados Unidos que
começavam a rodar seus primeiros jornais (BAHIA, 2009). Sodré aponta uma
associação direta entre imprensa, capitalismo e burguesia: “Só nos países em que
o capitalismo se desenvolveu, a imprensa se desenvolveu” (SODRÉ, 1999, p. 28).
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Sodré e Bahia tomam como marcos iniciais da imprensa no Brasil dois episódios ocorridos em 1808: a circulação, a partir de junho, do Correio Braziliense,
escrito por Hipólito da Costa, de Londres; e a chegada da família real portuguesa,
que instaurou a imprensa régia e, em setembro, pôs em circulação a publicação
oficial Gazeta do Rio de Janeiro. Dorne (2015), que pesquisou a identidade do
jornalismo no (dis)curso da história da imprensa no Brasil, os interpreta como
dois acontecimentos discursivos para/da imprensa brasileira, eventualmente antagônicos, que constituem “o que pode ser considerado a função do jornalista, o
papel do jornalismo para a sociedade”: para o pesquisador, o “desejo de ‘verdade”
materializa diferentes sentidos sobre o que é ser jornalista: enquanto o Correio
marcaria o jornalismo/jornalista como campo autônomo, “por sua incompatibilidade total de interesses” com o governo, “a Gazeta aponta para a imprensa em sua
íntima ligação com o Estado, autorizada a somente publicar o que lhe é de interesse” (DORNE, 2015, p. 96). Ressalta que, para ser jornalista no Brasil e para que
assim seja reconhecido, é preciso mostrar um olhar crítico sobre o país a partir da
perspectiva do próprio país; ou seja, a identidade do jornalista brasileiro ancorada
no “nacionalismo” (o sentimento de pertencimento) vai sendo construída como
requisito importante para o exercício (e legitimidade) da profissão (DORNE,
2015, p. 98).
72
Esse nacionalismo é evocado também pela imprensa brasileira que cresceria
com a República. Em fins do século XIX, o acesso a tipos de tipografia e a novas
tecnologias de impressão impulsiona o número de publicações, junto ao crescente
hábito de leitura nas grandes cidades. Os jornais, que não tinham público cativo,
passaram a distribuir assinaturas, valendo-se de melhorias nos Correios e no sistema de transportes. No Rio de Janeiro, a capital, surgiram 95 novos periódicos
em 1881, e no ano seguinte, 64. Em 1883, 56, e em 1884, 37. Em 1888, contavam-se 45 novos jornais e revistas e um ano depois, mais 29. Nos dois últimos
anos do século, surgem 47 novos periódicos (FONSECA em BARBOSA, 2010, p.
118).
O Jornal do Brasil seria fundado em 9 de abril de 1891, pelo monarquista
Rodolfo de Souza Dantas, ex-ministro do Império, dois anos depois da proclamação da República. Desde o seu lançamento, as histórias contadas sobre o Jornal
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do Brasil são pontuadas por distinções e singularidades. Nasceu monarquista. Críticas ao marechal Floriano Peixoto e homenagens a Dom Pedro II em sua morte,
em 5 de dezembro de 1891, provocaram a invasão da redação e a destruição das
oficinas. Rodolfo Dantas, o diretor, deixou o jornal, assumido por uma sociedade
anônima. Em 1893, o Jornal do Brasil passou a ser dirigido pelo republicano Rui
Barbosa, que muda a grafia do Brasil do título de Z para S. Mas o periódico voltaria a ter problemas com o governo, por criticar o presidente Floriano Peixoto durante a Revolta da Armada, o que rendeu ordem de prisão ao diretor. Rui Barbosa
se refugiou na Inglaterra, e o jornal deixa de circular com a suspensão de liberdade de imprensa, em setembro daquele ano. Só voltaria em 1894, no governo de
Prudente de Morais, primeiro presidente civil.
Em 1894, o JB muda sua data de fundação de 9 de abril para 15 de novembro de 1891, dia da Proclamação da República. E sua autoimagem passa a ser frequentemente associada aos ideais republicanos. Em publicação da Editora JB comemorativa dos 95 anos do jornal, manifesta certa ilusão biográfica em torno de
uma alma republicana de origem:
Em 1893, Rui Barbosa, redator-chefe do Jornal do Brasil, publicou na primeira
página a defesa do Almirante Wandenkolk, um dos signatários do manifesto dos 13
generais. Trinta dias mais tarde, Floriano Peixoto acusa o JB de incitar a Revolta da
Armada e fecha o jornal, que só iria reaparecer 1 ano e 45 dias depois.
73
O Jornal do Brasil nasceu com a República. Melhor: nasceu com a primeira Constituição republicana, promulgada em princípios de 1891, dois meses antes do aparecimento do jornal. Nos 95 anos seguintes, o destino do jornal ia ser frequentemente este: o de resistir aos que violam a lei e a justiça, lutar contra todas as investidas e reemergir sempre, com o mesmo propósito e a mesma determinação, todas
as vezes em que o arbítrio calou a sua voz. Ao episódio de 1893, sucederam o da
Revolução de 1930, quando o jornal, legalista, foi depredado e apedrejado e não
pôde circular por uma semana, e a brutalidade da censura militar ou civil, em 1937
e 1961 (sic), a qual culminaria no longo e negro período, ainda tão próximo, do
Ato Institucional nº 5. Um grande jornal, o que é? Um jornal livre, aberto, tolerante, múltiplo, como deve ser um jornal moderno, é uma janela aberta e um espelho:
ele mostra o mundo ao país e o país a si mesmo13. Nas páginas deste livro14 a Editora JB reuniu imagens que mostram, nos campos mais diversos, desde a conquista
do espaço até a política e a questão social, o contraponto, a paralela construção do
jornal e do país (que ele procura refletir e mostrar) ao longo da história da República (BRITO, 1986, p. 7, grifos meus).
Na edição do centenário, em abril de 1991, o jornalista Zuenir Ventura re-
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força a ideia de “resistência em favor da liberdade”:
Durante esse período, o JB viu as trevas se abaterem sobre o país, mas acabou vendo também o renascimento da luz. Foi testemunha, sempre, e muitas vezes vítima
dos acontecimentos. Desagradou a uns e a outros. Em 61, foi censurado pelo governo Carlos Lacerda, e em 64 teve sua sede militarmente invadida pelos fuzileiros
navais do governo de Jango; sofreu incontáveis ações de arbítrio, e, de dezembro
de 68 a janeiro de 69, circulou sob censura prévia; enfrentou censores na redação,
sofreu um implacável boicote econômico, teve diretores e editores presos em pelo
menos duas ocasiões e deixou de circular duas vezes como protesto – em 29 de
agosto de 61, quando 90% de seu material foi censurado pelo governo estadual de
Carlos Lacerda, e no dia 15 de dezembro de 68, quando um de seus diretores, o
embaixador Sette Câmara, foi preso pelos militares (VENTURA, 1991, p. 7).
2.1.1. Inovador
Originalmente, o Jornal do Brasil tinha edições de oito páginas (120cm por
51cm), com capa em corpo 10 e textos distribuídos em colunas de seis centímetros. Ainda no fim do século XIX, instala oficinas de fotografia e galvanoplastia e,
em 1900, volta a contar com a colaboração de Rui Barbosa como redator de notas.
Nesse ano, a Revista da Semana, recém-lançada por Álvaro de Tefé, filho de barão de Tefé, se torna suplemento ilustrado do jornal e, em 2 de abril, inaugura-se a
13
São comuns nestes discursos referências à ideia do jornalismo como espelho da sociedade.
A publicação apresenta uma seleção de fac-símiles de primeiras páginas do Jornal do Brasil, de
1891 a 1986, com subdivisões temáticas e textos-legendas. Tem 240 páginas, 30cmx30cm, teve
tiragem de 1.500 exemplares.
14
74
edição vespertina do JB, que passa a ser o primeiro jornal brasileiro a ter duas
edições. O avanço nas tecnologias aumenta a tiragem para 50 mil exemplares.
A primeira página do Jornal do Brasil de 15 de novembro de 1900 é exemplar da frenética Revolução Científico-Tecnológica, como chama Sevcenko
(1998), e da euforia que provoca. A ilustração principal reúne os artefatos tecnológicos que permitem a rapidez necessária à divulgação de notícias: o telégrafo e
suas linhas de transmissão, o navio a vapor, a impressora que permite ao jornal
rodar 60 mil exemplares; outra mostra um repórter ao telefone, e uma terceira
destaca personagens pobres e oprimidos, tipo de público ao qual o jornal se atribui
o papel de defensor (BARBOSA, 2007, p. 31). Para Marialva Barbosa, o Jornal
do Brasil “é a própria imagem da República e com uma missão tão nobre quanto a
daquela: promover a ordem e o progresso, além da defesa dos fracos e dos oprimidos”. Não seria acaso, diz, que o jornal publicasse sistematicamente litografias
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associando sua imagem à de uma figura feminina com louros na cabeça. Essa é
extremamente semelhante à imagem de mulher com que se representa a República
(BARBOSA, 2010, p. 134).
Antenado com o que se produzia na imprensa estrangeira, o jornal valorizava o noticiário internacional, com correspondentes telegráficos em Paris, Roma,
Londres, Lisboa, Montevidéu e Buenos Aires, recebendo em média pelo cabo
submarino de 600 a mil palavras diárias (JB, 1/1/1901, p. 1), além das notícias da
agência Reuter-Havas, que se instalara no Brasil em 1874, com a popularização
do telégrafo. Outra inovação foi o envio de correspondentes para países europeus
como Alemanha, França, Itália, Portugal e Bélgica, e também para os Estados
Unidos. Em 1° de janeiro de 1902, o Jornal do Brasil anunciava mais passos em
direção a se equiparar aos periódicos mais prestigiados do mundo:
Foi o Jornal do Brasil dos primeiros a introduzir a ilustração nas suas edições diárias. Toda a imprensa contemporânea adota essa tendência, que consiste em pôr ao
serviço do jornal a contribuição de todas as artes. Uns, como o Fígaro, o aristocrático Fígaro, limitam-se, em dias determinados, à caricatura do acontecimento palpitante da atualidade; outros, como Le Journal e Le Martin, os órgãos de maior circulação em França depois do Petit Journal, e New-York Herald, New York Journal,
New-York-World, da União Americana, ilustram largamente o local, o fait divers, o
folhetim, o crime sensacional, a vida cidadã ou provincial. O Jornal do Brasil adota simultaneamente os dois processos e a caricatura diária alia o comentário ou elucidação gráfica da vida contemporânea, própria ou alheia (Jornal do Brasil,
1/1/1902).
75
A autoexaltação não chega a ser incomum na imprensa da época. Mas chama a atenção o caráter pedagógico sobre a que tipo de textos associar caricaturas
ou ilustrações, num momento em que se estabeleciam novos padrões e tecnologias, com o público leitor se ampliando, e se habituando às novidades. A nota prossegue destacando não poupar recursos para a contratação de profissionais e para o
investimento em tecnologia para seguir o que era produzido em jornais respeitados mundialmente:
Os seus artistas são conhecidos; algumas das suas páginas têm sido aplaudidas pelos mais exigentes paladares do jornalismo europeu. É um serviço caro, bem o sabemos; mas não é uma razão para, não podendo custeá-lo, denegri-lo por pirronismo, por sistema ou por qualquer outra razão, nem decente nem artística (Jornal do
Brasil, 1/1/1902).
E, já ambicionando ser o maior jornal do país, publicava notícias de outros
estados e seções que traduziam os valores da cultura popular da capital da RepúPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
blica, como uma seção exclusiva para mulheres e, no ano seguinte, uma coluna
dedicada ao cinema, veiculada aos domingos, a Kinetoscópio. Ao mesmo tempo,
o jornal lembra a compra da Revista da Semana:
Não contente, porém, com haver introduzido a ilustração nas suas edições diárias, o
Jornal do Brasil adquiriu há um ano, com sacrifício não pequeno, o material e a
propriedade da Revista da Semana, dando ao público uma edição semanal ilustrada, cujos trabalhos de fotozincografia, de fotogravura, de litografia e cromotipia,
honram as suas oficinas. Essa publicação é única no Brasil e foi criada com o tostão diário do povo. Até que outra apareça estamos, pois, no direito de considerá-la
a melhor (Jornal do Brasil, 1/1/1902).
Literalmente, nos domínios da pura estética mental, os progressos do Jornal do
Brasil têm sido mais lentos, subordinados, como não pode deixar de suceder, ao
serviço de informações que, na imprensa diária contemporânea, tudo pretere e protela. Mas quem como nós faz da sua profissão tão alevantada e nobre ideia certo
não é insensível à beleza dos grandes espíritos do seu tempo, e por feliz se dará no
dia em que, para regalo do cenáculo intelectual, as circunstâncias lhe permitirem
associá-los à prosperidade da empresa (JB, 1/1/1902).
Único a publicar uma edição vespertina, às 15h, o jornal alcança, em 1902,
tiragem de 62 mil exemplares, se tornando o maior da América Latina, responsável por um terço do total de tiragens dos cinco maiores jornais da capital (JB, Jornal do Commercio, O Paiz, Gazeta de Notícias e Correio da Manhã), que somavam 150 mil exemplares (BARBOSA, 2010, p. 125). Daí porque, segundo Sodré,
mesmo ainda crítico à República, e tendo passado por “um período de crise” em
76
1892, depois de um primeiro ano conturbado (SODRÉ, 1999, p. 258-269), o Jornal do Brasil era diferente da concorrência, era singular:
No fim do século XIX, a vida e morte dos pasquins eram normais no Brasil. Extremamente ideológicos, esses pequenos jornais eram mal estabelecidos financeiramente e tinham vida curta. O diferencial do JB é que ele já nasceu grande e com
a intenção de se estabelecer no cenário carioca para enfileirar-se entre os grandes.
Fora montado como empresa, com estrutura sólida. Vinha para durar (SODRÉ,
1999, p. 257).
Desde o início do século XX, sobressai a ideia da imprensa como instrumento fiscalizador dos poderes públicos. Essa autoimagem, que constitui uma
marca de autoridade do campo jornalístico, pode ser encontrada nos artigos do
Jornal do Brasil alguns anos após a Proclamação da República. É o que demonstra Barbosa (2000) em sua pesquisa sobre as relações entre a imprensa, o poder e
o público. Em 15 de novembro de 1900, editorial publicado pelo periódico destaca
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esse papel denunciador que deveriam assumir os jornais. Essa postura combativa
em que o diário se autoatribuía o papel de atuar como “olhos e ouvidos da sociedade”, pelo menos no nível retórico, não se restringia ao Jornal do Brasil. Informar para formar opiniões era a palavra de ordem:
Por não termos aspirações políticas podemos agir livremente, como jornalistas,
censurando o abuso das autoridades, advogando a causa dos fracos, batendo-se
sempre pelas garantias constitucionais, atacando veementemente o Poder, sempre
que ele exorbita de suas atribuições (JB, 15/11/1900, p. 1).
O JB teve como primeira sede a Gonçalves Dias 56, de 1891 a 1910. A rua
estreita e movimentada era endereço da Confeitaria Colombo, fundada em 1894 e
um dos ícones da chamada Belle Époque no Rio. Nesta época, a leitura dos jornais
era um hábito matinal nas mesas do café da manhã, nos bondes, trens. E não apenas “os ricos industriais, os fazendeiros, os políticos, mas os trabalhadores, empregados do comércio, ambulantes, vendedores, militares de baixas patentes, funcionários públicos, mulheres, presidiários” eram leitores habituais ou esporádicos
de jornais (BARBOSA, 2010, p. 204).
O jornal se permitiu apostar em notícias mais populares e desse destaque ao
noticiário policial, guias de carnaval e problemas urbanos. Uma de suas seções
mais populares era a “Queixas do Povo”, com reclamações de leitores. Também
abriu seções como “Palcos e Salões”, espécie de agenda cultural, e o “Sport”, pio-
77
neiro na divulgação de esportes no país. Pesquisadores encontram, também, indícios de que o jornal se propunha “popular”, defensor dos pobres e dos oprimidos e
divulgador de suas queixas e reclamações (FERREIRA & MONTALVÃO, 2002).
O Jornal do Brasil difundiu-se em todas as camadas sociais. Não o lê só o negociante opulento, nas horas que os seus afazeres deixam vagas. Também o procura
quotidianamente o humilde operário, ao deixar operado o trabalho do dia. Indaguem aos vendedores os que pensam que exageramos (JB, 15/11/1900, p. 2).
Havia duas formas, então, de o leitor se comunicar com os jornais: por carta
ou pessoalmente, e era o Jornal do Brasil “o que mais recebia a visita dos leitores,
que procuravam o periódico para que o redator de Queixas do Povo anotasse suas
reclamações” (BARBOSA, 2010, p. 220-221). Análise comparativa da pesquisadora a partir das colunas de diálogo com o leitor, em 1901, mostra um total de 182
do JB, 95 do Correio da Manhã e 31 de O Paiz.
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Era no primeiro andar da Gonçalves Dias, a que se chegava por uma “elegante e bem trabalhada escadaria de ferro, torcida em espiral”, que se dava a interação com os leitores e com pessoas em busca de ajuda:
O redator de plantão recebia reclamações, notícias, retificações para a edição do
dia seguinte. Outro funcionário era encarregado de atender um “número extraordinário de infelizes que vão buscar ali os óbolos que a caridade e a benemerência
dos leitores da folha lhes distribuem diariamente (LOBO, 1896, em BARBOSA,
2007, p. 38).
No início do século XX, a população do Rio de Janeiro era composta por
pouco mais de 800 mil habitantes15, a maioria negros, ex-escravizados libertos e
seus descendentes, e migrantes das fazendas decadentes em busca de trabalho,
principalmente na Zona Portuária do Rio, então o mais importante do país e o
terceiro no mundo, depois dos de Nova York e Buenos Aires. Num contexto de
estímulo ao desenvolvimento e intensas trocas comerciais, o Centro do Rio passaria pela grande reforma de urbanização e sanitarista encomendada pelo presidente
Rodrigues Alves. O engenheiro urbanista Pereira Passos empreendeu o “botaabaixo” dos casarões e ruas estreitas do antigo Centro, abrindo o fluxo para o escoamento de mercadorias do porto e afastando a população pobre, em paralelo à
15
Dado
do
Censo
Demográfico
de
1900
do
IBGE.
Disponível
em
https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:HDXt99Vmo0J:https://censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php%3Fdados%3D6+&cd=5&hl=ptBR&ct=clnk&gl=br. Acesso: 9 dez. 2019.
78
reforma sanitarista de Oswaldo Cruz. A “Regeneração”, como foi apelidada pela
imprensa, teve como marco a abertura, em 7 de setembro de 1904, da Avenida
Central, eixo do projeto urbanístico, de forte influência francesa: fachadas em
estilo art nouveau, em mármore e cristal, compunham com elegantes lampiões da
moderna iluminação pública e as luzes das vitrines das lojas de finos artigos importados (SEVCENKO, 1998, p. 20-26), roubando da Rua do Ouvidor e do
Boulevard 28 de Setembro parte da alta burguesia e atraindo o comércio, além de
jornais.
A considerar o que diziam os cronistas da época, o Rio de Janeiro definitivamente “civilizara-se”. Revista da Semana (criada em 1900), O Malho (1902),
Cosmos (1904), Careta (1907) e Fon-Fon (1908) anunciam os passeios pela Avenida Central, as festas na Beira-Mar, torneios que reuniam as elites. A publicidade
também indica um público ávido por consumo e modernidade – desconsiderando,
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diga-se, a população expulsa do Centro para os subúrbios da Central e da Leopoldina pelo “bota-abaixo”16. Nesse contexto de intensas transformações na capital
da República, então vitrine do país, e contando com ampla popularidade, é na
Avenida Central que o Jornal do Brasil iniciou em 1905 a construção de nova
sede, com novos equipamentos de impressão – as primeiras linotipos de impressão
em cores do Rio de Janeiro. O alto investimento desequilibra as contas. Em 1° de
agosto de 1906 o jornal, que chegou a ter cinco edições diárias, começou a veicular na capa pequenos anúncios, alteração gráfica inspirada em jornais estrangeiros
que usavam o mesmo recurso como o New York Herald, The Times, La Prensa,
La Nación (SODRÉ, 1999, p. 325), e que perdurou por décadas, como forma de
obter receita.
Não se poupa, porém, com o novo endereço. Na Avenida Central, futura Rio
Branco 110, no coração do novo Centro do Rio, o jornal se estabeleceu em 1910 e
lá permaneceria até 1973 (depois retornaria, entre 2002 e 2005), num prédio que
foi marco na história e na geografia da cidade. Ao ser inaugurado, era o maior da
América do Sul e uma joia arquitetônica da Avenida Rio Branco. Construído em
bloco até o quinto andar, começava a se estreitar a partir do sexto, formando a
base de uma torre. No topo, havia um relógio e uma sirene que anunciava o lan16
Os subúrbios concentravam em 1920 quase a metade dos 1.167.500 habitantes, de acordo com o
Censo Demográfico daquele ano (BARBOSA, 2007, p. 57).
79
çamento de edições extras (JB, 4/2/2002) e também breaking news, como no
anúncio da primeira medalha olímpica brasileira, nos Jogos da Antuérpia, em
1920:
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Eis que a sirene do Jornal do Brasil, com todo o vigor, anunciou algo sensacional.
A multidão correu para frente do edifício da Avenida Rio Branco. Um funcionário
escreveu num quadro negro o teor de um telegrama da Antuérpia: “Os brasileiros
Guilherme Paraense e Afrânio Costa conquistaram o primeiro título mundial olímpico para o Brasil”. Imediatamente, gritos de entusiasmo se fizeram ouvir, atraindo
a atenção das demais pessoas que passavam. Um dos diretores do jornal hasteou a
Bandeira Nacional e todos os presentes cantaram emocionados o Hino Nacional.
Não faltaram também oradores e pessoas que se diziam amigas ou conhecidas dos
atiradores (FERREIRA, 2007).
Figura 1: Avenida Central, com o Jornal do Brasil e sua torre, nos anos 1920.
Acervo JB.
O Jornal do Brasil fez a cobertura diária da Primeira Guerra Mundial, com
reportagens que ganhavam destaque na capa, inclusive com fotografias. Mas uma
das consequências da guerra foi o encarecimento de produtos importados, inclusive o papel do jornal. Em 1918, o JB passa, então, a economizar espaço nas edições, publicando textos em corpos pequenos e títulos menores. Endividado pelos
investimentos da modernização, o JB começa a entrar em crise financeira. Sem
conseguir pagar as hipotecas junto ao conde Pereira Carneiro, o jornal passa às
suas mãos em 1919. As sucessivas espirais de gastos exorbitantes e dívidas acumuladas são uma constante na história do jornal, desde seus primeiros anos.
80
A chefia da redação é assumida por Assis Chateaubriand, que mais tarde se
tornaria um dos maiores nomes da imprensa brasileira (SODRÉ, 1999, p. 346). A
partir da década de 1920, o JB passa por mudanças gráficas: os títulos ganharam
mais destaque, e manchetes que ocupavam toda a extensão da primeira página se
tornaram cada vez mais comuns – estas páginas, porém, nunca foram lembradas
ou reproduzidas nos cadernos comemorativos. Mais frequentes são as referências
ao fato de o conde Pereira Carneiro ter convidado membros da Academia Brasileira de Letras e outras figuras do meio intelectual a assinar colunas (SODRÉ, 1999,
p. 257). Mas, nesta época, era principalmente ao público das camadas populares
que o jornal se dirigia. É criada seção inédita dedicada ao rádio, em franca popularização, e ainda as seções “Diário Desportivo”, “Subúrbio” e “Os crimes de polícia”, além de dar espaço a notícias ligadas ao jogo do bicho, ao carnaval e a denúncias, tendendo ao sensacionalismo, o que lhe rende a alcunha de “O Popularís-
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simo” pelos demais veículos. Há referências a esta fase em pesquisas historiográficas, e mesmo uma pesquisa de mestrado sobre esse momento específico
(SCHUBSKY, 2006). Mas, no próprio jornal ou entre jornalistas que escreveram
sobre ele, não se faz menção a isso, um exemplo de seleção e apagamento. Critérios de importância ou relevância que regem textos jornalísticos podem ser usados
como justificativas.
Já sobre a Era Vargas, os registros são mais generosos. Quando Getúlio
Vargas assume a Presidência, com a Revolução de 1930, a sede do Jornal do Brasil foi invadida e depredada, e a circulação proibida por cerca de quatro meses,
quando é negociada a presença de um censor para impedir reportagens contrárias
aos interesses do governo (SODRÉ, 1999, p. 371-376). A censura é uma linha
narrativa que costura as biografias do Jornal do Brasil, a começar pela primeira
invasão e depredação, ainda na fase monarquista do jornal.
A Proclamação do Estado Novo, regime ditatorial estabelecido por Getúlio
Vargas em 1937, dá início a um período de cerceamento estatal à atuação dos
meios de comunicação. A Constituição que entra em vigor no mesmo ano subordina a imprensa ao poder público. Em 1939 é criado o Departamento de Imprensa
e Propaganda (DIP), órgão que tinha a função de produzir material, como panfle-
81
tos e peças publicitárias, para fazer a propaganda dos ideais do regime junto às
camadas populares.
Segundo Marialva Barbosa, a imprensa passa a ser vista pelo governo como
uma poderosa ferramenta capaz de modelar o pensamento da população, adaptando-o ao novo panorama político do país e preparando-a para viver em um regime
totalitarista. Também é função do DIP exercer o controle dos meios difusores de
informação. Nesta categoria não se encontram somente rádios e jornais, mas também o teatro, o cinema, a música, a literatura. Todos deveriam ser submetidos às
regras ou estariam sujeitos a penas que variavam desde multas até o fechamento
do empreendimento. Conforme pode ser visto no artigo 135 do decreto-lei
1949/39, que regulamenta o exercício das atividades de imprensa e propaganda no
Brasil. Art. 135. As infrações dos dispositivos do presente capítulo são passíveis
das seguintes penalidades, além da ação criminal que no caso couber: a) advertênPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
cia; b) censura prévia no jornal ou periódico durante determinado tempo; c) apreensão da edição, suspensão temporária ou interdição definitiva do jornal ou periódico; d) destituição do diretor do jornal ou periódico; e) suspensão temporária do
exercício da profissão de jornalista; f) suspensão de favores e isenções.
A implantação do Estado Novo de Vargas fez com que muitos jornais acabassem fechando e outros se vissem impedidos de nascer. A criação do DIP e dos
Departamentos Estaduais de Imprensa (DEI), que atuavam com censores nos veículos de imprensa, acabou fazendo com que a grande imprensa do Brasil servisse
à ditadura. Um dos maiores golpes que a censura impôs aos jornais – e também ao
Jornal do Brasil – foi a completa ausência das tão populares caricaturas e charges,
banidas por tratarem de assuntos políticos (SODRÉ, 1999, p. 381-384).
A crise econômica brasileira na década de 30 também afetou diretamente o
Jornal do Brasil, que adotou outro viés e tornou-se um periódico composto quase
que inteiramente de classificados. Administrada por José Pires do Rio, a empresa
passou por grandes cortes de gastos, demitiu seus repórteres mais literatos, limitou
as publicações sobre o cotidiano, perdeu seu caráter noticioso, tornando-se um
balcão de anúncios. Nessa época, o jornal passou a ser chamado pejorativamente
de “jornal das cozinheiras” (ABREU, 2003, p. 70). Com seu novo posicionamento
82
comercial, o JB mantinha relações cordiais com o DIP e demonstrava simpatia em
relação às políticas do governo e à legislação trabalhista de Vargas.
Mas o jornal não conseguiu se recuperar financeiramente, e sucumbiu novamente à fórmula do boletim de anúncios, o que levou à alcunha de “jornal das
cozinheiras ou das domésticas, pelos anúncios de emprego que tomavam a capa e
as primeiras quatro páginas do jornal” (RIBEIRO, 2002; CPDOC/FGV). Este
formato seria substituído a partir da morte do conde Pereira Carneiro, quando
Maurina Dunshee de Abranches, a condessa Pereira Carneiro, assume o jornal.
A extinção do DIP e o fim do regime ditatorial do Estado Novo, em 1945,
coincidem com o término da Segunda Guerra Mundial e marcam um período de
transformações no modus operandi jornalístico brasileiro que chegaria ao seu ápice na década de 1950. Embora o foco do estudo seja o Jornal do Brasil, é fundaPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
mental fazer um pequeno apanhado de tais fatos para compreender e contextualizar a reforma. É fundado o primeiro curso superior de Jornalismo criado pela
Fundação Cásper Líbero, em 1947. No Rio de Janeiro, a pioneira é a Universidade
do Brasil, atual UFRJ, em 1948.
O desenvolvimento industrial no Brasil pós-guerra favorece a transição de
um estilo de gestão político para o empresarial, em que os jornais não dependem
única e exclusivamente da subvenção estatal para manter saudáveis suas finanças
e passam a ter uma autonomia maior em suas linhas editoriais. O aporte financeiro
também favorece a compra de maquinário para modernização dos parques gráficos e implica na contratação de especialistas para atuar na área de administração,
substituindo o modelo pouco profissional que então vigorava por um mais eficiente. Coube ao Rio de Janeiro – sede do governo, centro cultural, maior porto, maior
cidade e cartão de visita do país – o papel de metrópole-modelo: “O Rio passa a
ditar não só as novas modas e comportamentos, mas acima de tudo os sistemas de
valores, o modo de vida, a sensibilidade, o estado de espírito e as disposições pulsionais que articulam a modernidade como uma experiência existencial e íntima”
(SEVCENKO, 1998, p. 522).
Do início do século XX ao fim dos anos 1950, a imprensa nacional havia
mudado totalmente de perfil: revistas ilustradas proliferaram, o uso da fotografia
83
se expandiu, a diagramação foi remodelada, o modelo americano de jornalismo
objetivo e texto conciso – alvo de críticas de Nelson Rodrigues – começou a ser
implantado. A era pré-televisão viu o aparecimento de vários jornais importantes,
matutinos e vespertinos, como A Manhã e O Globo (1925), Diário Carioca (1928)
e Diário de Notícias (1930) – dos quais apenas O Globo restou de pé, ancorado na
rede de sustentação garantida pela TV do grupo. Como a cidade, que buscou se
manter na vanguarda, capital cultural do país, o JB construiu imagem associada a
este capital simbólico de vanguarda.
Era um momento particular da história da imprensa brasileira. O novo espírito de desenvolvimentismo e modernização toma o país, resumido nos “50 anos
em 5” de JK, com fortes ecos na imprensa. Como observa Ribeiro (2007), as reformas em geral foram menos empresariais e mais profissionais, com o jornalismo
passando de bico a profissão; e técnica (redacional, editorial e visual), com a inPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
corporação de padrões jornalísticos como o lide (em que o primeiro parágrafo do
texto deve responder quem fez o que, onde, como, quando e por quê) e as informações hierarquizadas numa pirâmide invertida, do mais para o menos importante
– introduzidos na imprensa brasileira por veículos como Diário Carioca e Tribuna da Imprensa no fim dos anos 1940. Foi a época do surgimento de jornais inovadores, como a Última Hora, e das famosas reformas redacionais, gráficas e editoriais de periódicos como o Diário Carioca e o Jornal do Brasil.
Em março de 1950, o Diário Carioca lançou o primeiro manual de redação
do país, um folheto de 16 páginas, cujo objetivo era formalizar as principais mudanças: a substituição do chamado “nariz de cera” (texto “introdutório” costumeiramente utilizado como técnica de redação) pelo lide. Neste processo, os textos
opinativos ou literários não foram abolidos, mas reposicionados, com a criação de
colunas assinadas que resultaram na sua valorização:
O isolamento das matérias opinativas e cômicas colocava em relevo a aparência de
objetividade do noticiário. Ao marcar uma ruptura simbólica com os gêneros impessoais e anônimos, fazia crer na objetividade desses textos. Por outro lado, compensava o seu alto grau de formalização e impessoalidade, emprestando aos jornais
uma face mais humana e subjetiva, importante também na construção da identidade
dos veículos e nos seus vínculos com os leitores (RIBEIRO, 2007, p. 345).
84
Sob a influência do chamado modelo norte-americano, inicia-se a modernização das empresas e dos textos, e também a profissionalização dos jornalistas e a
constituição de um ideário sobre o que era o jornalismo e a sua função social. As
equipes contratadas para reformar os diferentes jornais eram compostas de profissionais entre 20 e 30 anos, que com pouco tempo de redação assumiam cargos de
chefia – Evandro Carlos de Andrade, por exemplo, substituiu Pompeu de Souza
na chefia de redação do Diário Carioca aos 24 anos. Os mais jovens eram preferidos porque – ao não trazerem os velhos vícios da profissão – se adequavam melhor às novas técnicas do jornalismo moderno (RIBEIRO, 2008).
A transição se dá não sem conflitos. A tendência era rechaçada por exemplo
pelo Correio da Manhã, cuja presidente, Niomar Bittencourt, dizia que “não havia
herdado uma herança material, mas moral” (em ANDRADE, 1991, p. 63), e que
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seu jornal seguiria defensor do jornalismo de opinião, como mostra este editorial:
A praxe de quantos até hoje têm proposto pleitear no jornalismo nosso a causa do
direito e das liberdades populares tem sido sempre a afirmação antecipada, ao público, da mais completa neutralidade. Em bom senso, sabe o povo que essa norma
de neutralidade com que certa imprensa tem por costume carimbar-se é puro estratagema para, mais a gosto e a jeito, poder ser parcial e mercenária. Jornal que se
propõe a defender a causa do povo não pode ser, de forma alguma, jornal neutro.
Há de ser, forçosamente, jornal de opinião (CORREIO DA MANHÃ, 1963, em
ANDRADE, 1991, p. 69).
Carlos Drummond de Andrade, ao escrever sobre o empresário Paulo Bittencourt, defende posição semelhante, de que um jornal é “a imagem de um homem”, o jornalista:
O que é um jornal? O que é o jornalista? Institutos de imprensa e cursos de formação profissional dispõem-se a esclarecer tais noções, mas os esclarecimentos não
nos servirão de nada se não formos leitores de jornal, e se não captarmos, através
dele, o jornalista. Por mais que as técnicas padronizem os órgãos de publicidade, e
a função de informar e debater se organize em indústria, o jornal será sempre a
imagem de um homem e de sua equipe, e cada jornalista verdadeiro dará sempre
caráter, cor, sabor e ‘físico’ ao seu jornal, nele se transfundindo (ANDRADE,
6/8/1963, em ANDRADE, 1991, p. 308, grifos meus).
O breve trecho, que abre o texto do poeta e cronista, oferece múltiplas questões. Reforça a função de informar e debater atribuída ao jornalismo; faz referência à industrialização da imprensa; indica “institutos de imprensa e cursos de formação” como balizadores de suas práticas; alega que só um leitor pode capturar o
sentido de um jornal, pela experiência própria de leitura, como Nelson Rodrigues
85
ao convocar que fossem consultadas as páginas do JB no futuro para saber como
vivíamos. E, principalmente, aponta o personalismo dos jornais, que se confundem com a imagem de seus donos. Embora houvesse mulheres, como Niomar, à
frente de jornais, atribui-se a escolha de Drummond ao fato de que homens eram,
e ainda são, maioria esmagadora no topo das cadeias de poder, em empresas jornalísticas ou não, e ao próprio androcentrismo arraigado na sociedade.
Sobre os “homens de imprensa”, Ana Paula Goulart Ribeiro lembra que os
jornais mais importantes do período (sendo a Última Hora uma das poucas exceções) eram todos dirigidos por grupos familiares, que formavam verdadeiras
dinastias. Isso fazia com que nas empresas convivesse, ao lado de um modelo de
gestão e administração mais racional, outro mais personalista. Além disso, devido
às características do mercado interno, o apoio a determinados grupos ou ao próprio Estado ainda era essencial para garantir a sobrevivência de algumas emprePUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
sas, por meio de créditos, empréstimos, incentivos fiscais ou mesmo publicidade
(RIBEIRO, 2003, s/p.)
Neste contexto, em 1954, com a morte do marido, a condessa Maurina Pereira Carneiro assume o comando. Assessorada pelo genro, Manoel Francisco do
Nascimento Brito – marido de Leda, filha de seu primeiro casamento –, que já
trabalhava para a rádio do grupo e para o jornal, a condessa tomaria uma série de
decisões que abririam caminho para o jornal empreender a sua tão incensada reforma, crucial para o êxito de vendas do jornal, ampliando o leque de leitores, e
lhe conferindo identidade própria ao se afirmar e servir de modelo para toda a
imprensa (LIMA, 2006, p. 54). No Jornal do Brasil, entre as mudanças mais marcantes no período destacam-se o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, em
1956; a primeira página composta por chamadas com resumos das principais notícias e fotos, emolduradas pelos anúncios classificados em forma de L; a criação
do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, ambas em 1959; e, no ano seguinte, a divisão do jornal em cadernos, como veremos a seguir.
86
2.1.2. A reforma e os reformadores
Muito se fala na reforma do Jornal do Brasil. A tão famosa, cantada em
prosa e verso nas epopeias jornalísticas, reforma do JB. Aquela que transformou
o antigo “jornal de cozinheiras” de Pires do Rio, atulhado de classificados,
numa folha leve, gostosa de ser lida, sem o peso dos fios e dos textos maçudos,
com fotos bem abertas em sua primeira página. Aquela que, diria ainda, num desatino, criaria partidos: o de Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar e Mário Faustino,
o de Odylo Costa, filho, o de Amílcar de Castro, o da condessa Maurina, o de
Janio de Freitas e Carlos Lemos, o de Alberto Dines, ou mesmo Nascimento Brito.
Muito se falou e se fala, com razão e emoção. Sem dúvida, trata-se de uma bela
obra, a transformação de um jornal sem influência alguma junto aos cidadãos do
Rio e do Brasil, e aos donos do poder, num órgão de imprensa lendário, cuja
marca ainda ecoa em seus estertores e que deu muito orgulho a quem nele
trabalhou. Sem falar na fidelidade férrea de seus leitores, que, para ser quebrada,
teve que ser vergastada por muitos ventos desfavoráveis.
Cecília Costa (2011, p. 16-17).
Decidiu-se fazer um jornal de verdade, um jornal com
importância, com qualidade, com peso jornalístico.
Ferreira Gullar (2010)
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Desde sua fundação, em 1891, o Jornal do Brasil passara por inúmeras
transformações gráficas e editoriais. Nenhuma é tão conhecida quanto a iniciada
em 1956. Com reflexos profundos na imprensa, foi resultado da ação de um grupo
de pessoas de visão modernizadora ou impulsionados pela conjuntura econômica.
O jornalista Wilson Figueiredo lembra:
quando o comitê central do Jornal do Brasil começou a examinar, na segunda metade dos anos 50, a ideia de definir o futuro com base em critérios universais do
jornalismo moderno, foi abalado pela profecia segundo a qual jornais que chegam à
beira do colapso não voltam a ter circulação digna de sobrevivência. Ninguém se
lembrava de jornal que tivesse se recuperado de decadência prolongada. A imprensa brasileira da época estava em olor de antiguidade. Diz a tradição oral que a
condessa Pereira Carneiro não levou a profecia a sério e bateu o martelo em favor
da reforma. Tinha como garantia a receita dos anúncios classificados, que jorravam
nos guichês das agências e asseguravam o monopólio natural da oferta e procura de
trabalho, oportunidades e necessidades (FIGUEIREDO, 2010, grifo meu).
Uma provocação teria influenciado a decisão da condessa. Num evento social, as primeiras-damas e viúvas dos jornais do Rio se encontraram e trocaram
ideias sobre a situação tensa do país, com o suicídio de Getúlio e a campanha presidencial precipitada por JK. Depois de ouvir Niomar Bittencourt, do Correio da
Manhã, e Ondina Dantas, do Diário de Notícias, a condessa Pereira Carneiro fez
também sua avaliação, sendo retrucada, com espanto simulado: então o jornal das
cozinheiras já tem opinião? (FIGUEIREDO, 2010).
87
Para conduzir a reforma e dirigir o jornal, a condessa convidou o jornalista
Odylo Costa, filho, seu conterrâneo do Maranhão. O jornal, com anúncios de classificados da primeira à última página, tinha algum noticiário, basicamente material da Agência Nacional, telegramas internacionais e textos de colaboradores, de
preferência os acadêmicos da casa, o ministro Annibal Freyre, Manuel Bandeira,
Múcio Leão e Josué Montello. “A reforma não sintonizava com as pessoas, nem
seria compatível com o jornalismo burocrático, conformado à rotina sem criatividade. A velha redação, sem ao menos uma máquina de escrever, se negava a apresentar outra visão dos fatos e outra maneira de apresentá-los” (FIGUEIREDO,
2010).
Odylo começa a contratar jornalistas para, primeiro, reescrever o material da
Agência Nacional, e depois para produzir material próprio. Deste primeiro grupo
fizeram parte Janio de Freitas, Ferreira Gullar, Amilcar de Castro e José Ramos
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Tinhorão, então jovens talentos do Diário Carioca, da Tribuna da Imprensa e da
Manchete, indicados por seu amigo Carlos Castello Branco. Janio de Freitas lembra que as indicações seguiram mais critérios políticos que jornalísticos:
O Odylo me pediu para ficar reescrevendo o jornal com Gullar, Wilson Figueiredo,
Quintino Carvalho e Bandeira da Costa. O material vinha da Agência Nacional, e
reescrevíamos aquilo ali para não ficar um texto oficialista, inclusive porque o
Odylo era de oposição, era fundamentalmente uma pessoa voltada para a política,
muito mais que para o jornalismo. O jornalismo era decorrente do interesse político
do Odylo, muito ligado à direção da UDN. E a Agência Nacional naturalmente fornecia um material governista do governo Juscelino, do PSD. Então, fiquei ali trabalhando como copy, reescrevedor, enquanto se foi formando a redação, entrando
gente para a reportagem, para texto, tudo mais. [...] Essas páginas foram deixando
proporcionalmente sendo ocupadas com o material produzido pelos repórteres, que
vieram na maioria da Tribuna da Imprensa, por causa da ligação do Odylo com o
Lacerda na UDN, e do Diário de Notícias, que era um jornal udenista... Foi mais
por via do udenismo do que do jornalismo (FREITAS, 2008, p. 19).
A estrutura decorrente da fase anterior, ainda o “jornal das cozinheiras”,
bastante próspera financeiramente, propiciou investimentos em equipamento e
equipe, com melhores salários para os profissionais, então mal remunerados em
outros veículos. Em depoimento ao projeto Memória do Jornalismo Brasileiro,
Ferreira Gullar, outro maranhense, conta como chegou ao JB:
[Odylo] chamou algumas pessoas, entre as quais eu, para fazer a reforma do jornal.
Eu, como tinha vindo do Diário Carioca, era amigo do José Ramos Tinhorão e do
Janio de Freitas, que eram dois jornalistas talentosos que trabalhavam no Diário
88
Carioca. Como lá não pagavam direito, sugeri que chamassem Janio e Tinhorão
para trabalhar no Jornal do Brasil, porque eles iriam ajudar a fazer a reforma para
modernizar o jornal (GULLAR, 2007).
O poeta lembra que já na Manchete, em 195517, iniciaram uma renovação
gráfica e de texto, com páginas mais arejadas, que desagradou ao dono da revista,
Adolpho Bloch, e levou à demissão dos “subversivos”:
Eu já trabalhava na Manchete com o Janio, e trabalhava lá também o Amilcar de
Castro, que era escultor, amigo do Otto Lara Rezende, que era o diretor da revista.
Amilcar não era um paginador, mas era um artista talentoso e que, no convívio com
Janio e comigo, começou a mudar a paginação da Manchete. Cheguei até a fazer
uma página na Manchete – eu próprio paginei – que criou um escândalo muito
grande, porque era uma página que tinha mais espaço em branco do que texto.
Adolfo Bloch ficou furioso. Aliás, nossa saída da revista foi um pouco consequência das mudanças que nós começamos a fazer lá: mudanças gráficas e de texto, que
desagradaram o dono da Manchete, Adolfo Bloch, e terminaram criando um conflito que provocou a saída de todo mundo (GULLAR, 2007, grifos meus).
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Wilson Figueiredo conta que a resistência finalmente se rendeu e se afastou,
ao custo de um atraso providencial na execução do novo JB. “A direção aceitou os
riscos e alongou os prazos para que a nova redação praticasse o moderno jornalismo que blindou o jornal na hecatombe nos anos 60, quando desapareceram de
cambulhada os vespertinos, substituídos pelo jornalismo da televisão na hora do
almoço” (FIGUEIREDO, 2010).
Seja como for, a reforma gráfica e editorial foi determinante para consolidar
a marca entre leitores e anunciantes, aumentando a tiragem com as novas feições
modernas. O jornal, que era o terceiro do Rio em circulação, em um ano chegou à
liderança (RIBEIRO, 2002, 2003). As mudanças editoriais e o investimento em
equipamento gráfico moderno permitiram ao então chamado “jornal das domésticas e das cozinheiras” se tornar o jornal mais prestigiado do país, passando a mito,
pelas narrativas orgulhosas dos jornalistas sobre a reforma proclamadas desde
então. Entre os que participaram do processo de reforma do periódico nos anos
1950-60, não há registro que minimize ou contraponha o orgulho e a consciência
de tomar parte de um novo momento do jornalismo.
O espírito da época era de renovação, como afirma Pompeu de Souza: “Estávamos imbuídos de um certo espírito de causa: o sentimento de que fazíamos a
17
Pouco depois foi trabalhar no Diário Carioca, que estava falindo, atrasava os salários. Simultaneamente, colaborava no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, como crítico de arte.
89
revolução na imprensa” (RIBEIRO, 2007, p. 331). Mas não se deu de um dia para
o outro. Ferreira Gullar lembra ter defendido, por exemplo, inovações como a
adoção de fotos na primeira página do JB: “Eu falei a Odylo: Vamos mudar o
jornal, vamos fazer um jornal novo, nenhum outro jornal faz isso [...]. A gente
tinha plena consciência do que estava fazendo. Nós estávamos mudando de propósito, não se tinha dúvida. Criar um jornal com aquelas características era deliberado, não era nada por acaso” (GULLAR, 2007). É semelhante o depoimento de
Carlos Lemos: “Havia uma efervescência entre nós, jovens que tínhamos sido
convocados para realizar esse trabalho [...]. Havia também grande entusiasmo e a
autoafirmação de estar participando do processo de transformar” (RIBEIRO,
2007, p. 331).
Este envolvimento declarado expressa algo a que Bourdieu denominou illusio: estar envolvido no jogo (ludus, em latim), perceber que o que se passa é imPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
portante para os envolvidos (1996, p. 139). Bourdieu mesmo faz, a propósito, pertinente crítica à confusão entre trajetória e projeto, a se considerar que um intelectual consagrado, por exemplo, tivesse tido em mente todos os passos que deu desde que iniciou a carreira, calculada e controladamente. Como se fosse possível ter
ideia, naquele presente do passado, a certeza de um porvir (1996, p. 146).
Com a demissão de Odylo, em dezembro de 1958, inicia-se uma segunda
fase de reformulações do jornal, sob o comando de Janio de Freitas, após breve
período com Wilson Figueiredo na chefia de redação. As reformas gráficas e a
adoção de novas técnicas de diagramação abriram espaço para experimentalismos
na linguagem e na forma. Em 2 de julho de 1959 chega às bancas a marcante primeira página que se tornaria marca registrada do JB, com os classificados concentrados em uma fita em L, abrindo espaço para fotos e manchetes arejadas. Também é lançado o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. No ano seguinte, o
Caderno B, primeiro caderno diário de cultura do país.
90
2.1.3. O SDJB
A imagem preponderante do intelectual dos anos 1950/60 era de envolvimento em questões políticas, sociais e éticas, em defesa de direitos e interesses
das classes populares, valores universais consagrados pela modernidade (FIGUEIREDO, 2012, p. 1). Na vida nacional, ganhava a cena um novo vocabulário
– “política externa independente”, “reformas estruturais”, “libertação nacional”,
“combate ao imperialismo e ao latifúndio” – inegavelmente avançado para uma
sociedade marcada pelo autoritarismo e pelo fantasma da imaturidade de seu povo
–, expressando um momento de intensa movimentação na vida política brasileira,
como observam Heloisa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves (1999). Estudantes e intelectuais assumiam posições favoráveis às reformas estruturais, desenvolvendo intensa atividade de militância política e cultural. A União Nacional dos
Estudantes (UNE), em plena legalidade, com trânsito livre e acesso às instâncias
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legítimas do poder, discutia calorosamente as questões nacionais e as perspectivas
de transformação que mobilizavam o país. “Houve um tempo, diz-nos Roberto
Schwarz, em que o país estava irreconhecivelmente inteligente” (HOLLANDA;
GONÇALVES, 1999, p. 8). O espírito da modernidade se fazia presente em teorizações e trabalhos das vanguardas dos anos 50, especialmente no movimento da
poesia concreta, retomada e redimensionada por outros setores da produção artística e jornalística. O JB pegou este trem para a modernidade. Original dos campos
de batalha (avant-garde, a guarda avançada de um exército), o termo “vanguarda”
faz referência às vanguardas históricas do início do século XX (BURGER, 2008),
nascidas no seio da elite (ou burguesia), assim como as desses anos 1950.
O momento e lugar apontado como fundante dessa “tradição de vanguarda”
é o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB), lançado em 1956, no que
era naquele momento um balcão de anúncios. De acordo com a Enciclopédia de
Literatura Brasileira,
o suplemento catalisou a tendência nova nas letras e artes brasileiras da época, reunindo os jovens de mente aberta e arejada, e criando enorme polêmica no país. [...]
Encabeçando um movimento de vanguarda, foi um marco importante na cena cultural brasileira, produzindo verdadeira revolução intelectual e estética (COUTINHO; SOUSA, 1990, p. 1.284-85).
91
O SDJB, que circulou de 1959 a 1961, se tornaria uma síntese do mito de
inovação, empreendedorismo, criatividade, independência, ousadia, que rendeu ao
jornal de classificados certo prestígio no meio intelectual. As páginas do periódico
foram mudando de forma na experimentação de uma nova geração de profissionais também em transformação, seguindo a tendência de operar com tudo o que
refletisse o “espírito do novo”, marca do governo JK (LIMA, 2006, p. 2).
O poeta e ilustrador Reynaldo Jardim, então diretor da Rádio JB, participa
das reformas na redação desde 1956. Jardim fazia o programa radiofônico Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, na Rádio, com uma hora de comentários e
críticas literárias, de cinema e artes cênicas, e foi incumbido de diagramar a página feminina assinada por Heloísa Abranches, sobrinha e secretária particular da
condessa (CORREA, 2001). A condessa, ouvinte da rádio, entusiasma-se e o convida para selecionar um poeta moderno por semana para publicar no jornal, aos
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domingos. O espaço torna-se a coluna semanal Literatura Contemporânea. A coluna vira uma página, que vira um caderno inteiro, destoando do resto do jornal:
Eu criei o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, que começou na rádio, sendo
um programa de crítica, comentários e assuntos culturais. O programa se transformou em caderno cultural, onde colaboraram Antônio Houaiss, Ferreira Gullar, Mário Pedrosa, Mario Faustino, o [Sergio Paulo] Rouanet e um punhado de jovens
muito bem informados. A reforma do JB começou justamente nesse suplemento.
Era um caderno de vanguarda inserido num mar de anúncios classificados. Com o
sucesso do SDJB, a condessa Pereira Carneiro resolveu dar uma cara e um conteúdo novo ao jornal. Chamou uma equipe de jornalistas, a maioria vinda do Diário
Carioca [...]. O cabeça da reforma do JB foi o Janio de Freitas (JARDIM, 2009).
O Suplemento Dominical do Jornal do Brasil contaria com a colaboração de
Amilcar de Castro, Ferreira Gullar, Mário Faustino, os irmãos Augusto e Haroldo
de Campos, Mário Pedrosa, Cláudio Mello e Souza e “mais um punhado de jovens bem informados”, como descreveu Jardim:
Além de artes visuais, plásticas, literatura, música, etc, tratávamos de cibernética,
zen, e editávamos pela primeira vez na imprensa Pound, Elliot, poetas ingleses,
alemães, americanos, franceses que ninguém conhecia no Brasil. Ferreira Gullar
fez um levantamento completo de todos os movimentos da chamada Arte Moderna,
desde os pré-impressionistas. O mesmo foi feito em poesia (Mario Faustino, Judith
Grossman, José Lino Grünewald etc). A participação do grupo paulista, Décio e os
irmãos Campos, foi fundamental (JARDIM, em MAUAD, 1996, p. 84).
92
Com a grande cobertura dada à Exposição Nacional de Arte Concreta, em
1956, os poetas concretistas lançaram no Suplemento seu Manifesto, em 1957. E
em 21 de março de 1959, dois dias após a abertura da 1ª Exposição de Arte Neoconcreta no Museu de Arte Moderna do Rio, o SDJB publicou em suas páginas o
Manifesto Neoconcreto, assinado pelos artistas expositores Lygia Pape, Franz
Weissmann, Lygia Clark e Theon Spanúdis, além do poeta e ilustrador Reynaldo
Jardim, do poeta Ferreira Gullar e do artista plástico Amilcar Castro – editorchefe do SDJB, editor de artes plásticas e diagramador, respectivamente. Portavoz do movimento neoconcreto, o SDJB se tornaria o que Jardim chamaria mais
tarde de “um caderno de cultura de ponta” – embora, necessário observar, esta
ideia de “caderno de cultura” não estivesse presente na época.
Gullar contou em entrevistas que a condessa Pereira Carneiro, dona do Jornal do Brasil, entusiasmada com o resultado obtido com o Suplemento Dominical,
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decidiu que o JB não seria mais um jornal de anúncios classificados. Gullar lembra que o programa e a coluna trouxeram à condessa certo prestígio no meio intelectual, e esta “passou a ser convidada para jantares em embaixadas” (BASTOS,
2008, pág. 24). “No meio daquilo, surgiu um suplemento ultramoderno, revolucionário. Então ela resolveu mudar o próprio jornal”. Daí a decisão de fazer “um
jornal de verdade, um jornal com importância, com qualidade, com peso jornalístico” (GULLAR, em BLASS, 2010, grifo meu).
O Suplemento Dominical do Jornal do Brasil lançaria novos autores, artistas, cineastas, poetas e cronistas em páginas com grandes ilustrações e poemas
concretos de Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Ferreira
Gullar e perfis de nomes da música assinados por Beatriz Leal Guimarães.
Também dá espaço ao Cinema Novo – Glauber Rocha, Cacá Diegues, Joaquim Pedro, Leon Hirszman – e ao novo teatro brasileiro, capitaneado por Flávio
Rangel e Gianfrancesco Guarnieri, além de contar com Cecília Meireles, José
Lins do Rego, Lígia Fagundes Teles, Lêdo Ivo, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade entre os colaboradores. De acordo com a Enciclopédia de Literatura Brasileira,
93
o suplemento catalisou a tendência nova nas letras e artes brasileiras da época, reunindo os jovens de mente aberta e arejada, e criando enorme polêmica no país. [...]
Encabeçando um movimento de vanguarda, foi um marco importante na cena cultural brasileira, produzindo verdadeira revolução intelectual e estética (COUTINHO; SOUSA, 1990, p. 1.284-85).
Ainda sobre a estética, Marina Colasanti resume: “Aprendi com Amilcar de
Castro a ousadia estética que havia sido inaugurada por Reynaldo Jardim, e que
nunca mais esqueceria, a guilhotina agindo sobre as fotos com entusiasmo de revolução francesa (COLASANTI, B, 1º/5/2005). O suplemento se tornaria uma
síntese do mito de inovação, empreendedorismo, criatividade, independência, ou-
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sadia, da qual é exemplar a orgulhosa declaração de Reynaldo Jardim:
O trabalho sério que realmente fizemos foi o de ativar a vida cultural do país, colocando no mercado todo um elenco de nomes das artes e da literatura internacionais
que aqui ninguém conhecia; foi promover um balanço crítico das artes e da literatura no Brasil e no mundo; foi abrir nossas páginas a escritores que ainda estavam
engatinhando. Foi, principalmente, a liberdade e a coragem de recusar e publicar
aquilo que realmente achávamos de qualidade. Foi a liberdade de não nos enquadrarmos em nenhum esquema da vida literária e suas conveniências; foi a coragem
de criticar e publicar críticas até contra trabalhos dos próprios colaboradores, inclusive de meus próprios. Esta liberdade escandalizava a imprensa e os intelectuais da
época (JARDIM em MAUAD, 1996, p. 4).
Jardim se refere às críticas de que o suplemento era de difícil assimilação.
Escandalizava, ainda, o genro e braço-direito da condessa, Manoel Francisco do
Nascimento Brito, como lembra Ferreira Gullar:
Com o lançamento do movimento neoconcreto, em 1959, o SDJB passa a ter uma
feição completamente diferente de qualquer outro jornal de qualquer outro lugar
do mundo. Uma página podia sair completamente em branco, com um pequeno poema, por exemplo. Nascimento Brito, com o mesmo argumento de Adolpho
Bloch18, achava aquilo um desperdício de papel. [...] A condessa garantia e prestigiava nosso trabalho. Enquanto pôde segurar sua publicação, segurou (GULLAR,
em MAUAD, 1996, p. 85-86).
O SDJB circulou de 1959 a 1961, justamente durante o quinquênio desenvolvimentista de JK (MOTTA, 2018). Alegando economia, devido a problemas
do país e à importação de papel, em 1961 Brito reduziu o SDJB a tabloide e acabou com ele. O próprio Jardim lembra: “No final reduziram o tamanho, por pressão. [...] Aí, foi o fim. Em pouco tempo o Suplemento acabou” (JARDIM, em
MAUAD, 1996).
18
Empresário, dono da Manchete, revista em que as experimentações estéticas do grupo de jornalistas também haviam sofrido resistência, como veremos a seguir.
94
É neste período que a receita da veiculação de peças publicitárias começa a
superar, pela primeira vez, o valor arrecadado com as vendas de exemplares avulsos e assinaturas (BAHIA, 2009), transformação de alto e duradouro impacto no
mercado jornalístico, no bojo do processo de industrialização do país. Luís Alberto Bahia19, conta em depoimento a Jeferson de Andrade (1991) que viveu, ainda
como redator-chefe do Correio da Manhã de 1959 a 1962, a escalada das pressões
comerciais, com o surgimento das agências de publicidade e anúncios de bancos e
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da indústria automobilística, tomando o lugar dos anúncios de varejo:
A grande independência dos jornais da época repousava nos anúncios classificados.
No perfil do anunciante, da carteira de publicidade. Naquela época, o peso do classificado, do anúncio da cozinheira, do anúncio coletado pelos agentes do próprio
jornal, era muito grande. Na medida em que o país se modernizava, começaram a
surgir as agências de publicidade, os anúncios de bancos, da indústria automobilística. Tudo isso acabou determinando uma mudança da relação do jornal, da sua
opinião, do seu perfil de renda. Qual é a força de uma agência, a sua relação com o
jornal? É a força multiplicada de seus anunciantes. Quando um jornal afeta certo
interesse de um produto, de um serviço, agenciado por determinada agência, quando esta aborda o jornal questionando, não está falando apenas com o poder daquele
anunciante; fala com o poder de toda a massa de seus anunciantes. Ela tem muita
verba, e ela faz a mídia. A pressão da superintendência do jornal sobre o redatorchefe perdeu um pouco a cerimônia (BAHIA em ANDRADE, 1991, p. 105).
2.1.4. Entre A(tualidades) e C(lassificados), o B
Adotando uma lógica de organização industrial, Janio de Freitas e Reynaldo
Jardim convenceram a direção a reservar um caderno exclusivo para a publicação
dos anúncios classificados, que ocupavam até então grande parte da primeira página e das que se seguiam. Conforme explicou Jardim, se “já existia um primeiro
caderno, de atualidades, e um de classificados, faltava alguma coisa no meio: o B,
um espaço para a cultura” (RITO, 1990, p. 8). Estabelecia-se, sim, a segmentação
em cadernos, a partir de setembro de 1960, com a separação física entre “atualidade”, o chamado hard news, o B, dos fait divers; e o C, para classificados, que
viria a ser encampado como modelo em toda a imprensa.
19
Luiz Alberto Bahia entrou para o JB no início da gestão Dines, já como jornalista experiente,
como editorialista. Começou como repórter de rua no princípio dos anos 1940, foi repórter político, redator-chefe do Correio da Manhã a partir de 1959, indo em 1962 para a revista Visão, de
onde saiu para o JB.
95
Nas palavras de Janio de Freitas, então editor do jornal, a ideia era conciliar
uma nova estética à hierarquia temática que merecia o modelo de jornalismo que
estava sendo adotado: “A novidade foi substituir aquele restolho de variedades,
que era praticamente diagramado na oficina, por um caderno com perfil e identidade gráfica mais definida” (GONÇALVES, 2008, p. 23). “Minha intenção era
nomear os cadernos – A para atualidades, E para esporte, depois um H para homem, I para Infantil, mas para o B não tínhamos um nome. A ideia da letra partiu
quando, junto com Reynaldo, folheava o caderno de classificados do Miami Herald e descobri um B visualmente bonito” (Caderno B do JB, 15/9/1990, p. 8)20.
Como sublinha Lima (2006), longe de ser isolada, a decisão de redefinir o conteúdo dos três cadernos diários (principal, B e Classificados) fazia parte de um projeto de reforma gráfica que ficaria marcado na história do Jornal do Brasil e da imprensa brasileira.
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O Caderno B, idealizado por Reynaldo Jardim e por Janio de Freitas, foi
lançado em 15 de setembro de 1960, com a proposta de ampliar a cobertura de
cultura do jornal – que já vinha se intensificando no Suplemento Feminino e pelo
Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB)21, espécie de embriões do Caderno B. Em agosto de 1960, o Suplemento Feminino circulou de terça a sexta22,
numa espécie de laboratório de preparação para o lançamento do Caderno B. Aos
domingos, já era publicada a Revista de Domingo, produzida pela mesma equipe23. A segmentação foi anunciada ao leitor com a seguinte chamada na primeira
página:
O Jornal do Brasil lança hoje o seu Caderno B, com três páginas femininas, páginas de esporte, turfe, cinema, teatro e as seções Vida Literária, Artes Visuais etc,
que costumavam ser publicadas na 6ª página. Os anúncios classificados passaram a
compor um caderno próprio, o Caderno C desta edição. O Caderno A, com o mesmo número de páginas de habitualmente, será todo dedicado a atualidade, oferecendo aos leitores cobertura mais completa dos fatos locais, nacionais e internacionais (JB, 1960, p. 1).
20
Motta (2018) registra outra versão: a de que um funcionário anônimo da oficina é que teria, sem
pompa, nomeado o Caderno B, automaticamente, pela mera separação do caderno A.
21
Sobre o SDJB, cf. BASTOS, 2008.
22
O jornal não circulava às segundas-feiras.
