Universidade de Brasília
Instituto de Arte
Programa de Pós-Graduação em Arte
ANDRÉ LUIZ GONÇALVES DE OLIVEIRA
Paisagens Sonoras Enativas:
por uma estética naturalizada
Brasília-DF
2013
Paisagens Sonoras Enativas: por uma
estética naturalizada
ANDRÉ LUIZ GONÇALVES DE OLIVEIRA
Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação
em Arte da Universidade de Brasília como parte dos
requisitos para a obtenção do título de Doutor em Arte.
Orientadora: Professora Dra. Diana Maria Gallicchio
Domingues. Área de concentração: Arte
Contemporânea; Linha de Pesquisa: Arte e Tecnologia.
Brasília-DF
2013
ii
iii
Folha de aprovação
Autor: André Luiz Gonçalves de Oliveira
Título: Paisagens Sonoras Enativas
Subtítulo: Por uma estética naturalizada
Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação
em Arte da Universidade de Brasília como parte dos
requisitos para a obtenção do título de Doutor em Arte.
Orientadora: Professora Dra. Diana Maria Gallicchio
Domingues. Área de concentração: Arte
Contemporânea; Linha de Pesquisa: Arte e Tecnologia.
Local: Campus UnB/Gama - DF
Data: 10/09/2013
Banca:
____________________________________________________
Professora Dra. Diana Maria Gallicchio Domingues
(Universidade de Brasília)
(Presidente)
____________________________________________________
Professor Dr. Fernando Iazzeta
(Universidade de São Paulo)
__________________________________________________
Professor Dr. Adson Rocha
(Universidade de Brasília)
iv
_______________________________________________
Professora Dra. Fátima A. Santos
(Universidade de Brasília)
____________________________________________
Professora Dra. Lourdes Mattos Brasil
(Universidade de Brasília)
__________________________________________
Professora Dra. Daniela Garrossini
(Universidade de Brasília)
(Suplente)
v
À Patrícia Mertzig (esposa, amiga e
parceira) e Luiz Phillip (meu filhote),
pela alegria, força e foco que me trazem
com sua companhia.
vi
Agradecimentos
Uma tese é sempre uma produção coletiva, impossível fazê-la sozinho. Não se chega até
esse ponto sem nenhum auxílio, ainda que se descontasse o trabalho paciente e árduo do orientador.
Obrigado a toda minha família que acompanhou e apoiou desde há muito tempo e me
colocou no caminho do estudo e da pesquisa. Entre os muitos amigos, ressalto aqui, Michelle
Agnes, amiga e interlocutora desde as aulas com H. J. Koellreutter em 1994; Caju G. Alves, amiga
e incentivadora de longa data; José C. Pires Jr., amigo de reflexões desde o mestrado. Agradeço em
especial a Tiago Franklin Lucena, apoio fundamental para realização desse trabalho. À Rebeca Neto
e Nathália Nóbrega pelo apoio logístico e intelectual. Também à convivência de colegas como Dr.
Eufrásio Prates, Dra. Cida Donato, Camila Hamdan, Leci Augusto, Franciele Fillipini, Gabrielle
Correia e Anésio Azevedo, presentes nas relevantes estadas em Brasília.
Obrigado a todos os meus alunos, pela paciência em me ouvir. Agradeço especialmente
aqueles que seguem a trilha da academia. O exemplo de muitos dele(as), que já são doutores e
mestres, muito me emociona e motiva!
Agradeço aos colegas da UFMS que me apresentaram a orientadora e incentivaram-me
iniciar essa caminhada, professoras, Dra. Eluiza B. Guizzi, Dra. Vanda Lucia Ferreira e Venise
Melo, além dos colegas Dr. Luis Felipe Oliveira e Dr. Alexandre Takahama. Obrigado ao corpo
docente dos cursos de Música e Artes Visuais da UNOESTE, companheiros de trabalho que
incentivam e apoiaram essa pesquisa. Agradeço aos funcionários da UnB, da UFMS e UNOESTE.
Foi um prazer estudar no ambiente da UnB Gama, com professores como Dr. Adson Rocha
e professora Dra. Lourdes Brasil, do PPG em Engenharia Biomédica. Seu conhecimento e
companhia foram inspiradores.
Agradeço a inestimável colaboração do professor Dr. Cristiano Miosso, responsável pela
programação e criação de parte das atividades dessa pesquisa. Uma pessoa incansável e profissional
de capacidade incrível.
Agradeço por fim, e de modo especial, minha orientadora, professora Dra. Diana
Domingues, criadora e coordenadora do LART - UnB/Gama. Sua intensidade sem dúvidas me
marcará sempre por uma época de muito aprendizado.
vii
Resumo
Teorias filosóficas e científicas, como a fenomenologia, ecologia e enacionismo, ofereceram
suporte para a proposta teórico-prática dessa pesquisa no contexto da arte e tecnociência. As
paisagens sonoras enativas possibilitaram experiências estéticas que aqui foram denominadas como
naturalizadas. A aproximação de diferentes áreas do conhecimento humano permitiu que se
propusesse tais paisagens sonoras enativas, enquanto atualização da expressão artística em
paisagens sonoras dos anos setenta do século passado, por meio da incorporação de tecnologias de
sensoriamento e relacionamento de dados, a partir de teorias como as citadas. Práticas criativas
testaram e validaram as hipóteses e resultaram em trabalhos para duas Bienais Internacionais: uma
instalação com paisagem sonora e eventos de vida urbana misturada, na 29a. Bienal de São Paulo;
e um sistema enativo com visualização de dados para a 11a. Bienal de Havana. O estudo de caso
específico e implementação do projeto (Frog’s Signature) foi a culminância do projeto e de
convergência de conhecimentos das áreas de artes, música, engenharias, filosofia, geografia e
biologia. Uma vez feito o relato dos resultados das atividades citadas, realizou-se uma reflexão a
respeito das possibilidades de experiência estética naturalizada a partir dos referenciais teóricos
como a fenomenologia, ecologia e enacionismo.
Palavras-chave: Paisagem sonora enativa; Estética naturalizada; Arte e tecnociência; Tecnologia
enacionista; Ecologia da arte.
viii
Abstract
Philosophical and scientific theories, such as phenomenology, ecology and enactionism, offered
support for the proposed theory and practice of this research, in the context of art and
technoscience. The enactive soundscapes afford aesthetic experiences, that have been termed as
naturalized. The approach of different areas of human knowledge that has allowed propose such
enactive soundscapes that updating the soundscape concept of seventies of last century, through the
incorporation of sensing technologies and data relationship, from theories as the aforementioned.
Creative practices tested and validated the assumptions and resulted in work for two International
Biennials: an installation with soundscape and urban life events mixed in 29th. Bienal de São Paulo,
and an enactive system for 11a. Havana Biennial. The specific case study, a project named "Frog's
Signature", was the culmination of the thesis and the convergence of knowledge in the areas of arts,
music, engineering, philosophy, geography and biology. Once done the reporting of the results of
the aforementioned activities, I propose a discussion about the possibilities of a naturalized
aesthetic experience through the theoretical contribuition of phenomenology, ecology and
enactionism.
Keywords: Enactive soundscape; Naturalized aestheic; Art and technoscience; Enactionist
technology; Ecology of art.
ix
Sumário
Lista de figuras................................................................................................................ xii
Lista de abreviações........................................................................................................ xv
Lista de exemplos de áudio e audiovisual no DVD ....................................................... xvi
1. Introitus....................................................................................................................... 01
2. Em direção à arte e tecnociência................................................................................. 06
2.1 Origens comuns entre arte, ciência e tecnologia............................................. 06
2.2 Desenvolvimento comum entre arte, ciência e tecnologia.............................
18
2.3 Advento da arte e tecnociência.......................................................................
22
2.3.1 A noção de tecnociência..................................................................... 22
2.3.2 Centros de arte e tecnociência...........................................................
25
3. Espaço e consciência: da arte moderna à contemporânea..........................................
34
3.1 O pitoresco e o sublime..................................................................................
34
3.2 Experiência e representação de espaço e consciência....................................
38
3.2.1 O espaço no neoclassicismo..............................................................
38
3.2.2 Rumo ao enacionismo e à ecologia ................................................... 42
3.2.3 Impressionismo, ecologia e fenomenologia....................................... 51
3.2.4 Nova ontologia do espaço e do sujeito..............................................
55
3.2.5 Grau zero, enação e estética naturalizada.......................................... 60
4. Paisagens sonoras.......................................................................................................
64
4.1 Percurso histórico...........................................................................................
64
4.1.1 Futurismo como precursor.................................................................
65
4.1.2 Schafer e o grupo da Simon Fraser University..................................
67
4.1.3 O papel do espaço na música............................................................. 68
4.1.4 Cage e o espaço in.............................................................................
72
4.1.5 A tradição da música eletroacústica................................................... 74
4.1.6 Para além da música..........................................................................
76
x
4.2 O conceito de percepção na arte contemporânea............................................ 78
4.3 Enacionismo, ecologia e fenomenologia........................................................
90
5. Paisagem sonora como obra híbrida........................................................................... 102
5.1 Modalidade artística e os modos de atenção de Gibson.................................
102
5.2 Hibridismo e diluição de fronteiras................................................................
108
5.3 Paisagens sonoras situadas.............................................................................. 113
6. Do híbrido ao biocíbrido............................................................................................. 117
6.1 Biocybrid Latin American Memorial.............................................................. 118
6.2 Ouroboros Biocíbrido.....................................................................................
125
6.3 Discussão das instalações...............................................................................
134
7. Frog’s Signature: arte enacionista............................................................................... 137
7.1 Materiais e métodos........................................................................................ 137
7.1.1 Descrição de Forg’s Signature...........................................................
137
7.1.2 O espaço abordado............................................................................. 142
7.1.3 Marcadores biogeográficos e o estudo da paisagem.......................... 147
7.1.4 Metodologia de classificação e visualização de dados...................... 151
7.2 Resultados....................................................................................................... 156
7.2.1 Classificação de espécies................................................................... 157
7.2.2 Visualização de dados........................................................................ 160
7.2.3 O programa de transmissão de dados................................................
165
7.3 Discussão........................................................................................................
169
8. Estética naturalizada: a natureza da arte na natureza.................................................. 174
8.1 Naturalizando a estética com a constante re-engenharia dos afetos............... 175
8.2 Conduta estética como fundamento da estética naturalizada.......................... 189
Referências Bibliográficas.............................................................................................. 194
Anexo 1: Entrevista com alunos do ISA - La Havana, Cuba.......................................... 203
Anexo 2: Entrevista ao professor E. Couchot - Sorbonne, Paris VIII............................
209
Anexo 3: DVD com exemplos de áudio e audiovisual................................................... 213
xi
Lista de figuras
Figura 1 - Homem em pé em caverna do sistema de cavernas de Lascaux............................... 10
Figura 2 - Grupo em torno da fogueira......................................................................................
13
Figura 3 - Estatueta de Vênus de Willendorf.............................................................................
16
Figura 4 - Detalhe do joystick Wii preso na guitarra.................................................................. 26
Figura 5 - Pessoa tocando guitarra com joystick Wii.................................................................
27
Figura 6 - Robô Khepera II........................................................................................................ 28
Figura 7 - RoBoser..................................................................................................................... 28
Figura 8 - Gráfico 3D de Ouroboros Biocíbrido........................................................................ 30
Figura 9 - Sensores bioafetivos (LART/UnB e MediaLab/MIT)............................................... 31
Figura 10 - Jacques-Louis David: Marat assassiné (1793)........................................................ 40
Figura 11 - F. de Goya, Os fuzilamentos de três de maio (1814)............................................... 44
Figura 12 - T. Géricault A jangada da Medusa (1919)............................................................. 46
Figura 13 - E. Delacroix A liberdade guiando o povo (1830).................................................... 49
Figura 14 - G. Courbet As moças à margem do Sena (1857)..................................................... 53
Figura 15 - P. Cézanne O monte Santa-Vitória (1906)............................................................... 60
Figura 16 - Diana Domingues: Paragens (1991)....................................................................... 63
Figura 17 - L. Russolo e U. Piatti com sua Intonarumori (1913).............................................. 66
Figura 18 - The Tunning of the world, R. Flud (1617)............................................................... 67
Figura 19 - Espacialização sonora quadrifônica........................................................................
70
Figura 20 - Divulgação de Very Nervous System de David Rokeby (1982)...............................
77
Figura 21 - P. Schaeffer em seu estúdio em Paris...................................................................... 80
Figura 22 - K. Stockhausen em seu estúdio em Colônia............................................................ 81
Figura 23 - Marcas do Projeto Soundscape Brasilia de H. Westerkamp (1994).......................
84
Figura 24 - Modelagem de tempestade para peça de A. Polli (2004)........................................ 87
Figura 25 - Modelagem de tempestade para peça de A. Polli (2004)........................................ 88
xii
Figura 26 - Camadas da modelagem de tempestade para peça de A. Polli (2004).................... 88
Figura 27 - Virtual reality headset de Osmose de C. Davies (1995).......................................... 97
Figura 28: Visão interna do espaço de Osmose, de C. Davies (1995)........................................ 98
Figura 29 - Ilustração 3D da C.A.V.E. de Heartscapes de Diana Domingues (2004).............. 99
Figura 30- Imagem da instalação Heartscapes de D. Domingues (2004).................................
100
Figura 31 - Exemplo de palco italiano.......................................................................................
106
Figura 32 - Exemplo de instalação de alto falantes para concerto, Berlim (2010)....................
112
Figura - 33 Instalação da PS Estação Anápolis (2011).............................................................. 115
Figura 34 - Mapa de São Paulo.................................................................................................. 119
Figura 35 - Nascente do Ipiranga - Jd. Botânico, São Paulo...................................................... 120
Figura 36 - Microfone captando canal - Jd. Botânico, São Paulo.............................................. 120
Figura 37 - Jardim Botânico na cidade de São Paulo................................................................. 121
Figura 38 - Galeria Marta Traba no Memorial da América Latina, SP......................................
122
Figura 39 - Alto da rampa de entrada da Galeria Marta Traba................................................... 123
Figura 40 - Alto falante da instalação Biocybrid Latin American Memorial............................. 123
Figura 41 - Fluxograma de Biocybrid Latin American Memorial, 2010.................................... 124
Figura 42 - Atividade externa na oficina Ouroboros Biocíbrido 11na Bienal de La Habana.... 127
Figura 43 - Sensor de movimento em forma de relógio de pulso..............................................
129
Figura 44 - Atividade interna na oficina Ouroboros Biocíbrido 11na Bienal de La Habana....
131
Figura 45 - Fluxograma de Ouroboros Biocíbrido na 11na Bienal de La Habana - Cuba........ 132
Figura 46 - Fluxograma de Frog’s Signature.............................................................................
138
Figura 47 - Detalhe de fluxograma de Frog’s Signature............................................................ 139
Figura 48 - Detalhe de fluxograma de Frog’s Signature............................................................ 140
Figura 49 - Município de Presidente Prudente no Estado de São Paulo.................................... 143
Figura 50 - Sudoeste Paulista - Pontal de Paranapanema..........................................................
144
Figura 51 - Perspectiva dos Municípios do Pontal do Paranapanema.......................................
145
xiii
Figura 52 - Classificação do uso da terra na Microbacia Hidrográfica do córrego Limoeiro.... 145
Figura 53 - Córrego Limoeiro marcado em azul........................................................................ 146
Figura 54 - Lagoa artificial à margem do córrego Limoeiro - Presidente Prudente - SP........... 147
Figura 55 - Grau de conhecimento de espécies de anuros anfíbios...........................................
149
Figura 56 - Esquema lógico de uma RNA.................................................................................
152
Figura 57 - Esquema da rede perceptron multicamadas............................................................
153
Figura 58 - Área de convivência UNOESTE, SP....................................................................... 155
Figura 59 - Área de convivência marcada - UNOESTE, SP...................................................... 155
Figura 60- Leptodactilus fuscus (rã assobiadora) vocalizando..................................................
157
Figura 61 - Scinax fuscovarius (perereca de banheiro) vocalizando.......................................... 158
Figura 62 - Physalaemus cuvieri (rã cachorro) ......................................................................... 158
Figura 63 - Physalaemus cuvieri vocalizando............................................................................ 159
Figura 64 - Dendropsophus marmoratus...................................................................................
160
Figura 65 - Leptodactylus knudseni...........................................................................................
161
Figura 66 - Sonograma tradicional de Dendropsophus marmoratus.........................................
162
Figura 67 - Sonograma tradicional de Leptodactylus knudseni.................................................
163
Figura 68 - Sonograma SDP de Dendropsophus marmoratus................................................... 164
Figura 69 - Sonograma SDP de Leptodactylus knudseni...........................................................
164
Figura 70 - Janelas do programa de transmissão nos computadores de SP e do DF.................. 165
Figura 71 - Janelas do programa de transmissão nos computadores de SP e do DF.................. 166
Figura 72 - Exemplo do programa de transmissão de dados de Frog’s Signature.................... 167
Figura 73 - Exemplo do programa de transmissão de dados de Frog’s Signature.................... 168
Figura 74 - Ressonador de Helmholtz........................................................................................ 178
Figura 75 - Litografia Drawing hands - M. C. Escher (1948)...................................................
181
Figura 76 - Ciclo funcional do carrapato segundo Uexküll.......................................................
185
Figura 77 - Representação do acoplamento estrutural de Maturana (1997)..............................
188
xiv
Lista de abreviações
CAVE - Cave Automatic Virtual Environment
IA - Inteligência Artificial
LART - Laboratório de Pesquisa em Arte e Tecnociência
MIT - Massachussets Institute of Technology
PS - Paisagem(ns) Sonora(s)
PSE - Paisagem(ns) Sonora(s) Enativa(s)
RNA(s) - Rede(s) Neural(is) Artificial(is)
SDP - Symetrized Dot Patterns
UEL - Universidade Estadual de Londrina
UnB - Universidade de Brasília
UNESP - Universidade Estadual de São Paulo
UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas
UNOESTE - Universidade do Oeste Paulista
xv
Lista de exemplos de áudio e audiovisual no DVD anexo
Todos as faixas do DVD encontram-se disponíveis em: <https://vimeo.com/enactivesoundscape>
Acesso em: 20 jun. 2013.
Capítulo 1:
1) 1984 - Peça de Paisagem Sonora (eletroacústica) composta durante a escrita da tese com texto da
obra homônima de G. Orwell.
Capítulo 4:
2) Estação Anápolis - paisagem sonora instalada como camada de PS no terminal urbano de
Anápolis - GO, no Festival de Arte e Mídia ocorrido na cidade em 2011.
Capítulo 5:
3) Vídeo com imagens da instalação Biocybrid Latin American Memorial (Galeria Marta Traba 29a. Bienal de São Paulo, 2010)
4) Vídeo com imagens da oficina Ouroboros Biocíbrido e da instalação homônima (11na. Bienal de
La Habana - Cuba, 2012)
Capítulo 6:
5) Áudio de vocalização da espécie Dendropsophus marmoratus
6) Áudio de vocalização da espécie Leptodactylus knudseni
xvi
1 INTROITUS
[...] é necessário também que o corpo do animal seja capaz de tocar,
[...] Pois os demais sentidos, o olfato, a visão e a audição, por
exemplo - tem percepção por meio de outras coisas. Mas, se aquele
que percebe tocando não tiver percepção sensível, ele não poderá
evitar certas coisas e apanhar outras. E se for assim, será impossível
então que o animal sobreviva. (Aristóteles - De anima, Livro III)
Desde que terminei o mestrado em filosofia, com área de concentração em filosofia
da mente e ciência cognitiva, na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP,
em 2002, venho focando os estudos na área de percepção auditiva e suas diferentes possibilidades
para a criação artística. Sou graduado em música, e as paisagens sonoras, sobretudo no contexto da
música eletroacústica e instalações sonoras, têm sido o caminho estético por meio do qual tenho
desenvolvido minha prática artística. Os estudos em percepção, fundamentados em ecologia, enação
e fenomenologia, igualmente têm ocupado um lugar central no desenrolar da pesquisa desde a
defesa de minha dissertação.
Nesse caminho o encontro com o pensamento da professora Dra. Diana Domingues, que
naquele momento estava envolvida no que pode ser tomado como fundação e demarcação
conceitual do campo de estudo denominado por arte e tecnociência, parecia mesmo uma questão de
tempo. Tal encontro se deu no ano de 2009, na cidade de Campo Grande - MS, por ocasião de um
evento de arte e tecnologia do qual eu participava da organização e ela fazia a palestra de abertura.
Alguns autores bastante frequentes em meus estudos desde 1998, tais como H. Maturana, F. Varela,
Antônio Damásio, J. J. Gibson e Merleau-Ponty, também frequentavam a bibliografia da ampla
produção acadêmica da professora e permeavam seu pensamento, como pude constatar naquele dia
e depois durante toda a orientação da pesquisa ora descrita.
O objetivo dessa tese é investigar as diferentes possibilidades de aplicações poéticas
de estudos em percepção, advindos de diferentes áreas, tais como: o enacionismo na ciência
cognitiva, a ecologia e fenomenologia enquanto abordagens filosóficas. Durante todo o século XX
se assistiu um crescente interesse por estudos que explicavam a percepção e a cognição utilizando
modelos diversos, como os computacionais. Esses modelos foram impulsionados por um rápido
incremento dos estudos em computação digital e viabilizaram uma quantidade enorme de
explicações sobre os fenômenos relacionados à percepção e cognição. Tais explicações distanciam-
1
se do paradigma cartesiano que sustentou muitos dos procedimentos de criação e produção artística
durante o último século e têm criado uma base conceitual e tecnológica para tais atividades. O
centro da presente pesquisa é a busca pelo desenvolvimento de poéticas a partir de tecnologias que
coloquem em interação sistemas dinâmicos e complexos para a criação de experiências artísticas. O
termo estética naturalizada é proposto no decorrer do texto como descrição das experiências
envolvidas nas obras denominadas por enativas, como é o caso das paisagens sonoras enativas.
As principais hipóteses levantadas para se encaminhar a reflexão proposta no
objetivo do trabalho são três:
1) Estudos em enacionismo, ecologia e fenomenologia da percepção podem fornecer indicações de
procedimentos específicos na criação e produção de arte.
2) Tais procedimentos (item 1) fornecem experiências artísticas bastante distintas daquelas
oferecidas por poéticas suportadas pelo paradigma cartesiano, e que podem ser denominadas por
naturalizadas.
3) A relação entre arte e tecnociência possibilita poéticas e estéticas, como é o caso das paisagens
sonoras enativas, que em sua natureza expandem as fases e exemplos anteriores da história da
arte.
Por estética naturalizada entende-se o que será proposto como descrição das
experiências artísticas ocorridas em obras citadas nos capítulos seis e sete, nas quais a dinâmica dos
acoplamentos estruturais entre os diversos atores do sistema permite a emergência de affordances 1,
possibilidades de condutas estéticas e de poéticas desenvolvidas por meio de estudos enacionistas,
ecológicos e fenomenológicos em percepção e cognição.
Ressalta-se que houve um feliz encontro com a recém lançada obra do professor,
artista e pesquisador francês, altamente relevante na área dessa tese, Edmond Couchot (2012) “La
nature de L’art”, cuja leitura indicou diretamente a corroboração das hipóteses que são levantadas
nos parágrafos anteriores. O autor, renomado internacionalmente é ainda, um dos pesquisadores do
círculo de relações da artista, professora e pesquisadora Diana Domingues. Houve, portanto, a
possibilidade de uma entrevista por escrito para confirmar as aproximações tão nítidas entre sua
recente obra, acima mencionada, e os propósitos da tese. É importante ressaltar algumas das
palavras do professor Couchot quando questionado acerca da possibilidade de uma estética
1
O conceito affordance será mantido em sua forma original em idioma inglês. Há uma explicação adequada do termo
no capítulo cinco.
2
naturalizada nos termos com os quais será descrita. Tratando da posição da noção de conduta
estética, Couchot afirma que:
En conséquence, il faut penser l’esthétique au-delà de la culture. Le plaisir esthétique n’est
pas un produit de la culture humaine: son enracinement est biologique, mais cet
enracinement est largement compensé par la culture épigénétique, l’histoire et la
subjectivité des individus. 2 (COUCHOT, anexo 2).
Estudos contemporâneos em neurociência e psicologia relacionam diretamente a
origem da espécie humana com formas de agir que utilizam instrumentos e símbolos cada vez mais
complexos, próprios da atividade artística. Esse é o assunto inicial que busca os fundamentos da
estética naturalizada. A noção de tecnologia é abordada sob o prisma da fenomenologia por meio da
leitura e comentários acerca de um ensaio de M. Heidegger (1979). A apresentação do termo
tecnociência por B. Latour (1987) como forma de realçar a amplitude dos aspectos cognitivos
presentes no uso das tecnologias, bem como os aspectos poéticos próprios das experiências
artísticas as quais se referencia essa tese, é objeto de análise do final da etapa. Há nesse trecho uma
breve descrição de algumas obras como exemplos de trabalhos em ambientes colaborativos entre
artistas e cientistas no Brasil (LART - UnB/Gama; NICS - Unicamp) e no exterior (MediaLab MIT). A descrição dos exemplos deixa claro três encaminhamentos às hipóteses apresentadas e que
são os temas das três seções do segundo capítulo:
1) A arte é um fazer próprio da espécie humana;
2) arte, tecnologia e ciência desenvolvem-se com influências mútuas;
3) a relação entre arte e tecnociência possibilita novas poéticas e estéticas, como é o caso das
paisagens sonoras enativas.
O crescimento tecnológico pós-revolução industrial transformou, e continua
transformando, profundamente o modo de vida do mundo ocidental. G. C. Argan (2004) aborda
especificamente aspectos dessas transformações na arte. Partindo da perspectiva fenomenológica de
Argan, o capítulo três apresenta as possibilidades poéticas que os desdobramentos em filosofia,
ciência e tecnologia têm oferecido aos artistas. Entre as diversas tendências e caminhos artísticomusicais que vêm aparecendo no mundo contemporâneo, sobretudo no último meio século,
2
Portanto, devemos pensar a estética para além da cultura. Prazer estético não é um produto da cultura humana, suas
raízes são biológicas, mas isso é largamente compensado pelo enraizamento da cultura epigenética, a história e a
subjetividade dos indivíduos. Tradução nossa.
3
encontra-se a paisagem sonora, um tipo de composição musical criada no início da década de 1970
pelo grupo canadense trabalhando com Murray Schafer em Vancouver. Inicialmente o conceito foi
postulado para tratar da descrição da audição em diferentes ambientes. A atenção aos eventos
sonoros que circundam o ouvinte propiciou a criação de obras musicais que recriavam, ou
manipulavam determinados ambientes sonoros. O quarto capítulo traz um breve histórico do
desenvolvimento das paisagens sonoras e também um conjunto de procedimentos envolvidos na
criação de tais obras, mas que se distinguem da tradição dessas composições por suportarem-se em
princípios de orientação enacionistas, ecológicos e fenomenológicos. Por conseguinte o capítulo
cinco expõe o contexto no qual aparece a descrição mais cuidadosa das paisagens sonoras enativas
(PSE), que a presente pesquisa enuncia, bem como sua direção à possibilidade de uma estética
naturalizada. Por meio da aproximação com o suporte conceitual da ecologia da percepção de J. J.
Gibson (1966 e 1979) apresentam-se procedimentos que mostram as paisagens sonoras como
exemplos de obras híbridas, porque dissolvem as fronteiras entre modos de percepção/ação
fechados em um único sistema e caminham para a percepção sinestésica, híbrida.
Ao fim dessa parte chega o momento de análise das experiências artísticas, como as
instalações realizadas pela equipe do LART-UnB/Gama, em duas bienais de arte internacionais. No
sexto capítulo são apresentados diversos procedimentos composicionais que possibilitam a
proposição de um tipo de paisagem sonora enativa. Descreve-se com detalhes a montagem de
Biocybrid Latin American Memorial, para a Mostra TransFronteiras Contemporâneas, parte da 29a.
Bienal de São Paulo, realizada em 2010. E descreve-se também uma oficina realizada para a
montagem de uma instalação na 11na. Bienal de La Habana, Cuba, em Maio de 2012.
O capítulo sete projeta o que se considera o estudo de caso central dessa pesquisa.
Nele será descrita a experiência chamada de Frog’s Signature. Mostram-se as ideias centrais do
projeto de uma obra artística a qual cria um ambiente chamado de zona biocíbrida,3 que permite,
por meio da sobreposição de camadas de paisagens sonoras, sonificação e visualização de dados,
uma experiência estética naturalizada. O projeto de Frog’s Signature não se encerra no escopo
dessa tese, no entanto suas etapas são delimitadas e alguns testes são realizados, de modo que sua
condição de exequibilidade seja demonstrada. Ao final do capítulo, tais testes são discutidos e suas
3
O conceito de biocíbrido é algo que essa tese espera desenvolver em sua continuidade. As diversas noções que serão
encadeadas buscam fundamentar esse conceito inicial. A intenção é utilizar o conceito de forma crescente, enquanto se
contextualiza e constrói sua definição. No entanto, caso o leitor sinta necessidade de um esclarecimento imediato, pode
recorrer à leitura da citação de sua autora, no início do sexto capítulo.
4
características são relacionadas ao suporte teórico dos capítulos anteriores.
Com isso o oitavo e último capítulo coloca a discussão acerca da possibilidade de
uma estética naturalizada. O encontro com a obra La Nature de L’art, publicada em 2012 pelo
professor, artista e pesquisador francês Edmond Couchot foi de grande importância na medida em
que o autor traz à discussão as possibilidades indicadas por estudos da ciência cognitiva
contemporânea à compreensão do fazer artístico. Couchot (2012) fala mesmo de um projeto de
naturalização da arte, que é entendido como confirmação direta das hipóteses as quais essa tese
apresenta sobre a possibilidade de uma estética para além da cultura, naturalizada. O capítulo iniciase com a noção de naturalização no contexto da ciência cognitiva e encerra-se com o
estabelecimento de relações entre os conceitos abordados nos capítulos anteriores, os conceitos de
Couchot (2012), e uma breve entrevista feita ao autor francês sobre alguns tópicos específicos para
a conclusão da pesquisa.
5
2 EM DIREÇÃO À ARTE E TECNOCIÊNCIA
Eu disse que segundo meu pensamento e crença tudo era um caos, isto é,
terra, ar, água, fogo juntos, e de todo aquele volume em movimento se
formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual
surgem os vermes, e esses foram os anjos. (Carlo Ginsburg - O Queijo e os
vermes).
2.1 ORIGENS COMUNS ENTRE ARTE, CIÊNCIA E TECNOLOGIA
A perspectiva enacionista em arte tem permitido uma profícua relação, a qual tem
como raízes diversas propostas desenvolvidas em centros de pesquisa avançados, em diferentes
lugares no mundo. Abordagens que relacionam enacionismo e ecologia com aspectos artísticos
(Tikka, 2008; Windsor, 1995; Clarke, 2005; Leman, 2008) permitem a localização de origens
comuns para atividades humanas tais como a arte, a ciência e a tecnologia. Permitem também, por
suas práticas contemporâneas, o caminho em direção à tecnociência, uma marca bastante humana
nas relações entre tais fazeres.
Entre outros autores, ressalta-se especialmente o trabalho de Tikka (2008) como
precursor das explicações enacionistas especificamente para lidar com arte.
The notions of mind, body, and world are considered interrelated, interdependent, and
parallel conceptual perspectives on the object’s enactive situatedness, i.e., the holistic firstperson experience of being and playing a part in the intersubjective world.
While the attribute of ‘enactive’ carries the explicit sense of pragmatic doing and
meaningful acting in the world, it is the embodied simulation of the world that will provide
the cognitive environment for creative enactment. Emotions, in addition to determining an
unconscious, involuntary understanding about the state of things, also determine all
conscious, intentional, and imaginative aspects of cognition. 4 (TIKKA, 2008, p. 33)
Mais adiante será possível abordar especificamente aspectos teóricos do enacionismo enquanto uma
teoria da cognição e da percepção como suporte para a proposição de procedimentos de
4
As noções de mente, corpo e mundo são consideradas inter-relacionadas, inter-dependentes e em perspectivas
conceituais paralelas sobre a enação situada do objeto, i.e. a experiência holística em primeira-pessoa do ser, e fazem
parte de um mundo subjetivo.
Enquanto o atributo de “enativo” carrega o senso explícito do fazer pragmático e da ação significativa no mundo, é a
simulação corporificada do mundo que irá prover o meio-ambiente cognitivo para a enação criativa. Emoções, além de
determinar um entendimento involuntário, inconsciente e ininteligível sobre o estado das coisas, também determinam
todos os aspectos conscientes, intencionais e imaginativos da cognição. Tradução nossa.
6
experiências artísticas que visam proporcionar uma estética naturalizada.
No que diz respeito a uma abordagem ecológica e fenomenológica envolvendo
explicação sobre arte, música especificamente, Leman (2008) afirma que a arte possibilita o
acoplamento de estados, ou nas palavras dele, espaços internos e externos, referindo-se às
possibilidades de repartir experiências com os outros. Para o autor, o mundo enquanto espaço das
ações possíveis e intencionais é o local de repartir ações intencionais.
[...] it states that perception induces the stimulations of intentions that may be attributed to
the environment. [...] The world is seen from the viewpoint of intentional actions.5
(LEMAN, 2008, p. 87).
A tese apresentará em sua sequência um tipo de espaço de interação no qual se realiza uma
experiência estética naturalizada, que é denominado por espaço biocíbrido. Ele será descrito
detalhadamente a seguir, mas já pode ser diretamente relacionado com esse tipo de espaço de ações
intencionais. Há nessas duas ricas citações muito do que será dito no desenrolar das descrições.
Cabe relacionar, nesse início de jornada, a origem comum desses três tipos de fazer humano (arte,
ciência e tecnologia) com o mundo (meio-ambiente) que vimos construindo enquanto fazemos a nós
mesmos humanos, constantemente envolvidos numa re-engenharia da vida.
As paisagens sonoras enativas, conforme serão descritas nos capítulos seis e sete, são
exemplos de experiências artísticas proporcionadas por tecnologias que podem ser denominadas por
disruptivas e que permitem experiências estéticas naturalizadas. A noção de naturalizada diz
respeito à ideia de que é própria de toda a espécie humana a possibilidade de experiência estética e
não de uma ou outra cultura em especial. As montagens de obras artísticas nas bienais de São Paulo
(2010) e de Havana (2012) indicam a possibilidade de experiência estética em ambientes
especificamente multiculturais. Tais fatos reforçam as hipóteses elencadas anteriormente.
Logo que se encontrou a produção imagética nos ambientes onde viveram os
primeiros humanos, vem ganhando força a ideia de que a arte é uma das produções que diferenciam
o homem de outros animais. O destaque ao posicionamento de neurocientistas como Antônio
Damásio (1998, 2002, 2003, 2009 e 2010) e Jean-Pierre Changeux (2009), envolvidos com
descrições acerca das origens da arte, serve para que se fundamente os argumentos sobre a
5
[...] sustenta-se que a percepção induz a estimulação das intenções que podem ser atribuidas ao meio-ambiente. [...] O
mundo é do ponto de vista das ações intencionais. Tradução nossa.
7
possibilidade de experiências estéticas naturalizadas, como as que são propostas em zonas de
interações biocíbridas, emergentes de dinâmicas complexas e auto-organizadoras entre diferentes
atores vivos e não vivos, as quais serão discutidas nos próximos capítulos. As gravuras da Idade
Primitiva nas cavernas sugerem que esse tipo de produção, que denominamos por arte, marcou a
passagem do homem do período Paleolítico para o Neolítico. Tal argumentação sobre o papel da
arte é feita pelo neurocientista A. Damásio (2009), que oferece possíveis pistas para a compreensão
das relações entre o desenvolvimento de algumas características próprias do ser humano e suas
habilidades para a produção artística. Segundo o autor, a arte emerge entre os humanos por conta de
dois aspectos que ela proporciona: 1) melhora a comunicação, possibilitando a expressão de uma
gama de estados emocionais que não são alcançados pela linguagem até então desenvolvida; 2)
aumenta a complexidade da regulação da vida, seja individualmente, seja socialmente.
Também o neurocientista Jean-Pierre Changeux (2009) indica que a origem da arte
está ligada com a origem do ser humano. O autor trata especificamente dos tipos específicos de
condutas que constituirão o que se entende por produção estética. Entre as diversas realizações do
homem, a arte tem características próprias, tais como:
[...] it is specialized for intersubjective comunication that uses symbolic forms
genetically and epigenetically encoded. (The art is yet) distinct from language, non
verbal comunication of emotional states, knowledge experiences, with multiplicity of
codes, yet under implicit constraints of rules. (The art have) aesthetic efficacy,
staggering effects on emotion and reason that mobilizes conscious and non-concious
process. 6 (CHANGEUX, 2009, 05’).
O autor descreve a arte como um hábito humano dos mais basais, desenvolvidos desde os primeiros
grupos de Homo sapiens. Changeux (2009) oferece condições de considerar a conduta estética
como comportamento mais fundamental do que a linguagem falada, para o ser humano.
Um dos aspectos realçados pelo neurocientista A. Damásio (2009) é que a arte está
presente na origem da espécie humana pelo potencial de ampliar as possibilidades de comunicação.
Segundo ele, nenhuma outra espécie desenvolveu um sistema de produção e fruição sequer parecido
como o que é a arte para a espécie humana. Linguagem e arte podem ser considerados dois
aspectos, dentre outros, que diferenciam a espécie humana das outras que ocupam a Terra. A
6
[...] é especializada em comunicação intersubjetiva que usa formas simbólicas geneticamente e epigeneticamente
codificadas. (A arte ainda é) diferente da linguagem, comunicação não-verbal de estados emocionais, experiências de
conhecimento, com a multiplicidade de códigos, ainda sob restrições implícitas de regras. (A arte tem) eficácia estética,
efeitos surpreendentes sobre emoção e razão que mobiliza processos conscientes e não-conscientes. Tradução nossa.
8
ampliação na capacidade de comunicação trazida pela arte se dá, porque por meio das diversas
modalidades artísticas evidenciam-se estados emocionais bastante diferentes e diversos daqueles
alcançados pelo uso da linguagem referencial,7 como é o caso da língua falada. Damásio (2009)
apresenta especialmente a atividade de tocar os tambores entre grupos de humanos primitivos,
como um recurso fundamental à concentração e organização da mente e à organização do grupo.
Em Ouroboros Biocíbrido, (um conjunto de oficinas que orientou a criação de uma
instalação a partir de experiências com paisagens sonoras, que atendeu ao convite para participação
na XI Bienal de Havana em Cuba, no ano de 2012), os exercícios de imersão em paisagens sonoras
enativas propiciavam o acoplamento estrutural e dinâmico dos corpos e remetiam à potência do som
para relevância da conexão sonora e corporal das pessoas envolvidas na atividade, em estados de
enação.8 A proposta de experiência estética naturalizada têm em Ouroboros Biocíbrido, bem como
nas outras obras que serão apresentadas no decorrer do texto, exemplos de engajamento estético
coletivo que se remetem ao posicionamento de Damásio (2009) ao afirmar que as atividades
musicais devem ter florescido juntamente, ou mesmo anteriormente às pictóricas, quando lembra a
ótima acústica das cavernas, como as do complexo de Lascaux.
Uma vez que se quer integrar a perspectiva tecnológica explicitamente à científica,
serão descritos procedimentos na direção de experiências artísticas denominadas por naturalizadas,
como se espera das paisagens sonoras enativas (PSE). Sua proposta amplia o escopo artístico da
paisagem sonora como concebida pela tradição musical até o século XX (conforme se observa na
leitura de H. Westerkamp (1994/2012) e de Schafer (1979)). As PSE transgridem as fronteiras da
música enquanto uma modalidade artística pura. Elas se inserem no contexto das poéticas híbridas e
vão ainda além, na medida em que serão descritas como possibilidades de experiências em zonas
biocíbridas 9.
7
Linguagem referencial é aquela que estabelece forte vínculo da representação linguística com o representado.
8
No sexto capítulo há espaço adequado para a descrição da produção de Ouroboros Biocíbrido pelo LART em Cuba,
2012.