23
Segundo Lima (2006), a primeira versão da revista aparece no Jornal do Brasil no fim dos anos
1950, junto do Suplemento Feminino. Era tabloide, e sem o tratamento gráfico e a qualidade de
papel que apresentou em sua segunda versão, lançada em 11 de abril de 1976, de acordo com publicação comemorativa do jornal.
96
Pela primeira vez, com a inovadora organização das seções diárias distribuídas pelos três cadernos, o jornal separava tanto as críticas literárias e artísticas
quanto os assuntos femininos em um caderno de circulação diária. Como em outros periódicos dessa época, antes essas matérias mereciam páginas dispersas pelo
jornal ou suplementos, vistos como uma espécie de bônus eventual para o leitor,
como eram os suplementos literários e femininos (LIMA, 2006).
Joaquim Ferreira dos Santos situa o Caderno B na reforma, “que procurava
refletir na imprensa a criatividade ao redor: Bossa Nova, concretismo, a industrialização, Brasília, JK” (Caderno B, 1985, p. 5). O jornalista Wilson Figueiredo
definiu o Caderno B como “inovador” mesmo em relação ao resto do jornal:
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Era agradável pelo sentido informativo e cultural que o Jornal do Brasil adotou,
transformando tudo. A entrevista não era formal, era uma entrevista importante que
pegava o sujeito na hora certa, os repórteres aguçavam e tinham bem o sentido
agudo do momento cultural, tudo de maneira criativa e na oportunidade ideal (FIGUEIREDO, Tributo ao JB, 1º/12/2010).
Em uma mesa sobre jornalismo cultural na Jornada Literária de Passo Fundo, Artur Xexéo, editor do Caderno B de 1988 a 1992, comentou sobre a experimentação visual e os textos consagrados do suplemento na fase inicial:
Nessa época era um pouco de tudo: cinema, moldes do Gil Brandão, receitas, coluna social etc. Tinha um noticiário internacional estarrecedor. Digamos que chegasse uma foto qualquer da Romy Schneider pela radiofoto. O redator (eles eram muito bons) escrevia uma bobagem qualquer e a foto era publicada, enorme, com uma
legenda qualquer tipo “Romy Schneider aparecendo por aí”. Claro que havia também a ousadia gráfica. Me lembro de uma página que ficou clássica, quando De
Gaulle visitou o Brasil. A notícia era moldada na forma da torre Eiffel. O texto desenhava a torre (XEXÉO, 28/8/2005).
Não foi por acaso que Xexéo citou a atriz austríaca Romy Schneider, sensação do cinema da época: a foto dela ilustrou a capa do primeiro número do B. A
página gráfica da Torre Eiffel (“O Brasil saúda De Gaulle”, Caderno B, 10/1964),
destacada pela sua ousadia, foi republicada no aniversário de 25 anos do suplemento, em 1985. É interessante observar que a lembrança de Xexéo não foi “espontânea”. O próprio jornalista afirma ter pesquisado no acervo do jornal para se
preparar para o debate. Trata-se aqui de um conhecimento sobre o passado que
havia sido recentemente adquirido, por meio de arquivos. A memória, nesse caso,
97
é uma mistura das lembranças das experiências vividas diretamente com lembranças herdadas.
Análise documental de edições comemorativas oferecem farto material autorreferente, que se transpõe tanto para a produção historiográfica como para outras produções jornalístico-pedagógicas, como na fala de Zuenir Ventura: “O B
sempre foi e é o espaço que faz a cabeça do Rio, e a prova de que é parte integrante da cultura brasileira é a sua reprodução em inúmeros filhotes. Em cada lugar a
que você vá no Brasil tem um segundo caderno tentando ser e fazer o que o B faz
no Rio” (VENTURA, B, 15/9/1990: 1).
O jornalista Luiz Orlando Carneiro compara: “A Down Beat era a bíblia do
jazz, e o Caderno B era a bíblia do pessoal da área cultural do Rio” (RIBEIRO,
2015, p. 65). Outro que usa a expressão é Silvio Essinger que, “quando garoto de
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subúrbio, ávido mais do que tudo por fazer parte da vida cultural da cidade, o JB
era o farol, a bíblia, o passaporte, onde todo dia via a história da música brasileira
ser escrita” (em HERKENHOFF, 2010, p. 134).
Lembrando que “bom texto sempre foi um dos orgulhos do B”, Joaquim
Ferreira dos Santos cita o nome de alguns cronistas consagrados que lá trabalharam, como Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Fernando Sabino, Carlinhos de Oliveira, Clarice Lispector, Carlos Eduardo Novaes, Flávio Rangel e
Affonso Romano de Sant’Anna. Valoriza, ainda, a postura aguerrida assumida
pelo B nos anos 1970, quando o suplemento teria partido “para uma linha de crítica e denúncia dos absurdos da censura, do abandono do patrimônio cultural e de
entrevistas que fizeram uma ligação quente entre os artistas e a política”. O B foi
“firmando o estilo, marca inconfundível que hoje se espalha por toda a imprensa
brasileira e faz do segundo caderno algo imprescindível ao leitor” (SANTOS,
1985, p. 5).
Se essa letra era capaz de tamanha mítica, ter o próprio nome associado a
este B significava prestígio. Como disse Sandra Moreyra24, repórter da geral escalada em julho de 1978 para cobrir o incêndio que destruiu quase todo o acervo do
24
Antes de fazer carreira na TV Globo, Sandra Moreyra (1954-2015), recém-formada, foi contratada no Departamento de Pesquisa e depois na reportagem geral do Jornal do Brasil.
98
MAM (Museu de Arte Moderna), no Rio de Janeiro: “No dia seguinte, saí de casa
para comprar o jornal e olhar aquela capa do Caderno B – ter o nome na capa do
Caderno B era uma coisa do outro mundo” (MOREYRA, 2000).
As falas citadas destacam a singularidade do B, seu caráter inovador, sua
posição de vanguarda, seu papel na construção de um modelo ideal de suplemento
cultural, seu papel como referência e representação de um certo estilo de vida.
Subentendido está o orgulho de ter feito parte da equipe de profissionais que ajudou a dar vida a essa “entidade”, a esse “ser vivo”. Sentidos semelhantes estão
presentes nas lembranças de Arthur Dapieve25. Ora como jornalista, ora como
pesquisador, ele afirma que, graças ao Caderno B, os chamados segundos cadernos eram, na imprensa brasileira, “o habitat por excelência da experimentação e
da renovação, tanto no texto como na apresentação gráfica. De tal forma que recursos inventados nas editorias de cultura são tomados emprestados pelas outras
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editorias, arejando jornais ou revistas” (DAPIEVE, 2002, p. 94). A relação entre
sua experiência no JB e sua identidade profissional é muito clara em seu depoimento. Para ele, o Brasil é um país onde a cultura é fator mais-que-importante de
identidade e orgulho nacional e isso ajuda a explicar “o fascínio e o prestígio” de
que, segundo Dapieve, desfrutam os cadernos culturais perante não só os profissionais como os leitores brasileiros.
Em 1985, quando o Caderno B comemorava seus 25 anos, o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos escreveu um texto emblemático de uma página e meia
sobre o suplemento. Foram colhidos os depoimentos de vários profissionais, como
Ferreira Gullar (“o primeiro crítico de artes plásticas do caderno”), Marina Colasanti (“uma das primeiras repórteres contratadas pelo B, em 1962”) e Claudio
Mello e Souza26 (“pela qualidade dos textos, mais trabalhados e sofisticados”).
Como o SDJB, o Caderno B teve liberdade de criação em estilo próprio,
sem a padronização instituída pelos princípios jornalísticos da objetividade a que
25
Arthur Dapieve foi repórter, redator e subeditor do Caderno Ideias e do Caderno B de 1986 a
1991. No Globo, foi editor e colunista do Segundo Caderno. É professor de Jornalismo Cultural na
PUC-Rio.
26
Claudio Mello e Souza (1935-2011) iniciou carreira no Diário Carioca em 1959, e ingressou no
JB em 1960. Repórter e editor do Caderno B nos anos 1960, foi eternizado pelo amigo Nelson
Rodrigues em crônicas como o Havaiano de Ipanema e o Remador de Ben-Hur. Dirigiu sucursais
europeias do grupo Bloch. Na TV, foi apresentador, editor de projetos especiais e assessor de Roberto Marinho.
99
os jornalistas seguiam, por exemplo, nas notícias escritas para o primeiro caderno,
o de atualidades. Isto o diferenciava não apenas dos outros veículos, como também dos textos do próprio JB então, sob a padronização imposta pelas normas de
redação que impunham objetividade e concisão no primeiro caderno:
Quando eu entrei a primeira vez, em 1975, ainda vigorava aquela reforma. Era tudo
fechadíssimo. Mas o Caderno B tinha talentos específicos, cada um escrevia de um
jeito. Só era liberado no Caderno B. Dez anos depois, quando eu voltei para o JB,
já não era mais assim, era de qualquer jeito, em qualquer editoria. Essa liberdade
que o Caderno B tinha se espalhou pelo jornal inteiro, acho que pela imprensa inteira. Ficou muito mais flexível (XEXÉO, 2007).
Zuenir Ventura recorda sua passagem pelo B (1985-1989) “como uma das
mais estimulantes de sua carreira” (B, 15/9/1990, p. 1). Seu depoimento foi publicado em 1990, na edição comemorativa dos 30 anos do Caderno B, sob a gestão
de Artur Xexéo. “Enfim, um caderno balzaquiano” reforça, mais uma vez, a míti-
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ca do caderno indispensável, num discurso autorreferente que incorpora falas até
então enunciadas por outros. Impressões e memórias alheias passam definitivamente a fatos enunciados pelo jornal:
O saque de Reynaldo Jardim consolidou a grande reforma, abrindo para o Caderno
B a possibilidade de pinçar, registrar e antecipar os movimentos culturais que floresciam. Era a época da Bossa Nova, do Cinema Novo, do teatro político, do tropicalismo, dos movimentos das artes plásticas, do humor, da literatura, da descoberta
da moda carioca, e até mesmo das turbulências políticas. Tudo que aconteceu de
importante no cenário cultural do país sempre encontrou um espaço generoso nas
páginas do B (B, 15/9/1990, p. 8).
Apontado como o editor que aprumou o Caderno B, Paulo Afonso Grisolli27, um homem de teatro, assumiu o caderno em 1964, chamou para formar a nova equipe atores, músicos, autores de peças ou roteiros, produtores de espetáculos
e jornalistas de texto excepcional. Antes voltado à divulgação do lazer e entretenimento carioca, o B passa a investir em features28 sobre grandes acontecimentos,
especialmente na área de cultura e comportamento, com informações complementares e contextualizadas, produzidos a cada manhã – horário estabelecido inicialmente pela falta de lugares à tarde, e à noite, ocupados pelas equipes do primeiro
27
Autor e diretor teatral paulista, Paulo Afonso Grisolli (1934-2004) editou o Caderno B de 1964
a 1972.
28
Feature é qualquer matéria sobre assuntos variados, mas geralmente de entretenimento, cujo
valor jornalístico não está necessariamente ligado ao dia de sua ocorrência. Por isso, não perde o
interesse mesmo vários dias depois de ter acontecido, e pode ser publicado de acordo com o espaço disponível e a programação do órgão jornalístico (RABAÇA & BARBOSA, 1978).
100
caderno, e sacramentado com as rodadas escalonadas de cadernos na gráfica. Grisolli descreveu o caderno que assumiu como um caderno de grandes claros, ilustrado por fotografias muito abertas e ampliadas e de relativamente pouca leitura:
Era tudo muito pequeno e imediato. E, nesse sentido, tinha um certo caráter provinciano, embora dele participassem pessoas muito interessantes. A estrutura operacional era mínima. A Marina Colasanti era assistente do editor e escrevia tudo o que
precisasse ser escrito. Também o Masson escrevia muita coisa. E o Dines pretendia
fazer do JB um jornal realmente novo, dinâmico, universal (GRISOLLI, em LIMA,
2006).
É este o espírito que sobressai na edição comemorativa de 30 anos do Caderno B, em 1990, em que a repórter Lucia Rito – com a colaboração de Pedro
Tinoco, José Rezende Jr. e Raimundo França – foi incumbida de ouvir os pioneiros Reynaldo Jardim, Janio de Freitas, Nonato Masson, Marina Colasanti, Ziraldo,
Carlos Leonam, Zózimo Barrozo do Amaral, entre outros, e condensar três déca-
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das de história em duas páginas, sob estas orgulhosas e desinibidas manchetes: “A
mais completa tradução do Rio chega aos 30 anos. Ao comemorar seu aniversário,
o Caderno B conta histórias que deram o que falar e que se confundem com a cultura e os usos e costumes do Rio de Janeiro”. “Foram três décadas antecipando e
registrando os fatos e personagens que se destacaram, revolucionaram e deixaram
suas marcas na cultura do país”. Sem qualquer modéstia, recorre a um bordão
vaidoso – “Se não saiu no Caderno B, não aconteceu” –, ao afirmar que o B “funcionou como antena da cultura e do comportamento especialmente do Rio de Janeiro, que deixara de ser capital federal, mas manteve o status de capital cultural”.
Atribui isso à própria turbulência dos anos 1960, ela própria mitificada: “Tudo
aconteceu naquela década na cultura e na vida política brasileira, e cabia ao B captar e antecipar o que realmente importava” (B, 15/9/1990, p. 8).
A abertura do espaço dos segundos cadernos na imprensa carioca se justifica
especialmente pelo momento de efervescência cultural da cidade, incentivada pelos projetos do recém-eleito governador da Guanabara, Carlos Lacerda – que
inauguraria diversos equipamentos culturais, com destaque para o Museu de Imagem e Som, aberto em 1965, durante as comemorações do quarto centenário do
Rio de Janeiro. Depois da fundação de Brasília, a representação do Rio de Janeiro
progressivamente incorporou novos significados, que articulavam o papel de vitrine do país para o exterior ao lugar de caixa de ressonância cultural e política no
101
plano interno, e ainda é referida como aquela que experimenta comportamentos,
processos e problemas e sinaliza alternativas e soluções. Em sua coluna de volta
ao Caderno B, em 2005, Marina Colasanti reproduziu a imagem:
[Era] como se o novo só se concretizasse depois de emitido pelo Caderno B. Éramos todos repórteres investigativos do novo, daquilo que, como ainda não se dizia
mas existia igualzinho, acabava de pintar nas bocas. Ou melhor, que se preparava
para pintar nas bocas e que só se pintaria, de fato, depois de sacramentado pelo B.
Passar o fim de semana sem ter lido antes o Caderno B era um risco que os descolados não se permitiam (B, 1/5/2005, p. 3, grifo meu).
A ideia de um B carioca está presente em muitos dos depoimentos. Ziraldo
Alves Pinto, colaborador na fase inicial do Caderno B e editor em 2005, definiria
o “B” como a “letra mágica do jornalismo cultural brasileiro”, reiterando a mítica
do espírito carioca do suplemento e apelando à passional analogia com o futebol:
“Aquele B maiúsculo é um ícone carioca, gravado na alma do Rio como a camisa
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vermelha e preta do Flamengo, a cruz de malta do Vasco, a cartola do Fluminense
ou a estrela solitária do Botafogo” (Caderno B, 1/5/2005, p. 1). Editor do caderno
em 2005, exacerba a fala em edição comemorativa:
O Caderno B do Jornal do Brasil é a parte mais emblemática deste jornal, que é
uma entidade carioca, algo a que as pessoas se referem como se fosse um ser vivo.
Reflete um modo próprio de ver a vida, uma atitude especial diante dos fatos, a
percepção de um mundo novo que surgia quando o caderno foi criado há exatos 45
anos. Letras são sinais, signos, símbolos, e, no nosso caso, um marco na história de
nossa imprensa, uma invenção que a alterou formal e conteudisticamente. Hoje, todos os segundos cadernos de todos os jornais do Brasil são herdeiros de suas propostas (PINTO, B, 1º/5/2005, p. 1).
Nesses depoimentos fica claro o quanto o B contribui na construção de mitos como o do “carioca”, com os quais se identificava e através dos quais reforçava sua própria mítica. A esse ser carioca são associados um conjunto de representações centradas em formas específicas de comportamento e visões de mundo, que
serviam também para ancorar a própria identidade dos profissionais. Joaquim Ferreira dos Santos assinala que o B logo se destacou por “refletir certo jeito de viver
carioca”. Com matérias que cultuavam o bom humor e a descontração da Zona
Sul da cidade, teria antecipado o Pasquim em reportagens e crônicas divulgando
“comportamentos que fariam a cabeça da juventude da década”.
A repórter Lucia Rito destaca ainda que “o texto ágil, leve subverteu a linguagem circunspecta, as descrições longas características da imprensa da época,
102
imprimindo leveza às páginas do jornal” (B, 15/9/1990, p. 8). O JB se consolidava
como um jornal de alcance nacional, enquanto o Caderno B era um espaço de
afirmação de uma identidade local. Marina Colasanti foi por longo período responsável pelas pautas do caderno, lançando mão de revistas americanas, francesas
e italianas para ampliar os horizontes: “O caderno se adiantava culturalmente, não
era só reflexo do que acontecia aqui; era um fomentador de atitudes” (COLASANTI, em RIBEIRO, 2016, p. 108). Carlos Leonam, que assinou as colunas De
homem para homem, entre 1963 e 1964, e Carioca quase sempre, com Ylen Kerr,
de 1967 a 1968, afirma que o B “inventou a cobertura de usos e costumes na imprensa”, e que o espírito carioca estava presente desde o início do caderno: “O B
sempre teve um espírito carioca – logo no início tinha uma seção que chamava
Onde o Rio é mais carioca – e o que eu fiz foi incorporar este espírito às minhas
colunas” (B, 15/9/1990, p. 10). A Página de Verão, assinada por Marina Colasanti
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e Lea Maria Aarão Reis de dezembro a março, revelava personagens cariocas,
como as garotas de Ipanema Duda Cavalcanti, Guide Vasconcellos, Marieta Severo, Nininha Magalhães Lins e Marcia Rodrigues. Marina Colasanti registrou sua
satisfação em fazer a Página de Verão:
[...] viver a cidade que nem sabujo, farejando pelos cantos, antenas sempre ligadas,
olhos nos detalhes, nos esboços, nos nascedouros. E a cidade toda, não apenas a
Zona Sul, embora a Zona Sul, et pour cause, fosse a nossa praia. Uma crônica, uma
coluna, uma reportagem, assim era a Página. Durante alguns anos, a impressão que
tivemos era de que o verão não aconteceria em sua plenitude sem ela (COLASANTI, 2005).
Também internamente as mulheres ganham espaço. Para Ziraldo, o suplemento foi vanguardista até na questão de gênero. Fala das meninas do B, time que
afirma ter contribuído para a inovação do caderno:
Acredito que foi no Caderno B, historicamente, que a mulher se consolidou como
categoria profissional na imprensa brasileira. Uma participação que é hoje, possivelmente, de metade dos profissionais em toda a imprensa (com uma enorme presença em cargos de comando), mas na época não chegava a cinco por cento. Nos
anos 70, o JB virou o império das mulheres. O jornal das amazonas (PINTO, B,
15/9/1990).
O jornalista Wilson Figueiredo esclarece que a presença feminina não
aumentou por bom-mocismo da empresa, mas por simples decorrência da obrigatoriedade do registro profissional estabelecida em lei e por comodidade econômica. “Entre os homens não havia muitos candidatos, e as mulheres aceitavam ga-
103
nhar menos. Ocupavam, no início, um lugar que os homens não queriam. Mas,
a partir daí, as mulheres fizeram o Jornal do Brasil” (FIGUEIREDO em RIBEIRO, 2015, p. 131).
Quanto ao “carioquismo”, tinha contornos bem definidos em torno da Zona
Sul. “O Alberto Dines, às vezes, reclamava, dizia que eu escrevia para Ipanema29,
uma minoria”, contou Carlos Leonam, que justifica: “Mas as mudanças de costumes dos anos 60 foram registradas pelo caderno” (B, 15/9/1990, p. 9) – como se
não tivesse havido mudanças nos costumes fora do perímetro da Zona Sul. A jornalista Lena Frias30, uma das meninas do B, foi responsável por ampliar estas
fronteiras no caderno, em reportagens como “Black Rio: o orgulho (importado) de
ser negro no Brasil”, publicada em 17 de julho de 1976, sobre os bailes que movimentavam os subúrbios e a Baixada Fluminense, introduzindo novas gírias, gestuais, formas de vestir. A reportagem ocupou a capa e mais três páginas, com enPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
trevistas, descrições dos encontros, das equipes de som dos bailes soul – Ademir,
o Big Boy ou Monsieur Lima; e Joy Top, de Gordon do Soul.
De forma geral – e não apenas no campo restrito às pautas dos cadernos de
cultura –, os jornais de grande circulação e voltados para um público majoritariamente pertencente às classes A e B tinham uma linha editorial de viés conservador, não abordando temas ligados à violência na periferia, por exemplo. O Jornal
do Brasil não fugia à regra, como lembra o jornalista Israel Tabak.
Recebia questionamentos absurdos, do tipo: “Mas o nosso leitor não está interessado em saber se alguém está sendo exterminado na periferia”. Os repórteres que insistiam em investigar esses temas, como Tim Lopes, tinham muitos problemas.
Houve quase uma conspiração de alguns jornalistas para que fosse veiculada uma
matéria sobre o extermínio de menores, já na década de 80, um fenômeno corriqueiro na Baixada, às vezes estimulada por grupos de comerciantes. Alguns editores diziam que isso era um problema da Baixada, que o leitor de um jornal classe A
e B não tinha nada a ver com isso. A estratégia foi avisar a Anistia Internacional,
para que ela denunciasse isso na Europa. Assim, os jornais daqui seriam obrigados
a mencionar também (TABAK, 2008).
29
Atribui-se a Leonam a “invenção” do ritual de bater palmas para o pôr-do-sol na Praia de Ipanema.
30
Lena Frias pediu para ser demitida em 2001, ao ser desconvidada a permanecer no Caderno B.
Escreveu carta aberta em repúdio, reproduzida por RIBEIRO (2016, p. 140). Morreu em 2014, aos
60 anos.
104
Essa visão não se limitava a preconceitos individuais de editores: fazia parte
da lógica empresarial, e influenciada por anunciantes. A distribuição do jornal
privilegiava bancas da Zona Sul, preterindo bairros periféricos. Mesmo a entrega
por assinatura tinha seus percalços. O jornalista e professor João Batista de Abreu
conta que, nos anos 80, professores de Física da UFF decidiram assinar um jornal,
e o JB foi o escolhido por larga margem de votos. Mas, ao telefonar para fazer a
assinatura e dar o endereço do campus (Morro do Valonguinho, Centro de Niterói), ouviram: “Desculpe, não entregamos o jornal em morro”. Herkenhoff lembra
que 1983 o JB vendia 200 exemplares em Cachoeiro do Itapemirim, sua cidade
Natal, entre assinantes e a banca do Santana. E que em Nova Iguaçu, com centenas de milhares de habitantes, a venda de bancas e assinatura não atingia nem 20
exemplares do jornal ainda num certo auge. O jornal, que já havia sido conhecido
como o “popularíssimo” nas primeiras décadas do século XX, renegaria suas ba-
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ses suburbanas e se bandearia para além túnel, à beira-mar, mirando no status e
prestígio entre a elite dos formadores de opinião.
E a mudança de patamar que alçou o jornal de classificados ao olimpo de
veículo de referência é motivo de discórdia histórica, numa disputa de narrativas
em torno do seu protagonismo.
2.1.5. Disputas pela paternidade da reforma
Assim como os jornais organizaram-se materialmente em cadernos que
agrupam notícias sobre determinados aspectos da sociedade, como as de política,
cidade, economia, cultura, também, internamente, as redações se dividiram em
grupos, editorias, equipes independentes para tratar de determinados assuntos e
em permanente disputa por espaço. Como não poderia deixar de ser, tal disputa
transborda da produção das páginas para a produção de sentidos sobre ser jornalista. A reforma é sempre um campo de disputas que mobiliza a memória e as vaidades dos jornalistas (RIBEIRO, 2000, p. 132). A autoria da reforma do Jornal do
Brasil é bastante controvertida. É um campo de grandes disputas, que mobilizam
até hoje a memória e as vaidades de muitos jornalistas. Há muitos relatos contraditórios.
105
Alguns apontam Odylo Costa, filho (editor-chefe de 1956 a 1958) como o
principal autor, enquanto para outros somente depois da demissão deste e da entrada de Janio de Freitas (de 1958 a 1962) é que teriam ocorrido as mudanças de
caráter mais qualitativo. Nascimento Brito afirmou, por sua vez, que nem Odylo
nem Janio contribuíram muito para as mudanças do jornal. A reforma, segundo
ele, só teria ganhado forma sob a direção de Alberto Dines (RIBEIRO, 2007,
p.158), que conhecera Dines em uma viagem nos Estados Unidos e convidou para
dirigir o jornal (DINES, 2008, p. 23). No poder central do JB também havia uma
discreta rivalidade, entre os comandados da condessa e os de Nascimento Brito.
Especialmente na primeira fase, o processo de mudanças não foi propriamente
unânime e sereno; havia uma polarização na redação (BASTOS, 2008), com
Odylo Costa, filho, mais conservador, alinhado a Nascimento Brito; e os novos
colaboradores egressos do Diário Carioca: Gullar, Janio de Freitas, Amilcar de
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Castro e Reynaldo Jardim, que já estava no jornal.
Um relato interessante a esse respeito é o de Ferreira Gullar. Sua identidade
é de poeta; por isso, refutava o rótulo de jornalista, embora tivesse colaborado
com jornais desde garoto em São Luís, no Maranhão. O jornal era um ganha-pão,
atividade que sustentava sua poesia. Trabalhou efetivamente como jornalista na
Manchete, no Rio, a partir de 1955. E, se em seus depoimentos, ele renega essa
identidade profissional, ao mesmo tempo em que guarda profundo orgulho da
reforma da qual tomou parte no JB: “O jornal, um pouco depois de reformado,
ganhou um peso muito importante e influenciou a imprensa brasileira inteira”.
Em sua versão dos fatos, Gullar vangloria-se de ter indicado a equipe da reforma (Janio de Freitas, Amilcar de Castro, José Ramos Tinhorão e outros colegas
da Manchete) e do seu protagonismo no processo de renovação do jornal: “Convenci Odylo a reunir justamente as pessoas que tinham iniciado o trabalho de renovação na Manchete. Janio de Freitas, Amilcar de Castro e eu começamos a forçar a reforma dentro do Jornal do Brasil” (GULLAR, 2007, grifos meus). E, ao se
contrapor a Odylo Costa, filho, desdenha: “Odylo não entendia do assunto. Não
era que ele não quisesse; aquilo não era do conhecimento dele. Ele era um jornalista com uma formação anterior, do velho jornal que se fazia no Brasil”. Expõe
106
com clareza a cisão que havia entre o grupo de vanguarda (os jovens reformulares) e os velhos jornalistas (que representavam o modelo que se queria superar).
Sobre a reforma do Jornal do Brasil, Gullar afirma, em depoimento ao Centro de Cultura e Memória do Jornalismo: “Antes o Jornal do Brasil não tinha redação, nem reportagem, só anúncios e classificados. Meia dúzia de velhos jornalistas, amigos dela [da condessa], recortava o noticiário da Agência Nacional, colava e o jornal saía” (GULLAR, 2009). E declara seu orgulho de ter feito parte da
experiência. Por exemplo, sobre a primeira foto grande publicada na primeira pá-
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gina, aproveitando o espaço aberto com os anúncios classificados em L:
Um belo dia, na ausência do Odylo, fiquei como chefe do copydesk no lugar dele e
autorizei colocar uma fotografia na primeira página do jornal. Era uma fotografia
grande. Colocar uma fotografia daquela na primeira página nenhum jornal colocava. No dia seguinte, Odylo me chamou para reclamar que eu tinha ido além da orientação do jornal. Mas enquanto ele estava se queixando de eu ter feito aquilo na
ausência dele, tocou o telefone. Era a condessa o cumprimentando pela fotografia
na primeira página [risos]. Aí, ele ficou meio assim e falou: “A dona quer, a dona
gostou, tudo bem” (GULLAR, 2007, grifo meu).
Reynaldo Jardim ora atribui à condessa Pereira Carneiro o papel de autorizar as mudanças – “Foi o SDJB [Suplemento Dominical do Jornal do Brasil] que
gerou a reforma do JB. Foi o que levou a condessa a aceitar a reformulação do
jornal” (JARDIM em MAUAD, 1996, p. 83), assim como Gullar, afirmando que
“forçaram” a reforma –; ora a eleva a protagonista: “Com o sucesso do SDJB, a
condessa Pereira Carneiro resolveu dar uma cara e um conteúdo novo ao jornal”
(JARDIM, 2009). O sucesso do Jornal do Brasil levou a condessa a ser apontada
pelo jornal inglês The Guardian como “uma das mulheres mais influentes da
América do Sul”, e pela revista francesa Marie Claire como “uma das 50 mulheres mais importantes do mundo” (RIBEIRO, 2015, p. 34).
Ao deixar o JB, Janio de Freitas assumiu o Correio da Manhã como diretor,
em maio de 1963. Ele reproduz a conversa com Paulo Bittencourt para indicar os
efeitos da primeira etapa da reforma no mercado jornalístico:
Ele disse: “Olha, eu quero ter uma conversa absolutamente franca com você. A minha vida toda foi em torno desse nome: Correio da Manhã. Eu cresci como o filho
do Correio da Manhã. Passei a viver como sendo o Correio da Manhã. Toda a vida fui a jantares, a todos os lugares, sempre ouvindo: o Correio da Manhã disse isso, o Correio da Manhã acha aquilo, o Correio da Manhã publicou tal coisa.
107
Passei estes anos fora do país e, quando chego, vou aos lugares e ouço os comentários, mas o nome não é mais Correio da Manhã, é Jornal do Brasil. O Jornal do
Brasil disse isso, publicou aquilo. Eu não suporto isso, eu não tenho condições de
suportar isso. É uma coisa muito violenta para mim (FREITAS, em ANDRADE,
1991, p. 111).
O mote do registro de Janio de Freitas é a sua vaidade em ser reconhecido
pelo dono do Correio como o responsável pelo feito, como ele explicita em seguida, ainda na voz de Bittencourt:
Quando eu me dei conta do fato, quis logo saber quem estava tinha feito esse negócio com o Jornal do Brasil. Me informei. Sei que você é que planejou tudo isso.
Então vou lhe dizer: preciso que você vá para o Correio da Manhã. Eu não estou
fazendo um convite a você. Estou lhe dizendo que preciso que você vá para o Correio da Manhã. É vital para mim (FREITAS, em ANDRADE, 1991, p. 111).
Se na fase inicial era a condessa quem dava as cartas, aos poucos ele foi ganhando espaço, tornando-se a própria imagem do jornal, como escreveu o jorna-
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lista Marcos Sá Corrêa31 no Jornal do Brasil quando morreu o Nascimento Brito,
em 2003:
O que veio primeiro: M.F. do Nascimento Brito ou JB? [...] Como os suplementos
que se encartam em edições regulares, em mais de meio século de história do jornalismo brasileiro, elas não circulam separadamente. [...] Em muitas coisas as quatro letras se confundiam. O jornal e seu chefe eram bons de briga, tinham humor,
funcionavam melhor nas crises antigovernismo e eram tão bem paginados que, ao
sair às ruas do Rio 40 anos atrás, causavam espanto pelo tamanho de sua elegância.
Diante do JB, os outros jornais se sentiam feios e antiquados. [...] Nesses 52 anos,
M.F. e o JB cresceram e adoeceram juntos, sem nunca se entregarem inteiramente
às administrações profissionais convocadas para resolver seus problemas financeiros. Até nisso eles continuavam parecidos. Transformaram a velha valentia em briga diária pela sobrevivência (CORRÊA, 2003).
Janio de Freitas sempre fez duras críticas à história contada sobre o JB na
imprensa, em livros e também em pesquisas acadêmicas. Aponta, por exemplo,
que frequentemente tomam jornais como fontes documentais sem levar em conta
seu processo de produção e conjunturas políticas – uma questão já bastante discutida no campo da história (LE GOFF, 1984; FINLEY, 1898, FARGE, 2009):
Essa história tão higiênica que anda por aí pelas teses de mestrado, de doutorado,
isso não é história, não é nada. É história para obter diploma, currículo. Você não
31
Marcos Sá Corrêa foi estagiário de fotografia no Jornal do Brasil de 1967 a 1968, quando prestou concurso para a Abril e entrou na primeira equipe da revista Veja. Voltou ao JB como repórter
especial em 1974, com o então editor de Política Elio Gaspari. Em 1979 voltou à Veja. Em 1985
foi convidado a ser editor-chefe do Jornal do Brasil, cargo que ocupou até 1991. Cf.
CPDOC/FGV.
108
encontra referências a mortes aqui no Rio de Janeiro, no dia 1º de abril de 1964.
Em livro nenhum. Porque todos os jornais estavam com o golpe e nenhum as publicou (ANDRADE, 1991, p. 111).
A cada pesquisador a quem concedeu entrevistas32, gentilmente elogia o zelo do interlocutor com a precisão, que toma por exceção: “Não sou de ler essas
coisas que se escrevem sobre jornalismo, porque me incomodam os erros. As falhas” (FREITAS em COSTA, 2011, p. 310). Declarou, por exemplo, ao pesquisador Daniel Trench Bastos: “A história da chamada reforma do Jornal do Brasil foi
invadida por tantas fraudes, invencionices, apropriações e atribuições indébitas
[...] que há algum tempo decidi sustar todo depoimento a respeito”33 (BASTOS,
2008, p. 20). Talvez resida nestas críticas certo inconformismo com “versões oficiais”, nas quais é apontado como coadjuvante.
O artista plástico Amilcar de Castro, responsável pela primeira página, é
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muito citado como o responsável por vencer a resistência da direção para retirar
os fios que separavam os textos – “Jornal é preto no branco” e “Fio não se lê”
eram suas máximas. Carlos Lemos, por sua vez, reivindica ter sido ele, e não
Amilcar, o primeiro a tirar fios, nas páginas de esporte. Janio rebate: “Quando
falam da reforma do JB, só falam da retirada dos fios. Isso é bobagem. A grande
marca da reforma foi a organização temática, e as chamadas de primeira página,
duas inovações copiadas por todos” (FREITAS, 2008). Textos-síntese na capa do
jornal tornaram-se tendência no Brasil, diferentemente de jornais estrangeiros, em
que o padrão é iniciar o texto na primeira página, continuando dentro do jornal.
A mudança se refletiria na organização interna da redação, com setores independentes, divisão que viria a ser sistematizada por Alberto Dines, que assumiu
a direção em 1962, e ficou até 1973. “Antigamente não se falava em editorias nos
jornais. Tinha polícia, internacional, esporte, mas as pessoas ficavam todas no
mesmo bolo. Achei que se tinha que começar a descentralizar e a criar pequenos
núcleos operacionais, e criamos as editorias mesmo” (DINES, em ABREU,
32
Andrade (1991); Bastos (2008); Varela (2009); Siqueira, Briso (2008), Ribeiro (2000); Costa
(2011); Casa do Saber (2013), entre outras.
33
Depois desta, concedeu outras entrevistas sobre o JB, como aos projetos Memória do Jornalismo
Brasileiro e JB Memória, e falou a respeito em palestra na Casa do Saber em 26/4/2013, registrada
pela autora em áudio.
109
LATTMAN-WELTMAN e ROCHA, 2008, p. 89). Dines reitera seu feito em outros depoimentos:
Eu tinha entrado em 8 de janeiro de 1962. Não tinha cargo definido. O nome no
expediente só começou a aparecer depois de 1964. Disseram que precisava fazer
um expediente, concordei e sugeri que eu fosse editor-chefe, porque tinha organizado a redação em editorias, o que não era usual. Em inglês, eu seria o managing
editor. E se tenho algum mérito no JB, foi o da organização da redação do jornal.
Acho que herdei de meu pai certo pendor para a organização (DINES a MOURA &
SILVA, 10/4/2012).
São muitos os que citam Dines como uma grande referência na história do
JB. “O JB realmente marcante na minha geração é o JB do Dines. A reforma começou antes, mas ele fez uma parte grande dela e o consolidou como um jornal à
frente do seu tempo, que os outros copiavam”, disse Miriam Leitão ao blog Tributo ao JB (SALLES et al., 2010). Carlos Lemos concorda, e se inclui entre os van-
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guardistas:
O período áureo foi comandado pelo Dines, que era editor-chefe, seguido por mim
e mais três abaixo, Luiz Orlando Carneiro – que era o homem do futuro –, Sérgio
Noronha, chefe do copidesque, e José Silveira, editor e diagramador. Esse quinteto
foi uma das coisas mais sensacionais que se conseguiu juntar na imprensa brasileira
(SALLES et al., 2010).
E Nilo Dante:
Janio de Freitas fez boas tentativas renovadoras em sua curta passagem pela direção [...]. Mas foi o Alberto Dines, entre 1962 e 1973, quem consolidou e aprimorou
a alta qualidade do jornal, de avassaladora influência sobre os jornais brasileiros.
Todos passaram a ser editados à imagem e semelhança do Jornal do Brasil. Copiaram inclusive nos defeitos, como as chamadas-resumo de primeira página, excêntrica duplicidade de informação que só existe na imprensa brasileira. O zênite do
Jornal do Brasil se deu, portanto, na Era Dines (DANTE, em HERKENHOFF,
2010, p. 23).
Mas o próprio Jornal do Brasil, em caderno comemorativo dos 70 anos, em
1961, apontou Janio de Freitas como o seu modernizador, e indicou a data de início e a página em que teria iniciado a reforma:
Em abril de 1956, a quinta página do Jornal do Brasil aparece remoçada, não só no
estilo de redação da matéria como na sua apresentação gráfica. É o começo da reforma que a condessa Pereira Carneiro decidira fazer nesta folha com o objetivo de
colocá-la na vanguarda do moderno jornalismo. Odylo Costa, filho, Manuel Francisco do Nascimento Brito e o ministro Aníbal Freire, que e retornava ao jornal,
são os seus colaboradores de primeira hora. Forma-se no Jornal do Brasil uma
equipe de gente moça e valorosa. Grande parte dos pequenos anúncios da primeira
110
página, as chamadas de artigos e notícias, estampadas como se fossem chapas de
panfletos na primeira página, cederam lugar à grande fotografia. Um ano depois o
Jornal do Brasil está radicalmente transformado, apresenta-se com uma feição gráfica e fotográfica revolucionária na imprensa carioca, respeitando porém a tradição
de jornal conservador, conhecido pela firmeza de sua formação e equilíbrio de sua
opinião. Odylo Costa, filho, em 1958, deixa a redação do jornal, e o sr. Manoel
Francisco do Nascimento Brito assume o comando total da redação. [...] O secretário de Redação do jornal, Janio de Freitas, vai imprimindo a cada dia uma alteração
gráfica no jornal, modernizando-o cada vez mais (JB, caderno especial, 9/4/1961).
As condições trabalhistas foram também um aspecto importante na consolidação do JB como jornal respeitado e aspirado por jornalistas. Janio advoga para
si uma importante medida de profissionalização do jornalismo:
Essa renovação começa em grande parte a partir da profissionalização do Jornal do
Brasil, porque eu passei, por exemplo, a não aceitar repórteres e redatores que tivessem emprego público. [...] Nunca demiti ninguém por isso, mas também não
admiti ninguém que tivesse, não aceitei (FREITAS, 2008, p. 5).
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Foi sob a direção de Dines que o JB criou planos de carreira para os jornalistas, algo então inédito na imprensa brasileira. Começavam fazendo cinco horas
por dia de trabalho, até chegar a repórter full time, com 10 horas diárias (ABREU,
2003, p. 92-93). “Estabeleceram-se parâmetros, para impedir que a relação fosse
nepotista: ‘Eu te dou um aumento’. Não. Não podia dar um aumento. A não ser
que o sujeito subisse de categoria, e para isso ele tinha que ser avaliado pelos vários chefes (ABREU, 2003, p. 93).
Importa menos atribuir a um ou outro editor a autoria de ideias originais, e
mais a evocação desses momentos singulares do Jornal do Brasil. As reformas
editoriais, gráficas, de profissionalização reorganizaram o mercado jornalístico, e
ampliaram a mítica de que, no Jornal do Brasil, o jornalismo – e seus jornalistas –
estavam um passo adiante, dos demais veículos de comunicação impressa, o que
tem efeitos na constituição identitária destes sujeitos, assim como outras ações.
2.1.6. JB, a escola de jornalismo
A pretensão de formar e influenciar jornalistas levou Alberto Dines a elaborar, em 1965, os Cadernos de Jornalismo e Comunicação, iniciativa pioneira sobre a discussão do papel dos meios de comunicação que daria origem na década
111
de 1970 ao Jornal dos Jornais, da Folha de S.Paulo, e posteriormente, ao Observatório da Imprensa. A publicação foi criada em maio de 1965 e, de periodicidade
irregular, teve 49 edições ao longo de oito anos. A ideia era estimular um processo
de aprimoramento técnico dos jornalistas. A inspiração de Dines para a produção
dos Cadernos vinha de uma experiência que observara durante época em que esteve em Columbia: a publicação Winners and Sinners, do jornal New York Times,
criada como estratégia de circulação interna na qual os jornalistas discutiam de
forma crítica os erros e gafes que tinham saído no jornal: “O Winners and Sinners
era um jornalzinho interno, em que eles elogiavam e criticavam os erros do jornal.
Não chegava a ser um ombudsman, era mais a coisa técnica, mas havia um espírito crítico. Achei aquilo muito bom” (DINES, 1965, p. 7).
No primeiro trimestre de 1968 a publicação passou a ser vendida nas livrarias e distribuída em escolas, com a pretensão de abarcar um público maior: jornaPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
listas, educadores, publicitários e sociólogos, publicando artigos sobre comunicação e também economia, arte, política, além de pesquisas e reportagens, artigos do
corpo editorial do jornal e artigos traduzidos da imprensa norte-americana.
Os Cadernos de Jornalismo podem ser considerados uma iniciativa precursora de criação de um espaço para analisar e debater o desempenho da mídia. Até
então, análises relacionadas a fenômenos comunicacionais eram realizadas somente por institutos especializados em pesquisas de mídia e mercado, como o
Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), estritamente para
mensurar a audiência e tendências da opinião pública para embasar estratégias de
empresariais.
A publicação circulou com três nomes: nas seis primeiras edições como Cadernos de Jornalismo, depois como Cadernos de Jornalismo e Editoração e, finalmente, como Cadernos de Jornalismo e Comunicação. Com os anos, passou a
ter seções fixas (artigos, reportagens, opinião, resenhas de livros da área, notícias
de jornais e jornalistas brasileiros e estrangeiros e depoimentos).
Já na apresentação da primeira edição do veículo, Dines lança o desafio:
“Como cumprir com a função educativa e de difusão cultural se ao próprio jornalista não forem fornecidas oportunidades para o seu aprimoramento. Esta é a moti-
112
vação número 1 desta publicação ainda que a meta seja grande demais para um
grupo de jornalistas isolados alcançar” (DINES, 1965, p. 7). A experiência do JB
inspirou outros órgãos e entidades ligadas à imprensa a desenvolver iniciativas
semelhantes, entre eles os Cadernos de Jornalismo (1967), publicação do Sindicato dos Jornalistas de Porto Alegre, o Caderno de Jornalismo (1967) do Jornal do
Commercio de Recife, e a Bloch Comunicação (1968), da Bloch Editores, Cadernos de Comunicação Proal (1977), Crítica da Informação (1982), FiloFolha e
Cadernos de Jornalismo da Tribuna de Santos (1988). Instituições de ensino superior também lançariam publicações de análise de fenômenos comunicacionais: em
1967 surge a Revista da Escola de Comunicações Culturais, da Universidade de
São Paulo e, em 1968, o Centro de Pesquisa de Comunicação Social, da Faculdade
Cásper Líbero, edita os Cadernos de Ciências da Comunicação (SILVA, 2018).
Esta iniciativa, assim como o curso de formação de jornalistas criado pelo
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JB também no fim dos anos 1960, reforçam a percepção do Jornal do Brasil como
uma escola pelos profissionais da área. Ericson et al. (1987) sistematizam os saberes jornalísticos em três eixos: o primeiro deles é o saber de reconhecimento, capacidade de identificar acontecimentos que tenham valor como notícia, a partir de
uma série de critérios de noticiabilidade. É o que os jornalistas chamam de “faro
para a notícia”. O segundo é o saber de procedimento, conhecimentos que orientam os passos a seguir na coleta e checagem de informações, que pressupõe escolher as melhores fontes para aquela história, como contatá-las, o que perguntar,
como verificar as informações recebidas. O terceiro é o saber de narração, capacidade de selecionar e organizar as informações em uma narrativa, seguindo o
léxico jornalístico: texto claro, direto e conciso, descrição detalhada etc.
Estes três eixos formam um “vocabulário de precedentes”, um conjunto de
saberes profissionais cuja aprendizagem é um processo sutil, de acumulação, baseado na experiência e nas transações diárias com colegas, superiores hierárquicos, fontes e textos jornalísticos, de que é exemplar o depoimento de João Baptista de Abreu. O jornalista e professor aposentado da UFF, que entrou no JB em
seleção de estágio em 1973, também reconhece no JB uma escola, e evoca os vínculos do jornalismo à liberdade, constituintes da ideologia do jornalismo e intimamente ligados aos valores democráticos:
113
Para muitos jornalistas da minha geração e de gerações seguintes, o JB não só fez
escola como se transformou numa própria escola de jornalismo. A qualidade dos
profissionais que ali trabalhavam nos anos 60/70, dos editorialistas e editores aos
repórteres, fotógrafos, gráficos e motoristas, tornava o JB uma referência do bom
jornalismo, como Diógenes e sua lanterna, sempre à procura de uma verdade nunca
alcançada, porém sempre buscada. O ambiente de segurança ética e companheirismo na redação embevecia os mais jovens. [...] Fiquei 13 meses na reportagem
geral [1973-74] e foi lá que aprendi a ser repórter. Não apenas pelo que me ensinaram os chefes, mas sobretudo pelas dicas e observações dos colegas mais velhos,
os repórteres especiais, de texto limpo e criativo, que retratavam a cidade com
olhar crítico, apesar dos tempos de censura e de opressão à liberdade de expressão
(BAPTISTA, em HERKENHOFF, 2010, p. 361, grifos meus).
Jovens viam ali a chance de entrar para o jornal, mesmo já formados, mesmo trabalhando de graça: não recebiam remuneração, apostando em serem efetivados ao fim do curso. Foi o caso de Israel Tabak, que se formou em jornalismo
na Faculdade Nacional de Filosofia (atual UFRJ) em 1965. Seu primeiro estágio
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foi no Correio da Manhã, de onde saiu para o curso do Jornal do Brasil, em 1968.
O Jornal do Brasil era a grande meca do jornalismo na época. [...] Quando deixei
o estágio no Correio fiz esse curso, dado pelo Luiz Lobo, um excelente jornalista e
magnífico didata. Mais tarde, outros grandes jornalistas, como Fernando Gabeira,
foram professores do curso. Eu até dizia que naquele curso do Jornal do Brasil eu
aprendi mais do que em todos os meus anos de faculdade, apesar da sorte de ter sido aluno do Zuenir. [...] Nós tínhamos ases da literatura, grandes intelectuais que
trabalhavam no copydesk. A gente aprendia muito com eles. Foi numa grande sorte
ter trabalhado nesse ambiente (TABAK, 2008, grifos meus).
Luiz Orlando Carneiro expressa também o sentimento de pertencimento dos
jornalistas com o veículo – reconhecido pela empresa como um capital simbólico,
a ponto de figurar na peça publicitária dos 95 anos do jornal:
Mas temos sido também uma casa e uma escola. Uma casa inesquecível mesmo
para aqueles que a deixaram, não importam os motivos. Uma escola que tem formado gerações de jornalistas, uma cave de onde saíram as melhores safras do jornalismo brasileiro nos últimos 30 anos [ou seja, desde a reforma de 1956]. Restrinjo-me a este período porque, “cria da casa”, sou do JB há pouco mais de 27 anos. A
faculdade lá fora terá ajudado a dar a este repórter um pouco daquele conhecimento
que todo jornalista [...] é obrigado a ter. Mas foi na Avenida Rio Branco 110 que
fiz o curso primário, o ginasial e a universidade. Não vou citar os professores e
chefes que tive, pois seria uma longa enumeração sujeita a lapsos de memória. [...]
O pequeno depoimento que aí vai só tem um objetivo: mostrar que, como muitos
outros colegas da instituição, tive, no JB, uma escola a que devo tanto como a dos
beneditinos da Rua Dom Geraldo, e tenho uma casa pela qual me sinto tão responsável quanto pela minha propriamente dita (CARNEIRO, 1986).
O boca a boca entre jornalistas, alimentado pelas iniciativas institucionais
do veículo, se tornariam um bordão repetido por décadas: “Não há jornalista com
114
mais de 40 anos que não tenha passado pelo JB ou não tenha querido passar. Ele
foi uma escola, um laboratório de experimentação técnica e um espaço de resistência cívica” (VENTURA, 2010, p. 7). A analogia com escola é tão lugarcomum que o jornalista Alfredo Herkenhoff, quando decidiu reunir depoimentos
de colegas sobre o JB para seu livro, pediu “para se evitar, se possível, dizer o
óbvio, aquela coisa que o JB foi uma escola...”. Mas até o fim a ideia prevaleceu.
Já em março de 2019, o então estagiário Pedro Medeiros agradeceu nas redes sociais a chance de publicar reportagens ao “Jornal do Brasil, que se tornou minha
casa, meu trabalho e minha escola”. Abreu afirma ainda que o JB continuaria a
fazer escola mesmo depois de “morto e sepultado”, citando que sete dos 12 professores de Jornalismo da UFF haviam passado pelo JB ou pela Rádio JB. “As
boas lembranças e ensinamentos adquiridos no cotidiano das ruas e da redação, no
companheirismo e no respeito aos princípios éticos, permanecerão presentes. Se
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não em todos os jornais de hoje em dia, pelo menos na sala de aula”.
2.1.7. O salário-ambiente
A gestão Dines enxergou o potencial para ampliar o reconhecimento entre
jornalistas com iniciativas como os Cadernos de Jornalismo, o curso de jornalismo, a política de cargos e salários, que implicaram em uma cultura interna de bom
clima, chamada de “salário-ambiente” do JB. “Salário-ambiente é uma expressão
inventada pelo pessoal do JB, onde não se trabalhava somente pelo dinheiro, mas
também pelo clima geral da redação”, descreve o jornalista José Sérgio Rocha
(2010). Israel Tabak e Joëlle Rouchou descrevem as razões do seu orgulho:
O Jornal do Brasil era o lugar em que todo mundo queria trabalhar! Porque era um
jornal lindo, era chique, tinha uma coisa New York Times. O Jornal do Brasil tinha
esse glamour, tinha essa marca: todo mundo querendo entrar naquele lugar, e a
gente já estava naquele lugar. As melhores pessoas trabalhavam lá. Tinha os copidesques, tinha o Departamento de Pesquisa, era um conforto saber que você podia
errar, porque tinha uma gente muito boa para ajudar. E o fato de assinar matérias é
muito importante, fazia parte do salário indireto. Antes, só assinavam matéria os
repórteres do Caderno B e os correspondentes. No B, eu assinava na capa! Eu estava no 4º período da PUC, imagina. E os da Geral, que morriam de inveja, passaram
a assinar também (ROUCHOU, 2019).
Todos nós que tivemos a sorte de trabalhar no JB daquela época éramos apaixonados pelo nosso ofício. Tempos de criatividade, inovação, modernização, profissionalização e dignificação do trabalho do jornalista, em um veículo que ficou sem
competidor durante muitos anos, anos-luz à frente dos demais (TABAK, 2014).
115
Para o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos (2016), a redação da Avenida
Brasil “foi a última redação romântica”, onde “havia heroísmo e sensação de que
se cumpria missão de cidadania num clima de camaradagem”. “O clima era de
gandaia criativa e compreensão sobre o que fosse a função do jornalismo” (SANTOS, 2016). Colegas de profissão se tornaram amigos e muitos casamentos começaram na Rio Branco, e depois no grande bloco de cimento da Avenida Brasil. “A
gente levava uma vida pessoal muito relacionada com a vida lá dentro. Com outros colegas, comecei a fazer coisas que nunca tinha feito. [...] A nossa amizade
pessoal era muito marcada pela nossa paixão pelo jornalismo (TABAK, 2008).
Joaquim conta que uma das frases preferidas do colunista Zózimo Barroso do
Amaral era “[aqui] ganha-se pouco, mas é divertido” (SANTOS, 2016), e lembra
que o ascensorista do elevador dos fundos, um senhor conhecido como “Vovô”,
anunciava ao parar no andar da redação: “Sexto andar, área de lazer”, ou “parque
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de diversões”.
Em que outro ambiente de trabalho, a não ser na redação do JB dos anos 70, um
funcionário poderia telefonar para o superior hierárquico e justificar sua ausência
nos seguintes termos: “Hoje eu não vou porque estou me sentindo muito bem”? A
frase foi dita certa vez pelo redator Joaquim Campelo, no que foi imediatamente liberado de qualquer prática funcional (SANTOS, 2016).
Kotscho destaca o investimento no conteúdo jornalístico – “não havia limite
de despesas para fazer uma boa reportagem” – e na equipe. Ao ser convidado para
integrar o respeitado time de correspondentes do JB, na Alemanha, Ricardo
Kotscho sentiu-se “como se estivesse sendo nomeado embaixador, tal a importância da função” (2010). “De roupa esporte, me senti um verdadeiro caipira sentado
à mesa da rainha da Inglaterra”. Participaria também de uma reunião com mais de
10 correspondentes do jornal num grande hotel em Paris (KOTSCHO, 2010, grifo
meu). Quando o JB voltou às bancas, Kotscho escreveu outra coluna, mudando
um pouco a versão, mas preservando o deslumbramento:
Faz mais de 40 anos, mas nunca vou esquecer o dia em que entrei pela primeira vez
na antiga sede Jornal do Brasil, no final de 1977. Fui com meu melhor terno, um
traje que jornalistas ainda usavam naquela época, e não cabia em mim de felicidade
e emoção. O JB era considerado o melhor jornal brasileiro daquela época. [...] Ao
subir os elevadores daquele portentoso prédio da Avenida Brasil, e depois almoçar
com a cúpula do jornal ao lado de Walter Fontoura no chiquérrimo restaurante da
diretoria, tive a certeza de que estava mudando não só de emprego, mas de vida
(KOTSCHO, 2018, grifos meus).
116
João Máximo lembra que muitos não aceitavam convite para trabalhar em
outro jornal por causa desse ambiente. “Às vezes um jornal vinha, oferecia mais
dinheiro, mas nós sabíamos que não iríamos encontrar fora do Jornal do Brasil
aquele ambiente de amizade, de companheirismo” (MÁXIMO, 2010). A repórter
Bety Orsini, do Caderno B, recebeu uma proposta para duplicar o salário e assinar
uma coluna em outro jornal. Agradeceu. Disse que a proposta para a transferência
era boa, obrigada, mas no JB tinha sempre alguém na mesa ao lado chegando de
Paris ou de Viena, quando não era ela própria quem estava com o pé no jato, e
isso não tinha preço. Ficou onde estava. Não era pelo dinheiro, e sim pelo savoirvivre. E a alegria vinha de um acontecimento natural, sem qualquer engendramento operado pelo RH (SANTOS, 2016). A equipe de Economia, por exemplo, organizava queijos e vinhos nos longos fechamentos; a turma de Cidade e Esporte
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descia aos “podrões” da região portuária.
Quem disse que a farra das sextas ia terminar assim, a seco? O pessoal da Economia tomou a frente e espalhou por um mesão vinhos e queijos. Ideia do subeditor
da Economia Luiz Larqué que a dupla de editores da Internacional, Renato Machado e Luiz Mário Gazzaneo, copiou de bate-pronto. Foi a primeira vez que vi um
croissant na vida. Fazia confusão com o tal do escargot. Outro viralata, o redator
Osvaldo Maneschy, quase foi demitido por levar duas bisnagas e 200 gramas de
mortadela. Os vinhos eram de excelente qualidade, coisas do chefe Renato, que em
breve se tornaria autoridade no assunto. Os banquetes na Economia e na Internacional atraíam o povo de outras editorias, onde a ideia foi aperfeiçoada pelo pessoal
que preferia os líquidos (ROCHA, 2010).
Arthur Dapieve falou a Zíngara Lofrano e Gabriela Doria, estudantes de
jornalismo da PUC-Rio, sobre a gratificação por trabalhar em um lugar fazendo-se
o que se gosta, cercado de ídolos e colegas inteligentes e interessantes, e ainda
receber por isso, mesmo quando os salários reais já não eram os dos bons tempos:
O que se dizia na redação do JB nessa época é que havia um salário-ambiente. A
gente ganhava mal, mas convivia com gente tão interessante que compensava. Era
realmente uma sensação de que se estava trabalhando e se divertindo ao mesmo
tempo, né? Quase nenhuma redação é assim. Gente com quem gostava de conversar, com quem aprendia coisas. Os meus colegas eram interessantes. Havia três redatores no Caderno B quando entrei, que eram um psicanalista, um tradutor e o outro também com experiência fora do jornalismo. Sabia que estava fazendo um jornal legal, que tinha gente legal, o diretor de redação era legal, o chefe era legal,
pessoas que respeitava. Então, realmente tinha um salário-ambiente. Durante uns
anos, isso se manteve fortemente (DAPIEVE, 2015).
O jornalista pernambucano Ricardo Noblat também estreou no jornalismo
pelas páginas do JB: “Principalmente para nós fora desse eixo Rio-São Paulo, era
117
a grande meta a aspirar, o lugar onde se queria trabalhar. Era a escola que todo
mundo gostaria de entrar, era o lugar onde todo mundo gostaria de trabalhar”
(2010, 1’04).
A analogia com o futebol para definir equipes da redação também é recorrente: “O JB deste tempo [anos 70] ainda reunia a seleção brasileira da imprensa
[...]. O sonho de todo jornalista era trabalhar lá um dia. Tinha vários craques em
cada editoria. Ouso afirmar que nunca mais se montou uma redação daquela qualidade em jornal algum” (KOTSCHO, 2010). Para Sérgio Noronha, “trabalhar no
Jornal do Brasil era como jogar na Seleção Brasileira” (NORONHA, 31/8/2010).
Muitos jornalistas destacam a marca de terem começado ali suas trajetórias
profissionais. A estreia, a vez inaugural, ganha relevância como valor-notícia das
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memórias, como Jorge Antonio Barros escreveu em fictício e-mail à condessa:
Na Avenida Brasil 500, no início dos anos 80, foi ali que escrevi a primeira reportagem, me infiltrei no primeiro presídio, dei o primeiro furo jornalístico, levei o
primeiro furo, convenci a primeira pessoa a fazer confidências, fiz a primeira entrevista, perdi o primeiro bloco de anotações, fui ao primeiro local de crime, cobri a
primeira chacina, sofri a primeira ameaça, levei o primeiro processo, publiquei a
primeira denúncia, cobri e aderi à primeira greve, fui enviado especial para cobrir a
primeira guerra, acompanhei o primeiro escândalo em Brasília, a primeira posse de
presidente da República, assim como seu impeachment, participei da primeira coletiva, ganhei o primeiro prêmio e, pela primeira vez, compartilhei de um trabalho
em equipe, com um grupo extraordinário de jornalistas, que ensinavam a fazer jornalismo, enquanto se divertiam (BARROS, 2010).
Outros expressam ainda mais enfaticamente a importância do jornal em suas
vidas pessoais. O fotojornalista Rogério Reis, que trabalhou no Jornal do Brasil
em três períodos distintos (primeiro como estagiário, depois como fotógrafo profissional e por fim como editor de fotografia), também exprime essa relação ao
comentar o nível de envolvimento dos jornalistas com a redação, onde “passam
mais tempo do que em suas casas ou qualquer outro lugar. Além do trabalho, fazíamos nossas refeições, dormíamos nos plantões da madrugada e muitas vezes nos
casávamos nesse ambiente” (REIS, 2010). A jornalista e professora Joëlle Rouchou34, que realizou o sonho de ser repórter no “mítico e venerado” Caderno B
34
Formada em jornalismo na PUC-Rio, trabalhou como repórter no Jornal do Brasil (1978-1985)
e na revista Veja (1985-1987). Doutora em Comunicação, é chefe do Setor de História da Fundação Casa de Rui Barbosa.
118
em 1978, afirmou em entrevista à autora que o JB foi “estruturante” em sua vida,
“um adorável e duro mundo novo”.
Para uma menina criada numa redoma de vidro, que estudou em escola francesa,
era [...] um frisson, repartido por toda a redação. Muitas festas, muita alegria e tristezas também, como perdas dos amigos, demissões, injustiças. Era muito assunto.
Matéria de sonhos para a volta para casa, para conversar com amigos. Entrei adolescente. Saí mulher (ROUCHOU, em HERKENHOFF, 2010, p. 169).
O depoimento de Joëlle faz dueto com o de Silvio Essinger35, que chegou ao
JB já em 1995. Ele usa terceira pessoa para evocar uma série de termos relacionados à ideia de acolhida e amadurecimento, atribuídos a uma relação familiar:
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Nada na universidade o deixou tão eletrizado quanto o dia em que adentrou, de
mansinho, aquele salão no 6º andar do prédio da Avenida Brasil 500; ali estavam
as cabeças, as assinaturas, a sua turma. No dia em que, enfim, teve seu nome sem
graça aceito naquelas páginas, foi como na primeira vez em que viu cair a última
peça de lingerie – uau! Em quatro anos de JB, viveu paixões, descobertas, frissons,
impaciências, broncas, decepções, ressacas... e fez-se homem (ESSINGER, em
HERKENHOFF, 2010, p. 134).
O jornalista Marceu Vieira coleciona alegrias, muitas, e tristezas, suas duas
saídas do jornal. E confessa que “[...] gostava tanto daquela casa que, na minha
neuropatia amorosa de jovem repórter, imaginava não haver ninguém que a amasse tanto. Nem seus donos” (HERKENHOFF, 2010, p. 146).
Passei no JB os dias mais felizes da minha vida profissional. Passei no JB também
os mais tristes. Foram oito anos. Oito anos tão intensos, divididos em dois períodos
de quatro, que, na minha memória afetiva, pareceram bem mais que oito. Pareceram uma vida inteira. Quatro dias foram os mais marcantes da minha carreira como jornalista. O primeiro mais feliz foi o da minha chegada ao JB, em 1987. O segundo foi o da minha primeira volta, em 1994. O segundo mais triste foi o da minha primeira saída, em 1991. O mais triste de todos foi o da minha despedida para
sempre, em 1998 (VIEIRA, em HERKENHOFF, 2010, p. 146).