9
Nos capítulos seis e sete há condições de lidar adequadamente com o conceito de zona biocíbrida
9
Figura 01: Homem em pé em sala do complexo de cavernas de Lascaux
Fonte: Disponível em: <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-63/questoes-estetico-espeleologicas/capela-sistinasubterranea> Acesso em 28 jun. 2013.
A convivência em espaços acusticamente privilegiados parece ter favorecido o
próprio surgimento da oralidade enquanto hábito comunicacional entre os primeiros grupos de
humanos. Nesse sentido, para além de um ou outro uso final, o controle do som produzido por si e
pelo grupo, desempenhou relevante papel na história da espécie humana, de acordo com os
neurocientistas citados. Segundo Damásio (2009) a prática artística produz um aumento no prazer e
bem estar e portanto, oferece um efeito de balanço bioquímico compensatório. Esse efeito ligado
diretamente a aspectos de regulação homeostática dos sistemas vivos tem estreita relação com as
possibilidades de organização e motivação individual e coletiva, oferecidas por modalidades
artísticas, como a música, conforme afirma o próprio autor.
Damásio (2009) aponta características específicas da relação entre a emergência da
arte na espécie humana e a própria evolução da espécie. Em primeiro lugar ele afirma que as
habilidades utilizadas para a produção de arte guardam importante relação com as ações de
sobrevivência da espécie. Habilidades como organizar sons produzidos sistematicamente pelo corpo
10
para atrair a caça são consideradas exemplo de ligação de habilidades artísticas com aquelas ligadas
à sobrevivência. Uma vez então satisfeitas as necessidades de sobrevivência, a arte passa a ser
valorizada como hábito que possibilita o bem estar. Cantar (ainda que um balbucio coletivo) em
volta da fogueira, abrigado na caverna com comida farta, pode ter sido um hábito amplamente
desenvolvido entre os primeiros humanos. Os laços interpessoais são fortalecidos conforme tais
hábitos se consolidam e isso é um grande fomento à formação de grupos sociais e posteriormente, à
formação de culturas.
Ao contemplar esse posicionamento ficam explícitos os dois aspectos que Damásio
(2009) demonstra como próprios da relação entre a emergência da arte e a evolução humana: a
melhoria na comunicação e o efeito de balanço compensatório. Um grupo com laços interpessoais
fortalecidos, com uma crescente noção de grupo, consegue melhores oportunidades de boa
comunicação e com isso ganha possibilidades de melhoria em sua qualidade de vida. Damásio
(2009) atribui ainda à prática artística o envolvimento em um ciclo virtuoso, o qual possibilita ao
ser humano, durante o decorrer de sua evolução, crescer qualitativa e quantitativamente em
habilidades psicomotoras, profundamente, a ponto de produzir um mundo próprio de hábitos,
procedimentos e significações ao qual se deu o nome de arte.
Por toda sua obra, o neurocientista A. Damásio tem um posicionamento bastante
relevante no contexto da ciência cognitiva contemporânea, sobretudo nos estudos de consciência,
emoção, percepção e cognição. O autor marcou posição entre diversos aspectos, por descrever os
processos racionais como sustentados por processos emocionais. Damásio (1998 e 2003) afirma
especificamente que as emoções precedem a razão e os sentimentos, e que elas não são privilégio
dos humanos ou sequer dos seres vivos com cérebro.
Há provas abundantes de que os organismos simples exibem reações emocionais. Basta
pensar no solitário paramécio, um organismo unicelular, todo feito de corpo, nada de
cérebro e menos ainda de mente, nadando rapidamente para evitar um perigo na piscina
natural de seu habitat. [...] isso nos mostra como a natureza sempre se preocupou em
proporcionar aos organismos vivos os meios para regularem e manterem a vida,
automaticamente, sem que seja necessária qualquer espécie de consciência, raciocínio ou
decisão. (DAMÁSIO, 2003, p. 48 e 49).
O neurocientista português vai bastante longe na afirmação que faz na citação referida. Desvincula
em um só lance a noção de emoção da noção de mente, de consciência e de raciocínio, mas não a
desliga da noção de corpo. É relevante retomar a perspectiva de Damásio (2002, 2003 e 2010) e que
11
embora tenha alguns caminhos explicativos distintos, coincide com a de Merleau-Ponty (1996) ao
entender que o corpo é o teatro da experiência e que a mente necessita do corpo.
As afirmações da citação acima são um forte apoio às perspectivas que a presente
tese tem ao colocar a noção de estética naturalizada. Por meio da descrição de Frog’s Signature nos
capítulos a seguir, espera-se exemplificar possibilidades artísticas que vinculam espécies distintas,
como os humanos, os anfíbios (biodiversidade em geral) e atores computacionais (modelos em
inteligência artificial e vida artificial), em um sistema artístico enativo que proporciona a
emergência de possibilidade de conduta estética.
Para Damásio (1998, 2002 e 2003) é por meio das emoções, enquanto dinâmica
complexa de padrões neuronais e de reações químicas com papéis de regulação e manutenção da
vida, que se formam e desenvolvem as funções cognitivas, tais como a percepção, a aprendizagem,
a memória, o raciocínio e a criatividade. Esse é também um dos profundos fundamentos teóricos
sobre os quais a presente pesquisa se constitui. Se mecanismos para o incremento da percepção,
aprendizagem e criatividade, entre os outros relacionados por Damásio (1998), são fortemente
influenciados pelos processos de regulação básica do organismo (como são as emoções); e se toda
enorme biodiversidade (entre o paramécio e o humano) possui tais processos regulatórios (as
emoções); então as condutas estéticas, conforme apresentadas por Couchot (2012) e descritas com o
devido cuidado no capítulo oito, são possíveis à toda espécie humana e talvez para além dela. Uma
conclusão fundamental para a perspectiva da estética naturalizada é a de que possuir conduta
estética, antes de ser privilégio desta ou daquela cultura, é privilégio bastante amplo de organismos
vivos, em diversos níveis de desenvolvimento. Mas também é importante ressaltar que conduta
estética enquanto um fundamento da possibilidade da experiência estética não é propriamente
aquilo que se denomina por arte, em sua dimensão estética ou poética.
Imagine um determinado grupo humano primitivo, muito antes da escrita, talvez
antes da fala, cantando, ou murmurando uma melodia simples, mas conhecida por todo o grupo,
pode-se pensar no fortalecimento dos laços interpessoais presentes na situação, nas possibilidades
simbólicas presentes. Embora não haja palavras, e talvez especificamente por conta disso, o
acontecimento, com sua força emocional simbólica, marca profundamente os hábitos do grupo a
ponto de configurar o tal efeito de compensação (balanço compensatório) descrito por Damásio
(2009). A repetição de tais comportamentos até a consolidação de hábitos potencializa os laços
12
afetivos e com isso a sensação de bem-estar, além de estabilizar o balanço compensatório.
Figura 02: Grupo em torno da fogueira
Fonte: Disponível em: <http://crazyasacoolfox.blogspot.com.br/2011/05/are-you-ready-for-summercampfires.html> Acesso em 29 jun. 2013.
Ao recorrer às experiências artísticas se alcança o que Changeux (2009) trata por
efeitos da arte sobre processos conscientes e não-conscientes. Uma vez que as memórias de uma
pessoa não são algo de acesso tão consciente assim, muito da atividade artística possibilita ligações,
relações que não estão à mão, ou à disposição da consciência. Quando Changeux (2009) afirma que
a arte envolve ambos os processos conscientes e não conscientes, parece estar de acordo com
posições como a de Damásio (2009), o qual localiza a arte como parte da formação da consciência
humana, e com a posição dos autores que serão apresentados na sequência, como W. Jaeger (2003)
e M. Heidegger (1979).
J. P. Changeux (2009) mostra a relação estreita entre o constante desenvolvimento do
ser humano e o desenvolvimento da arte. Ele aponta ao menos 5 (cinco) marcos, ou estágios em
direção à formação dos hábitos considerados como prática artística:
1) A criação de ferramentas pelo Homo habilis, há cerca de 2,5 milhões de anos atrás.
2) A descoberta da simetria. Nos instrumentos e ferramentas criados e utilizados pelo Homo erectus,
13
há cerca de 1,5 milhão de anos atrás, o autor destaca o cuidado com a estrutura simétrica da
construção.
3) O uso de simbolismos. Seu argumento trata da indicação de que os Homo heldelbergenses
utilizavam símbolos durante os funerais.
4) A arte tem eficácia estética que propicia a emergência de sentimentos e emoções, bem como seu
controle e manipulação.
5) A arte mobiliza estados conscientes e inconscientes.
De acordo com Changeux (2009) foi em torno de 100 mil anos atrás que o Homo
sapiens teve condições de produzir algo semelhante ao que hoje se considera como arte. Em outras
palavras, a partir da argumentação de Changeux (2009) e Damásio (2009), pode se considerar a arte
como um tipo produção humana sustentada sobre diversas habilidades de base, que se encontram
presentes em diferentes estágios anteriores de evolução.
Não cabe um maior refinamento da terminologia sobre conhecimento e ciência, por
conta dos objetivos dessa tese se tomará um como sinônimo do outro, porque o que se coloca é a
noção de ciência ou conhecimento como forma de se relacionar com o mundo. Dizemos que um
animal conhece algo, tem ciência de algo, quando apresenta um hábito, uma conduta própria para
um determinada situação. Nesse sentido o ser humano vem desenvolvendo seus conhecimentos
sobre o mundo em consonância com sua própria evolução.
Ao relacionar conhecimento e história da espécie humana encontra-se um paralelo
com a noção de conhecimento de H. Maturana. Embora existam premissas distintas, especialmente
no que tange à relação entre a formação da linguagem e da consciência, ou entre outras
características epistemológicas, e quiçá ontológicas, entre Maturana e Damásio, elas não são
suficientes para afastá-los de aproximações em outras teses. Entre as quais está a de que processos
mentais como a percepção e a cognição são eminentemente processos encarnados, corporificados e
situados em uma dinâmica que envolve certo mutualismo entre vivente e meio-ambiente. Sem
dúvidas essa aproximação deve muito à raiz espinoziana, enquanto alternativa ao cartesianismo,
compartilhada por ambos. Nas palavras de Humberto Maturana, (1997) o ser vivo em geral vive
para conhecer e conhece para viver. E embora todo ser vivo, para se manter necessite conhecer o
mundo que habita, a maneira como o ser humano o faz distingue-se muito da maneira de outros
animais. Desde que a espécie humana surgiu, vem transformando o meio-ambiente como nenhuma
14
outra nunca fez. Maturana (1997) entende que conhecer é algo do viver. Ele distingue o homem,
entre outros aspectos, por um tipo de hábito próprio dessa espécie, o linguajar, o viver na
linguagem. De maneira geral H. Maturana (1997, 1998) entende que o ser humano existe apenas
enquanto ser que vive na linguagem.
Porém, para Damásio (2002 e 2003) o uso da linguagem parece ser mais um recurso
do ser humano, do que propõe a definição de Maturana (1997 e 1998). Após o surgimento da
habilidade de linguagem, a capacidade cognitiva do ser humano (ou do tipo de animal pré-humano)
se ampliou muito, da mesma maneira como se ampliou também após cada salto tecnológico. Uma
vez que a linguagem configura-se como acarretadora de possibilidades cognitivas, também a arte
pode ser considerada assim, como afirmaram Damásio (2009) e Changeux (2009). Ocorre que há na
história humana uma associação bastante forte entre arte e linguagem, evidenciada principalmente a
partir do aparecimento da escrita. Se o domínio das técnicas de produção e controle do fogo foi uma
tecnologia que marcou muito os primórdios da humanidade, e se as tecnologias que proporcionaram
a agricultura foram fundamentais para a evolução humana, também foi enorme a importância da
tecnologia da escrita, desenvolvida pela humanidade há cerca de 4 mil anos atrás. Ela parece
possuir grande relevância na caracterização de condutas humanas em geral, especialmente daquelas
que lidavam com símbolos, especialmente e inclusive da arte.
Pode-se propor que a arte esteve ligada diretamente aos avanços do conhecimento
humano porque envolviam em suas práticas, procedimentos específicos sobre materiais
especificamente também selecionados no mundo. Lembre-se que o vocábulo técnica vem de uma
palavra grega que significa como se faz, ou conforme afirma Jaeger (2003, p. 23): [...] comunicação
de conhecimentos e aptidões profissionais [...]. Na literatura (Jaeger, 2003; Hauser, 1995; Vigotski,
2003a, 2003b) são evidentes e abundantes os laços entre arte, conhecimento (ciência) e tecnologia.
Tais laços reforçam-se ainda mais com o crescimento de modalidades artísticas como a literatura, a
poesia e mesmo a dramaturgia, que foram possíveis, ou potencializadas a partir das tecnologias de
escrita.
Além de servir para transmitir habilidades desenvolvidas por antepassados referentes
à técnicas de plantios e outros aspectos ligados diretamente à sobrevivência, a escrita também deu
suporte ao estabelecimento de sistemas de organização da vida social e comunicação bastante
sofisticados. E embora a arte tenha aparecido um tanto antes da escrita, com essa tecnologia
15
inaugurou-se uma nova era no relacionamento entre arte e conhecimento. Em poemas e outros
gêneros de diferentes povos da antigüidade, como entre os Hebreus, ou os Gregos, essa íntima
relação foi explicitada em textos considerados de suma importância para a expansão moral e
cultural. Em obras escritas da cultura desses dois povos, por exemplo, não é tarefa simples (e talvez
seja mesmo inadequado) separar o que é transmissão de conhecimento do que é expressão artística.
Para W. Jaeger, especificamente entre os gregos do período Arcaico não poderia haver saber fora da
beleza ou do prazer, portanto a arte era a melhor maneira de apresentar o conhecimento.
[...] a poesia tem vantagem sobre qualquer estudo intelectual e verdades racionais,
assim como sobre as meras experiências acidentais da vida do indivíduo. É mais
filosófica que a vida real [...], mas é ao mesmo tempo, pela concentração de sua
realidade, mais vital que o conhecimento filosófico. (JAEGER, 2003, p. 63)
Figura 03: Venus de Willendorf
Fonte: Disponível em: < https://en.wikipedia.org/wiki/Venus_of_Willendorf:> Acesso
em 29 jun. 2013.
16
De acordo com Jaeger (2003) o poeta (o artista) precede o filósofo na tradição do
desenvolvimento do conhecimento (ciência). A perspectiva de não distanciamento entre ética e
estética para o grego no início de sua cultura fez com que se fortalecesse ainda mais a relação da
arte com o conhecimento e suas decorrências sociais, políticas e econômicas. O papel do poeta na
formação da cultura grega é bem descrito por Jaeger (2003, p. 105): É característica pessoal do
poeta-profeta grego querer guiar o Homem transviado para o caminho correto por meio do
conhecimento mais profundo das conexões do mundo e da vida. Ao voltar o olhar para o passado
observa-se que por todo o período da Grécia Arcaica, até os pré-socráticos, a poesia teve papel
central na história de criação e transmissão do conhecimento. Cabe ressaltar o amplo alinhamento
entre arte e conhecimento científico, o qual guarda raízes profundas na própria evolução da espécie
humana. Quando se alcançou uma tecnologia que permitiu explicitamente uma série de habilidades,
- como o controle do fogo, como a escrita ou a fotografia, ou a computação digital, - foi possível
que arte, ciência e tecnologia se conjugassem de forma a propiciar períodos de grande evolução
humana.
É essa integração entre arte, ciência e tecnologia à qual se refere a presente etapa da
pesquisa. São ações humanas que colaboram entre si, com igual relevância e com possibilidade de
ganho equivalentes à todas as áreas por seus relacionamentos. Há diversos exemplos que serão
abordados no decorrer do texto, de trabalhos em ambientes colaborativos entre cientistas e artistas
visando ampliação e incremento em ambas as rotinas de ação. Para a ocasião entretanto, lembre-se
que é ao conhecimento mais profundo das conexões do mundo e da vida, que parece estar
orientando o trabalho da artista e pesquisadora Andréa Polli (2004), com visualização e sonifcação
de dados. Conforme se verá em espaço adequado de análise no capítulo quinto, a autora apresenta a
sonificação e visualização de dados como forma de ampliar a possibilidade de percepção e
entendimento de cientistas em seu trabalho de tomar decisões a partir de amostragens de dados. Em
diversas outras propostas a artista da Universidade do Novo México utiliza procedimentos artísticos
como recurso de grande relevância na constituição e aplicação do conhecimento científico e viceversa.
17
2.2 DESENVOLVIMENTO COMUM ENTRE ARTE CIÊNCIA E TECNOLOGIA
Ao perguntar pela essência da técnica, Heidegger (1979) acaba por se deparar com
uma pergunta sobre a verdade e em último caso, sobre a própria existência. O aprofundamento das
questões ontológicas, por sua vez o remete de volta às perspectivas fundadoras da cultura ocidental,
da Grécia pré-socrática. Para o filósofo alemão a maneira instrumental de conceber a tecnologia traz
no bojo um perigo extremo para a sociedade, e a arte configura-se em uma possibilidade de escapar
de tal perigo. É interessante notar a relação entre as colocações de Heidegger (1979) com a
afirmação de W. Jaeger (2003) sobre os aspectos da arte que a fazem importante ao desenrolar do
conhecimento porque ela seria mais vital que a filosofia e mais filosófica que a vida. Essa forma de
utilizar os dispositivos, os instrumentos, para o fazer artístico, é o que Heidegger enfatiza como
saída para o problema advindo das relações humanas com as tecnologias modernas e sua concepção
de mundo.
The threat to man does not come in the first instance from the potentially lethal
machines and apparatus of technology. [...] The rule of Enframing threatens man
with the possibility that it could be denied to him to enter into a more revealing and
hence to experience the call of primal truth. 10 (HEIDEGGER, 1979, p. 28).
Para o filósofo, a essência da técnica, aquilo que ele denomina por enquadramento (Enframing), ou
armação11, é o que representa um grande perigo na medida em que se toma um posicionamento que
ele denomina por instrumentalização. Segundo o autor a técnica é aquilo pelo qual o homem
conhece o mundo, pelo qual ele faz as coisas saírem do oculto. A isso Heidegger (1979) denomina
por enquadramento (Gestell), uma forma de entender e perceber o mundo. É de acordo com as
possibilidades técnicas e científicas que o ser humano descreve, entende e em último caso, vive e é
no mundo.
Heidegger (1979) refere-se ao homem da era moderna, sobretudo da época da Revolução
Industrial, como alguém que vive sob uma provocação constante e tende à prática de fazer sair do
10
A ameaça ao ser humano não vem em primeira instância do potencial letal das máquinas ou aparatos tecnológicos.
[...] A regra do enquadramento ameaça o ser humano com a possibilidade de que seja negado a ele algo mais revelador,
e, portanto, (seja negada também) a experiência da verdade primeira. Tradução nossa.
11
Gestell para Heidegger, traduzido por armação por Z. Loparic 1996/2012.
18
oculto. Faz isso especialmente por conta da perspectiva da natureza como uma enorme fonte de
armazenamento das potencialidades de produção frente às tecnologias modernas. Ele aponta para o
entendimento de uma natureza como trama de forças calculáveis de antemão. Esse é o
enquadramento próprio da modernidade que faz com que o filósofo alemão trate da relação entre
ciência e tecnologia.
No entanto, como pode a tecnologia proporcionar tal enquadramento da natureza, que
produza uma ciência própria, e ainda, essa mesma ciência ser o fundamento da criação da
tecnologia? O que o autor responde é que a tecnologia existe mesmo oculta, dependendo da relação
que o homem estabeleça com ela, dos usos que faça de tais e tais instrumentos. É interessante
retomar o início do texto no ponto em que Heidegger (1979) afirma que quando se está muito
envolvido, abandonado à essência da técnica, pode se ficar cego à tal essência. Esse é exatamente o
centro das ameaças apontadas por Heidegger. Na medida em que não se sabe, ou que se oculta o
enquadramento (Gestell) que se tem do mundo, sendo que a essência desse enquadramento é o
próprio fazer sair do oculto, o problema aparece. Ocultam-se as causas e o acesso a elas. Surge algo
que o autor chamará de irresponsabilidade como consequência desse comportamento de ocultar as
causas. A irresponsabilidade configura-se por uma maneira de agir que o filósofo denomina por
instrumental. Na citação do comentador Z. Loparic (1996) há uma importante referência a esse
respeito:
No artigo A pergunta pela técnica (1949), de importância capital para o nosso tema,
Heidegger submete à desconstrução explícita o conceito grego de techné, conceito
que em 1935 ainda ocupava o lugar de produção originária, de manifestação.
Heidegger reafirma o desligamento (operado em 1935) da pergunta pela técnica da
questão da instrumentalidade e do agir instrumental. O problema da técnica não é o
da instrumentalidade, nem mesmo a causalidade implicada pela instrumentalidade,
mas o modo de desocultamento, da verdade, do ser. (LOPARIC, 1996/2012, p. 4).
A crítica de Heidegger parece caminhar no sentido de condenar a perspectiva instrumentalizadora
da tecnologia não por si, mas por ocultar dimensões emotivas e envolvidas com a vontade e desejo
das pessoas, como se verá mais adiante na análise de Maturana (2001). Pois a visão
instrumentalizadora é que explica e descreve o mundo como armazém de recursos energéticos para
a produção. Segundo Loparic (1996), Heidegger (1979) referencia Jünger (1930) ao utilizar a noção
19
de mobilização total para falar da transformação da vida em energia potencial. Essa maneira de ver
e se relacionar com o meio-ambiente seria responsável pelo privilégio dos dados matemáticos antes
dos dados experienciais e vivenciais, como se os primeiros fossem os responsáveis pelos segundos e
não o contrário. Essa situação é o que Petitot et al (1999) tratam por lacuna explicativa a qual a
naturalização da fenomenologia pretende preencher.
Para Heidegger (1979) essa forma de noção instrumental da técnica não é exclusividade das
sociedades capitalistas, socialistas ou nazistas, mas é condição geral do mundo moderno. E essa
perspectiva acarreta dois problemas centrais: Primeiro, o homem passa a ser tratado por ele mesmo
como recurso, assim como ele trata toda a natureza. E segundo, o homem passa a se sentir senhor de
tudo e de toda a natureza e acaba excluindo tudo o que não é ele mesmo. A primeira ameaça tornouse realidade explícita no comunismo stalinista e pós-stalinista e mesmo no capitalismo de mercado
contemporâneo. A perspectiva de lidar com números e não com pessoas espalhou-se por todas as
áreas da ação humana. O segundo problema afeta o mundo contemporâneo diretamente também. A
pretensão de controlar tudo e todas as situações faz com que o homem venha antropomorfisando o
mundo, como se nada existisse fora do ser humano.
Exemplo dessa argumentação de Heidegger ([1949] 1979) são as críticas de G. Orwell em
sua novela 1984 - Nineteen Eighty-Four12, escrita no mesmo ano, 1949, que o ensaio filosófico
sobre tecnologia. Na trama de Orwell o torturador, O’Brien, propõe uma espécie de
antropocentrísmo como justificativa para o domínio total do indivíduo e sua escravização. Ele
afirma que fora do homem, da mente humana, não há nada, nada existe. Ao questionar a existência
do universo externo antes do homem, Winston (o personagem que está sendo torturado) tenta pela
última vez apresentar um argumento que mostre ao menos a relevância de um mundo fora do
homem, da mente humana, e portanto fora do controle do partido do Grande Irmão, mas é mais uma
vez vencido pelo argumento de O’Brien que pergunta se Winston já viu alguma vez os tais fósseis
existentes antes do homem. Como sua resposta é negativa, o torturador segue afirmando que isso
tudo (e toda a ciência) é invenção dos biólogos do século XIX (e dos cientistas em geral), e dessa
maneira, nada existe fora do homem, fora da mente humana, como se o mundo externo todo fosse
produto dela. A negação do mundo externo ao homem, de tudo o que não é ele próprio, é o referente
12
Sugestão de audição da peça “1984”. Exemplo audiovisual n. 01. DVD - 01. Disponível em: <https://vimeo.com/
enactivesoundscape> Acesso em 17 jun. 2013.
20
Orwelliano ao segundo perigo na relação do homem com a tecnologia, apontado por Heidegger
(1979).
No discurso de O’Brien sobre o novo mundo criado a partir das regras do Partido13 ele deixa
claro a redução de todas as emoções a apenas quatro básicas: [...] fear, rage, triumph and selfabsement.14 E fala também da extinção da arte e da ciência, porque não haverá mais necessidade de
decidir sobre o belo ou o feio. O Partido decidirá e o fará cada momento segundo sua necessidade
específica. Orwell enfatiza a relação da arte, da ciência e da ampla gama de emoções daí advindas,
com a liberdade que se esgota na relação instrumentalizadora com a tecnologia. Ao propor a
Newspeak15 o Partido do Big Brother 16 restringe o alcance da tecnologia da fala e da escrita e
restringe o próprio universo pretendido enquanto nova ordem de vida. Essa restrição permite a
permanência de paradoxos diversos explícitos naquele tipo de sociedade, como os slogans17 e a
ação do Partido e de seus membros. Em último caso, a restrição à língua falada e escrita, somada à
eliminação das expressões artísticas e científicas, comprometem efetivamente as próprias
características fundamentais do ser humano.
E é nesse sentido que se encaminha a reflexão heideggeriana, mostra as armadilhas
presentes nessa forma de se relacionar com a tecnologia. No entanto, o autor indica uma
possibilidade de salvação desses dois perigos apontados, e trata disso voltando aos fundamentos
daquilo que chama de enquadramento (Gestell). Ele lembra que a palavra techné denominava, na
tradição grega, desde as fine arts até toda a produção manual, e apresenta a arte como fazer humano
capaz de proporcionar uma relação não instrumentalizada com a tecnologia, uma relação que escape
aos perigos anunciados. Entre os últimos parágrafos do texto de 1979 de Heidegger, pode-se ler:
13
No livro “1984” o Partido é a grande instituição controladora da sociedade, em referência ao Partido Comunista
Inglês e no geral à direção stalinista da URSS.
14
[...] medo, raiva, triunfo e abnegação. Tradução nossa.
15
Esse é o nome dado à nova língua criada pelo Partido para a nova sociedade. A ideia central é que a dominação
consolida-se com o uso de uma linguagem apropriada.
16
Esse é o nome dado ao líder do Partido. Presença que observa a todos em todos os momentos.
17
Ja na página 4 do livro de Orwell (1949) pode-se ler os 3 slogans do Partido: “WAR IS PEACE; FREEDOM IS
SLAVERY; IGNORANCE IS STRENGTH”. “GUERRA É PAZ; LIBERDADE É ESCRAVIDÃO; IGNORÂNCIA É
FORÇA.” Tradução nossa.
21
Because the essence of technology is nothing technological, essential reflection upon
technology and decisive confrontation with it must happen in a realm that is, on the
one hand, akin to the essence of technology and, on the other, fundamentally
different from it. Such a realm is art. (HEIDEGGER, 1979 p. 35). 18
Ao propor a arte como saída para esses riscos da forma como se lida com a tecnologia, o autor
referencia os gregos pré-socráticos e mesmo os clássicos, mostrando como a tecnologia pode ser a
ação de fazer sair do oculto em diversos aspectos, tanto poéticos como estéticos, a partir de suas
aplicações no fazer artístico. Se retomarmos os argumentos de Changeux (2009) e Damásio (2009),
também estabelecem-se paralelos entre a atividade artística, a expressão de emoções, o
desenvolvimento tecnológico e as relações sociais.
Retome-se ainda o argumento de W. Jaeger (2003) que coincide com a citação acima e
afirma que a arte é um tipo de fazer humano privilegiado, que leva vantagem sobre outros fazeres
como a razão ou as ações do próprio dia-a-dia. Parece ser essa a vantagem que faz Heidegger
propô-la como saída para os riscos de uma relação instrumentalizadora entre homens e sua
tecnologia. E que também faz G. Orwell (1949) reconhecer a arte e a ciência como perigos para
aquela sociedade possível com aquele uso das tecnologias descritas na novela “1984”.
2.3 ADVENTO DA ARTE E TECNOCIÊNCIA
2.3.1 A noção de tecnociência
Ao propor a arte como caminho para fugir às ameaças de uma relação instrumentalizadora
com a tecnologia, Heidegger (1979) oferece subsídio à posição de Jaeger (2003) de conceber a arte
como meio mais vantajoso ao enriquecimento cognitivo. A partir da perspectiva de tais autores a
arte é tratada como fazer humano privilegiado no sentido de desenvolver conhecimento por oferecer
relações interessantes do homem com sua ciência e tecnologia. O filosofo Bruno Latour (1987) traz
o termo tecnociência como recurso para tratar dos aspectos mais amplos (sociais, econômicos,
políticos e culturais) envolvidos na relação entre tecnologia e ciência.
18
Como a essência da tecnologia não é nada tecnológico, a reflexão essencial na tecnologia e o confronto decisivo com
ela deve acontecer num plano que é, por um lado, semelhante ao da essência da tecnologia e, por outro lado,
fundamentalmente diferente dele. Tal plano é a arte. Tradução nossa.
22
(...) I will use the word technoscience from now on, to describe all the elements tied
to the scientific contents no matter how dirty, unexpected or foreign they seem, and
the expression ‘science and technology’ in quotation marks, to designate what is
kept of technoscience once all the trials of responsibility have been settled.
(LATOUR, 1987, p. 174)19
Nesse sentido o termo tecnociência tem sido utilizado para descrever as pesquisas levadas adiante
por meio do presente projeto. No escopo que se aborda esse conceito, remete-se à aspectos
contextuais envolvidos nas práticas da ciência, especialmente naqueles relacionados aos trazidos
pela arte, sobretudo a partir do posicionamento heideggeriano quanto à relação entre tecnologia e
arte. Propõe-se um caminho para entender a arte como atividade que se utiliza de ciência e
tecnologia, mas que tem os horizontes para além de tais atividades. O que por vezes permite até
abrir mão de muitos deles, ou por outras vezes utilizá-los com o foco para além do seu uso inicial
ou padrão.
O caso de músicos instrumentistas, como Thelonious Monk,20 que desenvolveu um modo
próprio de improvisação a partir de um uso controverso da técnica específica e tradicional, é um
exemplo dessa perspectiva artística para além da técnica. Há diversas obras dos mais variados
artistas nas quais nota-se que o foco está na experiência estética e não na experiência de
procedimentos tecnológicos. Os procedimentos tecnológicos, antigos e novíssimos, são
subordinados pelas intenções artísticas, mesmo que sempre as limitem e/ou permitam ampliações
(Maturana, 2001).
Não se trata de afirmar que a produção artística possa prescindir de procedimentos técnicos,
mas antes, de propor que não há possibilidade artística sem a utilização de procedimentos técnicos,
mais ou menos conscientemente. Lembre-se que Heidegger (1979) afirma que quanto menor a
consciência desses procedimentos, muitas vezes, mais se está entregue à eles. Em muito do mundo
19
Vou usar a palavra tecnociência a partir de agora, para descrever todos os elementos ligados aos conteúdos
científicos, não importa o quão sujos, inesperados ou estrangeiros pareçam, e a expressão "ciência e tecnologia" entre
aspas, para designar o que é mantido da tecnociência uma vez que todos os julgamentos de responsabilidade tiverem
sido liquidados. Tradução nossa.
20
Músico de Jazz estadunidense do século XX.
23
contemporâneo constata-se a situação de ausência de conhecimento e de total abandono às
tecnologias que suportam a vida em tantos aspectos. Mesmo no que diz respeito à linguagem, o
conhecimento apenas instrumental já é suficiente para que se desfrute algumas benesses desse
conjunto de equipamentos (bugigangas, ou gadgets) que as tecnologias oferecem cada vez a preços
mais baixos. No entanto, na medida em que se conheça com mais profundidade, que se saiba mais e
melhor dos motivos e maneiras em que as linguagens se manifestam, se poderá aproveitá-las muito
mais e em dimensões que por vezes desvirtuam os princípios originais.
Se a técnica passa a ser vista como desligada da ciência, acaba por desligar-se de sua
essência. Reforça-se seu caráter instrumental. Ao passo que se a técnica é entendida como suporte
para a própria ciência, e que ao mesmo tempo depende desta para se refazer, parece que se reforça
sua essência (de acordo com Heidegger) que é a de fazer sair do oculto, ou seja conhecer,
experienciar ciência. Daí faz sentido falar em tecnociência quando se pretende reforçar os aspectos
epistemológicos da tecnologia mesmo incluindo os aspectos instrumentais, mas indo além deles,
buscando a tal essência heideggeriana que configura-se como esse modo de fazer sair do oculto,
modo de fazer o mundo e de ser no mundo, em última análise. O termo tecnociência será utilizado
para tratar dessa condição específica de uma tecnologia que não é apenas uma aplicação de
conceitos científicos e também de uma ciência que não se trata apenas de elaboração de conceitos
metafísicos distantes da realidade vivida.
Durante as últimas décadas essa aproximação entre artistas cientistas e engenheiros tem sido
crescente. S. Wilson (2009) lembra que vem do Renascimento essa ênfase na relação entre os
fazeres do cientista e do artista. Isso também por conta de que o conceito de ciência ao qual se
remete nesse caso é exatamente aquele nascido no início da Idade Moderna. R. Malina21 também
tem nesse período um marco importante e apresenta a figura de Leonardo da Vinci como uma das
melhores imagens para a síntese entre artistas e cientistas. É na Idade Moderna que se forma a
noção de ciência moderna. De maneira geral o Renascimento é o início comum da ciência e da arte
modernas enquanto conjuntos de práticas humanas bem delimitadas e que vieram se transformando
até os dias de hoje.
21
Cf. <http://www.leonardo.info/> Acesso em: 30 jun. 2012.
24
2.3.2 Centros de arte e tecnociência
Centros avançados internacionais vêm se destacando nas últimas décadas no
aprofundamento da relação entre arte e tecnociência. Entre eles cabe lembrar trabalhos dos
diferentes grupos do Massachussets Institute of Technology - MIT, de universidades como a do
Novo México, ou ainda a Universidade de Toronto. Apenas como um dos grandes exemplos de
projetos científico-artísticos do MIT que tiveram uma enorme amplitude nas últimas três décadas
tome-se Brain Opera (1996), do professor Tod Machover22. Envolvendo interatividade de terceira
geração logo no início da world wide web23 comercial, esse projeto influenciou fortemente as
gerações seguintes de criações artísticas interativas e seus múltiplos caminhos de desenvolvimentos.
No Brasil, o Laboratório de Arte e Tecnociência - LART - UnB/Gama, fundado e dirigido
pela professora Dra. Diana Domingues, vem se configurando em um dos grupos que permite a
ampla colaboração entre pesquisas artísticas e tecnocientíficas, conforme se evidenciará nos
próximos capítulos. Historicamente, ressalte-se que há cerca de duas décadas funciona o Núcleo de
Informação e Comunicação Sonora da Universidade de Campinas - NICS - Unicamp 24, coordenado
pelo professor Dr. J. Manzolli, cuja produção científica e artística pode ser classificada como
precursora da tecnociência desenvolvida especificamente com práticas musicais.
Nos Estados Unidos encontra-se o MediaLab do MIT 25 que pode ser considerado um dos
mais relevantes centros avançados de convívio e trabalho profícuo entre artistas, engenheiros e
cientistas de diversas áreas. Segundo o sitio eletrônico citado, tal laboratório atua há um quarto de
século e conta atualmente com 26 grupos de pesquisa dirigidos por professores sêniores, em áreas
como computação afetiva, máquinas cognitivas, intuição digital, ecologia da informação, meioambientes sensíveis (responsives) e cultura de câmeras. No primeiro grupo da lista acima há um
22
trabalho de Tod Machover foi realizado na década de noventa sob forte influência do pensamento do professor
Marvin Minsky, que embora opere mais profundamente com o paradigma do processamento de informação
23
Rede mundial de computadores (www).
24
Cf. <http://www.nics.unicamp.br/> Acesso em: 30 jun. 2012.
25
Cf. <http://www.media.mit.edu/research/groups-projects>
25
projeto chamado Gesture Guitar 26 que oferece ao músico a possibilidade de processamento do sinal
por meio da captação e leitura de seus movimentos.
In this project, physical gestures, particularly those that involve movements of an
instrument in space, are mapped onto musical effects parameters. In the current
instantiation, ubiquitous mobile devices (e.g., iPhone or Wiimote) are used to link
gestural and haptic controls with outboard musical effects processors.27 (Sítio
eletrônico do MIT. Disponível em: <http://www.robmorrismusic.com/
GestureGuitar.html> Acesso em 29 jun. 2013.
Figura 04: Imagem de vídeos do projeto Gesture Guitar - MIT
Fonte: Disponível em: <http://www.robmorrismusic.com/GestureGuitar.html> Acesso em 29 jun. 2013.
26
Cf. <http://www.robmorrismusic.com/GestureGuitar.html>
27
Neste projeto, gestos físicos, particularmente aqueles que envolvem movimentos de um instrumento no espaço, são
mapeados em parâmetros de efeitos musicais. Na instanciação atual, os dispositivos móveis ubíquos (por exemplo,
iPhone ou Wiimote) são usados para ligar os controles gestuais e táteis com processadores de efeitos musicais externos.
Tradução nossa.
26
Figura 05: Imagem de vídeos do projeto Gesture Guitar
Fonte: Disponível em: <http://www.robmorrismusic.com/GestureGuitar.html> Acesso em 29 jun. 2013.
Nota-se nos últimos vinte anos um crescente incremento desse tipo de centro de pesquisa em
ambientes colaborativos (entre artistas e cientistas). No Brasil um dos exemplos mais antigos é sem
dúvidas o NICS28 - Unicamp. Um projeto de cerca de 15 anos atrás, o qual eu pude ter contato
durante meu mestrado, por ser co-orientado pelo professor J. Manzolli, foi o RoBoser 29. O projeto
teve início em 1997 em parceria com pesquisadores do Instituto de Neuroinformática de Zurich.
Um robô, Khepera30, equipado com sensores infravermelhos e rodas, localizava obstáculos em seu
percurso e tomava decisões sobre novas direções, de modo a continuar rodando, desviando dos
obstáculos. Tais decisões, tomadas de acordo com sua leitura do meio-ambiente eram utilizadas
também para criar e tocar música a partir de um algoritmo específico. RoBoser exibia um exemplo
de sonificação de dados. Nas palavras dos autores:
28
Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora - NICS - UNICAMP - Disponível em:< http://www.nics.unicamp.br
> Acesso em 29 jun. 2013.
29
Para informações vide o artigo no sítio: <http://www.ini.unizh.ch/~jmb/roboser.html> Acesso em 23 abr. 2012.
30
Para informações vide: <http://www.k-team.com/mobile-robotics-products/khepera-ii> Acesso em 23 abr. 2012.
27
RoBoser uses these components of the robot's experience of the world to compose an
evolving musical performance. For instance, the robot can sense light: it can choose
to approach the light sources or avoid them and this combination of sensation and
decision affects the composition. In order words, the music expresses the experience
of the robot as it moves around its environment. 31 (MANZOLLI and VERCHUERE,
1997, p.2)
Figura 06: Robô Khepera II
Fonte: Disponível em: < http://www.k-team.com/mobile-robotics-products/
khepera-ii> Acesso em 29 jun. 2013.
Figura 07: Divulgação do RoBoser
Fonte: Disponível em: < http://www.k-team.com/mobile-robotics-products/khepera-ii>
Acesso em 29 jun. 2013.
31
O RoBoser usa esses componentes da experiência do robô sobre o mundo para compor uma performance musical em
constante evolução. Por exemplo, o robô pode detectar luz: ele pode escolher aproximar-se das fontes de luz ou evitálas, e esta combinação de sensação e decisão afeta a composição. Em outras palavras, a música exprime a experiência
do robô que se move em seu ambiente. Tradução nossa.
28
Por meio de algoritmos específicos, envolvendo computação evolutiva e princípios
conexionistas,32 o robô reage, toma decisões de redirecionamento de seu curso, alterando o eixo que
controla suas rodas. O que torna o exemplo particularmente interessante é que por meio da
atividade de escolher o caminho por onde ele (o robô) anda, ele escolhe também padrões sonoromusicais que vai tocando enquanto faz seu caminho por meio do desvio dos obstáculos. Nesse
exemplo a colaboração entre neurocientistas, cientistas da computação e músicos, permitiu lidar
com conceitos como o de percepção/ação, para fazer emergir a conduta do robô e ao mesmo tempo
a música (espécie de sonificação de dados) que ele faz enquanto se relaciona com o meio.