O fotojornalista Aguinaldo Ramos36, o Guina, diz em seu blog:
Numa certa tarde de 1983, passando por um corredor do JB, vindo da redação a
caminho da Fotografia, em pleno movimento de escolha da foto da matéria recémtrazida das ruas, pensei (e o pensamento me preencheu como um grande discurso
entusiasmado, está comigo até hoje): “Cara, quero trabalhar aqui o resto da minha
vida”. Tinha vivido, em pouco tempo, meus melhores momentos como profissional
de fotojornalismo. Pautas criativas, repórteres bons parceiros, chefias aceitáveis, a
sensação (que virava realidade no dia seguinte) de ajudar a criar, pelo efêmero, o
transcendental [...]. Não passei de 1986 e saí já meio cansado de matérias repetiti35
36
Formado na PUC-Rio, passou pela Tribuna da Imprensa e mais tarde em O Globo.
Fotojornalista, Aguinaldo Ramos, o Guina, trabalhou no JB de 1980 a 1986.
119
vas (muitos buracos de rua e plantões policiais nas minhas lentes tão fatigadas...),
afoito por espaços próprios, nada corporativos, como freelancer. Impaciente e deslumbrado, não demorei a sair do JB. Mas, é claro, todos sabem, o JB nunca mais
saiu de mim (RAMOS, em HERKENHOFF, 2010, p. 245, grifo meu).
Nestes depoimentos estão presentes o tempo e o espaço de um despertar para a vida adulta. As falas entusiasmadas dos jornalistas exemplificam bem a também já mencionada relação entre memória e identidade profissional. Fica claro
que a fase áurea do jornal se confunde com a fase áurea da vida dos próprios jornalistas.
Esse clima reforçava o imbricamento entre vida profissional e pessoal, de
que tratam Gerard Namer (1987) e Paula Jaeger Silva (2011). Se, nas fases de
saúde financeira da empresa, o prestígio atraía e mantinha os melhores quadros,
com a queda de competitividade e o sistemático assédio do Globo, a partir dos
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anos 1990, o vínculo afetava emocionalmente as decisões profissionais dos jornalistas. Foi o caso do colunista Zózimo Barroso do Amaral, que passou mal e deu
entrada no hospital, de onde escreveu sua carta de demissão, sofrendo por ter que
aceitar convite irrecusável do Globo, em 1993:
Querido doutor Brito, internado, no momento, na Casa de Saúde São Vicente, sem
possibilidade de alta antes da demorada viagem que sei que o senhor fará ao exterior, vejo-me obrigado a recorrer a esta carta, cuja remessa confio a minha mulher
[...] A mobilidade é a característica da nossa profissão. Nós nos transferimos de um
jornal para outro, sem razão específica, pela vontade de nos renovar e aperfeiçoar
[...]. Eis como explico a mim mesmo a decisão tomada (MOTTA, 2018).
E de Zuenir Ventura, que comentou sobre sua dificuldade de aceitar a proposta de trocar o JB pelo Globo, com salário ser muito maior:
Eu levei três meses para decidir. Porque o Jornal do Brasil foi uma escola maravilhosa. O Jornal do Brasil era aquela coisa: você não era leitor do Jornal do Brasil,
você era torcedor do Jornal do Brasil. Eu tinha feito amigos. A minha mulher
[Mary Ventura] tinha trabalhado anos no Jornal do Brasil. Depois eu, depois meu
filho [Mauro Ventura]. Quer dizer, a nossa família tinha 40 anos de Jornal do Brasil. Foi muito difícil (VENTURA, s/d37).
37
Entrevista ao projeto Memória do Jornalismo Brasileiro (em edição).
120
Como Proust descrevendo a memória involuntária evocada pelo aroma das
madeleines, Silvio Essinger38, Vicente Senna39 e Orivaldo Perin40 recorrem à memória olfativa para tentar verbalizar a singularidade da sua experiência no JB:
Hoje, sente muita falta daquele carpete da redação, em cima do qual chegou algumas vezes a dormir, em sua convivência quase conjugal com o jornal. Por baixo
das manadas de ácaros, estava entranhado um cheiro de liberdade e aventura que
nunca mais voltou a sentir (em HERKENHOFF, 2010, p. 134).
Trago guardados na memória e no coração momentos inesquecíveis passados ali,
dos tempos do perfume de chumbo das linotipos ao do computador, os amigos, os
furos dados e tomados, a alegria que exalava dos corredores. Isso os coveiros do
jornal jamais enterrarão (SENNA, em HERKENHOFF, 2010, p. 170).
As redações do JB tinham alguma magia no ar. A gente consegue respirar um pouco dessa magia quando se reúne com ex-colegas. Passei por várias redações, mas
só as do JB tinham esse fascínio. Era prazeroso trabalhar (PERIN, 2019, à autora).
O jornalista Ricardo Kotscho associa o ambiente de trabalho agradável “à
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absoluta independência editorial”. “Jamais recebi uma ordem da diretoria para
fazer ou deixar de fazer determinada matéria” (KOTSCHO, 2010). A liberdade é
descrita de outra forma por Joëlle Rouchou:
Não era uma purpurina: a gente trabalhava, cumpria a pauta do dia a dia, tinha
obrigações. Mas tinha liberdade de propor outras, e executá-las no tempo que fosse
necessário. A gente tinha muita liberdade. Tinha o cúmulo que era ter uma equipe
de repórteres que passava a maior parte do tempo fora da pauta, criando. Podia levar uma semana, um mês. Se valorizava o trabalho do repórter (ROUCHOU,
2019).
Esta liberdade, palavra em que traduzem o respaldo e o respeito ao trabalho
jornalístico, é evidenciado num episódio de outubro de 1992, durante a cobertura
das buscas ao corpo do deputado Ulysses Guimarães, desaparecido após queda de
helicóptero no mar de Angra dos Reis, telefona para a redação José Antonio do
Nascimento Brito, o Josa, assegurando ao secretário de redação Roberto Pimentel,
de plantão, que testemunhara ele próprio a localização do corpo de Ulysses, num
passeio de iate. Pimentel se recusou a publicar a informação do dono do jornal até
que um perito a confirmasse. Ao mesmo tempo, Josa havia passado a informação
38
Silvio Essinger é jornalista, escritor, roteirista e pesquisador musical. Formado pela PUC-Rio,
trabalhou nos jornais Tribuna da Imprensa e Jornal do Brasil e nas revistas Manchete, Vizoo e Oi,
antes de entrar para O Globo.
39
Vicente Senna trabalhou no JB de 1976 a 2003. Antes, foi redator em O Globo.
40
Orivaldo Perin, que iniciou carreira na Última Hora de Samuel Wainer, em 1968, atuou 19 anos
no JB, em três “encarnações” (1969-1975; 1984-1987; 1990-2000), seguindo para O Globo.
121
à Agência JB, que a divulgou. Diversos canais de TV reproduziram. Pimentel, no
dia seguinte, foi abraçado na redação por colegas e chefes como Regina Zappa e
Zuenir Ventura. E a colega da Agência foi demitida, por não checar a informação.
À medida que a crise financeira se agrava, tanto por problemas de gestão
como por desperdício ou impetuosa aplicação de recursos (sendo a construção do
imenso prédio da Avenida Brasil o marco definitivo), não há idílio que perdure.
Nem salário-ambiente que suporte atrasos do salário real, demissões em “passaralhos” recorrentes que deixaram colegas desempregados e sobrecarregavam os que
permaneciam, e a queda de estrutura funcional, como a redução drástica da frota de
veículos de reportagem, provocando a locomoção de repórteres e fotógrafos por
meio de vouchers de táxi ou lotadas (quando um mesmo automóvel levava e buscava diversas equipes em diferentes locais de reportagem). Como definiu a jornalista Bella Stal41: “A exigência é do nível do Washington Post. Mas as condições
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de trabalho são da Gazeta de Arapiraca” (STAL, em HERKENHOFF, 2010, p.
269).
Com o tempo, as investidas do Globo e de outros veículos, os problemas de
má gestão, além do crescimento das assessorias de imprensa e do on-line, que
diversificariam o mercado, foram minando esse clima e as feições da redação.
Mas esse espírito continuaria sendo evocado pelas gerações seguintes. Joaquim
Ferreira dos Santos afirma que “o orgulho de trabalhar ali matava de inveja os
coleguinhas do Globo” (SANTOS, 2016). Tereza Cruvinel confirma: “Nos 25
anos em que eu trabalhei no jornal O Globo, eu tive sempre uma ponta de inveja
do JB (CRUVINEL, 2018). Para Joëlle, a comparação é especialmente com os
colegas do Globo:
Eu, como aluna da PUC, só queria trabalhar no Jornal do Brasil. Jamais quis trabalhar no Globo. O jornal tinha essa coisa de não ser opressor com a sua equipe. Os
colegas do Globo tinham medo da gente do Jornal do Brasil. Porque se a gente
desse um furo, eles estavam ferrados, sofriam represálias. A gente não. Sendo que
o Globo era um jornal muito bom, que dava muito mais matérias, especialmente na
41
Bella Stal (1945-2019) ganhou o Prêmio Esso de 1983 com Norma Couri, Leda Beck e Francisco Vargas, por reportagem sobre o assassinato do jornalista Alexandre Von Baumgarten na Veja.
No JB, onde trabalhou nas décadas de 1960, 1980 e 1990, atuou em reportagens investigativas,
como a busca por torturadores do regime militar denunciados pelo psicanalista Amílcar Lobo, que
participava de sessões de tortura no DOI-Codi do Rio; e como chefe de reportagem da editoria de
Cidade.
122
Geral. Só que o JB dava destaque, valorizava, com fotos, assinatura, diagramação
bonita... Eles vendiam mais, mas a gente fazia melhor (ROUCHOU, 2019).
Tornou-se recorrente, em depoimentos de várias gerações, atribuir ao jornal
três aspectos bastante simbólicos: o de ter sido uma “escola”, de sentir-se pertencente à “família JB” e de perceber o jornal como sua “casa”. Dos focas da década
de 1950, como Luiz Orlando Carneiro...
Tudo começou quando, em outubro de 1958, antes de completar 20 anos, entrei
como estagiário na reportagem geral. A histórica reforma no JB estava em plena
ebulição. Em três meses devo ter aprendido o bê-á-bá, pois fui admitido como repórter em janeiro de 1959. Acidentes de trânsito, remoções de favelas, entrevistas
coletivas. Lead, sublead, o triângulo invertido, o toque humano sem melodrama.
Uma redação solidária, sempre pronta a ajudar o novato, ainda quando a gozação
era inevitável. (CARNEIRO, 1986).
... aos últimos integrantes da última redação: nascida em 1993, a repórter Juliana Pimenta trabalhou por menos de um ano no novo JB, em 2018. E publicou
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em sua página na rede social, em 14 de maio de 2019:
Lugar em que sonhei em trabalhar desde que descobri que jornalismo era o que eu
queria fazer. O JB me ensinou muito em um ano que, por mais difícil que tenha sido, foi um bom ano pra aprender sobre a profissão. Uma Copa do Mundo, dois expresidentes presos, uma facada, eleições e tanta tragédia, que o único jeito foi entrar de cabeça e fazer o meu melhor. E tudo isso, claro, numa correria que só quem
faz jornalismo on-line entende. Mas nem a realização do sonho e nem a experiência
acumulada nesse período se comparam com o maior presente que o JB me deu: as
amizades. Sou muito grata por ter sido contemporânea de pessoas extremamente talentosas e que hoje fazem parte da minha vida (PIMENTA, 2019).
“Havia a alma do JB dentro da redação. Só pelo fato de o estagiário pisar ali
dentro, ele já assimilava o que vinha de texto diferenciado, apuração cuidadosa,
edição inteligente de noticiário”, declarou o jornalista Etevaldo Dias ao iG (2010).
O próprio JB, que já se valera de estratégias de conquista de capital simbólico ao
longo do tempo, não cessou de fazê-lo em seus discursos autorreferentes.
2.2. O JB pelo JB: o discurso autorreferente
Os jornais, como empresas, têm consciência de seu papel como agentes da
história, e investem mercadologicamente neste sentido. No Brasil, o caso mais
bem-sucedido é talvez a Folha de S.Paulo, que por meio de sua editora própria
lançou numerosos livros e outras publicações impressas com o propósito de expli-
123
car a atualidade, o jornalismo, o Brasil e o mundo sob sua ótica, aliando a marca
de credibilidade do jornal a produtos de longa duração, de maior valor agregado
que o perecível jornal de todos os dias. O Jornal do Brasil também apostou nesta
estratégia, com os Cadernos de Jornalismo, edições comemorativas como o Jornal do Centenário, vendidas ou distribuídas a públicos selecionados, coletâneas de
páginas, fotos e artigos publicados, de caráter institucional.
Um dos motes para o acionamento destas narrativas são as datas comemorativas, as chamadas efemérides, em que sobressaem memórias seletivas e uma história consolidada. Ao analisar o discurso autorreferente do JB a respeito de seu
centenário, Matheus e Barbosa (2008) identificam no material estudado quatro
grandes fases da história do jornal: uma “origem” estendida, que engloba os 60
anos anteriores à década de 50; a “reforma”, período de transição para um novo
jornalismo; os anos 1960/70, “quando o jornal se tornaria expressão de resistência
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em favor da liberdade”; e a década de 80, em que o jornal se apresentaria como
promotor da justiça (p. 113). Nestas edições especiais comemorativas de aniversário, sempre acompanhadas de generosos editoriais, são reforços da imagem que
desejava provocar ou manter ativa, atrelada a valores autoatribuídos ao jornal:
tradição, modernidade, credibilidade, independência, modernidade, entre outros.
2.2.1. ‘Um moço de 74 anos’
Em pleno apogeu, em 1965, o Jornal do Brasil encomendou ao cineasta
Nelson Pereira dos Santos um documentário em homenagem ao 74º aniversário do
jornal, dentro das comemorações do 4º Centenário do Rio de Janeiro, naquele ano.
Chama atenção o fato de o JB ser tratado desde o título como uma pessoa, e a dicotomia “juventude”, expressa por “moço”, e a tradição (74 anos). A ideia de humanizar o jornal parece estar intrinsecamente ligada ao vínculo afetivo desenvolvido por leitores e profissionais. O filme, com narração de Alberto Cury, reúne
imagens preciosas da produção do diário nos anos 60, mostrando o dia a dia da
redação e da oficina do jornal na antiga sede da Avenida Rio Branco 110, no Centro do Rio, em que aparecem, sem serem identificados, o superintendente, M.F. do
124
Nascimento Brito e os jornalistas Luiz Orlando Carneiro, Alberto Dines, Carlos
Lemos, Wilson Figueiredo e Marcos de Castro.
Um moço de 74 anos aciona o caráter pedagógico e missionário do jornalismo. Intercala imagens da redação, seu maquinário, jornalistas trabalhando, cenas cotidianas da Avenida Rio Branco e da cidade, e acontecimentos locais e internacionais. O filmete de 11’11 minutos é aberto com a câmera focalizando um
mapa mundi e um traveling pela redação vazia. O locutor Alberto Cury lê, no diapasão radiofônico da época, chamadas de notícias daquele dia: “Na Avenida Rio
Branco, neste instante, 27 graus, 64% a umidade relativa do ar. Washington: o
Congresso dos Estados Unidos aprovou hoje lei de redução geral dos impostos.
Paris: o correspondente do Jornal do Brasil informa que o general De Gaulle iniciou os preparativos de sua viagem ao Brasil. Amanhã, às 7h30, novo noticiário
do Repórter JB”. Funcionários varrem a sala. Surgem as rotativas imprimindo a
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edição. Os bastidores da rotina do jornal são apresentados por números que indicam a grandiosidade da empreitada: “Como se faz um jornal?, pergunta do ouvinte José da Silva. Trinta toneladas de papel, 2 mil quilos de chumbo e 500 mil palavras, entre outras coisas, são empregados em cada edição deste matutino, que há
74 anos cumpre a tarefa de bem informar e orientar”.
A tradição é reforçada remetendo à origem e a valores chave da liberdade de
imprensa: “Desde o seu primeiro número, de 9 de abril de 1891, o Jornal do Brasil mantém a tradição de discutir as questões do país com inteira isenção e independência, fiel às palavras de seu fundador, Rodolfo Dantas”. Sobre a produção
de “100 mil exemplares do jornal em que você, ouvinte, encontra diariamente o
mundo em que vive e nele se situa”, afirma que “a posição do jornal diante de
questões nacionais e internacionais é estudada cuidadosamente. Nenhum problema de interesse do país e do povo brasileiro deixou de ser objeto de opinião do
JB”, o que soa como uma resposta às donas de jornais que ironizaram o jornal das
cozinheiras nos anos 50. “Reunidos com o editor-chefe, os responsáveis de setores
estudam por sua vez o noticiário já obtido, e decidem sobre a melhor maneira de
usá-lo dentro dos padrões adotados pelo jornal. O balanço das notícias, sempre
copiosas, é fator decisivo para a realização de uma boa edição”. A narração é coberta por imagens de jornalistas em máquinas de escrever Olivetti e de um texto
125
da AFP em espanhol sobre noticiário esportivo, e de M.F. do Nascimento Brito
reunido com editores e editorialistas. Ao mesmo tempo em que reconhece fazer
uma seleção criteriosa das notícias e dar um tratamento a elas, revelando ao público leigo um pouco do processo interno da imprensa, paradoxalmente afirma também que o jornal é “espelho da realidade, lente que permite ao leitor e a jornalistas conhecer o mundo” (SANTOS, 1965, grifo meu).
A figura chave que opera na “caça às notícias” para “desvendar a verdade”
é o “profissional experimentado”, que executa sua função com “coragem e carinho” (SANTOS, 1965, grifo meu). A câmera mostra uma favela, e uma moradora
com uma criança no colo. Um repórter embarca num carro de reportagem na porta
do jornal, na Avenida Rio Branco. No Porto do Rio, dois repórteres abordam um
estivador. “O dia para o jornalista começa cedo. A comunicação entre o cidadão e
o fato se faz através de uma cadeia de instrumentos da qual o jornal é o elo decisiPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
vo”. Emoção e razão são novamente acionados na descrição do processo:
Escrever com cuidado. A palavra, quanto mais exata, mais eficiente. Economia e
estilo não andam separados no trabalho dos redatores responsáveis pela edição final das notícias. [...] Redação pronta e revista, a notícia recebe sua medida e designação para ser enviada às oficinas, onde se materializará o projeto da edição, rabiscado pela secretaria do jornal com gosto e ciência (SANTOS, 1965, grifo meu).
O fluxo de produção prossegue: redatores fazendo títulos, paginadores fazendo a boneca da edição, as matérias entregues à oficina, gráficos compondo
títulos e textos em chumbo, letra por letra, em tituleiras e linotipos. “Duzentos
operários especializados realizam a tarefa industrial que envolve a edição do jornal. Em quatro horas apenas, após a chegada da última notícia, o jornal deverá
estar na rua”. A última etapa é a da revisão, “sentinela vigilante e exigente”. O
filme termina com pequenos jornaleiros carregando os feixes do jornal para distribuir nas bancas, e a fachada do jornal, na Avenida Rio Branco, com uma nova
chamada do Repórter JB, em edição extraordinária (noticiando o sequestro de
Frank Sinatra Jr., a caminho do Brasil), indicando que o jornal nunca para – um
eterno recomeço.
126
2.2.2. JB é notícia
Num momento em que eram raras as publicações especializadas em jornalismo, e contrariando a máxima de que jornalista não é notícia, o Jornal do Brasil
foi tema de reportagem especial de sete páginas na 7ª edição da revista Realidade,
de 25 de agosto de 1966. Em “A aventura da notícia: 24 horas na vida de um jornal”, o repórter Luiz Fernando Mercadante e o fotógrafo Nelson di Rago acompanharam um dia na redação, também mostrando bastidores daquele acontecimento
que era o Jornal do Brasil.
A reportagem satisfazia uma curiosidade geral sobre como era aquele jornal,
como lembrariam dois jornalistas da época, em depoimentos de 2010: Sérgio Noronha conta que pessoas pediam para visitar o Jornal do Brasil, ver como era feito, na Avenida Rio Branco (NORONHA, 31/8/2010). Ana Arruda Callado comen-
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ta que, quando viajava para coberturas Brasil afora, era abordada por outros jornalistas, querendo saber quem tomava as decisões, como era a rotina:
Eu era repórter, e a gente viajava, e eu sentia a importância do Jornal do Brasil pelos jornalistas dos outros jornais. Eu era procurada pelos jornalistas que estavam no
mesmo evento e eles ficavam: ‘Ana, conta como é que é o Jornal do Brasil, quem é
que fecha, quem é que decide?’ (CALLADO, 2010).
De pronto, destaca-se na reportagem da Realidade a diagramação, reproduzindo uma primeira página do Jornal do Brasil, com cabeçalho ladeado por um
quadrado, manchete e foto grande emoldurada por uma coluna imitando os classificados do jornal, mas com declarações de jornalistas em vez de anúncios.
Além de recorrer à mesma ideia do documentário de Nelson Pereira dos
Santos – acompanhar um ciclo de produção do jornal –, imageticamente a reportagem também muito se semelha ao filmete: fotos da redação, dos editorialistas,
do chefe de reportagem, de uma redatora, do copidesque fazendo títulos, o desenhista da primeira página, a notícia virando chumbo e depois jornal. O tom é laudatório, simpático como uma reportagem recomendada. Mas, diferentemente do
vídeo institucional, na Realidade os jornalistas (repórteres, editores e diretores)
ganham voz, e a observação e minúcia do repórter dá pistas da influência do JB no
jornalismo brasileiro, a começar pelo fato de se tornar notícia na revista – que, por
sinal, também fez história, como a New Yorker nacional. O grande valor da repor-
127
tagem é o registro, no calor dos anos 1960, da rotina do jornal – e dos valores acionados pelo “moderno” “novo JB” em torno do jornalismo. Se no institucional a
palavra de ordem é “tradição”, na Realidade é a “novidade” o valor-notícia acionado. O ponto de origem se desloca de Rodolfo Dantas para a condessa Pereira
Carneiro, a diretora-presidente, e o jornalista Odylo Costa, filho, como fundadores
deste “novo” jornal. A ilusão biográfica opera no encadeamento de fatos e pessoas
da vida da condessa na determinação de seu destino:
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Bisneta, filha e esposa de jornalistas, a condessa sempre viveu ligada ao jornal e
especialmente ao JB, onde seu pai criou a seção Coisas da Política, onde seu marido inicialmente manteve uma seção de notícias de Pernambuco e um noticiário
comercial e financeiro. Depois, o Conde Ernesto Pereira Carneiro se integrou de
vez na vida do jornal e, durante 36 anos, até o seu falecimento em 1954, foi o seu
dirigente. A condessa assumiu em seguida e, durante dois anos, se preparou – passou três meses nos Estados Unidos somente visitando jornais – e preparou o JB para uma grande reforma renovadora que foi impulsionada a partir de 1956, com
Odylo Costa, filho na redação e seu genro, Manuel Francisco do Nascimento Brito,
na superintendência (MERCADANTE, 1966, p. 141, grifo meu).
A revista apresenta uma executiva que transita com desenvoltura no meio
jornalístico e político, no Brasil e no mundo. Mercadante registra um episódio
relatado pela condessa, em que num encontro com o primeiro-ministro de Portugal, Antônio Salazar, ele teria se queixado de que o JB era severo com ele: “A
condessa desarmou Salazar com um sorriso e uma explicação direta: ‘Os homens
que assinam os nossos artigos têm liberdade de expressar suas opiniões. Um jornal se faz também com críticas’” (MERCADANTE, 1966, p. 141). E mais outro,
sobre os editoriais, escritos por Otto Lara Resende, Wilson Figueiredo, Pedro de
Andrade Gomes e João Paulo de Almeida Magalhães: “Todos mantêm sigilo sobre quem escreve o quê. E, se alguém insiste, Nascimento Brito responde invariavelmente: ‘Quem escreveu foi a condessa’. E, em última análise, a opinião da
condessa é a opinião do JB. E vice-versa” (p. 142). Estava superada a pecha de
dona do jornal das cozinheiras, que não tinha opinião.
Mercadante acompanha o trabalho numa quinta-feira, em que é produzida a
edição do dia seguinte e se planeja as do fim de semana. Narra o percurso de Fernando Gabeira, 25 anos, o chefe da pauta, de Copacabana ao Centro, de ônibus,
para iniciar “a receita do jornal”, lendo os recados do plantonista da madrugada, e
passando à agenda de solenidades, para decidir o que merece cobertura pelo JB, e
128
à leitura de todos os jornais, das quais “vai tirar as suítes, os prolongamentos e o
desenrolar das notícias em novas reportagens”:
Atenção para Roberto Carlos, entrincheirado em seu apartamento do Leme Palace
Hotel, para fugir do assédio das garotas. Foi requerida a falência de Dom João de
Orleans e Bragança, da família real brasileira. Ele deixou de pagar uma promissória
de 40 milhões de cruzeiros. Atenção para o Festival do Chope que começa amanhã
e promete recorde de consumo. A história e a finalidade desses festivais podem interessar ao leitor. Ainda não demos foto do pessoal que vai ser despejado da Presidente Vargas (GABEIRA em MERCADANTE, 1966, p. 135).
Mas o grande assunto do momento era a reforma da Constituição, e o repórter da Realidade reproduz as abordagens propostas pelo pauteiro. Primeiro, na
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perspectiva do leitor; depois, no posicionamento político:
Fala-se em transformar o Congresso em Constituinte. E quem sabe o que é Constituinte? O que significa transformar o Congresso em Constituinte? Quais os precedentes históricos dessa medida? Não seria interessante eleger os constituintes? [...]
É natural que o leitor não entenda nada. É preciso destacar os tópicos conservadores, os tópicos progressistas etc. Conservadora em relação a quê? Não adianta adjetivo. Cabe-nos comparar com o texto de 1946 e apresentar as modificações introduzidas (GABEIRA em MERCADANTE, 1966, p. 133, grifo meu).
Não estaria o atual Congresso comprometido demais com o governo federal? A
comissão dos doutos, tal como é conhecida a comissão que preparou o primeiro
texto da nova Constituição, está recebendo críticas do governo a que serviu, e da
oposição, por ter servido (GABEIRA em MERCADANTE, 1966, p. 133).
Outro jornalista retratado é José Maria Mayrink, 28 anos, um dos oito repórteres de dedicação exclusiva ao jornal, entre os 50 repórteres contratados no Rio,
11 fazendo cobertura de Cidade, sob o comando de José Gonçalves Fontes42. São
apresentados como os “garimpeiros da notícia, sem eles não se faz jornal”. “O
repórter não é urbanista, arquiteto, paisagista, médico, engenheiro, padre, advogado, militar ou economista. O repórter é o homem que sabe trocar tudo em miúdos”
(MERCADANTE, 1966). Era assim a divisão da cobertura de “todos os setores
públicos da Guanabara”: homens com o Governo do Estado, Bairros, Trânsito,
Serviços Públicos, Saúde, Viação e Obras e Finanças; e três moças encarregadas
de Ensino, Serviços Sociais e Turismo. Um 11º era repórter ficava solto, fora de
42
Recordista de prêmios Esso para o JB, iniciou no jornal em 1958 a convite de Odylo e trabalhou
praticamente até morrer, em julho de 2000, excluindo intervalo entre 1979 e 1984, quando cursou
Direito. Foi repórter, subchefe de reportagem geral, editor de Cidade, pauteiro (HERKENHOFF,
2010, p. 54-57).
129
pauta. Mercadante parte do número para fazer comparar a equipe a um time de
futebol: “é o volante, joga em todas as posições”.
Sobre o chefe de reportagem Luiz Orlando Carneiro, 27 anos, advogado,
quatro filhos, que iniciou no JB como estagiário em 1958, aos 18, escreve:
Sua figura tranquila desmente a agitação dos chefes de reportagem de antigamente,
sempre a fritar e a gesticular. Luiz Orlando é homem sereno e sua mesa não é um
vulcão e sim o abrigo para onde atrai mansamente a matéria-prima do seu ofício: a
notícia. Ali, ele encarrega cada repórter de ir buscá-la. E, mais do que isso, encaminha-o para que dê à notícia uma roupa nova feita com os bastidores, com o que
está atrás dos fatos; e com o seu significado, a sua interpretação e a sua angulação,
para o interesse do leitor” (MERCADANTE, 1966, p. 135).
O próprio Luiz Orlando mostra já na ocasião a preocupação dos jornais de
se diferenciar: “Hoje, quem fizer um jornal apenas com notícias secas repetirá
com atraso o noticiário da televisão. É preciso enriquecer a notícia, engordá-la de
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complementos, sem o que o leitor não receberá nenhum serviço, mas uma simples
e retardada cópia”. Mercadante registra que o colega faz a afirmação “em tom de
grande seriedade”, e que a profissão “está cada vez a exigir mais”. “Por isso, está
empenhado na luta de outros tantos jornalistas, do seu jornal e de outros jornais,
uma luta que visa elevar e aprimorar o nível do jornalismo brasileiro” (CARNEIRO, em MERCADANTE, 1966, p. 135).
José Gonçalves Fontes, 32 anos, já havia ganhado um Prêmio Esso, com
uma série sobre fraude eleitoral. Sua história é apresentada entrelaçando a vida
pessoal à profissional com recursos dramáticos:
Carioca nascido em Santa Teresa, Fontes cresceu no açougue do pai e entregou
muita carne no bairro. Um dos fregueses e vizinhos do açougue era o jornalista
Odylo Costa, filho, que iniciou em 1956 a reforma editorial que ia levar o JB à sua
posição de liderança de hoje. O entregador de carne ficou amigo do jornalista e, um
dia, trocou o açougue do pai pelo jornal. Há anos, Fontes fez uma grande reportagem sobre o câncer. A matéria foi publicada num domingo e causou muita dor ao
repórter. Relendo-a, ao lado do pai enfermo, Fontes – através dos sintomas que
apontou na reportagem – diagnosticou a doença que prendia seu pai à cama: câncer
de faringe. No dia seguinte, para seu pesar, o médico confirmou o repórter (MERCADANTE, 1966, p. 137).
Ao meio-dia e meia, um furo de reportagem chacoalha a redação: um repórter da casa conseguiu furar o cerco policial em torno da Embaixada do Uruguai,
onde estava o acusado de um atentado ao presidente. São destacadas a ousadia e
130
criatividade do jornalista, que pôs um cachimbo na boca, disse que era do Itamarati e entrou. Outra repórter ousada do JB à época era Beatriz Bonfim, 23 anos,
filha do jornalista Orlando Bonfim Júnior, que foi diretor de Novos Rumos. Formada em jornalismo na Faculdade Nacional de Filosofia, entrou no JB em 1962.
Beatriz estava na equipe que registrou a primeira-dama Teresa Goulart de biquíni,
em Vitória (ES), e conta à revista ter escapado da prisão pela audácia com que
enfrentou a polícia: “Vocês me levam pra delegacia de maiô e vai ser um escândalo muito maior”. Nem fotos nem reportagem foram publicadas, a pedido do presidente João Goulart. Mas outra reportagem, uma campanha do jornal a favor de
crianças abandonadas, levou Jango a liberar verbas para a causa.
A Realidade cita outras duas campanhas bem-sucedidas, em que o mérito é
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atribuído aos jornalistas, como semi-heróis:
Aquele repórter magrinho, escondido atrás da máquina de escrever, é o responsável
pela campanha que obrigou um parque de diversões a mudar-se do Aterro, em frente ao Morro da Viúva, onde colocaria em sério risco a vida de seus frequentadores
que, para atingi-lo, teriam que atravessar pistas de alta velocidade. O repórter chama-se Jorge Rosa e tem de 23 anos. Mudou um parque de diversões inteiro de lugar e
não é nenhum super-homem. É só um repórter” (MERCADANTE, 1966, p. 137).
Outro repórter, com perspicácia, mostrou onde os pedestres atravessavam o
Aterro do Flamengo, pela observação dos pontos em que a grama havia sido mais
pisada, o que levou à construção de passarelas nestes mesmos pontos. E o jornalista da Realidade emenda: “Os repórteres da editoria de Cidade não esperam
agradecimentos pelos muitos serviços que prestam. A cidade é deles” (p. 137).
Esse mesmo espírito de entrega desinteressada e desapegada do jornalista reaparece na lembrança de ensinamentos de Fontes aos colegas da redação onde ainda
atuava, passadas quase quatro décadas: “Jornalista não tem que se orgulhar de
nada. Jornalista não tem passado. Jornalista não tem futuro. Vive do presente, e o
presente pode ser o olho da rua” (FONTES, em HERKENHOFF, 2010, p. 43).
O editor-chefe, Alberto Dines, é apresentado como um homem gentil e elegante. Carioca, 34 anos, quatro filhos, professor de Teoria de Comunicação no
curso de jornalismo da PUC-Rio e fluente em seis idiomas, sempre lendo muito e
“visitando sempre que pode os grandes jornais do mundo”, que iniciara carreira
como repórter da revista Visão e já havia sido secretário de redação de Manchete,
131
Última Hora, Diário da Noite e Fatos e Fotos. No JB, era este o “o homem que
faz o jornal, que lhe dá forma”, ou seja, o jornal era associado à sua imagem e
semelhança. O repórter da Realidade afirma: “Dines está no cargo há cinco anos
e, nesse tempo, preocupou-se em criar uma redação e um sistema cada vez mais
capazes de produzir um bom jornal”. “Nunca pode estar plenamente satisfeito.
Seu cargo é insaciável e sua missão é extrair todas as potencialidades do barco
cujo comando lhe entregaram” (p. 137). A condessa Pereira Carneiro, presidente
do JB, endossa: “Nesta casa, a ordem é não parar. Ainda temos muito por fazer. E
temos que fazer sempre cada vez mais. Somos pioneiros por hábito. E não perderemos esse costume. Não temos segredos. Temos, sim, uma equipe que funciona
maravilhosamente” (p. 139, grifo meu).
Carioca de Vila Isabel, 37 anos, três filhos, Carlos Lemos43 era o braço direito de Dines, como secretário de redação. Sua trajetória é resumida assim: “BaPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
tizado, o foca saiu à rua. E voltou repórter, com uma matéria para a primeira página. Em alguns dias era o melhor repórter da Tribuna. Em algumas semanas, o
melhor repórter do Rio. Lemos deixou a Tribuna pelo JB, onde está há nove anos,
percorrendo a longa trajetória que leva um repórter à secretaria”.
Apresenta-se a redação, equipada com quatro aparelhos de telex, com três
canais ligados na rede nacional e um na internacional. Dois teletipos recebiam o
noticiário internacional da UPI (United Press International). Telegrama e telefone
e avião (para encaminhar fotos) são outros recursos disponíveis para o editor nacional e responsável pelas telecomunicações do jornal, Amauri Ferreira de Mattos,
que coordena repórteres nas sucursais em Brasília, São Paulo, Belo Horizonte,
Recife, Porto Alegre e Niterói e correspondentes em todas as outras capitais (menos Acre, Mato Grosso, Piauí e Sergipe, por dificuldade de comunicação). Ele
afirma, vaidoso: “Sou capaz de encontrar um homem nosso em qualquer parte da
Terra em que ele se meta” (p. 139).
43
Carlos Lemos, formado na PUC-Rio em 1956, iniciou carreira na Tribuna da Imprensa. Em
1958 chegou ao JB, onde foi repórter, editor de esporte, chefe de reportagem e chefe de redação.
No Sistema de Rádio JB, criou a Rádio Cidade. Roberto Marinho o convidou a dirigir o Sistema
Globo de Rádio. Foi também, no jornal O Globo, subchefe da redação, diretor da sucursal de Brasília e da Agência Globo de Comunicação. Morreu em 2015, aos 86 anos.
132
Luís Edgar de Andrade, cearense de 35 anos que vivera cinco como correspondente do JB em Paris, é era o editor internacional, que além do material de
agências contava com 12 redatores, alguns se especializando: dois em América
Latina, um em África, um em Ásia, um em Inglaterra, um em Europa Ocidental.
“Numa tira de papel, ele tem relacionados os principais fatos em evolução nos
cinco continentes e no espaço”, onde americanos e soviéticos faziam testes para
chegar à Lua com as missões Apolo e Luna-11. Além da cobertura diária, o JB
dedicava ao tema uma página semanal, chamada Jornal do Espaço, sob responsabilidade do redator Roberto Pereira de Andrade, 25 anos, formado em História e
Geografia e o primeiro jornalista brasileiro a se dedicar exclusivamente à astronáutica. “É capaz de descobrir coisas só de olhar uma radiofoto de foguete ou
satélite, já atendeu consulta das embaixadas norte-americana e russa”, destacava a
Realidade. Roberto era do time de dez redatores do Departamento de Pesquisa44,
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criado por Dines em 1963, “para dar subsídios à reportagem geral e produzir reportagens de fôlego sobre temas que exijam grandes levantamentos e estudo”. O
editor, Antonio Beluco Marra, mineiro de 26 anos, apresentou na reunião de pauta
o que havia preparado: para o dia seguinte, a comparação entre os textos da Constituição de 1946 e do novo projeto, pedida por Gabeira; para domingo, três especiais, sobre educação, os marechais do Exército e a cédula única.
Oldemário Touguinhó, 31 anos, era o editor de Esporte, que naquele dia se
dedicava a saber por onde andava Mané Garrincha, sumido desde a volta da Copa;
e o América, “primeiro clube do Rio a se preparar com tanta seriedade para um
campeonato local”, concentrando-se em Araruama. A reportagem destaca a determinação de Oldemário. Em 1958, com a vitória da seleção na Copa da Suécia,
prometeu a si mesmo que estaria na Copa seguinte, no Chile. Um amigo lhe arranjou um estágio no JB, onde foi emplacando furos e conquistando a confiança da
chefia – chegou a parar um avião na pista do Galeão para embarcar um envelope
para Buenos Aires – até ser contratado como repórter esportivo, deixando o mercadinho na Lapa em que trabalhava para pagar as contas. Se tornou um dos mais
respeitados jornalistas esportivos do país, e cobriu dez Copas do Mundo pelo JB.
44
Sobre o Departamento de Pesquisa do JB, Cf. Melo (2014).
133
O paulista Paulo Afonso Grisolli, 32 anos, o editor do Caderno B, “quase
uma revista em formato de jornal”, que naquela sexta-feira traria reportagens ilustradas, colunas de Lea Maria, José Carlos de Oliveira e Fernando Sabino, crônicas
e críticas de teatro, cinema, televisão, religião e artes; a página feminina de Gilda
Chataignier; registros de livros, artes, discos, vida noturna e música popular; a
seção de cartas Pergunte ao João e O que há para ver, “com a programação dos
cinemas até os pratos de força dos restaurantes” (p. 141).
Conforme as matérias vão ficando prontas, são levadas da mesa do chefe de
reportagem para a do secretário de redação pelo contínuo Genário Simões Evaristo, “um crioulo simpático”, apelidado de Jair Marinho pela semelhança com o
jogador. Mercadante se interessa pela figura. O mineiro de 26 anos, que fora pedreiro, padeiro, trocador de ônibus, balconista e faxineiro, estava no jornal havia
três anos. Leitor privilegiado, tinha todas as notícias em primeira mão: “Leio políPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
tica, porque quero ficar por dentro. Leio sobre o custo de vida, pois vivo apertado.
Leio esporte, porque gosto e muito. E leio o resto por costume. Agora, o seu Armando Nogueira eu leio porque ele é o máximo” (p. 141).
Além do contínuo e de Lemos, o secretário, 14 copidesques leem tudo, mas
estes para “pentear” as notícias. O repórter de Realidade registra a tensão:
Os repórteres principiantes temem o copidesque, e este, por sua vez, teme o relógio, que marca o ritmo industrial do seu trabalho. O medo dos novatos é que o cópi
lhes estrague a reportagem, reescrevendo e igualando tudo. Já houve muita polêmica em torno do assunto. Mas, hoje, a maioria dos repórteres compreende que, se
eles são os insubstituíveis garimpeiros da notícia, os homens do cópi – de Marcos
de Castro e Aluísio Flores, que sentam na primeira fila, ao velho José Bandeira
Costa, que ocupa a última fileira – todos são os também insubstituíveis lapidadores
da notícia (MERCADANTE, 1966, p. 142).
Às 23h, Lemos fecha a primeira página com o paginador José Carlos Avellar, 29 anos, então professor da PUC-Rio e assistente da cadeira de diagramação
do curso de Jornalismo da Faculdade Nacional (atual UFRJ). Escolhem duas fotos, uma com dois velhos moradores despejados da Avenida Presidente Vargas;
outra do ministro Paulo Egídio, de quimono, fazendo aula de judô.
Além do glamour da redação, a organização empresarial também é enfatizada pela reportagem da Realidade. Devido à sua Assessoria de Planejamento e
134
Controle, sob o comando do ex-chefe de reportagem e então gerente comercial
Araújo Neto, amazonense de 37 anos, “o JB é possivelmente o único jornal do
país que conhece precisamente todos os seus números e, tanto quanto possível, os
números dos seus concorrentes. E é, certamente, o único que sabe o seu custo real,
dia a dia, página a página, palavra por palavra. Cada palavra que se lê no JB custou à redação 560 cruzeiros. E prontinha, isto é, impressa, chega a 830”. O jornal
vendia então 65 mil exemplares diários e 180 mil aos domingos, e assegurava
faturar mais que qualquer concorrente. “Os classificados chovem nos balcões, as
agências se afeiçoaram ao jornal” (p. 143).
2.2.3. O mais premiado
Trabalhando na interface entre a filosofia e os estudos em jornalismo, Silvia
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Lisboa e Márcia Benetti debatem se a atividade proporciona mesmo uma forma de
conhecimento da realidade. Para as pesquisadoras, o sujeito “deve crer que o jornalismo diz a verdade, e esta verdade deve estar justificada em seu próprio discurso”, portanto o jornalismo “se institui como um conhecimento como crença verdadeira justificada” (LISBOA e BENETTI, 2016, p. 11). Nesse contexto, a credibilidade assume “um lugar central, pois está diretamente relacionada à confiança”
(p. 12). Lisboa (2012, p. 15) propõe a distinção de duas facetas do conceito de
credibilidade: a credibilidade constituída (de quem enuncia) e a credibilidade
percebida (efetivamente atribuída pelo interlocutor). Essa distinção é importante
porque os valores que sustentam a credibilidade percebida – atribuída pelo leitor –
nem sempre correspondem aos valores “canônicos” que desenham o ethos do jornalismo e que são geralmente associados à credibilidade constituída “do jornalismo” ou “do veículo”. A credibilidade tem uma natureza intersubjetiva: para ser
um predicado, não pode ser uma qualidade autoatribuída, é preciso que ela se
forme no contexto de uma relação, dependente da perspectiva de outro sujeito. “A
credibilidade constituída de um orador precisa preexistir à percepção do interlocutor, mas só ganha sentido dentro de uma relação intersubjetiva”.
A credibilidade, portanto, não é algo dado. Será resultado de permanente
negociação de sentidos entre o jornalismo e seu público. Além disso, é preciso
135
considerar a multiplicidade da oferta de bens simbólicos e o caráter eletivo da
recepção e apropriação dos conteúdos midiáticos, bem como o nível de institucionalidade dos veículos de comunicação.
Em tese sobre o Prêmio Esso, Castilho (2010) investigou esse “patrimônio
dos próprios jornalistas”, a identidade profissional e as relações entre imprensa e
Estado (1964-1978), mostrando que organizadores, julgadores e profissionais
premiados reproduzem uma imagem idealizada do prêmio, amplamente difundida
no imaginário do campo jornalístico. Destacam sua contribuição para a valorização do papel do repórter e sua importância no processo de modernização da imprensa a partir dos anos 1950, num claro processo de autorreferenciação em que
as estratégias memoráveis utilizadas nas publicações institucionais tendem a fornecer um lugar simbólico para os próprios jornalistas, tal como buscamos mostrar
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a respeito do Jornal do Brasil:
Falam sobre si próprios, mas seu discurso aponta também para o outro, para a sociedade. Enfatizando o valor da isenção e imparcialidade, tão presente no discurso de
autonomização da imprensa, eles reforçam valores, omitem outros e constroem representações para legitimar o seu papel social (CASTILHO, 2010, p. 13-14).
A exemplo de outros campos da vida social, os jornalistas travam uma luta
pelo poder para ampliar sua ação frente a outros grupos: o poder de dizer, dominar
uma informação inédita, fiscalizar as ações do Estado e reivindicar o estatuto de
intérprete legítimo da realidade. Nesse sentido, as estratégias narrativas de idealização do Prêmio Esso, sintetizando a mítica da profissão, têm forte carga simbólica e se convertem, por isso mesmo, num importante objeto de estudo. Constituindo-se como espaço de poder, o concurso ajuda a definir a autoridade de um determinado grupo e consagrar o “verdadeiro” jornalismo (CASTILHO, 2010, p.
15). O pesquisador identifica que as reportagens premiadas são entendidas no
meio jornalístico como sinônimo de “verdadeiro” jornalismo, tendo em vista o
poder conferido ao concurso de agendar determinados temas em detrimento de
outros e orientar modos de atuação do repórter.
É através desse reconhecimento que adquirem prestígio e notoriedade, capitais simbólicos do jornalismo. Embora se organize como outros campos, onde
dominantes e dominados estabelecem relações de força, o campo jornalístico para
Bourdieu (1997) se diferencia dos demais (jurídico, literário, artístico ou científi-
136
co) por deter um controle real sobre os instrumentos de produção e difusão da
informação. Esse monopólio, porém, não garante autonomia aos seus agentes. O
campo jornalístico sofre pressões externas, exercidas, sobretudo, pelo polo econômico – à medida que jornais dependem de anunciantes, públicos ou privados –,
que por sua vez também exerce influência nas instâncias de consagração. Há, ainda, como ressalta Castilho (2010), uma dependência de ordem simbólica tanto de
jornais como de jornalistas em relação aos grupos econômicos que detêm esses
canais de reconhecimento. “A conquista de prêmios confere capital simbólico
também às empresas para as quais trabalham os jornalistas contemplados”, como
expressa Ruy Portilho, organizador do prêmio à época da pesquisa.
A maioria dos veículos percebe o Prêmio Esso como um reconhecimento às
empresas jornalísticas “por condições de trabalho que elas deram a seus profissionais, abrigados no guarda-chuva da marca” (CASTILHO, 2010, p. 65). Exemplos
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disso são o anúncio de página inteira do Jornal do Brasil, publicado em
31/12/1995; e a cobertura de duas páginas dedicadas à conquista do Prêmio Esso
de Fotografia a Marco Terranova em 16/12/1999, pela foto “Domingo de pavor”,
que registra uma troca de tiros entre policiais e bandidos na orla de Ipanema e
Leblon. O texto da notícia expressa o “orgulho” do centenário jornal de liderar o
ranking da premiação. Ambas, anúncio e cobertura, mostram como o jornal busca
capitalizar ao máximo seu desempenho no concurso, valorizando o fato de que o
“JB é o veículo de imprensa mais premiado do Brasil”.
Observando bem, vê-se que o Jornal do Brasil teve mérito em todas as suas áreas
editoriais. E se olharmos pelo prisma do calendário, veremos a regularidade dos
nossos prêmios. De uma maneira ou de outra, a presença do Jornal do Brasil no
Prêmio Esso é uma constante. Estatisticamente inigualável. É o maior Prêmio Esso
de todos os tempos (JORNAL DO BRASIL, 31/12/1995).
Em 44 edições dessa iniciativa para apontar o que de melhor foi produzido pelo
jornalismo brasileiro no ano, já chega a 70 o número total de vezes em que uma foto, uma reportagem, a cobertura de um caso e uma charge do JB foram laureadas.
Nenhum outro veículo de imprensa pode se orgulhar de colecionar tantos Prêmios
Esso (“JB é o veículo de imprensa mais premiado do Brasil”, Jornal do Brasil,
16/12/1999).
Além disso, o Prêmio Esso, percebido como instância de consagração de um
certo padrão de jornalismo praticado no Brasil, orientou a produção noticiosa
quanto aos temas abordados e aos modos de atuação do repórter. A primeira edi-
137
ção foi lançada em 1956, com o apoio da Associação Brasileira de Imprensa
(ABI), com uma comissão julgadora formada exclusivamente por jornalistas que
participaram ativamente do processo de renovação e aperfeiçoamento dos padrões
técnicos do jornalismo brasileiro nos anos 1950 (CASTILHO, 2010). O concurso
nasceu, portanto, impulsionado pelas mudanças, e encarregado de valorizá-las.
Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo foram os diários que mais souberam se ajustar aos critérios de julgamento no período 1964-1978. Dos 15 trabalhos
consagrados na categoria principal, quatro foram publicados no JB e três no Estadão. A pesquisa de Castilho identificou pressupostos que orientavam o trabalho
das comissões: ineditismo do tema, interesse público, boa técnica de redação,
apresentação geral da matéria, iniciativa do repórter e condições em que o trabalho foi realizado, entre outros.
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Em 1961, a repórter Silvia Donato foi a primeira mulher a ganhar o prêmio
Esso de Jornalismo na categoria principal, com série sobre o fechamento de orfanatos no Rio e a legislação sobre adoção de crianças. O Jornal do Brasil foi o
maior vencedor do Prêmio Esso entre 1964-1978, período analisado por Castilho,
com a consagração das matérias “Cem dias na Amazônia de ninguém” (1964), “O
futebol brasileiro: o longo caminho da fome à fama” (1967), “Volta ao ponto de
partida” (1974) e “As drogas” (1975). Castilho nota que a tipologia de notícia
mais frequente entre 1964 e 1967 recaía sobre o noticiário político, nacional, assuntos do cotidiano da cidade e esportes. Já em 1974 e 1975, a seção política cedeu espaço para a cobertura de economia e internacional. Registra-se que, nos
anos 1970, o país vivia um clima de repressão política, legitimada pelo Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968, e o momento mais intenso do chamado “milagre econômico”.
O que parece ser apenas um parâmetro de prestígio entre os jornais refletia uma realidade do campo jornalístico durante a ditadura militar. O Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo, por uma postura política mais crítica assumida em alguns momentos contra o poder autoritário, gozavam de maior credibilidade e apresentavam
um vínculo maior com seus leitores. Por esse motivo também sofriam uma vigilância mais intensa dos órgãos de segurança (CASTILHO, 2010, p. 275-278).
O fotógrafo Walter Firmo foi o único a ter um trabalho de imagem premiado
na categoria principal do Esso, em 1964, mostrando a beleza e as mazelas sociais
138
da Amazônia. O espaço ocupado pelas fotografias ainda não era significativo.
Gradualmente, o Jornal do Brasil foi substituindo fotos mais ilustrativas por trabalhos de fotojornalismo. O matutino contribuiu de forma decisiva para essa transição ao criar a figura de um editor de fotografia nos anos 1960. Até então o fotógrafo não participava da escolha das fotos a serem publicadas na primeira página,
ficando essa atribuição a cargo do Secretário do jornal. A criação de uma editoria,
acompanhada pelos demais jornais, estimulou a participação dos fotógrafos em
todas as etapas de produção.
Marcelo Pontes45 exalta a tradição do fotojornalismo do JB:
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Os fotógrafos são implacáveis. Enxergam o que o comum dos homens não enxerga. [...] Todos, por mais poderosos que sejam ou por mais inatingíveis que se sintam, se tornam absolutamente vulneráveis diante de um fotógrafo profissional. É
nessa escola que o JB tem invejável tradição. Uma reputação pode ser destruída
com uma foto ou com um texto. A diferença é que a foto não dá chance ao direito
de resposta (PONTES, 1995, em HERKENHOFF, 2010, p. 224)
A partir dos anos 1980, numa outra conjuntura histórica, o papel hegemônico dos dois jornais foi assumido por Folha de S.Paulo e O Globo (CASTILHO,
2010, p. 330-331). O papel hegemônico do Jornal do Brasil e de O Estado de S.
Paulo nos anos 1960 e 1970, corroborado pelas conquistas do mais importante
concurso da imprensa brasileira, seria assumido pela Folha de S. Paulo e O Globo
numa outra conjuntura política, econômica e social. No período da redemocratização, sobretudo a partir dos anos 1990, estes dois diários tornam-se os principais
vencedores do Prêmio Esso de Jornalismo. Dos nove prêmios da Folha de S. Paulo na categoria principal, sete foram conquistados a partir de 1985. No caso de O
Globo, a proporção é a mesma: sete dos nove prêmios foram obtidos a partir de
1994. Já o Jornal do Brasil, diário com maior número de prêmios durante a ditadura militar, teve um desempenho inverso: venceu pela última vez na categoria
principal em 1990, momento que coincide com uma profunda crise financeira do
periódico (CASTILHO, 2010, p. 275-278).
Com nove prêmios na categoria principal (com destaque para José Gonçalves Fontes), o JB quase não disputaria mais com chances. Em 1990, Teodomiro
45
Marcelo Pontes, jornalista cearense, iniciou carreira no jornal O Povo (1964-1970), passando
depois por Veja (1970-73), O Globo (1973-1984), Jornal do Brasil (1984-1998), onde chegou a
diretor de redação.
139
Braga e Teresa Cardoso venceram o prêmio principal com reportagem sobre a
retirada da candidatura do apresentador de TV Silvio Santos à Presidência da República. Em 1999, Marco Terranova, ao receber o prêmio Esso de fotografia pelo
JB, sem explicitar a penúria do jornal, discursou:
A fotografia do JB é aguerrida e vai à luta. A gente veste a camisa mesmo, sobra
raça aqui. Tudo isso se deve ao ótimo ambiente de trabalho. O prestígio pela premiação não é só meu. Todos no JB ganharam com esse prêmio, que dá ânimo e renova as energias” (em HERKENHOFF, 2010, p. 242, grifos meus).
Alfredo Herkenhoff lembra que o prêmio, o principal reconhecimento da
profissão, é atribuído por jornalistas indicados pelos principais jornais do país, e
também são os próprios jornais que indicam as reportagens concorrentes. Ou seja,
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desde o início o processo envolve tanto estratégias quanto preferências de ocasião:
Muitas vezes os jornais têm reportagens melhores do que os nomes que vão representá-los no julgamento. Do mesmo modo, há edições do Esso em que jornais têm
julgadores mais competentes do que as matérias inscritas na competição. Apesar de
todos os percalços, polêmicas e até algum boicote, o Esso, entre pequenas desavenças e até injustiças na hora de conferir os prêmios, mantém a imagem de principal
condecoração jornalística do Brasil (HERKENHOFF, 2010, p. 243).
2.2.4. A “tradição de inovar”
Outro aspecto que sobressai no discurso identitário e autorreferente do e sobre o Jornal do Brasil é a postura de “vanguarda” pela qual era reconhecido e se
reconhecia. De “inovador”, revolucionário, de vanguarda, o jornal passa com o
tempo a ser identificado como detentor de uma “tradição de inovar”, essência de
sucessivos discursos autorreferentes do jornal a cada uma das reformulações por
que passou, desde a reforma dos anos 1950/60, até passar exclusivamente à plataforma digital, em 2010, e de novo em seu curto relançamento, entre 2018-19. Tal
singularidade, incorporada e reforçada pelos jornalistas, passa a ser um valor de
distinção e legitimação do veículo. Wilson Figueiredo lembra que Luiz Paulo
Horta, que veio a ser editorialista de O Globo, o procurou e perguntou: “O que
faço para ser do Jornal do Brasil?”. Eu falei: a primeira coisa para que você se
firme num jornal é ser um tanto imprudente. Porque você se amarra se tiver medo
de assunto. Faz falta uma pitada mínima de imprudência (FIGUEIREDO, em RIBEIRO, 2015, p. 79).
140
Como vimos, jornalistas ressaltam o espírito do “novo” que promoveram.
Como se constata na euforia memorialística predominante em torno da chamada
modernização do JB e da imprensa brasileira, mais do que a celebração do novo,
valoriza-se o fato de ser uma ruptura: a crítica do passado imediato, a interrupção
da continuidade – como Janio de Freitas, Ferreira Gullar, Wilson Figueiredo e
Alberto Dines afirmando que os antecessores não eram jornalistas. Ana Arruda
Callado reforça a unanimidade em torno do JB dos anos 60, o mito de origem pela
ruptura: “Aquele jornal de classificados se transformou no mais charmoso, mais
bem escrito e mais importante deste país” (CALLADO, 2010). Como é próprio
dos jornalistas, Nilo Dante46 e Roberto Quintaes lançaram mão de uma comparação enfática para indicar este momento como fundante: “o Big Bang” na imprensa
dos anos 1950. Eis o mito de origem, nas palavras dos jornalistas, que participaram deste momento:
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A escalada triunfal do Jornal do Brasil foi detonada na segunda metade da década
de 1950 – os tais anos dourados da mídia brasileira – em que tudo aconteceu: a célebre reforma do Diário Carioca, o advento da televisão, o lançamento do jornal
Última Hora e da revista Manchete. Quem deu o disparo inicial foi o inesquecível
Odylo Costa, filho, um humanista de alta voltagem, maranhense e católico como a
condessa Maurina Pereira Carneiro, dona do jornal, nomeado diretor de redação em
meados de 1956. Odylo era um visionário que adorava jornal. Percebeu e teve a sabedoria de absorver a renovação introduzida pelo grande Pompeu de Souza no Diário Carioca, de onde pinçou jovens de talento incomum como Armando Nogueira,
Evandro Carlos de Andrade, José Ramos Tinhorão, Ferreira Gullar e outros
(DANTE, em HERKENHOFF, 2010, p. 22).
Houve um momento em que essas pessoas, esses corações e mentes se juntaram e
fizeram do Jornal do Brasil o jornal de referência nacional e internacional. Nós
passamos a ser o The New York Times do Brasil. Lá fora, quando eu viajava, os telegramas da Associated Press, quando queriam falar sobre a situação do Brasil, informavam: O influente Jornal do Brasil, em editorial hoje...”. Eu nunca vi um telegrama dizer “O influente Globo...”. O Correio da Manhã ainda teve isso, antes47.
Mas o Jornal do Brasil se consolidou com pessoas criativas que se uniram. E foi
isso que fez um grande jornal, as pessoas. Corpo e alma. É muito difícil explicar.
Muito mal comparando, como é que surgiu o universo? É muito fácil dizer que foi
o Big Bang. Mas quem é que apertou aquele negócio que causou o Big Bang?
(QUINTAES, em RIBEIRO, 2015, p. 67-68, grifo meu).
46
Nilo Dante, em mais de 50 anos de profissão, trabalhou em 10 jornais e quatro revistas semanais
do Rio. Foi diretor de redação dos jornais Tribuna da Imprensa, Diário de Notícias, Última Hora,
Jornal do Commercio e Jornal do Brasil, secretário de redação do Correio da Manhã e correspondente internacional de O Globo nos anos 1960. Trabalhou pela primeira vez no JB em 1958, levado por Odylo Costa, filho, e voltou em 2002, a convite de Ricardo Boechat. Dirigiu a redação de
agosto de 2002 a junho de 2003 (HERKENHOFF, 2010, p. 31).
47
Luiz Alberto Bahia diz que o cargo de editor-chefe do Correio da Manhã equivalia ao de ministro. “Talvez mais que ministro. O Correio era muito importante” (ANDRADE, 1991, p. 103).
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141
Figura 2: O anúncio com depoimento de Luiz Orlando Carneiro.
Acervo: Luiz Orlando Carneiro
Investindo na autopropaganda a cada reforma editorial ou gráfica ou em
comemorações de aniversário, o Jornal do Brasil publicou um anúncio de revista
em 1986, quando completou 95 anos. A escolha não foi por um slogan, nem por
um comunicado da diretoria, e sim um longo texto de uma prata da casa, o jornalista Luiz Orlando Carneiro. Ao contar sua trajetória no jornal, Carneiro destaca a
independência e experimentação do veículo, cuja origem situa na reforma dos
anos 1950, e que atribui à presidência da empresa:
142
A condessa Pereira Carneiro e o dr. Britto deram carta branca para as ideias dos
jornalistas. Então a redação do Jornal do Brasil tinha independência. Não independência de cada um escrever o que quer. Havia uma linha bem definida, uma linha
democrata-liberal, mas a direção do jornal era aberta a coisas novas” (CARNEIRO, em RIBEIRO, 2015, p. 67, grifos meus).
Ainda em 1986, Maria Regina Brito organizou a publicação Jornal do Brasil 95 anos, apresentada pelo presidente do jornal, M.F. do Nascimento Brito. Curioso é que nesta publicação, do mesmo ano do anúncio com depoimento de Luiz
Orlando Carneiro, M.F. do Nascimento Brito busca criar imagem austera e discreta do jornal, como se a autoexaltação fosse uma exceção na história do JB. E o faz
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alegando valores jornalísticos: os fatos, a isenção, a liberdade em primeiro lugar.
O Jornal do Brasil tem por norma não se valer de efemérides para emitir conceitos
e opiniões. O compromisso jornalístico é com os fatos e deles – por via da notícia –
derivam os comentários. A norma prevalece indistintamente para as datas cívicas e
as que constituem referências universais. Pessoas, nações ou instituições valem pelo que são ou fazem, e não pelas datas que as cultuam. A severidade e a isenção
nos impõem – prova de respeito pelos leitores – recato e modéstia: notícia são os
outros. Nós fazemos jornal. [...]. A passagem dos 95 anos do JB importa muito para nós que nele trabalhamos. Abriremos uma exceção, mas não nos cabe celebrar a
data senão como oportunidade de reafirmação do compromisso com os valores que
se compõem em torno da liberdade.
O grande esforço de modernização do Jornal do Brasil, nos últimos 28 anos, deve
ser reconhecido à força da sua persistência: reformar para sobreviver, e atualizar
como forma de honrar o passado. [...] o Jornal do Brasil reflete em sua vida todas
as fases da evolução técnica, da composição manual dos tipos aos computadores,
com o testemunho de que a liberdade dignificou sempre o nosso trabalho (BRITO,
1986, p. 5, grifos meus).
Uma das expressões mais representativas desse ideário de modernidade no
JB foi o SDJB, seguido pelo Caderno B, em 1960, que segundo o jornalista João
Máximo “abraça todos os movimentos jovens ou modernos” (2010). Natural de
Caratinga, interior de Minas, a jornalista Miriam Leitão48 lembra que já antes dos
18 anos, na virada para a década de 1970, pedia a quem fosse ao Rio que voltasse
com o JB de todos os dias, velho mesmo. “Eu lia com grande prazer, porque a
matéria era muito mais completa, o Caderno B era inigualável e as matérias de
comportamento eram modernas, atrevidas” (SALLES et al., 2010). Por ocasião
dos 20 anos do caderno de cultura, em editorial que exalta sua “vocação vanguardista”, o jornal situa o caderno surgido na reforma “que procurava refletir na im48
Miriam Leitão chegou ao JB na década de 1980, ela chegou ao JB para cobrir as férias de Zózimo. Ficou responsável pelo espaço durante seis meses, e passou a repórter de Economia, colunista
e editora, em 1986.