O Laboratório de Pesquisa em Arte e Tecnociência da UnB/Gama (LART) configura-se hoje
um espaço que possibilita o entendimento da tecnologia em sua essência, para além de suas,
também presentes, características instrumentais. São criados e desenvolvidos no ambiente
colaborativo, projetos que ficam muito bem caracterizados como arte e tecnociência. Isso porque a
tecnologia não é apenas utilizada em sua forma estandardizada, não se busca apenas utilizar
tecnologia existente, mas experimentar novas possibilidades de técnicas suportadas por
possibilidades explicativas advindas dos estudos contemporâneos em fenomenologia, enacionismo
e ecologia, por exemplo. Nos últimos quatro anos o LART - UnB/Gama tem sido referência em tais
ambientes colaborativos de pesquisa multi e trans-disciplinar entre artes, engenharias diversas,
filosofia, entre outras áreas. No capítulo seis haverá espaço adequado para abordar as duas
produções artísticas realizadas em duas diferentes bienais de arte contemporâneas que o grupo
participou durante 2010 e 2011, por hora enunciamos apenas alguns de seus aspectos introdutórios.
Um dos trabalhos realizados pelo LART - UnB/Gama foi a instalação Biocybrid Latin
American Memorial, realizada em São Paulo para a exposição TransFronteiras Contemporâneas,
que foi um dos pólos da 29a. Bienal de Arte de São Paulo, e aconteceu no Memorial da América
Latina, na Galeria Marta Traba na cidade de São Paulo, durante os meses de setembro e outubro de
2010. Nessa ocasião a equipe do LART produziu uma instalação interativa utilizando recursos de
audio streaming em tempo real, de comunicação via rede social Twitter e inteligência artificial, para
escolha de amostras de eventos sonoros e imagens projetadas em diferentes espaços da sala de
exposição e fora dela, mais especificamente na rampa de entrada da galeria. A equipe de trabalho
32
Conexionismo refere-se à perspectiva da segunda geração de modelos de inteligência artificial, no contexto da ciência
cognitiva. No sexto capítulo, quando se apresentará a rede perceptron multicamadas, serão abordados aspectos mais
específicos para a caracterização do conexionismo adequado ao nível pretendido por essa tese.
29
contou com um músico, três artistas visuais e um cientista da computação, orientados pela
coordenadora do laboratório (professora Dra. Diana Domingues) e recebeu o importante apoio do
Jardim Botânico da Cidade de São Paulo. Tal variedade de áreas envolvidas ocorreu pela
complexidade da abrangência da instalação que propunha utilizar som em tempo real das nascentes
do rio Ipiranga, que ficam dentro do Jardim Botânico de São Paulo. Os interesses de cada área
específica, como a biologia, a computação e a arte, estavam conjugados na produção da obra. Não
era apenas o caso de simples aplicações de procedimentos padrões dentro dessas áreas, mas ao
contrário, o trabalho exigiu constante adaptação das tecnologias já existentes para atender aquela
proposta especificamente.
Figura 08: Gráfico 3D de movimento do bailarino em Ouroboros Biocíbrido
Fonte: Acervo LART-UnB/Gama.
Outra produção que demandou inventividade tanto na explicação conceitual do que se
estava propondo, quanto na elaboração dos meios necessários para a realização da obra, foi a
oficina para a 11na Bienal de La Habana - Cuba, 2012. Novamente, não foi o caso de apenas
aplicar tecnologias já existentes em áreas como a engenharia biomédica, como nas leituras de
movimento corporal, mas de adaptá-las às necessidades de medições em sistemas musculares em
30
atividade, bem como adequar as leituras e manipulações dos sinais elétricos tomados para os fins
específicos da nova atividade. Também não foi o caso de utilizar conceitos já prontos advindos das
áreas de música ou artes corporais, mas antes da expansão de tais conceitos para abarcar a reflexão
sobre um tipo de prática bastante distinta daqueles padrões da tradição ocidental da arte moderna.
Todas as reuniões de pré-produção envolviam muita discussão de ajuste conceitual e tecnológico, o
que mostra uma dinâmica distinta daquela que apenas aplica o que já existe e segue regras pré
deliberadas. Para a montagem da oficina os participantes exploraram e contribuiram com conceitos
próprios de cada área de conhecimento envolvida
Figura 09: Sensores bioafetivos (LART - UnB/Gama - MediaLab/MIT)
Fonte: Reengineering Life: Creative Technologies for the Expanded Sensorium (LART UnB/Gama e Camera Culture - MediaLab/MIT)
31
O LART - UnB/Gama conta hoje com uma importante parceria realizada com o grupo
Camera Culture - MediaLab/MIT33. Um sistema enativo afetivo está em desenvolvimento para o
projeto, que tem como coordenadores o professor Dr. Adson Ferreira da Rocha e a professora Dra.
Diana Domingues, e como American Research Leader34 o professor Ramesh Raskar do MediaLab/
MIT. O objetivo principal da parceria é a criação de módulos eletrônicos para a aquisição e
processamento de sinais fisiológicos para uma ampla gama de aplicações: saúde pública, arte, entre
diversos outros. Com a colaboração do Prof. Dr. Cristiano Miosso, o projeto está em execução nas
duas instituições citadas. No MediaLab/MIT integram-se ainda como pesquisadores visitantes a
professora. Dra. Suélia Rodrigues, que realiza seu pós-doutoramento e o doutorando Tiago Lucena,
que desenvolvem os sensores aplicando biomaterial (látex da Havea brasilienses), material
biocompativel empregado na criação de palmilhas com sensores e outros dispositivos com material
eletrônico a serem usados na orelha, peito e braço. Ainda em estudo, prevê-se uma primeira
aplicação para a criação de living maps, que informam sobre a relação acoplada entre corpo e
ambiente. Trata-se de entender o meio-ambiente pelos sinais dados pelo corpo numa proposta que
tem como base teórica a abordagem enacionista de Varela et al (1991, 2012) e Noë (2004). Testes
iniciais já comprovam a eficácia do sistema e a modularidade que permite a combinação de
diferentes sensores para os mais diversos usos.
O desenvolvimento de sensores enativos afetivos na parceria entre LART e MIT contribui
para o aperfeiçoamento de sensores humanos e de meio-ambiente, permitem estudos a partir das
relações ecológicas. O sensoriamento das relações enativas permite tanto a realização de obras de
arte como o avanço das técnicas em engenharia de captação e processamento de sinais por meio de
sonificação e visualização de dados. Na pesquisa a ser desenvolvida nos laboratórios do programa
de pós-graduação em engenharia biomédica da UnB espera-se propor alguns tipos de sensores que
possam ser dispostos em uma instalação interativa, denominadas bioma biocíbrido, pelo modo a
captar os movimentos dos participantes. Espera-se monitorar o comportamento sonoro e espacial
dos participantes em uma instalação com o experimento Frog’s Signature, de modo que tais dados
sejam a entrada para um sistema de vida artificial que irá modelar o meio-ambiente do habitat dos
anuros anfíbios e gerar respostas que sejam mostradas como visualização e sonificação de dados em
33
Cooperação Bilateral do LART MIT/CNPq/UnB, no Program MIT International Science and Technology Initiatives
com o Projeto: Reengineering Life: Creative Technologies for the Expanded Sensorium.
34
Pesquisador estadunidense líder. Tradução nossa.
32
projeções no espaço de interatividade/enatividade biocíbrida. Propõe-se que os sensores sejam
corporificados, que alcancem a ação conjunta, enação dos diferentes agentes participantes do
sistema. Apresenta-se a ação em duas etapas, uma que possa testar sensores em ambientes fechados
como uma C.A.V.E., na qual pode-se operar com quadrifonia sonora e de projeção visual, e pode-se
contar com sensores mais ligados a gestos menores no espaço, gestos mais relacionados a detalhes
de ações. E outra etapa em ambiente externo, que venha a oferecer condições de monitorar a
ocupação do espaço por diferentes corpos e que permita também encontrar dados relacionados à
velocidade e outras qualidades das movimentações.
Por conta da forma de trabalhar do LART - UnB/Gama não há o predomínio de uma área de
conhecimento sobre as outras durante o processo de criação e produção, porque todas têm igual
interesse em desenvolver aspectos científicos próprios e específicos, embora comuns. E isso se
remete à característica apontada por Heidegger (1979) como essência da tecnologia, o fazer sair do
oculto que é comum à toda busca e desenvolvimento de conhecimento. De uma forma bem explícita
a obra de arte, depende de ciência e tecnologia de maneira integrada, de modo que não prevalece
uma em detrimento da outra. Por mais que não haja explicitação da essência heideggeriana de
ciência e tecnologia, ou dizendo de outra forma, por mais que os aspectos instrumentais sejam
realçados na arte, a experiência artística está intimamente relacionada à possibilidades do tal fazer
sair do oculto.
33
3 ESPAÇO E CONSCIÊNCIA: DA ARTE MODERNA À CONTEMPORÂNEA
Na verdade, são poucos os que sabem da existência de um pequeno cérebro
em cada um dos dedos da mão, algures entre a falange, a falanginha e a
falangeta. Aquele outro órgão a que chamamos cérebro, esse com que viemos
ao mundo, esse que transportamos dentro do crânio e que nos transporta a
nós para que o transportemos a ele, nunca conseguiu produzir senão
intenções vagas, gerais, difusas, e sobretudo pouco variadas, acerca do que as
mãos e os dedos deverão fazer. Por exemplo, se ao cérebro da cabeça lhe
ocorreu a ideia de uma pintura, ou música, ou escultura, ou literatura, ou
boneco de barro, o que ele faz é manifestar o desejo e ficar depois à espera, a
ver o que acontece. (José Saramago - A Caverna)
3.1 O PITORESCO E O SUBLIME
É bastante relevante entender a perspectiva fenomenológica de Argan (2004) para
desenvolver a reflexão acerca de suas concepções sobre arte. Não há para ele um objeto com
existência independente da experiência que alguém tem desse mesmo objeto. Da mesma maneira
como não há um alguém existente independente de alguma experiência com algum tipo de objeto.
Essa concepção filosófica encontra correspondência nas concepções de diversos autores, entre os
quais, Maurice Merleau-Ponty (1964, 1989, 1996, 2000 e 2004) especialmente em seu trabalho de
recolocação da noção de sujeito, ou consciência. É interessante verificar que ao se posicionar a
favor de uma análise fenomenológica, Argan (1999 e 2004) caminha deliberadamente para longe
das noções cartesianas, suporte do senso comum e de muitos métodos a priori, para análise
artística. Argan (2004) coloca-se em defesa de métodos a posteriori com relação à experiência
artística e nesse sentido entende que o próprio sujeito se forma com a obra artística, de modo que a
obra depende desse sujeito, que por sua vez, depende também da obra. Para a fenomenologia de
Merleau-Ponty (1996) a experiência se faz nesse ciclo, e também nele se fazem a consciência e o
mundo, o eu e o não-eu.
Em diferentes momentos, Argan (2004) ressalta a passagem entre dois modos de produção
de mundo que ocorre durante a Idade Moderna. Os modos de produção industriais trazem consigo
muitas implicações na vida das pessoas habituadas a séculos de produção artesanal. Essas
mudanças, no entanto, não tiram o foco do problema entre indivíduo e coletividade, mas o recoloca
e o aprofunda frente às tecnologias do mundo industrial. Entre tais mudanças trazidas pelos modos
de produção industrial está uma ampla reconfiguração da forma de se relacionar com a natureza e
34
da forma de conceber a relação. Isso não ocorre apenas com as tecnologias oriundas da revolução
industrial, mas com toda a história das tecnologias humanas.
De acordo com Argan (2004) essa forma de conceber a relação com a natureza será
transformada na passagem entre os movimentos neoclássico, romântico e impressionista. Pode-se
entender que ela caminha de uma noção de espaço ideal, existente independente do percebedor e do
objeto percebido, como as noções de continente e conteúdo na descrição do espaço para Kant; em
direção à noção de espaço intimamente relacionado ao corpo que o percebe e o vive, conforme
entende Merleau-Ponty (2000, p.250): [...] o corpo é o mensurador do mundo [...] é um padrão das
coisas.
As relações que se apontam indicam paralelos no âmbito da economia, da filosofia e das
artes. Na medida em que o modo de produção industrial começa a moldar os modos de vida das
pessoas durante todo o século XVIII e XIX, também a maneira de descrever essas pessoas e seu
universo se distingue. Os pressupostos cartesianos, revistos por Kant, fragmentam-se conforme
aprofunda-se o século XIX. A noção cartesiana de sujeito torna-se cada vez mais difícil de se
colocar no âmbito da filosofia, até que a fenomenologia de Franz Brentano, no século XIX já
aponta para uma noção de intencionalidade diferente da cartesiana, com motivos e meios de
elaboração internos. Brentano (1995 [1847]) localiza a intencionalidade na direção da percepção
das coisas do mundo, o que abre espaço para a abordagem fenomenológica entender que o
significado não está pronto em um suposto objeto, ou que por outro lado, é pura elaboração de uma
mente que reside dentro de um corpo.
A possibilidade aberta por Brentano (1995) é uma raiz evidente na leitura de Argan (1999 e
2004). E é com o intuito de continuar a tradição fenomenologista que o presente texto propõe
relação com conceitos de Merleau-Ponty (1964, 1989, 1996, 2000 e 2004), Heidegger (1979) e mais
a frente Varela et al (1991), Maturana (1997; 1998; 2001), Maturana e Varela (2002) e Alva Noë.
(2004 e 2009). Quanto à relação com as artes, o que se busca ressaltar é um possível ponto em
comum entre Argan (1999 e 2004) e Merleau-Ponty (1989 e 2000) que abordam a transição na
concepção de espaço e de consciência descritas em obras impressionistas. Os dois autores oferecem
referências para essa mesma hipótese, a de que pintores impressionistas, mais especialmente
Cézanne, teriam desenvolvido em seu trabalho aspectos próprios do modo de entender o espaço em
volta de si, a natureza, e com isso de entender a própria consciência, o próprio eu.
35
Na perspectiva de Argan (2004) o classicismo presente no impressionismo tem relação
direta, portanto, com um tipo de busca sempre realizada pela arte (pelo fazer artístico, pela
experiência artística) em diversos momentos da história humana, de alcançar um modelo, um
cânone, uma unidade plena que, mesmo sendo una, admita o múltiplo. Essa busca caminha lado a
lado com a busca (na filosofia) por uma descrição adequada do indivíduo, dessa experiência de eu
que se dá sempre em meio a um mundo de outros. Na filosofia moderna a noção de sujeito
cartesiano dirigiu toda uma tradição de compreensão da relação com o espaço e portanto do
entendimento da natureza. Merleau-Ponty (1989 e 1996) aponta diretamente essa diferenciação na
perspectiva de compreensão e descrição do espaço como um paralelo da maneira de conceber o
sujeito e a obra de arte como experiências, e não como coisas com existências e significados
prontos e independentes uns dos outros.
Ao iniciar sua seção sobre as poéticas do pitoresco e do sublime, Argan (2004),
acompanhando Kant, parte da noção de belo como juízo – “belo romântico” como subjetivo,
característico, mutável; contraposto ao “belo clássico” como objetivo, universal e imutável.
(ARGAN, 2004, p. 17). A alternância entre os dois tipos de juízos de beleza parece conduzir toda a
reflexão do autor, muito embora nunca a esgote. Na apresentação que L. Mammi faz à edição
brasileira de Clássico anticlássico (Argan, 1999), há alguma pista para o melhor entendimento
dessa dialética:
A dialética entre clássico e anticlássico, […] é justamente dialética entre uma leitura
(clássica) do antigo, como modelo universal e atemporal e uma leitura (anticlássica)
do antigo como pluralidade de dados particulares que podem e devem ser
revitalizados numa prática contemporânea que os recrie, acrescentando-lhe […], o
sentido da antiguidade. (MAMMI, L. In: ARGAN, 1999, p. 10).
Para caracterizar a noção de clássico, como a constituição e o uso do referido modelo universal e
atemporal, é interessante retomar o teórico do século XVIII, J. J. Winckleman (2002 [1764]). Na
intenção de propor critérios de validação da arte, o autor opera na direção da construção de um
cânone que constitua-se tal critério. Entre os atributos que se apresentam como possíveis critérios
de validação, Winckleman (2002) localiza a unidade e a simplicidade como dois fundamentos
centrais: La unidad e la sencillez son las dos verdaderas fuentes de la beleza.35 (WINCKLEMAN,
2002, p. 127). Tais atributos são complementados com os adjetivos: proporção, harmonia e
35 A unidade
e a simplicidade são as duas verdadeiras fontes da beleza. Tradução nossa.
36
equilíbrio para caracterização do belo. É à caracterização do belo clássico, enquanto produção
ligada a formação do cânone como modelo universal, que Argan (1999) antepõe o conceito de
anticlássico, ou de belo romântico. Nesse sentido, de acordo Argan (2004), muito do que acontece
no romantismo é anticlássico por buscar a referência ao particular, ao característico, ao pitoresco,
mas também por expressar-se pela poética do sublime.
A poética Iluminista do “pitoresco” vê o indivíduo integrado em seu ambiente
natural, e a poética romântica do "sublime", o indivíduo que paga com a angústia e o
pavor da solidão a soberba do seu próprio isolamento; mas ambas as poéticas se
completam, e na sua contradição dialética refletem o grande problema da época, a
dificuldade de relação entre indivíduo e coletividade. (ARGAN, 2004, p. 20).
Esse problema ao qual se refere o autor, entre o indivíduo e a coletividade, é, no contexto da
filosofia da mente e ciência cognitiva, uma forma de colocar o próprio problema da mente, ou da
consciência. A definição desse eu que experimenta a obra, e a própria definição da obra como um
objeto, estão implícitas na expressão da relação entre o homem e o espaço em que ele vive. O
estudo da noção de consciência, ou a descrição dessa experiência de um eu, é ocupação da filosofia
já desde sua origem. Ocorre que Argan (2004) o relaciona diretamente com a forma expressar a
situação homem-natureza nas artes, sobretudo na pintura. E essa relação fica explícita quando
observa-se a história da filosofia entre os séculos XVIII e XX, no que diz respeito às descrições de
sujeito, ou consciência. O autor apresenta a época que segue a revolução industrial como própria de
uma crise profunda do entendimento da relação entre o ser humano e a natureza. Os novos hábitos
vindos com o advento da sociedade industrial, ou as novas possibilidades de produção artísticas
derivadas dos desenvolvimentos tecnológicos pós-revolução industrial, ampliam sobremaneira os
horizontes poéticos e estéticos, mas por outro lado, promovem o que Argan, retomando o filósofo E.
Husserl, denomina como crise da arte como ciência europeia (ARGAN, 2004, p. 507). Por conta
disso Argan localiza na dialética entre o indivíduo e o coletivo, aspectos da dinâmica da relação
entre homem e natureza expressas na pintura impressionista, sobretudo na obra de Cézanne.
37
3.2 EXPERIÊNCIA E REPRESENTAÇÃO DE ESPAÇO E CONSCIÊNCIA
3.2.1 O espaço no neoclassicismo
Com o advento da ciência moderna encaminha-se a construção de uma noção de espaço
como algo independente do objeto que o habita e do percebedor que o vivencia. A noção de espaço,
dito geométrico (Merleau-Ponty, 1989, 1996, 2004) passa pela construção da Dióptrica36 cartesiana
e alcança seu ápice na tentativa de Kant em traçar uma linha de demarcação rigorosa entre o
espaço enquanto forma da experiência externa e as coisas dadas nessa experiência. (MERLEAUPONTY, 1996, p. 327). Para Descartes e sua teoria da visão, de acordo com Merleau-Ponty (1996),
o visível é uma reconstrução a partir dos poderes da razão. Segundo Merleau-Ponty (1989), o
método cartesiano entende visão como o tato e com isso descaracteriza a ubiquidade trazida por ela,
que é o que permite ao percebedor certa ação a distância (MERLEAU-PONTY, 1989, p. 56). O
autor afirma que a dióptrica cartesiana é uma tentativa de exorcizar incertezas, ilusões e equívocos,
na descrição da visão, e portanto na descrição do que é o espaço. Tal espaço cartesiano é tomado
como absoluto e verdadeiro, existente antes de sua percepção. Pré-existente a outras existências,
pode portanto, ser medido, generalizável e manejável.
O espaço de Descartes é verdadeiro contra um pensamento submisso ao empírico, e
que não ousa construir. Havia primeiro que idealizar o espaço, conceber esse ser
perfeito no seu gênero, claro, manejável e homogêneo, […]. (MERLEAU-PONTY,
1989, p. 59).
Essa forma de conceber o espaço tem como correlato uma concepção de consciência como
algo existente independente de uma experiência específica, física e fisiológica. Na perspectiva
cartesiana, a mente, ou a consciência, habita o corpo e lhe dá vida e sentido. Possuindo natureza
distinta da corpórea, a consciência cartesiana desce até o corpo para controlar suas ações e atribuir
os significados delas. De acordo com Merleau-Ponty (1989), a maneira do método cartesiano
descrever a experiência é sempre como algo idealizado, preparado pela razão e portanto inteligível e
comum entre todos os que dividem tais características racionais.
36
Área de estudos da Física que aborda o fenômeno de refração da luz.
38
Um cartesiano não se vê no espelho: vê um manequim, um "exterior" do qual tem todas as
razões de pensar que os outros igualmente o vêem, mas que, nem para si mesmo nem para
eles, é uma carne. (MERLEAU-PONTY, 1989, p. 56).
Essa distância entre a experiência e a carne, referida pelo autor, é o resultado da mediação
obrigatória feita pela razão como elaboradora da realidade última, própria da abordagem cartesiana.
O que por sua vez acarreta na necessidade da postulação de um eu autônomo e independente do
mundo da carne e da experiência, que possa controlar as ações do corpo e do mundo físico que
envolve esse corpo.
Assim como Schafer (1997) diz que a música é a melhor forma de se conhecer a paisagem
sonora de uma época, também a produção em artes visuais, como a pintura, pode ser exemplo da
aplicação das concepções como as de espaço e sujeito. A seguir uma série de exemplos de obras de
autores desde o século XVIII até o XX ilustra a dinâmica de transformação de tais noções. A
concepção da constituição da representação do espaço e de sujeito na pintura neoclássica do século
XVIII/XIX, bem como o Impressionismo do século XIX/XX tem paralelos diretos com as
concepções nas citações de Merleau-Ponty (1989) feitas acima.
Ao abordar a obra de David do fim do século XVIII Argan (2004) mostra que a nítida
distinção entre o espaço como local para a habitação da personagem e de cada um dos objetos, é o
primeiro aspecto a se ressaltar. A nitidez do contorno não deixa dúvida sobre os limites precisos que
cada objeto ocupa na descrição da cena. O espaço é definido pela sóbria, quase esquemática
contraposição de horizontais e verticais. (ARGAN, 2004, p. 44). Há certa aspiração à natureza
como ela é. Mas como ela é enquanto esquema, idealização, enquanto preexistente à experiência. E
nesse sentido não há possibilidades de expressar o trágico, o drama, o aspecto particular e
característico daquele fato. Tratando da caracterização da ação de David, Argan (2004) escreve: (o
pintor) Não comenta, apresenta o fato; produz o testemunho mudo e irremovível das coisas.
(ARGAN, 2004, p. 43). O fato em questão não é decorrência de interpretação própria do pintor, é
antes significação da coisa presente naquele espaço e, nesse sentido, independe da vontade do
pintor ou do observador futuro. Encontramos aqui a própria definição de Merleau-Ponty para o
espaço cartesiano:
Razão tinha Descartes em liberar o espaço. Seu erro estava em erigi-lo num ser
inteiramente positivo, para além de todo ponto de vista, de toda latência, de toda
profundidade, sem nenhuma espessura verdadeira. (MERLEAU-PONTY, 1989: p. 59).
39
Figura 10: Jacques-Louis David: Marat assassiné, 1793
Fonte: Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/The_Death_of_Marat> Acesso em 29 jun. 2013.
40
Embora dura, a crítica de Merleau-Ponty é precisa e coloca em xeque a descrição de espaço
independente da experiência de um corpo que o perceba junto com outros corpos. Enquanto
ontologicamente independente o espaço em sua concepção neoclássica, conforme o descreve Argan
(2004, p. 50) ao analisar uma obra de Canova, mostra a passagem do sensualismo ao idealismo que
Kant realizou na filosofia, ou na literatura, Goethe e, na música, Beethoven. A descrição de ideal
transcendente marcou muito toda a perspectiva estética neoclássica e teve como consequências
reações em sentido contrário. A epopeia napoleônica, de acordo com Argan (2004, p. 228)
simboliza algo desse ideal e de sua frustração.
Para aproveitar o exemplo dado por Argan (2004) observe-se que, na transição que realiza
entre poéticas clássicas e anticlássicas (românticas), Beethoven referencia diretamente Napoleão e
indiretamente toda uma época de revoluções. A mudança de opinião quanto à dedicatória de sua
terceira sinfonia (A Heróica) à Napoleão, é um indício de diversas modificações realizadas pelo
compositor em sua obra. A terceira sinfonia é um marco importante para o fim do classicismo
musical, enquanto um modelo proposto por Mozart e Haydn (BURKHOLDER et al, 2010, p. 565).
De acordo com Burkholder (2010, p. 579) a terceira sinfonia é a primeira obra de Beethoven que
mostra sua nova abordagem musical. Se por uma série de fatores essa obra ainda não é romântica,
também não é mais clássica como foram as obras de Mozart e Haydn. Ela é muito mais complexa,
harmônica e contrapontisticamente, e nesse sentido exemplifica bem a poética do pitoresco.
Não há por parte de Beethoven uma abordagem técnica, impessoal, do material musical.
Não há mais, como se encontra em Haydn e Mozart, o rigor formal e o respeito pela forma antes de
qualquer intenção expressiva. Mas por outro lado nessa obra ainda não há a imposição da vontade
pessoal sobre o formato consagrado, como ocorre deliberadamente com o caso do Coral na nona
sinfonia, ou ainda com o caso dos três trombones na quinta (que inauguram a entrada definitiva do
naipe de metais na orquestra). O que se encontra nessa terceira sinfonia parece ser o ideal clássico
de transcendência ao qual se refere Argan (2004), que permite transpor as fórmulas fechadas dos
modelos neoclássicos, já mostrando algo das poéticas do pitoresco, na medida em que se permite o
direito da expressão individual, mas também de sublime, na medida em que deixa bem clara sua
adesão à forma sonata, por exemplo, como modelo universal e possibilitador do discurso. M u i t a s
das características utilizadas para descrição dessa obra musical de Beethoven fazem também
sentido na descrição da obra pictórica de Géricault, que se fará nos próximos parágrafos. Isso por
41
conta do momento de transição entre os dois movimentos artísticos que precederam o
impressionismo.
3.2.2 Rumo ao enacionismo e à ecologia
Ao tratar da produção de arte na sociedade europeia entre os anos de 1848 e 1875, E.
Hobsbawm (1996, p. 280) afirma que [...] few societies have been so convinced that they are in a
golden age of the creative arts.37 A partir de tamanha pretensão, não chega a surpreender a incursão
de tal sociedade por uma crise profunda subsequente. Nas ciências, o positivismo promoveu um
grande distanciamento entre ciência e vida cotidiana, o que foi combustível para o aprofundamento
de problemas sociais que levaram à distintas crises. As promessas de prosperidade não realizadas,
trazidas pelo capitalismo pós-revolução industrial, reforçaram a formação de uma cultura de classes
em conflito direto por poder e espaço. Hobsbawm (1987, p. 219) localiza no período entre o último
quarto do século XIX e a primeira guerra mundial uma crise vivida pela sociedade burguesa que
tem na história da arte dessa época uma de suas melhores ilustrações.
Os modos de produção industriais e todo o mundo pós-revolução industrial tiveram um
efeito amplo na cultura ocidental e duas das transformações centrais localizadas nesse contexto são:
a da noção de espaço, meio-ambiente, natureza; e da noção de consciência, de eu, de sujeito. No
contexto pós-industrial o ser humano passa a ter controle da natureza, ao menos certa parcela de
controle, que o faz muitas vezes crer no controle pleno. Ocorre que, no decorrer da vida, no dia a
dia, esse controle não é vivido como tal, como pleno controle das coisas em volta. E isso é motivo
de crise enquanto motivo certo de ansiedade e frustração (cf. Varela et al, 1991).
Ao contrapor o movimento neoclássico ao romantismo histórico, Argan afirma que:
O desejo de uma arte que não seja só religiosa mas que expresse o ethos religioso do povo
(os românticos, com efeito, falam de povo, não mais de sociedade) e restitua um
fundamento ético ao trabalho humano, que a indústria tende a mecanizar, leva à
revalorização da arquitetura gótica. […] Na arquitetura gótica a nova civilização industrial
vê não só um antecedente, mas a prova de uma “espiritualidade” que o tecnicismo moderno,
pelo menos em tese, não deveria negar e sim exaltar. (ARGAN, 2004, p. 29).
O autor relaciona a reação ao modo de produzir industrial com o componente gótico próprio do
romantismo. No contexto do fim da Idade Média as catedrais góticas representavam o
37
[...] poucas sociedades tiveram tão convencidas que chegaram a uma idade de ouro da criação artística. Tradução
nossa.
42
conhecimento de um novo mundo que estava por vir, no entanto, continuavam integradas de alguma
maneira com o velho mundo medieval. A possibilidade do não abandono da espiritualidade, como
queria a totalidade da proposta da ciência positivista, foi um caminho popularizador para o
romantismo.
Há portanto, de um só golpe, uma reviravolta na maneira de se descrever e conceber o
espaço, o sujeito e a relação entre eles. Merleau-Ponty referindo-se às concepções de natureza
próprias de autores românticos afirma que:
Para Schelling, […] toda coisa é Eu. Daí o papel do mundo percebido como ambiente de
experiência em que não há projeção da consciência sobre todas as coisas, mas participação
de minha própria vida em todas as coisas, e reciprocamente. (MERLEAU-PONTY, 2000, p.
64).
A concepção da natureza, e portanto do espaço, é completamente diferente da proposta por
Descartes, ou pela geometria euclidiana, que entende o espaço como preexistente, como existente
independente daquilo que o habita e daquele que o percebe. Parece que as proposições românticas
vão de encontro àquelas neoclássicas herdadas do Idealismo que por sua vez, eram recolocações do
modelo cartesiano.
Nesse sentido o belo romântico se coloca não como um ideal de natureza universal
imutável, conforme prometido pelo iluminismo, como outrora foi o belo clássico, mas como uma
beleza característica, peculiar, única, mutável a cada momento. Esse espaço, que é tomado pelas
coisas, e que Schelling a sua maneira, segundo Merleau-Ponty (2000), já aponta como espaço da
experiência, espaço da ação humana, pode ser encontrado nas descrições de Argan (2004) de obras
de autores do romantismo e mesmo do que ele chama de pré-romantismo como Goya. Ao tratar de
Os fuzilamentos, Argan (2004) nos fala de um quadro realista.
Porém há que se entender que se trata de um realismo oposto àquele de David pintando a
morte de Marat. Segundo Argan (2004, p. 42) a natureza e mesmo a história, não encontram espaço
na pintura dita desesperada de Goya. De fato, não se observa no referido quadro muito mais do que
o espaço das ações das personagens. No máximo é possível perceber que encontram-se fora dos
limites da cidade. Também pode-se observar que não há objetos além daqueles ligados à ação das
personagens, e a separação, ou a delimitação, entre tais objetos é bem distinta daquela realizada na
obra citada de David. Encontra-se nesse contexto da pintura romântica (ou pré-romântica) de Goya
43
a relação com a natureza e com o espaço caracterizada por Schelling, na citação anterior de
Merleau-Ponty. Não há espaço para além da ação das personagens, ao contrário, é a partir de sua
situação que o espaço é concebido. É por conta de se realizar ali um fuzilamento que as
personagens encontram-se fora da cidade, atrás de uma pedra grande que serve de local adequado
para que tal evento possa acontecer com a devida segurança.
Figura 11: F. de Goya, Os fuzilamentos de três de maio, 1814
Fonte: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Três_de_Maio_de_1808_em_Madrid> Acesso em 29 jun. 2013.
Argan (2004, p. 42) também ressalta a oposição entre Goya e David, quando este último
apresenta seu Marat como uma estátua, e os objetos todos detalhadamente descritos em seus lugares
específicos. De acordo com o autor, a pintura de Goya não nos prende em seus detalhes descritivos,
mas quer:
44
[…] apresentar uma realidade que não é eterna, que, pelo contrário, queremos que passe,
uma imagem que cobrimos os olhos para não ver. E uma imagem que traz em si o seu prazo
de vencimento; em um instante, será ainda mais desesperadora. Goya é romântico também
por essa ligação da imagem à transitoriedade, à brevidade do tempo […]. (ARGAN, 2004,
p. 42).
Nesse sentido o autor apresenta Goya como antítese de David. Este segundo mostra um momento
congelado, sob o qual nada mais se pode fazer, a não ser observar com calma cada detalhe deixado
ali naquele instante eterno em um espaço que não se incomoda, não se modifica com a morte ou a
vida da personagem; o outro mostra o último momento de um condenado ao fuzilamento. Também
não há mais o que fazer, porém agora tudo parece acontecer muito rápido. Como denota o próprio
Argan (2004), mais de um elemento comprova a certeza de que a morte está logo ali, no próximo
segundo: os corpos ensanguentados caídos ao lado, os fuzileiros a postos, as expressões
desesperadas de pessoas cobrindo o rosto para não ver a cena fatal que se seguirá.
Ao mesmo tempo em que a referida obra de Goya não possibilita outro espaço além daquele
diretamente referenciado pelas ações das personagens, também a consciência que se forma com
aquela situação parece ser repartida entre o observador e as personagens. Nessa obra, ao contrário
do que ocorre na obra de David, há um ponto de vista específico do observador, algo como se o
observador estivesse na cena, como se tomasse sua posição. Também ao contrário do que acontece
no quadro da morte de Marat, no quadro de Goya tudo é drama: a escolha das cores, o
posicionamento, a luz, a feição das personagens. Muito da dimensão dramática que não encontrava
possibilidades na obra neoclássica, tem na obra de Goya, um papel central. O espaço não é mais
homogêneo e geométrico com as coisas ocupando seus lugares exatos com relação à luz. Mas ao
olhar o quadro do pintor espanhol há um certo embaralhamento na disposição das pessoas, parece
que ocupam lugares impossíveis antes de estarem neles. Os fuziladores, embora dispostos
fixamente, estão amontoados, dispostos quase que em uma mesma massa. Também estão dessa
forma os mortos e os desesperados que compõem o resto da cena, apenas parte do corpo da
personagem central se destaca, em seu último e desesperado gesto.
Dois outros pintores são referenciados por Argan (2004) e contribuem para o exame das
características da relação com espaço e o tipo de descrição de consciência que aparece nesse
momento histórico da segunda metade do século XIX, são eles, T. Géricault e E. Delacroix. O autor
localiza o que seria o motivo dominante de toda a poética de Géricault na energia, o impulso
interior, a fúria que não se concretiza numa ação definida, histórica. (ARGAN, 2004, p. 53). A esse
45
motivo dominante Argan (2004) acrescenta ainda dois outros motivos colaterais, a loucura e a
morte. O primeiro como dispersão final da energia acumulada por não se realizar em fatos
históricos e o segundo como a interrupção brusca do fluxo de energia. Segundo Argan (2004) os
dois motivos colaterais foram então transmitidos da pintura de Géricault à de Delacroix.
Figura 12: T. Géricault A jangada da Medusa, 1919
Fonte: Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/File:Theodore_Gericault_Raft_of_the_Medusa-1.jpg> Acesso em
29 jun. 2013.
Na análise de A jangada da Medusa, Argan (2004, p. 53) fala sobre uma subversão realizada
pelo pintor quanto à própria concepção de história. De certa maneira ao subverter o que a estrutura
clássica propunha para o quadro histórico, Argan (2004) toma para comparação a obra O juramento
dos Horácios de David, Géricault em sua Jangada subverte também certa positividade da história e
com isso caracteriza a frustração e a angústia consequente. Na obra de Géricault já não há nem mais
o espaço da ação, apenas do desespero. O entrelaçamento dos corpos, quase que num único
amálgama dinâmico, parece propor também uma única consciência entre todos os navegantes/
náufragos da jangada. A própria opção pela monocromia possibilita o entendimento de que tudo é
46
composto da mesma substância (cor) inicial. Tais características marcam a concepção de relação
entre o eu e a natureza exatamente como afirma Schelling, em citação de Merleau-Ponty (2000) nos
parágrafos anteriores.
Mas ainda há um componente clássico no quadro de Géricault, como observa Argan (2004,
p. 53): As figuras ainda são as mesmas, heróicas, da clássica pintura de história [...]. Tal
componente indica também esse momento de transição entre as duas concepções de espaço e
consciência. Embora o espaço já esteja apresentado como algo dependente da ação, ou do drama
vivido pelas personagens que o habitam, tais personagens, ainda são entendidas como sujeitos
ideais, existentes independentemente do mundo em volta. Nesse aspecto em especial há uma
ampliação da tragédia, segundo Argan (2004):
A humanidade que é desfigurada por um fato adverso, um acontecimento mais forte do que
ela, precipitada nesse mar tempestuoso, é ainda uma humanidade grandiosa, histórica e
ideal – por isso sua derrota é mais trágica. (ARGAN, 2004, p. 53).
Ao menos no que diz respeito a representação das figuras individuais ainda há algum vestígio da
grandiosidade humana de outrora. No referido quadro observa-se entre os navegantes um
personagem cujas feições de rosto, cabelo e tronco, referenciam diretamente a representação de
deuses gregos. Eis um caso da grandiosidade histórica e ideal apontada na citação.
Essa descrição das personagens, feita de modo distinto à de Goya, por exemplo, indica uma
diferença na concepção de consciência. Se por um lado Géricault toma o indivíduo como sujeito de
acordo com as postulações cartesianas, por outro, parece saber também da sua impossibilidade. As
feições de morte e desolação nos rostos das personagens representadas como os tais sujeitos
idealizados, indicam o conhecimento da frustração desse projeto de subjetividade. Junto com o
naufrágio do sonho napoleônico, e de certa forma com os primeiros fracassos da nova sociedade
industrial, essa noção de sujeito (cartesiano) está se desfazendo, naufragando também. A noção de
consciência encontra uma analogia direta na própria representação do espaço, o mar instável, as
ondas e o vento, retratam o tumulto e a angústia de não saber mais, ou de não ter mais a ilusão de
saber, quem é esse eu que vive nesse espaço. Na medida em que esse eu não é mais aquele sujeito
metafísico, independente das condições em torno de si, parece perder-se no espaço em volta, parece
47
perder sua própria identidade na identidade da natureza, que por sua vez não é algo aprazível, mas
ao contrário, fonte de ansiedade (VARELA et al, 1991), frustração e morte.
Tais são as características de um naturalismo romântico de Géricault relatado por Argan: O
realismo de Géricault, é justamente a derrota do ideal, a inutilidade e a negatividade da história, a
hostilidade entre homem e natureza, a ameaça da morte nas ações da vida. (ARGAN, 2004, p. 53).
A relação com a natureza como algo a ser dominado caminha lado a lado da frustração por nunca
conseguir essa dominação. O contexto do final do império napoleônico intensifica-se com o cenário
dos primeiros grandes impérios capitalistas e a acensão e estabelecimento de uma burguesia de
classe média. No entanto o estabelecimento carece de estabilidade, ao contrário, é conflitante e
dinâmico.