143
prensa a criatividade ao redor: Bossa Nova, concretismo, a industrialização, Brasília, JK”. Anuncia uma nova fase como “o resgate de uma tradição”, iniciada
pelo JB com o “lendário” Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, que preenche um espaço, “desde então vazio”, para o debate da cultura (B, 22/9/1985, p. 5).
A edição comemorativa dos 30 anos do Caderno B, em 1990, foi, nesse sentido, exemplar. Teve duplo propósito de enaltecer o passado glorioso do suplemento e anunciar suas mudanças e “renovações”: “O B chega agora aos seus 30
anos aplaudindo a história e iniciando uma nova fase. [...] o B, mesmo balzaquiano, ainda aposta na renovação. E quem ganha com isso é o leitor” (B, 15/9/1990,
grifo meu). Neste editorial, o jornal reconhece que está reciclando antigas ideias,
atribuindo valor a este recurso – “a capacidade de sempre se renovar”, como escreveu o editor Artur Xexéo (B, 15/9/1990, p. 1). Ao definir o Caderno B, Xexéo
tenha defendido no editorial da edição comemorativa uma significativa tese: “Se
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há alguma coisa em comum nestes mais ou menos 11.000 cadernos B dos últimos
30 anos é a capacidade de sempre se renovar” (XEXÉO, B, 15/9/1990, p. 1).
Em dezembro de 1999, quando é reformulado e passa a rodar na gráfica de
O Dia, o JB estampa na página 3 a manchete “Tradição de pioneirismo: JB inaugura nas suas páginas impressão offset, fruto de parceria com O Dia, e reencontra
sua origem inovadora”, com Fritz Utzeri assumindo a direção da redação, em lugar de Noenio Spinola, e Maurício Dias (ex-editor de Informe JB e Cidade) como
editor-chefe. O foco, desta vez, seria a inovação gráfica, com destaque para as
“diagramações arrojadas”. Por esse motivo o editorial busca naquele dado passado
do jornal, símbolo da ruptura, o nome do artista plástico Amilcar de Castro para
chancelar a repaginação de então, uma continuidade: “As mudanças implementadas por Amilcar de Castro foram o pontapé inicial em uma série de inovações que
fizeram do JB uma referência no design gráfico brasileiro” (JB, 12/12/1999, p. 3):
O Brasil assistia a um renascimento cultural. A bossa nova ensaiava as primeiras
batidas, o Cinema Novo lançava as suas bases em filmes como Rio 40 graus e a
poesia concreta chacoalhava o marasmo literário do país. Poetas, ensaístas e intelectuais engajados eram figurinhas fáceis nas redações. Editado por Reynaldo Jardim, o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil é um espaço para experimentações e canal aberto para todas as manifestações de arte. Inclusive as gráficas (JB,
12/12/1999, p. 3).
144
São apontados ainda como “marcos do ineditismo e experimentação do JB”
a revista Domingo, criada em 1975, “primeira experiência de revista encartada em
jornal diário” que “traduz, por todos estes anos, a alma do carioca”; o caderno
Cidade, “que entre 1986 e 1988 introduziu por aqui os subtítulos nas matérias”; a
revista Programa, desde 1986 antecipando na sexta-feira “as boas do fim de semana” e os espetáculos recomendados; a revista Zine, voltada ao público jovem,
em 1992; o caderno Mulher, em 1996; a SuperTV, em 1997.
Já sob o controle do empresário Nelson Tanure, em 2004, o Jornal do Brasil
publicou o especial JB 113 anos. Destaca que, no período do pós-Guerra, “o jornal cresce como empresa e torna-se formador de opinião no país” (JB, 6/4/2004,
p. 12), e uma vez mais celebra a mítica reforma dos anos 1950-60 e o Caderno B,
“primeiro caderno dos jornais brasileiros a reunir apenas as notícias relativas a
variedades e tornou-se uma referência da cultura, do comportamento e do estilo de
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vida do Rio de Janeiro” (JB, 6/4/2004, p. 12).
Em 2005, ao lançar a última reforma gráfica e editorial do JB, reduzido para
o tamanho berliner, Nelson Tanure fez novo rearranjo das míticas ao anunciar a
“novidade” de que o periódico de 115 anos de história, “coerente com sua tradição de pioneirismo e modernidade, se coloca mais uma vez à frente do seu tempo” e se tornaria “um diário diferente, novo, melhor”, realizando “significativo
esforço para redimensionar o hábito de ler jornal no Brasil”:
O Jornal do Brasil não quer ser necessariamente o maior diário do país – aquele
que ambiciona medir sua grandeza nos critérios frios de tiragem e circulação. Sabemos dos efeitos positivos e negativos – e inevitáveis – que os novos meios de
comunicação trazem para uma atividade tão tradicional como a da produção de um
jornal impresso diariamente. Estamos nos adaptando. Com a força da tradição,
inovando (TANURE, 1º/5/2005, grifo meu).
Cabe refletir sobre as aparentes contradições contidas nesta expressão de
identidade: como ter tradição e simultaneamente ser moderno, exaltar o novo? E
como ser expressão de uma “tradição de vanguarda”, se vanguarda seria a quebra
da tradição, do que havia antes? Entende o senso comum que a tradição é, por
excelência, o antigo, e a continuidade do passado no presente. Ao tratar da “tradição moderna” da poesia no Ocidente – cujo lastro poder ser ampliado –, Octavio
Paz a descreve como “a transmissão, de uma geração a outra, de notícias, lendas,
145
histórias, crenças, costumes, formas literárias ou artísticas, ideias, estilos” (1984,
p. 17-18). Em consequência, observa, a interrupção na transmissão equivale à
quebra de uma tradição. Desde o início do século XIX, se pensa a ruptura como
uma forma privilegiada da mudança. Mas como chamar de tradição a ruptura, que
é nada mais que a destruição do vínculo ao passado, a negação da continuidade?
Sendo assim, a tradição da ruptura implica não somente a negação da tradição,
como também a da ruptura.
Paz supera a aporia ao entender que o moderno é uma outra tradição – “uma
tradição feita de interrupções, em que cada ruptura é um começo” (1984, p. 1718), mantida pela repetição do ato sucessivas vezes, atravessando mesmo gerações. Nas palavras de Paz, a modernidade nunca é ela mesma; é sempre outra.
Desaloja a tradição imperante, e imediatamente dá vez a outra. “Nem o moderno é
a continuidade do passado no presente, nem o hoje é filho do ontem: são sua rupPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
tura, sua negação. O moderno é autossuficiente; cada vez que aparece, funda a sua
própria tradição” (PAZ, 1984, p. 18), a tradição da ruptura.
Com a modernidade, a hegemonia não é mais da tradição, e sim do futuro
do projeto. A ideia de progresso vigorou por dois séculos, desde a prensa de Gutemberg até a invenção do computador, quando o tempo se torna tão acelerado
que dá mesmo a impressão de estar parado. Com a modernidade, as grandes narrativas de origem e os mitos do passado dão lugar a outras narrativas e trazem novos
mitos, voltados para o futuro – um futuro feliz, pressupondo a emancipação do
homem e a aceitação da irreversibilidade do tempo, trilhando caminhos diferentes
dos outrora traçados pela tradição.
A emergência do discurso normativo da modernização na imprensa trouxe
consigo uma série de valorizações e tentando delimitar o jornalismo, definindo-o,
por exemplo, pelo seu apego ao fato e à ideia de um mundo bipartido irreconciliável, com oposições bem delimitadas entre natureza x sociedade, ficção x realidade, objetividade x subjetividade. Dita concepção está associada a valores que buscam diferenciar o jornalismo de outros, como o sensacionalismo, a ficção, a literatura, e a procedimentos operacionais – regras para o que seria considerado como o
bom funcionamento dessa prática específica (JÁCOME, 2017). Essa narrativa
146
apregoa que, de um jornalismo amador e despreparado, teríamos passado abruptamente a outro, novo – uma ruptura.
Como se disse, não foi de repente que o jornalismo acordou “moderno”. O
adjetivo já era empregado na autodefinição de jornais desde o início do século
XX, anunciando aos leitores investimentos em equipamentos e em inovações,
caso dos já citados editoriais do JB desde 1900. Em 1903, O Estado de S. Paulo
menciona a nova técnica do jornalismo moderno, chamada interview, adotada no
Correio da Manhã, jornal carioca, que em 1906, apresenta novo suplemento dominical e promete aos leitores: “com o tempo, iremos introduzindo novas reformas de modo a tornar o suplemento do Correio da Manhã a par de todos os progressos da imprensa moderna (CORREIO, 1906). Em 1919, o Jornal do Brasil
anunciava novo serviço telegráfico com a Associated Press, “agência que trazia
notícias as mais diversas para os órgãos de informação modernos” (JÁCOME,
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2017, p. 8).
Em todos os casos, o adjetivo “moderno” é empregado no sentido de “atual”, de adequação ao tempo presente, seguindo um acúmulo, um aperfeiçoamento,
uma atualização. É o sentido do termo na virada do século XIX e início do XX.
No entanto, na segunda metade do século XX, o adjetivo moderno parece tomar
contornos específicos nos discursos autorreferentes das diversas mídias informativas brasileiras. Isso porque adquire também a força de um conceito que passa a
valorizar um tipo específico de prática, buscando delimitar o que deveria ser entendido propriamente como jornalismo (JÁCOME, 2017, p. 12).
Os jornais daquela virada de século eram diferentes entre si, na forma (matutinos ou vespertinos, por exemplo) e nos princípios: a serviço de grupos políticos, atuando nas belas letras, se propondo a emitir e formar a opinião dos leitores.
Havia, portanto, uma pluralidade da própria ideia de jornalismo. Já na segunda
metade do século XX, os produtos jornalísticos se tornam muito mais homogêneos. Falando de jornais franceses em 1994, Bourdieu atribui isso em parte ao fato
de a produção estar sujeita a constrangimentos organizacionais:
As diferenças mais evidentes, ligadas sobretudo à coloração política dos jornais
(que, de resto, é preciso dizê-lo, se descolorem cada vez mais...), ocultam semelhanças profundas, ligadas em especial às restrições impostas pelas fontes e por to-
147
da uma série de mecanismos, dos quais o mais importante é a lógica da concorrência. Diz-se sempre, em nome do credo liberal, que o monopólio uniformiza e a
concorrência diversifica. Mas observo que, quando ela se exerce entre jornalistas
ou jornais que estão sujeitos às mesmas restrições, às mesmas pesquisas de opinião, aos mesmos anunciantes (basta ver com que facilidade os jornalistas passam de
um jornal a outro), ela se homogeneíza (BOURDIEU, 1997, p. 30-31).
Se a antiga tradição era sempre a mesma, e postula a unidade entre o passado e o hoje, a moderna é sempre outra, diferente. Essa sucessão de rupturas é também uma continuidade, que pode alternar a novidade com a retomada do antigo –
como tantas vezes se observa na história do Jornal do Brasil: “O culto ao novo, o
amor pelas novidades, surge com uma regularidade que não me atrevo a chamar
de clínica, mas que tampouco é casual. Há épocas em que o ideal estético consiste
na imitação dos antigos; há outras em que se exalta a novidade e a surpresa”
(PAZ, 1984, p. 19).
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Octavio Paz destaca que a novidade, no século XVII, não era crítica nem
trazia a negação da tradição. Ao contrário, afirmava sua continuidade: “Novidade,
para eles, não era sinônimo de mudança, mas de assombro”, e cita Gracián ao
entusiasmar-se diante de obras de seus contemporâneos, não porque seus autores
tenham negado o estilo antigo, mas porque oferecem novas combinações dos
mesmos elementos.
O que distingue nossa modernidade das modernidades de outras épocas não é a celebração do novo e do surpreendente, embora isso conte, mas o fato de ser uma
ruptura: crítica do passado imediato, interrupção da continuidade. [...] O novo não
é exatamente moderno, salvo se portador da dupla carga explosiva: ser negação do
passado e afirmação de algo diferente. [...] O novo nos seduz não pela novidade,
mas por ser diferente; e o diferente é a negação, a faca que divide o tempo em antes
e agora (PAZ, 1984, p. 20).
Sevcenko (1998, p. 42-43) observa como as pessoas agregam a si signos e
sentidos que conotam a força e o prestígio da “modernidade”. Marina Colasanti,
em sua crônica de volta ao JB na reforma de 2005, se pergunta sobre essa cobrança quanto ao “novo”:
Éramos moderníssimos. Não sei se ainda saberíamos produzir uma modernidade
igual àquela. [...] O nosso desafio agora é fazer um caderno tão novo quanto aquele
que fizemos juntos. Existe o novo?, me pergunto. Um novo desvinculado de tudo o
que o antecedeu, um novo primeiro, inaugural, que nasce consigo? (COLASANTI,
B, 1º/5/2005, p. 3, grifos meus).
148
Quanto a esta quebra, a esta falta de coesão em relação ao passado, vale trazer ainda sua estreita ligação com uma concepção de modernidade que a entende
como uma ruptura radical com o passado. Esta suposta ruptura leva a enxergar o
mundo como uma tábula rasa, sobre a qual o novo pode ser inscrito sem referência ao passado. Ele chama de mito essa ideia de modernidade, porque “a noção de
ruptura radical tem certo poder de persuasão e penetração diante das abundantes
evidências de que não ocorre nem pode ocorrer” (HARVEY, 2015, p. 11).
Se a história é a ação, a experiência dos sujeitos sociais concretos, que produzem a sua vida social, estes sujeitos não fazem isso sem atribuir significação a
essas práticas. A memória vai ser um dos elementos fundamentais de atribuição
desses sentidos. Os jornalistas dão sentido a essa prática de construção dessa história ancorados numa memória de certa forma mistificada e nostálgica em relação
ao grande modelo dessa prática, que é o Jornal do Brasil dos anos 60. É uma hisPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
tória que se constrói ancorada numa memória, ligada a um ideal, a que sempre se
remetem. Uma das marcas mais recorrentes no discurso dos jornalistas é a construção de um dado ideal de modernidade. “A cada década, uma nova modernidade
é construída. Ao considerar a modernização como espécie de palavra de ordem,
utilizam-na também como signo da identidade do grupo” (BARBOSA, 2007, p.
80). Esta ancoragem é percebida num contínuo esforço de “renovar sem perder a
tradição”. É exemplar a fala do ex-editor do Caderno B Gustavo Vieira:
Quando eu assumi o Caderno B (1993), tivemos a preocupação de preservar toda a
tradição do mais importante caderno cultural do Brasil. Porém, sem alimentar nem
transparecer na linha editorial um certo saudosismo, principalmente porque tínhamos que atender a novas gerações de leitores (VIEIRA, 15/1/2016, à autora).
E é seguido por editores que lhe sucederam. Anabela Paiva é uma das que
empregam a exata expressão: “O B que editei era um caderno que procurava inovar e surpreender” (PAIVA, 14/1/2016, em entrevista à autora). Mario Marques,
editor de 2007 a 2009, disse acreditar que a grande característica do B no
seu período “foi voltar a apostar” (MARQUES, 1/3/2016).
Assim, o passado mítico do JB se constrói a partir de mitos de origem mas
também aponta para um futuro de possíveis realizações. E construiu-se, dessa
forma, uma cadeia de sentidos atribuídos ao jornal e a seus jornalistas, retroalimentada por ambos, gerando uma circularidade:
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Figura 3: Circularidade do discurso.
Nesses discursos memoráveis estão superpostos em camadas o antigo e o
novo, sendo o antigo sempre um parâmetro – ora imitado, ora rechaçado – em
torno da construção de um modelo que chamo de “tradição de vanguarda”, a partir
de derivações adotadas pelo próprio jornal e por seus jornalistas, que nele se ancoraram. Ainda que se projete para o futuro, tem no passado sua âncora, seu padrão
de excelência. Um passado que é idealizado, mitificado, que usa a memória para
produzir essas âncoras. Nos momentos de crise, elas foram reformadas, mas tendo
como referência o mesmo modelo de modernidade e ruptura, tão paradigmático
que a memória dele não consegue se desvencilhar. Ao “mudar sempre” (ao menos
no discurso), o JB teria se mantido fiel à “tradição de inovar”. O reforço da ideia
de ruptura termina por reforçar uma continuidade – uma tradição. É a imagem de
moderno e vanguardista, calcada na ideia de ruptura, e na ressignificação desta em
tradição, que ancorou a sobrevivência de um ideário que cerca o veículo.
150
2.3. Apogeu e declínio: Avenida Brasil 500
Em 1973, Alberto Dines comandou a mudança do ambiente “caótico e apertado” da redação da Avenida Rio Branco pelo espaço generoso e organizado do
prédio da Avenida Brasil. Era, novamente, como no luxuoso prédio da Rio Branco
do início do século, um monumento à modernidade e à ostentação. Para ver e ser
visto, não mais pelos passantes da Rio Branco, mas pelo ir e vir dos carros, pela
frente e por trás, na Avenida Brasil e no viaduto da Perimetral, no acesso ao Centro.
A mudança da Avenida Rio Branco para a Avenida Brasil 500 é apontada
como uma das causas da crise econômica que o Jornal do Brasil começou a enfrentar nos anos 1970. O prédio é um marco histórico da arquitetura moderna no
país. Mas foi conceituado para um tipo de jornal baseado ainda na linotipia, que
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tinha seus dias contados. Além disso, a direção da empresa dava como certa a
conquista de concessão para abrir uma emissora de TV. Como o JB foi preterido
em favor de outros grupos, acabou abrindo espaços ociosos e transformando a
nova sede num prédio superdimensionado.
Um caderno especial apresentou aos leitores o “edifício concebido para o
ano 200049”, ressaltando que, “numa conjugação de bom senso e exigência de
qualidade, jamais foi contratado o mais barato, sempre o melhor”. O prédio de
oito andares, em vidro e mármore, coroado por um heliporto no topo, foi projetado para suportar a expansão da empresa por 70 anos, até 2040. Podia abrigar cerca
de 1.500 pessoas. Tinha seis elevadores eletrônicos, 1.200 janelas, 500 portas, 750
aparelhos telefônicos. O prédio chegou a consumir energia elétrica suficiente para
abastecer uma cidade de 9 mil habitantes. “O JB parecia o jornal mais rico do
mundo” (HERKENHOFF, 2010, p. 82). As 20 unidades de rotativas permitiam a
impressão de até 70 mil exemplares por hora de um jornal com 160 páginas.
Comparativamente, na sede da Gonçalves Dias, o JB saía com seis páginas editoriais (FRAGA JR, 2014). O JB estava então no auge, com tiragem média tendendo
a 200 mil exemplares (HERKENHOFF, 2010, p. 75).
49
Curiosa e tristemente, o jornal concebido para o ano 2000 deixaria a sede monumental em 2002.
151
Colaborador do jornal por 15 anos, o poeta e cronista Carlos Drummond de
Andrade foi quem apresentou aos leitores a mudança e o novo prédio, lembrando
o anterior, na capa de caderno especial em 15 de agosto de 1973. A casa do jornal, antiga e nova (nos Anexos) registra o advento e os inventos da diagramação –
“Reestruturam-se os cacos/do cosmo/em diagramação geométrica”, “No branco
da página explode/Todo jornal é explosão”, rotinas profissionais (“Na superfície
impressa/ ficam as pegadas/ da marcha contínua: /letra recortada/ pela fina lâmina/do copydesk”); a fotografia, em provável referência ao emblemático flagrante
de Janio Quadros (“foto falante/ de incrível fotógrafo /onde colocado: na nuvem?
na alma do presidente?”); o espaço aberto à arte da charge e do humor (“libertário
humor/ da caricatura/de Raul e Luis/ a – 50 anos depois – Lan e Ziraldo”), um
pot-pourri (“casa entre terremotos/óperas, campeonatos, revoluções/ plantão de
farmácias/dividendos, hidrelétricas/ pequeninos classificados de carências urgen-
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tes, casa de paredes de acontecer/chão de pesquisa”). É a casa da notícia/ com
degraus de mármore e elevador belle époque/alçada em torre e sirena”, que “chama os homens a compartir o novo no placar nervoso dos telegramas”. A casa que
“ganha nova dimensão/ nova face/sentimento novo/ diversa de si mesmo/e continuamente pousa no futuro/navio locomotiva jato sobre as águas, os caminhos/os
projetos brasileiros/usina central de notícias cravada na estrela dos rumos” (ANDRADE, 15/8/1973, p. 1).
Figura 4: O prédio da Avenida Brasil 500. Acervo Rogério Reis.
152
A ideia da direção, diante da crise do papel jornal e do crescimento do mercado televisivo, era formar um complexo jornalístico com base no audiovisual
para divulgar seus produtos e atingir uma fatia maior do mercado consumidor.
Porém, a construção do prédio da Avenida Brasil, com financiamento atrelado ao
dólar, e na expectativa da concessão de um canal de televisão que nunca se concretizou, fez com que o Jornal do Brasil logo começasse a dar sinais da crise interna da qual nunca se recuperou e que culminaria com a falência (MOTTA, 2018;
LIMA, 2006).
O prédio era três ou quatro vezes maior, o que permitiu contratar novos jornalistas. “Em termos de conforto, era muito melhor. Enquanto na Rio Branco a
gente convivia com cheiro de chumbo, na Avenida Brasil não tinha esse problema”, contou o jornalista Sérgio Fleury, que viveu a mudança. Mas o prédio ficava
isolado numa área de difícil acesso a pedestres: “Mas gente ficava muito longe, o
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acesso era um horror. A gente só conseguia sair de carro, tinha Kombi pra levar
repórter pro Centro da cidade” (FLEURY, em MELO, 2014, p. 90).
Joaquim Ferreira dos Santos lembra que era preciso andar pelo menos 500
metros até São Cristóvão para comer alguma coisa diferente do repetitivo cardápio dos restaurantes do prédio, apelidados de “PTB”, mais popular, e “UDN”,
mais caro, para editores.
A redação monumental tornara-se a mais bonita do país. O prédio era um escândalo
de modernidade arquitetônica: heliporto no cocuruto, mármores no saguão da entrada – e gastos. [...] Sobravam luxo e mão de obra: a editoria de Turfe tinha um
repórter, Oscar Griffiths, encarregado apenas da cronometragem dos treinos dos
cavalos pela manhã (SANTOS, 2016).
Sérgio Fleury deu outros exemplos:
A gente considerava aquilo um elefante branco, uma megalomania. Detalhes que
eram totalmente desperdício de dinheiro. Eu lembro que nos elevadores tinha uma
plaquinha dos andares que de noite eram trocadas. [...] Tinha um andar [previsto
para a TVJB] que nunca foi usado. Então aí começou o declínio do JB (FLEURY,
em MELO, 2014, p. 90).
O jornalista considerava que este isolamento se refletiu na distribuição interna da redação. O excesso de espaço acabou por separar os jornalistas. As baias
da Primeira Página e as salas da diretoria eram o núcleo central da redação, divi-
153
dida em dois blocos, em forma de H: uma haste, de frente para a Avenida Brasil,
com Cidade, Esporte, Caderno B e demais suplementos; e a outra, voltada para o
Porto, com Política, Economia e Internacional. Fotografia, Arte e Pesquisa em
salões individuais, à parte. “A Primeira Página dividia a redação entre Bélgica e
Índia, representadas, respectivamente, pelo pessoal de terno e mais circunspecto
da Política, Economia e Internacional, de um lado; e a turma mais ruidosa e informal de Cidade, Esporte e Caderno B, de outro”, definiu o jornalista Mair Pena
Neto (HERKENHOFF, 2010, p. 149), que frequentou as duas bandas da redação,
como repórter (correspondente internacional de Fórmula 1) e redator de Esporte,
editor de Política e repórter especial de Economia. Mas havia momentos em que
todos se reuniam – em happenings na fila do carrinho do café, e na esperança de
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que o jornal se reerguesse:
Quem trabalhou na Avenida Brasil 500 viveu a delícia de fazer ainda por bom tempo o melhor jornal do país e a dor da crise permanente que levou o nosso JB para o
buraco. Mas, mesmo nos tempos difíceis, os jornalistas sabiam ser ousados e criativos, como nas históricas assembleias em frente à primeira página [...]. Cada integrante da redação se sentia um pouco dono do jornal e não havia o menor temor
de manifestar insatisfações frente às chefias. O JB tinha uma estrutura horizontal,
que sempre foi um dos seus trunfos. As assembleias para discutir os atrasos salariais se mudaram posteriormente para o bandejão, no sétimo andar, onde João Saldanha administrava os ânimos exaltados sugerindo que fossem resolver a questão lá
fora porque a 500 metros da empresa não tinha justa causa. Mesmo em momentos
duros, com a insensibilidade de diretores sem ideia do que era um jornal, e, particularmente o Jornal do Brasil, tentando cooptar jornalistas com promessas de carreiras em Y e cestas de Natal, gentilmente repassadas a instituições de caridade, ninguém sonhava ser convidado para outro lugar. A esperança sempre foi salvar o JB,
o melhor lugar para se trabalhar na imprensa brasileira (PENA NETO, em HERKENHOFF, 2010, p. 149, grifos meus).
O jornal foi lentamente descarrilhando, com o avanço da precarização das
condições de trabalho. O acúmulo de problemas de gestão e revezes de natureza
conjuntural política e econômica tornaram cada vez mais aguda a saúde financeira
do jornal, a partir dos anos 1980. Para o jornalista e pesquisador Cezar Motta, foi
o declínio do “jornal empresa” do JB dos anos Dines. Herkenhoff vê diferente: “O
JB não teve tempo de se tornar jornal-empresa. Era jornal de família. A decadência financeira é da mesma espécie que vitimou outros grandes jornais de família
no Rio de Janeiro, como o Diário de Notícias, O Jornal, A Noite, Diário Carioca
e Correio da Manhã (HERKENHOFF, 2010, p. 78).
154
Na virada da década de 1980 para 90 começou a debandada de grandes nomes do jornalismo brasileiro para o Globo: Chico Caruso, Zuenir Ventura (mesmo
levando três meses para decidir), Luiz Fernando Verissimo, Artur Xexéo, Joaquim
Ferreira dos Santos. Além da saída de jornalistas que ocuparam cargos executivos
na redação, em diferentes épocas, como Marcos Sá Correa, Xico Vargas, Merval
Pereira ou Marcelo Pontes. Um baque na autoestima do veículo que se gabava de
ter o melhor plantel de jornalistas do país.
Demissões, às vezes em grande número, passaram a assombrar jornalistas.
Eram os passaralhos, termo criado pelo redator Joaquim Campelo ainda no primeiro ano do prédio, em 1973, com a queda de Dines. O passaralho sobrevoaria
sazonalmente a redação do JB – e de outros veículos – com cada vez mais assi-
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duidade.
Campelo, entre outros verbetes do Aurélio, escreveu o da palavra “passaralho”.
Não havia alguém mais autorizado. Ele era o autor da palavra. Criou-a durante uma
bebedeira com o colega Jorge Cabral, num bar do Flamengo. Os dois conversavam
sobre as demissões que, em 1973, sucederam-se à saída de Alberto Dines. No voo
livre das ideias, os dois juntaram pássaro com você-sabe-o-quê e deu-se o sinônimo
para demissões em massa (SANTOS, 2016).
Titanic foi o apelido interno dado ao jornal quando começou um desembarque contínuo de jornalistas para outros jornais. Em apenas dois anos – de 1998 a
2000 –, cerca de 150 jornalistas deixaram o jornal para escapar da instabilidade e
ganhar mais em veículos impressos como O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de
São Paulo, para emissoras de TV ou portais da internet, que na época contratavam
em massa (HERKENHOFF, 2010, p. 40-41). Atribui-se ao ex-ministro da Fazenda e ex-deputado federal Delfim Netto a afirmação de que um jornal leva dez anos
para morrer. O editorialista Wilson Figueiredo brincava que o JB havia acabado
dez anos antes, mas que o memorando sobre o fim, assinado por Nascimento Brito
no 9º andar da Avenida Brasil 500, ainda não havia chegado à rotativa, no térreo.
O ambiente festivo e descontraído que unia os jornalistas deu lugar a um outro tipo de união, pela reivindicação:
Nós, jornalistas, animais gregários, constituímos uma família que, a exemplo de
todas as células sociais, tem mecanismos de defesa conscientes e inconscientes.
Somos até uma pequena máfia, mas, diferentemente da Cosa Nostra, nosso esprit de
corps mistura solidariedade, vaidade e desespero (HERKENHOFF, 2010, p. 189).
155
Foi a solidariedade aos demitidos e o desespero dos que ficaram que culminou em reuniões sindicais, paralisações da redação e movimentos como o “Protesto do Danoninho”, provocado por um comunicado da direção sugerindo que os
jornalistas insatisfeitos com a remuneração deveriam “cortar o iogurte de sua lista
de compras”, quando muitos, com salários atrasados dois meses, mal tinham como
adquirir uma cesta básica. Como lembra o repórter Fábio Lau, o próprio diretor de
redação, Fritz Utzeri, incentivou o protesto (LAU, em HERKENHOFF, 2010, p.
40), que resultou na demissão do editorialista Marcos de Castro, identificado por
Nascimento Brito na porta do jornal (MOTTA, 2018).
Dois mil e um, o último ano na Avenida Brasil, foi fúnebre. A redação, que
enfrentava atrasos de pagamento e evasão de talentos, assiste ao arrendamento da
marca pelo empresário Nelson Tanure. O acordo incluía a redução dos contratos
CLT: progressivamente, os jornalistas que ficaram, mesmo os de baixos salários,
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foram forçados a constituir empresa para prestar serviços como pessoa jurídica,
desincumbindo o jornal de obrigações trabalhistas. E, com o fim da gestão familiar, finda também a cultura da empresa, nas palavras de Marcos Sá Corrêa:
Com a crise, a empresa ficou atrasada em muita coisa. Mas, exatamente pelo anacronismo, manteve pelo menos um oásis no primeiro plano da imprensa brasileira:
uma redação à antiga, onde os jornalistas não fazem de conta que são executivos.
M.F. [Nascimento Brito] sempre disse que preferia jornalistas a executivos (CORRÊA, 2003).
Nelson Tanure assumiu em abril de 2001, convidando o jornalista Mário
Sérgio Conti50 para reformular a redação. Queria fazer um jornal “chique e inteligente”, com “coragem de publicar o que o Globo não publica” (FRAGA JR, 2014,
p. 129). Contrata editores e repórteres com salários bem acima dos praticados na
redação.
A disparidade escandaliza os “antigos”, também feridos no orgulho por sentirem-se subestimados como profissionais. Formam-se dois grupos que mal se
falam. O ar na Avenida Brasil 500, que já não era nada bom, fica quase irrespirável. Herkenhoff (2010) chama o período de “Casa Grande e Senzala”: “Enquanto
o jornal incensava nas colunas sociais um conteúdo fashion, da alta costura, das
50
O paulista Mario Sergio Conti iniciou-se no jornalismo em 1978 na Folha de S.Paulo, seguindo
para a revista Veja em 1983. Em 1999, escreveu o livro Notícias do Planalto, a Imprensa e Fernando Collor.
156
celebridades, jornalistas disfarçados de pessoas jurídicas enfrentavam dificuldades
para comprar simples fast food nos Bob’s e McDonald’s da vida” (HERKENHOFF, 2010, p. 335-336). Esse apartheid reforçou a união entre os remanescentes, imbuídos de um sentimento de guardiães da velha redação. Passam a ser o que
Ervin Goffman chama de representantes, ou nativos, assumindo um papel no grupo social: têm por objetivo amenizar problemas e podem falar sobre e pelos estigmatizados perante uma audiência. Esses indivíduos “são heróis da adaptação,
sujeitos a recompensas públicas” (GOFFMAN, 1980, p. 34).
Ao mesmo tempo, Mário Sérgio Conti reclama não ter tido a carta branca
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prometida por Tanure:
Fiz o jornal que quis. Mas ele (Tanure) não sabia que não queria aquele jornal. Minha conclusão é que ele é burro. Queria um jornal de qualidade. Jornal de qualidade é aquele que incomoda. [...] Disse ao Tanure: você perde anúncio, o presidente
vai ligar. Ele não sabia o que era esse mundo do jornalismo. Quando ligavam para
ele, assustou-se. [...] Ele queria ganhar dinheiro, mas também ganhar prestígio político. O que ele fez? Começou a segurar o dinheiro necessário para a modernização
do jornal (CONTI, em FRAGA JR, 2014, p. 129).
Assim, a turma recém-chegada não se demorou além de seis meses. E, em
2002, depois de 27 anos, o JB deixaria a redação da Avenida Brasil, mais vazia do
que nunca, para voltar à Avenida Rio Branco 110. A partir de então, o jornal, cada
vez mais acanhado, iniciaria uma peregrinação por vários endereços, iniciando um
período de êxodos.
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Figura 5: A redação da Av. Brasil se reuniu na sexta-feira 2 de fevereiro para último registro
Foto: Ismar Ingber/JB
Figura 6: A redação da Av. Brasil no último dia de atividade, sábado 3 de fevereiro de 2002.
Foto: Itala Maduell Vieira
158
2.3.1. Um jornal errante
Anuncia-se que a volta da redação ao Centro da cidade seguiria uma tendência mundial: a presença dos jornais em meio à pulsação dos conglomerados
urbanos. Mas o texto “JB está de volta à sede eterna” (JB, 4/2/2002, p. 4) assume
que a mudança é fruto da necessidade de “viabilidade econômica da empresa”. O
prédio original da Avenida Rio Branco 110 dera lugar ao Edifício Conde Pereira
Carneiro, com 41 andares. A redação ocupava o 12° e o 13° andares. O Departamento Comercial ficava no 29° e a área industrial, no 19°. A redação nova, com
monitores fininhos e cadeiras novas, era não uma conquista, como foram as sedes
anteriores, mas uma derrota, maquiagem borrada da penúria e do constrangimento
por decisões editoriais atreladas a interesses políticos que abalavam o que ainda
restava da credibilidade do jornal. Em 2004, os funcionários fecharam a Avenida
Rio Branco e fizeram passeata em Ipanema, com o apoio do Sindicato dos JornaPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
listas, em protestos contra o patrão, a quem denunciavam “querer fazer jornal sem
jornalistas” e querer controlar a mídia brasileira”:
Figura 7: Protesto de jornalistas do JB interdita a Avenida Rio Branco, diante da sede. Ago. 2004.
Foto: Julio Lubianco.
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Figura 8: Ato em defesa do Jornal do Brasil na Praia de Ipanema. 2004.
Foto: Ana Carolina Gitahy
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Em 2005, novamente por contenção de despesas, o JB se muda para a Casa
do Bispo, anexo de um seminário católico na Avenida Paulo de Frontin, no Rio
Comprido, que passa a chamar-se Casa Brasil. Em editorial, o empresário Nelson
Tanure lança mão de argumentos como a revitalização do Rio, mais uma vez a
“capital irradiante”, modelo e exportadora de tendências para o resto do país:
Construída há mais de três séculos e sediada na tradicional Casa do Bispo, faremos
deste marco arquitetônico da cidade do Rio de Janeiro um conceito. Centro de ebulição de ideias e projetos culturais e também no campo das ciências sociais. [...] O
Rio – e o Brasil – amam o JB. Este amor é recíproco. [...] Com realismo na gestão
e uma profunda paixão pelo Rio e pelo Brasil, [vamos] fazer do nosso JB o melhor
Jornal do Brasil (TANURE, 1/5/2005).
Mas a fase na Casa do Bispo, depois batizada Casa Brasil, foi aquela em que
o JB menos se pareceu JB. O encaixotamento que foi improvisado na Paulo de
Frontin era o prenúncio do fim. Funcionários foram demitidos porque “não cabiam” na nova redação. As mesas modulares da Rio Branco foram serradas para
encaixar no espaço apertado. E, como filho adulto com muita bagagem que tem
que voltar para a casa da mãe e manda coisas para a tia guardar por uns tempos, os
arquivos da Pesquisa do Jornal do Brasil, milhares de fotografias, centenas de
pastas de texto, um dos maiores acervos do país, foram amontoados primeiro em
uma sala na Rua São José, depois em outra na própria Paulo de Frontin, sem condições de preservação ou consulta.
160
Ali o jornal passou do formato standard para berliner, “seguindo o exemplo
de periódicos europeus [...] para atrair novos leitores, aumentar as vendas e captar
mais anunciantes” (FRAGA, 2005). Durante seis meses, os assinantes puderam
escolher entre os dois formatos, o que obrigava os jornalistas a fechar dois jornais
diferentes diariamente: 36 páginas durante a semana e 48 aos domingos, no formato standard, e 40 e 64 páginas, respectivamente, no berliner.
Com 115 anos de existência, o JB anunciava mais uma reforma, com o objetivo de estar “de acordo com as preferências do leitor de hoje, familiarizado com a
Internet e novas tecnologias”. A intenção era atrair novos leitores, e isso se refletiu no preço promocional de relançamento: R$ 0,75, de segunda a quinta, R$ 1,25
às sextas e R$ 1,50 aos domingos. Os objetivos, afirmaram, eram qualificar a audiência, aumentar em sete vezes sua base de leitores, dobrar a circulação em 90
dias e elevar de 15 mil para 85 mil exemplares diários em vendas avulsas. A meta
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incluía dobrar a receita com publicidade até o fim daquele ano.
Foram anunciados novos nomes, como Lillian Witte Fibe, Fred Suter e Renato Gaúcho, que passaram a integrar o time de colunistas já composto por Augusto Nunes, Heloísa Tolipan e Hildegard Angel, tendo ainda o chargista Paulo
Caruso. Uma nova editoria, Saúde, Ciência & Vida; uma seção de memória, com
matérias de arquivo sobre fatos da história do país; e espaço para opinião dos editores e comentários dos leitores foram os acréscimos editoriais ao novo projeto. A
redação, com 215 jornalistas, funcionava “em sinergia com os demais veículos do
grupo, que são a Gazeta Mercantil, a revista Forbes e o site InvestNews”.
Mais uma vez, o Jornal do Brasil lança mão de sua “tradição para o pioneirismo”, como disse Paulo Fraga, então diretor geral Comercial, ao comentar que a
mudança para o formato berliner não devia causar espanto aos leitores, uma vez
que o JB sempre esteve associado à vanguarda do jornalismo brasileiro. E cita a
reforma dos anos 1950, que introduziu um novo conceito editorial e gráfico na
imprensa do país: “O Jornal do Brasil está completando 115 anos de existência
olhando para o futuro, adotando as novas tendências mundiais, mas tendo como
inspiração os valores e atributos que fazem parte da sua história” (FRAGA, 2005).
161
A tiragem do JB, auditada pelo IVC, era de 60 mil durante a semana e 90
mil exemplares aos domingos. A intenção era dobrar a circulação e a receita, e
aumentar as vendas avulsas, então em torno dos 15 mil exemplares diários, para
85 mil.
Mas não foi o que ocorreu. Desconfigurado em forma e conteúdo, o jornal
perdeu leitores e anunciantes, e acabou saindo de circulação, em 31 de agosto de
2010. O portal de notícias UOL registrou a aposentada Marly Honorato, 76, assinante do Jornal do Brasil havia 25 anos, lendo a última edição da publicação à
janela de casa. “Como muitos dos leitores do jornal, ela não tem internet e reclamou bastante do fim da publicação” (GUIMARÃES, 2010). Foi a primeira morte,
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mais do que anunciada, do Jornal do Brasil.
Figura 9: A leitora Marly Honorato, 75 anos, lê a edição do JB de 31 de agosto de 2010.
Foto: Júlio Guimarães/UOL.
Houve a tentativa, malsucedida, de promover o encerramento do impresso
como mais um movimento pioneiro – “o primeiro jornal brasileiro na internet agora é 100% digital”. Porém, restou evidente o esvaziamento do veículo, com o enxugamento da equipe e a perda de independência editorial (FRAGA, 2014).
Quando saiu de circulação, em 2010, o jornal tinha 60 jornalistas, e não chegava a
20 mil exemplares. Herkenhoff, em análise retrospectiva, lembra de ir ver o jornal
murchando, com o passar dos anos, até se esvair:
162
Nas portarias dos prédios da Zona Sul, nas manhãs de tantas noites que eu virava e
viraria ralando no jornal, as pilhas de O Globo e JB mostravam a supremacia deste.
E ao longo dos anos fui vendo a pilha do Globo crescer a do JB diminuir até desaparecer. Vi concretamente o JB morrer todos os dias ao longo de 20 anos dentro
desta casa tão mal administrada” (HERKENHOFF, 2010, p. 50-51).
Quando anunciou que deixaria de circular, o JB tinha 180 funcionários, dos
quais 60 na redação, e vendia cerca de 17 mil exemplares em dias úteis e 22 mil
aos domingos (O GLOBO, 2010), tristes números para um jornal prestigioso. Mas
as transformações no mercado impresso afetaram a todos. De acordo com o IVC,
a tiragem de todos os jornais brasileiros caiu vertiginosamente no século XXI.
Os dados sobre circulação também contribuem para ilustrar o peso dos diários no mercado jornalístico. Apesar da mudança do polo econômico para São
Paulo, no início dos anos 1970 a imprensa diária do Rio de Janeiro ainda apresentava grande força no cenário brasileiro. Entre 1968 e 1978, Jornal do Brasil amPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
pliou de 2,6 para 4,4 o número médio de leitores por exemplar, e O Globo subiu
de 2,24 para 4,3 leitores, de acordo com o Anuário Brasileiro de Mídia. A tiragem
dos quatro principais jornais do país somava cerca de 685 mil exemplares em dias
úteis, conforme estudo de 1974 da Norton Publicidade e dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC) de fevereiro de 1975, divulgados no Almanaque Abril
1976: O Estado de S. Paulo (190 mil exemplares), O Globo (185.736), Folha de
S.Paulo (180 mil) e Jornal do Brasil (129.898) (CASTILHO, 2010, p. 309-310).
Tomando por comparação o resultado dos domingos de junho de 1994-junho de
2010: Folha de S. Paulo caiu de 1.470 milhão para 330 mil (-76%); O Globo de
970 mil para 322 mil (-66%); O Estado de S. Paulo de 665 mil para 270 mil (58%); e O Dia de 700 mil para 93 mil (-86%) (HERKENHOFF, 2010, p. 27).
2.3.2. JB On-line
Ex-colaborador do Ideias & Livros, suplemento literário do Jornal do Brasil, Felipe Fortuna escreveu o poema “Adeus ao papel”, em diálogo com os versos
em que Carlos Drummond de Andrade afirma, sobre o JB, que “todo jornal é explosão”:
163
Agora a palavra acende outra luz. Ali estava suja de tinta e água-viva. E meu amigo estendia páginas de papel-jornal no varal: a linha contínua de J’Accuse a Watergate do Titanic ao Zeppelin em chamas de Hiroshima a Guantánamo. Tudo tão
rápido que nem meio nem mensagem parariam as rotativas. Consulte o relógio digital, marque seu pulso inadiável no cristal raso e luminoso do texto que está buscando alcançar o seu néon se transformou em poema a seu tempo). Vá ver agora
como fica a notícia VIII sem recorte. Tente ler “O Retorno” de Ezra Pound sem datilografia, procure dobrar a carta que Mário de Andrade bateu na Manuela, e transforme etc. em hipertexto. E se, amigo, nos juntássemos (já que você não pode, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan) para transformar todo o jornal não numa explosão, mas num twitter?51 (FERNANDES, 2012).
A adoção pela publicação completamente digital foi muito mais uma saída
financeira com o objetivo de aumentar a sobrevida do jornal do que um passo à
frente dentro do contexto do crescimento da internet como meio de comunicação
(HERKENHOFF, 2010, FERNANDES, 2012, FRAGA, 2014). Como demonstra
Fernandes (2012), o site cresceu e inovou ao longo de duas décadas, até se tornar
vítima da crise do sistema JB de comunicação. E é preciso registrar que, entre
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jornalistas, leitores e pesquisadores, não se reconhece o JB no JB On-line. Nem se
vê nele uma continuação do jornal: o Jornal do Brasil é dado como encerrado ao
fim da circulação em papel, e depois “ressuscitado” em 2018, ainda que tenha
permanecido no ar ininterruptamente na versão on-line.
O JB rodava menos de 20 mil exemplares em 2010. A pressão da fuga da
publicidade para a internet e a forte expansão do jornalismo digital apenas aceleraram a limitação de uma empresa que já estava em crise. Em artigo no Observatório da Imprensa, o jornalista e consultor de comunicação Carlos Brickmann
analisa a gradativa derrocada do que chamou de “o jornal mais influente do país”:
[o JB] perdeu poder à medida que sua situação financeira piorava e seu principal
concorrente na cidade, O Globo, impulsionado pela Rede Globo, ganhava fatias de
seus mercados, especialmente na área em que sempre foi predominante, a de anúncios classificados. No início dos anos 2000, o JB cedeu a marca à Docas, do empresário Nelson Tanure, mudou o formato para berliner, cortou drasticamente os
custos. Nada adiantou – e agora vem a má notícia do provável fim da edição impressa. [...] Seus compromissos, que beiram R$ 1 bilhão, são um peso difícil de
carregar. É mais um marco do declínio do jornal que já completou 119 anos de
existência. A agonia vem de longe. Um grande jornal morre décadas antes de deixar de circular. [...] Já foi, e por muito tempo, o melhor jornal do país. Já foi, e por
várias vezes, o mais inovador jornal do país. Já foi, durante muitos anos, o exemplo
51
O poema foi escrito por Fortuna para a última edição impressa do caderno Ideias, mas não chegou a ser publicado no jornal. Agradeço à jornalista e pesquisadora Luisa de Bustamante Fernandes pelo registro em sua dissertação de mestrado (FERNANDES, 2012).
164
maior do jornalismo, aquele jornal com o qual todos gostariam de se comparar. Já
foi (BRICKMANN, 2010).
No intervalo entre 2010 a 2018, o Jornal do Brasil usou a internet como última alternativa de sobrevivência, e não como uma aposta em uma mídia em crescimento. Em 12 de junho de 2010, então presidente do Jornal do Brasil, o advogado Pedro Grossi anunciou sua demissão do cargo que ocupou por apenas quatro
meses. Em e-mail enviado aos editores e diretores do JB disse que sua saída era
em protesto à tentativa de investidores de acabarem com a versão impressa do
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jornal, limitando-se à edição on-line. A declaração:
Prezados, em almoço realizado hoje, na presença do Dr. Ronaldo Carvalho e da
Dra. Angela Moreira, O Dr. Nelson Tanure informou que publicará na edição de
amanhã do Jornal do Brasil (JB) uma notificação assinada pela direção da empresa
e dirigida aos leitores na qual explica a transposição do jornal escrito para o tecnológico. Considerando que isto contraria a razão pela qual fui contratado, solicito,
sem perda de meus direitos, que o expediente do jornal e de todas as revistas não
conste mais meu nome (sic). Respeitosamente, Pedro Grossi Jr (em GOMES
FREIRE, 2010).
Apesar do tom do e-mail, Pedro Grossi permaneceu como preposto de Nelson Tanure à frente das decisões editoriais nos anos seguintes, até a mudança de
mãos para Omar Peres. Como verificou Fernandes (2012), o jornal manteve no
on-line práticas que, de certa forma, colaboraram para seu fim: o corte de gastos
em pessoal e a falta de planejamento e investimento. Com equipe extremamente
reduzida, praticamente sem produção própria de reportagens, o JB On-line não
consegue acompanhar a velocidade com que corre a notícia no mundo digital. A
diminuta redação se resume a republicar matérias de agências (a italiana Ansa e a
Agência Brasil, ambas gratuitas), reescrever algo mais factual e urgente com base
em notícias da Globonews, que ficava intermitentemente ligada, ou de algum site
mais factual.
Mesmo com a necessidade de atualização em tempo real, inclusive noturna,
que a natureza dos veículos digitais exige, após as 18h havia apenas um jornalista
mais experiente até as 21h, acompanhado de dois estagiários. Tempos depois, a
redação digital se resumia a apenas um jornalista até 22h. Com tão poucas pautas,
um único fotógrafo, Douglas Shineidr, saía sozinho, por conta própria, para não
ficar ocioso na redação, até deixar o jornal, em 2016. Nas raras saídas, repórteres
usavam um celular da redação, ou os seus próprios, para fotografar.
165
A linha editorial do JB On-line na gestão Tanure, com o advogado Pedro
Grossi como diretor de redação, era pautada não por critérios de noticiabilidade,
mas baseada em quem era e quem não era amigo, ou quem estivesse atravessando
os interesses particulares. A seguir, o relato do jornalista Eduardo Miranda, que
atuou no on-line neste período:
Pedro Grossi mantinha relações estreitas com alguns ministros do governo de Michel Temer, e falava com pessoas de Brasília ao telefone com muita frequência, o
que fazia com que o site não raro precisasse noticiar e até cobrir, por exemplo, vindas sem importância do então ministro da Saúde Ricardo Barros ao Rio. A ligação
com a área de saúde era constante: praticamente toda semana publicávamos dois ou
três releases com um português sofrível, que não podíamos modificar, vindos da
Academia Nacional de Medicina, entidade da qual o Pedro Grossi é benemérito.
Era ordem expressa que essas notícias da ANM estivessem imediatamente na capa
do site assim que fossem publicadas (MIRANDA, 2019, à autora).
Jornalistas também foram usados como espiões de negócios de Tanure, por
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exemplo, em uma Assembleia Geral de Credores da Oi, no Riocentro.
Segundo fui informado, o pessoal do Tanure, sócio da Oi, não poderia estar presente. Por essa razão, fui credenciado como repórter, mas não fiz nenhum trabalho de
reportagem, apenas fiquei lá quase até às 5h da manhã aguardando o resultado e recebendo ligações do Pedro Grossi de 10 em 10 minutos para informar sobre o andamento da votação. Nos últimos meses, também publicamos no site alguns textos
vindos prontos de advogados do Tanure fazendo alguns ataques a sócios que se colocavam no caminho dele em relação à recuperação judicial da Oi. Alguns textos
chegaram em fins de semana de plantão e precisávamos colocá-los inclusive na
manchete da capa. Não era permitido questionar a total falta de interesse público
num assunto tão restrito parar no topo da home (MIRANDA, 2019).
A orientação era não publicar nada que fosse polêmico. Mas eram tantas as
restrições que a redação já não tinha critérios para avaliar o que podia ser noticiado ou o que era proibido. Este foi o hiato digital do Jornal do Brasil entre sua
primeira morte, quando o impresso saiu de circulação, em 2010, e seu “renascimento” em 2018. Durante estes oito anos, não era raro um repórter ligar para alguém e ouvir, do outro lado da linha: “Que legal, o JB ainda existe?”.
166
2.3.3. Pejotização e batalha judicial por direitos
Desde os anos 1990, mas principalmente nos anos 2000, estima-se que duas
a três centenas de ex-funcionários recorreram à Justiça para receber rescisões,
reconhecimento de vínculo empregatício, descontos de FGTS e INSS recolhidos e
não depositados pela empresa, horas extras trabalhadas e não pagas etc. A Justiça
reconheceu total ou parcialmente a procedência das causas, mas os empregados
esperaram 10 ou mais anos, dependendo vara trabalhista, e, em alguns casos, o
pagamento foi simbólico, com a penhora de bens da empresa, como maquinário.
Pesquisadora do Direito Trabalhista, Sayonara Silva registra que cortes supremas vêm negando aplicabilidade a leis de desregulamentação ou flexibilização
de direitos por considerá-las inconstitucionais. O movimento de jurisprudência na
primeira década dos anos 2000 em diversos países se contrapôs a uma prática de
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desconstrução de direitos ocorreu em larga escala nos anos 1990. “É, em certa
medida, uma reação à flexibilidade jurisprudencial, que ocorre quando, pelas
mãos de decisões judiciais, a normatividade do trabalho é flexibilizada em prejuízo dos trabalhadores” (SILVA, 2011, p. 274). Ela se refere à terceirização, isto é,
a transferência legal do desempenho de atividades de determinada empresa para
outra empresa, que executa as tarefas contratadas, “de forma que não se estabeleça
vínculo empregatício entre os empregados da contratada e a contratante”.
A prática de transformar jornalistas em pessoa jurídica (PJ), por meio da
abertura de empresa própria, transferiu de empresas como o Jornal do Brasil para
seus funcionários todos os custos trabalhistas, embora não seja permitida por lei a
terceirização de atividades-fim, que coincidem com os fins da empresa contratante). De acordo com a Consolidação das Leis Trabalhistas brasileira, empregado é a
pessoa física que presta pessoalmente serviços não eventuais, subordinados e assalariados. “Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de
natureza não eventual a empregador, sob dependência deste e mediante salário”
(CLT, art. 3º). E considera-se empregador “a empresa, individual ou coletiva, que,
assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação
pessoal de serviços” (CLT, art. 2º).
167
A orientação do jurídico do Jornal do Brasil aos funcionários a quem devia
foi: procurem a Justiça. Foram poucos os que conseguiram resolver as pendências
por intermédio de nomes do alto escalão. A maioria – centenas de jornalistas –
tiveram que recorrer a advogados trabalhistas. A considerar o vínculo afetivo com
o jornal, esse movimento foi custoso emocionalmente para muitos deles, por considerar estarem cometendo um ato de ingratidão, uma “apunhalada”. Regina Zappa conta que adoeceu quando saiu do escritório de advocacia que procurou para
buscar orientação. O mal-estar a deixou de cama.
Atarantados, os jornalistas enfrentariam uma cruzada nos corredores da Justiça. Não tanto para terem seus direitos reconhecidos: foi simples demonstrar que
o jornal, pelo menos desde os anos 1990, descontava em folha, mas não depositava os valores relativos a INSS e FGTS, não pagava as verbas rescisórias, usou o
instituto da Pessoa Jurídica como artifício para fugir das obrigações trabalhistas.
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O problema era receber o que a Justiça reconhecia como devido.
Regina contratou Leandro Apolinário Rebello, então um jovem advogado,
sem muita experiência em causas trabalhistas, mas que se mostrou motivado com
a causa. E o recomendou a todos que buscavam referência. Puxou um cordão de
mais de uma centena de jornalistas, que haviam ganhado suas causas mas não
conseguiam receber em dinheiro. Na crônica Sexto andar, por favor, Marceu Vieira, que saiu do JB em 1998, sem receber seus direitos, anuncia, com contornos
épicos, a parte que lhe coube na partilha da massa falida, do espólio do JB, após
anos de espera na Justiça do Trabalho: um elevador do antigo prédio.
Pois meu coração abre agora novamente seu baú de lembranças, muitas delas inúteis diante do julgamento da maioria, pra contar que é meu – é sério, é meu – um
dos elevadores do velho JB, naquele prédio ainda tão impregnado de histórias da
Avenida Brasil 500, no Rio, onde hoje funciona o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (VIEIRA, 2/3/2016).
Apolinário foi um dos poucos advogados a conseguir driblar as estratégias
do jornal de nunca ter dinheiro em caixa, para que não fossem bloqueados pela
Justiça para o pagamento das dívidas trabalhistas. Acabou se formando um subgrupo de jotabenianos, reunidos num grupo de e-mail, acompanhando por anos a
fio o desenrolar da disputa que envolveu uma série de empresas: JB S.A., Editora
JB, Companhia Docas do Rio de Janeiro, Companhia Brasileira de Multimídia,
168
Casa Brasil, e credores poderosos como o Citibank, assistido pelo escritório de
advocacia de Sérgio Bermudes, que em 2014, na reta final da negociação, impetrou uma medida cautelar para bloquear os valores destinados judicialmente ao
pagamento de dívidas trabalhistas. Foi um longo período de angústia, trocas de
mensagens, idas a audiências, que terminou em outubro de 2015, quando enfim
foram depositadas as últimas quantias devidas dos representados pelo advogado.
Apolinário, um vascaíno emotivo, um jotabeniano, convidou a todos para celebrarem juntos a conquista numa grande festa em que comemorou seus 40 anos, no
Itanhangá Golf Club, em 16 de outubro de 2015. Era a sua forma de gratidão
àquela comunidade que o tornou um advogado de renome, e rico.
2.4. Funerais do JB52
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Jornais, revistas, emissoras de rádio, TV e outros veículos de comunicação
angariam a simpatia ou a antipatia do público através de construções discursivas
memorialísticas que, não raro, lhes conferem atributos humanos. E vai além: é o
hábito da constância, a admiração pelos jornalistas que ali escrevem, o apego pelo
“seu” jornal, que, de certa forma, torna-se a transcrição impressa de sua ideologia.
Por isso, quando parou de circular em papel, muitos foram os depoimentos sobre
“a morte do JB”. O mesmo ocorreu com outros veículos de importância histórica,
como o Correio da Manhã, “um jornal assassinado” pela ditadura militar, como
defende livro-reportagem escrito por Jeferson Ribeiro de Andrade, com a colaboração do premiado repórter Joel Silveira (ANDRADE, 1991).
Um exemplo deste discurso anímico é o já mencionado Um moço de 74
anos, documentário encomendado ao cineasta Nelson Pereira dos Santos em 1965.
E a declaração de Ziraldo Alves Pinto, então editor do B, em 2005: “Este jornal é
uma entidade carioca, uma coisa a que as pessoas desta cidade se referem como se
fosse um ser vivo” (JB, Caderno B, 15/9/2005, p. 1). Assim como durante sua
existência o jornal foi personificado, também seu declínio foi simbolicamente
marcado por expressões humanizantes: o JB não acabou; morreu.
52
Aqui retomo e atualizo questões tratadas em Os funerais do Jornal do Brasil (VIEIRA, RODRIGUES, 2016).
169
2.4.1. O túmulo do jornal
A primeira despedida coletiva deu-se na Avenida Brasil 500, em 28 de julho
de 2007, três anos antes de o jornal deixar de circular. A motivação foi a notícia
de que o prédio, desapropriado para cobrir parte das dívidas do jornal com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), passaria a abrigar o Instituto Nacional de
Traumato-Ortopedia (Into). “Era muito simbólico, pelo que vivemos lá e pelo
prédio ter sido uma das razões da destruição do jornal”, explica a jornalista Regina Zappa em entrevista para esta pesquisa. Em outras palavras, foi o deadline,
jargão usado no meio da comunicação para se referir ao prazo final para uma reportagem ou projeto. Regina se uniu ao fotojornalista Rogério Reis e ao documentarista Sergio Sbragia para promover e registrar, em foto e vídeo, um encontro na
sede ícone do JB: “Era curiosidade, orgulho, masoquismo. Muito deprimente”.
Conseguiram autorização do INSS, e convocaram jornalistas por e-mail. Havia
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um limite máximo de 100 pessoas, determinado por razões de segurança.
A sede da Avenida Brasil, objeto de litígio entre a família Nascimento Brito
e o arrendatário Nelson Tanure, fora abandonada e saqueada. As janelas suíças de
vidro temperado italiano, com isolamento acústico contra o ruído incessante do
trânsito no vizinho Elevado da Perimetral, as louças de banheiro, os tapetes, tudo
havia sido arrancado. O esqueleto de cimento permaneceria durante anos como
ícone da decadência do JB, e do fracasso mesmo de um certo projeto de cidade.
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Figura 10: Salão do 6º andar da Av. Brasil 500, onde ficava a redação, depenado.
Rogério Reis, 2017
Uma centena de jornalistas, ex-funcionários, subiram pelas escadas em penumbra, ao 6º andar, o da velha redação, para se reencontrar e dar seus testemunhos. “Foi um dia chuvoso, cinza, triste. Havia uma câmera lá embaixo, e lá em
cima outra registrava as pessoas entrando no salão. O José Silveira, que não podia
subir, foi entrevistado no térreo, na oficina. A Anabela Paiva subiu chorando”,
lembra Zappa. O encontro é citado como de grande impacto nos jornalistas que
participaram. A experiência de voltar ao prédio em ruínas revolveu lembranças e
memórias, promoveu reencontros, aflorou emoções, assim como visitar um túmulo é uma forma de reaproximação com o ente querido morto, de render-lhe homenagem, de chorar a perda. “Além do registro documental, de lembrar fatos, tem a
memória emotiva, o orgulho de ter feito aquele tipo de jornalismo, com liberdade,
uma coisa muito preciosa. O sentimento em relação ao jornal é muito autêntico”
(ZAPPA, 2019). O documentário não foi concluído, por falta de recursos para
finalização.
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Figura 11: O acesso às escadas.
Rogério Reis, 2017.
Figura 12: A antiga oficina.
Rogério Reis, 2017.
A crônica do jornalista de Marceu Vieira sobre o prédio da Avenida Brasil
500 também foi impregnada de lembranças e orgulho. Mesclando vida pública e
privada, o cronista – um legítimo suburbano, nascido em Morro Agudo, Nova
Iguaçu, Baixada Fluminense – confessa que as ruas e bancos de praça do bairro
dividem espaço no seu coração com o prédio da Avenida Brasil 500:
172
Predião tão bonito e moderno, com heliponto no teto. Espigão-orgulho de seus funcionários, onde conheci a mãe da minha filha caçula e fiz tantos amigos. Gigante
vistoso de concreto, onde fui chefiado pelo Marcos Sá Corrêa, o mais brilhante diretor de redação que encontrei na vida, e onde aprendi a ser o avatar do Ancelmo
Gois (nós por ele, ele por nós!). Edifício-monumento ao jornalismo brasileiro, onde
ouvi pela primeira vez – e quem disse foi o mestre Vilas-Boas Corrêa – que eu era
um cronista (VIEIRA, 2/3/2016).
2.4.2. O gurufim
No último dia de circulação, 31 de agosto de 2010, um ato chamado “Dia de
Afeto ao JB” reuniu cerca de 150 pessoas entre jornalistas, leitores e exfuncionários do JB na Cinelândia, com faixas em defesa do jornal. O jornalista
Jorge Antonio Barros contou no blog de Ancelmo Gois que queria ter feito essa
reportagem, “mas estava emocionado demais, vendo rostos antigos e personagens
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que já nem sabia estarem vivos, como Carlos Alberto Teixeira, o redator da seção
de cartas do JB, onde dei meus primeiros passos em direção ao jornalismo, como
assíduo missivista (BARROS, 2010b).
Figura 13: Dia de Afeto ao JB, na Cinelândia. 31 de agosto de 2010.
Foto: Custódio Coimbra.
Mas foi o lançamento do livro Jornal do Brasil – Memórias de um secretário, pautas e fontes, de Alfredo Herkenhoff, que reuniu centenas de jornalistas no
restaurante Capela, na Avenida Mem de Sá, Lapa, se tornou o próprio funeral do
JB – ou gurufim, como são chamados os velórios africanos que substituem o
173
choro pela dança. Alfredo assinou quase 400 dedicatórias na noite de autógrafos,
que resultou em uma série de fotos e vídeos com novos depoimentos, registrados
pelo filho do autor, João Saboia (2010), e publicados no perfil do autor no Face-
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book ou no seu blog Correio da Lapa.
Figura 14: Lançamento do livro de Herkenhoff no Capela, Lapa, 31 de agosto.
Foto: João Saboia.
O jornalista Jorge Antonio Barros – que iniciou carreira no JB nos anos
1970 descreveu os encontros nostálgicos e festivos daquele dia em “O adeus ao
JB: um enterro ao estilo de Nova Orleans”, no blog de Ancelmo Gois, no Globo:
Mais de 24 horas depois ainda estou me recuperando da ressaca afetiva que é assistir à morte de um jornal que foi um patrimônio histórico, político e cultural de um
país. A felicidade é que o “enterro” do Jornal do Brasil, ontem de manhã, virou
uma cerimônia fúnebre ao melhor estilo de Nova Orleans, com muita conversa,
emoção, abraços, reencontros, almoços dos colegas e, à noite, prosseguiu na festa
de lançamento do livro de Alfredo Herkenhoff, que me brindou com uma dedicatória inesquecível, na qual me chamou de eterno estagiário do JB. Chorei (BARROS,
2010a).
O sentimento geral foi de certo inconformismo em relação ao fim do JB em
sua versão impressa. Era como se um pouco do jornalismo também se extinguisse
naquele momento. A postura de Dines sobre a derrocada do Jornal do Brasil é
firme, como evidencia em carta a colegas:
Não chorem pelo JB. Revoltem-se, indignem-se, denunciem. A morte do Jornal do
Brasil é uma morte assistida, encenada, por Nelson Tanure & Asseclas S.A. Ao
contrário das outras, sofridas, para aliviar sofrimentos, esta foi montada para produzir alegrias e prazeres. Não chorem pelo JB: o bando que carrega o caixão vai faturar as missas, o féretro, a marcha fúnebre, a História, depoimentos, lamentos –
174
quanto mais lágrimas derramadas, mais se valoriza o cadáver. Não percam de vista
os abutres que esvoaçavam nos desvãos da indústria jornalística. Vieram de longe,
conhecem o ofício de beliscar e especular. Seu negócio é o jornalismo sem jornalistas. Este é o choro que merece ser chorado. Chorem pela profissão que o STF não
reconhece. Chorem pelas PJ (pessoas jurídicas) que enchem as redações. [...] Só
não chorem pelo JB, engulam estas lágrimas. Há outros jornais e brasis para construir (DINES, 30/8/2010).
O levantamento exploratório aponta a predominância de uma personificação
do jornal, a que jornalistas se referem como um ser amado cuja perda é digna de
um luto. Como muitos de seus colegas de profissão, Joaquim Ferreira dos Santos
– que foi repórter, subeditor e colunista do Caderno B em duas etapas (anos 1980
e entre 2000 e 2001) – lamentou a situação em depoimento ao projeto Memória do
Jornalismo Brasileiro: “Morreu uma coisa que era tão importante. Para mim, foi
fundamental. As pessoas não se conformavam” (SANTOS, s/d).
O tempo do luto é necessariamente marcado pela presença do passado, ou a
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isso que se dá o nome de saudade. Para que a experiência de “eterno presente” a que
se referiu o sociólogo espanhol Manuel Castells (1999), para quem o tempo deixou
de ser “linear, irreversível, mensurável e previsível”, nos mantenha funcionando
segundo os imperativos da felicidade e da performance, é preciso não passar pelo
tempo do luto. No clássico Luto e melancolia, Freud observa que é “digno de nota
que nunca nos ocorre considerar o luto um estado patológico, nem o encaminhar
para tratamento médico, embora ele acarrete graves desvios da conduta normal da
vida. Confiamos que será superado depois de algum tempo e consideramos inadequado e até mesmo prejudicial perturbá-lo”. Quando fala em “depois de algum
tempo”, deixa (propositalmente) em aberto qual é a medida desse tempo ([1917]
2012).
Na prática, todo luto implica também o trabalho de encerrar a existência de
quem morreu – e mesmo neste aspecto jurídico mais básico, o prazo para abertura
de um inventário é de 60 dias. Até mesmo o imperativo da lei reconhece que há
um tempo do luto. A tramitação do fim de uma vida, civil ou simbólica, no caso
do JB, torna concreto o que o filósofo Jacques Derrida escreveu sobre a morte de
uma pessoa querida: a cada vez, o fim do mundo. Providências administrativas
nos evidenciam que cada morte representa o fim de um mundo, do mundo compartilhado com aquele que partiu: “A morte declara a cada vez o fim do mundo
175
em sua totalidade, o fim de todo mundo possível, e a cada vez o fim do mundo
como totalidade única, portanto insubstituível e infinita” (DERRIDA, 2003).
Envolve um processo permeado de nostalgia, de idealização de um passado
mítico que parece ser experimentado não como passado, mas como evidência de
uma singularidade, uma marca, a alma própria do JB e daqueles que a carregam,
portanto imanente, imperecível ao tempo. Como nas palavras de Santo Agostinho:
“o espírito é também a própria memória” (em RICOEUR, 2007, p. 108).
Nossa dificuldade cultural de falar sobre a morte carrega um paradoxo talvez incontornável, porque falar sobre o luto será sempre também falar sobre a
vida que fica, continua, sobrevive, permanece. “A dimensão propriamente intolerável que se oferece à experiência humana não é a experiência de nossa própria
morte, que ninguém tem, mas a da morte de um outro, quando ele é para nós esPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
sencial” (LACAN, [1959] 2016, p. 374).
Parece ser possível entender tais relatos como parte do luto dos que viveram
esta experiência. Falar, conversar, dizer como se sente em relação a quem partiu,
contar histórias, lembrar e até esquecer, tudo isso faz parte do tempo do luto. Assim como faz parte do luto a busca por explicações racionais para a causa mortis;
a abertura de inventários, sejam livros de memórias ou processos judiciais; e
mesmo a sua própria negação, sob a expectativa da eternidade.
Cabe frisar que não é unânime considerar que o luto oficial tenha sido decretado com o anúncio da saída de circulação do Jornal do Brasil, em julho de
2010, ou quando desceram suas últimas páginas à gráfica, em agosto. Vários depoimentos dão conta de que o JB já seria “um fantasma”, já não era mais o JB, já
havia morrido. Leonam afirmou no encontro jotabeniano de 2019 que foi na mudança para a Avenida Brasil que o JB acabou: “Acabou quando mudou da Rio
Branco, uma maluquice aquilo. Enquanto O Globo comprou máquinas, o JB construiu um prédio. Foi o último suspiro” (LEONAM, 2019, à autora).
Jornalista e escritor, Arthur Dapieve personifica o jornal, que viu dar “o último suspiro” e virar um “fantasma”:
176
Pena que um nome tão forte, tão importante quanto o Jornal do Brasil tenha se tornado um fantasma do que ele era, do que ele foi no passado, né? Eu acho isso muito triste. Lamento como leitor pelo nível de excelência que ele teve no passado.
Acho que eu peguei até o último suspiro dele ser um jornal prestigioso (DAPIEVE,
2015, grifo meu).
Ainda que não sejam unívocas as falas neste sentido, observa-se que é nestas datas que se manifestam, espontaneamente ou instados por jornalistas, veículos
de comunicação e entidades de classe, justamente por força dos acontecimentos –
o anúncio do fim e o último dia de circulação –, atendendo a critérios de noticiabilidade para se transformar numa narrativa noticiosa.
2.4.3. Réquiem
O Jornal do Brasil anunciou que deixaria de circular em julho de 2010, exaPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
tos 51 anos após chegar às bancas a marcante primeira página que se tornaria
marca registrada do JB, com classificados em L. Buscando dar ao ato um caráter
sublime – como na carta-testamento em que Getúlio Vargas anunciou que deixava
a vida para entrar na história –, a partir de 1º de setembro, passa a ser o primeiro
jornal 100% digital” (JB, 14/7/2010, p. 1). Esse foi o discurso que a empresa adotou para não ter de admitir publicamente o verdadeiro motivo pelo qual decidiu
interromper o impresso – uma crise que já durava mais de uma década e, diante
dos custos da impressão do jornal, somados à baixíssima tiragem do periódico,
tornou-se insustentável (FERNANDES, 2012). O anúncio mobilizou centenas de
jornalistas, e encontrou eco entre as manifestações emocionadas de jornalistas,
como Roberto Assaf: “O JB saiu da vida para entrar na história” (ASSAF em
HERKENHOFF, 2010, p. 194). Zuenir Ventura também recorreu à celebre cartatestamento, mas para contestar a versão da empresa, em sua coluna de 21 de julho
de 2010 no Globo, a alegação oficial do JB sobre a migração para o digital:
Foi dito que o Jornal do Brasil deixará de circular em papel para “entrar na modernidade”. Acho que o melhor epitáfio não é esse, mas outro: “Deixou a vida para entrar na História”, como Getúlio Vargas. Sim, porque o JB não morreu de morte natural, mas de suicídio – lento e aguardado, melancólico, deixando órfãs várias gerações (VENTURA, 2010, p. 7).
Wilson Figueiredo foi na mesma linha: “um jornal centenário não morre, só
acaba se alguém quiser assassiná-lo” (HERKENHOFF, 2010, p. 271). A Noite, O
177
Jornal, Diário de Notícias, Diário Carioca, Última Hora, Correio da Manhã,
nenhum deles chegou ao centenário. Apenas o último chegou a envelhecer.
A partir do anúncio do fim do Jornal do Brasil, foram profícuos os movimentos de produção e circulação de memórias em torno dele. Reportagens em
todos os veículos impressos e em programas de rádio TV53, artigos publicados,
encontros promovidos, blogs de tributo, um documentário, um ensaio fotográfico,
três livros inteiros, projetos universitários, comunidades em redes sociais. É impossível separar a cobertura jornalística sobre o fechamento de um dos principais
veículos de comunicação do país das manifestações pessoais, na medida em que
os produtores destas notícias são afetados por ela.
No jornalismo, a prática de produzir obituários é bastante comum. Remontam à milenar produção de narrativas sobre a vida de monarcas, soberanos, burPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
gueses, importantes figuras religiosas e militares. Procuram celebrar uma vida
notória de modo que ela possa continuar sendo lembrada em tempos futuros
(VOVELLE, 1997, em SACRAMENTO et al., 2019). O obituário moderno está
marcado pela autoria e pela adoção da apuração jornalística. Nos Estados Unidos,
o obituário foi reconhecido como uma “cerimônia diária de bom jornalismo”
(SUZUKI JR., 2008, p. 289). Os obituaristas norte-americanos ganharam distinção no gênero: Clifton Daniel, secretário de redação do New York Times, pedia
aos repórteres um mergulho mais profundo nas histórias de vida e um texto escrito
pela mão de um artista; Alden Whitman foi considerado o pai do obituário moderno e entrou para a literatura como o “Sr. Má Notícia”, no perfil escrito sobre
ele por Gay Talese (2004).
Houve tempo para a preparação da cobertura por parte da mídia porque o JB
anunciou com antecedência a data do encerramento. “Obituários” foram escritos
de véspera, como é prática no meio jornalístico em casos de figuras ilustres cuja
morte é iminente. Na Época, a colunista Ruth de Aquino publicou “Réquiem para
um jornal que foi parte de minha vida”. Réquiem é, na liturgia católica, a prece
que se faz aos mortos, e, na música, a composição sobre o texto litúrgico da missa
fúnebre, que começa com as palavras latinas requiem aeternam, ou “repouso eter53
Cf. Joaquim Ferreira dos Santos e Artur Xexéo, em O Globo; José Trajano, na ESPN Brasil;
revistas Veja e Época; Observatório da Imprensa; Roda Viva, Bom Dia, Brasil, CBN, entre outros.
178
no”. Falando do “impacto da morte do JB” e chamando o anúncio oficial da saída
de circulação de “atestado de óbito e negligência” (AQUINO, 2010). A revista
Veja (8/9/2010) publicou artigo de duas páginas com o título “Como morre um
grande jornal”. Em formato de obituário, informava que, aos 119 anos, o Jornal
do Brasil passara por “três revoluções, três ditaduras, seis constituições e 31 presidentes, mas não resistiu à má gestão”. Vários foram os jornalistas que adotaram
a analogia em textos publicados na imprensa.
Joaquim Ferreira dos Santos, que iniciara no JB em 1983, dedicou duas colunas de meia-página no Segundo Caderno de O Globo a uma espécie de obituário afetivo do antigo emprego. Na primeira, sob o título “Funéreo”, o jargão jornalístico que designa textos publicados sobre mortos ilustres, Joaquim anuncia:
“Desce a última página do Jornal do Brasil”, num jogo de duplo sentido em que a
gráfica, andares abaixo da redação, faz as vezes de “túmulo dos grandes jornais”.
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Uma campa com a inscrição “JB: Descanse em Paz”, em ilustração de André Mello, arremata a homenagem, que lista reportagens, personagens e bastidores marcantes do jornal em clima saudosista. Na semana seguinte, voltou ao tema em
Funéreo 2: nem todos morreram com o Jornal do Brasil (SANTOS, 2010).
Figura 15: Ilustração de André Melo para a coluna Funéreo, de Joaquim Ferreira dos Santos.
O Globo, 30/8/2010
179
Foi este também o propósito do programa Observatório da Imprensa, da TV
Brasil, cujo tema foi o fim do JB impresso. Apresentou um retrospecto da história
do veículo entremeado de uma série de entrevistas, e reuniu para debate, além do
apresentador Alberto Dines, os jornalistas Ana Arruda Callado, repórter premiada
do JB no fim dos anos 1950, época da grande reforma; Ricardo Noblat, que iniciou na sucursal do Recife, foi chefe da sucursal de Brasília nos anos 1980; e o economista e empresário Walter de Mattos Júnior, diretor-presidente do jornal Lance!. Dines comandou a redação de 1962 a 1973, promovendo a consolidação do
então “novo JB” prestigioso. Ao abrir o debate, Dines afirmou: “Nós poderíamos
reunir aqui um programa de auditório, tipo um velório, melancólico, para chorar o
fim de um grande jornal, mas nós vamos participar de um debate inicial sobre esta
nova fase do jornalismo brasileiro, menos competitiva, e caminhando para uma
incógnita, ainda muito difusa” (DINES, 20/7/2010).
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A promessa, contudo, não se cumpre, nem na reportagem introdutória, em
que uma dezena de figuras históricas lamentam o que chamam de “o fim do jornal” – a sobrevivência na internet não convenceu os jornalistas. É exemplar disso
o depoimento do poeta e ilustrador Reynaldo Jardim, responsável pelo Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e pelo Caderno B: “O jornal perdeu as suas características históricas, não se renovou, deu um passo pra trás, outro passo pra
trás, outro passo pra trás, virou tabloide e dá um passo final em direção ao túmulo” (JARDIM, OI na TV, 20/7/2010). Poucos meses depois, morreria o próprio
Reynaldo Jardim, em 1º de fevereiro de 2011, aos 84 anos.
Mas o dia D, aquela quinta-feira 31 de agosto, concentrou a maior cobertura
da mídia, desde o Bom Dia, Brasil, da Rede Globo, que recebeu Miriam Leitão
para apresentar a reportagem, até espaços inusitados, como o canal por assinatura
ESPN Brasil, dedicado a noticiário e coberturas de esporte. O jornalista José Trajano, “cria do JB”, onde iniciou carreira aos 16 anos, levado pelo primo Luiz Orlando Carneiro54, dedicou ao tema dois blocos do seu programa esportivo Pontapé
Inicial, na ESPN Brasil. E declarou, alternando o tom consternado e exultante:
O leitor do JB e aquele jornalista que trabalhou lá sabem o que nós estamos passando hoje. Vai ter encontro no Amarelinho, na Lapa, em vários lugares do Brasil,
54
Luiz Orlando Carneiro trabalhou por mais de 50 anos no Jornal do Brasil, em variadas funções.
180
porque o Jornal do Brasil teve uma legião de jornalistas, em épocas diferentes, e
esta legião está espalhada Brasil afora, mundo afora. [...] Aquele Jornal do Brasil
marcou muito a minha vida [enxuga as lágrimas]. Eu sabia que eu ia me emocionar
hoje. [...] Eu sei como todo mundo está se sentindo agora, não vou ficar falando
muito, não, senão vai ser uma choradeira danada este programa. Vocês não podem
imaginar, viu, aquilo que foi o Jornal do Brasil virar um reles site de internet
(ESPN Brasil, 2010).
Citado como um dos mestres de Trajano, ao lado de João Máximo, Marcos
de Castro, que trabalhou no jornal desde os anos 1960, é um dos entrevistados
nesta reportagem especial sobre o JB:
Nós que passamos por aquele período de grande euforia, de grande qualidade, de
grande alegria mesmo de trabalhar no jornal, fazer aquele jornal que era o Jornal
do Brasil, descobrir hoje o Jornal do Brasil morrendo melancolicamente é uma
tristeza muito grande (ESPN Brasil, 2010).
As demonstrações de consternação se sucedem na reportagem da ESPN
Brasil, que teve produção e roteiro assinados por Lúcio de Castro, também cria do
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JB (iniciou sua carreira no jornal, no fim dos anos 90) e filho de Marcos de Castro. Sérgio Noronha, comentarista esportivo revelado pelo JB, tentou conter: “Eu
estou me prevenindo para não me emocionar, no último dia que saiu, não quero
nem olhar pra banca”. Em seguida, desaba: “Vou chorar”. Com um discurso mais
institucional, próprio do cargo de presidente da Associação Brasileira de Imprensa
(ABI), Maurício Azêdo, também ex-funcionário do jornal, afirmou ao programa
que o fim do JB impresso “deixa um conjunto da sociedade praticamente órfão”,
dando dimensão pública à dor de cada um.
Vê-se, neste conjunto de depoimentos, que o poder de falar e o poder de
lembrar é dado a um grupo de personagens autorizados a contar essa história.
Numa tentativa de contemplar vozes externas ao campo profissional, foi entrevistado um entregador de jornal, que trabalhou por 30 anos no JB, até ser demitido
com a saída do jornal de circulação. Seu Daniel também chorou na entrevista:
“Muito orgulho. Triste, né, um jornal com mais de 100 anos...” (ESPN Brasil,
2010).
Quanto a esse entrevistado, valem duas observações: primeiro, é o único
não-jornalista com direito a fala identificado nesta série de reportagens produzidas
sobre o fim do JB. O entregador ganha voz por seu longo tempo de vínculo – um
critério de noticiabilidade (SILVA, 2005) na seleção de fontes. Segundo, chama a
181
atenção que os personagens têm status diferentes. Seu Daniel não teve sequer o
nome completo citado, diferentemente de todos os jornalistas a quem é dada a
palavra. É apenas “Seu Daniel”, omissão que atribuímos ao fato de pertencer a
outro campo que não a comunidade jornalística.
No jornal O Globo, a notícia da saída de circulação do Jornal do Brasil ficou a cargo de Paulo Thiago de Mello, outro jornalista das frentes jotabenianas,
que ocupou duas páginas da seção de Economia, reproduzidas na edição on-line.
O texto afirma que a importância do JB não se restringiu ao Rio de Janeiro, e que
o jornal “era um veículo que formava opinião, sendo lido religiosamente pelas
classes política e artística e a intelectualidade”. Um dos entrevistados foi o jornalista Marcos Sá Corrêa, ex-editor-chefe do Jornal do Brasil, que lamenta a perda
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da “fórmula original”, da aura do jornal:
A importância do JB foi imensa. Contando só os anos do jornal que vivi ou conheci, de meados dos anos 50 e aos anos 90, acho que todo jornal no Brasil queria de
certa maneira ser o JB. Mas isso passou há muito tempo. Ele é um jornal que se limitou a sobreviver nas últimas décadas. Cada vez que ele fazia um esforço para
melhorar, ficava mais parecido com os outros jornais, porque sua fórmula original
estava esquecida (CORREA, em MELLO, 2010).
Sá Corrêa não estava sozinho entre os que consideravam o JB um morto insepulto, dada a perda de relevância e de qualidade que sofrera como veículo de
comunicação. Miriam Leitão declarou ao blog Tributo ao JB:
Ele deixou de ser JB, foi saindo devagar. Primeiro perdeu as características, a influência, e depois fechou no impresso, tentando transformar isso numa história de
migração para o on-line. Eu já tinha parado de lê-lo há muito tempo, porque não
precisava mais, deixou de ser fundamental muito antes de morrer. E um jornal morre quando deixa de ser fundamental (LEITÃO em SALLES et al., 2010).
Este foi o tom da reportagem do portal iG que entrevistou os “exprotagonistas”. “O JB teve uma morte lenta”, afirmou Etevaldo Dias. “Está morto
há dez anos. Era um zumbi, sendo talvez o enterro agora”, concordou Kiko Nascimento Brito, filho que comandou a redação no início dos anos 1990. “Tanure
vai só enterrar e pôr no epitáfio seu nome”, disse Janio de Freitas. “O sentimento
é de luto, de tristeza. Ficaremos na orfandade”, declarou Zuenir Ventura (IG,
2010).
182
Muitos jornalistas lamentaram também a falta de concorrência na imprensa:
O mal que a agonia do JB trouxe à imprensa brasileira está por ser dimensionado, e
posso lhes garantir que é muito grande. Atinge a fundo a imprensa do Rio, que fica
órfã de concorrência. Fere, com isso, o próprio Globo, líder eventual do pedaço, órfão de referência que impulsiona o aprimoramento (DANTE, em HERKENHOFF,
2010, p. 25)
A história mostra que grandes jornais, quando não têm concorrência, costumam
publicar edições desastrosas. O ridículo é observado em silêncio [...]. A inexistência da concorrência tende a produzir jactância, arrogância e jornalismo para chefes
de ocasião (HERKENHOFF, 2010, p. 155).
Espectros do velho Jornal do Brasil são evocados na crônica Sexto andar,
por favor, de Marceu Vieira, para quem ainda permanecem vagando nos elevadores as “assombrações” daquele jornal. Marceu pede “perdão e licença a quem é
mais jovem e talvez não consiga ver graça na memória de certas coisas”, entendendo que a idade serve de passaporte para compartilhar certos afetos sem vê-los
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como “mimimis do passado” (VIEIRA, 2010).
De geração posterior à de Marceu, o jornalista Tiago Petrik, que iniciou como estagiário no JB no início dos anos 1990, não considerou o recorte temporal,
mas espacial. Em artigo em seu site RioEtc, Petrik observa que morria com o jornal um pouco da cidade: “Pra quem não é daqui, talvez seja difícil entender. Mas
hoje o Rio morre um pouco. Foi às ruas a última edição impressa do Jornal do
Brasil” (PETRIK, 31/8/2010). Ao se referir a “quem não é daqui”, Thiago alude
ao Rio, cidade indissociável da história do Jornal, como sua sede e como parte de
seu capital simbólico: muito de sua imagem como jornal está relacionada a uma
ideia de ser “carioca”, particularmente da Zona Sul, acalentada pelo próprio jornal
em sucessivos discursos autorreferentes. Transfere o foco da morte do JB para
quem fica: seus órfãos, como disse Azêdo, frisa a esperança acalentada apesar dos
pesares, e prossegue expressando o anseio pela volta no tempo, por um milagre,
desejo tão irracional quanto unânime entre os que perdem entes queridos:
Tá certo que há tempos já não era o velho JB. Mas, como a esperança é a última
que morre, a gente sempre aguardava uma reviravolta que fizesse, enfim, tudo ser
como antes. Agora o jornal só vai “sair” on-line. Os atuais donos da empresa tentam vender a ideia de que essa é uma atitude alinhada aos novos tempos. Chegam a
argumentar que fazem isso em respeito ao meio ambiente. Sem forças, a gente nem
ri da piada (PETRIK, 31/8/2010, grifo meu).
183
Nas universidades também houve mobilização. Uma das iniciativas de professores de jornalismo foi o site “JB 1891-2010 – Um tributo ao Jornal do Brasil”, produzido por estudantes de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social
da Uerj, na disciplina Técnicas de Reportagem, Entrevista e Pesquisa II, que registrou o clima da redação nos últimos dias de circulação do jornal e entrevistou
jornalistas que nele fizeram história. Alberto Dines, um dos entrevistados, recorre
à ideia da singularidade do “espírito” daquela redação, algo “sagrado”:
Criou-se um espírito único. As pessoas podiam sair e, quando voltavam já não encontravam todos, mas tinha alguma coisa impregnada. O JB não foi o jornal de um
período, por pelo menos 40 anos passou por diversos comandos, mas ninguém tocou em nada, era uma coisa sagrada. O Jornal do Brasil criou um espírito corporativo [...]. É esse espírito que fez o jornal que acabou, mas os filhos continuam. Essa
choradeira positiva ela é reflexo de um sentimento coletivo de perda (DINES, em
Tributo ao JB, grifo meu).
Também foi lançado, em setembro, o blog Lá no JB, por alunos da Facha
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(Faculdades Integradas Hélio Alonso), sob a orientação do professor PC Guimarães, jornalista sem passagem pelo JB, que justifica a iniciativa lembrando se tratar de “um dos jornais mais respeitados do nosso país”, que “esteve presente na
vida dos brasileiros narrando fatos importantes da história”, com a “ativa e ilustre
participação de conceituados profissionais da imprensa nacional” (GUIMARÃES,
2010). Com discurso semelhante ao do programa Observatório da Imprensa, a
proposta do blog, afirmam, “não é ser saudosista ou lamentar sobre o que foi o
antigo Jornal do Brasil, mas apresentar sua história e o porquê de ter se tornado
um ícone no jornalismo brasileiro”, embora sobressaia o tom laudatório.
A manutenção e circulação de memórias foi bastante acionada naqueles meses. Em texto intitulado O JB que nós amávamos, a ABI publicou em seu site um
balanço do seminário de mesmo nome realizado dois meses após a “morte” do
jornal: “A memória do Jornal do Brasil não se apagou, nem se apagará. Esta foi a
conclusão do seminário ‘O JB que nós amávamos’, que, nos dias 20 e 21 de outubro, reuniu várias gerações de jornalistas e estudantes de Jornalismo, para falar
sobre a importância histórica e do apogeu do diário de 119 anos, cuja última edição impressa circulou no dia 31 de agosto de 2010” (ABI, 2010).
Na apresentação do site Tributo ao JB, produzido por seus alunos, o jornalista e professor Marcelo Kischinhevsky, ex-editor de Economia e ex-colunista do
184
JB, assinala, na linha de Petrik, que a certeza do fim do JB, paciente de uma doença terminal em lenta agonia, “estava longe de surpreender, mas envolvia grande
carga emocional para milhares de jornalistas. Inclusive eu, que passei ali oito
anos, de altos e baixos, acertos e fracassos, adrenalina e depressão, e sobretudo de
aprendizado”. “Escrever sobre perdas próximas é um dos maiores desafios da profissão”, afirmou, lembrando que o maior que viveu foi redigir o obituário de seu
pai, o médico Waldemar Kischinhevsky: “Um texto correto do ponto de vista técnico, mas pleno de emoções profundas, que me valeu por anos de terapia” (KISCHINHEVSKY, 2010). Zuenir Ventura mencionou a dificuldade de manter a técnica e a objetividade ao escrever sobre a perda de um “ente querido”, em artigo no
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Globo:
Desculpem falar hoje de dois temas sobre os quais não tenho o menor distanciamento: o elogio de um pintor amigo que surge [Ziraldo] e o obituário de um ente
querido que desaparece, ou seja, de uma instituição à qual minha família dedicou
parte de sua vida. Para vocês terem ideia, lá em casa, somando os tempos de serviço – o meu, o de minha mulher e o de meu filho – foram quase 40 anos de JB. Como manter a objetividade e não derramar um pranto? (VENTURA, 2010).
Nos depoimentos provocados pela “morte” do Jornal do Brasil, estão presentes os sentimentos de dor, de perda, e também de orgulho, de vida bem vivida.
É João Máximo, no programa da ESPN, quem sintetiza o que entendemos representar esta morte simbólica do Jornal do Brasil para esses jornalistas: “É uma
parte da vida da gente que se perde. Só isso que eu posso falar” (MÁXIMO,
2010). Entende-se “da gente” como referência à comunidade jornalística, forte
vínculo de identidade profissional e pessoal, na medida em que a profissão é constitutiva do sujeito. Sublinha-se ainda a dificuldade em expressar o sentimento em
palavras, expressão máxima da prática jornalística. Os depoimentos apontam para
dois aspectos: o implacável sentido de “morte” (tanto para os que lamentaram a
morte súbita, quando do encerramento da versão impressa, como para os que consideravam o JB um “morto em vida” em seus últimos anos) e a humanização do
objeto do “luto”, com a utilização de expressões desse campo semântico: calvário,
morte, orfandade, como expressa Marceu Vieira ao falar da “morte do jornal”,
antecedida por um “calvário”, imagem a que recorre para nomear a derrocada da
empresa: “O velho Jornal do Brasil já cumpria o calvário que o levaria à morte,
depois de anos de grave crise de indigência financeira e, por último, editorial”
(VIEIRA, 2016).
185
Um exercício estético permitiu ao fotógrafo Rogério Reis materializar em
imagens uma viagem no tempo, traduzindo iconograficamente o plano de suas
memórias ao revisitar o prédio, assim como nas demais experiências outros jornalistas utilizaram a palavra, a narrativa oral ou escrita. Em setembro de 2010, Rogério publicou o ensaio fotográfico Avenida Brasil 500, a partir de quatro visitas
ao prédio abandonado, às quais sobrepôs suas imagens preferidas como fotojornalista da casa. “Voltar ao ‘local do crime’ foi uma decisão que tomei quando li na
imprensa que a antiga sede do JB seria descaracterizada, ou melhor, reformada
para se tornar um centro de referência em traumato-ortopedia”, explica Rogério,
que fez “Uma viagem fotográfica às ruínas da antiga sede do Jornal do Brasil
dialoga com fotos do período que abrange o período histórico entre a Anistia e as
Diretas Já. Vivo e revivo aqui dois momentos de um mesmo lugar” (REIS, 2010).
Sob a trilha de Notturno/Mikrokosmos, de Béla Bártok, Rogério utiliza fotos
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do JB em ruínas como moldura de outras fotos suas, do passado, revisitando sua
carreira: a demolição da Zona do Mangue (1977), Chico Buarque deixando o
Dops e Zico no vestiário do Maracanã, Luiz Inácio Lula da Silva no Congresso
dos Trabalhadores, Magalhães Pinto afagado por um anônimo na Praia de Botafogo, torcedores da Copa do Mundo (1978), Austregésilo de Athayde na ABL, Carlinhos do Pandeiro no carnaval, Teotônio Vilela em visita a presos políticos na
Frei Caneca, a campanha por Anistia, Fernando Gabeira e Márcio Moreira Alves e
Miguel Arraes voltando do exílio, um “pega” no Alto da Boa Vista (1979), bomba
na OAB e operários no Cristo Redentor, o repórter Samuel Weiner vendendo mate
na Praia de Ipanema, cacique Juruna e Leonel Brizola na Cinelândia e a cheia do
Rio Tocantins (anos 80), bomba no Rio Centro e o carnaval na Avenida Rio Branco e no Sambódromo, Ferreira Gullar (1981), Carlos Drummond de Andrade na
Praia de Copacabana e sentado no chão de casa e crianças no Rio Maria, no Pará
(1982), Caetano Veloso, Darcy Ribeiro com Luiz Carlos Prestes na ABI e Sobral
Pinto na PUC-Rio (1983), comícios pelas Diretas na Cinelândia, na Candelária e
na Praça da Sé, Tom Jobim na praia, Sonia Braga e Dennis Hopper no 1º Festival
do Rio (1984), Dina Sfat (1985), surfistas de trem no ramal de Japeri (1986). Os
personagens dão vida, “povoam” os salões abandonados, entre maquinário, paredes descascadas, objetos empoeirados deixados para trás.
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Figura 16 (alto): Cinelândia 1984 sobre foto do antigo estúdio fotográfico do JB
Figura 17: Fernando Gabeira festejado na volta ao Brasil em 1979 e ato por Diretas Já
Fotomontagens de Rogério Reis
Se o mausoléu seria o colossal prédio da Avenida Brasil, o epitáfio do Jornal do Brasil poderia ter sido o fecho da reportagem da ESPN Brasil:
Não é preciso ter vivido naquele tempo para entender o que acontecia. Basta ouvir
alguns daqueles que fizeram esta história para saber o tamanho dela. Provavelmente, falam por todos. Palavras quase singelas nos depoimentos a seguir talvez não
deem conta do vazio que fica. Mas dão conta da alma com que cada página foi escrita. Maior que qualquer vazio. Eternamente (Pontapé Inicial ESPN Brasil,
31/8/2010, grifo meu).
187
A consciência da mudança inexorável – da transitoriedade da existência,
como diria Freud ([1915) 2010) – levou muitos a desejarem seus lugares e tempos
perdidos. A modernidade, ainda que tenha significado valorização do novo e desdém pela tradição, também produziu – como um de seus efeitos aparentemente
contraditórios – um desejo de conter a história e uma recusa à irreversibilidade do
tempo, uma vontade de memória. Sendo, muitas vezes, não apenas o melhor momento do JB, mas o melhor momento da vida de quem o lembra. João Máximo
verbaliza essa coincidência: “Ali eu acho que foi o grande momento da minha
vida profissional e do Jornal do Brasil” (MÁXIMO, 2010).
A perda de relevância e, depois, a própria extinção do JB, simbolicamente
representam o fracasso de um projeto profissional e de vida. E emergem evoca-
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ções pela sua sobrevivência simbólica:
No JB, o fazer jornalístico nos absorvia, de dia e de noite, de madrugada, na redação, no bar, na praia e até em casa. Pobres das nossas famílias que até hoje têm que
ouvir infindáveis histórias, que não cansamos de, obsessivamente, contar e repetir,
como se fosse a primeira vez. [...] Vamos continuar perpetuando, em nossos corações, um tempo incomparável, de alegrias e conquistas, de rica convivência humana que vai continuar iluminando o nosso caminho (TABAK, 2014, grifos meus).
3. Vínculos
Essas manifestações carregadas de emoção indicam que a relação destes
jornalistas com o Jornal do Brasil não se limita a um momento bem-sucedido na
carreira. São constituintes da sua própria identidade, um vínculo mais que profissional. Revelam um forte envolvimento afetivo. Mair Pena Neto diz que “cada
integrante da redação se sentia um pouco dono do jornal” (HERKENHOFF, 2010,
p. 149), assim como Ana Arruda Callado, afirma: “nós adorávamos o jornal, como
se fosse nosso” (CALLADO, 2010). Há, portanto, um comprometimento pessoal
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com a empresa, de que são exemplares as afirmações sobre “vestir a camisa”:
Independentemente de crises financeiras, o JB atravessou o final do século XX como referência de jornalismo moderno. Era uma academia da profissão: Elio Gaspari, Walter Fontoura, Carlos Castello Branco, Armando Strozenberg, Zuenir Ventura, Carlos Lemos, Flávio Pinheiro, Marcos Sá Corrêa – e repórteres dotados de faro
animalesco: Oldemário Touguinhó, Carlos Rangel, Tato Taborda, Dacio Malta,
Tarcisio Holanda, Sérgio Fleury, Macedo Miranda, Norma Couri, Tim Lopes. Uma
química exata de charme e inteligência que poucas vezes se repetiria em outras redações. Vestia-se a camiseta da organização (SANTOS, 2016, grifo meu).
Também é neste sentido o depoimento do jornalista Marcos de Castro, no
dia em que o JB deixou de circular, 31 de agosto de 2010:
O sentimento, a atitude nossa, era vestir a camisa, no bom sentido, não vestir a
camisa como bajular patrão, mas vestir a camisa no sentido de que a gente tinha
orgulho de trabalhar num jornal que a gente sabia que era um grande jornal, que era
certamente o melhor do país naquela época (CASTRO, 31/8/2010, grifo meu).
De acordo com o dicionário Michaelis, vínculo tem os seguintes significados: 1. O que ata, liga ou aperta; atadura, liame, nó; 2. O que estabelece uma relação lógica ou de subordinação; 3. O que liga afetivamente duas ou mais pessoas;
relação, relacionamento; 4. O que restringe ou condiciona (algo); 5. Gravame,
contribuição que toda pessoa, física ou jurídica, deve ao Estado; encargo, obrigação, tributo; 6. Existência de uma condição que limita o movimento de um sistema físico; 7. Ligação entre itens de dados ou programas, possibilitando ao usuário
fácil acesso a um enquanto o outro está sendo usado.
Assim, vínculo (do latim vincŭlum) é uma união, relação ou ligação de uma
pessoa ou coisa com outra, atadas física ou simbolicamente. Aplica-se a ligações
morais ou afetivas, caso do vínculo mãe-filho; em contratos laborais – o vínculo
189
empregatício; e, na linguagem jurídica, como sinônimo de encargo, obrigação.
Este sentido remete às origens dos morgadios, grupos de bens inalienáveis que se
transmitem sem serem divididos ou forma de organização familiar que designa
estatutos e comportamentos a seus sucessores.
No regime de morgadio, comuns em Portugal e na Espanha a partir do século XIV, os domínios senhoriais eram inalienáveis, indivisíveis de partilha por
morte do titular, transmitindo-se nas mesmas condições ao descendente primogênito, o morgado: “O conjunto dos bens de um morgado constituía um vínculo,
uma vez que esses bens estavam vinculados à perpetuação do poder econômico da
família de que faziam parte, ao longo de sucessivas gerações” (NEPOMUCENO,
2010, p. 225). “Era como que uma concessão perpétua, pura ou condicional, feita
por um instituidor [...] a fim de que os respectivos bens se conservassem indivisos
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e inalienáveis na posse da família, e esta com a primitiva grandeza” (LELLO, s/d).
Estes bens não podiam ser vendidos nem doados, e eram herdados pelo primogênito juntamente com o título. Este tinha a obrigação de sustentar, de dar uma
profissão ou de efetuar um casamento que garantisse a subsistência dos seus irmãos, assim como assumia o dever dos atos públicos de morte. Segundo Lurdes
Rosa, “as obrigações pias não devem ser desligadas das indicações fúnebres, nem
das estruturas materiais que proporcionam a realização dos atos públicos da morte
(exposição do corpo, cortejos fúnebres, capelas familiares e suas formas de organização)” (ROSA, 1996, p. 121)55. Ou seja, os homens mais velhos da família
mantinham as principais posses e a missão de dar continuidade ao nome e à honra
da família.
Para além das determinações objetivas, o instituidor condicionava a vontade
do herdeiro e da linhagem, “recriando o passado à sua maneira (por exemplo,
através da encomenda de crônicas sobre os seus feitos e dos seus antepassados) e
projetando-o através deles no futuro, se possível ‘enquanto o mundo durasse’”
55
Esta instituição vincular tem origem na legislação castelhana e, embora seja adotada pelo reino
de Portugal antes, só entra na legislação portuguesa com as Ordenações Filipinas de 1603. Os
morgadios foram extintos em Portugal no reinado de D. Luís I por Carta de Lei de 19 de maio de
1863, subsistindo o vínculo da Casa de Bragança, o qual se destinava ao herdeiro da Coroa. Este
último morgadio viria a perdurar até 1910. No Brasil existiu o morgadio do Cabo de Santo Agostinho em Pernambuco, fundado por João Pais Velho Barreto, e o morgadio da Casa da Torre, na
Bahia (ROSA, 1996).
190
(CALDEIRA, 2011, p. 39). “Enquanto o mundo durar” ou “até o fim do mundo”
eram os prazos estipulados comumente nos testamentos aos herdeiros-morgados
quanto aos seus deveres de zelar pela memória dos antepassados. O Livro de Vínculos da Ilha de Santiago mostra registros como estes:
os instituidores da capela de Chuva-Chove declararam que, depois das suas mortes,
todos os sucessores, “[...] em cada um ano enquanto o mundo durar”, seriam obrigados a dizer-lhes vinte missas rezadas e uma missa cantada;
António de Lila de Fernão Só, instituidor da capela da Casa Velha, na freguesia de
S. Lourenço do Pico, impusera a Isabel Pervasso, sua herdeira, a obrigação de, por
dia de finados, lhe mandar dizer uma missa, em cada um ano, perpetuamente;
Sezilia Fernandes de Barros, fundadora da capela do Fragoso, estipulou que todos
os herdeiros ficariam com a obrigação de lhe mandar dizer por alma, todos os anos,
enquanto o mundo durar, três missas cantadas (CALDEIRA, 2011, p. 237).
Entendia-se que os mortos ilustres deveriam ser sepultados em capelas ou
igrejas de renome, para que não deixassem de ser recordados e invocados. O funePUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
ral tinha um caráter importante. Julgava-se que os acompanhantes, sobretudo clérigos, mendigos e confrades, pela sua ligação especial a Deus, pudessem interceder pelo morto, por meio de missas e orações.
Os pobres eram abundantemente convocados a participar nos funerais e nas missas
rezadas e cantadas em homenagem aos instituidores, [...] por serem sofredores,
tendiam a ser implicitamente identificados com Cristo, tanto pelos fundamentos
doutrinais do Catolicismo reinante, como pelas formas de sensibilidade vivenciadas nas ilhas. Por conseguinte, surgiam aos olhos dos poderosos como intercessores privilegiados junto a Deus no momento do julgamento (SILVA, em CALDEIRA, 2011, p. 236).
Seu Daniel, o entregador de jornal a quem é dada voz no obituário do JB,
seria um desses pobres convidados a chorar o morto ilustre.
Para Caldeira, as crônicas eram outro documento importante dos vínculos,
pois, através delas, “transmitiam-se e engrandeciam-se as memórias familiares”.
Maria de Lurdes Rosa menciona estas que transmitem informações “[...] que não
se encontram noutros locais (podendo considerar-se que, entre fatos inventados, se
encontram as tradições familiares que sabemos transmitirem-se por meios orais)”
(ROSA, p. 157). Silva explica que a vinculação constituía também um meio por
intermédio do qual os instituidores alcançavam a imortalidade social:
191
Através da imposição aos seus herdeiros da obrigação de dizerem missas anuais em
sua homenagem e de darem esmolas caridosas, aos pobres e igrejas, por ocasião de
aniversário, os fundadores dos morgadios e capelas transformavam-se em seres socialmente perenes. Tornavam-se assim imortalizados na memória coletiva, a quem,
ciclicamente, os descendentes prestavam vassalagem espiritual (SILVA, em CALDEIRA, 2011, p. 346).
Os tributos prestados ao Jornal do Brasil na sua “morte” podem ser entendidos sob essa múltipla perspectiva dos vínculos: do pertencimento e do afeto, da
gratidão e da devoção, do compromisso hereditário. Lembram-se seus grandes
feitos, seus filhos mais diletos, sua herança. É com o sentido de reverência a jornalistas já falecidos que o jornalista Nilo Dante saúda seus “ancestrais”, em texto
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sobre o fim do JB:
O paciente que ora sepultam não é o jornal altivo e elegante do Odylo e do Dines,
que o Walter Fontoura tanto se empenhou em conservar. Não é o campo de batalha
em que o Fontes e o Touguinhó se tornaram grandes vencedores. É apenas o legado
indigente e andrajoso de coveiros antigos e controladores de ocasião. O que está
morrendo com o JB é a inépcia gerencial e predadora que ali se instalou. Vive a
brava armata da redação Brancaleone que ultimamente sustentou a sobrevida do
cadáver imperdoável. Mataram o grande jornal, mas não levarão para seu túmulo o
jornalismo dos sonhos do Jornal do Brasil (DANTE, em HERKENHOFF, 2010, p.
25-26, grifos meus).
Ao se referirem ao jornal dos sonhos, os jornalistas expressam seu desejo de
preservar um projeto de jornalismo e de vida, aquele envolvimento declarado a
que Bourdieu (1996) denominou illusio – estar envolvido no jogo.
3.1. JB, um título de nobreza
Ainda na perspectiva da identidade, o nome é a nossa primeira e maior marca social. Como lembra Bourdieu, “um nome próprio designa o mesmo objeto em
qualquer universo possível”, como “designador rígido”, na expressão de Kriple,
ou “um ponto fixo num mundo que se move”, de Ziff.
Por essa forma singular de nominação que é o nome próprio, institui-se uma identidade social constante e durável, que garante a identidade do indivíduo em todos
os campos possíveis onde ele intervém como agente, isto é, em todas as suas histórias de vida possíveis (BOURDIEU, 1996, p. 185).
E não é por acaso que a assinatura, signum authenticum que autentica essa
identidade, é a condição jurídica das transferências de um agente a outro – ou, no
192
caso do Jornal do Brasil, que a sua identidade seja alvo de reivindicações de autenticidade e valor único apesar da passagem da marca de um a outro dono ao
longo do tempo. “Não é um novo jornal, ou qualquer jornal: é o JB”, como destacou Omar Catito Peres.
O nome próprio é o atestado visível da identidade do seu portador através dos tempos e dos espaços sociais, o fundamento da unidade de suas sucessivas manifestações e da possibilidade socialmente reconhecida de totalizar essas manifestações
em registros oficiais, curriculum vitae, cursus honorum, ficha judicial, necrologia
ou biografia, que constituem a vida na totalidade finita, pelo veredicto dado sobre
um balanço provisório ou definitivo (BOURDIEU, 1996, p. 185).
Joëlle Rouchou justifica o desejo de lembrar dos jotabenianos pelo orgulho
de ostentar aquela marca, aquele sobrenome, uma filiação, que não acomete jornalistas de outros veículos: “O Jornal do Brasil era singular. A Última Hora acionou esse
pertencimento muito forte também, pessoas escreveram livros sobre o jornal, e as pessoas
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se referem a essa assinatura: ‘eu fui da Última Hora’, como ‘eu trabalhei no JB. Vira um
sobrenome” (ROUCHOU, 2019). Eis o que evoca o uso inabitual que Proust faz do
nome próprio precedido do artigo definido (“o Swann de Buckingham Palace”, “a
Albertina de então”, “a Albertina encapotada dos dias de chuva”), rodeio complexo pelo qual se enunciam ao mesmo tempo a “súbita revelação de um sujeito fracionado, múltiplo” e a permanência para além da pluralidade dos mundos da identidade socialmente determinada pelo nome próprio (BOURDIEU, 1996, p. 187) –
“o nosso JB” de Belisa Ribeiro, ou “o velho JB” de Cezar Motta, por exemplo,
seria uma “espécie de essência social, transcendente as flutuações históricas, que a
ordem social institui através do nome próprio” (p. 188).
Bourdieu observa que, diferentemente dos detentores de um capital cultural
desprovido da certificação escolar que, a todo momento, podem ser intimidados a
apresentar seus comprovantes, por serem identificados apenas pelo que fazem,
simples filhos de suas obras culturais, os detentores de títulos de nobreza cultural
– neste aspecto, semelhantes aos detentores de títulos nobiliárquicos, cujo ser,
definido pela fidelidade a um sangue, solo, raça, passado, pátria e tradição, é irredutível a um fazer, competência ou função – basta-lhes ser o que são porque todas
as suas práticas valem o que vale seu autor, sendo a afirmação e a perpetuação da
essência em virtude da qual elas são realizadas. Curiosamente, a dona do Jornal
do Brasil em sua fase áurea era uma condessa: Maurina Pereira Carneiro recebeu
193
o título – não nobiliárquico, mas religioso – no casamento com o empresário Ernesto Pereira Carneiro. “Para se ter uma ideia, a dona era uma condessa, a condessa Pereira Carneiro, e o diretor, um lorde, o seu genro Nascimento Brito”
(KOTSCHO, 2010).
Definidos pelos títulos que os predispõem e os legitimam a ser o que são,
que transformam o que fazem na manifestação de uma essência anterior e superior
a suas manifestações, segundo o sonho platônico da divisão das funções baseada
em uma hierarquia dos seres, eles estão separados, por uma diferença de natureza,
dos simples plebeus da cultura que, por sua vez, estão votados ao estatuto, duplamente desvalorizado, de autodidata e de substituto (BOURDIEU, 2007, p. 27).
As nobrezas são essencialistas: ao julgarem a existência como uma emanação da essência, deixam de considerar para eles mesmos os atos, fatos ou más
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ações repertoriados nos atestados de serviço e nas folhas corridas da memória
burocrática; elas atribuem-lhes valor apenas na medida em que manifestam claramente, nos matizes da maneira de ser, que seu único princípio e a perpetuação e a
ilustração da essência em virtude da qual eles são realizados. Esse mesmo essencialismo leva-as a impor a si mesmas o que lhes impõe sua essência – noblesse
oblige (quem é nobre deve proceder como tal) –, a exigir de si mesmas o que ninguém poderia exigir delas, a provar a si mesmas que estão à altura de si mesmas,
ou seja, de sua essência (BOURDIEU, 2007, p. 28).
3.2. Jotabenianos, uma comunidade autointerpretativa
Este subcapítulo tem o objetivo de refletir sobre o papel da memória na
construção da identidade profissional dos jornalistas. Para isso, analisamos depoimentos produzidos por jornalistas autodeclarados jotabenianos. Os discursos
memorialísticos aqui analisados têm em comum o caráter nostálgico e o fato de
serem autorreferenciais, ou seja, são textos cujos autores se apropriam de fatos e
aspectos do passado para atribuírem sentidos a sua profissão (no caso, o jornalismo) e a si mesmos como atores sociais da própria história do jornalismo.
194
Este sentimento de pertencimento dos Jotabenianos, mobilizada através de
uma memória coletiva e interpretativa do passado, reforça o laço que os une como
um grupo, uma unidade. Mas, como Bourdieu afirma sobre os jornalistas – que
não existe “o jornalista”, não existe “o jotabeniano”, como identidade unívoca. Há
uma pluralidade de vozes em permanente disputa, buscando formar conjuntos
mais ou menos coesos, que partilham valores e ideias comuns e que se parecem
mais homogêneos no discurso sobre si, a partir da ilusão biográfica, por exemplo.
A atualização e rearticulação de memórias nostálgicas sobre o JB e o próprio jornalismo, discurso não institucionalizado, mas com força narrativa, reitera os discursos autorreferentes do próprio jornal e dos livros que o enaltecem. Identidades
jornalísticas ancoradas na nostalgia e na ideia de sobrevivência, como no manual
improvisado por Nilo Dante, com mais de 50 anos de profissão, em 10 jornais e
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quatro revistas do Rio, baseado no jornalismo atribuído ao JB:
Este é o jornalismo dos editores que não demitem a ambição da performance na
presunção de que já estejam o melhor... das pautas produzidas nas redações, não
nas assessorias de imprensa autoras da tempestade de releases que obstruem as artérias dos jornais... da reportagem expositiva e não das entrevistas ocas... que não
abre latifúndios de espaço a políticos e governantes – os grandes satãs da opinião
pública... que trata artes e espetáculos com informação crítica, sem divulgação deslumbrada... que seja dia e noite infenso à idolatria e ao engajamento pueril... que
não concede página inteira a qualquer mequetrefe do show business, qualquer documentarista de fundo-de-quintal... que não demite a emoção... que não perde a
humildade... que não cultiva a egolatria... que observa os fundamentos cruciais do
nosso ofício que começam e terminam no interesse do leitor... que não emascula o
conteúdo pelo grafismo garroteador de designers delirantes... que valoriza a fotorreportagem, não insultando a fotografia com bonecos de página inteira, fotos de arquivo, a repetição da mesma foto em duas, três páginas da mesma edição. Um jornalismo, enfim, que busque a influência social – marca dos grandes jornais – e
que não seja maciçamente rejeitado pelo leitor, como o de hoje (DANTE, em
HERKENHOFF, 2010, p. 26, grifos meus).
Nas suas falas míticas para a posteridade, ou nos encontros celebrativos, os
jornalistas costumam se lembrar de acontecimentos extraordinários, incomuns.
Mas é preciso lembrar que o jornalismo é essencialmente baseado em rotinas, que
sugerem monotonia. A ocorrência mais frequente no trabalho jornalístico é o
acontecimento rotineiro, previsível, e de retorno cíclico: efemérides, reuniões de
conselhos, fechamento da Bolsa de Valores, competições esportivas, lançamento
de coleções de moda a cada estação. Mas o que dá charme a essa profissão é o
lado estressante: “a urgência é paradoxalmente fator de estresse e de satisfações
possíveis da profissão, até se tornar uma mitologia” não encontrada em outras
195
profissões – “caminhoneiros, médicos de emergência vivem relação comparável
sem que façam dela objeto de evocações épicas” (NEVEU, 2006, p. 87), conforme
explicou Dines: “Todos os dias são grandes dias. Não se pode contar todos os dias
com um dia excepcional para se fazer jornal. Mas é possível, sim, tratar cada dia
como um dia excepcional” (DINES em MERCADANTE, 1966, p. 137).
A excepcionalidade apontada por Dines como uma meta jornalística foi inculcada na identidade profissional dos jotabenianos, que homogeneízam situações
singulares, os pontos altos do JB, em uma longa duração, um “sempre”. Essa operação faz sentido na medida em que se trata também de suas próprias identidades,
confundidas numa essencialidade que nunca se perde, embora todos – o jornal e
os jornalistas – tenham mudado.
A trajetória do Jornal do Brasil está intrinsecamente relacionada à forma
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como os ex-profissionais do veículo enxergam a sua própria, na medida em que
“os jornalistas têm óculos especiais a partir dos quais veem certas coisas e não
outras; e veem de certa maneira as coisas que veem”, como diz Traquina (2008).
Muitos ex-JBs, ao analisarem a importância do veículo, utilizam seus óculos como lentes de aumento: “Um jornal não muda o mundo. Mas é como o bispo no
jogo de xadrez. Anda na diagonal. O Jornal do Brasil provou isso. Marcou para
sempre a história do jornalismo no Brasil e no mundo” (RIBEIRO, 2015, p. 14). E
se incumbem dessa missão, como Alfredo Herkenhoff afirma em seu livro: “A
família ex-JB brilha por todo canto, sempre saudosa, torcendo não por um ‘passado não tão risonho, que não volta nunca mais’, como na música de Noel Rosa,
mas pelo menos para que a velha casa continue a merecer o respeito da sociedade” (HERKENHOFF, 2010, p. 12).
“Ex” é um prefixo que indica “1 - Indica fora de, derivação, saída, separação, afastamento, apartamento, extração, em palavras de várias categorias morfológicas. 2 - Quando unido por hífen a um substantivo, indica que o nome indicado
deixou de ser aquilo que era”, segundo o dicionário Aurélio (2004). Ou seja, quem
deixa de ser funcionário do JB é ex-funcionário do jornal. Ao mesmo tempo, na
palavra ex-voto, este “estar fora” representa o agradecimento por uma graça recebida pelo devoto: “Quadro, imagem ou inscrição que se oferece para comemorar
um voto ou desejo atendido (FERREIRA, 2004).
196
As palavras latinas ex e votum, que foram unidas para especificar uma prática votiva na antiga Roma. Votum é proveniente do particípio do passado do verbo
latino voveo/ vovere – que também significa “voto/promessa”, “prometer algo a
alguém”. Significa, portanto, uma promessa ou voto feito a uma divindade. Cunha
e Gomes Gordo (2018) lembram que o termo foi criado pelos romanos para identificar as promessas que eram feitas aos deuses. Com o passar do tempo, a expressão religiosa foi ganhando outras conotações. No tempo do Império Romano, era
comum que os soldados fizessem voto de obediência aos seus superiores. Os súditos faziam voto ao imperador – prometendo fidelidade. Com isso, entendemos a
aplicação corriqueira da palavra voto em nossos dias. Votar é dedicar confiança
em algum candidato.
A palavra voto, no sentido religioso, foi empregada então pela Igreja Católica Romana para designar a consagração religiosa de pessoas que buscam viver a
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configuração com Cristo. Os religiosos emitem votos de pobreza, castidade e obediência. Apesar das muitas formas de ser empregada, a essência da palavra permanece como um “contrato”. Com o ex-voto esta concepção de “contrato” é salientada.
O prefixo ex, também de origem latina significa “pôr para fora”. Dessa forma, é compreensível a real definição de ex-voto, como cumprimento externo, por
parte do devoto, do contrato estabelecido com o sagrado. O ex-voto é o cumprimento da promessa. Quando o fiel faz um voto a uma divindade ele faz um contrato de cumprimento, caso a divindade faça sua parte em atendê-lo. Depois de alcançar a graça, por intermédio da divindade de sua devoção, o devoto cumpre a
sua parte no acordo, que é externar o agradecimento.
Quando a graça é alcançada e o “milagre” realizado é hora de externar a gratidão,
colocar para fora como testemunho para os outros o que a divindade fez em seu favor. Os ex-votos são o cumprimento externo da graça recebida, e tentam materializar em símbolos imagéticos o benefício recebido (GOMES GORDO, 2015, p. 31,
32).
O acréscimo do prefixo ex diante da palavra voto seria a consequência de
um acordo firmado (pela fé) e executado com sucesso: por meio do ex (do colocar
para fora), o devoto cumpre sua parte no acordo e testemunha o poder da divindade (CUNHA & GOMES GORDO, 2018). Essa “devoção” ao JB é externada por
197
meio de relatos, testemunhos que expressam gratidão, muito embora não tenha
sido formalizada uma promessa, mas haja um sentimento de dádiva, de dívida.
A necessidade, por parte dos ex-jornalistas, de atribuir a si mesmos um “carimbo” que os une à história do veículo – e fazer dele o passaporte para uma viagem de memórias – é uma maneira de cumprir sua parte no acordo firmado entre a
“divindade” (o JB), e seus “devotos”. Ao mesmo tempo em que, reunidos, formam uma espécie de clube cujos sócios compartilham de uma identidade comum.
As lembranças que remetem a um JB feliz e festivo levaram à realização de
grandes encontros anuais de ex-JBs, desde 2006, organizados pelos jornalistas
Sérgio Fleury e Vera Perfeito. Os jornalistas convocados atuaram no JB principalmente nos anos 1960/70, mas gerações posteriores também eram chamadas,
conforme a lista de interessados ia crescendo. Vera Perfeito, que foi do JB em
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duas fases, na década de 1970 e depois nos anos 2000, na gestão de Fritz Utzeri e
com o jornal já em profunda crise, conta:
A ideia de reunir os ex-JB de várias décadas surgiu justamente porque a turma da
geração 60/70, que lutou nas pretinhas (sem computador, mas na Remington) contra a ditadura apesar da censura, estava envelhecendo. Os editores vinham se aposentando, enfim era preciso dar continuidade à redação classificada pelos contínuos e cabineiros com “parque de diversões” (PERFEITO, 2019, grifos meus).
Assim, exercitam a preocupação comum de enquadrar ritualmente as ocasiões mais explícitas de contato entre uns e outros – “a identidade rígida, estereotipada, já é solidão, e, inversamente, quanto menos eu estiver sozinho, mais eu existo” (AUGÉ, 2012, p. 65). Outro motivo para a reunião vem da própria origem da
palavra: a religação com o afeto, a emoção e a experiência vivida com os que tomaram rumos profissionais diferentes e se distanciaram. E ainda, como lembra a
jornalista Joëlle Rouchou, o reencontro com seu próprio passado, no encontro
com o outro:
O que move é o afeto e a emoção, por uma experiência, pela força de estar junto. É
uma forma de você – que é uma questão de memória, quando a gente fica mais velho – se reencontrar com aquela euzinha que só está em foto. Poder reviver essa
emoção, esse afeto, esse companheirismo, é essa a sensação [...]. Quando você tem
60 anos e olha fotos de quando você tem 20 e não se reconhece, mas ao mesmo
tempo você quer estar com aquelas pessoas que vão te lembrar que você já foi
aquilo. Dá muito quentinho no coração. As memórias todas são reativadas, acende
aquelas lâmpadas que a gente sabe, não só na teoria como na prática, que a memó-
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ria traz. De fato, é real. Às vezes eu me sinto meio dinossauro, a gente está envelhecendo e continua... Mas é muito bom. Foi estruturante, pra muita gente. Marca
muito fortemente (ROUCHOU, 2019, em entrevista à autora).
O depoimento reflete a nostalgia, não a que apela aos grandes personagens e
momentos da história, mas a que retoma o banal, a experiência cotidiana, as sensações vividas por nós mesmos na infância ou juventude. O encontro, neste sentido, “busca remontar a ambiência de gerações passadas” (RIBEIRO, 2018).
É o reconhecimento de si mesmo, do outro e do objeto – o Jornal do Brasil
– de uma memória comum. Como afirma Walter Benjamin, “o passado só pode
ser apreendido como imagem irrecuperável e subitamente iluminada no momento
de seu reconhecimento” (BENJAMIN, 2010, p. 11). Ao traçar o seu Percurso do
reconhecimento, Ricoeur defende a hipótese de que os usos filosóficos potenciais
do verbo “reconhecer” podem ser ordenados em trajetória que vai do uso na voz
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ativa para o uso na voz passiva: identifica em Kant o primeiro filósofo a pensar o
reconhecimento; em Bergson, o reconhecimento de si mesmo; e em Hegel, o reconhecimento do outro. Desse modo, os três picos – kantiano, bergsoniano e hegeliano – correspondem a reconhecer o outro, reconhecer a si, e desejar ser reconhecido.
No que diz respeito ao vocábulo “reconhecer”, Ricoeur enumera três ideias
centrais: 1. Apreender (um objeto) pela mente, pelo pensamento, ligando entre si
imagens, percepções que se referem a ele; distinguir, identificar, conhecer por
meio da memória, pelo julgamento ou pela ação; 2. Aceitar, considerar verdadeiro
(ou como tal); 3. Demonstrar por meio de gratidão que se está em dívida com alguém (sobre alguma coisa, uma ação). “Tomadas em conjunto, elas compõem a
polissemia irredutível do vocábulo” (RICOEUR, 2006, p. 22)
O primeiro encontro foi em março de 2006, na Fiorentina. Um grupo formado por Carlos Lemos, Sérgio Fleury, Romildo Guerrante, Sandra Chaves, Vera
Perfeito, Joëlle Rouchou, Beatriz Bomfim, Margarida Autran e Diana Aragão
levou três meses para conseguir endereços de e-mails e telefones dos ex-JB. Foram em torno de 50 pessoas. Vera conta que começou às 13h, e os últimos saíram
às 2 da manhã. “Foi uma emoção grande rever amigos depois de anos. Infelizmente, muitos dos que compareceram já se foram, como Dines, Lemos, Macedinho,
199
Fleury, Fritz, Luiz Carlos Mello, Walter Fontoura, Mauricinho, La Peña...” (PERFEITO, 2019).
O maior foi o de 2007, no Rio Scenarium, que reuniu cerca de 400 ex-JB,
alguns vindos do exterior, como Rosenthal Camon Alves (EUA), Remy Gorga
(Equador) e Silio Boccanera (Londres). “A subida da escada parecia a entrada
para o baile Parece que foi Hontem, também um sucesso em décadas passadas,
um baile de jornalistas animado pela Orquestra Tabajara. Um sucesso completo”,
lembra Vera Perfeito à autora (2019). O terceiro encontro voltou a ser na Fiorentina, com Vera e Fleury à frente dos convites: “Acendíamos o fogo da turma uns
dois meses antes, prometendo mundos e fundos”. Foram cerca de 150 pessoas.
Estabelecia-se a tradição dos encontros anuais, que a partir de 2010 passaram a
contar com um instrumento permanente de mobilização: o blog Jotabeniano.
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O jornalista Sérgio Fleury iniciou na carreira em 1965. Trabalhou no Jornal
do Brasil, O Globo, O Dia, TV Globo, e foi um dos fundadores da TV Manchete.