De acordo com Argan (2004), E. Delacroix trata a própria história como um drama. E na
sequência da análise da Jangada de Géricault, o autor localiza no naturalismo um vínculo entre esse
pintor e Delacroix, e também tece relações de semelhanças e diferenças entre os dois pintores:
Como na Jangada, o plano de disposição é instável [...] Como na Jangada as figuras
formam uma massa saliente que culmina numa pessoa que agita algo. Como na Jangada
em primeiro plano estão os mortos revirados […] Coincidem até mesmo alguns detalhes
brutalmente realistas [...]. Igual ainda é o modo de sustentar e ressaltar o gesto culminante
[...]. (ARGAN, 2004, p. 56).
Embora o quadro A liberdade guiando o povo, de Delacroix, apresente (comente e opine sobre) uma
situação em terra firme, o drama e a tragédia não são menores, parece que as pessoas caminham
sobre cadáveres. Também o espaço é completamente delimitado e mesmo criado a partir da ação
dramática que as personagens desenvolvem. As referências a um lugar são acanhadamente dispostas
na região direita central do quadro. Da mesma maneira como na obra de Géricault, Delacroix não se
preocupa em mostrar o local onde os fatos se desenrolam. No restante da pintura o que se vê é o
amálgama da multidão que vem mesmo por cima dos mortos.
Como salienta Argan (2004, p. 56), nas duas obras o amalgama humano culmina em uma
pessoa que, num plano acima da massa, sustenta (ou agita) algo. Também a noção de consciência
encontrada nas duas obras, parece coincidir no que se refere à sua constituição coletiva e repartida
entre as personagens em suas atitudes individuais e coletivas.
48
Figura 13: E. Delacroix A liberdade guiando o povo, 1830
Fonte: Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Liberdade_Guiando_o_Povo> Acesso em 29 jun. 2013.
Por mais diferentes que sejam como pessoas, - temos em pé ali no meio do quadro uma mulher,
uma criança e dois homens – apesar de três tipos bem distintos, por conta de suas ações sabemos
que eles repartem o mesmo ideal, ainda que naquela situação extrema. A própria bandeira das três
cores os une, os faz repartir além do espaço, também uma consciência comum, a da formação de
uma nova nação, uma nova ordem, ao menos. Trata-se do próprio espaço das ações intencionais
repartido pelas personagens. A perspectiva de traçar uma comunhão por meio das ações coletivas
(enação) faz com que essas obras, desde Os fuzilamento de Goya, tornem-se precursores da
concepção enacionista em arte, no que diz respeito às noções de espaço e consciência.
49
As semelhanças mostradas entre esses dois pintores exemplificam os dois motivos colaterais
que Argan (2004) afirma terem sido transmitidos de um para outro. A loucura e a morte são motivos
comuns às duas obras. Na pintura de Delacroix tanto a loucura, de lutar mesmo por cima dos
mortos, ou de ser liderado por uma mulher, são o centro da experiência. Porém, além das
semelhanças, Argan (2004) chama a atenção também para diferenças entre as duas obras. Tais
diferenças são relevantes na medida em que se quer explicitar a dinâmica da concepção de espaço e
consciência que podem ser descritas nas obras analisadas.
A primeira diferença destacada por Argan (2004) entre as duas obras em questão é a
inversão do esquema compositivo. Segundo o autor, Delacroix inverte [...] a direção do movimento
dos volumes, que na “Jangada” vai de frente para o fundo e na “Liberdade” avança, lança-se para
o espectador [...]. (ARGAN, 2004, p. 56). Essa modificação trata diretamente da relação com o
espaço, enquanto o primeiro pintor propõe o abandono, o distanciamento e a direção ao isolamento,
o outro busca o encontro, ainda que conflituoso, dramático e trágico. Parece mesmo que se encontra
no segundo quadro muito mais a busca pela construção de um novo mundo, de um novo espaço e
um novo sujeito, por mais difícil que isso seja. Enquanto que na obra de Géricault só se encontra
abandono, desolação e a decadência de um mundo que não é mais, e de noções que não mais se
sustentam. Nesse sentido, ainda observa-se que na obra de Géricault a natureza conspira pela morte
das personagens. Note-se a imensidão das ondas que encontrarão a jangada em farrapos. Já na obra
de Delacroix, por mais morte que se retrate, a natureza veste as cores da nova bandeira, é receptiva,
participará da nova ordem.
Pode se tomar os trabalhos indicados como que referenciando dois momentos distintos do
próprio romantismo. Géricault apresenta a dor e angústia do final de uma era (clássica), o desespero
de não saber pra onde se vai, para onde vai aquela jangada que se distancia do observador.
Delacroix, ao contrário propõe um movimento em outra direção, em direção ao observador. As
posturas possíveis ao espectador são bem distintas. Na primeira cabe apenas uma posição
contemplativa. A jangada afasta-se, leva seus mortos, vai para seu destino trágico e fatal. Enquanto
que na postura que a obra de Delacroix oferece, o espectador tem a impressão de ter de tomar
partido imediatamente, as personagens caminham em sua direção.
Também há diferenças e semelhanças quanto ao uso de cores nas duas obras. Uma opta pela
monocromia enquanto a outra distribui três cores por toda a pintura e permite remeter-se a unidade
50
na diversidade. Em diferentes detalhes como no céu, na fumaça ou nuvens, na roupa de algumas
pessoas, nas bandeiras, estão o azul o branco e o vermelho. Variedade que compõe o ideal de
unidade nascente naquele momento. Variedade que é observada também na descrição mais exata
das figuras no plano central do quadro de Delacroix. Elas destacam-se do amalgama, não por uma
personalidade própria, porque são gente do povo, mas porque demostram a identidade múltipla
dessa massa, que pretende transformar-se em nação. Embora haja referencias diretas à morte e
loucura, como motivos da poética, a obra de Delacroix direciona sua energia ao observador, pede
seu posicionamento, não se afasta dele, como faz a jangada de Géricault. Esse quadro de Delacroix,
segundo a leitura de Argan (2004), propõe que haja uma nova possibilidade para a noção de
consciência. Se a bandeira tricolor consegue alguma unidade mantendo a diversidade, isso
representa um encaminhamento ao problema proposto para a explicação da consciência como
unidade e ao mesmo tempo como algo que depende do mundo em volta, da multiplicidade.
3.2.3 Impressionismo, ecologia e fenomenologia
Se as noções de espaço e de consciência já não são mais tomadas na pintura romântica como
eram na neoclássica, pode-se dizer que o impressionismo vai então aprofundar e definir ainda mais
como distintas tais noções, com relação a como eram entendidas pelo cartesianismo. A partir do
aprofundamento de abordagens realistas, mas de realidades (menos solipsistas) que se façam junto
com o fazer-se da consciência (do eu), o impressionismo possibilita descrever as noções de espaço e
sujeito nos termos da fenomenologia. A abordagem direta à realidade, sem mediação ou sem
qualquer convenção prévia para a percepção, foi a base do programa anunciado por G. Courbet
desde 1847, segundo Argan (2004, p. 75). A própria ideia de realismo foi bastante transformada a
partir do advento da fotografia. [...] um dos móveis da reformulação pictórica foi a necessidade de
redefinir sua essência e finalidades frente ao novo instrumento de apreensão mecânica da
realidade. (ARGAN, 2004, p. 75). Tratando de Manet, Argan também aponta outra característica
que será tomada pelos pintores impressionistas, o autor nos diz que esse pintor propõe libertar a
percepção de qualquer preconceito ou convencionalismo, para manifestá-la em sua plenitude de
ação cognitiva (ARGAN, 2004, p. 75). O princípio presente na afirmativa acima é o mesmo
princípio da fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty (1996) e o mesmo da ecologia de
Gibson (1966 e 1979) como se verá nos próximos capítulos. A ideia de que a apreensão mecânica
51
da realidade não equivale à experiência viva dessa mesma realidade, motivará a pesquisa
impressionista, bem como possibilitará as relações com a fenomenologia.
Na passagem do romantismo ao impressionismo, o realismo tem papel de destaque. Argan
(2004) trata de duas maneiras de descrever esse realismo de transição entre romantismo e
impressionismo. Para ele:
Courbet realiza uma obra de ruptura: destruindo todas as concepções a priori da
realidade, defendendo a necessidade do confronto direto e sem preconceitos do real
com todas as suas contradições, ele coloca as premissas éticas sem as quais a
pesquisa cognitiva de Manet e dos impressionistas não teria sido possível. (ARGAN,
2004, p. 94).
O realismo de Courbet, segundo Argan ao analisar As moças à margem do Sena, está mais
interessado em apresentar as atmosferas e climas do que detalhar exatamente e matematicamente o
que é visto. Não há uma preocupação com a perspectiva na construção do espaço, no sentido de que
esta condicione o posicionamento dos elementos espaciais (observe-se especialmente a
representação da distância entre as duas personagens). Há muito mais a intenção da descrição de
detalhes que lhe interessam do que a imposição de formas e cálculos pré determinados. Há um
equivalente de tal atitude no uso do coral no último movimento da nona sinfonia de L. van
Beethoven (1824), ou ainda no tratamento vocal que impõe aos instrumentos solistas nesse mesmo
movimento nessa mesma obra.
A outra proposição do realismo abordada por Argan (2004) é referente a Manet, o autor
afirma que ele aceita a proposta de Courbet, mas com reservas.
Manet e os impressionistas tentarão fixar a autenticidade do real na absoluta pureza da
sensação visual, inaugurarão assim, toda uma nova pesquisa baseada na percepção.
(ARGAN, 2004, p. 94).
O tipo de beleza buscado nesse momento de realismo pré-impressionista não pode ser caracterizado
adequadamente pelo ideal clássico, no sentido de que não entende-se a natureza como modelo ideal,
único e imutável. Ao contrário disso, de acordo com Argan (2004), Courbet busca a descrição do
espaço perceptível daquele momento, como se a existência do espaço natural estivesse subordinada
ao fato que se quer mostrar. Busca-se uma verdade perceptiva além dos esquemas preconcebidos de
proporção, harmonia e mesmo beleza, trata-se essa carga a priori como mentira e ilusão. Argan
52
(2004) descreve o realismo de Courbet como moral, antes de estético: [...] não culto e amor, devota
imitação, mas pura e simples constatação do verdadeiro. (ARGAN 2004, p. 92). Isso se caracteriza
como um antecessor direto do entendimento estético dos conceitos da teoria ecológica da percepção
de Gibson (1966 e 1979).
Figura 14: G. Courbet As moças à margem do Sena, 1857
Fonte: Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Gustave_Courbet_027.jpg?uselang=pt> Acesso em 29
jun. 2013.
Especificamente nesse último aspecto citado no parágrafo anterior parecem coincidir as
pretensões de Courbet e Manet, que também buscava pintar o que se vê. No entanto os dois pintores
distanciam-se quando para o segundo interessa menos retratar as pessoas e usar a pintura como
crônica de seu tempo (ARGAN, 2004, p. 94). Essa abordagem de pintar o que se vê envolve o
53
artista, e consequentemente todo o movimento impressionista que se seguirá, na investigação sobre
o que é então ver. O grande desenvolvimento da física óptica durante os séculos XVII e XVIII e da
fisiologia, nos séculos XVIII e XIX, dão condições de aprofundar a busca sobre a explicação da
atividade perceptiva visual.
Há também que se notar na obra de ambos, Courbet e Manet, certo distanciamento das
posições românticas. De acordo com o que se leu de Argan (2004) nos parágrafos acima, pode-se
entender que esse distanciamento ocorre por conta de que os dois pintores buscam superar essas
poéticas do clássico e do romântico: enquanto poéticas destinadas a mediar, condicionar e orientar
a relação do artista com a realidade (ARGAN, 2004, p. 75). A partir desse conjunto de princípios
sobre a relação entre sujeito (consciência) e espaço, aparece não um programa impressionista
propriamente dito, mas certo acordo sobre alguns pontos, como descreve Argan:
1) A aversão pela arte acadêmica dos salons oficiais; 2) a orientação realista; 3) o
total desinteresse pelo objeto, a preferência pela paisagem e a natureza morta; 4) a
recusa dos hábitos de ateliê, de dispor e iluminar os modelos, de começar
desenhando o contorno, para depois passar ao chiaroscuro e à cor; 5) o trabalho em
plein-air. (ARGAN, 2004, p. 76).
O distanciamento do romantismo ocorre para além da temática, também na forma de abordá-la. Os
pintores românticos observados (Géricault e Delacroix) buscam o comentário sobre a realidade dos
fatos, buscam o diálogo com a história; enquanto os pintores como Courbet e Manet estão menos
ocupados com isso. Ao contrário, buscam desprender-se desse tipo conhecimento a priori e ganhar
uma visão primeira do mundo, não a experiência vivida e raciocinada, refletida, mas a experiência
que está se vivendo. Nesse sentido Argan (2004) mostra que um ponto central de convergência dos
impressionistas é: demonstrar que a experiência da realidade que se realiza com a pintura é uma
experiência plena e legítima, que não pode ser substituída por experiências realizadas de outras
maneiras. (ARGAN, 2004, p.76). Encontra-se uma espécie de princípio fundamental para o
argumento de autonomia da arte como campo de conhecimento específico, de experiências
intransferíveis à outras áreas. Ao tratar de Cézanne, Merleau-Ponty (1964) afirma que ele [...]
discovered what recent psichologists have come to formulate: the lived perspective, that which we
actually perceive, is not a geometric or photographic one.38 (MERLEAU-PONTY, 1964, p.14).
38
[...] descobriu o que recentes psicólogos vieram a formular: a perspectiva do vivido, aquilo que de fato percebemos,
não é algo geométrico ou fotográfico. Tradução nossa.
54
A arte dos impressionistas que se distancia do romantismo (anticlássico) caminha, por sua
vez, em direção à um fundamento clássico (novamente) do encontro da consciência, do eu, com o
espaço em volta, o não-eu. Caminha em busca dessa unidade na diversidade aquilo que Argan
(2004) disse ser um dos problemas centrais de toda a dinâmica da arte moderna. E nesse sentido o
autor afirma que o impressionismo é clássico, porque:
[...] o pintor […] representa a realidade na consciência, ou o equilíbrio absoluto,
finalmente alcançado entre a totalidade do mundo e a totalidade do eu, entre a
infinita variedade das aparências e a unidade formal do espaço-consciência.
(ARGAN, 2004, p. 113).
Para os impressionistas essa realidade pictórica não encontra-se pronta de antemão na mente do
artista, ou fora dela, como queriam pensar os românticos, movidos pelo drama histórico que, de
certa forma, determinava seu curso. Por isso Argan (2004) diz tratar-se de uma realidade na
consciência, porque ela se faz junto com a consciência. Da mesma maneira como a própria
consciência, ou o próprio sujeito se faz junto com a experiência que tem do espaço que habita.
Dessa maneira Argan (2004) aponta que Manet não entende a luz como um elemento separado do
objeto, ou de quem o percebe. Ele afirma que Manet identifica quantidade de luz com qualidade de
cor. Com isso parece mais impossível ainda distinguir entre conteúdo e continente, entre espaço e
coisa, e mesmo entre espaço e consciência, como propunham categorizações cartesianas e
kantianas.
3.2.4 Nova ontologia do espaço e do sujeito
Ainda sobre o caráter científico-filosófico da pesquisa impressionista, cabe ressaltar que
Argan (2004) propõe um paralelo entre esta e a pesquisa estrutural da arquitetura e engenharia, no
campo da construção daquele tempo. O autor relata que:
[…] existem claras analogias entre o espaço pictórico dos impressionistas e o espaço
construtivo da nova arquitetura em ferro. Em ambos os casos não se parte de uma
concepção predeterminada de espaço: o espaço se determina na obra pela relação
entre seus elementos constitutivos. (ARGAN, 2004, p. 76).
Fruto também da revolução industrial, a construção com ferro e cimento popularizou-se durante o
final de século XIX. Argan observa no fato uma ideia revolucionária de produzir arte com
55
procedimentos e materiais advindos da engenharia, da construção utilitária. De acordo com o autor,
a torre Eiffel – um caso típico de “plein-aire” arquitetônico (ARGAN, 2004, p. 85) - consagra-se
como símbolo dessa pesquisa estruturalista no campo da arquitetura, uma espécie de equivalente à
pesquisa sobre estrutura espacial perceptível dos pintores impressionistas. Um dos pontos de
convergência entre a pesquisa arquitetônica e pictórica da época do impressionismo mais relevantes
para Argan (2004), está o fato de que ambas pretendem transformar a atividade artística de
representativa em estruturante. (ARGAN, 2004, p. 90). Na medida em que se afasta do paradigma
cartesiano de compreensão de espaço e de sujeito, menos distantes parecem ficar os diferentes
procedimentos artísticos da pintura e da arquitetura, sem dúvidas um indício já do hibridismo.
Argan (2004) afirma que o campo da pintura envolve a percepção da realidade, enquanto que o da
arquitetura envolve sua construção, no entanto o caminho em direção à fenomenologia mostra que
uma coisa não é oposta a outra, como inevitavelmente acontece na tradição cartesiana. Para
Merleau-Ponty (1996, 2000), entre outros fenomenologistas como M. Heidegger (1997) ou como o
filósofo contemporâneo A. Noë (2004 e 2009), a percepção é melhor descrita como forma de ação
no mundo, portanto de intervenção e nesse sentido, de sua realização.
A relação proposta por Argan (2004) entre as pesquisas em engenharia e as possibilidades
para a arte são de fato representativas de uma antiga tradição de relação entre arte, ciência e
tecnologia, da qual se tratou anteriormente. O que acontece no século XIX é o encaminhamento
para possibilidades vividas no mundo contemporâneo e as quais serão exemplificadas nos próximos
capítulos. Ao tratar a modificação realizada na descrição do espaço entre a ciência moderna e sua
ciência contemporânea, Merleau-Ponty (2004, p. 10 e 11) afirma que a primeira tem como
pressuposto a separação rigorosa entre forma e conteúdo, entre espaço e mundo físico. Tal
separação é o fundamento da separação entre o desenho e a pintura, o contorno e seu
preenchimento. E é a isso que Merleau-Ponty diz que Cézanne se opõe quando afirma que à medida
que se pinta, desenha-se. Ao não desenhar primeiro, Cézanne não recorta o objeto de seu espaço,
mas busca destacá-lo pelo seu arranjo espacial. Essa forma de pintar fica explícita nas últimas
imagens que Cézanne faz do monte Sainte-Victoire. A técnica, suportada por tais conceitos é
também precursora direta das perspectivas fenomenológicas, ecológicas e enacionistas das quais se
trata especificamente nessa tese.
56
Nesse sentido Cézanne parece retomar Manet, na concepção de Argan (2004): Manet não vê
as figuras “dentro do”, e sim “com o” ambiente. (ARGAN, 2004, p. 97). O pintor espera conseguir
com isso a unidade entre sujeito e espaço que se encontra na experiência enquanto se vive. Nesse
sentido está a definição da nova noção de espaço na fenomenologia de Merleau-Ponty:
O espaço não é o ambiente (real ou lógico) em que as coisas se dispõem, mas o meio
pelo qual a disposição das coisas se torna possível. Quer dizer, em lugar de imaginálo como uma espécie de éter no qual todas as coisas mergulham, ou de concebê-lo
abstratamente com um caráter que lhe seja comum, devemos pensá-lo como uma
potência universal de suas (das coisas) conexões. (MERLEAU-PONTY, 1996, p.
328).
Merleau-Ponty (1996, 2000, 2004)
aborda o mundo percebido, não como um mundo
objetivo, existente independente de um percebedor, como foi posto pela tradição cartesiana, nem
como um mundo construído no percebedor como representação de um mundo objetivo fora dele.
Mas como um mundo vivido, experimentado. A noção de espaço como potência universal das
conexões entre as coisas é a noção que será utilizada por Noë (2004) ao descrever o processo de
percepção/ação. É também a noção de espaço que se utiliza na descrição das zonas de interação
biocíbridas conforme se apresentará adiante. Segundo o autor, pela experiência perceptiva me
afundo na espessura do mundo. (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 275). Estando então afundado no
mundo, o percebedor não necessita copiá-lo dentro de si. Parece ir nesse sentido o realismo
impressionista, não entende-se mais o real como cópia de algo que está fora do percebedor. A
pintura de Cézanne não visa reproduzir, mas antes, produzir as sensações […] não como dado para
uma reflexão posterior, mas como pensamento, consciência em ação. (ARGAN, 2004, p. 110). A
explicitação do termo consciência em ação aproxima nitidamente a abordagem de Cézanne,
conforme a interpreta Argan (2004), do fundamento conceitual utilizado por essa tese para propor as
paisagens sonoras enativas.
Merleau-Ponty (1996) apresenta uma definição de percepção completamente diferente
daquela trazida pelo paradigma cartesiano. Entendendo o mundo, as coisas como correlativos de
meu corpo, o autor afirma que a coisa nunca pode ser separada de alguém que a perceba, nunca
pode ser efetivamente em si, porque suas articulações são as mesmas de nossa existência.
(MERLEAU-PONTY, 1996, p. 429). Nesse caminho explicativo não faz sentido a noção de um
sujeito que processe as informações recebidas de um mundo dado de antemão. Para a
57
fenomenologia de Merleau-Ponty não há esse mundo dado antes da experiência, ou nas palavras do
autor: o que é dado não é somente a coisa, mas a experiência da coisa [...]. (MERLEAU-PONTY,
1996, p. 436). Também esse sujeito não existe desligado do mundo, o filósofo é direto ao afirmar
que: O mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão um projeto do mundo, e
o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta. (MERLEAU-PONTY,
1996, p. 576). Assim, não há como argumentar em favor da percepção e da significação que ocorre
na percepção descrita como reelaboração construída por um sujeito que opera interpretando um
mundo que lhe é estranho e externo. Mas, ao contrário, institui-se a perspectiva para entender a
percepção como certa maneira de agir no mundo, certa maneira de ser no mundo. (Heidegger, 1997;
Clark, 2008; Noë, 2004).
Essa maneira de ser, ou de efetuar-se no mundo junto com o próprio mundo, é que é central
na fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty (1996) e na abordagem fenomenológica da arte
de Argan (2004). Tal é o ponto em comum que a presente seção busca enfatizar.
A ideia de que o conhecimento da realidade não é contemplação, porém, nasce de
uma vontade de tomar e se apropriar, era típica da estética e da arte romântica, e dela
passou para Courbet, cujo realismo é um ato de apoderamento, e os impressionistas,
cada um deles empreendendo um modo próprio de receber, captar e até mesmo
arrebatar a realidade. Apenas Cézanne supera o que havia de arbitrário e eticamente
injustificável nessa vontade de tomar e se apropriar, restabelecendo um equilíbrio
absoluto, e até mesmo uma identidade, entre a realidade interior e exterior, entre o
eu e o mundo, entre o efetuar-se da consciência e o efetuar-se da realidade.
(ARGAN, 2004, p. 110 e 111).
Pode-se pensar que o realismo oferecido por essa relação de apropriação do mundo pelo eu, tinha
ainda um caráter determinista dado pela história, enquanto drama romântico. Parecem mesmo
paralelos os argumentos escritos por Merleau-Ponty (1989 e 1996), citados nos parágrafos
anteriores, e os de Argan (2004) tratando da pintura de Cézanne. A identidade do efetuar-se da
consciência e da realidade, a que se refere Argan (2004), não é outra coisa se não o sujeito como
projeto de um mundo que ele mesmo projeta, nos termos de Merleau-Ponty (1996). Segundo o
filósofo, Cézanne e os impressionistas buscavam o próprio nascimento da paisagem diante dos
olhos [...] queriam aproximar-se [...] da experiência perceptiva. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 14).
Faz-se mister, finalmente, entender que a pressuposta busca pela experiência enquanto se vive, pela
experiência perceptível da qual fala Merleau-Ponty (1989, 1996, 2004), não esteve presente dessa
maneira em nenhum outro momento na arte neoclássica ou romântica. Naqueles dois movimentos
58
havia sempre a mediação, fosse de deus (Descartes), ou da razão (Kant), ou ainda da história, na
determinação das relações possíveis entre sujeito (consciência) e natureza (espaço).
Nesse sentido as concepções de espaço e de sujeito as quais se refere Merleau-Ponty (1989,
1996, 2004), são completamente distintas daquelas que orientaram as posturas de poéticas do
classicismo e, de certa forma, do romantismo também.
O espaço, assim, não é mais esse meio das coisas simultâneas que poderia ser
dominado por um observador absoluto, [...] sem ponto de vista, sem corpo, sem
situação espacial, pura inteligência. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 15).
E junto com a mudança na constituição do espaço vem a mudança na constituição desse eu que
experimenta e que vive das mesmas articulações do espaço. Se na concepção cartesiana o espaço
geométrico homogêneo vinha acompanhado de uma consciência sem carne e sem corpo, para a
fenomenologia de Merleau-Ponty (1989, 1996, 2004) esse espaço é heterogêneo e feito junto do
corpo, feito das mesmas coisas dele. Em suas palavras: [...] o homem não é um espírito e um corpo,
mas um espírito com um corpo, que só alcança a verdade das coisas porque seu corpo está como
que cravado nelas. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 18).
Estando portanto cravado nas coisas do mundo, como afirma Merleau-Ponty, somos feitos
das mesmas coisas que elas. A perspectiva do corpo como negociável por ser feito das mesmas
coisas que o mundo todo e que se faz pelo acréscimo/decréscimo de partes ou órgãos, será retomada
no último capítulo, quando se tratar especificamente da re-engenharia do humano e de suas
experiências naturalizadas. Essa troca direta com o mundo parece ser explicitada na distribuição das
cores por Cézanne na última de suas imagens de O Monte Sainte-Victoire, conforme afirma Argan:
Impossível imaginar uma sensação mais fresca, imediata e, ao mesmo tempo
definitiva que no ponto em que os azuis e cinzas do céu invadem a montanha e a
planície, assim como o verde das árvores colore as nuvens. Porém, note-se como o
ritmo, a frequência das pinceladas largas e transparentes [...] torna sensível o
dinamismo universal do espaço, ou melhor, o dinamismo da própria consciência
que, no próprio ato de receber a realidade e identificar-se com ela, converte-a em
espaço. Esta é [...] uma das obras mais “especulativas” ou “ontológicas” de
Cézanne, [...]. (ARGAN, 2004, p. 116).
59
A indicação de Argan sobre a possibilidade de relação com a reflexão ontológica refere-se
especificamente a essa troca entre sujeito e mundo, a qual o presente texto tem se referindo desde a
primeira seção. É a partir desse espaço que não está dado a priori, como uma abstração, um
modelo, e dessa consciência que também se faz mutualmente enquanto faz seu espaço, que Argan
localiza a classicidade do impressionismo.
Figura 15: P. Cézanne O monte Santa-Vitória, 1906
Fonte: Disponível em: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Paul_Cézanne_110.jpg?uselang=pt > Acesso em 29
jun. 2013.
3.2.5 Grau zero, enação e estética naturalizada
A noção de grau zero de espacialidade (Merleau-Ponty, 1989), a partir do ponto de vista do
percebedor, indica a possibilidade de um grau zero de significação. Isso parece ser o centro da
abordagem fenomenológica para os processos de significação. O grau zero pode ser caracterizado
60
como um substrato comum para diferentes possibilidades de significações, tanto aquelas presentes
na arte, como as presentes no cotidiano. Vai nessa direção a intenção de Cézanne, segundo MerleauPonty (1969, p. 13), de fazer da arte e da natureza uma só coisa. Nesse grau zero a experiência
estética é tão experiência, quanto a experiência de caminhar numa rua, ou de controlar uma
máquina, ou ainda de tocar um instrumento (algo que demande mais ou menos concentração e em
princípio pareça uma atividade bem distinta da fruição artística).
Nesse grau zero de significação parece haver, portanto, na perspectiva de Cézanne, a
possibilidade de uma arte que não imite a vida, mas que seja vivida como é a própria vida. Que não
represente sensações, mas as apresente, as ofereça. De acordo com Merleau-Ponty (1989, p. 62): Já
não se trata de falar do espaço e da luz, e sim de fazerem falar o espaço e a luz que ai estão. Este
fazerem falar o espaço e a luz tem relação intima com o entendimento da percepção como
elaboração da realidade e não como contemplação. A noção de percepção aqui é tida como ação que
estrutura a realidade em volta do percebedor e, ao fazer isso, estrutura e cria esse próprio
percebedor. No quadro O monte Sainte-Victoire nada está pronto antes do olhar. O próprio
observador como tal, assume sua posição na medida em que se encaixa no esquema perceptivo
(enquadramento heideggeriano - Gestell) necessário para a experiência. Da mesma maneira como as
coisas ali vão aparecendo na medida em que esse encaixe é experienciado. Esse grau zero de
significação é também um dos fundamentos centrais para a estética naturalizada. É o grau zero que
oferece condições de falar em naturalização, uma vez que se refere ao que é comum entre as
diferentes culturas desenvolvidas pelo ser humano ao longo de sua existência. 39
Se a percepção passa a ter papel central no discurso sobre a obra de arte, sobre a experiência
artística, Domingues (1993) já apresenta uma perspectiva de que a imagem não só dependerá do
percebedor para se formar, mas mais do que isso, dependerá do percebedor em sua ação conjunta
(enação) com outros percebedores no meio-ambiente.
[...] o ato de perceber a imagem de vídeo é diverso de outras imagens pré-técnicas
como a pintura ou das imagens técnicas como a fotografia e o cinema. Os sinais
eletrônicos metamorfoseiam a imagem em ondas de imagens, exigindo esforços
perceptivos e uma outra velocidade gestáltica. (DOMINGUES, 1993, p. 48).
39
No último capítulo haverá maior esclarecimento sobre o que se denomina por estética naturalizada. A noção de grau
zero de significação apresentada será então retomada.
61
Na seção a seguir se falará da possibilidade de uma arte híbrida que mistura aspectos relacionados à
sintaxes espaciais (como as Artes Plásticas) e sintaxes temporais (como a Música). O que a
professora Diana Domingues (1993, 1996, 2008) traz inicialmente é que no vídeo, com a imagem
estilhaçada em uma equação de pixels sobre o tempo, a percepção recorre à possibilidades próprias
de uma sintaxe temporal para aquilo que era essencialmente espacial.
O que se argumenta a partir daqui é que as paisagens sonoras são um tipo de obra de arte
que sintetizam e congregam os dois modelos sintáticos, tanto o espacial como o temporal. Essa
poética vem na perspectiva de ser percebida não mais por um sujeito desligado do mundo que
percebe, mas ao contrário, conforme afirma Domingues (1993), por um sujeito elaborador que é
ativo na experiência da elaboração do sentido, junto com o meio ambiente, com quem reparte a
responsabilidade e autoria. Note-se que tal noção de sujeito guarda grande proximidade como a
colocada por Merleau-Ponty (1989, 1996 e 2004) e a tradição fenomenologista que lhe segue. Já nas
obras de vídeo-instalação na década 90 a artista e pesquisadora D. Domingues antecipava os
princípios fundamentais de uma arte enacionista, ecológica e fenomenológica, por meio de
profunda experimentação estética. É esse o caso de Paragens 40, do início da década de noventa, na
qual a imagem que se oferece à constituição de cada percebedor encontra-se distribuida,
fragmentada em diferentes formas de visualização.
A proposição de um sujeito fragmentado por meio de sua percepção, igualmente
fragmentada e distribuida no mundo, segundo concepção de Domingues (1991), guarda aspectos
comuns com a perspectiva exposta por Ascott (2006) em sua brilhante introdução para a obra de
sua organização:
Computational systems had leave us to an understanding of how the design and
construction of our world could constitute an emergent process, replacing the old top-down
approach with a bottom-up methodology. [...] Telematic systems have enable us to
distribute ourselves over multiple locations, to diversify our identity, to extend our reach
over formidable distances with a formidable speed. 41 (ASCOTT, 2006, p. 9).
40
Para maiores informações sobre a obra, vide informações disponíveis em <http://artecno.ucs.br/proj_artisticos/
instalacoes/inst_paragens_port.htm>. Acesso em 12 mar. 2012.
41
Sistemas computacionais têm nos dado o entendimento de como o design e a construção de nosso mundo podem
constituir-se em um processo emergente, substituindo a velha abordagem top-down pela metodologia bottom-up. [...]
Sistemas telemáticos têm nos capacitado a distribuir-nos sobre múltiplas locações a estender nosso alcance à distâncias
formidáveis com velocidades formidáveis. Tradução nossa.
62
A postulação de um tipo de noção de sujeito fragmentado, enquanto distribuído,42 será retomada ao
se tratar de autores como Andy Clark (1997; 2003 e 2008) e Alva Noë (2004 e 2009) no final do
próximo capítulo. Ela é de grande relevância na medida em que recoloca a possibilidade de
descrição dos atores e seu espaço de ação, algo fundamental à proposta de arte com sistemas
enativos. Uma estética que se propõe naturalizada também entende que as condutas estéticas se dão
através da distribuição dos atores e percebedores no meio.
Figura 16: Diana Domingues: Paragens, 1991
Fonte: Disponível em: <http://www.virtualart.at/database/general/work/paragens.html> Acesso em 20 mar. 2012.
42
Cabe indicar que a noção de fragmentação de sujeito não guarda nenhuma relação direta intencional do autor com a
noção de fragmentação do sujeito na psicanálise.
63
4 PAISAGENS SONORAS
Certa manhã, contudo, logo antes do nascer do sol, lhe fora dado entrevê-lo
de relance, e era, em verdade, coisa tão resplandescente como viva chama.
Diziam-lhe os nativos que por vezes era possível ouvir, de onde estava, o
murmúrio das águas manantes do Éden, antes de se esgalharem nos quatro
rios. (Sérgio Buarque de Holanda - Visão do Paraíso)
4.1 PERCURSO HISTÓRICO
A partir da década de 1970 a noção de paisagem sonora trouxe à música contemporânea
novas possibilidades estéticas. Mais especificamente, a partir disso apareceram possibilidades de
experiências musicais que envolvem aspectos conceituais e técnicos que, precisam ser descritos no
sentido de entender a criação de propostas e experiências artísticas. Sem intenções historiográficas
sistemáticas, esse capítulo apresenta em linhas gerais e por um viés mais útil ao texto do que à
literatura especializada, um breve histórico do desenvolvimento das paisagens sonoras (PS) e
também um conjunto de procedimentos envolvidos na criação de obras de PS, mas que se
distinguem da tradição dessas composições por apresentar princípios de orientação enacionistas,
ecológicos e fenomenológicos. A intenção é tratar do contexto em que aparece a proposta de
paisagens sonoras enativas (PSE), que a presente pesquisa enuncia, bem como sua direção à
possibilidade de uma estética naturalizada. Se as PS foram um tipo de abordagem a partir das
possibilidades da música acusmática e eletroacústica, as PSE trazem para o horizonte da
experiência artística a interatividade enquanto ação conjunta (enação) que permite emergir
possibilidades de experiências estéticas por meio de tecnologias suportadas por estudos
enacionistas, ecológicos e fenomenológicos da percepção.
A abordagem fenomenológica na filosofia, a teoria ecológica da percepção e a teoria
enacionista da cognição, oferecem novas perspectivas sobre as possibilidades de experiência
musical, ou sobre os tipos de engajamento com a música. Um dos traços comuns entre essas três
abordagens teóricas, conforme se espera evidenciar na sequência, é a de compreender a obra de arte
sempre como fruto da produção de tecnologias específicas e de percepções igualmente específicas.
Toma-se a PS como exemplo de obra de arte possível a partir das condições dadas pela gravação e
64
reprodução de áudio e pelo surgimento e história de hábitos de percepção que possibilitem fazer
música com o material sonoro em questão.
4.1.1. Futurismo como um precursor
Desconsiderando a música programática, o movimento conhecido como Futurismo, no
início do século XX, pode ser identificado como uma das raízes diretas do aparecimento posterior
das PS. As propostas de F. T. Marinetti (1876 - 1944) e seus companheiros, conclamaram os artistas
a buscarem novas poéticas no novo mundo (pós-revolução industrial) em que viviam. Ressaltando a
importância dos ruídos das máquinas, os futuristas trouxeram o mundo de fora dos teatros, das salas
de concerto, para dentro da música. O manifesto e os concertos (na Itália, Inglaterra e França) de L.
Russolo e seus colegas, antes da deflagração da primeira guerra mundial, constituiram-se exemplos
da atividade de compositores que buscaram poéticas que apresentaram materiais e perspectivas
estéticas para a música, diferentes dos fundamentados na tradição da altura definida e da métrica
regular. Tal manifesto, A Arte do Ruído, buscava, entre outros objetivos, aproximar a música da vida
contemporânea. Os argumentos de Russolo (1913) indicavam que a música devia se tornar uma arte
dos ruídos porque eram esses os sons que o universo humano estava experienciando naquele
momento de disseminação das máquinas, sobretudo das barulhentas máquinas do início do século
XX.
A ideia central é que o ruído, por sua complexidade, faz com que a música esteja mais perto
da vida, encontre as mesmas emoções que a vida. O manifesto de Russolo (1913) entende o tom
puro dos instrumentos musicais tradicionais como uma espécie de representação idealizada do
mundo sonoro existente na vida. Portanto, ao trazer o ruido para a música, Russolo (1913) está
buscando abrir a possibilidade de experiência estética dentro da própria experiência da vida.
Encontra-se ai um dos tópicos centrais da presente investigação, o de localizar poéticas que
permitam experiências artísticas que sejam realizadas junto com experiências do dia-a-dia, da vida
cotidiana.
65
Figura 17: L. Russolo e U. Piatti com sua Intonarumori (1913)
Fonte: Disponível em: <http://www.studioforum.net/festival/2005/BDN2005.html> Acesso em 30 jun. 2013.
Trazer o ruído para a música, classificá-lo, ordená-lo, ainda que seja uma certa
descaracterização da autonomia desse fenômeno, torna-se exemplo de uma ampliação do escopo de
possibilidades estéticas musicais. Embora o Futurismo tenha sofrido um encurtamento de seu
potencial, sobretudo por conta das duas grandes guerras mundiais, foi de fato uma marca indelével
para o desenvolvimento das mais diversas tendências das artes e da música contemporânea.
Burkholder e seus co-autores, tratando especificamente do movimento futurista afirmam que:
The movement continued in various forms in Italy, France and Russia, during the 1920s
and 1930s, and it antecipated or stimulated many later developments, including eletronic
music, microtonal composition, and pursuit of new instrumental timbres. 43
(BURKHOLDER et al 2010, p. 807).
43
O movimento continuou de várias formas na Itália, França e Rússia, durante os anos 1920 e 1930, e antecipou ou
estimulou muitos desenvolvimentos posteriores, incluindo a música eletrônica, a composição microtonal e busca de
novos timbres instrumentais. Tradução nossa.
66
4.1.2 Schafer e o grupo da Simon Fraser University
As PS encontram no Futurismo uma de suas grandes influências e estímulo, entretanto M.
Schafer (1977) faz todo um apanhado histórico bastante anterior sobre a presença de sons do mundo
no universo musical. Em seu livro The Soundscape (1977), o compositor canadense além de fundar
o termo paisagem sonora, funda também a área de acústica ecológica. O que tem implicações para
muito além do escopo dessa tese. Para o interesse aqui circunscrito cabe ressaltar que Schafer
entende toda a paisagem sonora do mundo como uma ampla composição (talvez se possa mesmo
pensar em termos de com-posição heideggeriana) coletiva feita pelos homens sobre a face da terra
em cada época.
O compositor canadense R. M. Schafer, junto de companheiros da Universidade Simon
Fraser em Vancouver, tais como B. Truax e H. Westerkamp, é considerado o criador do termo
paisagem sonora. No entanto sua pesquisa nasce com uma perspectiva que coloca a música como
um recurso para um objetivo maior, ético, no caso.
Figura 18: The Tunning of the world, R. Flud (1617)
Fonte: Disponível em: <http://pilotpmr.com/visual-storytelling-infographics-fromthe-16th-and-18th-centuries/> Acesso em 29 jun. 2013.
67
Em sua brilhante descrição histórica da produção musical em paralelo à produção sonora do
homem, o compositor e educador musical canadense apresenta um caminho que relaciona a música
de cada época com uma espécie de equação, envolvendo uma variável sobre as possibilidades de
descrição daquilo que se escutava, e outra acerca das condições de produção da vida (e seus
respectivos sons) de cada período e local específico. Ele traça um caminho que vai da audição da
“Paisagem Sonora Natural”, passando pelos “Sons da Vida”, “Paisagem Sonora Rural”, pelos sons
da cidade, até chegar ao que ele chama de “Paisagens Sonoras Pós-Industriais”, envolvendo as
mudanças trazidas pela “Revolução Industrial” e “Revolução Elétrica”.
Em todo o percurso, Schafer (1977) mostra o homem em relação à paisagem sonora própria
de sua época. O autor traz uma série de referências à literatura de diferentes povos para se remeter
ao registro dessas paisagens sonoras bem como de sua relevância na vida cotidiana das pessoas. Ele
realiza um estudo sobre hábitos perceptivos sonoros em diferentes épocas e lugares e então, a partir
de seu capítulo sete, afirma: Music forms the best permanent record of past sounds, so it be useful
as a guide to studying shifts in aural habits and perception.44 (SCHAFER, 1977, p. 103). Com isso
Schafer abre sua perspectiva de entender a música a partir de duas grandes categorias: uma absoluta
e outra, programática (SCHAFER, 1977, p. 103). No primeiro caso os compositores realizam
paisagens sonoras idealizadas em suas mentes, enquanto no segundo os compositores imitam o
meio-ambiente. A partir disso o autor mostra o desenvolvimento da música ocidental na Idade
Moderna como vinculado ao crescimento em complexidade tanto tecnológico, quanto social.
Relacionando o canto dos pássaros na canção parisiense do século XVI (Clement Janequin) com as
trompas de caça de Beethoven e ainda com as trompas de memória nas sinfonias de Gustav Mahler,
Schafer (1977), conta de forma magistral a história da música como um registro da história de
audição do mundo.
4.1.3 O papel do espaço na música
Para Schafer (1977) o espaço onde ocorre a paisagem sonora é de fundamental importância
na possibilidade de significação musical e estética, de uma maneira mais ampla. Cada mudança no
entorno de vida do homem, que sai do meio natural, vai ao rural e daí às cidades, proporciona um
44 A música
forma a melhor gravação permanente de sons do passado, então ela é útil como um guia para estudar as
modificações nos hábitos aurais e percepção. Tradução nossa.
68
novo conjunto de possibilidades de relações sonoras a se estabelecer de acordo com os hábitos
próprios do local e época. Na música de povos da antiguidade as relações entre produção musical e
sua fruição com os espaços específicos eram mais ou menos rígidas em diferentes culturas.
Entre os gregos, em torno do século V (a.C), havia local específico (orquestra) para que o
grupo de instrumentistas ficasse durante a encenação dos dramas. (BURKHOLDER et al, 2009).
No entanto, antes do advento da gravação/reprodução do som, não houve uma significativa
utilização do parâmetro espacial seja na fruição ou na produção musical. Mesmo assim em música é
bastante comum o uso das expressões “mais alto” ou “mais baixo” indicando até mais de um
significado especificamente ligado à experiência sonora. Isso indica que de fato na música ocidental
e em muitos outros sistemas conhecidos, há um uso metafórico da noção de espaço.
Pouco mais de trezentos anos antes do aparecimento da gravação e reprodução de som,
compositores como A. Willaert (1490 - 1562), A. Gabrieli (1532 - 1585) e G. Gabrieli (1554 - 1612)
posicionavam seus coros em diferentes espaços da basílica de São Marcos em Veneza (técnica que
veio a ser conhecida por policoral). Isso mostra certa preocupação com as relações espaciais na
produção sonora. Mesmo antes disso pode-se observar a relação e o papel atribuido ao espaço para
a prática artistico-musical em alguns outros aspectos como o arquitetônico. Na construção da
catedral de Notre Dame, e de modo geral em toda a arquitetura gótica que surge no século XII, a
reverberação das grandes naves onde o coro canta é responsável pela primeira forma de polifonia
sistemática na música ocidental. No entanto a relação com o espaço, e por consequência com o
movimento, na prática composicional da música dos dois primeiros períodos paradigmáticos
sempre foi restrita às metáforas.
Na música ocidental é possível dizer que uma nota ou uma tonalidade encontra-se perto ou
longe da outra, de modo que esses dois espaços referidos na afirmação não referem-se à mesma
categoria. A noção de escala e também a noção de campo (como “campo harmônico” de uma
tonalidade) envolvem ambas dimensões espaciais metafóricas específicas e distintas entre si. Mas
apenas com o aparecimento dos gravadores de som, sobretudo de uma tecnologia que permitisse
certos tipos de gravação e manipulação do sinal gravado, é que foi possível atuar na produção
sonora utilizando-se o espaço enquanto possibilidade criativa no sentido não metafórico. A
possibilidade de se gravar música, [...] transformou de modo acentuado o jeito de se fazer e ouvir
música. (IAZZETA, 1993, p. 99). Além da introdução do espaço como um elemento a ser utilizado
69
criativamente, outras possibilidades apareceram ligadas diretamente às tecnologias próprias de
determinados lugares e épocas.
The recording of music on disc or tape has affected composition. All ordered language
systems requirere redundancy. Music is one such system and it’s redundancy consists in the
repetition and recapitulation of principal material. 45 (SCHAFER, 1977, p. 113).
Nesse sentido Schafer trata da possibilidade de repetição que é completamente diferente
antes e depois da fonografia. A noção de espaço encontra nessa possibilidade de reprodução
redundante (da fonografia) uma característica que a torna manipulável, manuseável de uma maneira
completamente nunca antes experimentada. Bastou dispor alto-falantes em locais distintos e fazer
com que o evento sonoro se repetisse passando de um para o outro, para conseguir o recurso de
distribuir eventos sonoros no espaço. A partir disso manipulou-se o evento sonoro no espaço e se
introduziu uma nova perspectiva poética e estética utilizando-se uma nova sintaxe: a espacial.
Figura 19: Espacialização sonora quadrifônica
Fonte: Disponível em: <http://www.ambisonic.net/ambidvd.html> Acesso em 30 jun. 2013.
45
A gravação da música em disco ou fita afetou a composição. Todos os sistemas de linguagem ordenados requerem
redundância. A música é um sistema desse tipo e sua redundância consiste na repetição e recapitulação do material
principal. Tradução nossa.
70
A partir do contexto descrito nos parágrafos anteriores estava colocada a possibilidade de
que os eventos sonoros além de serem gravados e trazidos do mundo para a música, conservavam
também sua possibilidade de ocorrerem dinamicamente no espaço em torno do ouvinte, com o
recurso da quadrifonia46 . Essa possibilidade fez com que a música operasse no espaço para além da
metáfora. Na música que utiliza de sistemas de difusão sonora em mais de um canal, a manipulação
do som no espaço tem possibilidades de ocorrer. Em uma perspectiva de descrever um caminho
naturalizado para a estética parece bastante relevante que a música passe a incluir mais elementos
ligados à vida cotidiana, como o caso da experiência do movimento no espaço de forma não
metafórica.
Escrevendo sobre a música ocidental do último quarto do século XX, Paul Griffths (1987)
afirma que:
Varèse, que nas três últimas décadas vinha lutando pela fabricação de meios eletrônicos,
recebeu um gravador de fita no final da década de 40, e imediatamente começou a recolher
material para o novo “som organizado” com que sonhava. (GRIFFTHS, 1987, p. 145).
Griffiths (1987) reconhece em Varèse (1883 - 1965) o compositor que melhor representa o caminho
possível entre o futurismo e a música eletroacústica como tendência pós-Gesang der Jünglinge47 .
Griffiths apresenta essa obra de K. Stockhausen como o ponto de conciliação entre as técnicas da
Musiqué Concrete de Paris e seus trabalhos com Eletronisch Musik. Também para outros
historiadores da música, como Burkholder, et al. (2009), o compositor E. Varèse (1883 - 1965)
representa um marco poético na música contemporânea.
Varèse’s conception of music as spatial, with sound-masses moving through musical space
and interacting with each other like an abstrat ballet in sound, opened the door to music
that centered not on melody, harmony, or counterpoint but on sound itself. 48
(BURKHOLDER et al, 2009, p.948)
46
Recurso de distribuição (difusão) sonora em concertos de música acusmática. Compõe-se de quatro alto-falantes
colocados simetricamente ao redor do público. Pode ou não ser controlado em tempo real.
47
Obra de K. Stockhausen que é considerada por Griffiths (1987) como representante da união das técnicas da música
concreta e eletrônica, portanto primeira obra eletroacústica.
48
A concepção de Varèse da música como espacial, com massas sonoras em movimento através do espaço musical e
interagindo umas com as outras como um ballet sonoro abstrato, abriu as portas para a música que não está centrada na
melodia, harmonia ou contraponto, mas sobre o próprio som. Tradução nossa.
71
A entrada do espaço como possibilidade semântica e sintática em música constituiu-se um
importante marco do desenvolvimento dessa arte. De uma maneira ampla pode-se pensar que as
transformações na percepção de espaço passaram a possibilitar experiências estéticas diferentes.
Como veremos a seguir, é mesmo possível tratar de uma dissolução de barreiras que delimitam uma
determinada práxis artística na medida em que se opere com sintaxes distintas.
4.1.4 Cage e o espaço in
Desde que nomes como Varèse, P. Schaeffer (1910 - 1995), ou K. Stockhausen (1928 2007), entre diversos outros, inauguraram novos caminhos na música em meados do século
passado, os meios computacionais tornaram-se cada vez mais fortes e potenciais ampliadores de
técnicas empregadas na criação. Nesse mesmo momento de meados do século XX, para
caracterização do cenário que antecede e motiva a presente pesquisa, é de extrema relevância traçar
alguns comentários acerca da atividade do estadunidense J. Cage (1912 - 1992). A vinculação desse
compositor com a entrada da noção de aleatoriedade na produção e fruição artístico-musical, ou
mesmo com sua importantíssima pesquisa timbrística que o levou ao piano preparado, não pode
encobrir o exame de outros procedimentos e conceitos que ele traz com sua arte. Entre outras
contribuições, cabe tratar especificamente de sua proposta de fazer um tipo de música que em
primeiro lugar seja não uma obra como uma coisa, mas que seja uma experiência daquele momento
e local específicos. Acerca de J. Cage, o historiador Burkholder (2009) e seus colaboradores,
afirmam que:
In his lectures and writings, he strongly opposed the museum-like preservation of music
from the past and argued for music that focused the listener’s attention on the present
moment. 49 (BURKHOLDER et al, 2009, p. 931).
Os dois aspectos (percepção, ou atenção do ouvinte, e momento presente) chamam muito a atenção
da investigação ora em curso, por remeterem-se diretamente à dois dos seus fundamentos, o estudo
da percepção (em diferentes áreas) como orientador de poéticas, e a proposição da obra de arte
49
Em suas palestras e escritos ele (Cage) se opunha fortemente à “preservação de museu” da música do passado e
defendia uma música que focasse na atenção do ouvinte ao momento presente”. Tradução nossa.
72
como experiência corporificada e situada, em outras palavras, enacionista. A leitura de Burkholder
et al (2009) da atividade de Cage ainda oferece outros vínculos com o referencial teórico que
subsidia essa pesquisa. Os autores afirmam que Cage, por influência do Zen Budismo, com suas
obras50: [...] created opportunities for experiencing sounds as themselves, not as veichles for the
composer’s intentions. 51 (BURKHOLDER et al, 2009, p. 932).
Em primeiro lugar é relevante e fundamental lembrar que Varela et al (1991) apresentam
argumentos que também vão expressamente ao encontro de influências e relações com o Zen
Budismo. E depois cabe trazer à cena o fato de que Cage busca a experiência do momento, da
presentidade. Ele consegue estabelecer a busca mesmo por meio de uma arte que é puro devir, como
a música, de acordo como se verá mais adiante na leitura L. Santaella e W. Nöeth (1997) e na leitura
de Domingues (1993).
Entre as tantas contribuições de J. Cage à presente pesquisa cabe ressaltar sua opinião sobre
o re-posicionamento do papel do espaço na experiência musical. Ao propor obras como
4’33’’ (Quatro minutos e trinta e três segundos), J. Cage (1952) trazia o espaço de fora da sala, ou
do espaço de concerto, no entanto de fora da música, irremediavelmente para dentro dela. Ainda
que todo o isolamento acústico das salas pudesse impedir que o ruído externo atrapalhasse a
execução do concerto musical, em 4’33’’ o próprio ruído da platéia e do(s) músico(s), é alçado ao
status de composição a ser apreciada. Também sua pesquisa tímbrica eminente remete-se à
importância do espaço, ainda que nos títulos de sua série Imaginary Landscape52, desde 1939. A
primeira obra da série pode mesmo ser considerado um dos primeiros exemplos do que foi nomeado
posteriormente, cerca de 15 anos depois, como música eletroacústica.
Em Imaginary Landscape 4, J. Cage (1952) traz o espaço externo, dessa vez de diferentes
locais de onde provém as diferentes transmissões de rádio recebidas pelos 12 equipamentos
receptores, ajustados em frequências distintas durante o andamento da obra, para dentro da sala de
concerto e mais especificamente para dentro da obra. A perspectiva de fragmentar o espaço, ou
aproveitar sua fragmentação (vivida nas transmissões de rádio diversas que existem em todo o
50
Obra artística precisa ser aqui entendida não como um substantivo que se remeta à uma coisa, mas antes, que se
remeta à um acontecimento, uma experiência.
51
[...] criaram oportunidades para experienciar sons como eles mesmos, não como veículos para as intenções de um
compositor. Tradução nossa.
52
Paisagens imagéticas. Tradução nossa.
73
momento, principalmente no entorno das salas de concerto) e mostrar isso numa experiência no
aqui e agora, faz dessa obra em especial uma das que mais chama a atenção como precursora das
realizações com o espaço que são propostas nas zonas de interações biocíbridas, conforme se
apresentará nos capítulos a seguir. No exemplo, cada um dos 12 rádios fornece uma camada da
paisagem resultante do funcionamento de todos eles. Também nas zonas biocíbridas há uma
sobreposição de diferentes camadas formando uma paisagem sonora emergente.
4.1.5 A tradição da música eletroacústica
Se por um lado é imprescindível o reconhecimento do grupo de compositores canadenses,
mais especificamente de Vancouver, da década de 1970, como instituidores da área de pesquisa
chamada PS, por outro também é nítido que a dimensão mais criativa e inventiva de tal área foi
explicitada por autores advindos mais do contexto da música eletroacústica européia, como Luc
Ferrari (1929 - 2005), Michel Chion (nascido em 1947) e de alguma maneira também Bernard
Parmegiani (nascido em 1927) e F. Dohmont (nascido em 1926). Obras de tais compositores
marcaram a história do desenvolvimento das técnicas de composição musical e ofereceram destaque
à aspectos estéticos presentes nas paisagens sonoras (PS).
Não se pode negar a atuação dos compositores canadenses como H. Westerkamp (nascida
em 1946) ou Barry Truax (nascido em 1947), e mesmo M. Schafer (nascido em 1933), entretanto há
em várias obras já do início da década de 1960, como Hétérozigote (1964) de L. Ferrari, o uso do
material sonoro da música concreta, mas agora valorizando sua referencialidade ao invés de buscar
sua destruição, como queria P. Schaeffer (1966) influenciado pela busca à essência da
fenomenologia husserliana. Hétérozigote (1964) parece mesmo ao ser ouvida, com uma obra ainda
de transição, na qual o autor apresenta pouco material sem processamento, vindo direto da
paisagem toda que se escuta no mundo. Mas na obra Presque rien No.1, Luc Ferrari apresenta
longos trechos gravados sem a presença de nenhum tipo de processamento de sinal, ainda que um
corte sequer. Com grandes períodos de trechos sem percepção de processamento do sinal sonoro e
com a nítida salvaguarda da referencialidade há uma conexão com obras de compositores franceses
da década de 1970 em diante, tais como F. Dhomont (obras como Citadelle Interieure (1981), entre
outras) e o próprio B. Parmegiani (com obras como L’oeil écoute (1970) entre outras). Note-se que
na década de 1970, também J. Cage tem seus flertes mais diretos com a paisagem sonora, como em
74
Bird Cage (1972). De Michel Chion há que se destacar seu Réquiem (1973) que se por um lado
pode ser considerado uma obra de música concreta, parece ser relevante aos estudos sobre
composição de paisagens sonoras, por exemplo, por conta de seu uso em diversos momentos (como
em c. de 20’04” - início do Sanctus) da referência significativa do espaço por meio do tipo de
reverberação apresentada.
De uma maneira geral é possível portanto, observar em compositores de música
eletroacústica das décadas de 1960 em diante, a exploração da referencialidade por meio não apenas
da síntese sonora ou do processamento do sinal, mas explicitamente da gravação da paisagem
sonora, tomada como complexo sonoro o qual vale esteticamente ser escutado como tal. Também
parece já haver certo consenso que as décadas de 1960 e 1970 sejam consideradas um marco inicial
na produção das paisagens sonoras e sua consideração enquanto vertente específica da música
eletroacústica.
É interessante lembrar ainda que mesmo no contexto da música considerada popular, ou por
vezes comercial, por ser veiculada e financiada por gravadoras comerciais, há também o exemplo
forte do flerte com a paisagem sonora. Isso é evidenciado, entre diferentes exemplos em obras de
Frank Zappa (compositor estadunidense falecido em 1994). Mesmo com muita ligação com o
estruturalismo, Zappa mantinha certa abertura ao experimentalismo, aparentando um maior
relacionamento com a música espectral e até concreta do que exatamente com as perspectivas da
paisagem sonora. De qualquer maneira o ruído estava incorporado em sua obra já desde os
primeiros discos na década de 1960 e há diversos casos de seu uso com intenções especificamente
referenciais, o que o distancia dos princípios de música concreta e o aproxima das PS. Outro
exemplo pode ser notado no grupo inglês Pink Floyd que em 1970, em uma canção chamada Alan’s
Psychodelic Breakfast, apresenta em seu primeiro minuto apenas uma longa tomada initerrupta de
paisagem sonora, com a gravação de eventos sonoros em uma cozinha com a preparação de um café
da manhã. Muito embora os músicos da banda não considerassem o termo paisagem sonora na
dimensão em que é considerado aqui, já há, sem dúvidas, sua utilização como uma conduta estética.
Há que se observar ainda, como algo de grande relevância para a constituição da proposta de
paisagem sonora enativa que ora se apresenta, o trabalho de compositores britânicos especialmente
na década de 1980, tais como Denis Smalley (nascido em 1946), Trevor Wishart (nascido em 1946),
e Simon Emmerson (nascido em 1950). Se por um lado os três têm na música eletroacústica e no
75
uso da referencialidade na estruturação do discurso musical uma característica comum, por outro
lado, a obra de Wishart tem uma tendência mais próxima da paisagem sonora, principalmente por
conta da experimentação com a voz humana e do destaque para ambiências e possibilidades de
significação na utilização de diferentes configurações do espaço em que se escuta. Em Journey Into
Space (1973) Wishart já apresenta tanto a exploração espacial por conta de diferentes ambiências,
bem como valoriza a referencialidade, mesmo com trechos de música instrumental
simultaneamente. É interessante como a referencialidade se distribui pelos diferentes materiais
apresentados. O trecho em torno de 10’40’’ da peça Journey Into Sapace - arrival, no qual Wishart
sobrepõe motores automotivos com voz humana é uma exemplo forte da referencialidade
misturando-se à técnicas de produção timbrística em instrumentos tradicionais (como o caso da voz
humana).
4.1.6 Paisagens Sonoras para além da música
Por fim assiste-se ainda no decorrer da década de 1980 a atividade de artistas como D.
Rokeby (nascido em 1960) implementando possibilidades de interatividade em obras como Very
Nervous Systems (1982), na qual um sistema sonoro, gerido por inteligência artificial respondia aos
movimento dos espectadores/participantes captados por um sistema com câmera de vídeo. Numa
inversão da relação entre gesto e som, David Rokeby faz com que os frames do movimento do
corpo do participante produzam a música, a partir de um banco de dados na memória do sistema.
Essa obra emblemática acabou por proporcionar um conjunto grande de variáveis nas quais se
propôs desde sensores em plantas que, por meio das análises computacionais implementadas em
diferentes modelos computacionais produzam imagens e sons, até as obras que se têm pensado e
descrito nessa tese, como Biocybrid Latin American Memorial e mesmo Ouroboros Biocíbrido. De
maneira geral essa obra de Rokeby é um marco na perspectiva do uso da interatividade nos
processos de criação artístico-musical. Marca também a constituição das PSE porque se fundamenta
na relação entre os sons e o meio-ambiente. Nesse sentido, abandona-se o escopo da música
eletroacústica e, por conta de uma nova maneira de entender e utilizar o espaço, faz emergir daquela
enação, naquela situação, naquele momento, a experiência de estética naturalizada.
76
Figura 20: Imagem de esquema de divulgação de Very Nervous System de David Rokeby, 1982
Fonte: Disponível em: <http://www.fondation-langlois.org/html/f/page.php?NumPage=80> Acesso em 30 jun. 2013.
Mesmo com todas essas proposições procedimentais descritas acima na música da segunda
metade do século XX, um elemento central na proposta de procedimentos em direção à criação de
paisagens sonoras enativas, ainda não fora enunciado. A garantia da possibilidade de movimentação
do espectador/participante pelo espaço de situação da obra é um dos pilares procedimentais da
estética naturalizada por permitir o grau zero de significação a partir da liberação do ouvinte de sua
poltrona/prisão. A perspectiva de tirar a montagem de dentro de espaços próprios para isso, como o
teatro, ou a galeria, e levá-los para espaços do cotidiano, amplia e caracteriza a proposta estética
que essa pesquisa apresenta. Trata-se do caminhar em direção a aproximação da arte com a vida.
A artista e teórica Luise Poissant (2007) se refere à ampliação trazida pelas interfaces
artísticas:
Na continuação da teoria da comunicação e dos estudos de ciência cognitiva, tentamos
entender o fenômeno e o mecanismo, diferentemente, enfatizando a dimensão constitutiva
da interação entre humanos e ambiente. (POISSANT, 2007, In: DOMINGUES, D. 2008, p.
84).
77
A ênfase na dimensão constitutiva da interação entre humanos e ambiente é ampliada nas
propostas do LART, a partir de conceitos como esse de Poissant, para um tipo de interação em um
sistema enacionista, que integre diferentes atores sem um centro de controle e com características
como as descritas no capítulo sete.
No que diz respeito ao processo de composição de PSE, diferentes maneiras de descrever a
percepção permitem realizar procedimentos com objetivo de produzir um tipo de obra artística
enacionista, fenomenológica e ecologicamente orientada. Tais procedimentos envolvem aplicações
de conceitos (como os mostrados anteriormente) para aspectos como: o espaço da experiência
artística; a obra, sua concepção e implementação; o ouvinte, seu papel e sua forma de se engajar na
obra; a interação de outros agentes (humanos, não humanos e máquinas).
4.2 O CONCEITO DE PERCEPÇÃO NA ARTE CONTEMPORÂNEA
No decorrer da história da cultura ocidental temos assistido a criação de obras de arte em
diversas modalidades que podem ser entendidas como diferentes maneiras de propor um universo
de possibilidades estéticas (corporais, emocionais, afetivas) ao percebedor, ou espectador. Tais
possibilidades são realizadas a partir do suporte de conceitos sobre o entendimento da forma de agir
desse percebedor. As abordagens conceituais que serão apresentadas dão condições de descrever
uma peça, uma obra de arte,53 como algo capaz de disponibilizar diferentes possibilidades de ação
para quem a está percebendo. Essa forma de colocar a obra de arte, mais ainda, essa forma de
colocar a relação entre obra e percebedor, mesmo ainda que inicialmente, já se apresenta distinta de
uma tradição do estudo dessa área, que coloca o percebedor como passivo, como recebedor de algo
que lhe atinge.
A referida tradição do estudo da percepção apresenta duas posições conflitantes geradas por
um mesmo subsídio conceitual (denominado por dualista-cartesiano). Uma primeira que diz
respeito ao sujeito como principal responsável pelas significações que faz, a partir da relação com
obras de arte e do uso de suas capacidades racionais, mentais. E outra que defende o objeto, a obra
de arte, como responsável pela efetividade da significação, uma vez que seria ela a detentora de
53
Lembre-se que obra de arte não é necessariamente uma coisa, mas precisa ser entendida muito mais como uma
situação ou uma experiência.
78
determinadas propriedades e das intenções do autor. Uma abordagem subjetivista e outra
objetivista, mas ambas envolvidas e suportadas por pressupostos dualista-cartesianos de percepção
e cognição. Ambas as formas de descrição da percepção apresentam dificuldades em relacionar, por
exemplo, como é que componentes físicos como as vibrações sonoras, adquirem significado e valor
cultural e estético, sem a necessidade de atribuir a ação de forças metafísicas, espirituais (algo
semelhante a poderes mágicos) ao percebedor, ou ao objeto, e também sem o argumento da pura
arbitrariedade na formação cultural.
O caminho conceitual que a fenomenologia tem apresentado à filosofia, especialmente nos
últimos cinquenta anos, vem permitindo distintas explicações da atividade de significação
perceptiva em diferentes níveis de descrição da dinâmica da ação dos corpos no mundo. A partir da
explicação sobre como ocorre tal dinâmica, sobre quais seus atores e suas regras. O papel que se
atribui ao percebedor, na abordagem da filosofia fenomenológica, principalmente conforme exposta
por M. Merleau-Ponty (1989, 1996, 1969, 2004), ganha importância no sentido de contribuir para a
circunscrição de tecnologias e possibilidades estéticas.
A relação entre percepção e arte, mesmo parecendo sempre óbvia, é ocultada em muitas
descrições de procedimentos de criação artística, especialmente em casos de composição musical. O
caso da música ocidental nos fornece um exemplo bastante rico. Há grande tradição no estudo da
música ocidental que enfatiza muito mais aspectos do conhecimento de tecnologias de produção,
manejo de instrumentos, do que estudos sobre como a obra é percebida por seus ouvintes. É de fácil
constatação de que na tradição moderna ocidental o estudante de música entrega muito mais tempo
ao desenvolvimento de habilidades motoras, do que de habilidades de audição, ou habilidades
sensório-motoras. Também é possível constatar que o conhecimento desenvolvido na tradição de
tratados sobre composição musical versa, em sua enorme maioria, sobre aspectos técnicos de
organização do material sonoro e tecnologia de estruturação do material. Com isso sobra
praticamente nenhum espaço à investigação relacionada a audição humana, aos mecanismos e
processos envolvidos nessa atividade. A música eletrônica alemã do início da segunda metade do
século passado pode ser descrita como um caso de modelo com tanta ênfase nos processos de
estruturação abstratos e a priori, que sua audição, em última análise, não tinha muita utilidade no
processo de criação dessa obra.
79
Um conjunto de exemplos poéticos dessa postura estética pode ser encontrado na produção
que recebe o rótulo de serialismo integral54. As regras e critérios de validação do que será adequado
ou não para ser composto dependem especificamente de regras de estruturação definidas antes de se
ouvir o determinado padrão sonoro resultante. E isso ocorre em todos os parâmetros musicais
utilizados como elementos da composição. Tal atitude efetivamente exclui a audição (a percepção)
como processo de validação daquilo que se propõe, antes, coloca exclusivamente na memória
imediata, constituida (ainda assim) pela percepção, a responsabilidade de instituir os tais critérios de
relevância. Uma das críticas ao serialismo integral e mesmo à tendências menos ortodoxas, sempre
foi a de que essa metodologia leva a se fazer uma música pouco humana e muito matemática, ou de
outra maneira pouco emocional e muito abstrata. Não se trata de concordar ou não com a crítica,
porém antes de observar que a percepção é tratada de maneira mediada pela memória.
Figura 21: P. Schaeffer em seu estúdio em Paris
Fonte: Disponível em: <http://knuthabergeysturstein.blogspot.com.br/2011/11/thoughts-on-music-9-pierreschaeffer.html> Acesso em 30 jun. 2013.
54
Serialismo integral é a técnica composicional desenvolvida no início do século XX por Anton Webern.
80
Figura 22: K. Stockhausen em seu estúdio em Colônia
Fonte: Disponível em: <http://www.lastfm.com.br/music/Karlheinz+Stockhausen/+images/4398453> Acesso
em 30 jun. 2013.
Se por um lado é forte a influência de posicionamentos estéticos que pouco valorizam o
papel do percebedor no processo de criação musical, por outro lado parece haver uma crescente
valorização, ou ao menos um espaço, para que se recoloque a importância de sua atuação no
processo de composição (vide Schaeffer, 1966). A música eletroacústica, a partir dos anos sessenta
do século passado, como manifestações em outras modalidades artísticas, como o Noveau Réalism
(Argan, 2004, p.555), ou a land art, e o happening (Argan, 2004, p. 588) ocorrendo na mesma
década, sugerem que o papel dado à descrição do percebedor, e a própria descrição desse papel,
estavam em pleno curso de mudança nas artes em geral. O fato ampliou em muito as possibilidades
de criação artística e em música, por exemplo, influenciou o aparecimento do conceito de paisagem
sonora, na década de 1970. Sobre esse período histórico, Argan (2004) fala especificamente de duas
crises, uma delas relativa a arte como objeto realizado por um sujeito e percebida por outros
sujeitos. Essa crise do sujeito não é outra se não um dos problemas centrais da filosofia da mente, o
problema da consciência.
A arte, como modalidade histórica do agir humano (Argan, 2004, p. 509) não é criação de
uma consciência desligada de um corpo desligado do mundo. Ao contrário, o autor citado descreve
arte como ação, forma específica de atuação de um corpo em conjunto a outros, que é o que
81
significa a palavra enação. A crise do sujeito pode ser entendida tanto como relativa ao criador
como ao percebedor. A pergunta a seguir pode ser o resumo da crise do sujeito: quem é (onde está)
esse eu, ou self, que faz as escolhas, que tem a intenção e que habita esse corpo material? Quanto à
segunda crise citada por Argan (2004) está relacionada a arte como objeto. É importante observar
que a crise não é problema exclusivo das tecnologias atuais, mas de concepção histórica do termo
arte. O autor entende arte não como um conjunto de obras, mas como atitudes de pessoas, suas
condutas.
Com a crise do objeto, do sujeito e de sua mútua relação, dos processos de pensamento e
das operações técnicas com que a humanidade, ao longo de sua história, analisou e definiu
constantemente seus respectivos valores, encerra-se o ciclo histórico da arte. Durante todo o
tempo que dizemos histórico, a arte foi modelo das atividades com que o sujeito fazia
objetos e colocava-os no mundo, atribuindo um significado de objeto ao próprio mundo e
assim colocando-o como espaço ordenado, lugar da vida, conteúdo da consciência.
(ARGAN, 2004, p. 581).
Na última frase há referências explícitas a conceitos da fenomenologia de Husserl (1983) e,
conseqüentemente, às raízes conceituais de Merleau-Ponty (1996). De fato o autor propõe que os
caminhos estéticos do último quarto do século XX são respostas à tais crises. Há mesmo um
paralelo sendo traçado com relação às mudanças estéticas advindas da mudança do mundo (e/ou a
mudança nas descrições de mundo) entre a Idade Média e a Idade Moderna.
Um dos encaminhamentos aos quais é relevante se observar para contextualizar a
perspectiva de uma estética naturalizada buscada por essa tese, é aquele dado pelo arquiteto e
pesquisador Ted Krueger (2003) ao refletir sobre a natureza do ser humano.:
What we intuit to be our intrinsic nature is only our nature in this world, under the
conditions with which we have had experience. With a sample size of one, we should make
no conclusive judgments about our fundamental nature or our capabilities should
conditions change. The exploration of space will be accompanied by many discoveries - its
permanent inhabitation by the discovery of other expressions of what is human. That may
be the real prize. 55 (KRUEGER, 2003/2012, p. 4).
55
O que intuímos ser a nossa natureza intrínseca é apenas a nossa natureza neste mundo, sob as condições com as quais
tivemos as experiências. Com uma amostra de tamanho específico, não devemos fazer juízos conclusivos sobre a nossa
natureza fundamental ou nossas capacidades se as condições mudam. A exploração do espaço será acompanhada por
muitas descobertas - a sua desabitação permanente pela descoberta de outras expressões do que é humano. Isso pode ser
o verdadeiro prêmio. Tradução nossa.
82
Note-se que o autor inicia tomando o mundo, o meio ambiente como as condições sob as quais
fazemos a experiência de ser humano. E isso é compartilhado por todos os humanos, independente
de nossa definição de ser humano. Em outras palavras, Krueger (2003) indica que o habitar o
mesmo meio-ambiente nos faz parte de uma mesma natureza. O que nos aproxima e pode ser
ampliado pela noção de Merleau-Ponty (1996), de que o mundo faz o sujeito que em seu viver
também faz o mundo, que também não é outra senão a perspectiva enacionista de Varela et al
(1991) ao explicar cognição como processo próprio do viver.
Mesmo sendo ampla a gama de opções estéticas encaminhadas do ponto de vista da variedade
de obras criadas, há também aspectos comuns que podem ser realçados como características do
novo momento. A valorização atribuída ao percebedor, ou ao processo de percepção das obras, pode
ser considerado um desses aspectos. Em todas as modalidades artísticas as técnicas de criação
passaram a envolver nas últimas décadas, cada vez mais considerações acerca do percebedor. Com
mais ou menos intensidade, diversas tecnologias passaram a ser orientadas por essa perspectiva de
valorização dos aspectos perceptivos da obra.
Pode-se ainda tomar como exemplo de crescente atenção aos aspectos perceptivos, o
advento de maior ênfase em estruturas de timbres das composições na música ocidental,
especialmente durante o período entre os séculos XVIII e XX. A música ocidental, tonal
principalmente, tem em sua natureza básica as estruturas desenvolvidas sobre dois parâmetros
físicos do som, a altura e a duração. A partir de tais elementos estruturam-se escalas, ritmos, frases,
cadências e uma grande lista de itens do sistema tonal, ou mesmo do sistema modal medieval, ou de
sistemas modais contemporâneos. O fato a ser ressaltado é que a importância dada pelos
compositores na estruturação do aspecto timbre descreve uma linha crescente em complexidade ao
considerarmos o período de tempo referido. Uma vez que o parâmetro timbre tem certa
complexidade perceptiva maior do que os parâmetros como altura e duração, configura-se um novo
papel atribuído ao percebedor.
As PS podem ser tomadas no contexto de mudanças por conta do papel atribuído ao
percebedor no processo de composição, como exemplos bastante emblemáticos. Entre os diferentes
trabalhos com PS que apareceram com o grupo dos compositores canadenses, há que se destacar um
projeto em especial de Hildegard Westerkamp (Simon Fraser University - Canadá), chamado
83
Soundscape Brasilia56 que ocorreu na capital federal entre os meses de Novembro de 1993 e Maio
de 1994. O projeto foi apoiado pelo Goethe Institute Brasilia e envolveu diferentes atividades como
workshops, palestras e concertos. Nos workshops os participantes compuseram peças de paisagens
sonoras baseadas nas discussões a partir das atividades como soundwalking e gravação de diferentes
ambientes na cidade de Brasília. O objetivo foi a criação de um CD com as obras e um concerto em
espaço aberto.
Figura 23: Marcas do Projeto Soundscape Brasilia de H. Westerkamp (1994)
Fonte: Disponível em: <http://www.sfu.ca/~westerka/workshops/Brasillia/Brasilia%20Soundwalk/
brasilia_walk.html> Aceso em 30 jun. 2013.
Os passeios sonoros (soundwalkings) serviram inicialmente para dar conhecimento aos
autores, das diferentes possibilidades de ambientes sonoros existentes na cidade. Um mapa inicial
listava seis pontos de interesse de modo que foi organizada uma excursão sonora por tais pontos. Os
participantes permaneciam por alguns minutos (entre 10 e 20) nos locais e gravavam situações que
56
Ver mais detalhes em: http://www.sfu.ca/~westerka/workshops/Brasillia/Brasilia%20Workshop/brasilia_work.html>
Acesso em 23 dez. 2012.
84
achavam adequadas para suas composições, que seriam posteriormente desenvolvidas por meio de
manipulações dos sinais das gravações.
Após um histórico do projeto e das características gerais da paisagem sonora de Brasília,
Westerkamp (1994) aponta diretamente para o objetivo que ela entende ser o de seu projeto em
terras brasileiras: More and more I am understanding the project Soundscape Brasilia as creating
such a space for listening, for finding the silences and the sonic character of this city. 57
(WESTERKAMP, 1994/2012). O espaço para a audição é exatamente o caminho pelo qual se
estabelece o vínculo entre a obra, a experiência artística e o mundo em que a experiência ocorre. É
por isso que esse projeto é um dos que se pode considerar como subsidiário direto das poéticas que
se propõem em forma de PSE em direção à estética naturalizada.
Entre as características que a autora cita como princípios para a criação das peças de PS está
o seguinte: By making certain choices of microphone placement, selection of sounds/soundscapes,
choices of juxtapositions and combinations of sounds, the composers present a very specific
perspective of the city.58 (WESTERKAMP, 1994/2012). E a partir disso ela conclui que os
compositores realizaram trabalhos que: [...] walks on the boundaries between dream and waking,
reality and imagination and helps us descend into the unconscious of aural perception.59
(WESTERKAMP, 1994/2012). Pode-se lembrar do termo day-dreaming states, 60 utilizado por
Domingues (2004) para tratar de estados específicos que na experiência artística são ampliados por
meios tecnológicos de modelagens e processamentos diversos baseados em estudos
contemporâneos de percepção e cognição.
Um exemplo também importante a se tomar é o desenvolvimento de obras que transcendam
a fronteira da separação entre modalidades artísticas e busquem no hibridismo dos meios um
caminho para experiências mais sinestésicas e que enunciem o acoplamento e a ação conjunta
(enação) na qual vivemos. Obras que ocupem-se em integrar aspectos da vida e apresentá-los em
57
Mais e mais eu estou entendendo o projeto Soundscape Brasilia como um criador de espaço para a escuta, para
encontrar o silêncio e as características sonoras dessa cidade. Tradução nossa.
58
Por fazerem certas escolhas de locais de microfones, seleção de eventos sonoros/paisagens sonoras, escolhas de
justaposição e combinação de sons, os compositores apresentam perspectivas muito específicas da cidade. Tradução
nossa.
59
[...] caminha nas fronteiras entre o sonho e a vigília, realidade e imaginação e nos ajuda a descer à percepção aural
inconsciente. Tradução nossa.
60
Estados de sonhar-acordado. Tradução do autor.
85
forma de experiências estéticas, são exemplos que norteiam a proposta de uma estética naturalizada
para a qual a presente pesquisa aponta. Dentre tais, o caso da artista e pesquisadora estadunidense
Andrea Polli (Universidade do Novo México) é um destaque com bastante relevância por conta de
sua complexidade e da amplitude da gama de conhecimentos envolvidos.
Polli (2004) trabalha desde a última década do século XX com cientistas de áreas como
computação, engenharia e climatologia, de modo a desenvolver e realizar experiências estéticas e
científicas com sonificação de dados advindos de tais áreas científicas. Pode-se dizer que suas
atividades além de interessar pela dimensão estética que envolvem, também interessam a cientistas
por oferecer novidades úteis ao avanço da pesquisa, como se pode ler na citação a seguir:
Translating meteorological data to sound could emphasize aspects of the data not apparent
in visualizations, allowing meteorologists to detect new patterns and structures,
particularly those that unfold over time. Unlike a still visual image, music and soundscapes
are inherently narrative.61 (POLLI, 2004/201262 , p. 1).
Esse fator narrativo, por conta da sintaxe temporal própria da manifestação musical e sonora, é o
que tem permitido em muitos casos à ciência encontrar maneiras mais amplas de interpretar dados.
A sonificação de dados têm sido empregada por Polli em diversas situações e projetos nos quais ela
sempre mantém essa duplicidade de interesses, tanto estéticos quanto científicos. No caso que se
mostrará adiante, anuros anfíbios são utilizados como biomarcadores por meio da classificação dos
seus padrões de emissão sonora. No entanto o projeto não envolve apenas a sonificação dos dados,
uma vez que os dados originais (dos anfíbios) já são sonoros, mas antes envolve visualização de tais
dados, bem como seu processamento com dados extraídos de imagens e movimentos, e
posteriormente sonificados.