Foi assessor de imprensa do procurador-geral de Justiça Antônio Carlos Biscaia e
do prefeito do Rio Saturnino Braga, e redator da Federação das Indústrias do Rio
de Janeiro (Firjan). Fleury foi, além de repórter, escritor, cronista, pauteiro, chefe
de reportagem e editor. Atuou no JB por 17 anos, e foi o grande mobilizador do
grupo Jotabenianos. Em 1º de junho de 2010 foi lançado o blog Álbum Jotabeniano56. Sérgio Fleury escreveu o primeiro post:
Abre-se o Álbum Jotabeniano.
CAROS AMIGOS DO JB: de maneira espontânea, está aberto o álbumfotojotabeniano via email!!! Lucila & Sandra enviaram a primeira foto (Borges Neto, Sandra, Jacinto, Abel e Tânia). Rebato esta bola com uma outra raridade dos
meus alfarrábios! A foto de 07 de abril de 1979 (sim...79) é da despedida do motorista Luiz Costa, no Bar Tomé, à Rua Bela, em São Cristóvão, onde identifico da
esquerda pra direita: Arturzinho Reis, Bella Stal, Diana Aragão, Chris Ajuz, Artur
Xexéo, um estagiário que morava em Santa Catarina (?!), Luiz Costa (mão no ombro do Xexéo), Luiz Carlos David (atrás), motorista Macário (camisão aberto, bigodinho), motorista xis (copo de chope na mão !?), etc etc... Quem ao lado do Xexéo ??? QUEM DÁ MAIS??? Está feita a segunda página do álbum-jotabeniano: e
passe a frente senão vira elefante57!!! ABRAÇÃO, Sergio FLEURY” (FLEURY,
1/6/2010).
56
Abre-se o Álbum Jotabeniano. http://albumfotojotabeniano.blogspot.com/2010/06/abre-se-oalbum-jotabeniano.html. Acesso: 28 abr. 2019.
57
O álbum tem como símbolo o elefantinho dos classificados, com o corpo coberto de anúncios.
200
Foram 263 posts em 2010, ano mais movimentado do blog e que marca o
fim da circulação do JB em papel. Postagens de fotos de situações de trabalho,
prêmios, ou de encontros pós-expediente, aniversários, despedidas de colaboradores. Comentários em geral ajudando a identificação de personagens das fotos.
A respeito do nome “Jotabeniano” dado ao álbum, decorrente da forma como alguns já se chamavam desde a Rio Branco, é interessante lembrar que o sufixo iano indica “proveniência, origem”. Entendendo o JB como uma origem comum, esses jornalistas partilham afetos e lembranças de si mesmos quando jovens, e projetos de futuro de outros tempos. Lembram os encontros de colegas de
turmas de escola ou faculdade, igualmente marcadas pela nostalgia. Um dos maiores encontros jotabenianos foi em março de 2012, que teve como gancho os 80
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anos de Alberto Dines:
CAROS JOTABENIANOS - Sábado, dia 10 de março, a partir das 13 horas, no
restaurante Fiorentina (Leme) vamos reunir os jotabenianos de todas as épocas &
idades que tiveram o privilégio de trabalhar no JORNAL DO BRASIL, nosso saudoso JB. Não é um encontro de lamúrias ou cobranças, mas de alto astral e boas
lembranças do tempo em que se fazia um jornalismo sério, usando máquina de escrever, laudas de 30 linhas & 72 toques, Nikon com filme de 36 "poses", com
competência, garra e muita ÉTICA. Aproveitaremos para comemorar – vocês podem não acreditar – os 80 anos de idade e/ou 60 de jornalismo do nosso Alberto
DINES. Apareça, ainda mais porque você só vai pagar o que consumir na sua cartela. Em anexo, o elefantinho JB (FLEURY, 25/1/2012).
Um grupo de Facebook chamado Jotabenianos, inicialmente fechado, depois
secreto, foi criado em novembro de 2012, com a finalidade de “reencontrar, trocar
ideias entre amigos e colegas que tiveram ou tem um passado em comum”. Foi
criado como uma complementação ao blog, com a diferença que no grupo a postagem é descentralizada, enquanto no blog é restrita aos administradores. São 343
membros, que publicam principalmente: repostagens de blogs próprios de jornalistas, fotos na redação, bastidores e reproduções de capas e fotos publicadas, fotos dos encontros jotabenianos, lançamentos de livros, notícias sobre o jornal e o
jornalismo, campanhas de mobilização pela liberdade de imprensa e comunicações de morte e homenagens a jornalistas: “Infelizmente, junto com reencontros
também chegam notícias tristes. Em menos de um mês, três jotabenianos faleceram: Vera Sastre, Luiz Mario Gazzaneo e J. Paulo. Então, o importante é o AGORA, que ainda estamos por aqui, VIVOS!”. Lá também Fleury é reconhecido co-
201
mo “o mais Jotabeniano dos Jotabenianos”, pelo “empenho em manter o grupo
unido” (24/9/2013).
Sylvia Moretzsohn e Israel Tabak escreveram sobre a relevância de Fleury
como aglutinador do grupo e promovedor da memória do jornalismo, no Observatório da Imprensa, quando o jornalista morreu, em 2014, aos 73 anos:
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Era uma pessoa extremamente agregadora. E muito zelosa da memória. Volta e
meia publicava no seu mural no Facebook pedaços de coisas perdidas no tempo,
como a reprodução da velha lauda quadriculada do JB (“30 linhas de 72 batidas”),
ou de símbolos como o elefantinho que era a marca dos Classificados do jornal.
Mas o melhor exemplo desse esforço é o Álbum Jotabeniano, aberto em 1º de junho de 2010, do qual ele foi um dos criadores e um dos principais incentivadores:
um exemplo de como as coisas banais do cotidiano viram história. Coisas que precisamos naturalizar no nosso comportamento, na nossa rotina, e que ficam esquecidas e de repente retornam e nos surpreendem: nós éramos assim e não nos lembrávamos, e teríamos esquecido, não fossem os guardiães da memória (MORETZSOHN, 2014).
A criação de um blog como o Álbum Jotabeniano, as reuniões, eventos criativos,
almoços, jantares que ele organizava, ao lado de outros colegas, tendo como pano
de fundo o velho JB, acabaram se constituindo em um importante resgate histórico
da fase mais apaixonante e criativa da reportagem brasileira, o marco zero do nosso
moderno jornalismo. Viver de fazer boas reportagens, sustentar a família batucando as “pretinhas” passou a ser possível e – mais do que isso – se transformou no
projeto de vida dos jovens que começavam a sair das faculdades de comunicação
(TABAK, 2014).
No encontro seguinte à morte de Fleury, em março de 2015, a comissão organizadora fez camisetas pretas com a imagem da antiga lauda do JB e máscaras
com o rosto do jornalista. Vera organizou mais duas festas, “mas a tristeza bateu”
e passou a Sandra Chaves a tarefa. O encontro de 2017 reuniu 95 jornalistas, que
atenderam ao seguinte convite:
Queridos coleguinhas de muitas gerações do JB, nosso encontro anual tem como
principal objetivo rever amigos e contar “causos”. É, também, uma oportunidade
única para rememorar aqueles bons tempos da Avenida Rio Branco, quando, ao
som das pretinhas das Olivetti azuis, batucávamos os textos do melhor jornal brasileiro. Já na Avenida Brasil ainda tínhamos ânimo suficiente para esticar o pescoção, alimentados pelos horríveis podrões das vielas adjacentes. E mesmo em época
de completa decadência empresarial, no Rio Comprido, conseguíamos fazer piadas
das balas perdidas que, periodicamente, caíam quase ao nosso lado. Esse espírito,
esse “salário-ambiente” nunca nos abandonou, nos melhores e piores momentos.
[...] No dia 13 de maio vamos libertar nossa memória e, mais uma vez, comemorar
o que conquistamos e vivemos no JB.
202
O encontro de 2019, em maio, já na ressaca do fechamento do “novo JB”,
com dívidas trabalhistas, não foi na Fiorentina, boicote ao empresário dono do
restaurante e do jornal. “A mudança de local teve um motivo sério: o Omar assumiu reviver o JB, mas depois das eleições não pagou mais aos jornalistas. Não era
justo ainda fazermos o encontro num local cujo dono não honrou seu compromisso com os coleguinhas” (PERFEITO, 2019). Escolheu-se a Taberna da Glória, e
teve como motes os aniversários de Luiz Orlando Carneiro e de Carlos Leonam, e
o lançamento de livro de Ana Arruda Callado.58
Romildo Guerrante, que iniciou carreira no JB, onde atuou por 20 anos em
duas passagens, a última como editor de Cidade em 2018, declarou sobre as ra-
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zões que o levam aos encontros:
Me faz um bem enorme à alma. Sinto uma identificação profunda com os que conviveram comigo na redação do JB. Temos sempre assunto. Temos a memória do
que passamos, de bom e de ruim. Compartilhamos a falta que sentimos, sem qualquer melancolia. Nossos encontros são alegres, profundamente alegres. A sensação
é de fraternidade, de que pertencemos a uma espécie de irmandade que toca de ouvido (GUERRANTE, 2019).
Como já foi mencionado, não se entende por “jotabeniano” – usado desde a
sede velha na Rio Branco – todo jornalista que trabalhou no Jornal do Brasil. Há
“jotabenianos” que não trabalharam no JB, mas comungam dessa sensação de
pertencimento, como Paulo Cesar Guimarães, ex-repórter de O Globo, autor do
blog Lá no JB e colaborador do Álbum Jotabeniano, onde escreveu:
Nunca trabalhei no JB, mas sempre fui JB. Admirava o jornal e seus repórteres.
Tremia quando “corria” contra vocês. Parecia que vocês eram maiores, mais bonitos, mais inteligentes. Naveguei em todo o blog e terminei a visita morrendo de rir
com a foto do saudoso Fontes de peruca. Vida longa para os repórteres do verdadeiro JB (GUIMARÃES, 2010).
58
Participaram Aguinaldo Araújo Ramos (Guina), Alexandre Medeiros, Ana Arruda Callado,
Antero Luiz, Beatriz Bomfim, Beatriz Chargel, Bruno Liberati, Carlos Leonam, Cecília Costa,
Celina Côrtes, Deborah Dumar, Diana Aragão, Evandro Teixeira, Fichel Davit Chargel, Gloria
Alvarez, Humberto Borges, Itala Maduell, Joaquim Campelo, João Berredo, Joëlle Rouchou, João
Baptista de Abreu, José Sérgio Rocha, Kitty Paranaguá, Liège Galvão Quintão (viúva de Fritz
Utzeri), Luciano Frucht, Luiz Orlando Carneiro, Marcelo Auler, Marcos Tristão, Maria Alice Paes
Barreto, Moacyr Andrade, Mônica Cotta, Norma Couri, Pedro Aguiar, Regina Fleury (viúva de
Sérgio Fleury), Regina Zappa, Romildo Guerrante, Roberto Falcão, Ronaldo Braga, Rosane Serro,
Sandra Chaves, Sérgio Caldieri, Sonia Meinberg, Tania Malheiros, Ubirajara Moura Roulien e
Vera Perfeito.
203
Outros grupos existem na arena de disputa da palavra e da memória, caso da
comunidade secreta JB no Modo Hard – que vivencia o pertencimento sob aspecto nada nostálgico em relação ao JB, e tem outras finalidades, entre as quais não
está incluída a visibilidade pública. E muitos jornalistas simplesmente não são
mobilizados por nenhuma dessas comunidades organizadas.
3.2.1. JB no Modo Hard
Com o arrendamento da marca Jornal do Brasil pelo empresário Nelson
Tanure, a reorganização do jornal não se deu apenas na divisão de suas editorias,
mas por uma ruptura entre o “novo” e o “antigo” JB. com jornalistas trazidos de
veículos como a revista Veja e o jornal Folha de S.Paulo, com salários três vezes
maiores do que os “antigos” que ocupavam a mesma função. Houve reformulação
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editorial e gráfica em suplementos, reordenação de antigos profissionais entre
editorias (muitos rebaixados de seus cargos, ainda que mantivessem o mesmo
salário) e, principalmente, o já mencionado apartheid no sexto andar da Avenida
Brasil 500. A gestão Conti durou apenas alguns meses, muito por conta da elevação absurda da folha salarial. Quando saiu, o jornalista foi seguido por alguns dos
que tinha levado para o JB. Entretanto, os remanescentes desta mudança que permaneceram pertenciam à chamada Era Tanure – e, em contraponto aos Jotabenianos que restavam na redação, não tinham a visão romântica construída por estes
últimos ao longo dos anos.
Em 18 de novembro de 2013 – mais de uma década após o arrendamento da
marca, portanto –, os jornalistas do Jornal do Brasil da Era Tanure criam no Facebook o grupo JB no Modo Hard, com propósito diametralmente oposto à saudosista página criada anteriormente pelos Jotabenianos. Lembram seu descontentamento com os rumos do jornal e as precárias condições de trabalho.
Como integrante do grupo, tenho acesso à integra das postagens e conversas. Reproduzo aqui exemplos das narrativas mais recorrentes, preservando a condição de anonimato dos participantes. O texto de apresentação é o seguinte:
Chega de comunidades sobre o Jornal do Brasil romântico dos tempos de outrora,
com 100 repórteres no Cidade, sucursais pelo Brasil todo, mais de 50 carros e mo-
204
toristas, mais de 40 fotógrafos, Condessa Pereira Carneiro e o cacete a quatro.
Chegou a COMUNIDADE JB NO MODO HARD, destinada a relembrar aqui os
Tanure Years, com fotos e bons textos sobre aqueles anos incríveis. Só pode quem
tiver participado do JB no período entre o protesto do iogurte e a sede do Rio
Comprido! Vamos lembrar o JB no qual para se conseguir um carro era necessário
pedir com 72 horas de antecedência (FACEBOOK, 2013).
Como a apresentação indica, o grupo é um contraponto aos jotabenianos e à
fase “romântica”, do apogeu do jornal: a ênfase é a fase de penúria, à qual estão
ligados episódios de abusos trabalhistas, interferências políticas e comerciais e
exemplos do mal gerenciamento de recursos e de estrutura. Não há um nome pelo
qual se identifiquem. Não são “tanurianos”, porque são anteriores a este; nem seriam “tanuristas”, por não serem seus adeptos. Nas memórias de grupo evocam
episódios extraordinários, mas pelo que provocaram de constrangimento, tristeza,
vergonha. O primeiro post do administrador foi sobre as demissões, os famosos
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“passaralhos”.
Recordação importante demais: email que a ... mandou certa vez, depois de uma
dessas saídas noturnas para espantar o baixo-astral pós-passaralho (agosto de
2004), dizia que precisávamos de mais reuniões legais como aquelas, para superar
o mau-agouro, as energias negativas etc. Resposta épica do ...: “Também acho,
vamos fazer outra reunião no próximo passaralho” #Jotinha (19/11/2013).
Como no grupo jotabeniano, são numerosas as referências à singularidade
do jornal. Mas neste pelos aspectos negativos: “O Jotinha não falha”, “Só no Jota
mesmo”. Os jornalistas deste grupo chamam o JB de “Jota” ou “Jotinha”, pejorativamente: “Cada vez mais acho que todos fomos cobaias de um grande experimento científico. Olha que já vi muita ideia maluca nos lugares onde trabalhei,
mas as do Jotinha são insuperáveis”.
O humor e a ironia são marcas frequente nas postagens, curtas, escritas para
provocar interações nos comentários. Repercutindo links, como o do blog dos
alunos do professor Marcelo Kischinhevsky, da Uerj, que apontou a ironia de que
a direção tenha afirmado que o jornal deixou de circular em papel para ser ecologicamente correto, mas o suplemento JB Ecológico continuou sendo impresso. Ou
esta história do passaralho de 2004:
Consta que determinado executivo se hospedou no Copacabana Palace para analisar a lista de 80 demitidos. Mais de uma semana. Arguido sobre a incoerência de
gastar uma fortuna de hospedagem e tirar o emprego de gente que ganhava 1.000
205
reais, a resposta dele foi a seguinte: “Mas tô no Copa sozinho, sem comer ninguém.
Só tô fudendo vocês mesmo...” (19/11/2019).
Também são postadas fotos de momentos descontraídos nas redações da
Avenida Rio Branco e da Avenida Paulo de Frontin, ou de comemorações de aniversários ou despedidas. Sobre a ida para o Rio Comprido, o administrador lamenta que a mudança reduziu ainda mais a qualidade de vida dos funcionários, obrigados a abandonar “a fartura de cafés, restaurantes, botecos e livrarias na Avenida
Rio Branco”, e lembra com sarcasmo da comunicação em que um diretor afirmava que a ida do JB para a Paulo de Frontin ajudaria na revitalização do Rio Comprido, como anunciaram seus antecessores na ida para a Avenida Central e depois
para o prédio monumental da Avenida Brasil, em São Cristóvão. Mudam os tempos, mudam as sedes, mas o comando do jornal manteve a pretensão de grandeza.
Não faltaram posts sobre a posição do jornal diante do poder público, na
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gestão do governador Anthony Garotinho:
Uma das coisas que mais me marcaram foi quando o Jotinha resolveu fazer uma
campanha forte contra o Garotinho. Acho que já na Era Tanure mesmo. Enquanto o
governo não pusesse anúncios estatais no jornal, as porradas continuariam. Até que
um dia rolou o acordo. Fomos informados que agora éramos amigos do Garotinho.
Achei que o papo ia ficar longe da nossa perfumaria. Mas duas ou três semanas depois, vi a Domingo fazendo uma grande matéria sobre mulheres belas e maduras.
Foto da capa? Rosinha Garotinho (4/12/2013).
Matéria [...] sobre sistema penitenciário (aquele sistema que prende o rabo de todo
mundo via comissão das quentinhas), mostrando que na gestão do Garotinho estavam adotando triliches, ou seja, camas com três pavimentos. Até aí, eu achava nada
de mais – porém, um jornal como o JB tinha em seu viés a defesa incondicional
dos direitos humanos dos presos, normal. A porrada era que três caras dormindo no
mesmo beliche era desconforto, etc e tal. Sei que a pauta foi subindo. Subindo. E
voltou de lá no seguinte formato, em vez da porrada habitual: GOVERNO ABRE
MAIS VAGAS NO SISTEMA PENAL (4/12/2013).
Também são lembradas as interferências corporativas na redação:
Certa vez, chamaram o Aderbal Freire-Filho para editar um Caderno B especial (o
que seria o começo de uma série, mas que só durou dois números, um com ele e
outro com Lulu Santos). Uma das ideias do Aderbal foi pedir ao artista Tunga que
fizesse uma escultura/performance com bandeiras do Brasil. Fomos eu e um cara
do financeiro comprar as bandeiras (umas 10!) perto da Praça Mauá, pra ele fazer o
cheque. O cara não se conformava que as bandeiras fossem ser utilizadas numa
obra de arte. Insistia que eu tinha que pedir ao Tunga as bandeiras de volta depois
que a gente fotografasse a obra/performance para o jornal. Eu dizia que não poderia
pedir ao renomado Tunga que desmanchasse sua obra de arte, e perguntei o que ele
206
queria fazer com as bandeiras. “A gente pode pendurar ali, do lado do refeitório da
Casa Brasil”. Fim. (5/12/2013).
Cobertura da Flip de 2009. Acordamos de manhã bem cedo para pegar o carro do
jornal. Chegou a hora de viajar e fomos impedidos porque queriam levar no nosso
lugar não sei quantos vasos de pau-brasil pra decorar a Casa Jornal do Brasil em
Paraty. QUERIAM TIRAR OS REPÓRTERES E FOTÓGRAFO DO CARRO
PRA COLOCAR VASOS DE PAU-BRASIL (“vocês vão outro dia”). No fim, depois de horas de indefinição e discussão, acabamos viajando apertados no carro
junto com o pau-brasil. Assim que chegamos em Paraty, o motorista descobriu que
não tinha dinheiro pra voltar pro Rio. O comercial nos ligou SUGERINDO QUE
TÍNHAMOS A OBRIGAÇÃO DE PAGAR A GASOLINA (“usem o dinheiro que
a gente deu pro almoço de vocês”). Dava pra escrever um livro inteiro só com as
histórias dessa cobertura. O chato é que ninguém ia acreditar. Mas a [...] e a [...]
tavam lá e não me deixam mentir. PS: o pau-brasil chegou são e salvo (2/12/2013,
grifo meu).
Há referências feitas a “mentes brilhantes” da chefia – mas como ironia. Em
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vez de orgulho, vergonha.
Sinceramente não lembro o nome da santa, mas foi uma editora de Economia que
durou pouquíssimo tempo. Pois bem. Reunião de pauta da manhã, com todos os
editores, no meio da Copa de 2006. Acaba a reunião, e ela resolve sugerir uma pauta: “Para que serve o juiz no jogo de futebol?”. Falou sério. Diante dos olhares
constrangidos ao redor. Não satisfeita, no dia seguinte ela mandou outra sugestão
do mesmo naipe: o Brasil, então campeão do mundo, se ganhasse de novo seria algo ruim, na visão dela. “Meu filho, que é pequeno, vai achar que só vale a pena ganhar. Temos que mostrar que não é assim”, justificou. Sempre achei que deveria
ganhar insalubridade por ter aturado essas e outras no JB (3/12/2013).
Comentário 1: “E aí nessa hora a gente fica se perguntando: que geração foi essa
que exercia comando e liderança tão ruins a ponto de causar comemoração quando
vai embora????????”
Comentário 2: “Acompanhei essa loucura toda vinda das brilhantes mentes de um
povo do Aquário.” (4/12/2013)
Outro jornalista lembra que o jornal “sempre inventava um projeto maluco
por semana”. Provavelmente a ideia mais genial foi casar o Ideias & Livros com o
Carro & Moto. Começamos a chamar o saudoso suplemento literário de Ideias &
Motos”. O autor da invenção se identifica na postagem e justifica:
O pai da ideia fui eu. Era isso ou acabar com um dos dois suplementos, a ordem do
Nelson Tanure e do Pedro Grossi foi clara nesse sentido, e a fusão foi uma maneira
de atender à pressão por redução de custos (em uma empresa onde a palavra investimento era um palavrão) sem perder conteúdo. [...] E ambos os produtos eram
muito bons e tradicionais (o Carro & Moto tinha 35 anos de circulação ininterrupta
quando o jornal acabou) para que eu permitisse que desaparecessem sob minha
responsabilidade. A combinação ficou meio esdrúxula, é verdade, mas as quatro
207
páginas para cada um ainda puderam manter alguma dignidade ao paciente no estado terminal em que se encontrava (26/11/2019).
Houve um tempo, lembram, em que o mantra repetido pelos executivos era
que “o Jornal do Brasil não é um partido político, o Jornal do Brasil não é uma
ONG, o Jornal do Brasil é uma máquina de vendas”:
Na ópera da fanfarronice, a apresentação da máquina de vendas a um auditório lotado foi a ária mais espetacular: corte de 10% nas vagas da redação para permitir a
contratação de 170 pessoas sem experiência em vendas (“não queremos esse pessoal cheio de vícios”) em pleno outubro. Resultado, a seguinte equação: 75 contratados + zero de rendimento comercial justamente nos melhores meses do ano +
demissão em massa de todos os incompetentes em janeiro + pagamentos dos salários devidos mesmo aos que faturaram zero = salários atrasados em toda a redação
(26/11/2013).
Também há espaço para homenagens, especialmente ao redator Borges Neto, com citações de ensinamentos como o de que “escrever esposa e membro é
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coisa de sócio do Rotary Club”. Nesta comunidade, os jornalistas são unidos pelos
sentimentos de amizade e de resistência, mas acima de tudo por um espírito crítico
e um humor ácido – características que ajudaram a fazer a fama do JB, mas que
nos Tanure Years ficava só nos bastidores. Não convém a livros.
3.2.2. Memórias de papel
Daqui a alguns anos, o JB fecha, e vão fazer um livro sobre o JB.
E vão ouvir [...] pessoas que estiveram nas piores e melhores fases,
mas que não representam aquilo que veio a constituir a legenda do JB.
Jânio de Freitas59
Este capítulo é dedicado a apresentar a monumentalização da memória do
Jornal do Brasil tendo como suporte três livros escritos sobre o JB no período em
que o jornal esteve fora de circulação: Jornal do Brasil – Memórias de um secretário, pautas e fontes, de Alfredo Herkenhoff (2010); Jornal do Brasil, história e
memória: os bastidores das edições mais marcantes de um jornal inesquecível, de
Belisa Ribeiro (2015); e Até a última página: uma história do Jornal do Brasil, de
Cezar Motta (2018). Diferentemente da Folha de S.Paulo, que tem editora própria
e publicou e/ou encomendou vários livros que enaltecem a empresa, estes são
livros não institucionais, no sentido de não terem tido apoio da empresa, porém
59
Janio de Freitas concedeu esta entrevista em 2004. COSTA (2011, p. 309).
208
sem perder de vista que são obras corporativistas, não no sentido pejorativo, mas
por exaltarem o jornalismo como profissão.
O capítulo propõe observar os esforços destes jornalistas pela preservação
da história do Jornal do Brasil. Para Ricoeur (2012), a narrativa é responsável por
organizar o tempo vivido. Articula mundo narrado, produção do discurso e ato da
leitura. Três instâncias de formação de sentido na narrativa propostas por Ricoeur:
mundo pré-configurado, do autor, dimensão concreta; mundo configurado (relato
do autor na composição da Intriga/narrativa histórica); mundo reconfigurado, onde atua o leitor. Parte-se ainda do pressuposto, como propõe Le Goff, de que a
memória escrita é uma construção, logo, fruto de disputas e manifestação de poder: “Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as
sociedades históricas” (1987, p. 13). Assim como os historiadores, os jornalistas,
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carregando suas análises com sua própria visão, põem sua singularidade, sua subjetividade, na narrativa que desenvolvem:
O elemento subjetivo, ficcional, está presente nas construções tanto de jornalistas
como de historiadores. [...] Aos relatos que devem ser perenizados, imortalizados
na prisão da palavra escrita, contrapõem-se outros que devem ser relegados ao esquecimento. Funcionando como uma espécie de memória escrita de determinada
época, retém o excepcional. Mesmo quando os fatos mais cotidianos aparecem fixados sob a forma de notícias, há sempre um nexo da narrativa que os transpõe do
lugar do comum para o do extraordinário (BARBOSA, 1995, p. 87-88, grifos
meus).
Sobre a intenção de jornais e livros, Farge (2009) lembra que o impresso é
um texto organizado para ser lido por um grande número de pessoas; “busca criar
um pensamento, modificar um estado de coisas a partir de uma história ou uma
reflexão, existe para convencer e transformar a ordem dos conhecimentos” (p. 13).
E os diferencia do arquivo, que define como um vestígio bruto de vidas que não
pediam para ser contadas: “No arquivo, tudo se focaliza em alguns instantes de
vida de personagens comuns, raramente visitados pela história, a não ser que um
dia decidam se unir em massa e construir aquilo que mais tarde se chamará história” (FARGE, 2009, p. 14-15).
Os livros aqui analisados servem-se de arquivos, as memórias de papel, expressão que Nora toma emprestada de Leibnitz, “secreção voluntária e organizada
209
de uma memória perdida” (NORA, 1993, p. 16). Herkenhoff, que colecionou pautas do ex-repórter e pauteiro José Gonçalves Fontes e outras que salvou do lixo ao
acaso, durante seus anos como chefe de reportagem e depois secretário de redação60 – daí o título, Jornal do Brasil: memórias de um secretário, pautas e fontes
–, além de um encarte de 16 páginas com imagens de fotógrafos de todos os tempos61. Herkenhoff conta que o livro já vinha sendo gestado desde os anos 1990,
mas ganhou fôlego com a notícia do fim do jornal:
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Eu tinha uns textos esparsos dos anos 90 pensando num livro meio didático sobre
pautas e fontes, pensado em homenagem a dois noturnos companheiros, o [José
Gonçalves] Fontes e o Oldemário [Touguinhó]. Mas era uma ideia que não progredia. A morte de Fontes, de Oldemário e a decadência mais vertiginosa do jornalismo do JB com o Tanure convergiram para a minha própria “morte” enquanto
jotabeniano. Eu já estava fora do jornal desde 2005 quando Tanure anunciou que o
jornal deixaria de ser impresso no último dia de agosto de 2010. No mesmo instante decidi tentar fazer um instant book, eu teria 45 dias para lançar o livro, exatamente na data da última edição impressa do jornal (HERKENHOFF, 2019, grifo
meu).
Herkenhoff escreve que Memórias de um secretário “é, num certo sentido,
uma antinotícia ou um lado escondido dela, como o mundo subjetivo dos repórteres e a relação que mantêm com a profissão (2010, p. 13). A descrição faz menção
à máxima de que jornalista não é notícia, mas também remete aos debates sobre o
obituário como gênero jornalístico: Beatriz Marocco (2013) trata o obituário como
um lugar de tensão dos critérios de noticiabilidade, na medida em que há uma
inversão no curso do tempo: a morte, notícia em si, dá sobrevida discursiva ao
morto: é a sua vida que será tecida em narrativas, contrariando as práticas jornalísticas, a partir de outras valorizações que não a de valor-notícia, numa sucessão de
acontecimentos no fluxo da cotidianidade.
Belisa lança mão de seu próprio acervo e dos de colegas ao ilustrar o livro
com fotos pessoais, reproduções de laudas e listas de equipes para apresentar
“aquele mundo dos que contam o que não era pra ser sabido, dão eco a quem não
60
Jornalista que, após o fechamento da edição, acompanha a rodada do jornal e é responsável tanto
por iniciar o planejamento do dia seguinte como por parar as máquinas em caso de notícia importante de última hora.
61
Adir Vieira, Adryana Almeida (Adriana Caldas), Alaor Filho, Almir Veiga, Antonio Trindade,
Braz Bezerra, Campanella Neto, Carlos Hungria, Erno Schneider, Evandro Teixeira, Fernando
Rabelo, Hipólito Pereira, Jonas Cunha, Luiz Alvarenga, Luiz Morier, Marcelo Carnaval, Marcelo
Sayão, Marcelo Theobald, Marco Antonio Teixeira, Marco Antonio Cavalcanti, Marco Terranova,
Michel Filho, Nilton Claudino, Odir Amorim, Raimundo Valentim, Ricardo Leone, Rogério Reis,
Ronaldo Theobald, Vidal Cavalcanti, Walter Firmo e Zé Grande.
210
tem voz”, que conheceu aos 17 anos, na década de 70, e do qual “nunca mais quis
voltar” (RIBEIRO, 2015, p. 13). Seu objetivo foi contar bastidores das mais marcantes edições do jornal que “marcou para sempre a história do jornalismo no
Brasil e no mundo”, e falar sobre “as pessoas por trás das decisões que fizeram as
páginas, as edições e o veículo ímpar que se tornou inesquecível” (RIBEIRO,
2015, p. 13):
Ao relatar a própria trajetória, esses jornalistas traçaram um panorama do que foi o
papel da imprensa na segunda metade do século XX e mostraram homens e mulheres excepcionais, muito além do âmbito profissional. Aqui vocês poderão perceber
seu caráter, suas personalidades, suas posições, sua disposição, seus sonhos, sua
determinação, as vitórias e derrotas de vidas dedicadas ao jornalismo. Em grande
parte, ao Jornal do Brasil. Milhares, ou talvez dezenas de milhares (desde 1891...)
colaboraram para que o JB tenha chegado a ser o que foi: o melhor jornal brasileiro
de todos os tempos. Inigualável. Até hoje. [...] Era o nosso jornal. Era o Jornal do
Brasil (RIBEIRO, 2015, p. 15).
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Já Cezar Motta investe nos arquivos públicos – acervos do jornal, documentos de cartórios – para seu livro “sobre a incrível trajetória daquele que ‘criou um
modelo de jornalismo que vige até hoje’”62, e que “contou – e também fez – a
história do Brasil ao longo do século XX”, como define na introdução, intitulada
O jornal dos sonhos (MOTTA, 2018, p. 15).
Lembra Ricoeur (2001) que a história só nos atinge justamente pelas modificações que impõe à memória, a relação primeira com o passado, e vice-versa.
Entende-se que tais livros são trabalhos de “homens-memória” (HALBWACHS,
2004) que tomam para si a tarefa de manter vivas memórias que são, efetivamente, de grande valor sociocultural, porém legitimadas pelo estatuto científico do
discurso histórico, e não como mera parte desta, um manejo parcial e imperfeito
da história, atribuindo-se uma espécie de autocondecoração, de distinção a si próprios, no campo jornalístico. O exercício memorialístico destes jornalistas soa
ainda como inscrições-afecções, como chama Ricoeur a capacidade de durar e
permanecer, possibilitando a compreensão do que significa presença da ausência.
Ao mesmo tempo, refletem uma “autoridade simbólica” dos jornalistas ligada a
suas produções, formulando a hipótese de que a publicação de livros em grande
número pelos jornalistas se aparenta a uma “autorização”, e interrogam o que leva
jornalistas a assumir um status de autor de livro – considerando-se o caráter pere62
Motta cita Alberto Dines em Marialva Barbosa (2010, p. 12).
211
ne do livro em sua materialidade, e seu valor simbólico e distintivo – e os efeitos
desse status sobre o jornalismo contemporâneo (BASTIN & RIGOOT, 2015, p.
196).
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Figura 18: Capas dos livros. Reprodução
Os livros têm em comum a reprodução de capas icônicas do JB. A de Memórias de um secretário é uma primeira página estilizada do Jornal do Brasil,
cabeçalho com a data daquela terça-feira dia 31 de agosto de 2010 em que foi lançada a edição, o título e a assinatura como manchetes sobre uma generosa foto da
Passeata dos Cem Mil, de Evandro Teixeira, em 1968 e um L de notinhas de classificados, marca do JB nos primeiros anos da reforma gráfica. A de Jornal do
Brasil, história e memória é mais clean: num fundo branco, uma tarja com o título
do livro sobre quatro capas do jornal: o número 1, de 9 de abril de 1891, a do decreto do AI-5, a página sem manchete em letras garrafais anunciando a morte de
Salvador Allende, e a das bombas do atentado do Riocentro, em 1º de maio de
1981. Até a última página: uma história do Jornal do Brasil reproduz um jornal
dobrado, com o logotipo JB e o título do livro na tipologia usada pelo jornal.
Reproduzindo a ideologia das teorias do jornalismo, a reportagem é apontada como rainha nos três livros. Herkenhoff enfatiza as pautas. Belisa tem um capítulo chamado “Essa rainha, a reportagem”. Motta dedica igualmente boa parte do
livro a elas, além de o livro ser apresentado, em si, como uma grande reportagem,
referência ao gênero jornalístico caracterizado por conteúdo aprofundado, demorada apuração e um olhar diferenciado sobre certo tema, de que são exemplos livros como A sangue frio, de Truman Capote, e Rota 66, de Caco Barcellos.
212
O livro de Alfredo Herkenhoff, o primeiro deles, é um instant book: foi lançado no mesmo dia da última edição nas bancas, 31 de agosto de 2010. A capa
reproduz uma primeira página do JB, com a data da edição em destaque. A ideia
remete ao imediatismo, um dos grandes valores da notícia, entendida como altamente perecível. Assim, quanto mais próxima, colada ao acontecimento que
transmite, maior o seu valor: “O imediatismo age como medida de combate à deterioração do valor da informação. Os membros da comunidade jornalística querem as notícias tão quentes quanto possível, de preferência em primeira mão”
(TRAQUINA, 2008, p. 37).
Herkenhoff trabalhou no JB por 20 anos, em dois períodos. De 1981 a 1987,
foi redator internacional, secretário noturno ou gráfico, copidesque da primeira
página. E, de 1991 a 2005, secretário, chefe de reportagem, redator em editorias
de política, economia e esportes, em situações como Copa, eleições e pacotes antiPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
inflação. Foi colunista do Caderno B em 2003 e depois, por dois anos, editou cadernos especiais dos últimos seminários promovidos pelo JB, no marketing.
O livro funciona como um obituário, com explicações sobre a causa mortis,
a importância do morto, as manifestações saudosas, os lamentos, sobretudo lembranças felizes, causos, num esforço de lidar com aquele luto:
No meu olhar íntimo de autor, o livro é, basicamente, de memórias afetivas de um
secretário na cozinha da redação. Casos folclóricos permeiam o ritmo vertiginoso
das páginas num processo doloroso que entrega, de bandeja, momentos de fraqueza
e pitadas de intrepidez. Também há relatos de dezenas de jornalistas sobre a emocionante experiência de produzir reportagem [...], outras passagens produzi pensando num afago a velhos colegas de profissão, havendo nessas páginas uma oportunidade para relembrar bons momentos, ou um pretexto para matar saudades
(HERKENHOFF, 2010, p. 12).
Foi um esforço pessoal de Herkenhoff de publicar uma edição que alterna
três conjuntos de textos: apontamentos seus; o conjunto de pautas e depoimentos
pedidos a colegas jornalistas tão logo o jornal anunciou a saída de circulação. No
e-mail que mandou para seus contatos pedindo colaboração, explicou o projeto:
O relato é caudaloso e emocionado. Não se isenta da nostalgia. Mas passa ao largo
da amargura, embora o autor tenha sido testemunha e vítima do naufrágio a que foi
conduzido o antigo colosso da imprensa brasileira. Participe. Seu texto para um
“réquiem” com bom humor a incensar a nossa história sempre viva (HERKENHOFF, 2010, grifo meu).
213
Como editoras não funcionam como jornais, Herkenhoff enfrentou dificuldades para cumprir o deadline que se impôs:
A data virou um desafio, uma agenda, uma meta. E foi alcançada meio aos trancos
e barrancos. Tentei duas editoras que em princípio toparam, mas quando faltam uns
20 dias para o 31 de agosto, não aceitaram a correria, enfim, insinuaram que até topariam mas se fosse feito com calma, muitas revisões etc (HERKENHOFF, 2019).
O jornalista não desistiu. Desfez-se de bens pessoais e correu a sacola para
cumprir o prazo. Desistiu das editoras e contratou uma gráfica, que rodou pouco
mais de 2 mil exemplares do livro de 430 páginas, ao custo de R$ 24.200.
Eu não tinha grana para imprimir. Vendi obras de arte nos últimos dias a preço de
banana, peguei grana emprestado. [Ricardo] Boechat me ajudou ao comprar antecipadamente cem exemplares a R$ 40, mandou um cheque de R$ 4 mil direto para
a editora Zit (HERKENHOFF, 2019).
O esforço simboliza marcas identitárias do próprio jornalista como secretáPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
rio de redação, cuja função foi, por anos, a de estar a postos para atualizar a edição diante de um acontecimento importante, com o poder de enunciar a clássica
frase do mundo dos jornalistas: “Parem as máquinas!”. Em termos logísticos, o
imediatismo reforça o valor da capacidade dos jornalistas na montagem da cobertura. Num campo marcado pela concorrência (BOURDIEU, 1997), a importância
desse valor estabelece a própria lei do ganho do jornalista: ganha quem dá a notícia primeiro (TRAQUINA, 2008, p. 37-38). O sociólogo britânico Schlesinger
([1977] 1993) descreve os jornalistas como “membros de uma comunidade cronometrizada” e fala da empresa jornalística como uma “máquina do tempo”, que
funciona a partir das horas de fechamento. Nessa engrenagem, o planejamento é
crucial, na medida em que o ciclo não está restrito ao ciclo do dia noticioso. Boa
parte da atividade jornalística é planejada com antecedência, antecipando acontecimentos futuros – caso dos necrológios de figuras importantes, em idade avançada ou com doenças graves, escritos e arquivados para serem publicados quando a
morte for confirmada.
Sem sumário nem capítulos, “como um caleidoscópio”, o livro de Alfredo
Herkenhoff é polifônico, por abrir as páginas a quem quisesse chegar. Não houve
seleção: quem mandou entrou. E se destaca pela pluralidade de vozes, indo dos
decanos a jovens repórteres dos anos 1990. Os colaboradores, por sua vez, ampli-
214
am a lista com citações a colegas de redação – jornalistas, contínuos, operador de
telex, secretárias... É, entretanto, um livro autoral. Se boa parte de seu conteúdo é
de terceiros, contribuição que permitiu ampliar a pluralidade de vozes e cumprir o
prazo de fechamento, Herkenhoff não é mero organizador ou editor. “Nem meus
conselheiros mais neutros e os amigos puderam me impedir de prosseguir no impulso de fechar o caixão com um livro, em vez de prego” (HERKENHOFF, 2010,
p. 51). Faz divagações e análises, calcadas em dados factuais e em suas próprias
memórias:
Eu voltava da piscina no Clube Jaraguá, em Cachoeiro de Itapemirim, quando vi,
no quintal, meu pai braços erguidos, segurando o JB que trazia a manchete do AI5, meu saudoso pai comentando exaltado com um tio: “A ditadura se instalou de
vez”. Totalmente alheio a políticos e política, no auge dos meus 15 anos de idade,
notei que algo muito especial pairava no ar: era o JB. Minha vocação se tornando
visível ali a 10 metros das águas do meu Itapemirim (HERKENHOFF, 2010, p.
50).
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O jornalista chegou a titubear, sim, duvidando da importância do livro. Pensou em desistir pelo prazo apertado e a falta de recursos. Andando por Copacabana com o copião nas mãos, encontrou o diagramador Ezio Speranza, de longa trajetória no JB – foi o paginador da primeira página do AI-563:
Falo do livro, mostro um copião, uma antiga fotografia, ele lacrimeja... Faz um não
com a cabeça, não tem nada a dizer... Também me emociono, mas Ezio nem nota...
O livro de tantas informações que demandam leitura em grupo de jovens que estão
chegando agora, e de nós, que estamos voltando, leitura solitária de nós mesmos
com nosso conhecimento de cocheira, ou de causa [...]. Não é uma obra descritiva
de ascensão e queda de um belo jornal, é a nossa queda com o velho matutino de
duas condessas, ambas esquecidas, como este solilóquio já prestes também a ser
(HERKENHOFF, 2010, p. 51, grifos meus).
Fábio Lau foi um dos que incentivaram Alfredo a seguir em frente. Em email para incentivar o amigo, apelou à comparação do jornal a uma “prostituta de
luxo” por quem todos se apaixonam:
Alfredo, [...] o JB é aquela dama, linda, que conhecemos numa estação e nos apaixonamos. E levaremos ela na memória e o cheiro dela na ponta do nariz. Foi o melhor cigarro, o melhor vinho, a melhor dança, a melhor transada e a pior despedida
63
Herkenhoff cita os diagramadores Amaro Prado, Amaro Teixeira, Amilcar de Castro, Adilson
Nunes, Anderson Oliveira, Bia Penna, Bruno Sansone, Cesarino Costa, Chris Soares Magalhães,
Claudio Herburgo, Domingos Bebiano, Evaldo Correa, Ezio Speranza, Fabio Dupin, Fernando
Pena, Itacy Bispo, Jaques Nogueira, João Gomeia, José Carlos Avellar, Jurandir Costa, Jurandir da
Conceição, Leo Tavejnhansky, Leozinho, Luiz Carlos Maraca, Nelio Horta, Renato Dalcin, Rui de
Carvalho, Sylvio Marinho, Titus e Toninho de Paula.
215
de nossas vidas. O cheiro do sexo dela estará sempre entranhado. E isso é uma ode
à grande dama da noite, à puta de luxo que foi o JB. Ela nos deu prazer e ficou com
o nosso dinheiro. Merece a homenagem. E, como boa puta que é, vai dar trabalho
até na hora de enterrar. E os apaixonados vão hesitar achando que ela não morreu,
não nasceu, não merece homenagem. Claro. Mas todos vão chorar e sorrir na beira
do caixão. Você está encarregado de tocar pela última vez no seu corpo. É contigo.
Vai! (LAU, em HERKENHOFF, 2010, p. 52).
Alfredo encerra o livro com uma criativa homenagem a 600 profissionais do
JB, retomando um rascunho ainda dos tempos de redação, em que, para convencer
um repórter em crise de ideias, apostou que faria 50 sugestões em minutos. Para o
livro, o jornalista ampliou a lista atribuindo uma pauta a cada jornalista, nomes de
todos os tempos (com certa predominância dos anos 90) em ordem alfabética64.
São pautas de duas a três linhas, cada uma meticulosamente ligada ao jornalista
escalado, muitas sarcásticas como o autor, que transformou seu dead line em estratégia de vendas: “Inventamos o marketing da morte”, declarou em entrevista a
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Lucia Hippolito na Rádio CBN (HIPPOLITO, 2010).
O livro de Belisa Ribeiro, Jornal do Brasil, história e memória: os bastidores das edições mais marcantes de um jornal inesquecível, foi um projeto mais
planejado, durando um ano e meio, com financiamento pela Petrobras e contrato
assinado com a editora Record. Foi lançado em 2016, parte do seu projeto “JB
Memória”, que iniciou em 2014, com patrocínio do governo federal e da Petrobras
e apoio da Editora Record e do restaurante La Fiorentina – reduto histórico dos
encontros jotabenianos, onde teve a ideia de entrevistar veteranos como José Silveira, seu antigo chefe, que mora em uma instituição para idosos, “imaginando
que histórias esta testemunha dos acontecimentos mais marcantes dos últimos 50
anos do século passado e deste iria me contar”.
A entrevista [com José Silveira] superou todas as minhas expectativas. Pensei que
este registro com os velhos bambas do JB tinha que ser também em vídeo. Precisávamos de um apoio financeiro que garantisse as filmagens e um grande amigo, o
empresário Paulo Marinho, me sugeriu procurar algum dos programas de apoio
cultural da Petrobras. O projeto, que incluiu um site com vídeos semanais de trechos das entrevistas e depoimentos de jotabenianos, foi aprovado e permitiu ainda
que eu realizasse um documentário de longa-metragem. O tempo, infelizmente e
rapidamente, comprovou a necessidade dos registros: do início do projeto até agora
já perdemos uma grande parte dos participantes: Alberto Dines, Carlos Lemos, José Carlos Avellar, Walter Fontoura e Paulo Henrique Amorim (RIBEIRO, 2019).
64
Os nomes a quem Herkenhoff atribui pautas estão na tabela de jornalistas citados no Apêndice 2.
216
Belisa estreou no jornal como modelo de editoriais de moda, em 1970, aos
16 anos, e como repórter em 1975, com matéria sobre camelôs que apurou por
conta própria e deixou em cima da mesa do chefe de reportagem, e foi publicada:
“Ali, aos 21 anos, eu sabia que tinha entrado para a turma. Tinha recebido o espírito. Tinha baixado em mim o espírito JB” (RIBEIRO, 2015, p. 191). E viveu “o
amargo fim”, em Brasília. Como Herkenhoff – mas com mais tempo, planejamento e recursos –, mobilizou a rede de contatos para recolher histórias, fotos, memorabília, para:
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um livro que conte não só a história do Jornal do Brasil, mas as nossas histórias, a
história de como se faz um jornal, de como se tem as ideias, de como se apura, do
momento do clique certo, de como se decide uma primeira página. E de como edições memoráveis marcam a vida de um país. A editora Record vai publicar e o
primeiro passo é um site onde todos que viveram o JB poderão participar enviando
relatos, matérias e fotos do fundo do baú, comentários, sugestões. [...] No dia
27/01, na Fiorentina, será o lançamento do site com um coquetel e conto com a
presença de todos vocês que, espero, terão participação ativa no site
www.jbmemoria.com.br65 (RIBEIRO, 19/1/2014).
A partir do material que recebeu, a jornalista selecionou as histórias e pessoas que julgou mais representar aqueles momentos. “Não foi nada fácil. Com
certeza, gostaria de ter incluído mais colegas. Mas o tempo e o espaço foram fatores limitantes” (RIBEIRO, 2019). O livro é composto por 11 capítulos, cada qual
dedicado a um episódio célebre do Jornal do Brasil. Os capítulos seguem uma
ordem não cronológica, mas de importância, numa pirâmide invertida que começa
com a história da página do AI-5 e termina com o jornal on-line:
Dois quadradinhos e uma lavada de alma, sobre o AI-5 em 1968, em 20
páginas;
2. Um morto sem manchete e o corpo em 18, sobre a morte de Allende no
Chile, em 1973, em 18 páginas;
3. Golpe de Estado com cobertura premiada, sobre o golpe de 64, Operação Tio Sam e derrubada de João Goulart, em 14 páginas;
4. A Reforma e as reviravoltas do Quarto Poder, sobre a reforma editorial e
gráfica no fim dos anos 1950, com 28 páginas;
5. Cultura não é adereço: o Caderno B, sobre os movimentos de vanguarda
no Caderno B, em 46 páginas;
6. Essa rainha, a reportagem, sobre os prêmios com a cobertura de Cidade
nos anos 1980 e 90, com 64 páginas;
1.
65
Após o lançamento, o conteúdo do jbmemoria.com.br foi incorporado como seção Memórias do
JB no site de Belisa:
http://www.belisaribeiro.com.br/site/index.php?conteudo=materias_caderno&materias_caderno=1
1. Acesso: 10 out. 2019.
217
Mais que mil palavras, sobre fotojornalistas como Evandro Teixeira e
Walter Firmo, e os chargistas Millôr, Lan, Ziraldo, em 40 páginas;
8. É a economia, estúpido! (e cuidado com a CIA), com as revelações da
participação do governo americano na derrubada do presidente João Goulart, com 28 páginas;
9. Imprensa 10 a 0 em um tiro pela culatra, sobre a investigação da autoria
militar do atentado do Riocentro, com 56 páginas;
10. Apuração vence fraude: o caso Proconsult, com a apuração independente
e a denúncia de fraude no sistema de apuração, que legitimou a vitória de
Leonel Brizola ao governo do Rio, em 1982, com 30 páginas;
11. Do apogeu ao on-line, que contempla a cobertura das greves do ABC,
nos anos 1970 e os prêmios com a cobertura de cidade nos anos 1980 e 90
até o fim, em 40 páginas.
7.
Os jornais da segunda metade do século XX – particularmente o Jornal do
Brasil – eram veículos de prestígio, onde o leitor buscava “a verdade, a consolida-
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ção dos fatos, a opinião, o posicionamento político” (RIBEIRO, 2015, p. 32):
pode-se discordar que alcançassem todos estes nobres ideais, nem sempre compatíveis com os objetivos comerciais e políticos de qualquer empresa. Mas parte dos
jornalistas entendia mesmo o jornalismo como uma luta pela verdade e pela justiça,
por um país melhor, por um projeto de futuro” (RIBEIRO, 2015, p. 32).
E o projeto de futuro no Brasil para aqueles jornalistas era o fim da ditadura.
O Jornal do Brasil se firmou como um jornal influente e socialmente relevante
exatamente nos anos de chumbo. A edição de 13 de dezembro de 1968, a do decreto do AI-5, é atribuída a “mentes jovens, brilhantes, revoltadas e destemidas”, e
descrita como “uma verdadeira tática de guerrilha, armada às pressas e sem muito
espaço para articulação, com os inimigos presentes e atentos” (2015, p. 18, grifo
meu).
A missão cívica é reforçada, ainda, na fala da jornalista Virgínia Cavalcanti:
“Decisões rápidas, argutas e cruciais tinham que ser tomadas [...]. A partir dali
nossa função jornalística, de formar e informar a opinião pública, se tornaria mais
do que nunca um desafio diário e um marco na luta contra a ditadura” (2015, p. 23).
Tal mérito é atribuído, pela jornalista e por entrevistados por ela selecionados, a Alberto Dines, editor-chefe de 1962 a 1973, descrito como “o maestro que
comandava todo o conceito do mais poderoso jornal brasileiro de todos os tempos
até então, um homem elegante, bonitão, reservado e de méritos reconhecidamente
brilhantes até por seus invejosos” (RIBEIRO, 2015, p. 17). Roberto Quintaes, que
218
descreveu o ato institucional na previsão do tempo, a pedido de Dines, exalta, em
depoimento a Belisa, aos 74 anos: “Quando Dines me aceitou como copidesque,
me chamou à sala dele e me disse: “Vamos fazer leitores melhores. Você agora é
curador do caráter de nossos leitores, para que eles sejam cada vez melhores”
(QUINTAES, em RIBEIRO, 2015, p. 20). A afirmação levanta três observações: a
evocação de um caráter missionário de que o jornalista se incumbe, com honra e
orgulho; uma postura civilizatória e pedagógica frente aos leitores; e, derivada
dessa, uma aparente contradição: não era o papel dos copidesques garantir uma
suposta neutralidade na escrita das notícias, para que o leitor tirasse suas conclusões e formasse sua opinião? Ou não seria capaz sem a ajuda do jornal?
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O jornalismo vai nos equipando com uma nova maneira de ver as coisas ao nosso
redor [com os óculos de Bourdieu?]. Ainda mais em um ambiente como era o Jornal do Brasil daqueles tempos, em que o clima era regido pela busca do novo, do
criativo, da excelência. Em que as pessoas honravam princípios e valores (QUINTAES, em RIBEIRO, 2015, p. 20, grifos meus).
Alberto Dines assina a orelha do livro de Belisa, em que diz que a autora
comprova que “um jornal muda o mundo”, e que os envolvidos na preparação do
jornal “são possuídos pela mesma obsessão – fazer daquela edição algo único,
especial, capaz de transformar o leitor, movimentar sua vida, alterar seu olhar,
enfiá-lo na história”. As palavras de Dines exalam a nostalgia de seu passado de
glória e realização profissional, mas também a nostalgia de um tempo de utopias,
característico do modelo de intelectual que vigorava no Brasil naqueles meados
do século XX, como uma voz de dissenso que tinha como missão conscientizar o
povo com o objetivo de mudar os rumos da História (FIGUEIREDO, 2012).
A empreitada de registrar em livro “os bastidores das edições mais marcantes de um veículo inesquecível” segue um caminho já trilhado por pesquisadores
da história da imprensa e por jornalistas, na proporção da relevância do Jornal do
Brasil. A expectativa, portanto, evoca tanto a chamada objetividade do jornalista
como o rigor do historiador, reproduzindo um lugar-comum que aproxima ambos,
com a ressalva da diferença temporal – o foco do jornalista seria o tempo presente, enquanto o do historiador, o tempo passado. Ao mesmo tempo, distingue-se
pela declarada afecção, por abertamente “vestir a camisa” do JB. Desde o início, a
autora deixa claros seus vínculos afetivos: “Era o nosso jornal”. Tal combinação
foi recebida com ressalvas sob o ponto de vista da esperada precisão histórica e
219
jornalística. Em resenha no jornal Folha de S.Paulo, o jornalista e pesquisador
Plínio Fraga Junior, na ocasião do lançamento, aponta que o trabalho falha tanto
na visada jornalística – “decepciona naquela que deve ser a missão número um do
bom jornal: dimensionar os acontecimentos, atribuindo-lhes importância maior ou
menor ao investigar por que ocorreram e demonstrar como se desdobraram” –
quanto na pretensão de produzir documentação histórica – “acumula descrições e
narrativas sem hierarquizá-las, contrapô-las ou criticá-las (...), sem aventurar-se ao
olhar severo da história” (DA FRAGA JR, 2016).
A campanha de lançamento foi a mais bem-sucedida. Bem-relacionada e
conhecedora dos mecanismos midiáticos de visibilidade, Belisa lançou mão de
sua rede de contatos para divulgar o livro desde o início da pesquisa, para a qual
abriu canal de colaboração, recebendo textos, documentos e imagens; passando
pelas entrevistas, das quais publicava teasers em redes sociais; até o lançamento,
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com pocket show do rapper Gabriel, O Pensador, seu filho. Acionando o sistema
jornalístico, de valor-notícia, seja pelos canais de autopromoção (site, redes sociais), seja pela mídia tradicional, com notas publicadas em jornais durante todo o
processo (“A jornalista Belisa Ribeiro escreve livro sobre o Jornal do Brasil”; “A
jornalista Belisa Ribeiro vai lançar livro sobre o Jornal do Brasil”; “Lançamento
de livro da jornalista Belisa Ribeiro sobre o Jornal do Brasil”), que legitimam a
autoridade e relevância tanto da autora como da obra. Quanto ao investimento
com vistas à posteridade, verifica-se tanto na escolha do suporte livro – que, diferentemente do jornal, perdura – como no uso do termo “história” (desde o título) e
de seus supostos atributos, tais como verdade, estabilidade, duração.
O livro de Cezar Motta é mais comedido no título (Até a última página:
uma história do Jornal do Brasil), embora mais completo na pesquisa e na documentação, e no tempo dedicado ao projeto: cinco anos. Nascido em 1950, o jornalista trabalhou de 1973 a 1980 na Rádio Jornal do Brasil, como repórter e editor.
Atuou ainda na TV Globo (1981), no jornal O Globo (1982-1985), foi assessor de
imprensa do então ministro da Casa Civil, Marco Maciel (1986), trabalhou na
revista Veja (1987) e no Correio Braziliense (1989-1991). Entrou então por concurso público para o Senado Federal, assumindo a direção da Rádio Senado. A
ideia do livro surgiu em 2012, no encontro jotabeniano em que se comemoravam
220
os 80 anos de Dines na Fiorentina. Motta havia entrado recentemente no grupo de
Facebook Jotabenianos, com esta postagem:
Quero agradecer e mandar um grande abraço pra todo mundo. Sou meio que um
corpo estranho, porque nunca trabalhei exatamente no jornal, mas na Rádio JB, durante 11 anos. Mas conheço praticamente todo mundo e admiro demais a todos. Essa turma sempre foi pra mim uma referência de competência, profissionalismo e
ética [...]. Vocês todos fizeram durante anos e anos o melhor jornal que o Brasil já
teve”.
As reações foram de boas-vindas: “Oi, Cezinha, bons tempos, vocês da rádio também marcaram época”, e “Rádio JB vale!”. Lá, ao ver a convocação para a
comemoração dedicada a Dines, perguntou se podia ir, mesmo não sendo ex-JB.
“Me disseram que certamente podia, porque é tudo JB”. Em entrevista, conta que
ficou espantado com a dimensão do encontro, com as amizades alimentadas, a
nostalgia e a solidariedade entre os jornalistas. Duas inquietações surgiram: por
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que o JB acabou, e por que nunca conseguiu ter uma TV. Lá mesmo falou com
alguns, como Alberto Dines e Wilson Figueiredo, e marcou de entrevistá-los.
Contou com a ajuda de Sérgio Fleury e Vera Perfeito para levantar outros contatos. Com José Sérgio Rocha, seu parceiro na etapa inicial, fez as primeiras entrevistas, com Alberto Dines, Walter Fontoura, Wilson Figueiredo, José Silveira,
Ferreira Gullar e Luiz Mario Gazzaneo. Mas, como “corpo estranho”, enfrentou
resistências de parte dos jornalistas, já comprometidos com o projeto de Belisa
Ribeiro, que transita com mais intimidade entre os jotabenianos, por haver trabalhado muitos anos lá.
Ofereceu o projeto à editora Objetiva, que de início recusou, por falta de
apelo comercial. Mais tarde, via Companhia das Letras, o contrato foi fechado.
Após três anos de trabalho em dedicação exclusiva, a pesquisa de Cezar Motta
resultou num livro de 564 páginas, em forma de “grande reportagem”, com 133
entrevistados e fontes, incluindo executivos, políticos, parentes de jornalistas
(Apêndices). Há ainda um caderno de 16 páginas, com imagens de arquivo. Investe no critério jornalístico da objetividade. Tem índice onomástico, 20 páginas de
notas, 41 referências bibliográficas de livros consultados (mais três dissertações,
de Suzana Blass, jornalista e ex-presidente do Sindicato de Jornalistas do Município do Rio, em Ciência da Informação na UFRJ, sobre a Pesquisa do JB; Marcos
Augusto Martins, sobre a globalização das comunicações nos anos 1990, pela
221
UnB; e Thaís de Mendonça Jorge, jornalista também entrevistada, em Ciência
Política na UnB, sobre a mídia como construtora de “salvadores da pátria” em
períodos eleitorais). Nenhuma tese de doutorado é mencionada. Consultou também seis documentos registrados em cartórios – escrituras e hipotecas de terrenos
do JB, atas e relatórios do BNDESPar sobre o caso Pisa Papel de Imprensa, promissória ao Banerj, e arquivos da empresa Henrique Midlin Associados, que construiu o prédio da Avenida Brasil; e do ex-gerente financeiro do JB Fernando Magalhães, do jornalista Luiz Orlando Carneiro, Teresa Cardoso e do arquiteto Walmir Amaral. E ainda os acervos do CPDOC da FGV (Dicionário HistóricoGeográfico Brasileiro e documentação sobre a TVJB), Centro de Cultura e Memória do Jornalismo (depoimento de Janio de Freitas) e o acervo do JB na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. O prefácio é de Ana Maria Machado, que fora
sua chefe na Editora JB e foi incentivadora do projeto. O livro é estruturado em
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ordem cronológica:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
Nasce o Jornal do Brasil (21 páginas)
Os anos 1950: reforma gráfica e reinvenção (59 páginas)
Os anos 1960: Dines e o jornal empresa (98 páginas)
Os anos 1970: casa nova, abertura e o começo da crise (181 páginas)
Os anos 1980: a redemocratização (108 páginas)
À beira do abismo (28 páginas)
O livro teve boa repercussão na imprensa, na coluna de Elio Gaspari publicada na Folha e no Globo, na Ilustríssima da Folha, numa resenha de Matias Molina no Valor Econômico, em notas no Globo. No Rio, a noite de autógrafos foi
em 26 de março de 2018, na mesma Fiorentina de Omar Catito Peres. “A última
página” a que se refere Motta é a de 31 de agosto de 2010, portanto não incluindo
qualquer menção ao relançamento do jornal, em fevereiro de 2018, quando seu
livro já estava na gráfica da editora Objetiva. Mas o recém-relançado JB capitalizou, dando uma página ao lançamento, com o título “A história da Bíblia do jornalismo”.
Pude estar presente aos três lançamentos. Dos três, o único que já conhecia
era Alfredo Herkenhoff, com quem trabalhei no JB. A Belisa Ribeiro e a Cezar
Motta, me apresentei como jornalista, professora e pesquisadora. As dedicatórias
alimentam boa parte das proposições desta tese. Alfredo destacou em sua dedicatória a nossa relação de colegas e, principalmente, fez menção à ideia de “uma vez
222
JB, sempre JB”, e que este seria eterno: “Para Itala, com carinho e amor do colega
do sempre JB. Uma vez até sempre nunca vai morrer... Alfredo”. Em sua dedicatória Belisa frisa a experiência comum, e uma história “nossa” – não é a história
do jornal puramente, é também da autora, e minha como ex-jornalista do JB: “Para Itala, um pouco da história que é nossa. Com carinho, Belisa”. Cezar Motta,
por sua vez, optou pela expressão “o velho JB”: “Para Itala, mestre de jornalismo,
alguns momentos do velho JB. Um beijo carinhoso do Cezar”.