Para a pesquisa artística os trabalhos de sonificação de dados atmosféricos (advindos de
fenômenos tais como furacões e tempestades) realizados por Polli (2004) também são bastante
importantes. O primeiro aspecto que a autora realça é:
61
Traduzir dados meteorológicos para sons pode enfatizar aspectos não aparentes nas visualizações, permitindo ao
meteorologista detectar novas estruturas e padrões, particularmente aquelas que se escondem sob o tempo.
Diferentemente de uma imagem visual estática, os sons e as paisagens sonoras são inerentemente narrativas. Tradução
nossa.
62
Cf. <http://www.icad.org/websiteV2.0/Conferences/ICAD2004/papers/polli.pdf> Acesso em 30 abr.2012.
86
The organized complexity of a hurricane potentially offers rich combinations of patterns
and shapes that, when translated into sound, create exciting compositions. [...] emotional
connection with data could serve as a memory aid and increase the human understanding
of the forces at work behind the data. 63 (POLLI, 2004/2012, p. 2).
A conexão entre os estados emocionais e os dados sonificados envolvem-se em um ciclo de
percepção e ação que enfatizam uma dimensão enacionista de diferentes instalações projetadas por
Polli. Na obra que a autora apresenta no paper citado acima, mostra um trabalho realizado com um
cientista meteorologista também estadunidense.
Figura 24: Modelagem de tempestade para peça de A. Polli (2004)
Fonte: Disponível em: <http://www.icad.org/websiteV2.0/Conferences/ICAD2004/papers/polli.pdf>
Acesso em 30 jun. 2013.
63
A complexidade da organização de um furacão tem o potencial de oferecer combinações ricas de padrões e formas
que, quando traduzidas em som, criam composições interessantes. [...] a conexão emocional com os dados pode servir
como um auxiliar de memória e aumentar a compreensão humana das forças atuantes por trás dos dados. Tradução
nossa.
87
Figura 25: Figura de modelagem de tempestade para peça de A. Polli (2004)
Fonte: Disponível em: <http://www.icad.org/websiteV2.0/Conferences/
ICAD2004/papers/polli.pdf> Acesso em 30 jun. 2013.
Figura 26: Camadas da modelagem das tempestades.
Fonte: Disponível em: <http://www.icad.org/websiteV2.0/Conferences/ICAD2004/papers/polli.pdf> Acesso em
30 jun. 2013.
88
As imagens ilustram alguns aspectos do trabalho da professora da Universidade do Novo
México, que foi uma sonificação espacializada de duas tempestades (que ocorreram nos espaços
mostrados nas figuras acima) com características bem distintas entre si. Por meio da associação de
parâmetros de variáveis específicas vindas dos dados das tempestades, Polli (2004) preparou um
algoritmo que escolhia eventos sonoros em um banco de dados que incluía: [...] vocal sounds,
sounds created by wind instruments, and environmental sounds including the sounds created by
various insects.64 (POLLI, 2004/2012, p. 4). Esse algoritmo também tratava de preparar a devida
espacialização dos diferentes eventos sonoros escolhidos por meio dos alto-falantes espalhados por
um espaço anteriormente especificado.
A implementação dos algoritmos foi realizada com o programa MAX/MSP, e os mesmos
foram feitos a partir da leitura dos dados advindos dos modelos matemáticos das tempestades. Entre
outras teorias que suportaram essa empreitada, Polli (2004) trabalhou a partir do atrator de Lorenz
para criar seu modelo, conforme explica no texto referido: The attractor established a waxing and
waning pattern that a live musician could anticipate and respond to.65 Esse modelo de atrator
matemático foi descrito por E. Lorenz, na década de 1960 a partir de estudos de equações que
modelassem os fluxos atmosféricos. Trata-se de uma descrição topográfica caótica do
desenvolvimento dos estados de um sistema dinâmico (POLLI, 2004, p. 1). A autora afirma que
com o uso desse atrator na montagem do algoritmo conseguiu proporcionar imprevisibilidade em
projetos utilizando sistemas caóticos de composição musical.
Uma das hipóteses, tanto estéticas como científicas a que a autora se refere é a possibilidade
de reconhecer ou não as diferenças entre as duas tempestades por meio da experiência da
sonificação de seus dados, feitos a partir dos mesmos modelos e algoritmos para os dois casos. O
artigo de Polli (2004) encerra-se com a descrição breve sobre algumas reações acerca da
experiência da obra.
64
[...] sons vocais, sons criados por instrumentos de sopro, e sons do meio-ambiente incluindo sons criados por vários
insetos. Tradução nossa.
65
O atrator estabeleceu o mais fraco e mais forte padrão que o músico ao vivo podia antecipar e responder. Tradução
nossa.
89
4.3 ENACIONISMO, FENOMENOLOGIA E ECOLOGIA
Se a percepção tem se tornado um tema central na investigação estética e poética, a filosofia
já estuda suas características e definições desde a Grécia Clássica. Não cabe ao presente texto uma
análise histórica dos estudos sobre percepção, antes, a intenção é apenas ressaltar que tais estudos
nos últimos dois séculos, e mais ainda nos últimos cinqüenta anos, têm raízes profundas e também
profundas implicações com conceitos como conhecimento, aprendizagem, memória, habilidades
sensório-motoras, entre outros, temas centrais para Platão e Aristóteles, por exemplo. Também a
filosofia contemporânea dedica espaço a tal investigação. Há, sobretudo, um movimento que se
construiu no final do século XIX e início do século XX, com F. Brentano (1995 [1874]) e E.
Husserl (1983 [1913]), que encaminha princípios do que hoje se denomina por fenomenologia na
tradição da filosofia. O termo já havia sido utilizado em diversas outras situações, por vários outros
autores, como Kant e Hegel, mas é com filósofos como Husserl e seus alunos, como M. Heidegger
e M. Merleau-Ponty, que se coloca a fenomenologia como uma abordagem ampla em filosofia,
abrangendo aspectos ontológicos, epistemológicos, éticos, estéticos e lógicos. A tradição encontra
ainda entre autores do final do século XX e início do XXI, como Maturana, Varela, Clark e Noë
(entre diversos outros) importantes continuadores das proposições fenomenológicas acerca da
percepção e cognição.
Na filosofia a perspectiva fenomenológica configurou-se uma alternativa importante à
esquiva de problemas que a tradição cartesiana tinha aprofundado sem resolver, como a relação
mente/corpo, as noções de sujeito e objeto, ontológica e epistemologicamente. Como decorrência
do trabalho de Husserl (1983) há que se considerar ao menos três caminhos distintos, mas por vezes
complementares, de continuação e expansão desse movimento que foi se denominando por
fenomenologia. Tais caminhos foram propostos por três diferentes autores, a saber, Heidegger,
Sartre e Merleau-Ponty. Este último é mais central para os objetivos dessa investigação,
especialmente por sua atenção dispensada à problemas da percepção e cognição. Suas obras
apresentam conceitos que se constituem novidades na tradição do estudo da percepção. Entre tais
novidades conceituais encontra-se especialmente um novo papel atribuído ao corpo e sua ação no
mundo, seu modo de viver, ser e interagir com outros corpos. Para Merleau-Ponty (2002) é sobre as
90
ações dos corpos, de maneiras específicas, que se fundam os hábitos, as significações e em última
análise, a cultura.
É a operação expressiva do corpo, começada pela menor percepção, que se amplifica em
pintura e em arte. [...] o primeiro desenho na parede das cavernas só fundava uma tradição
porque recolhia outra: a da percepção. A quase eternidade da arte se confunde com a quase
eternidade da existência encarnada, e temos em nosso corpo, antes de qualquer iniciação à
arte, a primeira experiência do corpo impalpável da história. (MERLEAU-PONTY, 2002, p.
111).
Contar com a ação corporal do ouvinte-participante na obra será fundamental para alcançar
uma possibilidade de experiência estética enacionista e naturalizada, distinta daquela na qual o
ouvinte escuta sentado em uma poltrona dentro de um teatro silencioso e confortável, ou passeia
isolado do mundo dentro de uma galeria de arte. A proposta conceitual de Merleau-Ponty (2002)
oferece novo papel para o corpo conseguir formas de ouvir, sentir, emocionar e de significar. É do
conceito de estilo como meio de viver (Merleau-Ponty, 2002, p. 86), que o autor aponta ser
decorrente a possibilidade de significação. Na seqüência pode-se ler que: Significação decorre de
uma maneira típica de habitar o mundo [...]. (Merleau-Ponty, 2002, p. 87).
Dessa maneira a fenomenologia de Merleau-Ponty coloca novas perspectivas ao estudo da
percepção quando relacionada à concepção da tradição anterior. Essas perspectivas podem ser
revertidas em possibilidades de ação em criação artística. E isso permite que se desenvolva um
conjunto procedimental para realizar obras, experiências artísticas em diversas modalidades.
Há uma importante possibilidade de integração entre modalidades artísticas buscando obras
que promovam experiências sinestésicas. As instalações do LART - UnB/Gama têm sido uma
dessas possibilidades exploradas, conforme se mostrará nos próximos capítulos. Com o uso de
instrumentos tecnológicos digitais diversos, tem sido possível a criação de obras artísticas
envolvendo a proposição de ambientes com ação coletiva (enação) de diferentes categorias de
participantes. Tais obras, a partir dos referenciais conceituais da fenomenologia, do enacionismo e
da ecologia, podem ser descritas como propriedades emergentes de sistemas complexos dinâmicos e
por vezes auto-organizados. Isso parece ter relevância na medida em que se encaminha um conjunto
de poéticas próprias de uma estética naturalizada, entendida como desdobramento da abordagem
fenomenológica.
91
As relações e consequências dessa nova perspectiva filosófica sobre a percepção
coincidiram, ou, motivaram outras áreas do conhecimento, que se dedicam ao mesmo assunto, a
encontrar novos caminhos explicativos para velhas questões. A Psicologia foi uma dessas áreas e
viveu uma história bastante intensa, sobretudo após as duas guerras mundiais, quando a tecnologia
advinda de tais eventos começou uma crescente influência no comportamento humano e nas
possibilidades de seu estudo. Autores como os citados nos parágrafos anteriores direcionaram muito
de sua reflexão para essa área do conhecimento. Na década de 1950, apareceram os primeiros
escritos de J. J. Gibson que mostravam um novo entendimento sendo delineado para o estudo sobre
percepção. Nas duas próximas décadas, o autor apresentou em forma de dois livros (1966 e 1979)
sua “Teoria da Percepção Direta”, ou Theory of Information Pick-up. Vários conceitos foram
postulados na construção de um modelo teórico para a percepção, que constituiu-se na chamada
abordagem ecológica da percepção.
First, it involves a new notion of perception, not just a new theory of the process. Second, it
involves a new assumption about what there is to be perceived. Third, it involves a new
conception of the information for perception, [...]. Fourth, it requires the new assumption of
perceptual systems [...]. Finally, fifth, optical information pickup entails an activity of the
system not theretofore imagined by any visual scientist, the concurrent registering of both
persistence and change in the flow of structured stimulation.66 (GIBSON, 1979/1986, p.
239).
Há na citação acima um bom resumo da comparação entre a abordagem ecológica da percepção e as
tendências do paradigma do processamento de informações simbólicas. Para Gibson (1979) a
percepção está acoplada à ação em um ciclo contínuo que faz emergir propriedades específicas.
Entre tais propriedades encontra-se a constituição da significação enquanto possibilidades de ação
(affordances) de um percebedor frente a detecção de determinadas formas de mudança (invariantes)
de um evento em especial no mundo.
Embora possam ser detectadas diferenças em algumas de suas premissas, a concepção
ecológica da percepção conforme apresentada por Gibson (1966 e 1979) encontra diversos pontos
em comum com a proposta de descrição da percepção de Maturana (1998) e de Varela et al (1991).
Para tais autores a percepção de um determinado evento é sempre uma configuração entre os
66
Primeiro, isso envolve uma nova noção de percepção, não apenas uma nova teoria do processo. Segundo, isso envolve
uma nova hipótese sobre o que há para ser percebido. Terceiro, isso envolve uma nova concepção de informação para a
percepção. [...] Quarto, isso requer uma nova hipótese de sistema perceptual [...]. Finalmente, quinto, a coleta da
informação ótica acarreta uma atividade não imaginada de forma evidente por nenhum cientista visual o registro
concorrente de ambos, persistência e mudança no fluxo da estimulação estruturada. Tradução nossa.
92
padrões de ação, ou padrões condutuais (conduta como história das ações) entre o percebedor e o
percebido. Em Maturana, pode-se ler:
Tendo em vista que os objetos perceptuais surgem como configurações condutuais, o
mundo dos objetos perceptuais compartilhados pertence ao âmbito das concordâncias
operacionais entre organismos, os quais os constituem no curso de sua convivência como
configurações de suas concordâncias condutuais. Em outras palavras, se os objetos
perceptuais ficam configurados pelas condutas do organismo, incluindo ao observador,
somente pode surgir desta convivência enquanto os organismos operem gerando e
conservando sua mútua correspondência estrutural. (MATURANA, 1998, p. 60).
Ao afirmar que objetos perceptuais, ou seja, aquilo que se experiencia, surgem como
configurações de condutas compartilhadas entre percebedor e percebido, o autor se relaciona
diretamente à perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty (1996), sobretudo se lembramos de
sua afirmação de que o eu faz o mundo, mas um mundo que se faz enquanto faz o próprio eu. Na
continuação da citação de Maturana (1998), o uso da expressão: mútua correspondência, não deixa
esquecer, por outro lado, o mutualismo que Gibson (1966 e 1979) aponta entre organismo e meio,
como condição de fundo para a ocorrência de percepção.
Outro traço comum entre os autores até agora mencionados, mesmo atuando em
áreas do conhecimento distintas como a filosofia, a psicologia e a ciência cognitiva, tem sido a
descrição de conhecimento como ação, ou ainda, possibilidade, potencial de ação. A descrição é a
própria definição enacionista. Em Varela et al (1991) pode-se ler sobre o que é perceber a cor:
We have seen that colors are not “out there” independent of our perception and cognitive
capacities. We have also seen that colors are not “in there” independent to of our
surrounding biological and cultural world. Contrary to the objectivist view, color
categories are experiential; contrary to subjectivist view color categories belong to our
shared biological and cultural world.67 (VARELA, THOMPSON AND ROSH, 1991, p.
172).
A partir do caminho explicativo desenvolvido por Merleau-Ponty (1996) e Varela et al
(1991), Maturana (1997) e outros autores vêm desenvolvendo o que denominam por enacionismo,
ou atuacionismo, no contexto da ciência cognitiva, e isso muda profundamente a maneira de
67
Nós temos visto que as cores não estão lá fora independentes de nossa percepção e capacidades cognitivas. Nós
também temos visto que as cores não estão aqui dentro independente de nosso meio circundante biológico e cultural. Ao
contrário da visão objetivista, categorias de cores são experienciais; contrariamente à visão subjetiva categorias de cores
pertencem ao nosso mundo biológico e cultural compartilhados. Tradução nossa.
93
descrever cognição, percepção e seus funcionamentos. Os autores propõem a noção de percepção
como ação perceptivamente orientada, e afirmam também que: [...] cognitive structures emerge
from the recurrent sensoriomotor pattern that enable action to be perceptually guided.68 (VARELA,
THOMPSON and ROSCH, 1991, p. 173). Isso é a própria definição de cognição para o
encaionismo. Em trechos posteriores os próprios autores reconhecem sua filiação à tradição
fenomenológica de Merleau-Ponty e trazem claramente sua concepção de percepção não só como
parte de um mundo, mas como colaboradora com a atuação, com a realização desse mesmo mundo.
A partir da exposição dos argumentos dos autores citados até aqui, cabe apresentar uma
maneira bastante direta de conceber o conceito de percepção e que também vincula-se à essa
tradição fenomenológica a qual vêm se tratando. A. Noë (2004) descreve os tipos de ação
envolvidos na percepção. Dito de outra forma ele postula percepção como ação e busca esclarecer e
descrever os tipos de ações específicas que formam isso que se denomina por percepção. Não se
encontra em Noë (2004) um alinhamento conceitual pleno com Varela et al (1991), que também
denomina sua abordagem como enacionista, mas não cabe ao fôlego do presente texto uma
comparação mais detalhada entre as duas propostas de teorias enacionistas.69
Direcionaremos a
atenção à pontos convergentes nas duas propostas e também entre as abordagens psicológicas e
filosóficas descritas anteriormente.
Um desses pontos de convergência pode ser observado na descrição de percepção como um
encontro com o mundo através de ajustes de padrões sensório-motores, encontros exploratórios, em
busca de recolher informação disponível no meio. Para Noë (2004) a percepção é uma ação de
exploração do meio em busca de padrões informacionais (ou conteúdos virtuais) detectados a partir
do desenvolvimento de hábitos suportados por habilidades sensório-motoras. A relação com
ecologia gibsoniana é marcante com o uso do conceito de informação disponível no meio, ou ainda
pela descrição de perceber como buscar por tal informação no meio. Para Gibson (1966) e Noë
(2004) a informação está disponível no meio para o percebedor, porque este tem a possibilidade de
acessá-la através do movimento proveniente de seus potenciais de ação no mundo. Pode-se
encontrar também vínculo com a definição de percepção para Maturana (2003) como configuração
condutual resultante do acoplamento estrutural entre organismo e meio. The visual potential of a
68
[...] estruturas cognitivas emergem de padrões sensório-motores recorrentes, padrões que permitem à ação ser
perceptivamente orientada. Tradução nossa.
69
Maiores detalhes sobre tais distinções foram realizadas por L Shapiro (2011).
94
cube (at least with respect to shape) is the way its aspect changes as a result of a moviment. 70
(NOË, 2004, p. 77).
De acordo com Krueger (2003/2012, p. 5): Alteration of fundamental aspects of
environments requires adaptive physiological and perceptual responses.71 O que o autor realça e
que vai ao encontro da perspectiva de Noë (2004) é o estreito vínculo entre o ser humano e seu
meio-ambiente. Na sequência do texto em que Krueger (2003) examina a pergunta pelo que nos
caracteriza como humanos ele vai afirmar que sua busca é ilustrar que: [...] there is a profound
interdependence between humans and environments.72
(KRUEGER, 2003/2012, p. 5). Essa
afirmação é bastante próxima também da abordagem ecológica de Gibson (1966 e 1979) quando
trata do mutualismo entre percebedor e meio-ambiente. E é relevante apresentar tais relações para
que se compreenda a amplitude das aplicações e implicações poéticas e estéticas dos casos das PSE
que serão descritas posteriormente.
Na citação a seguir Krueger (2003) aborda diretamente o que as perspectivas externalistas
(Noë, 2004, 2009; Clark, 2008 e Shapiro, 2011) têm afirmado em seus argumentos centrais.
One implication of the view of that the both the self and the external world are the result of
inferential processes rather than intrinsic properties is that it should be possible to modify
what is experienced as ‘self’ or as ‘world’ by means of a specific couplings of organism and
artifact. The body image varies with circunstance.73 KRUEGER, 2003/2012, p. 7).
Ao tratar do acoplamento entre o homem e o mundo, o autor toca diretamente também em aspectos
de trabalhos artísticos como os de Char Davies (2002/2012), ou de Diana Domingues (2004). As
duas artistas/pesquisadoras, entre vários outros, propõem obras que oferecem a possibilidade de se
sentir conectado ao mundo virtual e perceber sua existência nesse ambiente através de suas
conexões perceptivas. Uma nítida experiência de expansão das possibilidades estéticas por meio de
alterações no acoplamento estrutural entre homem e meio-ambiente.
70
O potencial visual de um cubo (ao menos com respeito à sua forma) é o modo como seus aspectos mudam como
resultado do movimento. Tradução nossa.
71
Alterações de aspectos fundamentais do meio-ambiente requerem respostas adaptivas psicológicas e perceptuais.
Tradução nossa.
72
[...] há uma profunda interdependência entre humanos e o meio-ambiente. Tradução nossa.
73
Uma implicação da visão de que ambos, o self e o mundo externo são o resultado de processos inferenciais antes de
propriedades intrínsecas é que é possível modificar o que é experienciado como self ou como “mundo” por meio de
específicos acoplamentos entre organismo e artefatos. A imagem corporal varia com as circunstâncias. Tradução nossa.
95
O enacionismo de Noë (2004 e 2009) evidencia o caráter externalista daquilo que se
denomina por mente. De acordo com a perspectiva o conteúdo de uma experiência encontra-se fora
da cabeça do percebedor, como uma possibilidade de vida, de ações frente aos eventos do mundo, e
não como um conjunto de disparos neuronais, ou um conjunto de ações bioquímicas, ou outro
modelo matemático qualquer que venha a descrever o funcionamento do corpo como algo isolado
do meio. Antes, segundo o autor a percepção é o modo de encontrar com o fenômeno, com as
aparências, acompanhar suas mudanças. Tais ações, de perceber, são realizadas continuamente na
vida do organismo, enquanto vive e porque vive, através de hábitos sensório-motores desenvolvidos
durante o próprio viver.
São diversos os exemplos, além de alguns já citados anteriormente, que podem ser utilizados
para mostrar que durante a década passada, e mesmo durante a retrasada, alguns desses conceitos
acerca de enação estavam sendo experimentados artisticamente. São os casos de Osmose de Char
Davies (1995) e HeartScapes de Diana Domingues (2005). Na primeira obra, a artista em 1995,
busca no título a referência à membranas que permitem tipos de passagem, como ocorre na
explicação biológica acerca do processo de osmose. Não é em absoluto o objetivo aqui traçar um
estudo detalhado sobre essa obra, mas antes, chamar a atenção para ela enquanto uma das
precursoras do que está se denominado por estética naturalizada por meio de poéticas enacionistas.
Para além da metáfora da membrana permeável, que possibilita transições entre o que está fora e o
que está dentro, a autora canadense esclarece suas motivações:
Osmose as an artwork is motivated by the desire to heal the Cartesian split between mind/
body, subject/object, which has shaped our cultural values and contributed to the West's
dominating stance towards (and estrangement from) life. In this context, Osmose seeks to
re-sensitise—reconnecting mind, body and world. 74 (DAVIES, 2002).
Interessa ver que dois anos depois de Osmose, o filósofo Andy Clark (1997) escreve Being there:
putting brain, body and world together again75, obra seminal em filosofia da mente e um marco no
enacionismo. Na citação, Davies (2002) vai diretamente ao ponto central ao qual refere-se Argan
(2004) como núcleo de uma crise da arte moderna, a separação entre objeto e sujeito, que pode ser
74
Osmose enquanto uma obra de arte é motivada pelo desejo de superar a divisão cartesiana entre mente/corpo, sujeito/
objeto, os quais têm formado nossos valores culturais e contribuido à instância dominadora ocidental em direção à (e
estranhamente da) vida. Nesse sentido Osmose busca re-sintetisar, reconectar mente, corpo e mundo. Tradução nossa.
75
Estando lá: colocando o cérebro, o corpo e o mundo juntos novamente. Tradução nossa.
96
experienciada de forma bastante distinta com a obra da autora. No texto de 2002 ela explicita uma
série de aspectos conceituais que se remetem e relacionam-se diretamente com as noções de
ecologia, enacionismo e fenomenologia. A citação acima é mesmo uma carta de princípios
fundamentais para a abordagem poética enacionista em direção à estética naturalizada.
Figura 27: Virtual reality headset de Osmose de C. Davies (1995)
Fonte: Disponível em: < http://www.laboralcentrodearte.org/en/recursos/obras/osmose-1995 Acesso
em 30 jun. 2013.
97
Figura 28: Visão interna do espaço experimentado em Osmose, de C. Davies (1995)
Fonte: Disponível em: < http://www.digitalstudies.org/ojs/index.php/digital_studies/article/view/181/249> Acesso em
30 jun. 2013.
É relevante apontar a referência que Davies (2002) faz a um estado específico de dreamlike
way76 , o qual caracteriza como uma espécie de borrão na linha que separa os padrões sensóriomotores habituais dos não habituais. Domingues (2004) refere-se também a um estado que
denomina por day-dreaming77, que é proporcionado pela ampliação oferecida à percepção por meio
dos aparatos tecnológicos específicos como os headsets (óculos de realidade virtual ou aumentada)
e também por meio de C.A.V.Es.78. Tal ampliação da percepção através da alteração do espaço, da
qual fala Davies é a mesma que Domingues propõe com a obra HeartScapes, que também
76
Como no sonho. Tradução nossa.
77
Sonhando acordado. Tradução do autor.
78
Cave Automatic Virtual Environment - Caverna Automática de Espaço Virtual. Tradução nossa.
98
considera-se como precursora direta do que se descreve como estética naturalizada através de
experiências com poéticas enacionistas.
By interacting with a digital world inside our Cave, we emphasize the semiotic process of
signals translation between body and artificial world. [...]. The natural signals enable the
body to act externally, expanding our biological life to the outside. [...] This signals can be
controling by moving eyes, and can be assumed as a proprioceptive way in the operational
and interactive concept. 79 (DOMINGUES, 2005/2012).
Essa experiência de expansão da vida do corpo original, de certa forma do mesmo modo como
ocorre em Osmose, permite perceber o corpo conectado ao meio de maneiras não habituais. Em
HeartScapes, o movimento dos olhos controla objetos no espaço virtual, o que modifica o meio
pelo qual se opera com os objetos habitualmente. Esse re-acoplar em realidades distintas da
habitual, como é o caso da experiência na C.A.V.E., permite experiências artísticas próprias dos
instrumentos/tecnologias que são desenvolvidos a partir dos estudos em percepção e cognição pelo
paradigma ao qual está envolvida a teoria enacionista de cognição e percepção.
Figura 29: Ilustração 3D da C.A.V.E. de HeartScape de Diana Domingues (2004)
Fonte: Disponível em: <http://repositorio.unb.br/> Acesso em 30 jun. 2013.
79
Pela interação com o mundo digital dentro de nossa CAVE, enfatizamos os processos semióticos de tradução de
sinais entre corpo e mundo artificial [...]. Os sinais naturais permitem ao corpo agir externamente, expandindo nossa
vida biológica para fora. Estes sinais podem ser controlados por movimentos dos olhos e podem ser tomados como um
modo proprioceptivo para os conceitos de operacão e interação. Tradução nossa.
99
Figura 30: Imagem da instalação Heartscapes de D. Domingues (2004)
Fonte: Disponível em: <http://repositorio.unb.br/> Acesso em 30 jun. 2013.
Domingues (2004) abordando os sistemas dialógicos e colaborativos que envolvem agentes
computacionais, vivos e não-vivos, humanos e não-humanos, afirma que: [...] these systems can
alredy create syntetic lives or hybrid lives by coupling the natural and the virtual.80
(DOMINGUES, 2004, p. 309). Esse acoplamento entre natureza e virtualidade, o qual oferece uma
expansão da experiência, é característica fundamental no desenvolvimento das tecnologias diversas
suportadas por estudos em ecologia, enacionismo e fenomenologia. A aproximação entre vida e
arte, da qual já havia falado o músico Luiggi Russolo (e diversos outros artistas) é agora
experimentado em obras como Osmose ou HeartScapes. Domingues (2004) explicita o
acoplamento indicando ainda o nascimento de um outro nível de experiência, próprio da diluição
das fronteiras fixas entre as modalidades perceptivas habituais, permitida pelas tecnologias de
ampliação dos diferentes sistemas perceptivos.
A perspectiva externalista do enacionismo de Noë (2004, 2009), e ainda Andy Clark (2003,
2008) permite ampliar a atenção sobre a importância de procedimentos propostos para a criação das
PSE. Além de todo o conjunto de possibilidades existentes a partir da manipulação (processamento
de sinal e difusão em multi-canal) de diferentes fontes sonoras (como provenientes de locais
distintos e por meio de artefatos computacionais e biológicos distintos) para a criação de eventos
sonoros que permitam experiências específicas, há ainda diversas outras potencialidades estéticas
80
[...] esses sistemas podem prontamente criar vida sintética ou vida híbrida por meio do acoplamento entre o natural e
o virtual. Tradução nossa.
100
por conta se de criar espaços nos quais o espectador/participante transite para experimentar
diferentes possibilidades da situação/obra. Se a mente se faz no mundo fora da cabeça (Noë, 2004)
ou, se o mundo expande nossa mente (Clark, 2003 e 2008), fica aberta uma possibilidade de
realização de experiências estéticas próprias de possibilidades de modulações específicas nas
relações com o mundo. Fica explícita a possibilidade e mesmo certa necessidade de re-engenharia
dos recursos sensório-motores enquanto re-engenharia do próprio ser expandido e distribuído no
mundo.
101
5 PAISAGEM SONORA COMO OBRA HÍBRIDA
O cyberespaço. Uma alucinação consensual vivida diariamente por bilhões
de operadores autorizados, em todas as nações, por crianças aprendendo altos
conceitos matemáticos. (W. Gibson - Neuromancer)
5.1 MODALIDADES ARTÍSTICAS E OS MODOS DE ATENÇÃO DE GIBSON
De acordo com Gibson (1966) o ser humano, em sua história, desenvolveu cinco modos de
atenção ao mundo, cinco sistemas perceptivos específicos, que orientam toda a sua ação no mundo
onde vive. Gibson (1966) os nomeou como: sistema de orientação básica, sistema visual, sistema
auditivo, sistemas tátil e gustativo. O referido autor trata da descrição de tais sistemas em uma obra
na qual propõe uma mudança conceitual no estudo da percepção que desloca o foco daquilo que se
entendia por órgão do sentido para o que ele passa a denominar por sistema perceptivo. Associada a
essa mudança conceitual vem uma nova abordagem para o estudo da percepção, chamada de
ecológica, ou de teoria da percepção direta. Essa abordagem valoriza os aspectos relacionais entre
os percebedores e as ações de seus corpos em locais específicos do meio-ambiente. A abordagem
ecológica da percepção tem permitido uma descrição da arte como um tipo de hábito perceptivo
consensual de certo grupo de indivíduos em locais e épocas específicas.
Uma vez que a arte é característica própria dos hábitos do ciclo de percepção-ação humana,
pode-se relacionar as diferentes modalidades artísticas com nossas diferentes possibilidades de
percepção (modos de atenção) e de detecção de informação no meio. Com o sistema auditivo,
detecta-se informação sonora e pode-se fazer música. Com o sistema visual encontra-se informação
luminosa no meio e pode-se fazer diferentes tipos de artes visuais, tais como pintura, escultura e
desenho. O sistema de orientação básica e o tátil estão diretamente envolvidos na ação dos
arquitetos e, ao mesmo tempo, dos coreógrafos quando elaboram suas obras. Essa forma de
descrição dos modos de atenção ao mundo, dada por Gibson (1966), é o suporte para uma
verdadeira revolução na descrição das atividades perceptivas feita pela chamada abordagem
ecológica do estudo da percepção.
Seguindo esse ponto de vista, cada um dos modos de atenção propiciou, na história do
homem, o aparecimento de hábitos específicos que, por sua vez, produziram um conjunto de
realizações, obras, que se denominam consensualmente por arte. A prosperidade do sistema
102
perceptivo auditivo propiciou, ao ser humano, novos hábitos de audição a partir de novos hábitos de
geração e produção sonora. E isso fez e faz nossa história da música e da produção sonora em geral.
Algo semelhante ocorre com relação aos outros modos de atenção e às outras modalidades
artísticas. Essas modalidades distinguem-se pelos sistemas perceptivos aos quais estão ligadas e, de
acordo com Gibson (1966), pelos hábitos de percepção e ação que desenvolvem.
É importante ressaltar que para Gibson a noção de informação é descrita como uma seta bidirecional, com uma ponta voltada para o percebedor e outra para o meio-ambiente. A noção
gibsoniana de informação é caracterizada por Michaels e Carello (1981, p. 39) como: [...] a dual
concept whose components can be described as information-about and information-for. 81 Por
informação-para, podemos entender um tipo de informação que especifica ou disponibiliza um
conjunto restrito de ações no meio-ambiente; e por informação-sobre, podemos entender a
informação que permite identificar e reconhecer a estrutura do objeto percebido no meio-ambiente.
De acordo com Michaels e Carello (1981, p. 40), muito da noção de informação-sobre está expresso
na noção de invariante, que pode ser descrita como: [...] patterns of stimulations over time and/or
space that are left unchanged by certain transformation.82
O segundo aspecto da noção gibsoniana de informação, denominado informação-para, pode
ser descrito e compreendido a partir da noção de affordance.83 Gibson (1979) apresenta o
neologismo affordance como a percepção direta das consequências de uma dada situação para a
ação. Perceber algo é perceber o que esse algo significa e conseqüentemente possibilita, permite ,
oferece, (‘affords’). Nesse sentido a noção de affordance pode ser entendida como o conjunto de
possibilidades de ação gerado a partir da percepção de determinado evento. Nas palavras de Gibson:
The affordances of environment are what it offers the animal, what it provides or furnishes, either
for good or ill.84 (GIBSON, 1979, p. 127).
81
[...] um duplo conceito cujos componentes podem ser descritos como informação-sobre e informação-para. Tradução
nossa.
82
Padrões de estimulação sobre o tempo e/ou espaço que são deixados sem mudanças sob certa transformação.
Tradução nossa.
83
Na literatura científica da área de ecologia não costuma-se traduzir o neologismo gibsoniano affordance. Manteremos
o conceito no original. Lembre-se que uma possível tradução para o verbo to afford é oferecer, possibilitar, permitir ou
ainda, favorecer.
84
Os affordances do meio ambiente são aquilo que ele oferece ao animal, o que ele provém ou permite, para o bem e
para o mal. Tradução nossa.
103
Os exemplos de detecção de affordances que Gibson (1979) utiliza, são praticamente todos
para a percepção visual. Mas analogamente ao que o autor considera como affordance detectado
pelo sistema visual, pode-se pensar que eventos sonoros possibilitam, permitem e sugerem
determinados tipos de comportamentos de acordo com seus significados detectados pelo percebedor
em um contexto específico. Apenas para ilustração, como um exemplo de affordance sonoro,
imagine-se um esportista (nadador ou corredor) que espera ouvir o som do tiro para começar a
corrida. Nesse caso, o estampido provocado pela explosão da pólvora sugere que o percebedor deve
sair correndo (caso do corredor) o mais rápido possível se seu objetivo for vencer a prova. Por outro
lado, se alguém ouve o som de um tiro em um escritório, o comportamento mais provável e possível
será buscar proteção. Ou seja, o mesmo padrão sonoro em um contexto diferente gera affordances
diferentes.85
Ao tratar da relação entre imagem, percepção e tempo, Santaella e Nöth (1997, p.73)
afirmam que as artes visuais e a música devem ser tomadas por dois sistemas de signos distintos. O
primeiro toma corpo na simultaneidade do espaço, enquanto o segundo, [...] toma corpo na
sequencialidade do tempo. Temos ai uma descrição que incorpora um modelo mais amplo do que
sua aplicação restrita ao universo da música e das artes visuais. Parece que podemos categorizar
diversas outras modalidades artísticas como espécies de gradações entre esses dois modelos
estabelecidos como dois pólos, a simultaneidade do espaço de um lado, e a sequencialidade do
tempo, de outro.
Veja-se o caso da dança. Enquanto ação de um corpo (ou mais de um) no mundo, ela está
intimamente dependente da sequencialidade do tempo. Entretanto, o corpo se movimenta no espaço
e com isso há uma sintaxe do espaço, de como ocupá-lo adequadamente na atividade de dançar. A
dança parece ser o caso de uma gradação média entre esses dois pólos. Em outras palavras, para a
descrição proposta por Santaella e Nöth (1997), a dança pode ser tomada como dependente de
maneira equilibrada ao mesmo tempo da sequencialidade do tempo e da simultaneidade do espaço.
Pode-se dizer que, em certo sentido, as noções de espaço e tempo também participam juntas
de outros sistemas, sempre de maneira relativa aos hábitos de percepção e ação dos sistemas
perceptivos. Nesse sentido a música representa bem um sistema sígnico que depende muito mais da
85
Maiores informações sobre uma leitura sonora das teorias de J. J. Gibson podem ser encontradas em Oliveira (2002).
104
sequencialidade do tempo do que das relações com o espaço. Tais relações de espaço, todavia,
segundo E. Clarke, estão presentes de maneira simulada e metafórica na música.
Musical motion and space is metaphorical because the properties of real space and motion
have been transferred across to another domain where they have no literal application. 86
(CLARKE, 2005, p. 69).
Na realização musical, ou em sua escrita, ou ainda em sua teoria, as noções e relações espaciais
estão sempre presentes, porém como metáforas. Dizemos: “essa nota é mais alta que a outra”, ou
ainda, “esse timbre está muito longe daquele” sempre usando noção de espaço. No entanto, não há
de fato um espaço, fora das metáforas ou das representações gráficas, no qual um determinado
evento sonoro seja mais alto do que outro, como uma árvore é mais alta que outra. Trata-se de algo
mais agudo, ou com maior frequência, ou maior intensidade, mas não maior no aspecto espacial.
Em outras palavras, a música tradicional ocidental coloca as relações espaciais, e portanto de
movimento, no plano das metáforas. Por isso Santaella e Nöth falam de um devir irremediável.
A música [...] porque só pode por fatalidade passar, evanescer, soar e desaparecer, é, tal
como a vida, devir irremediável. Assim como a imagem eletrônica que, quanto mais [...] se
desprende de qualquer tipo de referencialidade, promessa e nostalgia de um registro do
mundo, mais se aproxima da natureza dos campos sonoros (SANTAELLA E NÖTH, 1997,
p. 95).
No momento importa ressaltar que Santaella e Nöth afirmam que quanto mais as
imagens (no contexto das artes) perdem sua referencialidade original, mais elas aproximam-se de
uma sintaxe temporal. Segundo os autores, tais artes (visuais) acontecem na simultaneidade do
espaço, ou seja, dependem do estabelecimento das relações espaciais muito mais do que das
temporais. Na pintura, ou em outras representações imagéticas, o que está em jogo é a ocupação do
espaço. E nesse caso o tempo é que é tratado metaforicamente, de forma simulada. Muitas vezes
trata-se da suspensão da sequencialidade temporal e em outras, como no cubismo, trata–se de uma
ruptura com sua linearidade. Entre diversos movimentos artísticos que recolocam as noções de
tempo, a estratégia cubista, mesmo continuando com o paradigma de que a obra não se dá no
tempo, propõem uma imagem apresentada simultaneamente utilizando diferentes espaços em
86
Movimento e espaço musicais são metafóricos porque as propriedades do espaço real e do movimento são
transferidas para domínios onde elas não tem aplicação literal. Tradução nossa.
105
diferentes tempos. Dessa maneira, ao se observar o caminho da história da pintura ocidental, podese notar um direcionamento que vai do figurativo ao abstrato, da máxima referencialidade em
direção à não-referencialidade. E é paralelamente a isso que deve ser entendida a afirmação de
Santaella e Nöth (1997) com relação à aproximação das artes imagéticas de uma sintaxe temporal.
Santaella e Nöth (1997) indicam relações temporais na percepção da obra visual, apresentam
as noções de tempo intrínseco e extrínseco à imagem e tratam, também, do tempo intersticial, que
relaciona os dois tipos anteriores e que é o próprio tempo da percepção. No que diz respeito à
produção imagética os autores afirmam que será com o advento da computação gráfica que tal
produção se encontrará diretamente com uma sintaxe temporal, própria da música e das outras artes
que se fazem na sequência temporal. Não se tratará mais de simulação ou de metáfora do tempo,
mas do próprio tempo em sua irreparável sequencialidade e devir.
A partir da perspectiva apresentada por Santaella e Nöth (1997) pode-se concluir que na
história da música ocidental observa-se um movimento que vai em direção à uma crescente
importância da função dada ao espaço, bem como de sua manipulação. As propostas de policoral e
de espalhá-los (os corais) pelo espaço da catedral em vários pontos, no século XVI, não tiveram
continuidade na medida em que o palco italiano se firmou como modelo absoluto para as
apresentações musicais. Essa configuração espacial do palco (italiano) denota características de
nosso entendimento da obra artística como um objeto, com existência garantida para além da
percepção, muito própria do racionalismo evidenciado no Iluminismo.
Figura 31: Exemplo de palco italiano
Fonte: Disponível em:<http://site.margaritasemcensura.com/zoom/o-teatro-bradesco> Acesso
em 30 jun. 2013.
106
O objeto, no palco, no lado oposto ao do ouvinte/espectador, não pode ser manipulado por
este. O ouvinte dessa música não pode muito mais do que acompanhá-la em sua efemeridade, preso
à sua cadeira enquanto ela ocorre no tempo, esvaindo-se sempre, nunca ficando. Assistir um
concerto tradicional de música ocidental, nesse sentido, é algo como ficar diante de um trem vendo
seus vagões a passar, ou diante de uma movimentada autopista assistindo o tráfego intenso que
nunca para. Na percepção desse tipo de obra o tempo da passagem da música se impõe sobre o
ouvinte, irremediavelmente. Sobra-lhe, ao ouvinte, sua memória, a história de relações com aquela
sequência sonora que lhe proporcionou expectativas mais ou menos resolvidas. O que se observa é
um modelo no qual a percepção está subordinada à memória da dinâmica das expectativas vividas.
Embora seja o espaço da sala de concerto, acético, livre do ruído do mundo, não há lugar para uma
dinâmica de relações espaciais na percepção dessa música tradicional realizada em palco italiano. É
como se as relações espaciais fossem suspensas, suprimidas, para que o tempo recebesse toda a
atenção. No que se refere ao espaço tais experiências musicais são sempre estáticas, fixas.
Apenas com o advento da gravação sonora (fonografia) pôde haver certa ocupação com a
estrutura espacial de maneira não metafórica. A gravação permitiu ao mesmo tempo a liberação do
tempo, uma vez que agora o som existe como algo concreto, em um suporte que permite a
reprodução ad infinitum do trecho gravado; e também a possibilidade de uma sintaxe espacial.
Nesse sentido, se Santaella e Nöth (1997) apontam três paradigmas para a produção da imagem
(pré-fotográfico, fotográfico e pós-fotográfico) é nítida a analogia que pode ser feita a partir da
perspectiva sonora. Para a produção de sons, e mesmo de música especificamente, também parece
haver três paradigmas bem demarcados a partir da possibilidade da gravação e reprodução do som
(análogo na música ao papel da fotografia nas artes visuais): pré-fonográfico, fonográfico e pósfonográfico.
É no paradigma pós-fonográfico que a música ganha a dimensão espacial para explorar
como parte de sua natureza. Com as apresentações de música acusmática e a difusão multicanal
permite-se uma atenção específica ao espaço que, liberto de seu papel metafórico, agora encontra-se
como parte efetiva da composição e da experiência musical. Um tipo de composição que depende
também do espaço em que acontece, com a mesma importância que dependia, e continua a
107
depender, do tempo em que acontece. Por meio da difusão por quadrifonia os eventos sonoros
recebem uma dinâmica espacial tendo os quatro pontos em volta do ouvinte como referência inicial.
Outra característica pode ser ainda descrita como própria desse novo paradigma da produção
musical. Além da apropriação da sintaxe espacial, há também a novidade já na música acusmática
pela ausência do intérprete, do performer. Ao menos como ele ficou configurado em seu arquétipo
máximo no Romantismo. Na música acusmática o espacializador, ou difusor, é por diversos autores
considerado como o intérprete (ou o que restou dele). Mas, mesmo esse agente pode ser
programado e realizado em um software.
The eletronic medium gave composers complete, unmediated control over their
compositions. [...] in eletronic studio, every detail could be accurately calculated and
recorded.87 (BURKHOLDER, GROUT and PALISCA, 2010, p. 948).
Não há intérprete nas artes que se formam a partir da simultaneidade do espaço (artes
visuais), como há na música. Em artes visuais, na história da tradição ocidental, o intérprete é o
espectador. Na música tradicional ocidental, embora o ouvinte-espectador possa fazer suas
interpretações, o que se denomina por intérprete não é o espectador. Há na música tradicional uma
figura que não existe nas artes visuais tradicionais (paradigmas pré-fotográfico e fotográfico), o
intérprete, como alguém que tem de estar presente para executar (fazer com que a obra aconteça
para si e para outros). Entretanto com as reconfigurações da composição e experiência musicais, a
função de interprete tende a ser incorporada como um novo status do próprio espectador, que passa
a ser portanto, participante na criação da significação daquilo que ele experimenta.
5.2 HIBRIDISMO E DILUIÇÃO DE FRONTEIRAS
A noção de hibridismo, nos sistemas sígnicos, especifica o compartilhamento de aspectos,
características ou elementos que compõem um determinado sistema, ou conjunto. De acordo com
Santaella e Nöth (1997) nossa época tem sido marcada por uma diluição das fronteiras entre
aspectos visuais e auditivos. Essa fato constitui a possibilidade de um nível híbrido na produção e
percepção de imagens e eventos sonoros. Segundo os autores, enquanto informação computacional,
87
O meio eletrônico deu aos compositores um completo controle imediato sobre suas composições. [...] no estúdio de
música eletrônica cada detalhe pode ser cuidadosamente calculado e gravado. Tradução nossa.
108
tanto uma imagem como um evento sonoro, possuem a mesma natureza, são conjuntos de números
organizados por funções específicas. Nesse nível de análise são híbridos.
Mesmo que este nível de análise não seja o único possível, tem sido relevante para a
pesquisa em arte, em filosofia, em cognição, entre outras áreas, a consideração de hibridismo no
nível da produção e também experimentação de imagens e sons. O hibridismo no nível
computacional está relacionado diretamente às possibilidades de integração entre artes visuais e
sonoras (música). Ou seja, a aproximação das artes imagéticas de uma sintaxe temporal (própria da
música), bem como a aproximação da música com uma sintaxe espacial (própria das artes visuais),
tem sido muito impulsionada pelas possibilidades oferecidas pelo computador digital.
Na perspectiva dos três paradigmas para a produção de imagens apresentada por Santaella e
Nöth (1997) observa-se o crescimento de uma tendência que vai da representação figurativa e
realista em direção às formas de representação mais subjetivas e abstratas. Os autores realçam a
direção da produção imagética para o desenvolvimento de uma sintaxe temporal. Já na pintura
surrealista, ou na cubista, existiu explícita relação com aspectos temporais. O suporte oferecido por
tal modalidade não permite muito mais do que tais movimentos artísticos fizeram com relação ao
tempo. Foi com o advento do cinema, fotografia em movimento, que apareceu plenamente uma
sintaxe do tempo para a estruturação das imagens. As técnicas de produção de vídeo, quando
apareceram, proporcionaram novidades nessa sintaxe e algumas novas possibilidades com relação
ao que já se fazia no cinema. Porém, com o aparecimento das técnicas de produção de imagens por
meio de programação computacional a sintaxe temporal, presente na produção de imagens já desde
algum tempo, ganhou uma dimensão nova: o hibridismo com outras artes, como a própria música,
em certo nível de sua produção.
As new technologies developed, musicians explored their potential. No
technology promised more far-reaching changes for music than the eletronic
record, production and transformations of sound. 88 (BURKHOLDER, GROUT
and PALISCA, 2010, p. 945).
É apenas com o paradigma pós-fonográfico que o espaço ganha status de componente
composicional tanto quanto a melodia, harmonia ou timbre. Entre as décadas de 1950 e 60 os
88
Com novas tecnologias desenvolvidas, músicos exploram seus potenciais. Nenhuma tecnologia prometeu maior
alcance do que a gravação, produção e transformação eltetrônica do som. Tradução nossa.
109
compositores europeus começaram a se dar conta da possibilidade de uma sintaxe espacial para a
música. Com a popularização e progresso das técnicas computacionais, a sintaxe do espaço ganhou
suportes gráfico-matemáticos muito potentes e neles se apoia cada vez mais, como novos
instrumentos para a produção sonora.
Tratando da história das artes imagéticas, Santaella e Nöth (1997) afirmam que quanto mais
as imagens vão perdendo a referencialidade mais elas se aproximam da sintaxe temporal. Ocorre
um movimento semelhante na história da música ocidental, quanto mais os eventos sonoros ganham
e reforçam sua referencialidade, mais a música se aproxima da sintaxe espacial. Santaella e Nöth
(1997) retomam um conceito de um compositor e teórico alemão radicado no Brasil para tratar
dessa aproximação entre as modalidades artísticas que tem encaminhado possibilidades híbridas. O
compositor e professor H. J. Koellreutter não trabalhou com música eletroacústica e, menos ainda,
com paisagens sonoras. De certa forma podemos descrever sua obra como de transição entre os
períodos fonográfico e pós-fonográfico. Observa-se em seu trabalho características de momentos
estéticos e poéticos distintos. Entre as características próprias do paradigma pós-fonográfico,
Koellreutter é o responsável por uma proposta de subsidio conceitual para o momento estético em
que viveu. Entre os diversos conceitos desenvolvidos pelo autor, o de campo sonoro nos é bastante
relevante por conta da referência feita por Santaella e Nöth (1997). A noção é relembrada para
indicar as características que a produção de imagem ganha ao se distanciar da referencialidade.
Ocorre que o conceito é colocado por Koellreutter (1990) dentro do contexto da descrição de sua
estética relativista do impreciso e do paradoxal. Observa-se um referencial estético comum às
poéticas contemporâneas em diferentes modalidades artísticas.
Campo Sonoro: Resultado da organização global de signos musicais, dentro de um
determinado lapso de tempo. Produto de uma estética relativista. Compreende estruturas de
determinação aproximativa e tende à fusão, diluição e unificação das mesmas. [...] Com a
composição de campos, desaparece definitivamente o que se praticou até então como
composição de vozes. A estética relativista, base da composição musical contemporânea,
não considera, em princípio, alturas e intervalos absolutos, mas graduações e tendências.
[...] Na composição de campos, o processo de desenvolvimento cede lugar ao processo de
transformação. (KOELLREUTTER, 1990, p.25).
A citação explicita uma série de características próprias da constituição de uma sintaxe do espaço,
além de características da chamada estética relativista. Ainda que Koellreutter não afirme
exatamente isso, e trate campo como um lapso de tempo, a própria noção de campo é tomada do
110
vocabulário acerca dos parâmetros espaciais, muito mais do que temporais. Ao afirmar que com a
composição dos campos a escrita tradicional de música desaparece, Koellreutter (1990) mostra que
o tempo não será mais tratado como algo que flui irremediavelmente do passado infinito ao futuro
infinito. Ele trata o tempo e outros parâmetros, como espaços, ou campos, que em última análise,
são campos espaço-temporais89, já que não há como abrir mão da presença do tempo na experiência
musical. Na citação referida, Koellreutter ainda apresenta a noção de diluição daquilo que denomina
por estruturas aproximativas. Essa diluição parece se relacionar com a diluição das linguagens, tal
como referenciada por Santaella e Nöth (1997).
Com propostas estéticas como essa apresentada por Koellreutter (1990) a história da música
se encaminhou para tendências que ampliaram o paradigma fonográfico e proporcionaram o
aparecimento efetivo de uma sintaxe espacial. As PS, conforme aparecem entre compositores das
décadas de 60 e 70, são um ótimo exemplo para um início de aplicação do hibridismo no nível da
produção sonora. Ocupar-se em como ocorre o mundo sonoro que nos circula, pode envolver
ocupar-se com aspectos de muitas outras áreas de conhecimento. O estabelecimento da importância
do estudo das relações no meio-ambiente entre diversos atores, foi uma das características que
fundou o conceito de PS (Schafer, 1977). A atitude integradora das áreas do conhecimento parece
ser indício do que se trata aqui por hibridismo. O próprio termo PS ou soundscapes (sound + (land)
scapes) já é um híbrido e traz em si um conceito híbrido. Envolve diretamente a possibilidade de
entender sonoramente algo que está diante de nossos olhos, que sustenta a vida de meu corpo nesse
meio específico e que não se apresenta a mim com algo especificamente e exclusivamente sonoro.
Há na ideia inicial de PS a perspectiva sinestésica e integrada da sonificação de dados.
Nesse sentido a PS acusmática, como é tradicionalmente apresentada em teatros, é uma
espécie de redução (ou transdução) sonora de todo o hibridismo do mundo no qual vivemos (ou
podemos viver). Por não permitir a movimentação espacial do ouvinte, não lhe permite escolhas do
que ouvir melhor, de que evento sonoro se aproximar ou se distanciar. Na apresentação acusmática,
mesmo em quadrifonia, ou qualquer outro sistema de difusão multicanal, o ouvinte continua sendo
apenas um espectador estático e passivo frente a um mundo sonoro que se distingue da tradição da
música de concerto ocidental por ser agora móvel. Esse mundo sonoro móvel espacialmente é
característica própria da música de paradigma fonográfico, uma vez que no paradigma posterior
89
Colaboração do colega Dr. Eufrásio Prates, como eu, aluno de H. J. Koellreutter.
111
será imprescindível utilização conjunta e interativa da mobilidade tanto dos eventos sonoros, quanto
dos ouvintes.
Dessa maneira considera-se que as PS, e de maneira geral a música eletroacústica,
apresentadas em salas de concerto preparadas com arranjos de alto-falantes montados para o
concerto, embora sejam consideradas precursoras das PSE, permitem a mobilidade dos eventos
sonoros mas não a do percebedor. Estas salas e estas formas de organização, com ou sem a presença
de um palco, não alteram em nada o espaço de ação do percebedor com relação à música do século
XVIII nos teatros. Nos dois casos (música tradicional de concerto do século XVIII/XIX e música
eletroacústica de concerto no século XXI) o espectador é passivo, encontra-se sentado sem chances
de agir fora de sua imaginação, isolado de seu corpo preso em sua cadeira.
Figura 32: Exemplo de instalação de alto falantes para concerto, Berlim (2010)
Fonte: Disponível em: <http://cec.sonus.ca/econtact/14_4/harrison_spatialstrategies.html> Acesso em 30 jun.
2013.
112
O hibridismo observado no nível da manipulação de dados computacionais na produção
imagética e musical oferece novas oportunidades, por permitir amplamente o suporte de uma
sintaxe temporal para as imagens, ao mesmo tempo em que amplia as possibilidades musicais,
agora com o estabelecimento de uma sintaxe espacial não mais metafórica. Essas ofertas
(affordances) de possibilidades no nível da produção da arte proporcionam novos affordances no
nível da experimentação dessa arte. Tais possibilidades de comportamento e significação não estão
presentes em experiências artísticas não híbridas no nível da produção. O que é comum nas artes
visuais do paradigma pós-fotográfico e na música do paradigma pós-fonográfico, é a presença de
um tipo comum de intérprete-espectador/participante/co-autor. Este é outro indício de hibridismo
entre música, artes imagéticas e espaciais contemporâneas.
5.3 PAISAGENS SONORAS SITUADAS
A PS, conforme tratada em parágrafos anteriores, é por si um conceito híbrido em diferentes
níveis de análise, tanto poéticos como estéticos. No entanto, a consideração dos diferentes
paradigmas propostos por Santaella e Nöth (1997) possibilita que se entenda que, ao ser
apresentada, ou, experimentada em palco italiano, em uma sala de concerto, parte das possibilidades
de hibridismo, aquelas próprias do nível experiencial, perdem-se. Nesse caso ocorre aquilo que se
denominou anteriormente por uma maneira de redução sonora da experiência do mundo.
Na medida em que se leva a PS para uma apresentação no próprio mundo (para fora do
teatro, do palco italiano e da sala de concerto), permitindo o movimento do ouvinte no espaço de
audição, parece que se pode sair da redução sonora do mundo, apresentando o próprio mundo como
uma das camadas da paisagem sonora90 . Com isso evidencia-se o aspecto híbrido de uma PS, como
envolvendo hibridismo também em outros níveis, além do nível de produção (enquanto dados
computacionais). Teríamos a possibilidade de envolver hibridismo no nível da apresentação ao
público, da experimentação da obra, da estética. Na medida em que essa apresentação não ocorra
em palco italiano e dentro de um teatro, existe a possibilidade de experiências estéticas
completamente diferentes daquelas da sala de concerto. Primeiro porque se pode andar e procurar
situações sonoras específicas, segundo porque se houver a possibilidade de interação o ouvinte não
90
Exemplo audiovisual n. 02 - “Estação Anápolis”. DVD - 02. Disponível em: <https://vimeo.com/
enactivesoundscape> Acesso em 17 jun. 2013.
113
será mais apenas um espectador frente a um objeto, mas estará compondo a obra enquanto a
experimenta dentro de um espaço no qual pode se mover e buscar diferentes possibilidades de
audição por conta de novas possibilidades de posicionamentos e relacionamentos com os diferentes
atores acoplados ao sistema. Essa experiência não é mais apenas sonora, por que para se
movimentar o participante/espectador precisa se orientar no meio por outros modos de atenção.
Assim, aspectos visuais, imagéticos e espaciais ganham relevância, misturam-se, hibridízam-se em
fronteiras diluídas. Por conta da importância dos aspectos visuais na movimentação, a poética
envolvida distancia-se da música acusmática, e transcende a própria tradição da música
eletroacústica.
Diversos procedimentos composicionais precisam ser listados em ordem de propor uma
espécie de tecnologia de criação das PSE. Parece ser possível a ampliação desse hibridismo, tanto
poético como estético, para tipos de ciber-hibridismos e mesmo de bio-ciber-hibridismos, a partir
da descrição de procedimentos composicionais desenvolvidos por meio de conceitos de autores
como Gibson (1966 e 1979), Koellreutter (1990), Domingues (1997), Santaella e Nöth (1997), entre
outros. Na medida em que as relações de espaço passam a fazer parte da composição das PS, o
hibridismo e o enacionismo explicitam-se.
A escolha dos locais onde os alto-falantes ficarão dispostos é de extrema importância. Um
dos aspectos centrais a se considerar é a possibilidade de movimento do espectador/participante no
local onde se instala a obra. Além do posicionamento com relação à lateralidade, também é
interessante considerar o aspecto vertical do espaço para as escolhas de posicionamentos de altofalantes. Nesse sentido a composição do espaço por onde o participante se movimentará é
fundamental, bem como sua delimitação e marcação por meio de objetos, paredes e/ou iluminação.
Enfim, não há como pensar apenas nos sons, mas é necessário que se leve em consideração todo o
aspecto visual e multi-perceptivo, sinestésico, que se puder para que isso tire o foco reduzido da
experiência do espectador/participante.
O espaço de apresentação para a PSE em toda sua potencialidade precisa ser o espaço do
mundo. Esse espaço necessita de com-posição, por meio do posicionamento estratégico de altofalantes e microfones (se for o caso de captar o áudio) e de vários procedimentos de sensoreamento
do meio-ambiente. A paisagem sonora original desse espaço pode de ser considerada como uma das
camadas texturais da PSE, de modo que os eventos sonoros que venham dos alto-falantes e da
114
movimentação dos participantes sejam as outras camadas da paisagem resultante. Embora não seja
exatamente um exemplo de PSE, principalmente por não haver interatividade no nível da coautoria, a instalação sonora “Estação Anápolis”, realizada na cidade homônima por conta do convite
do II Festival de Arte e Mídia, em 2011, tem características que permitem falar em enação porque
permite o movimento dos ouvintes pelo espaço no qual foram distribuidos os alto-falantes. Na
ocasião foi composta uma PS com eventos familiares à história da cidade e ao local de instalação,
de modo que ao passar pelo local (Figura 33), as pessoas notavam algo diferente e tendiam a mudar
sua conduta perceptiva e de movimento, para considerar aquele tipo de evento escutado. Não se
considera a situação como uma PSE por conta da ausência de interação de terceiro grau que
permitiria ao percebedor alterar o conteúdo daquilo que percebe, que vem dos alto-falantes. No
entanto já se diferencia das PS apresentadas em teatros por permitir a movimentação do ouvinte,
por ser situada, uma vez que é instalada considerando-se como uma parte da situação já existente e
não um substituto ou simulacro dela.
Figura: 33 Instalação da PS Estação Anápolis (2011)
Fonte: Acervo do autor.
115
A obra que é constituída através de tais procedimentos, características desse paradigma pósfonográfico, pode ser bem descrita utilizando o conceito de campos sonoros, apresentado na seção
anterior. No paradigma pós-fonográfico a obra não é alguma coisa com existência dada de antemão,
garantida e independente do percebedor. Conforme se afirmou em diversas outras ocasiões, ela não
existe fora da percepção daqueles que participam inclusive de sua criação. As PSE não são obras
como obras musicais de Beethoven, embora pertençam intimamente à mesma tradição histórica.
Na criação da PS, enquanto campo sonoro complexo, a sintaxe espacial é bastante nítida em
diferentes momentos. Como nas artes imagéticas, na composição da PS uma das questões centrais é
referente a ocupação dos espaços. E em se tratando de música de concerto, mesmo a música
eletroacústica ou PS acusmáticas, os espaços referidos são no mínimo os seguintes:
1) o espaço tímbrico (espectromorfológicos) de cada evento sonoro;
2) o espaço de ocupação de cada camada (conjunto de eventos sonoros);
3) o espaço do arranjo acústico das diferentes camadas na paisagem resultante;
4) o espaço da disposição específica dos alto-falantes;
5) o espaço da difusão final.
Mesmo que os itens 1, 2 e 3 ainda sejam dados à visão como representações gráficonuméricas do fenômeno sônico, e de certa forma metafóricos, os itens 4 e 5 não o são. Tais itens
dizem respeito ao espaço físico do local escolhido para a obra acontecer, ser experimentada.
Assim como o espaço de apresentação e de experimentação dessa arte se transformou,
também a própria arte, enquanto obra, resultado de hábitos condutuais consensuais, só existe nessa
dinâmica de transformações. Isso possibilita a indicação de novos caminhos estéticos para a música,
especialmente para as PS. Entretanto, em se tratando de contemporaneidade, não há nada pronto,
fechado e acabado para ser estudado como um processo de dissecação. Ao contrário, a arte
contemporânea parece ser melhor comparado a um organismo vivo, e embora seja de alguma forma
produto de hábitos consensuais, é também bem pouco previsível.
116
6 DO HÍBRIDO AO BIOCÍBRIDO
O holandês Sinique concordou em comer um pedacinho do holandês Aquimã
depois de resistir uns dias esbravejando dentro do cercadinho, sacudindo os
mourões de tal maneira que o caboco Capiroba foi obrigado, bem a
contragosto porque tinha fumado erva de cabeça e queria ficar quieto
espiando as árvores, a quebrar um dedo de cada mão dele. Evitava também
assim que Sinique, cujos modos agitados e algaravia incessante já
começavam a irritá-lo, cavasse um buraco para desalojar os mourões, como
chegara a tentar. Podia deixá-lo amarrado, mas sabia não ser bom para a
criação mantê-la atada, era definhamento certo. Tentou convencê-lo com
bons modos, não gostava de maltratar o bicho sem necessidade. Mas ele se
comportava como um caititu demente, insistindo em mostrar os dentes e
coinchar seus sons incompreensíveis, e o caboco não teve jeito senão
trespassar-lhe um arganel pelo focinho para melhor movimentação e aplicarlhe umas bordoadas, embora não tão fortes quanto a única cacetada que tinha
desfechado no holandês Aquimã. (João Ubaldo Ribeiro - Viva o Povo
Brasileiro)
Desde o início do processo de doutorado houve por parte de orientadora e orientando a
perspectiva de experimentar possíveis aplicações de todo esse conjunto conceitual em suas
implicações poéticas e estéticas. Nesse sentido, mesmo enquanto as disciplinas do programa de
doutorado eram cursadas, realizamos, com o Laboratório de Arte e Tecnociência - LART - UnB/
Gama, duas montagens de instalações em Bienais de Arte internacionais, que constituiram-se em
experiências marcantes. Foram elas: Biocybrid Latin American Memorial, para a Mostra
TransFronteiras Contemporâneas, parte da 29a. Bienal de São Paulo, realizada entre Setembro e
Novembro de 2010; e Ouroboros Biocíbridos, oficina e instalação realizadas na 11a. Bienal de La
Habana, Cuba, durante Maio e Junho de 2012.
Ambas as descrições são importantes para evidenciar o caráter prático e experiencial da
presente tese. Ao se propor a apresentação de um breve relatório das atividades artísticas realizadas
em duas exposições, como as que o LART - UnB/Gama fez, a intenção é oferecer material prático
sobre o qual refletir a partir do amplo conjunto conceitual descrito nas páginas anteriores. Os dois
projetos descritos foram criações coletivas sob a direção geral da professora Dra. Diana Domingues
e trabalho conjunto de uma equipe composta por professores e estudantes de artes e engenharias
(elétrica e biomédica).
Quanto ao termo biocíbrido, optou-se por utilizá-lo até o momento sem que fosse incluída
uma referência direta ao seu significado original, dado por uma citação de sua própria autora. Essa
opção se deu por buscar uma construção da terminologia enquanto se apresentaram experiências
117
com esse conceito. No entanto é propício que se realce a citação original onde apareceu pela
primeira vez na literatura essa noção.
We consider human existence is nowdays co-located in the continuum and symbiotic zone
between body and flesh - cyberspace and data - and the hybrid properties of physical
world. That continuum generates a biocybrid zone (Bio+cyber+hybrid) and the life is
reinvented. 91 (DOMINGUES et al, 2011; p. 2).
6.1 BIOCYBRID LATIN AMERICAN MEMORIAL
Em 2010 o LART - UnB/Gama foi convidado a participar da Mostra TransFronteiras
Contemporâneas que aconteceria na Galeria Marta Traba, no Memorial da América Latina em SP.
Essa mostra foi um pólo da 29a. Bienal de São Paulo que ocorreu fora do Ibirapuera (espaço central
da Bienal). A mostra tinha como tema a celebração do bicentenário da independência de vários
países latino-americanos. Para acompanhar a temática alicerçamos ai também a narrativa de nossa
instalação. A intenção inicial era realizar projeções imagéticas e sonoras a partir de interações entre
os visitantes da exposição, programas de inteligência artificial (agentes autômatos) e captação/
transmissão de dados de ambientes remotos. Montou-se uma estrutura que envolveu referências
diretas à personagens ligados a libertação de seus países e da América Latina como um todo.
Apresentou-se como metáfora central o “grito do Ipiranga”. Queríamos colocar todos os
libertadores latinos juntos às margens do Ipiranga, que se fazia ali presente em sua paisagem
sonora, unindo seus brados contra os diversos tipos de imperialismos e opressões vividas nessas
terras. Estávamos na cidade de São Paulo, sobre o próprio rio Ipiranga, que por sua vez aflui para o
Tietê que passa logo ao lado do Memorial no qual ficava a instalação. Foi uma oportunidade de
chamar a atenção para a relação entre liberdade, mobilidade e as condições dos cursos d’água em
um ambiente urbano de alta densidade como o da cidade de São Paulo. Foi também uma grande
possibilidade de integrar os diferentes conhecimentos desenvolvidos transversalmente nas práticas
criativas e colaborativas do LART.
91
Consideramos que a existência humana é hoje em dia co-localizada no contínuo e na zona simbiótica entre o corpo e
a carne - ciberespaço e dados - e as propriedades híbridas de mundo físico. Esse contínuo gera uma zona biocybrida
(Bio + ciber + híbrido) e a vida é reinventada. Tradução nossa.
118
Figura 34: Mapa de São Paulo marcando o Memorial da América Latina e a nascente do rio
Ipiranga
Fonte: Google Earth.
A entrada da galeria Marta Traba tem uma rampa sobre um espelho d’água. Isso foi
imediatamente tomado pela professora Dra. Diana Domingues como referência para as margens do
Ipiranga. Nesse sentido propôs-se uma forma de transportar a paisagem sonora da margem do rio
Ipiranga para o espelho d’água da galeria. Foi uma sobreposição de diferentes camadas de
paisagens sonoras e nessa mixagem nós envolvíamos a ação conjunta (enação) de diferentes atores
gerando um sistema dinâmico e complexo que fazia emergir uma experiência artística peculiar, a
qual temos chamado de estética naturalizada. A partir do exame cuidadoso dos trechos das
nascentes do rio Ipiranga no Jardim Botânico, encontramos uma passagem de água adequada e
instalamos microfones ligados à um computador com um transmissor do sinal.
119
Figura 35: Nascente do Ipiranga - Jd Botânico, São Paulo
Fonte: Acervo do LART - UnB/Gama.
Figura 36: Microfone captando canal do Ipiranga, SP
Fonte: Acervo do LART - UnB/Gama.
120
A partir da captação das margens da nascente do Ipiranga transmitimos o áudio, via live streaming,
para os alto-falantes posicionados sobre a rampa que cruza o espelho d’água da galeria. Quem
passava sobre a rampa para entrar na galeria ouvia o som do trecho de água corrente vindo da
nascente do Ipiranga, no Jardim Botânico. Essa estrutura de captação e transmissão nos dava a
primeira camada do conjunto da PSE. Ela levava a margem do Ipiranga à galeria no Memorial da
América Latina.
Figura 37: Jardim Botânico na cidade de São Paulo
Fonte: Acervo do autor.
Na galeria havia um painel com o nome dos libertadores da América Latina aos quais nos
referíamos no trabalho, e para os quais os visitantes da exposição poderiam enviar mensagens por
meio do microblog Twitter. Para tanto, montamos com o auxilio do computólogo e mestre em
ciência cognitiva, L. G. Lima (que integrou-se temporariamente ao LART), um sistema de
121
reconhecimento dos nomes dos libertadores no Twitter e um sistema de inteligência artificial que,
de acordo com as entradas, escolhia arquivos de áudio e imagens para apresentar.
Figura 38: Galeria Marta Traba no Memorial da América Latina, SP
Fonte: Acervo do autor.
As imagens foram projetadas nas paredes, teto e chão da galeria, enquanto os áudios com as
locuções dos personagens, ou outros sons que se remetessem à eles, era disparado e mixado ao live
streaming vindo da nascente do Ipiranga tanto na rampa de acesso à galeria quanto em seu interior.
Dessa maneira o espectador/participante chegava à galeria passando pela rampa e já escutava sons
de vários personagens, ligados à libertação da América Latina, tendo como camada sonora de fundo
122
o som vindo das nascentes do Ipiranga. 92 Também no interior da galeria, mixado ao burburinho da
conversa das pessoas estavam os sons da corrente de água e dos brados dos libertadores da América
Latina advindos das escolhas da IA a partir das mensagens que essas pessoas enviavam por Twitter.
Figura 39: Alto da rampa de entrada da Galeria Marta Traba
Fonte: Acervo do LART - UnB/Gama
Figura 40: Alto falante da instalação Biocybrid Latin American Memorial
Fonte: Acervo do autor.
92
Exemplo audiovisual n. 03. Vídeo com imagens da instalação Biocybrid Latin American Memorial (Galeria Marta
Traba - 29a. Bienal de São Paulo, 2010). DVD - 03. Disponível em: <https://vimeo.com/enactivesoundscape> Acesso
em 17 jun. 2013.
123
No interior da galeria o espectador/participante podia passar a atuar como co-autor da obra,
interferindo a partir de mensagens por meio da rede social virtual Twitter disparadas de seu telefone
celular, endereçadas aos libertadores com nome na lista nas paredes da galeria. Ao receber as
mensagens o sistema de IA atualizava a PSE, com novas camadas de PS, e com projeções
imagéticas produzindo a completude da experiência. A ação coletiva (enação) dos diferentes agentes
(atuando no Jardim Botânico ou no Memorial da América Latina) colaborando para a elaboração da
final da obra, para a emergência da experiência que ocorreu naquela zona de biocíbrida de
interação, é o que permite classificar a paisagem sonora com enativa. Ela é fruto dessa ação coletiva
e integrada de diferentes agentes co-localizados naquele espaço de interação por meio de sensores
como os microfones, e efetores como os alto-falantes e projetores.
Figura 41: Fluxograma de Biocybrid Latin American Memorial, 2010
Fonte: Acervo do autor.
124
O sistema computacional contou com um servidor que recebia entradas advindas de
mensagens ao microblog Twitter (indicado como “site” na Figura 41). Esse computador
denominado “servidor” rodava o programa baseado em redes Bayesianas, de modo que fossem
escolhidos arquivos de áudios e imagens (a partir de entradas dos participantes/espectadores) no
bancos de dados de eventos sonoros e imagens que eram, por sua vez, projetados e difundidos nos
espaços definidos da galeria e da rampa de acesso.
A instalação Biocybrid Latin American Memorial pode ser considerada como uma primeira
experiência de criação e implementação desse espaço denominado como biocíbrido. O espaço de
experiência foi conseguido por meio da sobreposição de diversas camadas de paisagens sonoras
como as do local do entorno da galeria, a da nascente do rio Ipiranga microfonado, e aquela gerada
pelo programa de computador a partir da interação com os espectadores/participantes, em sua ação
de experimentar a obra. Há nesse caso a soma do espaço híbrido, no nível do espaço biológico, ao
ciberespaço. E essa sobreposição é central para a estruturação de Biocybrid Latin American
Memorial. Também foi a primeira vez que se realizou a experiência de PSE.
6.2 OUROBOROS BIOCÍBRIDO
O preparo do projeto denominado “Ouroboros Biocíbrido: geografismos do êxtase” para
uma oficina ministrada aos estudantes de dança contemporânea e dança folclórica do ISA (Instituto
Superior de las Artes) - La Habana - Cuba, por ocasião da Oncena Bienal de Arte de La Habana,
teve sua origem da discussão de outra oficina ministrada pela professora Dra. Cida Donato e por
mim na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) em 2010 no 2o. Festival de Arte e
Tecnologia (FAT 2.0), denominada “Imersão e expressão corporal em paisagens sonoras”. Naquela
ocasião diversos estudantes de artes dedicaram-se a processos de relacionamento entre audição e
expressão corporal propostos pela Dra. Donato, iniciando-se e aprofundando-se na escuta cuidadosa
de paisagens sonoras. Como resultado aquela oficina produziu uma performance que foi
apresentada no final do evento. Porém não havia nenhum tipo de interatividade por meios
computacionais. Foi então que partindo da reflexão feita com minha orientadora, professora Dra.
Diana Domingues, houve a proposta de ampliação daquelas atividades, agora envolvendo
interatividade (por interfaces computacionais desenvolvidas no LART) entre os participantes, por
125
meio da visualização e sonificação (geração de paisagens sonoras) dos dados captados dos corpos
em movimento, através de sensores, a partir da audição das próprias paisagens sonoras.
A oficina teve como suporte conceitual e técnico o Projeto Arte e Tecnociência desenvolvido
no Laboratório de Pesquisa em Arte e Tecnociência LART - UnB/Gama. As relações que ela
estabeleceu envolveram o que se tem denominado no contexto do laboratório por uma reengenharia das emoções, sensações e afetos. As pesquisas transdisciplinares (artes cênicas, música,
artes visuais, engenharia biomédica) buscaram uma ecologia do movimento por meio de um
mergulho nas PS e na escuta do mundo que nos rodeia. A ecologia foi implementada com o uso de
dispositivos sensores de movimento que captavam sinais dos corpos como entrada para produzir
visualização e sonificação de dados.
A perspectiva foi operar com a ampliação das capacidades perceptíveis (auditiva e visual) e
com um tipo de acoplamento do corpo com o mundo (e outros corpos envolvidos) completamente
distinto daquele oferecido pelas técnicas de dança tradicionais. Uma das hipóteses centrais das
atividades desenvolvidas na oficina, foi que esse tipo de abertura do corpo permite desenvolver
novos hábitos de movimento por meio da ampliação da escuta através dos exercícios com audição
das paisagens sonoras. De tal modo, a partir dos estímulos sonoros as pessoas se movimentavam e
os movimentos eram captados e transformados em padrões visuais e na própria PS que as
estimulava. Por essa circularidade na produção da atividade é que se apresentou no título da oficina
a referência ao mito “Ouroboros”.
A oficina foi ministrada em uma sala de ensaio de um grupo de teatro do Instituto Superior
de Arte - ISA, entre os dias 7 e 9 de Maio de 2012. Teve quatro horas de duração em cada um dos
dias, ocorrendo no período da tarde. Após dois dias de curso ministrado pelo LART (Dra. Diana
Domingues - coordenação; Ms. Carine Soares Turelly - expressão corporal; Ms. André Gonçalves
de Oliveira - paisagens sonoras; Dr. Adson Rocha - engenharia biomédica; Dr. Cristiano Miosso engenharia biomédica; Ms. Henrique Debarba - softwares de interação e Alexandre Barbosa - IC de
engenharia de software) aos alunos do ISA - La Habana, Cuba, eu recolhi as entrevistas (em anexo)
com cinco dos participantes que haviam realizado todas as atividades até ali.
No primeiro contato com eles, os alunos haviam passado por uma fala inicial da professora
Dra. D. Domingues sobre todo o trabalho a ser feito. Depois ouviram considerações dos professores
Dr. Rocha e Dr. Miosso, sobre os sensores e seu funcionamento. Por fim ainda no primeiro dia eu
126
pude realizar uma atividade em área externa, de audição e atenção à paisagem sonora local. Na
sequência, ainda em área externa a professora Carine solicitou que eles começassem a mover seus
corpos, ou parte deles, mas sem sair do lugar, sem perder a conexão com o que escutavam. Houve
uma progressão da quantidade de movimentos e por fim ela os estimulou a movimentarem-se de
maneira mais ampla no espaço. Passando ao trabalho em espaço fechado, a professora Carine
aprofundou as relações entre o que se escutava e as possibilidades de movimentação corporal. Eu
ainda pude estimular a audição de tais eventos sonoros locais, disparando do computador, os
diferentes eventos do banco de dados sonoro relacionado às temáticas dos rituais afro-americanos.
Figura 42: Atividade externa na oficina Ouroboros Biocíbrido 11na Bienal de La Habana
Fonte: Acervo do LART - UnB/Gama
No segundo dia começamos diretamente com a audição das paisagens sonoras em ambiente
externo (nos jardins do ISA, ao lado de nossa sala). Fizemos o mesmo percurso de atividades que
127
no dia anterior. A partir da audição de diferentes pontos os participantes eram convidados a
moverem-se primeiramente sem sair do lugar. Mas depois esse movimento variava entre o ponto
que muitos estavam correndo e o outro extremo em que alguns fixavam-se ao solo, sem mover os
pés, e movimentavam partes de seu corpo de forma bem mais sutil. A perspectiva era sempre
conectar os movimentos do corpo com aquilo que se escutava. Houve também a estimulação por
meio dos toques de atabaque que eu fiz em alguns momentos da atividade externa.
Cabe salientar que além de meu atabaque fazendo alguns toques de rituais afro-americanos,
havia ainda, por um feliz acaso de se trabalhar em lugares abertos, um percussionista, aluno do
Instituto Superior de Artes (ISA), estudando no jardim próximo de onde desenvolvíamos nossa
atividade. Tais intervenções sonoras formavam propriamente uma camada da paisagem sonora que
os participantes escutavam e buscavam se relacionar com seus corpos em movimento. Como pode
ser visto na imagem acima, o jardim era bastante arborizado, o que favoreceu a presença de várias
espécies de aves que enriqueciam a paisagem sonora do local. Havia uma autopista a cerca de 300
metros do ponto onde fizemos as atividades e o som dos carros e demais automotores chegava
também até onde os exercícios eram realizados. Tais eventos sonoros no entanto não se
sobrepunham aos dos pássaros ou do vento nas folhas, por exemplo. A situação em espaço externo
permitia uma conexão bastante íntima entre as possibilidades de movimentação corporal e os
eventos sonoros percebidos coletivamente. Essa conexão é que, de certa maneira, foi o foco central
das atividades. Na medida que mudássemos de ambiente, tais conexões deveriam ser alteradas
também. Com isso passaríamos a operar com novas conexões uma vez que oferecíamos camadas de
paisagens sonoras com novos eventos sonoros.
Após a entrada na sala o trabalho de movimentação corporal continuou a partir da audição
das PS advindas do computador e dos toques de atabaque. Nesse momento foram feitos os
primeiros testes com os sensores de movimento tipo relógio de pulso, similares ao mostrado na
imagem da Figura 43. Pela primeira vez, os participantes movimentaram-se a partir dos estímulos
sonoros e seus movimentos geravam padrões imagéticos por meio de um algoritmo de visualização
de dados. Trabalharam inicialmente em diferentes duplas, ora com um, ora com dois sensores (um
para cada participante). Nesse momento foi possível explorar a relação entre dois corpos que se
movimentavam no mesmo espaço e produziam as imagens a partir desse movimento. O trabalho
128
seguiu passando da atividade em duplas para a atividade coletiva, com todos os participantes se
movimentando juntos.