Valem considerações sobre as aproximações e distanciamentos entre história-memória, e sobre o papel do testemunho no manejo da história-memória do
Jornal do Brasil, o jornal “inesquecível”, classificação que Belisa Ribeiro destaca
no título do seu livro e que aciona ao longo da narrativa. Inesquecível é algo não só
digno de memória, mas, mais ainda, aquilo que não se pode nem se consegue esquecer, haja o que houver. A narrativa assume dois pressupostos: 1. os testemuPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
nhos sobre o jornal são peças de verdade, estão a salvo das operações do lembraresquecer ou da própria subjetividade humana; 2. a história do Jornal do Brasil sobrevive à sua extinção, sobrevive à senilidade ou à morte de seus homensmemória, passe o tempo que for. É exemplo disso o tratamento dado ao depoimento que Belisa colheu de José Silveira, com 81 anos à época, lembrando-se de episódios da juventude em um asilo no qual vivia. A jornalista esforça-se, no texto,
em garantir a credibilidade dos relatos, e evoca o talento de repórter (“relembra
com uma memória impressionante”, p. 25; “memória prodigiosa em detalhes”, p.
30; “Se seu Silveira lembra com tanta clareza dessa mesquinharia vivenciada
quando ele ainda não havia completado 18 anos, lembra melhor ainda, nos mínimos detalhes, como foi a resposta, dentro do Jornal do Brasil, à reação violenta do
governo militar à edição que acabou fazendo de bobos os censores do Exército”, p.
31), e mesmo a ascendência indígena de Silveira (“explicação, segundo ele, para
que suas oito décadas de vida não tirem sua jovialidade”, p. 27) como antídoto para
as operações da memória, validando-a como história.
É notório o protagonismo que vêm assumindo os relatos identificados como
não-ficção, as diversas formas de documentalismo, que, no entanto, não deixam
de lançar mão de procedimentos característicos das narrativas ficcionais (FIGUEIREDO, 2012). Explicitando sua opção pelo caminho documental, Belisa
223
Ribeiro explica que o livro é sobre edições marcantes do jornal, e sobre “as pessoas que fizeram as páginas, as edições e o veículo ímpar que se tornou inesquecível” (RIBEIRO, 2015, p. 14). A autora se apresenta ao leitor como narradora qualificada, seja pelos atributos de jornalista, seja pelo vínculo com o jornal, onde
começou carreira na década de 1970. Apresenta, ao mesmo tempo, os contornos
de uma narrativa épica. Refere-se a seus antecessores ou contemporâneos enaltecendo suas passagens pelo jornal como “grandes feitos”. A narrativa é construída
com o apoio de múltiplas falas que reforçam este sentido missionário do jornalista
como defensor da liberdade e contra a opressão. Os capítulos formam uma epopeia vivida por personagens com contornos heroicos, recheada de exclamações e
adjetivos, que não passariam pelos velhos copidesques ciosos da neutralidade nos
textos do JB.
Ao observar a “história” do JB sob o viés das memórias de seus jornalistas,
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pode parecer problemático tomar o testemunho como bastante e suficiente como
provas de uma história com H maiúsculo, ou como fragmentos preservados do
tempo passado, quando na verdade são produções do tempo presente, carregadas
de certa performatividade histórica, nas palavras de Augé: “Só são verdadeiramente precursores aqueles que pertencem totalmente a seu tempo, mas tal pertencimento se mede melhor com alguma distância” (2012, p. 56).
Baseada, como observa Ribeiro (2003), em um olhar retrospectivo, a partir
de certo distanciamento temporal em relação à realidade relatada, a memória é
constantemente atualizada de acordo com o presente em que é produzida. É preciso observar o jogo de forças pautado pelo momento presente e sustentado pela
verossimilhança e pela coerência dos sucessivos discursos. Como alertam Barbosa
e Ribeiro (2011), é impossível ter uma visão histórica sem refletir sobre temporalidade, sobre a questão dos espaços sociais, sobre processos e sistemas, sobre relações sociais e, por último, sobre narrativa e interpretações. Além do trabalho da
própria memória em si, por sua manutenção, coerência, unidade, continuidade e
organização, historiadores, pesquisadores e veículos de comunicação têm papel
preponderante. Nesse sentido, a mídia promove permanentemente a (re) construção de memórias, em discursos autorreferentes e também ao dar voz a fontes avalizadas para oferecer seus juízos de valor sobre os acontecimentos do passado.
224
Os jornalistas autores valem-se dos testemunhos para “fortalecer e completar o que sabemos de um evento do qual já estamos informados”, e que os depoimentos só têm sentido em relação ao grupo, ao acontecimento vivido em comum,
dependendo do “quadro de referência no qual evoluem o grupo e o indivíduo”
(HALBWACHS, 2004, p. 13). Impulsionam este processo a vontade de lembrar e
o sentido de coletivo. A memória é um elemento constituinte do sentimento de
identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um
fator importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou
de um grupo em sua reconstrução de si (POLLAK, 1992, p. 200-212).
Como sugere Pierre Nora, quando a memória não está mais em todo lugar,
quanto menos é vivida coletivamente, “mais ela tem necessidade de homens particulares que fazem de si mesmos homens-memória” que dela se encarrega (1993,
p. 18), papel que vários jornalistas atribuíram a si próprios ou para os quais foram
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escalados por seus contemporâneos. O autor identifica “sinais de reconhecimento
e de pertencimento de grupo numa sociedade que só tende a reconhecer indivíduos idênticos” (1993, p. 13): para ele, os sujeitos só lembram a partir do ponto de
vista de um grupo social específico, ao qual se vinculam: a memória está diretamente relacionada às identidades sociais (RIBEIRO, 2003).
Para Huyssen (2000, 2014), a estabilidade de memórias de um grupo é muito mais um ideal do que a descrição de uma realidade histórica: “A ideia de memória coletiva bloqueia o discernimento dessas batalhas entre passados” (2014, p.
182). Neste aspecto, a obra de Belisa reforça a uniformidade das narrativas sobre
o JB, em que se repetem certos protagonistas escolhidos para dar voz a episódios
igualmente determinados. Abre o livro um capítulo dedicado à famosa primeira
página fechada em 13 de dezembro de 1968, dia da decretação do Ato Institucional nº 5. “Dois quadradinhos e uma lavada de alma” reconta como Alberto Dines
e Carlos Lemos driblaram os censores com pequenos textos em linguagem cifrada
na previsão da meteorologia (“Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está
irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos”) e na pequena chamada
“Ontem foi o Dia dos Cegos” (RIBEIRO, 2015, p. 17-23). Ambos deram depoimentos redundantes com os inumeráveis testemunhos sobre o caso em quase 50
225
anos, mas ao mesmo tempo inéditos, pelo propósito e pelo momento (Lemos morreu pouco depois do lançamento do livro de Belisa, em 7 de dezembro de 2015).
É contra o apagamento definitivo que trabalham Herkenhoff e Belisa, como
testemunhas e personagens de uma história memorável ameaçada pelo esquecimento, na esperança de retardar seu curso, ou mesmo imobilizá-lo, como diz Ricoeur (2007, p. 435). Para não cair no esquecimento e perder o reconhecimento e
a importância, o testemunho é o primeiro passo de um processo epistemológico
que parte de uma memória declarada, passa pelo arquivo e pelos documentos e
termina na prova documental. Falar da questão do testemunho, portanto, é se referir ao momento declaratório e sua inscrição (a memória arquivada). Podendo ressurgir toda vez que é acionada, essa memória declaratória inscrita sob a forma
documental passa a representar o passado pelas narrativas, através de diversos
artifícios retóricos. Enfim, o testemunho é selado pelo arquivamento e sancionado
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pela prova documental (RICOEUR, 2007, p. 170).
Neste processo, de tal forma imbricadas, torna-se impossível distinguir memória e história: de registro coloquial, quase um “causo” contado em rodas de
colegas, o testemunho dos jornalistas-memória se materializa, se reveste de discurso oficial e vira “história” registrada em livro. Contudo, pode-se apreender
mais deste exercício memorialístico. Sua natureza declaradamente passional impede o distanciamento crítico, na medida em que o que se pretende é o elogio do
passado, como instrumento de sua conversão em capital simbólico no presente e
no futuro.
Neste grupo de jornalistas, e particularmente na iniciativa da jornalista Belisa Ribeiro, evidencia-se um esforço consciente contra o esquecimento definitivo,
o esquecimento por apagamento de rastros, ao qual Ricoeur contrapõe o que chama de “esquecimento de reserva”, reversível, “tesouro do esquecimento a que
recorro quando tenho o prazer de me lembrar do que, certa vez, vi, ouvi, experimentei, aprendi, adquiri” (2007, p. 427). Destaca-se o valor da experiência – num
momento em que muito pouco daquele jornalismo continua valendo.
226
3.2.3. A “ressurreição”66
O jornal centenário voltou às bancas quase oito anos após o fim de sua circulação em papel, na esteira de uma longa crise financeira e administrativa que
levou o herdeiro do jornal, Manuel Francisco do Nascimento Brito, a arrendar a
marca em 2001 ao empresário Nelson Tanure (HERKENHOFF, 2010, FRAGA,
2014). Após mais de um ano de negociações, o empresário Omar Resende Peres
assumiu o título em 22 de dezembro de 2017, sublicenciando-o por 30 anos. Peres, mais conhecido como Catito, já foi dono de estaleiro (Mauá), de uma afiliada
da Rede Globo e de um jornal em Juiz de Fora (MG) e vinha investido em negócios imobiliários e símbolos da boemia carioca, como o restaurante Fiorentina e o
Bar Lagoa, além do Piantella, tradicional reduto de políticos em Brasília67. O plano original de Catito era relançar o jornal em 2017, mas as negociações com
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Tanure se estenderam por mais um ano.
O corpus selecionado para a análise neste capítulo compreende os textos do
material de divulgação e da edição de relançamento do JB; declarações dos envolvidos na retomada em vídeos institucionais e em reportagem publicada pela Folha
de S.Paulo; e entrevista semiestruturada com quatro integrantes da equipe, incluindo o diretor de redação, duas semanas antes do relançamento, em fevereiro de
2018, na sede provisória do jornal, na Avenida Rio Branco 53.
Os discursos que envolvem a retomada do Jornal do Brasil, em 2018, sugerem um “retorno ao passado”, mas não um passado qualquer. Poderia ser acionado
o tempo das campanhas populares e casos policiais, perfil que adotou em 1894; ou
o imediatamente anterior à sua saída de circulação, em 2010. Não é esse o jornal
que querem retomar – simplesmente porque não é este que mobiliza o sentimento
de nostalgia e afeto que uma parcela de jornalistas e da sociedade carioca tinha
pelo “velho JB”. Para construir um projeto de jornal no presente, certos valores de
um passado que se quer recuperar – foram agenciados nesse processo. “Estou re66
Desenvolvido a partir do artigo “Ressurreição de um ente querido: A volta do JB e a
(re)construção da memória de um ícone do jornalismo” (VIEIRA, KISCHINHEVSKY, 2018).
67
Cf. “Omar Peres, o novo dono do Bar Lagoa e de outros símbolos cariocas”, de Josy Fischberg e
Rodrigo Bertolucci, O Globo, 31/6/2016, e “Empresário que tenta comprar ‘Jornal do Brasil’ se
reinventou na noite do RJ”, de Fabio Victor, Folha de S.Paulo, 2/4/2017. Disponíveis
em:https://oglobo.globo.com/rio/omar-peres-novo-dono-do-bar-lagoa-de-outros-simboloscariocas-16307730 e http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/04/1871928-empresario-quetenta-comprar-jb-se-reinventou-na-noite-carioca.shtml. Acesso: 24 fev. 2018.
227
lançando o Jornal do Brasil, que é uma marca icônica no Rio”, disse à Folha. “Eu
acredito nisso, nesse patrimônio” (SÁ, 2018, grifo meu).
não estamos só fazendo um jornal; estamos fazendo o Jornal do Brasil, sem dúvida
nenhuma o título mais importante da história do jornalismo brasileiro. Então é uma
enorme responsabilidade, mas também um enorme prazer estar trazendo de volta
ao mercado este ícone da mídia brasileira (JB Youtube, 24/2/2018).
A aposta da gestão do empresário Omar Catito Peres foi reunir profissionais
identificados com o veículo, “jornalistas muito experientes, que abraçaram a causa” (PERES, 2018), com o mesmo “perfil que construiu a reputação do jornal”
(JB encarte, 2018, p. 1). A equipe responsável pelo retorno do impresso tem um
perfil definido: os cerca de 30 jornalistas e 20 colunistas tinham, no mínimo, 50
anos de idade – média inédita na imprensa brasileira em muitas décadas – e atuaram no JB nos anos 1960/70, ou seja, têm fortes vínculos com a casa. A respeito
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da preferência por pratas da casa dos velhos tempos de JB, o diretor de redação
insiste em evocar o “espírito” do jornal:
Catito fala que o que está na alma não morre. Foi assim que ele resgatou a Fiorentina, que pertenceu ao padrasto dele, e o Piantella. Não tem mais Ulysses Guimarães, mas o espírito está lá, de alguma forma. Então, para fazer o JB, tem que ser
com gente que vivenciou aquilo tudo (MENEZES CÔRTES, 2018, à autora).
A escolha da equipe é justificada como natural, por afinidades. Convidado
por Catito desde o início de 2017 para assumir a redação, Menezes Côrtes logo
acionou uma rede de potenciais colaboradores. Um dos primeiros é Octavio Costa, que conheceu na redação do JB nos anos 1970. Costa, além de “cria da casa”
(foi repórter, editor de política, editor-executivo, editorialista, diretor da Agência
JB), é sobrinho de Odylo Costa, filho, jornalista maranhense contratado nos anos
1950 para reformular o jornal. Odylo, que fora do Diário Carioca, montou a equipe que iniciaria a grande reforma do Jornal do Brasil: Amilcar de Castro, Reynaldo Jardim, Janio de Freitas, Carlos Lemos, Ferreira Gullar e outros:
É muito difícil fugir de um convite desses. O JB tem muito a ver com minha história. Meu tio foi o homem que comandou a reforma, era amigo do pai da condessa
Dunshee de Abranches. Eu me lembro de assistir criança, com meus pais, ao meu
primeiro desfile de escola de samba da sacada da redação, na Avenida Rio Branco.
E eu fiz tudo no Jornal do Brasil. Então eu não tive dúvida. É o Jornal do Brasil!
(COSTA, em entrevista à autora, 2018).
228
O relançamento do JB envolveu novamente um processo de humanização
do veículo, como no material promocional: “A alma do inesquecível Jornal do
Brasil pulsa e vibra no coração e na competência dos editores, repórteres, colunistas, fotógrafos, chargistas e diagramadores”, escreveu Menezes Côrtes, que assegura: “Prometo que iremos deixar a alma do JB fluir” (JB Encarte, 2018, p. 4).
No vídeo promocional do relançamento do Jornal do Brasil, divulgado nas
mídias sociais, a jornalista Tereza Cruvinel empregou a palavra “ressurreição”
para a volta do JB: “Tive sempre o JB em alta conta e lamentei muito o seu desaparecimento impresso. Agora estou neste projeto de retorno, de ressurreição”,
declarou Tereza, que trabalhou 25 anos no Globo, ao assumir a nobre a coluna
Coisas da Política da página 2, onde escreveu Carlos Castello Branco.
Para o relançamento, o jornal publicou em seu canal no Youtube outros víPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
deos institucionais, mostrando bastidores do trabalho na nova redação. O tom dos
vídeos era de celebrar o retorno de um ícone, de cultuar uma forma de jornalismo
da chamada de era de ouro – que se tratava, também, dos tempos áureos da trajetória de cada um de seus editores e colunistas convocados à fala.
Com layout similar ao do jornal, o material promocional de relançamento do
Jornal do Brasil impresso anunciava em manchete: “A credibilidade está de volta
às bancas”. Em quatro páginas, tamanho standard, em papel jornal branco, o encarte publicitário, direcionado a potenciais anunciantes e leitores, manda avisar
que “o jornal que sempre representou a opinião independente, a verdade, a informação corajosa e a cultura livre voltou à sua origem” (JB encarte, 2018, p. 1 e 4).
Na peça promocional do retorno, o diretor de redação, Gilberto Menezes Côrtes,
evoca a “tradição” do JB e anuncia sua “missão” de liderar um time para “trazer
de volta a credibilidade da notícia” e a “liberdade de opinião que sempre foram
marcas nas páginas impressas do Jornal do Brasil”. Ainda na primeira página,
anuncia-se que as bancas de jornal receberiam de volta “um dos mais importantes
veículos da imprensa livre”, de “linha editorial sempre coerente” (JB encarte,
2018, p. 4), ideais que buscaremos contextualizar e problematizar a seguir.
Um grupo de jotabenianos foi reunido para a tarefa de fazer o novo velho
JB, a partir de experiências e sonhos comuns. O que transparece nas suas falas é o
229
sentimento de que, mais do que a responsabilidade de fazer um jornal, estão incumbidos da responsabilidade de fazer um jornal-memória, como homens singulares encarregados da memória quanto mais ela deixa de ser vivida coletivamente,
como diz Pierre Nora (1993, p. 18), papel que vários jornalistas atribuíram a si
próprios ou para os quais foram escalados por seus contemporâneos. Em vídeo
publicado na véspera do relançamento, no canal do Youtube do jornal, editores e
colunistas apresentavam o novo projeto. Foram convocados o diretor de redação,
Gilberto Menezes Côrtes; o editor de Economia, Octavio Costa; o colunista de
economia Renê Garcia; o colunista do Informe JB, Jan Theophilo; o editor de Esporte, Toninho Nascimento; o editor de Cidade, Romildo Guerrante; o colunista
de esportes Renato Maurício Prado. Todos apresentam credenciais profissionais
para estar no projeto e destacam seus vínculos com o JB.
O diretor de redação, Gilberto Menezes Côrtes, que iniciou carreira no JB
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em 1972 e editor de economia, em 1982-83, se mostra pessoalmente tocado com a
missão. Seu depoimento de terno, sóbrio, é intercalado com imagens do jornalista
e executivo sorridente, vestindo camiseta e boné com o logotipo do Jornal do
Brasil – caracterização emblemática, que remete à expressão “vestir a camisa”,
com duplo sentido no caso do JB – comprometer-se e torcer pelo time: “Julgo ser
a missão mais importante da minha vida, e mais desafiante: reerguer o Jornal do
Brasil. É uma missão fantástica” (CÔRTES, JB no Youtube, 24/2/2018). Igualmente emotivo, Romildo Guerrante, jornalista com mais de 50 anos de carreira, se
apresenta como um homem-memória incumbido de transmitir um legado às novas
gerações e, mais que isso, com a missão de “repetir a experiência”:
Tive esse convite adorável para voltar ao JB. É uma aventura a essa altura da vida
– eu já sou bem vivido –, mas é também a oportunidade de usar essa experiência
que eu tenho e tentar, de alguma forma, passar a cultura do Jornal do Brasil. Que
não é a cultura velha, como pode parecer. Não, é uma cultura de ‘vamos fazer isso
direito, vamos apurar direito, vamos escrever direito, editar direito. Por isso o Jornal do Brasil era bom, e vamos repetir essa experiência agora. É uma experiência
sólida, que vem do jornal de papel (GUERRANTE, JB no Youtube, 24/2/2018).
Como em outros momentos, há preocupação em negar a nostalgia, e a crença de poder reviver uma experiência bem-sucedida baseada em uma “cultura”
compartilhada por aqueles sujeitos, envolvidos num projeto de futuro que procura
230
reproduzir o passado. O colunista Renê Garcia dá seu depoimento à frente de uma
edição do JB em que se lê “Jornal do Brasil – Um olhar para o futuro”:
Tenho uma relação com o Jornal do Brasil de muitos e muitos anos, o primeiro artigo que escrevi foi quando eu tinha 21 anos [...]. Eu costumo explicar que eu descobri o mundo pelo Jornal do Brasil. Ainda adolescente, começava a ver o mundo
através das matérias e notícias do Jornal do Brasil (GARCIA, 2018, grifo meu).
O depoimento de René é rico no sentido de expor seu vínculo como leitor
“formado” e informado pelo veículo desde a juventude, e o sentimento expresso
de dádiva e gratidão, que restitui no presente como colaborador do jornal. O
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mesmo fizeram o colunista Renato Maurício Prado e Hildegard Angel:
O Jornal do Brasil é realmente o jornal do meu coração, porque, embora eu tenha
feito uma longa carreira no Globo, foi no Jornal do Brasil que eu comecei como
estagiário em 1976. E foi pelo Jornal do Brasil que eu cobri a minha primeira Copa do Mundo, em 1978, na Argentina [...]. E, além disso, tem uma relação sentimental mesmo, pelo JB. O JB é aquele jornal que todo mundo que trabalhou carrega ele no coração. Por isso, quando o Catito e o Gilberto me falaram em vir trabalhar nessa equipe que vai tentar a retomada do Jornal do Brasil impresso, eu
nem pensei duas vezes. O JB é sempre do meu coração, fez muito por mim no meu
início de carreira, e eu faço questão de tentar retribuir de alguma forma (PRADO,
2018).
A minha relação com o JB é afetuosa. Eu sou daquelas que leram o JB desde criança, eu me formei culturalmente através das páginas do Caderno B, quando editado
por Grisolli. Eu militava nas artes, e era o caderno que nos dava conteúdo e respaldo pra gente seguir vocações artísticas. E agora espero que o JB mantenha esse alto
nível, esse alto padrão de emulação cultural (ANGEL, JB Youtube, 24/2/2018)
Renato Maurício Prado também expressa seu otimismo apostando no vínculo dos cariocas com o JB e nos valores jornalísticos associados a este:
Estou muito otimista, porque o Jornal do Brasil é o jornal que está no coração e na
cabeça de todos os cariocas que o leram desde a década de 60, 70, ou seja, são pessoas que estão com mais idade hoje em dia, mas que passaram também pros seus
filhos [herança] a sensação daquele jornal, com uma liberdade absoluta, capacidade de criticar tudo o que achava errado. Muita gente está animada com essa volta
do JB, naturalmente um pouco diferente do que ele já foi, no passado, mas ainda
assim mantendo as coisas mais importantes, como a liberdade de imprensa, pelo
que o Jornal do Brasil sempre primou (PRADO, 2018).
Octavio Costa, editor de política, afirma: “Pretendo manter uma tradição,
uma característica, uma marca do Jornal do Brasil, que é a imparcialidade”
(COSTA, 24/2/2018, grifos meus). “Cria” de O Globo, sem passagem anterior
pelo JB em 30 anos de experiência em jornalismo esportivo, o jornalista Toninho
231
Nascimento chegou como editor de Esportes. “Meu grande entusiasmo e desafio é
que, em toda a minha carreira, o Jornal do Brasil sempre foi a excelência” (NASCIMENTO, 24/2/2018).
A memória está vinculada ao sentido da passagem do tempo, que, na visão
de Ricoeur (2007), é uma “orientação em mão dupla, do passado para o futuro, de
trás para frente, por assim dizer, mas também do futuro para o passado, segundo o
movimento inverso de trânsito da expectativa à lembrança, através do presente
vivo” (p. 108). Neste sentido, entende-se que os envolvidos no relançamento do
JB orientam-se do presente a um determinado passado, e deste recuperam aspectos nos quais depositam alguma perspectiva de futuro. Muitos jornalistas recusaram o convite, principalmente por não vislumbrarem futuro na iniciativa. Foi particularmente difícil arregimentar um nome de peso para editar o Caderno B.
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A construção gráfica do novo jornal impresso também é significativa: todas
as experimentações e reformas dos anos 2000 – inclusive a modernização do cabeçalho e a adoção do formato berliner, em 2006 – são esquecidas, e o Jornal do
Brasil retorna embalado por projeto gráfico que remete ao visual dos anos 1990,
que coincide com as suas últimas “memórias felizes”. A reprodução de páginas
emblemáticas do JB na edição de relançamento indica a intenção de causar tal
reação de reconhecimento por parte de seu público e da comunidade jornalística.
Marcam a edição de relançamento duas ausências: de reportagens e de
anúncios. Houve, em um total de 48 páginas publicadas, duas páginas inteiras
(Triunfo Logística e Universidade Salgado de Oliveira); meia página da Incorporadora Imobiliária Tegra (antiga Brookfield); duas meias páginas Sesc-Senac;
meia página da agência Artplan; meia página do banco Bradesco; meia página da
telefônica Oi; meia página do Casa Shopping; um quarto de página das associações de publicidade e propaganda; um quarto de página da Agência Binder, além
de calhaus (anúncios de empresas do mesmo dono) de Fiorentina e Piantella –
pouco mais de 10% do espelho da edição é destinado a anúncios, percentual baixo
para uma estreia, o que suscitou dúvidas sobre a sustentabilidade da empreitada. O
jornal tem um departamento de publicidade, com seis profissionais, e seu plano de
negócios inicial foi direcionado à venda em bancas, diferentemente do que vigorava até a saída de circulação. “O mercado no Rio está muito machucado, em de-
232
corrência da crise que estamos vivendo. Agora, nós temos que viver de banca”,
alegou Peres à Folha. Assinaturas começaram a ser oferecidas em maio, quando o
acesso ao conteúdo do papel foi fechado no site, ainda hospedado no Portal Terra,
o que restou da quebra do jornal, com equipe minúscula.
Na contramão do mercado, como reconhecem Catito e Menezes Côrtes, em
entrevista à autora, e com o rosto voltado para o passado – como o anjo de Paul
Klee cujas asas são irremediavelmente arrastadas para o futuro, como escreveu
Benjamin (2010) –, o jornal voltou às bancas mirando em seu leitor fiel: “Achamos que existe ainda um público saudoso do papel. Quando o JB saiu das bancas,
havia um renitente público, que não queria ler o Globo. Esse é o público que está
no limbo, e interessado” (CÔRTES, 2018, em entrevista à autora). De fato, a primeira edição, de 40 mil exemplares, se esgotou antes das 11h da manhã68.
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A modestíssima campanha de lançamento se resumiu a: 1) encarte direcionado ao mercado publicitário; 2) evento de apresentação do projeto ao meio publicitário, às vésperas do relançamento; 3) ações de promoção no domingo do
relançamento em 100 pontos da orla do Rio de Janeiro e Niterói, com distribuição
de exemplares e aviões de propaganda sobrevoando o mesmo eixo (de Icaraí ao
Pontal) com as mensagens “Quer uma boa notícia?”, “O Jornal do Brasil voltou”
e “JB todo dia nas bancas”69; e 4) Vídeos institucionais no canal do Youtube. O
jornal, dessa forma, arregimenta pequeno mas simbólico grupo de antigos colaboradores, e opta pelo mais tradicional formato, o jornal diário de papel, dirigido a
um grupo reduzido mas fiel de antigos leitores nesta volta, apostando que seu público-alvo inicial seriam os saudosos pelo retorno da marca.
Boa parte dos atributos relacionados ao JB está ligada a ideais da atividade
jornalística nos anos 1960, pautada pela concisão, isenção e objetividade. Em seminário na Universidade do Texas, em 1953, o jornalista Danton Jobim, ex-diretor
de redação de jornais como Diário Carioca e Última Hora, descreve o jornal co-
68
“Volta da edição impressa tem venda esgotada nas bancas”. Site do Jornal do Brasil, 25/2/2018.
http://www.jb.com.br/pais/noticias/2018/02/25/na-volta-da-edicao-impressa-jornal-do-brasil-temvenda-esgotada-nas-bancas/. Consulta em 25/2/2018.
69
“Na gráfica, a emoção da volta do Jornal do Brasil”. Site do Jornal do Brasil, 24/2/2018. Disponível em http://www.jb.com.br/pais/noticias/2018/02/24/na-grafica-a-emocao-da-volta-do-jornaldo-brasil/. Consulta em 26/2/2018.
233
mo matéria-prima da historiografia, e o jornalista como fornecedor desta ao historiador:
Influindo em larga escala na realidade política e social, o jornalista de hoje faz história. Faz, mas não escreve, limitando-se a fornecer aos historiadores os fatos concretos – pedras e tijolos que, ligados a materiais de outras origens, vão permitir as
grandes obras interpretativas (JOBIM, [1954] 1992, p. 37).
Mais de 50 anos depois, Gilberto Menezes Côrtes, diretor de redação do novo JB, sustenta que a volta do Jornal do Brasil representava uma oportunidade de
o leitor brasileiro “conhecer um pouco mais a verdade”:
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Sigo como bíblia do jornalismo o seguinte ditado: “A verdade tem três faces – a
sua, a minha e a certa”. Ou seja, o leitor é que tem que concluir a verdade, e o jornalismo tem que oferecer ao leitor elementos para que ele tire suas conclusões. O
Jornal do Brasil vai oferecer ao leitor a notícia multifacetada e com opiniões sólidas, sem empurrar goela abaixo uma única versão dos fatos. No JB o leitor terá
sempre uma oportunidade de ver algo mais da notícia (8/2/2018, em entrevista à
autora).
3.3. De volta para ‘casa’
O Jornal do Brasil inaugurou sua nova redação em prédio na Avenida Rio
Branco com Assembleia, pertinho da sede histórica do “velho JB”, na Rio Branco 110, em que o jornal se estabeleceu de 1910 a 1973. A nostalgia, a tradição e a
expectativa de futuro são alguns dos elementos-chave para a análise da primeira
edição em papel do JB em quase oito anos, como veremos a seguir.
No vídeo “JB aposta no futuro”, para o canal do JB no Youtube, jornalistas
falam da nova sede, na Avenida Rio Branco 157. O sentimento era de estar “de
volta para casa”, uma vez que muitos dos jornalistas que foram incumbidos da
missão de levar o “novo JB” às ruas já havia passado por suas redações. Novamente, há a interlocução entre o passado e o futuro, em que a nova empreitada se
avaliza do passado nostálgico, e a referência ao jornal como a casa, e aos jornalistas como seus habitantes, tão recorrentes entre os discursos produzidos sobre o
Jornal do Brasil, que remetem à própria origem da ideia de nostalgia.
Quando foi usado pela primeira vez, no século XVII, o termo, criado em
1688 pelo médico suíço Johannes Hofer, a partir dos radicais gregos nostos (volta
234
para casa) e algos (dor), foi usado para diagnosticar soldados e marinheiros afastados de casa durante várias guerras. Seus sintomas eram febre, insônia, taquicardia, falta de apetite e declínio das forças. Até aquele momento, a mobilidade espacial era rara e o ritmo cadenciado do tempo era rompido apenas por eventos extraordinários, como guerras e catástrofes naturais.
A melancolia pelo afastamento da terra natal era uma anomalia, e provocava
em muitos um estado disruptivo, considerado patológico. No início do XIX, a
nostalgia já tinha se generalizado como um mal que poderia acometer indivíduos
de qualquer profissão, grupo étnico ou nacionalidade. Quando o tempo começou a
se acelerar para muitos, criando profundas descontinuidades na vida, a nostalgia
deixou de ser um problema de algumas poucas pessoas deslocadas (DAVIS, 1979;
NATALI, 2006; CROSS, 2015). Svetlana Boym define a nostalgia como o desejo
por um lar que não existe mais, ou nunca existiu, um sentimento de perda e desloPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
camento, que é também uma fascinação com a própria fantasia, de que é exemplo
o amor nostálgico. “A exposição dupla ou a sobreposição de duas imagens – da
terra natal e da estrangeira, do passado e do presente, do sonho e da vida cotidiana
– é uma boa imagem cinematográfica da nostalgia” (BOYM, 2017, p. 153).
Na crônica que marcou sua volta ao Jornal do Brasil como colunista, em
2005, uma das ocasiões de autocelebração do Caderno B, então chegando aos 45
anos, a jornalista e escritora Marina Colasanti procurou estabelecer paralelos entre
a primeira vez que esteve na redação do JB, no início dos anos 1960, e aquela seu
retorno. A redação, a jornalista, o tempo, tudo era havia mudado, mas ela sustenta
que o encantamento daquela experiência seriam os mesmos:
Como quem volta à casa antiga, chego e me instalo. Mas não é uma casa antiga. É
uma antiga casa nova, pois é para fazer o novo que fomos convocados. [...] Quando
entrei no Caderno B a primeira vez, havia palmeirinhas no patamar da escada, vidros jateados com arabescos separando as salas e linóleo verde no tampo das mesas, debaixo das máquinas de escrever. Eu também tinha um estremecimento de
palmeiras na alma, farfalhar de medo e insegurança. Tudo era novo para mim. [...]
A velha nova casa guarda ainda as pegadas dos antigos habitantes (COLASANTI,
B, 1º/5/2005, p. 3).
A menção, no depoimento de Colasanti, a “uma antiga casa nova, pois é para fazer o novo que fomos convocados” também se aplica a este retorno, em 2018.
O vídeo promocional do JB no Youtube abre com cenas da redação, com jornalis-
235
tas trabalhando em modernos computadores, num salão amplo e com iluminação
fria e natural, proporcionada por janelas abertas para a Rio Branco, e closes em
pôsteres de fotos emblemáticas de fotojornalistas do Jornal do Brasil – como deputados federais flagrados votando por colegas ausentes; manifestações contra a
ditadura nos anos 1960; o colunista Carlos Drummond de Andrade, o deputado
Ulysses Guimarães erguendo a Constituição de 1988. A seguir, começam os depo-
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imentos. O editor de política, Octavio Costa, fala de uma “volta à origem”:
Hoje, quando eu cheguei aqui de manhã, eu fiquei emocionado. Para mim, representava a volta do JB à origem. Conheci o JB na Rio Branco 110, uma sede histórica, um prédio do início da Avenida Rio Branco, e em que o JB fez história [...]
Realmente impressionado, porque temos uma equipe de jornalistas todos muito
aguerridos, que apostam neste relançamento do Jornal do Brasil, que já é uma realidade, vai fazer dois meses nas bancas, e o investimento na nova sede mostra que
o empresário que hoje é responsável pelo Jornal do Brasil também está levando
muita, muita fé este projeto. Então, eu me emocionei por me lembrar do antigo
Jornal do Brasil, e por ver a qualidade do investimento que está sendo feito neste
projeto de colocar o Jornal do Brasil de novo páreo a páreo com os grandes jornais
da imprensa brasileira. O Jornal do Brasil chegou para ficar (COSTA, 2018, grifo
meu).
O vice-presidente do JB e editor de Economia, Gilberto Menezes Cortes, faz
um paralelo entre o Jornal do Brasil da Avenida Rio Branco 110, onde começou
sua carreira, 46 anos antes, aos 22 anos, e o do relançamento. Em fala contraditória, destaca a permanência de ideais de imparcialidade:
O Jornal do Brasil naquela época estava do lado direito da rua. Agora está do lado
esquerdo da rua. Na verdade não mudou muito, a posição do Jornal do Brasil vendo os fatos é sempre a mesma, o Jornal do Brasil fica meio imparcial, oferecendo
todas as possibilidades, as visões dos dois lados, ora está lá, ora está aqui, mas está
sempre com a sociedade brasileira, e aberto para uma visão independente, imparcial, tanto quanto pode ser imparcial uma visão de imprensa (CÔRTES, JB no
Youtube, 12/4/2018, grifos meus).
O diretor de redação, Toninho Nascimento, reforça a expectativa:
No momento em que a gente está numa nova casa [...], a expectativa é de que a
gente cresça sempre mais. Aqui na Rio Branco, um endereço muito emblemático
para o Jornal do Brasil, é uma aposta no futuro. Aposta num Brasil pluralista, democrático, com menos radicalismos, a aposta na democracia, aposta num país que
tem muito a crescer ainda, apesar de todos os problemas que vive atualmente (JB
no Youtube, 12/4/2018, grifos meus).
A seguir vem o depoimento da colunista Hildegard Angel:
236
Eu estou muito feliz de estar de volta à Avenida Rio Branco. Eu já trabalhei no
Jornal do Brasil da Avenida Rio Branco, e é gostoso a gente sentir que o Jornal do
Brasil voltou não só impresso, mas também ao seu antigo endereço, esta avenida
emblemática, importante do coração do Rio de Janeiro, onde o Rio de Janeiro começou a se transformar, na época de Pereira Passos, quando o Rio de Janeiro foi
revolucionado na renovação, no progresso... O Jornal do Brasil sempre significou
progresso, modernidade, e agora com esse passo corajoso do Omar Catito Peres,
nós estamos adentrando na modernidade jornalística através de um gesto do passado, que é trazer a imprensa escrita, impressa, no papel, de volta, no Jornal do
Brasil (JB no Youtube, 12/4/2018, grifos meus).
As falas remetem à noção de nostalgia proposta por Svetlana Boym (2017):
não é apenas uma expressão de saudade local, mas resultado de uma nova compreensão do tempo e do espaço que faz a divisão entre local e universal possível,
um sintoma de nossa época, uma emoção histórica. Sobretudo, a nostalgia nem
sempre é retrospectiva; pode ser igualmente prospectiva. “As fantasias sobre o
passado, determinadas pelas necessidades do presente, têm um impacto direto nas
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realidades do futuro. A consideração do futuro nos faz assumir a responsabilidade
por nossas fábulas nostálgicas [...]. A nostalgia tem uma dimensão utópica”
(BOYM, 2017, p. 154). Foi nesse sentido a tentativa de ressuscitar, mais que o
Jornal do Brasil, um sonho e um paradigma de jornalismo. Mas o contrato de
leitura (VERÓN, 2004) é assinado ou não a cada dia, dependendo de fatores diversos – desde a forma como o veículo trata seu público até o próprio reconhecimento do jornal como uma fonte de informação crível pelos mais diversos segmentos sociais.
3.3.1. A primeira edição do “novo JB”70
Jornais de referência se caracterizam pela justaposição, ordenada em editorias, de textos informativos, analíticos e de opinião. A edição de retorno do Jornal
do Brasil às bancas, no entanto, é composta exclusivamente por textos autorreferentes e artigos de autoridades e personalidades saudando a volta do jornal. A
manchete “O Rio tem solução”, ilustrada por Ziraldo com um Cristo Redentor de
braços abertos e coração pulsando, antecipa o único texto da capa, sem assinatura,
uma exaltação à cidade apresentando possíveis saídas para um Rio devastado pela
70
Desdobramento de comunicação apresentada no GT Memória nas Mídias do XXVII Encontro
Anual da Compós (VIEIRA, KISCHINHEVSKY, 2018) e de capítulo publicado em Santa Cruz;
Ferraz (orgs), 2018.
237
mais aguda crise econômica de sua história: “A prova de que nosso estado e o país
têm futuro está em nosso retorno”. Em aparente paradoxo, o texto afirma ainda:
“para mostrar que temos futuro, o Jornal do Brasil traz hoje uma retrospectiva
histórica de nossa trajetória ao longo de mais de 100 anos de existência” (JB,
25/2/2018, p. 1).
A edição trouxe quatro cadernos, o primeiro com 24 páginas, e os demais
(Economia, Esportes e B), com oito, cada. O primeiro caderno, dedicado a Política, Opinião, Cidade e Sociedade, apresenta o time de colunistas e traz artigos do
presidente da República, Michel Temer, dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da
Silva, Fernando Collor de Mello e José Sarney, dos presidentes da Câmara dos
Deputados, Rodrigo Maia, e do Senado, Eunício Oliveira, do governador Luiz
Fernando Pezão, dos ex-governadores Moreira Franco – posicionado no alto da
página, acima de Pezão, sinalizando a balança de poder no PMDB pósPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
intervenção federal na segurança pública do Rio –, Benedita da Silva e Nilo Batista, do prefeito Marcelo Crivella, dos ex-prefeitos Eduardo Paes, Cesar Maia e
Saturnino Braga, do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio
Mello, do presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Milton Fernandes
de Souza, do presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Domingos
Meirelles, e do arcebispo do Rio, dom Orani Tempesta, entre outros. O desfile de
autoridades, muitas enredadas em investigações de corrupção, contrasta com a
promessa que aparece no fim do texto de apresentação, estampado na capa do
jornal:
Estamos de volta sem qualquer vínculo ou comprometimento com setores da economia, o que dará ao leitor a certeza de que praticamos um jornalismo profissional
e isento.
Estamos de volta, trazendo aos nossos milhares de leitores que jamais esqueceram
o JB, o que sempre fomos: críticos, criativos, independentes. Estamos de volta para
levar ao leitor o que ele quer ver e ler: a notícia como ela aconteceu. Isenta e sem
partidarismo político ou ideológico. A notícia não se transforma. A notícia, simplesmente, é! É o que vamos fazer (JB, 25/2/2018, p. 1).
Destaca-se aqui a reafirmação tautológica da natureza da notícia, que evoca
a percepção do jornalismo como espelho da realidade, desconsiderando todas as
pressões organizacionais, políticas, econômicas, da comunidade interpretativa
etc., amplamente abordadas nos estudos em jornalismo ao longo das últimas cinco
238
décadas. Chama atenção, particularmente, a promessa irrealizável de um jornalismo “isento”, “sem partidarismo político ou ideológico”, e a afirmação das especificidades (mitologizadas) do veículo, articuladas a uma temporalidade igualmente
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construída – “o que sempre fomos: críticos, criativos, independentes”.
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239
Figura 19: Capa do relançamento
240
Também há artigos, logo na página 2 do primeiro caderno, dos ex-editoreschefes Alberto Dines e Paulo Henrique Amorim. Dines, que já estava doente à
época, morreria três meses depois do lançamento. Em seu artigo, chamado Sempre
JB (Anexo 1), evoca: “O JB voltou. Para fazer barulho bom e peso na leveza das
redes. Pedra firme em água fluida. Um adversário temido volta às bancas. Caixa
de ressonância, guia seguro, imprensa séria, comprometida, consistente, inovadora, tudo combina com o JB”. E exorta o jornal à clássica defesa dos desvalidos,
citando Memórias de um antissemita, romance de Gregor von Rezzori: “‘O sangue jorra como antes. A única dignidade que se pode manter no nosso tempo é a
dignidade de estar entre as vítimas’. No caso do JB, é brigar pelas vítimas. Não é
fácil, mas é possível. Agora mais do que nunca” (DINES, 2018, grifos meus).
Priorizando-se os discursos autorreferentes, destacam-se, além da capa, as
páginas 3 a 6, 12 e 20 do primeiro caderno. Na página 3, anuncia-se o retorno do
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jornal, com manchete ilustrada pela capa da primeira edição, de 1891. O texto faz
um breve histórico da trajetória do veículo, destacando as mudanças de donos ao
longo de 127 anos e os grandes nomes que passaram por seu expediente, como o
ex-redator-chefe Rui Barbosa e o ex-correspondente Eça de Queiroz. As páginas 4
a 6 são gráficas e dedicadas às dezenas de reportagens, capas e fotos contempladas com o Prêmio Esso, enfatizando a relevância e o prestígio de que o JB gozou
entre os pares da comunidade jornalística ao longo de sua história, sobretudo na
segunda metade do século XX.
A página 12, de Opinião, é encimada pelo expediente e traz editorial assinado pelo novo diretor-presidente, Omar Peres. Ele destaca o “imenso desafio” que
representa o “retorno dessa marca genuinamente carioca, que foi fonte de informação e cultura de gerações em nossa cidade e em todo o país”. Para retomar a
“consagrada trajetória do JB impresso”, o empresário apresenta um decálogo de
princípios que nortearão o veículo, um pot-pourri do ideário liberal, como a defesa da “democracia ocidental e do pluralismo político”, da “liberdade de expressão” e da “livre economia” e o combate à “corrupção”, aos “privilégios das organizações patronais e de empregados” e aos “oligopólios de importantes segmentos
da economia brasileira”. O 10º compromisso reitera o ideal de isenção e objetividade: “Dizer a verdade. Sempre”. Ao fim, Peres reforça ser “uma honra estar à
241
frente deste projeto que devolve ao Rio e ao Brasil uma parte valiosa da sua memória” (PERES, 2018, p. 12, grifo meu).
A página 20 busca retomar a construção discursiva do jornal como instituição genuinamente carioca, apresentando cinco fotos de momentos marcantes da
história da cidade – todas do período da ditadura militar, que funciona como importante chave de leitura do projeto de relançamento: a enchente de 1966, a queda
de parte do Elevado Paulo de Frontin (creditado erroneamente na legenda como
Elevado da Perimetral), em 1971, a inauguração da Ponte Rio-Niterói, em 1975, e
do Metrô, em 1979, pelos generais-presidentes Emilio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel, e o carro destruído por uma bomba no frustrado atentado de militares ao
Riocentro em 1981 (cobertura vencedora de Prêmio Esso). A manchete promete
ausculta atenta, procurando resgatar seu papel de mediador social: “Vivendo o
sentimento da cidade”. No curto texto, reforça-se a humanização do jornal, que
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estaria presente na vida do carioca “na alegria e na tristeza”: “É um casamento
antigo com seus moradores”.
E segue em sua tentativa de reconstrução como sentinela vivo da democracia, no mesmo tom adotado por Dines no artigo da página 2:
Este jornal que volta às bancas traz na sua essência essa cultura que vem de sua raiz. Quando a cidade sofre, o JB derrama lágrimas em suas páginas. Muita tristeza e
muita dor nas inundações fatais, grandes alegrias na inauguração de novos sistemas
de transporte, de novas vias, de um grande palco para o Carnaval. Muita tristeza
nos desabamentos, nos grandes acidentes, nos episódios políticos que ameaçaram a
democracia. O Jornal do Brasil acompanhou tudo isso. Contou tudo que sabia. Foi
sempre assim na memória deste jornal. Vamos mantê-lo desta forma (JB,
25/2/2018, p. 20, grifos meus).
A mescla de textos autorreferentes prossegue nos demais cadernos, que
também trazem depoimentos de autoridades e personalidades, entremeados com
grandes feitos das editorias de Economia, Mundo, Esportes e B. O poeta Carlos
Drummond de Andrade, colaborador entre os anos 1970 e 1980, é lembrado com
destaque, na reprodução de suas crônicas sobre a derrota do Brasil na Copa do
Mundo de 1982, na contracapa de Esportes (memória afetiva do editor Toninho
Nascimento), e sobre a mudança de endereço do JB, do Centro do Rio para a zona
portuária, em 1973, na página 5 do Caderno B. Também se destaca, nas páginas 6
e 7 do B, o papel do suplemento cultural na promoção da então recém-surgida
242
bossa nova, nos anos 1960. Na capa do B, a estrela é Ziraldo, que, aos 85 anos, é
apresentado como “Maluquinho pelo JB” escalado para comandar um “time de
craques que fará as charges diárias no jornal”, retomando projeto de 2005 que
comandou no caderno e sucumbiu um ano depois. (Ziraldo, com a saúde frágil,
não pôde contribuir.) O texto, assinado pela jornalista Celina Côrtes, destaca outros atributos construídos em torno do jornal ao longo de sua história, como a atuação de “vanguarda”.
A memória está vinculada ao sentido da passagem do tempo, que, na visão
de Ricoeur, é uma “orientação em mão dupla, do passado para o futuro, de trás
para frente, por assim dizer, mas também do futuro para o passado, segundo o
movimento inverso de trânsito da expectativa à lembrança, através do presente
vivo” (2007, p. 108). São essas operações que aparecem em várias páginas da
edição de relançamento do JB, como no artigo da colunista Hildegard Angel, em
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que assim apresenta sua biografia: “Como o Benjamin Button do cinema, com o
passar do tempo a colunista ganha vigor infantil e intrepidez adolescente” (JB,
Caderno B, 25/2/2018, p. 3). Neste jogo temporal, a jornalista, que iniciou carreira
aos 18 anos em O Globo, sugere atribuir ao JB sua juvenilidade tardia.
Não parece ser gratuito que a palavra “sempre” se destaque tanto na edição
especial de relançamento como no encarte prospectivo, assim como nas falas de
seus jornalistas, reforçando uma narrativa de continuidade, mais que de recomeço:
ao oferecer “a continuidade a uma história de jornalismo corajoso e independente
que estabeleceu o Jornal do Brasil como uma voz à frente de seu tempo”, ao destacar que “não estamos criando mais um novo jornal. Estamos recriando um Jornal do Brasil que sempre se manteve novo, vibrante e influente”, que “nunca parou de evoluir” (JB encarte, 2018, p. 1). Construções que ignoram não só os sete
anos fora das bancas, como os muitos períodos de opacidade do periódico. Para
além das reconstruções memorialísticas, a história do JB, como a de qualquer outro veículo, está longe de ser coerente ou rigorosamente fiel aos ideais atribuídos a
um jornalismo ético e democrático.
O jornal, que nasceu monarquista logo após a proclamação da República,
apoiou o golpe militar de 1964, como toda a imprensa de referência da ocasião,
como aponta Janio de Freitas, que deixara o jornal menos de um ano antes:
243
Havia uma multidão de jornais em São Paulo e no Rio, mas todos se comprometeram imensamente com o que pode haver de pior em termos de regime político e
sobretudo em termos de imprensa, um utilitarismo muito ordinário, muito baixo. O
Jornal do Brasil foi a peça mais importante nisso, nesse papel repugnante da imprensa brasileira, mas eu não vejo que jornal se possa isentar desse quadro. A minha impressão é de que os jornalistas também foram muito beneficiados, porque
vários deles tiveram papel muito relevante nessa posição que a imprensa brasileira,
na conduta que a imprensa brasileira teve durante esses anos. Destaco, em particular, os casos do Jornal do Brasil, do Alberto Dines... Em termos pessoais eu não
tenho nada contra ele, mas historicamente, lamento essa irresponsabilidade, fundamentalmente dele. O Jornal do Brasil era o jornal de grande importância na época e teve esse papel lamentável (FREITAS, 2008).
No livro de Belisa, o episódio é apresentado num capítulo chamado “Golpe
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de Estado com cobertura premiada” (2015, p. 55). Luiz Orlando Carneiro defende:
Havia uma tensão mundial que a pessoa, hoje, não tem a mínima ideia do que era.
E realmente Fidel Castro e a União Soviética queriam aproveitar o sucesso da Revolução Cubana para exportá-la, e o Che Guevara estava na América do Sul fomentando as guerrilhas, e até em Angola. E o João Goulart, um sujeito tíbio, dominado por aqueles líderes sindicais que eram populistas ou comunistas, ou socialistas, seja lá o que fossem, eles queriam realmente implantar a República Sindicalista
no Brasil. Então, o Jornal do Brasil, o Correio da Manhã, O Globo, todo mundo
queria tirar o Jango (CARNEIRO, em RIBEIRO, 2015, p. 57)
Dines, por sua vez, sustenta no depoimento a Belisa que o JB era isento em
relação a Jango, e evoca a sustentação da cobertura na diversidade de fontes e no
trabalho jornalístico, mas confirma que o jornal apoiou o golpe:
As manchetes eram objetivas. A posição contra o Jango não era no dia a dia porque
eu estava no comando e não tinha nenhum interesse em derrubá-lo. A gente tinha
repórter em Minas, São Paulo, na Vila Militar, no Forte de Copacabana, tinha um
repórter que cobria o gabinete do Ministério da Guerra passando as informações
que ele conseguia obter. Tinha cobertura. O Luiz Orlando Carneiro assumiu devido
ao chefe ter pedido demissão. O chefe era o Jaime Negreiros, grande jornalista, socialista, muito puro. Ele me disse: Não dá pra continuar. E pediu demissão. E quem
o substituiu foi o Luiz Orlando. Porque, editorialmente, o jornal ficou a favor do
golpe (DINES, em RIBEIRO, 2015, p. 57-58)
No tópico “Neutralidade classe A” de seu livro Motta afirma que “o Jornal
do Brasil acompanhou de forma independente toda a crise, ao contrário de outros
jornais, que eram ligados a diferentes interesses políticos”. Do lado petebista apenas a Última Hora apoiava Jango e os movimentos sindicais. Contra Jango estavam todos os jornais que tinham algum prestígio. A neutralidade ajudou ainda
mais a sedimentar o JB no que se chamaria de ‘Classe A’ (MOTTA, 2018, p. 109110).
244
Posteriormente, o Jornal do Brasil distanciou-se do regime, mas, durante a
redemocratização, malufou (MOTTA, 2018; MENEZES CÔRTES, 201871). Entre
1982 e 1984, a sucursal de Brasília era dirigida por JB Lemos, ligado a Paulo
Maluf, candidato do PDS (base de apoio do regime militar) à sucessão do general
João Baptista Figueiredo na Presidência da República, o que garantia amplo noticiário favorável ao político projetado durante a ditadura, ex-prefeito biônico de
São Paulo nomeado pelo regime72.
O JB também se posicionou na contramão da história no período do governo
Fernando Collor de Mello, quando foi um dos últimos a retirar o apoio ao presidente, mesmo durante a Comissão Parlamentar de Inquérito que apurava denúncias de corrupção envolvendo seu tesoureiro Paulo César Farias. Em junho de
1992, assinalam os pesquisadores Richard Romancini e Cláudia Lago, o “Jornal
do Brasil podia ainda defender o presidente e acusar de ‘golpistas’ aqueles que
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defendiam o impeachment” (ROMANCINI & LAGO, 2007, p. 194). O jornalista
Etevaldo Dias, diretor da sucursal de Brasília, publicou na ocasião reportagem que
isentava o presidente de denúncia de fraude na chamada Operação Uruguai – mirabolante história criada para justificar o pagamento de despesas milionárias de
Collor, através de triangulação financeira envolvendo barras de ouro adquiridas
no país vizinho. Um mês depois, em agosto de 1992, Dias deixaria o JB para se
tornar secretário de Imprensa de Collor, cargo que ocuparia até dezembro, quando
o presidente, acuado, renunciou à Presidência (ABREU e ROCHA, 2006; MOTTA, 2018). Boa parte dos leitores fiéis, assim como os jornalistas brasileiros em
atividade, conhecem fatos como estes. Prevalece, porém, o trabalho de seleção de
memórias, reapropriadas em ações institucionais. Tanto que, ao ressurgir, o JB se
dirige à “legião de leitores cuja fidelidade sempre esteve acima de qualquer questionamento”, prometendo dar “continuidade a uma história de jornalismo corajoso e independente” com “uma linha editorial com a mesma força e independência
de sempre” (JB encarte, 2018, p. 1, grifos meus).
71
Entrevista à autora realizada em 8/2/2018, e mais dezenas de registros de demissões voluntárias
no período, por esse motivo.
72
Depoimento da jornalista Eliane Cantanhêde, em ABREU e ROCHA, 2006, p. 59-61, ver também MOTTA, 2018.
245
Qualquer jornal, ao dirigir-se a seus leitores, evoca a credibilidade como valor-chave. O ponto, aqui, é que, no caso do Jornal do Brasil, este valor estava
impregnado de simbolismos relacionados à história do jornal e, principalmente, às
memórias articuladas a ele. Credibilidade não apenas como um princípio jornalístico, mas como uma característica inata e inescapável. O jornal se investiu de uma
aura própria, de uma distinção particular introjetada no discurso autorreferente da
empresa e que as gerações seguintes de jornalistas e executivos buscaram evocar.
Exemplo disso foi o teaser em que o último dono do JB se dirige a representantes de agências de publicidade que estiveram presentes ao evento de apresentação. Catito enfatizou a distinção do veículo (“Não se trata de um jornal, se trata do
Jornal do Brasil”) e seu vínculo com a cidade (“essa marca que fala à alma do
carioca”); apelou à empatia da plateia (“Tenho certeza de que todos vocês que
vivem esta cidade, que amam esta cidade, sentem falta da marca do Jornal do
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Brasil); humanizou o jornal (“Sentem falta da personalidade do Jornal do Brasil,
da coragem do Jornal do Brasil, da independência do Jornal do Brasil”); e apresentou como trunfo o argumento de que “todas as pessoas que estão neste projeto
estão se juntando por essa marca, que tem como palavra-chave credibilidade”73.
3.3.2. Passado-presente: 1968-201874
O ano de 1968 é particularmente caro a essa memória que o jornal deseja
reavivar, com retrospectivas dos acontecimentos e da própria cobertura dada pelo
jornal à época. Tal prática se evidenciou em outros momentos do periódico, como
em seu centenário (MATHEUS, BARBOSA, 2008), e em seu retorno às bancas,
com reportagens sobre os acontecimentos políticos de 1968, no Brasil e no mundo, publicadas no primeiro semestre de 2018. O Jornal do Brasil voltou a circular
impresso exatos 50 anos depois de 1968, ano emblemático para o país e determinante para a construção da imagem pública do jornal, mirando num público órfão
de seus bons tempos, mobilizando a nostalgia. A partir de levantamento por palavras-chave nas edições impressas de fevereiro a junho de 2018, busca-se analisar
73
“Apresentação
do
Jornal
do
Brasil
ao
meio
publicitário”.
https://www.youtube.com/watch?v=4R1ikTheSys. Consulta em: 26/2/2018.
74
Este capítulo é versão revista e ampliada do artigo “1968 no Jornal do Brasil de 2018: um tempo
além de seu valor-notícia”, publicado na revista Parágrafo (VIEIRA, 2018).
246
o imbricamento de efemérides como valor-notícia com a própria imagem pública
do periódico, ancorada em um passado mítico reacionado em narrativas autorreferentes, destacando como o jornal noticiou, no passado, aqueles fatos.
Nas teorias do jornalismo, o tempo é considerado um dos valores-notícia
não apenas por acontecimentos de última hora, mas também por aqueles ocorridos
no mesmo dia em anos ou décadas anteriores, por exemplo, sendo esse aniversário
o próprio gancho, ou news pag, da notícia: são as efemérides (TRAQUINA, 2008,
p. 81). Jornais, rádios, programas de TVs e sites de notícia e informação costumam preparar reportagens especiais, antecipadamente, a partir do calendário de
efemérides do ano. Sem nos estendermos no debate acerca de critérios de noticiabilidade (ver, por exemplo, SILVA, 2005), cabe pontuar que acontecimentos marcantes fazem parte das pautas de veículos de comunicação, especialmente em datas redondas: 10, 50, 100 anos, e movimenta toda uma cadeia: livros, discos,
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shows são lançados ou relançados, personagens rememorados. Mais do que um
simples movimento de mercado, o retorno suscita questões sobre memória, nostalgia e construção de vínculos entre meios de comunicação e seus públicos.
O ano de 1968 foi repleto de acontecimentos marcantes, no Brasil e no
mundo – a ponto de tornar o ano, ele próprio, um acontecimento emblemático.
1968, o ano que não terminou, de Zuenir Ventura, bestseller nos anos 80, contribuiu para isso. Depois de relançamentos, o jornalista voltou com 1968, o que fizemos de nós (2008). Em 2018 ainda foram lançados 1968: eles só queriam mudar o mundo, de Regina Zappa e Ernesto Soto; e 1968: quando a Terra tremeu, de
Roberto Sander.
O fato de ser o cinquentenário tende a aumentar o destaque dado pela imprensa. Foram lembrados os assassinatos do estudante Edson Luís, no Rio, em
março, e do líder Martin Luther King, nos Estados Unidos, em abril, o movimento
de maio na França, a Passeata dos Cem Mil, em junho, e já se antecipam as referências à decretação do AI-5, em dezembro. A seguir, apresenta-se a cobertura
dos acontecimentos nacionais no Jornal do Brasil, em 2018, nos quais o próprio
jornal se torna um coprotagonista.
247
Edson Luís
Como registra Martins Filho (1987, p. 138), havia desde 1967 uma progressiva militarização da política do Estado para com o meio universitário, mesmo em
manifestações pontuais, não voltadas contra a governo, caso das reivindicações
por melhorias no restaurante universitário Calabouço, onde em janeiro de 1968 já
ocorrera uma pequena passeata reprimida a tiros. Dois meses depois, estudantes se
organizavam para novo protesto contra o preço da comida em frente ao Calabouço, quando uma tropa da PM os surpreendeu, atirando para dispersar o grupo.
Acuados, os estudantes entraram no restaurante, que foi então invadido pelos policiais militares, a tiros. O secundarista paraense Edson Luís de Lima Souto, de 18
anos, que estava dentro do Calabouço, foi baleado à queima-roupa e morreu. Os
jovens se mobilizaram para carregar seu corpo em passeata pelas ruas do Centro,
até a Assembleia Legislativa, onde foi velado. “Foi por pouco que os estudantes
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conseguiram manter o corpo do Edson Luís, porque se ele caísse na mão da polícia talvez não tivesse se tornado o símbolo que se tornou. Ninguém ia saber [...]
porque eles davam sumiço nos corpos”, escreveu o fotojornalista Evandro Teixeira (JB, 25/3/2018), cujos registros da repressão ao movimento estudantil em 1968
se tornaram referência. O ex-editor-chefe do JB Marcos Sá Correa deu o seguinte
depoimento no documentário Evandro Teixeira, instantâneos da realidade, de
Paulo Fontenelle:
Uma fotografia célebre e curiosa do movimento estudantil de 68 parece um grande
painel de muralista mexicano. Tem um momento de um país todo em cena. E, por
causa da perspectiva que Evandro faz, a cena fica verticalizada. O que você vê não
é uma cena de chão, é como se todas aquelas pessoas estivessem num painel vertical. É um retrato incrível do Brasil na época. Tem uma faixa que atravessa a foto
dizendo “o povo no poder”. E você olha e vê uma estudantada branca, de óculos,
que dizer, o povo não estava ali naquela praça. Certamente, havia centenas de fotógrafos lá, mas só o Evandro conseguiu ver uma explicação tão concisa para um fenômeno político tão complicado. Ele fotografou o movimento estudantil parado no
ar, e o que é espantoso, nessa foto, é que você vê uma cena de multidão, um instantâneo de multidão e uma multidão inteiramente arrumada. É uma foto jornalística,
feita com a câmera na mão, na correria, mas todas as caras daquela praça são retratos (SÁ CORRÊA, 2004).
No novo Jornal do Brasil, o selo “1968/Brasil” foi lançado em março de
2018, um mês após a volta às bancas, em reportagem de três páginas sobre o assassinato do estudante Edson Luís, em que “testemunhas e historiadores comentam o marco que ajudou a sensibilizar a classe média e precedeu um acirramento
248
da ditadura militar no país” (JB, 25/3/2018). A chamada é ilustrada por duas fotos
de acervo: um registro do velório feita por José Hamilton (28/3/1968) e um flagrante de Evandro Teixeira de 4 de abril, na missa de sétimo dia na Candelária,
que terminou com a cavalaria da Polícia Militar encurralando e golpeando quem
saía da igreja. A primeira página sugere comparações entre passado e presente,
criando paralelos com duas notícias do dia: a morte de oito jovens na saída de um
baile funk na Favela da Rocinha, e o movimento Marcha pelas Nossas Vidas, que
levou milhões de norte-americanos às ruas pedindo paz e maior controle na venda
de armas nos Estados Unidos.
Sobre Edson Luís, além de publicar fotos de acervo, o jornal deu grande
destaque a um depoimento encomendado sobre aquela cobertura jornalística a
Teixeira, que trabalhou no Jornal do Brasil de 1963 a 2010, e tem fortes vínculos
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com o veículo. Ele enaltece o papel dos jornalistas:
O que sei é que, entre 64 e 68, não havia visto nada tão violento como passei a ver
depois da morte do Edson. O clima do Rio era de guerra e terror. A gente trabalhava sob terror. Ninguém sabia se voltaria para a redação. Mas eu fotografava mesmo
assim. Eu gostava de fazer aquilo porque era contra a ditadura. E a maneira de ser
contra não era subindo em palanque, porque não era mais estudante, já tinha sido.
Eu era jornalista, e burlava a censura por prazer (TEIXEIRA, JB, 25/3/2018)75.
Sobre a postura do jornal, Teixeira reforça a ideia do enfrentamento à ditadura ao relatar a experiência de fotografar a missa de 7° dia do estudante, com
detalhes sobre a brutalidade policial vista naquele dia:
Nós fomos para a Candelária e eu me lembro bem: fiquei no alto de um prédio de
13 andares de frente para a igreja. Nós estávamos ali em cima vendo a cavalaria
chegar – eu e os outros fotógrafos e cinegrafistas. A PM chegou e começou a massacrar todo mundo que estava fora da igreja. [...] Eu vi o fotojornalista Alberto Jacob, do JB, ser totalmente arrebentado. Tomaram o equipamento dele, tudo. Quando a polícia se deu conta de que nós estávamos fotografando de lá de cima, começaram a atirar na nossa direção. Só que naquela época não havia bala de festim, era
bala de verdade. [...] Saímos para o edifício ao lado da sede da Revista Seleções.
Para mandar o filme para a redação, tive que colocá-lo num envelope dentro da
calcinha de uma repórter da revista. [...] Os jornais e seus funcionários não eram
poupados do massacre. Ainda mais o Jornal do Brasil, que era declaradamente
contra a ditadura e pagou caro por isso (TEIXEIRA, JB, 25/3/2018).
75 “Ditadura - Evandro Teixeira mostrou em imagens o período mais sombrio da história brasileira”. Em http://m.jb.com.br/1968-brasil/noticias/2018/03/25/ditadura-evandro-teixeira-mostrou-emimagens-o-periodo-mais-sombrio-da-historia-brasileira/. Acesso: 24/6/2018.
249
Há nuances, porém, entre a cobertura factual da morte de Edson Luís pelo
JB, e o seu posicionamento tanto em relação ao governo como ao movimento estudantil. No dia seguinte, sob o título “Assassinato leva estudantes à greve nacional”,
dizia:
A morte do estudante Edson Luís de Lima Souto, de 16 anos – baleado no peito, às
18h30 de ontem, durante um conflito da PM com estudantes no Restaurante Calabouço – provocou greve geral de várias faculdades no Rio e o movimento deverá
estender-se pelo país (JB, 29/3/1968).
A autoria do assassinato – a Polícia Militar – não é diretamente mencionada,
deslocando a ênfase ao movimento de estudantes. Como contraponto, o Correio
da Manhã do mesmo dia estampou a manchete “Polícia Militar mata estudante”, e
em editorial critica duramente a ação da polícia: “não agiu a Polícia Militar como
força pública. Agiu como bando de assassinos” (CORREIO, 29/3/1968, em
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CHAMMAS, 2012, p. 88).
Dois editoriais publicados de 3 de abril de 1968 – portanto já depois do assassinato de Edson Luís – criticam estudantes. “Não é com descaso que o problema
da educação será resolvido, nem será com violência e o tumulto que os estudantes
contribuirão para levar as autoridades a amadurecer uma nova consciência da necessidade urgente da reforma do ensino”, se lê em “Educação e Polícia”. E em
“Revolução e Comunicação” recrimina o “reaparecimento da desordem nas ruas”,
como em 1964, e clama por “ordem” e “restabelecimento da unidade” – o que acabaria por acontecer, com o AI-5. Gabeira lembra em O que é isso, companheiro?:
Para mim, era sempre uma sensação estranha fazer passeata diante do JB. O cortejo
se detinha ali, alguém fazia um discurso contra a imprensa burguesa em geral, e as
pessoas vaiavam aquele prédio cinzento, os redatores e contínuos que olhavam as
coisas acontecendo da sacada da redação. Era uma sensação estranha porque parecia que eu estava vaiando a mim próprio (GABEIRA, 1996, p. 79).
No livro de Gabeira, há várias referências à sacada do jornal, estrategicamente localizado na Avenida Rio Branco, de onde Gabeira pôde ver a história
recente do país se desenrolar.
A missa de sétimo dia pela morte do Edson Luís. Os cavalos tomando a Avenida
Rio Branco deserta e as pessoas coladas na parede, paralisadas de terror. Os cavalos avançando ao longo da avenida e os homens se curvando de vez em quando para espancar alguém [...]. Se a gente contasse a história de 68 com os olhos de um
contínuo que sempre esteve ali, na sacada do JB, tudo isso estaria gravado. E mais:
250
um caminhão de PMs desfilando pela avenida, todos em posição normal, nos seus
bancos; um deles está caído, ao lado do corpo, uma velha máquina de escrever Remington, atirada do alto de um dos prédios (GABEIRA, 1996, p. 80).
A invasão à sede do jornal ou a retirada do ar da Rádio Jornal do Brasil por
três dias, em retaliação à cobertura da missa em homenagem ao estudante Edson
Luís na Candelária76, mencionada por Evandro Teixeira em 2018, são aspectos
importantes a considerar na relação do jornal com o governo militar. De acordo
com Chamas, abril de 1968 foi o primeiro momento em que o JB, que apoiara o
golpe militar que derrubou Jango, em 1964, marcou com clareza as suas diferenças em relação aos militares. Essa distância voltaria a aparecer em junho, na Passeata dos Cem Mil, e em dezembro, com o AI-5. A crítica ao governo, ainda que
tímida, sutil e sujeita a variações, indica o início do tensionamento de uma relação
até então marcada pelo apoio constante do jornal à ditadura. Algumas explicações
possíveis, segundo o autor, seriam o fechamento temporário da rádio; a repressão
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violenta aos filhos da classe média nas manifestações estudantis de junho; e o
crescente descontentamento de setores da burguesia com a ditadura (CHAMMAS,
2012, p. 79).
Passeata dos Cem Mil
Junho de 1968 teve mais episódios protagonizados por estudantes, sendo o
mais importante a Passeata dos Cem Mil. Novamente o jornal recorre ao fotojornalista Evandro Teixeira, convidado a voltar à escadaria da Câmara Municipal, de
onde registrou o discurso de Wladimir Palmeira e a multidão, em fotos que se
tornaram emblemáticas, como “Abaixo a ditadura, o povo no poder”77.
O cinquentenário da Passeata dos Cem Mil mereceu grande chamada na
primeira página de 24/6/2018, mais uma vez recorrendo ao fotojornalista Evandro
Teixeira: “Olhar histórico. Ao lado, Evandro Teixeira diante de uma de suas imagens mais célebres: o registro da Passeata dos Cem Mil, em 26 de junho de 1968.
Censurada, a foto inspira até hoje aqueles que, como o JB, lutam pela democra76
Segundo o jornalista Eliakim Araujo, que trabalhava na Rádio JB, a fita chegou da rua com a
matéria do repórter e na edição o técnico encerrou com um “sobe som” do ambiente exatamente
quando os manifestantes gritavam “assassinos, assassinos”. Este simples rabicho de 2 a 3 segundos
no final da reportagem que chamamos de “sobe som” custou à JB-AM três dias fora do ar, por
ordem do governo militar (ARAUJO, 2010).
77
“Passeata dos Cem Mil: glorioso e pacífico momento histórico”. Em
https://www.youtube.com/watch?time_continue=2&v=Ax8LP6k4rTI. Acesso: 24 jun. 2018.
251
cia no Brasil” (JB, 24/6/2018, p. 1, grifo meu). Evandro também enfatiza a censura à foto:
Mas a pressão não vinha só de fora, vinha de dentro também com os censores. Para
publicar foto, a gente fazia duplicata. Por exemplo, você conhece aquela foto
“Abaixo a ditadura” do dia da Passeata dos Cem Mil? Era pra ter ido para a primeira página. Mas os censores perceberam a nossa euforia na volta da manifestação,
tomaram a foto e sumiram com tudo. Ela só foi preservada porque existia uma cópia arquivada. O que foi publicado foi, o que não foi, acabou destruído nas ruas,
tomado pelos militares, ou arquivado, e está aí até hoje (TEIXEIRA, JB,
25/3/2018).
A memória, porém, sabemos, pode ser traiçoeira. Para Andreas Huyssen,
“nem sempre é fácil traçar uma linha de separação entre passado mítico e passado
real”: “O real pode ser mitologizado tanto quanto o mítico pode engendrar fortes
efeitos de realidade” (HUYSSEN, 2000, p. 16). Na verdade, apenas com a decretação do Ato Institucional nº 5, em 14 de dezembro de 1968, seria praticada cen-
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sura prévia nas redações com militares ou prepostos fiscalizando as edições – o
que só seria propriamente “legalizado pelo Decreto nº 1.077, de março de 1970.
Só a partir de 1969, e até 1978, jornais, revistas, rádios e emissoras de TV receberiam ordens e recomendações, por telefone, proibindo ou desaconselhando a divulgação de fatos considerados desagradáveis aos olhos do regime militar. “Podemos afirmar que o modelo de caracterização negativa da luta armada foi definido pela própria mídia, porque antecede a instituição da censura”, defende o pesquisador João Baptista de Abreu (2000, p. 43), registrando que foi o Jornal do
Brasil que popularizou o uso das palavras “terrorista” e “terrorismo” para designar militantes de esquerda e suas ações.
Duas páginas inteiras desta edição dominical são dedicadas aos 50 anos da
Passeata dos Cem Mil. Em ensaio encomendado pelo jornal, o ex-líder estudantil
Jean Marc von der Veid analisa o significado das manifestações estudantis daquele ano, em ensaio com fotos de Evandro Teixeira. Nas páginas internas, o jornal se
referencia com a reprodução da primeira página da época, com foto da passeata
em destaque logo abaixo do cabeçalho.
O título para o depoimento de Evandro Teixeira é “Glorioso e pacífico momento histórico”, que remete ao próprio posicionamento do jornal à época – em
defesa das reivindicações estudantis, desde que encaminhadas na paz e da ordem.
252
Porém, o ataque a jovens no campus da UFRJ na Praia Vermelha, ocorrido às
vésperas da passeata, e que a motivou, foi anunciado no JB pela manchete “Exército em prontidão rigorosa e nova passeata é anunciada para hoje”, e um editorial
que afirma serem as pautas estudantis legítimas, mas as pautas políticas de interesse das “pretensas lideranças estudantis” que “pretendem estabelecer a anarquia,
como motivação inicial à implantação de um regime de exceção, contra o qual
poderiam posteriormente lançar-se com argumentos que preconizam válidos para
incitar as massas à luta armada” (JB, 21/6/1968).
A edição do AI-5
A edição de 14 de dezembro de 1968, dia seguinte à decretação do Ato Institucional nº 5 pelo governo militar, é um capítulo à parte na história do Jornal do
Brasil, influenciando os rumos da história a ser contada sobre o jornal. Ladeando
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o cabeçalho, acima da manchete que anunciava o AI-5 e o fechamento do Congresso por tempo ilimitado, o pequeno espaço dedicado à previsão do tempo, em
letras miúdas, escapou aos censores: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar
está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos”. Do outro lado, uma
chamada para efeméride, com duplo sentido: “Ontem foi Dia dos Cegos”.
Desde então, o jornal – que mudou tantas vezes de dono e orientação editorial – lança mão desta edição como se fosse um inequívoco e permanente alvará
de independência editorial. Não seria diferente no relançamento do veículo, que
deu grande ênfase à cobertura dos anos de chumbo no Brasil e no mundo, com a
reprodução das capas do AI-5 e da morte de Salvador Allende, no Chile, em 1973
– página marcante de resistência, pois o jornal, proibido de publicar títulos ou
fotos sobre a notícia, estampou texto ocupando praticamente toda a primeira página, em corpo 1478, o maior possível na época. A “coragem e inteligência contra a
censura” é assinalada no encarte de relançamento, que reproduz a capa do AI-5,
com o texto a seguir:
Nos momentos mais decisivos, quando a liberdade estava em risco, o JB não se
omitiu. As páginas de 1968 são uma aula do jornalismo corajoso e independente do
Jornal do Brasil. Até na edição do AI-5, o mais duro golpe nas liberdades demo78
Dines afirmou a Belisa Ribeiro que foi usado corpo 18: “vamos usar uma máquina Ludlow, uma
máquina tituleira, que o menor corpo que fazia era o 18. Vamos contar essa história na tituleira e
não na linotipo, para sair um corpo maior” (RIBEIRO, 2015, p. 47).
253
cráticas, o Jornal do Brasil soube usar da coragem e inteligência de seus repórteres, fotógrafos, editores e redatores para passar ao leitor o que a censura estava proibindo de ser divulgado. Sem se acovardar à censura o Jornal do Brasil decidiu
marcar seu protesto com a publicação improvisada de anúncios. Mas o JB foi além:
na previsão do tempo (à esquerda do cabeçalho), que driblou a vigilância dos coronéis censores que ocuparam a redação e a oficina, estava dado o recado (JB Encarte, 2018, p. 3).
Não há dúvidas quanto à ousadia dos jornalistas neste episódio. Convém
ressaltar, ao mesmo tempo: 1. redações não são grupos coesos; havia entre os jornalistas simpatizantes e mesmo militantes de oposição à ditadura, assim como
adesistas ou mesmo colaboradores (KUSHNIR, 2005); 2. páginas como a do JB
no AI-5 se tornaram icônicas justamente por sua excepcionalidade. Esta, assim
como a igualmente marcante edição sem título para a notícia da morte de Salvador
Allende, em 1973, foram possíveis graças a uma conjunção de fatores. Portanto,
não eram regra no JB. 3. Dentro do que se convencionou chamar de cultura da
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memória, todos os veículos de comunicação revisitam suas trajetórias. O JB sobreviveu para contar sua história por longo tempo, o que não ocorreu como o Correio da Manhã, depois sufocado. Mais do que qualquer outra bandeira, os veículos apresentam-se como cães da guarda da liberdade de imprensa, este sim um
valor maior, mais evidenciado do que a defesa da democracia nos discursos da
época, em reportagens ou editoriais. À medida que o tempo passa, toma-se a defesa da liberdade de imprensa por defesa da democracia.
A resistência à ditadura no passado, imagem que resistiu apesar do que a
consulta às páginas permite contestar, parece se desdobrar numa resistência à própria passagem do tempo e as transformações que acarreta. Trata-se de uma memória fragmentária e ficcional, como já apontou Rancière, ao dizer que nada é mais
ficcional que a memória, por si um trabalho de ficção. Se “a fidelidade ao passado
não é um dado, mas um voto”, como afirma Ricoeur (2007, p. 502), são as “memórias felizes”, mais do que a produção jornalística em si, que servem como avalistas desta volta às bancas.
Entre as pesquisas que se debruçaram sobre o trabalho jornalístico no período da ditadura militar, Abreu (2000), Kushnir (2005) e Chammas (2012), por
exemplo, são relevantes no esforço de observar silenciamentos – conscientes ou
não – na relação de jornais com os governos militares. Como eles, não se trata
254
aqui de apontar erros históricos nesta visão à posteriori da postura do Jornal do
Brasil durante o período ditatorial, compartilhada por ex-profissionais da casa e
incorporada pela nova gestão. A memória, embora frágil como fonte de informação factual, é ao mesmo tempo uma grande potência, e o intuito é observar seus
tensionamentos e reconfigurações ao longo do tempo.
Procuramos evidenciar que a romantização e equalização dos contrastes,
contradições do fazer jornalístico naquele ano, em reconstrução narrativa pressupõe uma coerência e em que se apagam as contradições das coberturas.
Uma das chaves de leitura que nos parece relevante neste trabalho de reconstrução de memórias e de reafirmação da história do Jornal do Brasil como
um jornal combativo está muito mais ligada a certo corporativismo do que a ideologias à esquerda ou à direita do espectro político: ao estudar os editoriais do JB e
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do Correio da Manhã entre 1964 e 1968, Chammas (2012) observa que “a censura aos meios de comunicação alimentou a autoconstrução do mito da resistência
da imprensa ao autoritarismo” (p. 78).
As edições de 14 de dezembro de 1968 (decretação do AI-5 no Brasil) e de
12 de setembro de 1973 (morte de Salvador Allende no golpe militar no Chile),
celebradas na edição centenária e no retorno em 2018, “são lembradas como monumento à resistência jornalística [...], alimentam até hoje o mito da resistência e a
fábula do jornalistas espertos contra autoridades ignorantes, sobretudo militares”,
como dizem Matheus e Barbosa (2008, p. 117), e silenciam sobre o apoio do JB
ao golpe e à ditadura num primeiro momento (RIBEIRO, 2007; ABREU, 2000;
CHAMMAS, 2012).
Para além do esforço de enxergar continuidades a partir de um passado e
uma de identidade glorificadas do jornal, e a despeito da equipe reduzida e da
falta de recursos, houve edições à altura do nome e da tradição do jornal, como a
série de reportagens “Agiotagem legalizada”, sobre os lucros dos bancos, e denúncias sobre as regras frouxas dos reajustes dos planos de saúde – em ambos os
casos, atendendo ao compromisso com os leitores. Mas faltou fôlego para alcançar alguma relevância no reconfigurado mercado jornalístico.
255
3.4. A derradeira morte
Entre as glórias do passado e a esperança no futuro há o presente. Entre a
memória e a utopia, a realidade. E a intenção expressa por Octavio Costa –“O Jornal do Brasil chegou para ficar” – teve vida curta. Em março de 2019, um ano após
a volta, o “novo” JB saiu de circulação. “Sabíamos que ia durar pouco, só não sabíamos que seria tão pouco”, lamentou a jornalista Celina Côrtes à autora. “Fizemos
uma aposta que não se concretizou. Achávamos que a marca JB seria capaz de reconquistar os leitores de banca, mas o retorno não foi o imaginado”, afirmou publicamente o vice-presidente Gilberto Menezes Côrtes (GLOBO, 2019). “Fomos românticos, ou ingênuos”, declarou a esta pesquisa em setembro de 2019. Foi a primeira vez que o termo “romântico”, tão associado ao JB, foi usado no sentido pejorativo.
Para Côrtes, o empresário Omar Peres, seu amigo, foi “burro” por não ter inPUC-Rio - Certificação Digital Nº 1713239/CA
vestido em marketing, confiando no boca-a-boca, à moda antiga. Também reconhece falhas de planejamento. A aposta inicial, na venda avulsa de 8 mil a 10 mil
exemplares diários, foi baseada na estimativa superestimada de 5 mil bancas de
jornais em atividade no Grande Rio. Descobriram só depois que são, na verdade,
2,5 mil. “Só metade das bancas é banca de jornal mesmo”. Nos primeiros 40 dias,
foram vendidos 250 mil exemplares, uma média de 6,25 mil por dia, que foi declinando. Lançaram as assinaturas, que, sem campanha de marketing, ficaram em torno de 1,8 mil, numa tiragem total que estagnou em 3 mil exemplares diários. Côrtes
culpa ainda o momento político, de extrema polarização: “Sofremos uma resistência
ideológica muito grande. O jornal foi tachado de petralha”. Mas a razão primeira foi
econômica. Com o arrendamento do JB, Omar Peres herdou também o passivo trabalhista da Gazeta Mercantil, mas não esperava que a cobrança judicial viria imediatamente. Veio. A empresa teve cerca de R$ 650 mil bloqueados pela Justiça para
pagamentos de dívidas trabalhistas. “De cara, pegaram todo o caixa do primeiro
mês de lançamento. Os bloqueios atropelaram”, conta Côrtes.
Diferentemente da primeira vez, não houve comunicado prévio sobre o encerramento da circulação. Com os sucessivos atrasos de salário desde 2018, a redação
entrou em estado de greve em 5 de fevereiro, passando a trabalhar em sistema de
rodízio. Os jornalistas de renome já tinham todos debandado. No dia 12 de março
foi feita uma paralisação geral de 24 horas, na tentativa de pressionar a empresa a
256
regularizar os atrasados. No dia 13 já não havia jornal. Côrtes explicou que, não
podendo segurar as pessoas sem horizonte para pagar, só restou encerrar. “Não tinha de onde tirar dinheiro. O jornal parou porque a redação parou. Vínhamos contando com o sacrifício e a colaboração da equipe, mas chegou a um ponto que não
dava mais nem para pedir isso”, resumiu Côrtes.
“Catito disse que não tem mais de onde tirar dinheiro. É um aventureiro, um
playboy mimado, que se meteu a ser empresário da comunicação e não tem competência nenhuma. Arrogante, mentiroso, megalomaníaco”, desabafou o designer
José Adilson Nunes79 à autora, no próprio dia 12. A jornalista Deborah Dumar80
declarou à autora no encontro da Taberna da Glória: “Catito emprega garçons.
Empregar jornalistas é diferente: são informados, fazem barulho. É gente que não
entende de jornal, de jornalismo, pôs o irmão como editor de fotografia... Já sabíamos, ele fez isso em Juiz de Fora, reformou um prédio e depois deixou os jorna-
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listas sem salário” (DUMAR, 2018). Catito comentou em seu perfil nas redes sociais (Anexo) que “o jornal impresso não tem mais a menor importância” porque
o “ser humano não quer mais se informar por jornais impressos”, tardia conclusão
do empresário.
A redação contava então com cerca de 40 jornalistas, dos quais 20 foram
demitidos. Sem salários e benefícios empregatícios em dia, os demitidos foram
orientados pelo Sindicato a procurar a Justiça para receber as rescisões e até três
meses de salários atrasados. Em outubro de 2019, ainda não haviam sido pagos
todos os salários atrasados e os encargos trabalhistas.
A redação do “novo JB” na Rio Branco foi desmontada. O jornal que teve sedes históricas funciona agora dentro de um dos restaurantes de Catito, na Praça
Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. Foi onde o vice-presidente, Gilberto Menezes
Côrtes, me recebeu para uma última entrevista, em agosto de 2019. “Os salários
continuam atrasados, mas pelo menos o pessoal tem almoço aqui”, disse Côrtes,
constrangido, sobre os seis funcionários que restaram para produzir o jornal on-line,
que voltou a veicular apenas notícias de agências. Sintomaticamente, o Jornal do
79
José Adilson Nunes foi diagramador e editor assistente de Arte no JB (1992 a 2010), criando
capas e títulos do Caderno B. Com “Malandragem, adeus”, sobre a morte de Moreira da Silva,
ganhou o Prêmio Esso de Criação Gráfica em 2000. Fez da primeira à última primeira página do
“novo” JB.
80
Repórter de Cidade e do Caderno B nos anos 1980, foi editora do Caderno B até março de 2019.
257
Brasil on-line não tem notícia própria, nem expediente81. O Jornal do Brasil, cadáver insepulto, ressuscitado ao oitavo ano, estaria, enfim, morto e enterrado? A julgar
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pela última primeira página, alternativa, criada pela equipe, o sonho não acabou.
Figura 20: Capa de despedida, não oficial. Equipe JB, mar 2019
81
São assinadas as colunas, todas pró-labore, “pelo espaço democrático para se manifestar”, segundo Côrtes. Coisas da Política, às terças, sábados e domingos, por Gilberto Menezes Côrtes,
com colaborações esporádicas de Wilson Cid; O outro lado da moeda, também de Côrtes; e as
semanais Entre realidade e ficção, do jornalista Álvaro Caldas; Tom Leão, do crítico musical;
Dicas do Aquiles, do músico Aquiles Diques Reis (MPB-4); Influência do Jazz, do colecionador e
empresário Thiago Goes; Música em Pauta, da compositora Mariana Camargo; Inovação JB, do
especialista Felipe Ribbe; Sociedade Digital, do professor de marketing André Micelli; Marketing,
Propaganda, Etc., da publicitária Renata Granchi; Saúde e Alimentação, do médico Wilson Rondó
Junior; Olhar pra dentro, do psicólogo Flavio Cordeiro; e JBicho e Cia., da jornalista Daniela
Calcia.
4. Considerações finais
O jornalismo reflete muito bem a aventura da modernidade.
Ele é a melhor síntese do espírito moderno. Por esse mesmo motivo,
o processo de desintegração da atividade, seu enfraquecimento,
sua substituição por processos menos engajados [...]
é um sintoma de mudança dos tempos e dos espíritos
Marcondes Filho (2000, p. 15)
Eu sofri para escrever essa tese. Sempre sofri para escrever histórias no jornalismo, e essa é a maior e mais importante história que escrevo. Investiguei casos
inéditos. Busquei o melhor ângulo, o enquadramento mais original, como num
exame de grau, para escolher a melhor lente. O JB como um lugar de memória
(NORA, 1993) ou como monumento (LE GOFF, 1984)? Como paradigma
(AGAMBEN, 2019) ou como sobrevivência (DIDI-HUBERMAN, 2013)? Bus-
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quei selecionar as fontes mais diversas – as “oficiais”, do campo da história sobre
jornalismo, das teorias e dos estudos do jornalismo, das identidades profissionais,
dos “documentos”. Recorri à ancestralidade dos copidesques na edição, consciente de que sou personagem do enredo, que é também minha própria história.
E me dediquei à pesquisa e à escrita profundamente afetada pelo jornalismo
do presente, que em vários momentos me calou, me entristeceu, me indignou –
como nas coberturas das eleições municipais, estaduais e presidenciais, do golpe
que levou à queda da presidente Dilma Rousseff, do assassinato da vereadora Marielle Franco, da Operação Lava-Jato, da condenação do ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, da ameaça de um deputado-filho de presidente de reeditar o AI-5 –
início de capítulo tenebroso da história brasileira, anunciado na histórica primeira
página do JB há 50 anos. E eu, editando a versão final da tese, leio que o presidente manda cancelar todas as assinaturas da Folha de S.Paulo em órgãos federais, e
que ameaça não renovar a concessão da Rede Globo em represália à revelação de
que seu nome está no inquérito do caso Marielle. Sofro.
Lembro também – lembrar é um verbo recorrente nesta tese – que, desde
que decidi me dedicar a pesquisar o Jornal do Brasil, em 2014, fatos e acontecimentos trouxeram novos horizontes à pesquisa.
259
À medida que avançava, tive notícia de lançamentos de novos livros e do
próprio relançamento do jornal, que pude acompanhar desde os primeiros momentos até a confirmação do fracasso da empreitada.
Longe de ser um fenômeno isolado, parece se tratar de um sintoma da vigência de novos paradigmas. Aguiar & Barsotti (2016) discutem como o jornalismo, que se desenvolveu entre o polo ideológico e o polo econômico, é atravessado
pela crise do pensamento moderno, e enfrenta novos dilemas. O esvaziamento do
espaço público, o individualismo, as comunidades e a intensificação do presente
podem estar atingindo o polo que relacionava a atividade ao debate público. Se na
era pré-capitalista os primeiros jornais serviram como porta-vozes do Estado moderno, com os jornais ajudando a construir o conceito de público como conhecemos, passa-se paulatinamente de um sentido de Nação a um movimento de indivi-
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dualização.
Os jornalistas que escrevem sobre o jornalismo e o JB, assim como os que
se envolveram no relançamento do jornal e os que responderam à enquete para
esta pesquisa, esforçam-se em reafirmar a relevância dessa antiga noção de “público” para o jornalismo. Um jornalismo de outros tempos, datado, especificamente da segunda metade do século XX, quando o JB ajudou a consolidar um modelo
de jornalismo e quando a profissão paradoxalmente fez prevalecer no imaginário
da sociedade seu papel como guardião da democracia, por mais que se profissionalizasse em bases comerciais (AGUIAR & BARSOTTI, 2016, p. 197). Tal ideia
de jornalismo – que tenta ressurgir em outros campos, como o literário e o acadêmico, muitas vezes defendida por esses mesmos sujeitos sociais – é posta em xeque num processo contínuo de esvaziamento do modelo de negócio das empresas
jornalísticas e do próprio sentido social do jornalismo frente às transformações
estruturais por que vem passando.
Para Marcondes Filho (2000), a descaracterização ou decadência da atividade jornalística está ligada à crise da cultura ocidental, que teria como pano de fundo o fim da modernidade e fenômenos decorrentes: um processo universal de desencanto, a crise das grandes narrativas e dos sistemas gerais de explicação, a falência dos processos teleológicos (a esperança de um futuro melhor, o engajamento político ancorado a um projeto histórico).
260
A canalização de energias, o sentimento solidário entre os correligionários, a condição psicológica de “fazer parte de uma força” preenchiam a vivência em sociedade com enorme vitalidade, espírito de luta, empenho. Não havendo mais bandeiras
por que lutar, não existindo mais “destino feliz da humanidade” [...] sob o manto
do neoliberalismo, a civilização torna-se uma totalidade sem amanhã. Só existe um
arrastar-se para frente, um empurrar com a barriga, uma ação sem convicção nem
vontade, um “desejo do nada” (MARCONDES FILHO, 2000, p. 27).
Marcondes fala do jornalismo como síntese do espírito moderno, como expressão física de um espírito. “Espírito” e “alma” também foram termos com os
quais muito me deparei nessa pesquisa. Na sua primeira crônica no Jornal do Brasil, o poeta Carlos Drummond de Andrade fala do fim da Panair do Brasil, que
hoje poderia ser lida como se retratasse o JB, ou o próprio jornalismo, como fantasmas de um navio naufragado:
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É um velho barco desmoralizado, mas como viajou! Se tardar um pouco o leilão,
ele se reduzirá a sucata. Vai afundando... mas tudo que foi susto ou alegria de navegação vem à tona, e a sala se enche de gíria da marujada, cabeludas histórias de
bordo, ventos, tempestades, tatuagens, o diabo solto no mar (B, 1/10/1969).
Experiência é a palavra-chave tanto na antiga crônica como nas narrativas
aqui reunidas, pela “força de um mito construído e transmitido por meio de palavras e práticas até sua irreversível degradação” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.
31). Mitos emergem quando atos extraordinários, efêmeros, da ordem do humano
e do perene, se tornam imortais, duráveis. A noção de permanência por atos memoráveis influencia indivíduos, grupos, sociedades. Um acontecimento, por sua
vez, só transcende ao se tornar narrativa, engendrando um paradoxo entre permanência e fugacidade.
As grandes narrativas enfrentam questionamentos sem precedentes. A ambição de narrar os fatos do mundo e construir o que quer que seja o real talvez
tenha que dar lugar a narrativas mais contidas. Na transição para um jornalismo
pós-industrial, em que jornalistas se tornam grifes e veículos tradicionais perdem
espaço, o discurso nostálgico se torna um último refúgio para muitos veteranos,
movidos por memórias de um passado romântico, mas constitui-se numa armadilha para uma atividade que precisa narrar o cotidiano com perspectivas cada vez
mais plurais, diversas, aproximando-se das demandas locais, de nichos específicos. Isso sem perder de vista os aspectos macro dos processos sociais, políticos,
econômicos e culturais.
261
O discurso memorialístico e autorreferente sobre o JB estabelece uma relação ambígua e contraditória com a temporalidade. No momento das reformas dos
anos 1950/60, reforçou as rupturas em relação ao passado e silenciou sobre as
muitas continuidades. À medida que se afasta no tempo, há um esforço discursivo,
num trabalho de reenquadramento da memória, para valorizar as continuidades e
silenciar as muitas rupturas pelas quais o jornal e o jornalismo passaram. Prevalece, à primeira vista, um discurso de forte espírito inovador, revolucionário. Um
jornal paradigmático, reverenciado pela comunidade interpretativa dos jornalistas,
que assume o compromisso de defender valores e tradições, ao preservar e contar
sua história. Mas essa narrativa exige permanente reiteração para prosperar. Com
o colapso das grandes narrativas da atualidade, não apenas os jornais, mas a própria atividade jornalística de caráter industrial, típica do século XX, vê sua História e suas histórias esfumarem-se.
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Reativando a mítica em torno do título, interna e externamente, contam a
história do jornalismo ancorados numa memória comandada pela expectativa de
futuro que caminhou da utopia para a nostalgia (BOYM, 2017, p. 153). É neste
contexto que um grupo de jornalistas usa o passado como um valor em perspectivas distintas. Se a comunidade jotabeniana rememora em encontros e busca imortalizar em livros a experiência vivida, a retomada do Jornal do Brasil em 2018
para recuperar seu espaço perdido nas bancas – elas mesmas irreconhecíveis, vendendo cada vez mais balas e bebidas do que jornais e revistas – explicitamente
pregava uma ação de reviver o passado, ou o que lembram dele. Vemos a busca
pelo passado para legitimar ações do presente. O valor de passado parece mudar
devido ao valor de futuro que temos hoje. A “fórmula original” do JB mencionada
por Marcos Sá Corrêa, aquele brilho, seria talvez não (apenas) a do jornal, o “moço de 74 anos”, mas a dos moços de carne e osso que por lá cresceram. Assim,
para os sobreviventes, não basta recorrer às coleções. É preciso lembrá-las, valorizá-las, reconhecê-las. Porque as testemunhas terão morrido, sem mais o direito ao
testemunho.
Sabemos que o jornalismo é uma ação realizada no presente que atua como
um marcador temporal do contemporâneo: demarca os dias, diz (ou se esforça em
dizer) o que é passado e mostra o que se espera do futuro (BARBOSA, 2013). O
262
jornalismo pode dizer o que é passado e indicar também como “devemos sonhar o
futuro”: é ator da história, porta-voz de certos ideais da tradição e progresso
(MATHEUS, 2011). Com a expansão da cultura da mídia e a ascensão das tecnologias de comunicação não apenas como referenciadoras do real, mas como uma
configuração própria do real (SODRÉ, 2006), os meios de comunicação se firmam como autoridade reconhecida socialmente (apesar de não ser a única instância social a fazê-lo) para dizer também o que é história – ou histórico. O jornalismo usa o passado como forma de consolidar sua identidade no presente. Porque o
presente só ganha sentido na medida em que é acrescido de significados.
O que se diferencia aqui é justamente a intenção aberta de trabalhar com o
passado e transformá-lo em valor no presente. Dessa forma, busquei pensar se as
ideias de passado e futuro acionadas no novo JB se assemelham ou não àquelas
em voga em sua era de ouro, a que tanto se referem jornalistas que lá trabalharam.
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Dentro desse apego nostálgico às ruínas, a partir do presente, que ideias de futuro
também estariam em jogo? Ao mesmo tempo em que se confrontam com a inexorabilidade do fim, apelam para um dos princípios do jornalismo, que, nas palavras
de Dines,
[...] está impregnado do espírito sequencial, de passagem, de prolongamento e
continuidade. Nosso ofício, que começa e se esgota a cada fluxo, a cada novo dia, é
o exercício da permanência, da duração. Por melhor ou pior que tenha sido a edição
anterior, o que vale é a seguinte. E depois dela, a outra. É um nunca acabar, ou
eterno renascer (DINES, JB, 2018, p. 2, grifos meus).
Passado, presente e futuro se unem assim num momento de “brecha na ordem do tempo” (HARTOG, 2014). O que parece mudar em sincronia com
a ordem do tempo é a maneira como se dá o agenciamento do passado (e também
do futuro, além de uma percepção particular do presente). Barbosa (2013) indica
que os meios de comunicação no século XX reconfiguraram duas tipologias de
temporalidade: a do presente “transformado em instante e nomeado tempo real” e
a do “passado como acontecimento presente”, durante a celebração de efemérides.
Entendendo a comunicação como um processo que ocorre em diálogo com seu
tempo, percebemos que os meios que se utilizam da narrativa para transmitir mensagens ao público de massa também exprimem sua experiência do contemporâneo. Estão carregados, imersos em sua historicidade.
263
Paulo Arantes dirá em seu ensaio O novo tempo do mundo que vivemos em
um tempo que não consegue se projetar para além de si próprio: “foi-se o horizonte do não experimentado”, querendo dizer que o regime temporal vigente não dá
bases para que nossas ações se orientem a partir de possíveis transformações da
experiência atual: “O próprio campo de ação vai se encolhendo, e isso porque já
dispomos no presente de uma parte do futuro” (ARANTES, 2014, p. 96).
É também à experiência que Didi-Huberman (2013) recorre para desenvolver seu pensamento sobre a sobrevivência (a partir de Benjamin e Agamben) nas
intermitências, a que deu forma com a imagem de vagalumes. As sobrevivências
vão anacronizar a história, o presente e o futuro, diz em A imagem sobrevivente.
Como a arte antiga, descrita por Winckelmann como “um objeto dos nossos anseios do qual só possuímos a sombra”, a distância e o fim de um tempo fazem
com que “se contemplem suas cópias com mais atenção do que faríamos com os
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originais”, se ainda os tivéssemos. As imagens formam, ao lado das palavras, um
tesouro ou uma tumba da memória, que na visão do filósofo estão sob risco:
“Cada memória está sempre ameaçada pelo esquecimento, cada tesouro ameaçado pela pilhagem, cada tumba ameaçada pela profanação”. A ideia da pilhagem,
tão nostálgica, remete à observação de Walter Benjamin quanto ao apagamento
de vestígios do passado em detrimento do novo, ainda na virada para o século
XX (BENJAMIN, [1933] 1994, p. 118).
Tais vestígios, porém, não podem ser confundidos com os próprios feitos e
gestos do mundo de que restaram. Assim como os arquivos de que dispomos são
eles próprios também coleções sujeitas aos caprichos de seus autores, sejam eles
pessoas ou instituições, empresas ou governos (e mesmo pesquisadores). Nesta
montagem, as edições da memória constroem versões da história numa interminável sequência de homogeneizações e silenciamentos. A lacuna é própria do
arquivo, sua parte constituinte, tanto quanto o esquecimento é próprio da memória. “Tentar fazer uma arqueologia sempre é arriscar-se a pôr, uns junto a outros,
traços de coisas sobreviventes, necessariamente heterogêneas e anacrônicas, posto que vêm de lugares separados e de tempos desunidos por lacunas” (DIDIHUBERMAN, 2013, p. 212).
264
A imagem, portanto, “é uma impressão, um rastro, um traço visual do tempo
que quis tocar, mas também de outros tempos suplementares – fatalmente anacrônicos, heterogêneos entre eles – que, como arte da memória, não pode aglutinar. É
cinza mesclada de vários braseiros, mais ou menos ardentes”.
Novas gerações de jornalistas talvez já não comprem os atributos que os
grandes veículos, como o JB, tentam (ou tentavam) mobilizar. Muito menos suas
audiências. Que atributos esse novo momento do jornalismo vai valorizar em termos discursivos? Um olhar sobre as narrativas do passado, mesmo que míticas,
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pode dar pistas sobre os caminhos a serem percorridos.
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IMAGE VISIONS, de Fernando Rabello <https://imagesvisions.blogspot.com>
Blog do Guina https://vidalida.wordpress.com>
TRIBUTO AO JB <https://tributoaojb.wordpress.com>
Depoimentos à autora
ANDRADE, Moacyr. 18/5/2019, Taberna da Glória, Rio de Janeiro.
CAMPELO, Joaquim. 18/5/2019, Taberna da Glória, Rio de Janeiro.
CÔRTES, Celina. 8/2/2018, redação do Jornal do Brasil.
CÔRTES, Gilberto Menezes, 8/2/2018 e 26/9/2019, redação do Jornal do Brasil.
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COSTA, Octavio. 8/2/2018, redação do Jornal do Brasil.
DUMAR, Deborah. 18/5/2019, Taberna da Glória, Rio de Janeiro.
HERKENHOFF, Alfredo. 27/8/2019, por telefone, Rio de Janeiro.
LEONAM, Carlos. 18/5/2019, Taberna da Glória, Rio de Janeiro.
MARQUES, Mario. 1/3/2016, por e-mail.
MOTTA, Cezar. 6/8/2019, por telefone, Brasília.
NASCIMENTO, Toninho. 8/2/2018, redação do Jornal do Brasil.
PAIVA, Anabela. 14/1/2016, por e-mail.
PERFEITO, Vera. 4/9/2019, por e-mail.
RIBEIRO, Belisa. 27/8/2019, entrevista por telefone, Rio de Janeiro.
ROUCHOU, Joëlle. 31/7/2019, na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro.
VIEIRA, Gustavo. 15/1/2016, por e-mail.
ZAPPA, Regina, na livraria Argumento, Rio de Janeiro.
Apêndices
1. Grupos, comunidades virtuais, sites e blogs ligados ao JB
Grupo
JB Quem Foi e
Quem Gostava
Descrição
Grupo de pessoas que gostaram do Jornal do Brasil ou nele trabalharam; espaço para recordações e reflexões emotivas e críticas envolvendo o JB e a imprensa no Rio de Janeiro, ontem, hoje e amanhã.
Jotabenianos
Nós do JB
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Jornal do Brasil
no Modo Hard
Livros e Autores
no Mundo do
JB
JB Memória
Falando
do B
JBlog
Tributo
ao JB
Lá no JB
Membros
893
Criação
Grupo
fechado no
Facebook
Grupo no
Facebook
25/11/2010,
por Alfredo
Herkenhoff
12/1/2012
486
Grupo no
Facebook
181
Grupo
secreto no
Facebook
3/9/2011,
por Regina
Célia Guimarães
18/11/2013
179
Grupo
público no
Facebook
Em
28/5/2015,
por Alfredo
Herkenhoff
Site
Em
27/1/2014,
por Belisa
Ribeiro
Blog
Alunos da
Facha
Blog
Jornal do
Brasil
Alunos Uerj
Set. 2010
Alunos
Facha 2010
354
–
Amigos, que tal procurarmos pelos outros colegas? Perguntando aqui
e ali, sempre aparece mais um!!!
Vamos botar a memória pra funcionar? E dizendo onde trabalhávamos
e o que fazíamos, também nos faremos lembrados!
Chega de comunidades sobre o Jornal do Brasil romântico dos tempos
de outrora, com 100 repórteres no Cidade, sucursais pelo Brasil todo,
mais de 50 carros e motoristas, mais de 40 fotógrafos, Condessa
Pereira Carneiro e o cacete a quatro. Chegou a COMUNIDADE JB NO
MODO HARD, destinada a relembrar aqui os Tanure Years, com fotos
e bons textos sobre aqueles anos incríveis. Só pode quem tiver participado do JB no período entre o protesto do iogurte e a sede do Rio
Comprido! Vamos lembrar o JB no qual para se conseguir um carro
era necessário pedir com 72 horas de antecedência.
Grupo criado em 28 de maio de 2015 para abrigar informações sobre
livros de autores envolvidos de algum modo com a História do Jornal
do Brasil, sejam livros de jornalistas da chamada Família JB, sejam
livros de autores que mesmo distantes da redação do matutino abordam o JB, não importando o tema, mas apenas de algum modo livros
envolvendo nomes que viveram dentro do JB ou à sua órbita. Ensaio,
ficção, poesia, memorialismo. Vamos oferecer aqui o melhor dos nossos estoques e das nossas perspectivas. O assunto é livro, Jornal do
Brasil é mero pretexto para se ter um foco, talvez uma consolidação do
que somos nós enquanto um conjunto, uma quadra ou faceta da própria História do Brasil. Autores Jotabenianos! Uni-vos! A cada ano são
lançados uns cinco ou dez livros de pessoas que se encaixam na
descrição acima. A ideia é botar aqui velhos e novos lançamentos,
além de sonhos ainda na esfera da germinação.
O objetivo deste site é ser um espaço aberto à memória de todos que
fizeram do Jornal do Brasil uma verdadeira lenda do jornalismo brasileiro. Aqui, repórteres, fotógrafos, diagramadores, chargistas, todos
que contribuíram para a História do JB poderão enviar antigas matérias, fotos, charges e, principalmente, relatos de momentos marcantes
vividos no exercício da profissão.
O blog “Falando do B” tem como objetivo resgatar a história de um
grande sucesso do Jornal do Brasil, o Caderno B. Os alunos da Facha
(Méier) desejam mostrar o início desse suplemento, a sua fase áurea,
os grandes escritores e jornalistas que trabalharam no caderno e o
quanto ele foi importante, visto que inaugurou uma área cultural até
então inexplorada pelo jornalismo brasileiro. Os cadernos culturais se
transformaram em objeto de desejo da maioria dos jornais depois de
sua criação. O Caderno B foi o pioneiro e até hoje nós podemos curtir
esse trabalho diariamente no JB.
Versão anterior voltada ao passado. Atual com colunistas
Status
Produzido por estudantes de jornalismo da Uerj
Blog
Blog sobre o Jornal do Brasil criado por alunos da Facha
Blog
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2. Quem fala? Jornalistas-fontes dos livros
JORNALISTAS-FONTES*
AGUINALDO RAMOS, GUINA, fotógrafo
ALBERTO JACOB, fotógrafo
AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA
ALBERTO DINES
ALFREDO RIBEIRO (TUTTY VASQUES)
ANA ARRUDA CALLADO
ARMANDO OURIQUE
ARMANDO STROZEMBERG
ARTHUR AYMORÉ
BEATRIZ BONFIM
BRUNO CASOTTI
BRUNO THYS
CARLOS CHAGAS
CARLOS EDUARDO NOVAES
CARLOS LEMOS
CHICO CARUSO, chargista
CLÁUDIA NINA
CLÁUDIA SAFATLE
CLECY RIBEIRO
CLEUSA MARIA
CORA RÓNAI
CORIOLANO GATTO
CRISTIANE COSTA
CRISTINA CALMON
CRISTINA CHACEL
CRISTINA LEMOS
DÁCIO MALTA
DANUZA LEÃO
DEBORAH DUMAR
DORRIT HARAZIM
EDILSON MARTINS
ELIANE CANTANHÊDE
ELIO GASPARI
EMÍLIA SILVEIRA
ESDRAS PEREIRA, fotógrafo
ETEVALDO DIAS
EVANDRO TEIXEIRA
FÁBIO LAU
FÁBIO VARSANO
FERNANDA PEDROSA
FERREIRA GULLAR
FLÁVIO PINHEIRO
FRITZ UTZERI
GILBERTO MENEZES CÔRTES
HAROLDO HOLLANDA
HENRIQUE CABAN
IESA RODRIGUES
IQUE
IVANIR YASBECK
JAMARI FRANÇA
JANIO DE FREITAS
JEAN THEOPHILO
JOÃO BAPTISTA DE ABREU
JOÃO LUIZ FARIAS NETO
JOAQUIM CAMPELO
JOËLLE ROUCHOU
JORGE ANTONIO BARROS
JOSÉ CARLOS AVELLAR
ALFREDO
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BELISA
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JOSÉ CARLOS DE ASSIS
JOSÉ GONÇALVES FONTES
JOSÉ RAMOS TINHORÃO
JOSÉ SÉRGIO ROCHA
JOSÉ SILVEIRA secretário de redação
LEA MARIA AARÃO REIS
LUÍS CARLOS MELLO
LUIZ MÁRIO GAZZANEO
LUIZ MORIER
LUIZ ORLANDO CARNEIRO
MAIR PENA NETO
MALU FERNANDES
MANUEL BORGES NETO
MARCELO KISCHINHEVSKY
MARCEU VIEIRA
MARCIO MARÁ
MARCOS DE CASTRO
MARCUS VERAS
MARIA INÊS DUQUE ESTRADA
MARINA COLASANTI
MAURO SANTAYANA
NELSON HOINEFF
NILO DANTE
NOENIO SPINOLA
NORMA CURI
OLDEMÁRIO TOUGUINHÓ
OSWALDO MANESCHY
PAULO CÉSAR VASCONCELLOS
PAULO MUSSOI
PAULO HENRIQUE AMORIM
RICARDO BOECHAT
RICARDO KOTSCHO
ROBERTO DUFRAYER
ROBERTO POMPEU DE TOLEDO
ROBERTO QUINTAES
ROMILDO GUERRANTE
ROSENTAL CALMON ALVES
RUTH DE AQUINO
SEBASTIÃO MARTINS
SÉRGIO FLEURY
SILVIO ESSINGER
TANIA MALHEIROS
TARCÍSIO BALTAR
TARCÍSIO HOLLANDA
TERESA CARDOSO
THAÍS DE MENDONÇA
VERA PERFEITO BERRÊDO
VICENTE SENNA
VIRGÍNIA CAVALCANTI
WALTER FONTOURA
WILSON FIGUEIREDO
XICO VARGAS
ZUENIR VENTURA
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* Jornalistas entrevistados por pelo menos um dos três autores analisados.
** Foram creditados por Cezar Motta nos agradecimentos: Deborah Lannes, Eduardo Hollanda, Mari e Mauro Ventura, Maurício Menezes e Paula Máiran.
Anexos
1. A vítima salubérrima. Nelson Rodrigues, 1968
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Daqui a duzentos anos, os historiadores dirão do nosso tempo: — “A época do
Jornal do Brasil”. Pois o velho órgão, acima de qualquer dúvida ou sofisma, é
um momento da vida brasileira. Assim como houve a época do fraque, outra
do espartilho, uma terceira do charleston, há a do Jornal do Brasil. No futuro,
quando as gerações sapatearem em cima das nossas cinzas, bastará recorrer às
suas coleções. E os curiosos saberão como nós sorríamos e vestíamos, e calçávamos, e amávamos etc. etc. Eis o que eu queria sublinhar: há coisas que só o
Jornal do Brasil diz, faz, afirma ou insinua. Por exemplo, a sua primeira página de ontem, aliás anteontem. Os colecionadores deviam guardá-la, amorosamente. Sim, ela há de valer, no futuro, tanto quanto um Rembrandt, um Goya,
um Van Gogh ou um Gauguin.
Mas disse eu, mais acima, que há coisas que só o Jornal do Brasil faz, só o
Jornal do Brasil ousa. E aqui abro um parêntese para falar de um dos muitos
prodígios do grande órgão. Eis o caso: tempos atrás, houve um jogo de futebol. Era um desses clássicos que param uma população. A cidade deixou de
matar, de morrer, de roubar, de assaltar. As nossas Kareninas, as nossas Bovarys, dataram o adultério para depois do jogo.
E houve o clássico. Uma multidão inédita. Quando se anunciou a renda, a
massa tremeu como se aquele dinheiro viesse para o bolso de cada um. Por um
motivo que não me lembro, fui eu o único brasileiro, vivo ou morto, que não
compareceu ao Estádio Mário Filho. No dia seguinte corro ao Jornal do Brasil. A primeira página abria um espaço generosíssimo para a batalha. Li os títulos, os subtítulos, as legendas e o resto.
Assim como a expedição do Jornal do Brasil tem uma frota de caminhões, sua
redação tem outra frota de estilistas. Há sempre um Flaubert que redige ou faz
o copydesk de sua primeira página. Imaginemos um atropelamento de cachorro. Pois um Proust o descreveria. Ou por outra: a hipótese mencionada é a única que não cabe no Jornal do Brasil. Por ordem do dr. Brito, acabou a seção de
polícia. Nas suas páginas, nem homem, nem cachorro são atropelados.
A crônica sobre o clássico era uma obra-prima. Tinha tudo, menos o resultado
do jogo. Vejam bem: menos o resultado. Não se fazia a mais vaga, tênue, remota, longínqua menção à vitória, derrota ou empate. Simplesmente, ninguém
empatara, ganhara ou perdera. O meu despeito, a minha frustração, a minha
impotência assumiram proporções homicidas. Reli mais uma vez e nada. Deflagrou-se em mim todo um processo de angústia. E, até hoje, o Jornal do
Brasil guarda o escore para si, em suas profundezas. Jamais o dirá, nem à própria mãe. Mas há pior, e, repito, há pior. Um clássico tem um interesse frívolo,
transitório, secundário. Mas o que aconteceu anteontem envolve, compromete
valores eternos.
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Como vocês sabem, o papa falou. Mesmo um ateu nato e hereditário, mesmo
um anti-Cristo profissional há de reconhecer o óbvio, ou seja: a importância
de Sua Santidade. De mais a mais, era um pronunciamento dramático, ligado
ao destino da Igreja. A Fé treme, a Fé entra em pânico. E que faz o Jornal do
Brasil? Sua manchete limpa o próprio pigarro, alça a fronte e anuncia, patética: sublegenda chega ao Senado e provoca a divisão da Arena. Eis que, para
horror nosso, a divisão da arena torna-se mais transcendente do que a divisão
da Igreja. No momento em que d. Hélder propõe a missa cômica, isto é, a missa ao som de cuícas, tamborins, reco-reco e pandeiro, vem o papa e diz que
Deus não está morto. E qual é a atitude do Jornal do Brasil? Do mesmo modo
que esconde o resultado do jogo, enterra a palavra do Vigário de Cristo. Não
há o papa na sua primeira página, mas há d. Hélder. Pasmem. O santo padre,
que sempre foi notícia, foi manchete, foi primeira página, deixou de sê-lo. E d.
Hélder lá está, flamejante. Sim, instalou-se na primeira página do velho órgão
e em todas. Mas as outras abrem espaço para o papa e d. Hélder. O Jornal do
Brasil, não. Parece que, em nossos dias, d. Hélder, só d. Hélder vende jornal.
Parece, não. Vende. Aliás, o arcebispo chega a ser um caso inédito na história
do homem. Como se sabe, todos os assassinatos exigem duas figuras obrigatórias: de um lado, a vítima; de outro lado, o criminoso. Segundo se presume,
não há crime sem uma vítima, não há um assassinato sem assassino. Mas d.
Hélder é uma experiência inédita para todos nós. Para uma plateia romana, ele
descreveu o próprio assassinato. Portanto, aí está a vítima. Falta, porém, a figura indispensável, insubstituível, do matador. E, assim, d. Hélder vai passar o
resto da vida. A vítima já existe, e salubérrima. Nós podemos apalpá-la, farejá-la; podemos pedir-lhe, até, dinheiro emprestado. Mas eis que vem Gilberto
Freyre e, com exata e risonha objetividade, nega o tal assassinato mesmo como hipótese. O sociólogo chega a insinuar, inclusive, uma outra possibilidade
mais verossímil e humilhante. Como d. Hélder anda muito a pé e como o tráfego brasileiro é uma bagunça, pode o arcebispo ser atropelado. Atropelado.
Numa das minhas peças, Viúva, porém honesta, um crítico teatral é atropelado
por uma carrocinha de Chicabon. Imaginem: Kennedy leva um tiro no queixo,
Luther King outro no peito, Guevara uma rajada de metralhadora. E d. Hélder
atropelado pela carrocinha amarela.
Volto ao Jornal do Brasil. Sou um obstinado. O Santo padre não merecera a
sua primeira página. Mas eu imaginei que, na pior das hipóteses, o velho órgão concedesse ao papa uma meia dúzia de linhas numa página de dentro. E
fui procurar. Ah, o Jornal do Brasil tem a extensão territorial deste país. Li tudo. Primeiro caderno, segundo. E fiz mais – li os anúncios classificados.
Quem sabe se, por um desses equívocos fatais de paginação, a notícia do papa
não estaria no meio das lavadeiras, cozinheiras, copeiras? Ainda concedi ao
dr. Brito este crédito de confiança. Se o grande jornalista abrisse, nos classificados, um mínimo de espaço para o Vigário de Cristo, eu louvaria a concessão
de sua fé à Igreja. Nem isso. Nem uma vírgula.
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2. Sempre JB, por Alberto Dines
Jornal do Brasil, 25/2/2018, p. 2
Café, jornal, cigarro. Cigarro, não mais, mas jornal sempre foi fundamental.
O Jornal do Brasil ia além, era vício. Bibliotecas eram paraísos para Jorge Luís
Borges; o JB era alimento para os cariocas e leitores de outros estados que corriam de banca em banca atrás de um exemplar.
Correio da Manhã, revistas Senhor e Realidade, O Pasquim e tantos tabloides de literatura atormentaram os nostálgicos, mas não voltaram.
O JB voltou. Para fazer barulho bom e peso na leveza das redes. Pedra firme
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em água fluida. Um adversário temido volta às bancas.
Caixa de ressonância, guia seguro, imprensa séria, comprometida, consistente, inovadora, tudo combina com o JB. Repórter bom que briga com a matéria
e com o editor. O redator que acredita: a matéria mais importante do jornal é a
dele, ou a dela – como uma vez eu disse para a então estreante colunista Clarice
Lispector.
Os livros não interessavam aos tablets, e os apressados preconizavam: vão
acabar. Não acabaram. As vendas de livros até aumentaram 6% no ano passado,
no Brasil. E se as vendas dos jornais caem, há sempre um Warren Buffett que
acredita e compra, compra, compra jornais.
O jornalismo está impregnado do espírito sequencial, de passagem, de prolongamento e continuidade. Nosso ofício, que começa e se esgota a cada fluxo, a
cada novo dia, é o exercício da permanência, da duração. Por melhor ou pior que
tenha sido a edição anterior, o que vale é a seguinte. E depois dela, a outra. É um
nunca acabar, ou eterno renascer.
Um grande jornal faz-se com a consciência do tempo e a capacidade de
atrair o leitor, todos os dias.
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Há um caminho aí que é o de fazer pensar. Oferecer alternativas de pensamento e marcar presença, fazer história. Pensar grande.
Mario Sergio Conti, em coluna recente, lembrou de “Memórias de um Antissemita”, o romance de Gregor von Rezzori: “O sangue jorra como antes. A única dignidade que se pode manter no nosso tempo é a dignidade de estar entre as
vítimas”. No caso do JB, é brigar pelas vítimas. Não é fácil, mas é possível. Ago-
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ra mais do que nunca”.
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3. O Jornal do Brasil acabou? A resposta é não!
Omar Catito Peres, março de 2019, Facebook
Quando tomei a iniciativa de trazer de volta às bancas o JB impresso, vários
amigos foram contundentes em dizer que eu estava na “contramão da história”, ao
relançar um produto que estava “em coma” no mundo todo. Sabia, claro, dessa
realidade. Tanto que escrevi há 15 dias, artigo comemorando um ano do JB nas
bancas, onde faço uma pequena analise sobre o presente e o futuro da mídia brasileira e, afirmo que dentro de muito pouco tempo os impressos vão acabar, aqui e
em todo o mundo.
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O projeto, obviamente, tinha o olho no futuro, ou seja, investir pesado no JB
on-line, com base no impresso e, com o tempo, migrar definitivamente para o jornalismo eletrônico.
Em meu plano de negócios, entendia que o impresso deveria ser nossa principal ferramenta para esse processo de transição. Pessoalmente acreditava que o
impresso duraria uns 3 anos até a mudança definitiva para a web. Durou, exatamente, um ano.
Mesmo com amigos dizendo que era uma “loucura” minha iniciativa, diante
desse quadro de mercado caótico para os impressos, fui em frente e apostei em
uma única possibilidade, a qual, todos os que embarcaram comigo no projeto,
também acreditavam: não era o lançamento de um jornal mas, sim, do JORNAL
DO BRASIL, que nos traria um número suficiente de leitores para bancar, independente de publicidade (que “não existe mais” para jornais), o JB impresso.
Para atingirmos o ponto de equilíbrio entre receitas e despesas, era necessário a venda de 8 mil exemplares/dia! Eu pensei e, todos pensaram a mesma coisa:
MOLEZA!
Na redação, a aposta mais pessimista era de que venderíamos 10 mil exemplares/dia. Esse era o clima de quem participava da equipe de relançamento.
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Fui em frente e relancei o jornal que marcou o Rio e o Brasil. Tínhamos certeza, Gilberto Menezes Côrtes, Tereza Cruvinel, Hildegard Angel, Renato Mauricio Prado, Octavio Costa, Rene Garcia Jr., Jan Theophilo e diversos outros “coleguinhas” que, com dedicação, muito suor e amor ao jornal, acreditaram que faríamos recursos suficientes com as vendas em bancas e assinaturas, cujo faturamento nos permitiria não só pagar os custos operacionais mas, também, crescer.
Mas essa premissa, vender 8 mil jornais/dia, NUNCA se comprovou. No dia
do lançamento, vendemos 25 mil exemplares.
E porque isso aconteceu? POR QUE O SER HUMANO NÃO QUER MAIS
SE INFORMAR POR JORNAIS IMPRESSOS! É simples assim.
Prova disso, é que TODOS os jornais brasileiros somados, vendem, hoje,
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nos dias da semana, cerca de 500 mil exemplares/dia !!! Me refiro à Folha de
S.Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo, Zero Hora (que já não imprime aos domingos), e outros de menor expressão.
Repito: todos eles, juntos, vendem, durante a semana, cerca de um pouco
mais de 500 mil exemplares de jornais/dia, sendo que 90% para assinantes e 10%
em bancas.
Pegue esses 500 mil exemplares e divida por 220 milhões de brasileiros. Resultado: o Brasil apresenta um índice PERTO DE ZERO LEITOR de jornal impresso. Um dos piores índices do mundo.
Em outras palavras, o jornal impresso no Brasil NÃO TEM MAIS A MENOR IMPORTÂNCIA e todos, sem exceção, continuam caindo a tiragem e perdendo leitores.
Mas em nosso caso, acreditávamos que seríamos um sucesso por sermos o
JORNAL DO BRASIL, sinônimo da prática de um jornalismo independente, corajoso e combativo, marcas do JB.
E fizemos exatamente isso, dando liberdade absoluta aos editores para escrever e relatar o que era importante para a sociedade. E, neste contexto, publica-
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mos importantes matérias, sendo a mais marcante, sobre o oligopólio dos bancos
no Brasil, dentre muitas outras.
Mesmo assim, as vendas não se comprovavam. Nada fazia o leitor que era
contra a “mídia hegemônica e que adora e pedia um jornal independente”, comprar e/ou assinar o JB.
Fora isso, ainda tivemos bloqueios judiciais no valor de R$ 600 mil (quase
três folhas de pagamento!), por ações trabalhistas, algumas, acreditem, do século
passado! Evidentemente, nenhuma ação de nossa responsabilidade. Esses bloqueios contribuíram, ainda mais, para dificultar a existência do impresso.
Nos primeiros seis meses, conseguimos quase equilibrar o orçamento por
conta de algumas publicidades de governos. Mas daí em diante, com o bloqueio
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judicial equivalente a três folhas de pagamento e com venda de 3 mil exemplares/dia, o prejuízo se tornava insustentável e o leitor “apaixonado pelo JB e que
pedia um jornal independente”, continuava a ler e se informar gratuitamente pela
internet.
Prova disso é que nosso site deu um salto explosivo de audiência, alcançando 3 milhões de visitantes por mês. Inacreditável! Se de um lado o site crescia
com milhões de visitantes, o impresso morria…, por falta de comprador. Foi e, é,
simples assim. Em resumo, só antecipei o que era previsto: acabar com o JB impresso e continuar investindo no JORNAL DO BRASIL on-line, cujo site passará
por profundas modificações em seu desenho. Mas lá estará uma maravilhosa turma de jovens jornalistas, comandado por Gilberto Menezes Cortes e nossos principais colunistas. Vamos, a partir de hoje, convidar mais cronistas de nome nacional para participar de nosso JB que continua vivo. Estou triste, claro, por ter sido
obrigado a antecipar o fim do JB impresso. Mas o motivo foi um só: O LEITOR
QUE NÃO QUER MAIS LER JORNAL IMPRESSO. Atendemos à essa demanda. VIVA O JORNAL DO BRASIL, VIVO E PARA SEMPRE.