Figura 43: Sensor de movimento em forma de relógio de pulso
Fonte: Disponível em <http://processors.wiki.ti.com/index.php/EZ430-Chronos>. Acesso em 23
out. 2012.
Aqui é bem importante a relação que se faz entre a perspectiva de um espaço que existe
porque um corpo o ocupa e os grafismos possíveis a partir de técnicas de visualização de dados.
Essa ocupação do corpo se dá por meio de orientação basicamente da percepção auditiva, que está
sempre relacionada também ao equilíbrio e localização desse corpo. Dessa maneira, oferecer uma
PS na qual esses corpos irão submergir é oferecer uma possibilidade de realidade onde tais corpos
criarão seu espaço de atuação, e por consequência, de existência. Cabe retomar a noção de MerleauPonty (1996) apresentada no terceiro capítulo dessa tese, de espaço como potência universal das
conexões que pôde ser vivenciada na experiência com os estudantes em Cuba. Mostrar os dados do
129
movimento dos corpos constituindo o espaço, na medida em que possibilitavam mais movimentos,
em forma de gráficos projetados nas paredes da sala, configurou-se uma oportunidade (affordance
visual) a mais para a preparação da atuação (ação coletiva). A perspectiva do conhecimento
corporificado e situado (embodied embedded cognition) e do enacionismo é claramente observada
nesse caso. Ao operar com o corpo buscando um tipo de orientação para relações de movimento e
relações com o mundo por meio da percepção das PS e de uma relação direta, não programada por
algo anterior, aparece a possibilidade da emergência de padrões relacionais dinâmicos que são
muito distintos daqueles da operação consciente e programada (como no caso de uma coreografia
ensaiada). Com isso a visualização e sonificação de dados ganha um forte componente de
imprevisibilidade e mesmo de emergência, própria de um sistema dinâmico e complexo.
O tipo de conhecimento envolvido e desenvolvido na atividade descrita traz relação direta
com o conceito de aprendizagem perceptiva (Gibson e Pick, 2000) e de cognição corporificada e
situada (Shapiro, 2011). Toda a experiência que os participantes vivenciaram permitiu uma
ampliação dos hábitos de cognição que são intimamente perceptivos e corporais. Com os corpos em
enacção, e seu acoplamento poiético com o espaço, na medida em que geravam padrões visuais e
sonoros com seus movimentos, emergia um tipo de conhecimento que é próprio de tais
acoplamentos de corpos e situações. Um tipo de conhecimento que é muito bem descrito com as
características apresentadas por Varela et al (1991) quando fala de um tipo de conhecimento
corporificado. E há também intimas ligações a serem estabelecidas com autores como A. Noë (2004
e 2009) e Clark (2003 e 2008) sobre a constituição externa e coletiva da mente e das atividades
mentais como a significação. Noë (2004) fala de um tipo de conhecimento, que a despeito de ser
sensório-motor, corporal, é conhecimento. Pode-se pensar em conhecimentos em dança, ou mesmo
na execução instrumental musical como exemplos de tais categorias de conhecimento
eminentementes corporais antes de serem abstratos, como o conhecimento matemático.
No terceiro dia a proposta foi trabalhar com todos os participantes movimentando-se
coletivamente ao mesmo tempo. Tinhamos oito sensores (tipo relógios de pulso) que foram
distribuídos entre os eles. A partir disso, cerca de 3/4 da tarde foram dedicadas às experimentações
com seções de movimentação coletiva e interação, produzindo a visualização de dados.
130
Figura 44: Atividade interna na oficina Ouroboros Biocíbrido 11na Bienal de La Habana
Fonte: Acervo do LART - UnB/Gama
O terceiro dia produziu experiências muito interessantes acerca da possibilidade de relações
entre PS e as pessoas se relacionando por meio de movimentos corporais mais básicos possíveis.
Mais básicos no sentido de se distanciarem das coreografias a que aqueles estudantes trabalham. As
atividades feitas com o movimento corporal a partir da escuta das PS proporcionaram outro tipo de
conexão entre corpo e mundo, distinto daquele treinado pelo trabalho com a dança folclórica e
mesmo, para uma certa surpresa minha, com a dança contemporânea também. Esse treinamento
parece ser sempre um forte desenvolvimento dos hábitos de referências específicas, como no
treinamento musical, que também é algo extremamente corporificado. Nas entrevistas, vários dos
participantes relataram a importância dessa experiência com o corpo dos outros, de entender que o
espaço se faz com os movimento de todos (enacionismo) os corpos e que está intimamente
131
vinculado ao ambiente que se habita, que se vê e escuta. O que pudemos notar nas atividades do
terceiro dia foi a imersão dos participantes tanto na PS quanto nos gráficos de visualização de dados
gerados por seus movimentos enquanto ouviam e viam as paisagens formadas por meio dos
algoritmos.
O diagrama da Figura 45 informa sobre as conexões existentes entre os diferentes agentes
no processo de emergência de uma zona de interação chamada de biocíbrida. Pode-se observar que
há diferentes conexões recorrentes entre os diferentes agentes e que as pessoas que participam da
atividade encontram-se em uma zona de interatividade bastante peculiar, por envolver agentes vivos
e não vivos, e entre os agentes vivos, humanos e não humanos.
Figura 45: Fluxograma de Ouroboros Biocíbrido na 11na Bienal de La Habana - Cuba
Fonte: Acervo do autor
132
Toda a camada de PS que vinha de fora da sala de ensaio, dos jardins do ISA provinham da
ação de pássaros que por sua vez estavam ali por conta da vegetação específica que lhes dá
condições específicas de alimentação e de vida, em última análise. Partindo do ruído da natureza,
seja ela representada pelas correntes de vento que balançavam as árvores naqueles momentos, ou
pelos pássaros que de acordo com a atmosfera e com a história da vegetação do lugar, cantavam
naquelas situações, as pessoas moviam-se buscando uma conexão entre a dinâmica de seus corpos e
a dinâmica da PS.93
Os números no diagrama na Figura 45 indicam as conexões entre os diversos elementos do
sistema:
1) PS geral que advém dos jardins do espaço onde a sala de ensaios fica situada. Tal sala não é
vedada acusticamente, portanto recebe diferentes eventos sonoros que destacam-se na paisagem
geral. Esses eventos inicialmente é que colocavam as pessoas em movimento, e a partir desse
movimento os sensores que estavam em seus corpos começavam a enviar sinais para os
computadores que os processavam e respondiam com dois tipos de saídas, uma imagética, por
meio de projeção nas paredes da sala, e outra sonora, com difusão em quatro caixas de som ao
redor da sala (quadrifonia).
2) As pessoas então passavam a utilizar os padrões sonoros emitidos pela PS para realizar seus
movimentos. Nesse loop já há a relação do tipo ourobórica entre humanos, meio ambiente
(animais diversos envolvidos na cadeia que tem como final o canto dos pássaros) e computadores
rodando programas de IA que classificavam padrões e disparavam padrões sonoros e visuais
como resultado de tal comportamento classificatório.
3) As imagens projetadas nas paredes da sala de ensaio passam a influenciar também nos padrões
de movimento executados pelas pessoas participantes da oficina.
4) e 5) Indicam o envio de sinais por meio de sensores dos corpos em movimento para os
programas de computador que faziam classificação, categorização e apresentavam como
respostas padrões sonoros e imagéticos, que por sua vez estimulavam os participantes a novos
movimentos. Esses sensores foram colocados nas pessoas em forma de relógios de pulso que
mediam variáveis do movimento dos braços, tais como direção e velocidade. Havia a proposta de
93
Exemplo audiovisual n. 04. Vídeo com imagens da oficina Ouroboros Biocíbrido e da instalação homônima (11na.
Bienal de La Habana - Cuba, 2012). DVD - 04. Disponível em: <https://vimeo.com/enactivesoundscape> Acesso em
17 jun. 2013.
133
dois tipos de programas em duas unidades computacionais distintas. Uma processando os sinais
de modo a produzir padrões imagéticos, e outro a produzir padrões sonoros.
6) O computador enviava aos alto-falantes os padrões sonoros que formavam a camada de PS de
dentro da sala de ensaio.
7) Um outro computador construía padrões imagéticos para projetar nas paredes da sala de ensaios a
partir da leitura e classificação dos movimentos dos participantes.
É relevante a atenção para a maneira como foi construida a camada de PS de dentro da sala
de ensaios. O algoritmo computacional recebia como entrada os padrões de movimentos das
pessoas com sensores. Ele classificava tais movimentos e os categorizava de acordo com 7 Orixás
(Exu, Oxalá, Oxóssi, Ogum, Iemanjá, Iansã e Oxum) que representavam 7 conjuntos padrões de
comportamentos humanos, comportamentos da fauna e flora e padrões musicais próprios da
Umbanda, Candomblé e mesmo da Capoeira. A partir dessa categorização o programa mostrava
como comportamento emergente o disparo de arquivos de áudio de um banco de dados.
6.3 DISCUSSÃO DAS INSTALAÇÕES
Nas instalações das bienais de São Paulo (2010) e de La Habana (2012), foi possível
explorar diferentes proposições poéticas relacionadas às PSE. Algumas das hipóteses conceituais
apresentadas puderam ser testadas por meio de poéticas que favoreciam as premissas levantadas. E
em meio a dificuldades técnicas e operacionais, ou ainda mesmo com as situações peculiares que
cercaram a produção das mesmas, as hipóteses conceituais relacionadas à perspectiva estética
naturalizada, pôde ser experimentada.
Na instalação em São Paulo de 2010, a mistura de ambientes se deu por meio da paisagem
sonora das nascentes do rio Ipiranga que cruzava a cidade e chegava até a Barra Funda (bairro onde
fica o Memorial da América Latina) e que ainda se misturava com os eventos sonoros (dos bancos
de dados sonoros) dos diversos discursos de líderes da libertação da América Latina (que por sua
vez eram disparados na medida em que seus nomes eram detectados no microblog Twitter, rede à
qual os visitantes da exposição eram encorajados a mandar mensagens (via telefone celular))
usando o nome desses vários libertadores. Essa mistura complexa de espaços por meio da PSE
proporcionou uma experiência de espaço biocíbrido. Havia naquela paisagem sonora diferentes
134
situações reais e virtuais entrelaçadas e quem passava pela rampa, ou enviava mensagens ao sistema
também se entrelaçava e passava a fazer parte da obra que estava experimentando.
No que diz respeito a naturalização da experiência estética foi possível notar a possibilidade
de fruição estética independente da cultura de origem do espectador/participante. Havia naquela
obra a mistura de diferentes elementos de culturas distintas, dos vários países da América Latina
que estavam ali representados por seus libertadores, e foi possível notar a fruição de brasileiros de
diferentes culturas e também de pessoas de outras nacionalidades (americanos, latino-americanos e
europeus) que estavam presentes na inauguração da exposição. Esse fato aponta para a confirmação
da hipótese de que uma fruição estética transcultural é possível com o que se denomina por estética
naturalizada. A entonação das vozes dos discursos ouvidos, o próprio ruído da água correndo são
elementos transculturais e têm esse alcance mais amplo do que aqueles formados por hábitos
culturais. A audição de voz humana e de ruído de água são dois eventos sonoros com importância
histórica e vital para o ser humano, muito mais do que hábitos próprios de uma ou outra cultura em
especial. São elementos que dizem respeito à humanidade, antes de se referirem à uma ou outra
cultura mais especificamente.
Já na exposição em Cuba, a proposta poética buscava a criação que se faria a partir de uma
oficina, um conjunto de atividades propostas com relação às PS e sua expressão corporal. As
perspectivas enacionistas e externalistas do estudo da mente podiam ser levadas em conta na
medida que, o que se buscava na oficina era uma experiência corporal daquilo que se escuta, sem
mediação do gesto planejado de antemão. Nessa experiência a interatividade ganhou um status
bastante diferente da que tinha na proposta do Memorial da América Latina. No caso de La
Habana, o processo interativo/enativo na oficina foi pensado para ocorrer entre o movimento do
corpo dos participantes e a criação das PSE e dos padrões gráficos gerados por uma inteligência
artificial a partir da leitura dos gestos. Essa era a ligação ourobórica que deu nome à oficina/
instalação. Durante a realização da oficina, o espaço em que os participantes se moviam e
experimentavam não era outro se não uma zona biocíbrida, na medida em que era formado por
diferentes camadas, a saber: primeiro a camada do espaço dentro daquela sala ocupada por diversos
corpos; depois a camada de paisagem sonora que vinha de fora da sala, do local no campus em que
aquele conjunto de prédios onde ficava a sala de ensaios. Depois ainda havia o local remetido pelas
diferentes PSE que eram criadas a partir da leitura dos movimentos dos participantes e escolhidas
135
em um banco de dados dinâmico contendo diferentes eventos sonoros próprios da temática
(religiões afro-americanas) abordada na proposta. Essa mistura de diferentes espaços de ação
relacionando atores vivos e não vivos (como os sistemas computacionais) é que se denomina por
biocíbrido (há uma mistura de ambientes reais com ambientes de dados que se articulam com
diferentes tipos de vida (naturais e artificiais).
E nessa zona biocíbrida de interação se pode experimentar aquilo que essa tese apresenta
como a possibilidade de estética naturalizada. Os seres humanos que fizeram a experiência em
Ouroboros Biocíbrido encontraram um universo de emoções que é próprio do humano antes de ser
próprio de uma cultura. Como há atores vivos não humanos interagindo com atores de inteligência
artificial, não vivos, o componente humano mais basal de sua natureza acaba por apresentar maior
relevância de percepção do que aspectos culturais. Nesse sentido se aponta a possibilidade de uma
estética naturalizada, que coloque juntos em um mesmo sistema de produção seres vivos e não
vivos, humanos e não humanos, a natureza toda.
136
7 FROG’S SIGNATURE, ARTE ENACIONISTA
A apreensão de mim por mim é coextensiva à minha vida como
possibilidade de princípio, ou, mais exatamente, essa possibilidade sou eu
[...] o cógito como experiência de meu ser é cógito pré-reflexionante, [...]
antes de toda a reflexão atinjo-me através de minha situação, é a partir dela
que sou remetido a mim, ignoro-me como nada, só acredito nas coisas. [...]
existo em ek-stase nas coisas. (Merleau-Ponty - O visível e o invisível).
7.1 MATERIAIS E MÉTODOS
7.1.1 Descrição de Frog’s Signature
O projeto Frog’s Signature é o principal estudo de caso da pesquisa aqui descrita porque
reúne diferentes procedimentos apoiados nas teorias apresentadas anteriormente (enacionismo,
ecologia e fenomenologia). Nele foi possível re-colocar diferentes procedimentos tecnológicos e
teorias que consideramos fundamentados em tais teorias, que já haviam sido explorados nas duas
montagens anteriores nas bienais de São Paulo (2010) e Havana (2012). Dada à grande demanda de
recursos para implementação, a pesquisa ora em descrição não contempla as etapas do projeto
relacionadas às instalações das PSE. O que cabe ao seu escopo é a descrição cuidadosa de aspectos
conceituais e estruturais do sistema realizado. O sistema tecnicamente abrange tecnologias de
sensoriamento, captura, extração de dados, transmissão e classificação, os quais foram testados e
validados, conforme se apresenta a seguir.
A paisagem sonora enativa (PSE) que se propõe precisa ser descrita por suas camadas e
etapas, entretanto, há que se entender que tal descrição não acarreta a instituição de um sistema
hierárquico de controle. No sistema de Frog's Signature ocorre uma distribuição de controle entre
os diferentes agentes em seus múltiplos níveis de implementação. O que se espera, a partir do início
do funcionamento do sistema (quando os agentes iniciam suas interações), é que propriedades
imprevisíveis emerjam juntamente com o controle auto-organizado e distribuído por todos os atores.
Na atividade de visualização de dados ocorre o processo de transformação dos eventos que
formam a paisagem sonora original, dos anfíbios da reserva, em imagens, padrões gráficos que se
transformarão de acordo com a dinâmica dos marcadores (vocalizações de determinadas espécies de
137
anuros anfíbios) na PSE a ser ouvida na zona biocíbrida. O algoritmo de Pickover94 (1986)
associará as variáveis sonoras e fará relações com variáveis visuais para a produção de imagens, os
sonogramas por symetrized dot patterns (SDP).95
Figura 46: Fluxograma de Frog’s Signature
Fonte: Acervo do autor
O algoritmo que realiza a saída como visualização de dados produzirá imagens projetadas
em um ambiente específico de circulação de pessoas a ser preparado no espaço da área de
convivência do campus II da UNOESTE (cf. Figuras 58 e 59). Para o local denominado por bioma
biocíbrido propõe-se o uso de um espaço de circulação do experienciador, com efetores como
projetores, superfícies de projeção, alto-falantes, e também com sensores como microfones,
sensores de movimento, de calor, entre outros. Tais sensores, sua instalação e sua forma de entrada
94
O algoritmo de datavisualização de Pickover (1986) será descrito adequadamente no decorrer do capítulo.
95
Padrões de pontos simétricos. Tradução nossa.
138
no sistema, embora já sejam itens de investigação por outros pesquisadores do LART 96, serão alvo
dos próximos projetos para implementação das etapas futuras do projeto Frog’s Signature. O
participante explora o espaço (bioma biocíbrido) e seus gestos e expressões são dados de entrada
para outro sistema inteligente de classificação e reconhecimento de padrões.
Figura 47: Detalhe de fluxograma de Frog’s Signature
Fonte: Acervo do Autor
96
Como é o caso das pesquisas realizadas por LUECENA, T. R. e RORIGUES, Suélia, que encontram-se no momento
em que se escreve essa tese , empenhados em tais atividades no Media Lab do MIT, conforme se relatou no segundo
capítulo.
139
Figura 48: Detalhe de fluxograma de Frog’s Signature
Fonte: Acervo do Autor
A partir do acoplamento de diferentes sub-sistemas (comunidades de anuros anfíbios, os
algoritmos classificadores e de vida artificial, os participantes em movimento no bioma biocíbrido)
e da interação entre agentes maquínicos não vivos (algoritmos reconhecedores) e vivos (como os
humanos no espaço de circulação e os anuros anfíbios na reserva) é que ocorre o processo autoorganizado que proporciona a emergência da experiência artística. A zona de interação criada em
Frog’s Signature busca exatamente ser exemplo de um bioma biocíbrido, que é criado (emerge) na
medida em que todos esses agentes estejam em interação. Não há um controle central daquilo que
será visto e ouvido no ambiente de instalação (bioma biocíbrido), nem há previsibilidade plena
daquilo que acontecerá, uma vez que diferentes agentes interferem diretamente na composição do
que se está experimentando. Ressalta-se ainda que esse tipo de experiência é completamente
impossível sem a ação adequadamente descrita, de cada um dos atores envolvidos no sistema.
Em resumo, pode-se afirmar que a proposta artística denominada Frog’s Signature conta ao
menos com as seguintes etapas para a realização de sua implementação plena:
1) Concepção e descrição geral do projeto.
2) Descrição conceitual e técnica do projeto.
140
3) Treinamento e testes com rede perceptron multicamadas para classificação de vocalização de
anuros anfíbios.
4) Adaptações e implementação do algoritmo de geração de symetrized dot patterns97 (Pickover,
1986), para visualização de dados.
5) Criação e testes de algoritmo de vida artificial, que receberá entradas do ambiente da lagoa e da
zona biocíbrida, e que terá como saída a produção de padrões sonoro-imagéticos à zona
biocíbrida.
6) Criação e testes de sistema de transmissão de dados do local de captação ao local de instalação
da zona biocíbrida (com som e imagem).
7) Projeto técnico de montagem de base de captação, transmissão, projeção e difusão acústica dos
dados captados e processados pelos diferentes sistemas envolvidos.
As atividades pretendidas nessa tese englobam especificamente as etapas número 1, 2 , 3, 4 e 6.
O período de vocalização da maioria de espécies de anfíbios anuros ocorre nos meses de
maiores índices de pluviosidade e maiores temperaturas. Nesse sentido a instalação Frog’s
Signature, que tem seu projeto aqui detalhado, apenas poderá funcionar em tempo real, com um link
de transmissão de dados do ponto de captação ao ponto de distribuição de áudio e imagens e, à
entrada do sistema de vida artificial, em épocas com incidência de vocalizações.
A maioria das espécies manteve atividade de vocalização e reprodutiva nos períodos
chuvosos (outubro de 2004 a fevereiro de 2005 e setembro de 2005 a fevereiro de 2006).
Menor número de espécies vocalizando (três a quatro espécies) foi registrado nos meses de
abril, maio e junho (2005), enquanto que em outubro e dezembro de 2005 foi registrado o
maior número de espécies em atividade de vocalização (14 espécies). Nos meses de
setembro de 2004, abril e julho de 2005 não foi registrada nenhuma espécie em atividade
reprodutiva. (FORTI, L. R. 2009).
De acordo com a literatura da área, conforme ilustra a citação, para que se aproveitasse o áudio do
lugar escolhido, foi realizada então uma gravação de amostras de áudios durante o mês de Janeiro
de 2013 na lagoa escolhida (Figura 54). Em épocas de vocalizações será possível a comunicação de
dados, classificação e visualização em tempo real.
97
Padrões de pontos simétricos. Tradução nossa.
141
Para a escrita da tese foram realizados testes utilizando-se vocalizações de três espécies que
ocorrem na região do campus II da Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE). Essas
vocalizações foram preparadas para servirem de entradas para a rede classificadora, a qual tem
como saída a classificação de 3 tipos de espécies possíveis. Essa saída será, por sua vez, a entrada
para um algoritmo de visualização de dados que gera sonogramas, os quais serão mostrados na zona
biocíbrida, ao mesmo tempo em que camadas da PS são difundidas pelos diferentes alto falantes
dispostos na instalação na área de convivência do campus II da UNOESTE (Figuras 58 e 59). É
nesse espaço biocíbrido, que a experiência da presente proposta de PSE se realiza. O espaço é
constituído pela ação comum (enação) entre agentes vivos e não vivos, sem um centro único de
controle e sem pré-definição total dos estados iniciais ou finais.
7.1.2 O espaço abordado
Os locais escolhidos para a montagem do projeto atendem às particularidades próprias da
concepção de Frog’s Signature. São especificamente espaços de transição entre locais sem a
presença em massa do ser humano e outros onde este já se encontra em grandes contingentes. Uma
das características dessa proposta é realçar na PS as marcas de transição entre diferentes ambientes,
por meio do acompanhamento do comportamento sonoro de anuros anfíbios. Esse tipo de animal
precisa procurar uma localização que lhe ofereça condições adequadas de água e de ar para
sobreviver e reproduzir. Nesse sentido, o monitoramento de um trecho de córrego que corte
localidades como as descritas, pode ser bastante útil para conhecer como ocorre a movimentação de
diferentes espécies em diferentes condições. Esse tipo de monitoramento acústico tem sido utilizado
em situações variadas, segundo informa literatura na área de bioacústica:
Among the features identified by the National Park Service (NPS) for protection and
monitoring is the acoustical environment, or natural soundscape, of each park. The natural
soundscape refers to the intrinsic acoustical environment of an area without the presence of
human-caused sound. Similar terms include natural quiet and natural sound environment. 98
(MAHER et al, 2005, p. 1).
98
Entre as características identificadas pelo National Park Service (NPS) para a proteção e monitoramento está o
ambiente acústico ou sonoro, natural de cada parque. A sonoridade natural refere-se ao ambiente acústico intrínseco de
um espaço sem a presença de sons de origem humana. Termos similares incluem som ambiente tranquilo e natural.
Tradução nossa.
142
Nos Estados Unidos, há décadas o governo federal e governos de diversos estados realizam o
monitoramento de grandes trechos de territórios e utilizam os dados encontrados em diversas áreas
do conhecimento humano. Desde a Biologia, Ecologia, Geografia, até áreas como a Física,
Computação e Engenharias diversas. Nesse sentido, a bioacústica e, portanto, a gravação de
paisagens sonoras em diversos outros países, também tem sido considerada com relevância ao
estudo do meio-ambiente.
O local escolhido para a captação das vocalizações dos animais utilizados em Frog’s
Signature é uma lagoa à margem do córrego Limoeiro na cidade de Presidente Prudente - SP. A
lagoa é artificial e encontra-se dentro do campus II da Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE).
A escolha se dá, entre outros motivos, por sua localização às margens do córrego Limoeiro, e por
haver ponto de energia em uma pequena ilha em seu centro, o que facilitou a disposição dos
microfones e computadores no local. Uma vez captadas algumas amostras de áudio na estação do
ano em que os animais vocalizam (Janeiro de 2012) foi possível detectar três espécies que
posteriormente também foram encontradas relatadas em catálogo por Toledo e Haddad (2011) como
pertencentes ao bioma de Mata Atlântica, onde encontra-se o local escolhido.
Figura 49: Município de Presidente Prudente no Estado de São Paulo
Fonte: Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Presidente_Prudente> Acesso em 30 jun. 2013.
143
Figura 50: Sudoeste Paulista - Pontal de Paranapanema
Fonte: Google Earth.
A cidade de Presidente Prudente, segundo dados do IBGE de 2010, contava com 207.625
habitantes. Hidrograficamente ela está localizada na bacia do rio Paraná e possui diversas subbacias de pequeno e médio porte. A microbacia do córrego Limoeiro encontra-se nesse contexto e
tem sido objeto de estudo de pesquisadores em áreas diferentes no Estado de São Paulo. Uma
dessas pesquisas refere-se à classificação de utilização do solo na região. Presidente Prudente é
considerada também a entrada da região denominada por Pontal do Paranapanema e se caracteriza
pelo encontro de duas grandes bacias hidrográficas, dos rios Paraná e Paranapanema como se pode
observar na imagem da Figura 51.
O monitoramento das diferentes modalidades do uso da terra permite mais condições de
planejamento para manejo e manutenção da biodiversidade e mesmo maiores condições ao esforço
para diminuição de danos causados ao meio-ambiente pela presença humana. Ocorre, conforme
observa-se nos mapas que se seguem, que o córrego Limoeiro atravessa nitidamente duas regiões
com diferentes tipos de ocupação humana, a área urbana da cidade de Presidente Prudente em seu
lado direito (nascente), e a zona rural e pequenas cidades do entorno desse que é o maior município
do oeste paulista.
144
Figura 51: Perspectiva dos Municípios do Pontal do Paranapanema
Fonte: Google Earth.
Figura 52: Classificação do uso da terra na Microbacia Hidrográfica do córrego Limoeiro
Fonte: PRIOLI, E. L. e CAMPOS, S., 2010.
145
Na imagem acima (Figura 52), a partir das colorações diferentes, é possível constatar que do
ponto de vista da ocupação e uso da terra, o córrego Limoeiro atravessa os espaços urbano e rural.
Pode-se observar também que o ponto escolhido para a captação do áudio é localizado na região
central do mapa acima, que corresponde a um ponto de fronteira entre o meio urbano e o meio rural.
A grande porção de água (lago) que se observa na parte central do mapa na figura acima e na figura
abaixo (Figuras 52 e 53 respectivamente), está localizada na margem oposta do córrego à que a
lagoa escolhida para colocação dos microfones de captação da vocalização dos anfíbios encontra-se.
Tal situação permite inferir que esse local, por sua grande concentração de água, é interessante para
a vida anfíbia. A imagem da Figura 52 mostra a pouca diversidade no uso do solo, o que pode estar
ligado à diminuição nas possibilidades de mobilidade, e mesmo de manutenção da vida, das
espécies de anuros anfíbios habitantes e dependentes do córrego. No mapa a seguir (Figura 53) fica
bastante nítido o posicionamento fronteiriço do córrego Limoeiro que interessa ao presente estudo.
Figura 53: Córrego Limoeiro marcado em azul
Fonte: Google Earth.
146
Figura 54: Lagoa artificial à margem do córrego Limoeiro - Presidente Prudente - SP
Fonte: Google Earth.
7.1.3 Marcadores biogeográfico e o estudo da paisagem
Os anuros anfíbios têm sido considerados por grande número de pesquisadores na área de
ecologia e de herpetologia, como importantes marcadores de condições ambientais (HEYER et al,
1990). Eles regulam seus padrões vitais intimamente com características da água (como o pH e a
temperatura) e do ar (como quantidade de Oxigênio ou Gás Carbônico, entre outros gases), e
emitem (e reconhecem) padrões vocais regulares periódicos e com grande pertinência para a
manutenção de sua vida e da vida de sua espécie. Dessa maneira, são muito relevantes para a
discussão sobre PS como marcadora de condições ecológicas e sociais de um determinado
ambiente. Muitos são os estudos que assim tratam tais animais, entre os mais citados na bibliografia
contemporânea relativa ao tema encontram-se os de ROSSA-FERES e JIM, 1994; SEALE e
BECKVAR 1980; RITCHER-BOIX, LLORENTE e MON- TORI, 2007. Também é importante a
observação em estudos biogeográficos como faz Alves, et al:
147
Os anfíbios são considerados o grupo de animais que corre maior risco de extinção e esse
risco vem aumentando desde o início da década de 80. Nessa década surgiram com mais
frequência, publicações que relatam o declínio das populações de anfíbios em todo o
mundo. As causas desse declínio estão associadas fragmentação e destruição dos habitats,
doenças infecciosas, poluição das águas, espécies invasoras, aumento da incidência da
radiação ultravioleta (UV-B), isolamento de populações, consanguinidade, efeito de borda e
mudanças climáticas. (ALVES et al, 2012).
A citação acima deixa ainda mais patente a posição dos anuros anfíbios como marcadores de
situações limite, enquanto habitantes da paisagem urbanizada, na medida em que esta restringe as
condições para sua existência. Dessa forma o que o projeto de Frog’s Signature propõe é integrar
os dados advindos da dinâmica de populações desses biogeoindicadores (os anuros anfíbios) como
marcos significativos para a PSE a ser experimentada na chamada zona biocíbrida. Com isso quem
estiver engajado no ambiente biocíbrido terá condições de operar em congruência com padrões
advindos das ações dos anuros anfíbios por meio da audição de eventos sonoros, como as
vocalizações desses animais, e também por meio da visualização dos dados dos sinais de tais
vocalizações. As classificações e consequente visualização dos dados são feitas, respectivamente,
por meio da rede perceptron multicamadas e do algoritmo de Pickover (1986) que produzirá
sonogramas através da técnica de symetrized dot patterns (SDP).
Em diversos periódicos de áreas como herpetologia, ecologia e biogeografia encontram-se
artigos científicos sobre pesquisas tratando tanto de estudos de distribuição de espécies, como
também das relações entre tais movimentações populacionais e demais características do estudo da
paisagem. No entanto os estudos, embora crescentes, são recentes e mostram ainda grandes lacunas
de conhecimento, mesmo acerca do tipo de espécies existentes, ou sobre as quantidades e sua
distribuição. No caso específico do Estado de São Paulo, que é onde se pretende implementar a
presente proposta, há que se considerar a situação mostrada no mapa a seguir (ROSSA-FERES, D.
C. et al, 2011).
148
Figura 55: Grau de conhecimento de espécies de anuros anfíbios
Fonte: ROSSA-FERES, D. C. et al, 2011
A constituição de uma gama de tecnologias fenomenológicas, ecológicas e enacionistas, na
medida em que permitam integrar ações de diferentes agentes específicos de um determinado
sistema, é o que possibilita propor uma situação que ofereça a possibilidade da conduta estética,
como se pretende em Frog’s Signature. A intenção é que a partir do realce das relações entre tais
atores se faça emergir o que se denomina como bioma biocíbrido. Nessa zona de experiência, que é
tal bioma, será possível encontrar aspectos relativos não apenas à uma cultura específica, mas
características que se remetem à condutas estéticas próprias mesmo do viver e do ser da natureza,
de espécies de seres vivos e não vivos.
149
Ao propor a utilização desse tipo de marco para a constituição da PSE (como um tipo de
paisagem com múltiplas camadas oriundas dos diferentes atores do sistema) e do processo de
visualização de dados, espera-se constituir um vínculo entre os padrões de ação de diferentes
agentes em diferentes nichos, ou habitats específicos, ressaltando porém sua profunda interconexão
e dinâmica de acoplamento estrutural. A experiência emergente do ambiente biocíbrido proposto é
resultante de distintos processos de homeostase, de diferentes tipos de vida e mesmo processos não
estritamente biológicos, como o clima por exemplo, mas que têm sido cada vez mais considerados
em conjunto.
A mudança climática global afeta diretamente os ecossistemas. O conhecimento
biogeográfico auxilia no entendimento da relação entre alteração climática e queda das
populações de anfíbios, podendo tornar mais claro o grau de interdependência entre
aspectos climáticos, fitogeográficos e zoogeográficos, auxiliando na compreensão do atual
declínio das populações de anuros em todo planeta. (ALVES et al. 2012).
Os anuros anfíbios por conta de seus limites peculiares de condições de vida são tomados
em Frog’s Signature como indicadores para a reconfiguração do sistema, como parâmetros de ajuste
dos diversos outros atores do sistema em busca de seu equilíbrio e manutenção de uma espécie de
homeostase coletiva (dinâmica das relações homeostáticas). A partir da integração desses atores por
meio de dispositivos de processamento e transmissão de sinais, bem como de sua estruturação em
uma situação artística específica, aparece a possibilidade de uma experiência estética que seja
portanto emergente da ação conjunta (enação) dos diferentes agentes que formam todo o sistema. A
experiência estética que se realiza nessa zona biocíbrida de interação possui características que
antecedem as experiências culturais peculiares, que buscam mesmo experiências mais basais do ser
humano em suas condutas estéticas, o que permite, portanto, falar em uma estética naturalizada,
própria de membros da espécie antes de sua distinção em culturas.
150
7.1.4 Metodologia de classificação e visualização de dados
Para a implementação da etapa de classificação das espécies de anuros anfíbios foram
utilizados dois diferentes sistemas computacionais, em diferentes etapas de atividade que envolvem
tais classificações. Utilizou-se uma rede neural artificial (perceptron multicamadas) para classificar
as vocalizações de espécies que ocorrem na região estudada e um algoritmo probabilístico
estatístico (Pickover, 1986) para a a criação de sonogramas que consistem na visualização dos
dados.
A proposta do projeto de Frog’s Signature envolve a captação de vocalizações dos anuros
anfíbios que ocorrem em uma lagoa ao lado de um fluxo de água em região de fronteira entre zona
rural e urbana. Foram posicionados microfones no centro da lagoa artificial que encontra-se às
margens do córrego Limoeiro que é cortado pela Rodovia Raposo Tavares - SP (km 572), para
captar as vocalizações das comunidades de anuros anfíbios. A paisagem sonora captada foi gravada
para os testes realizados no contexto da tese. As vocalizações dos anfíbios ai realizadas serviram de
entrada (por meio da extração de características do som, os coeficientes cepstrais 99) para a rede
neural de classificação (perceptron multicamadas) que reconheceu diferentes variáveis presentes
nas vocalizações dos animais em questão e classificou a espécie que vocalizava.
As redes neurais artificiais (RNAs) são o principal modelo computacional postulado pela
vertente chamada de conexionista no contexto da ciência cognitiva. Elas tornaram-se exemplos
importantes de uma arquitetura computacional inspirada em neuroanatomia e neurofisiologia. Um
dos artigos científicos mais profícuos sobre o assunto é de Rumelhart et al (1986). Eles apresentam
um sistema com processamento de dados distribuído e em paralelo, que se assemelha ao tipo de
arquitetura de processamento de sinais realizado no sistema nervoso e que acaba por ser bastante
funcional para a tarefa de reconhecer e classificar padrões.
Rumelhart, et al (1986, p. 46-54) indicam oito princípios que orientam a proposta
conexionista das RNAs:
1) há um conjunto de unidades processantes, essas unidades são denominadas neurodos (neurônios
artificiais, neuron-like units);
2) essas unidades possuem um estado de ativação;
99 A noção
de coeficiente cepstral diz respeito a um tipo de extração de dados que se pode obter do padrão sonoro. Não
cabe à envergadura dessa tes sua descrição detalhada. No entanto ponderou-se a necessidade de sua explicitação.
151
3) há também uma função de saída (output) para cada unidade;
4) há um padrão de conectividade entre essas unidades;
5) há uma regra de propagação para padrões de conectividade das redes;
6) há uma regra de ativação para combinar entradas de um estado na unidade produzindo novos
estados de ativação;
7) há uma última regra de aprendizagem, segundo a qual a percepção pode alterar padrões de
conectividade;
8) considera-se meio para o sistema operar em conjunto.
Embora esses princípios norteiem os conceitos sobre as RNAs, esse tipo de arquitetura
computacional vem sendo utilizada há muito mais tempo do que sua postulação. A própria rede
perceptron é criação de cerca de três décadas anteriores à tais postulados.
Figura 56: Esquema lógico de uma RNA com uma camada intermediária
Fonte: Acervo do autor
Nas RNAs, enquanto modelos conexionistas, a busca na memória distribuída parece tornarse mais eficiente do que na memória localizada (associada ao processamento serial dos modelos da
IA clássica). Nas redes é possível identificar um dado padrão a partir de descrições parciais do
mesmo. Pode-se, por exemplo, identificar determinado padrão tímbrístico sonoro a partir de apenas
um grupo de características, mesmo que não seja exatamente o mesmo timbre sonoro. Assim como
se pode identificar uma estrutura sem que ela seja dada, no input, de maneira completa. Uma parte
152
do padrão causa determinadas interações entre as unidades nas diferentes camadas, permitindo
assim a inferência do padrão completo, não havendo uma localidade específica na qual esse padrão
fica armazenado. De acordo com Rumelhart et al (1986, p. 80) os padrões que não estão ativos não
existem em nenhuma parte, eles são acionados (podendo então ser recriados) por pesos de conexão,
sendo que cada peso intervém no armazenamento de muitos padrões, envolvidos em múltiplas
representações, conforme ressaltam os autores.
A perceptron multicamadas é uma rede não-linear, com pesos e treinamento supervisionado
para o ajuste dos pesos. 100 A proposta de uma arquitetura multicamadas permite a essa rede um
maior poder computacional do que possui a rede perceptron com uma única camada. Essas camadas
(agrupamentos de unidades ou nós da rede) são: camada de entrada, camadas ocultas e camada de
saída. São as camadas ocultas que, portanto, acabam por conferir maior poder computacional ao
modelo. No entanto elas também consomem energia do sistema, o que obriga seu modelador a
utilizá-las em dose adequada.101
Figura 57: Esquema da rede perceptron multicamadas
Fonte: Acervo do autor
100
De acordo com orientações do professor Dr. Cristiano Miosso.
101
De acordo com orientações do professor Dr. Cristiano Miosso.
153
Para a escolha do número de camadas a se utilizar, as instruções do sitio eletrônico do
Laboratório Nacional de Computação Científica102 indicam os seguintes princípios a se considerar:
1) O número de exemplos de treinamento;
2) A quantidade de ruído presente nos exemplos;
3) A complexidade da função a ser aprendida pela rede;
4) A distribuição estatística dos dados de treinamento.
Ainda segundo informações do mesmo sítio eletrônico, a rede perceptron multicamadas
mapeia sua entrada
(um vetor de valor real) para um valor de saída
(um valor binário
simples) através da seguinte matriz:
Onde
é um vetor de peso real e
é o produto escalar (que computa uma soma com pesos).
é a 'inclinação', um termo constante que não depende de qualquer valor de entrada.
A rede perceptron multicamadas foi implementada a partir de sua construção no programa
Matlab no LART - UnB/Gama, pelo professor Dr. Cristiano Miosso. Para tanto foram realizados
treinamentos e testes para a classificação de espécies de anuros anfíbios por meio de extração de
características (coeficientes cepstrais) do sinal acústico. A partir da classificação das vocalizações
dos anuros anfíbios realizada pela rede, o projeto prevê que a matriz de classificação seja
apresentada como entrada para que um algoritmo estatístico e probabilístico (Pickover, 1986)
produza imagens específicas (tais como as das Figuras 68 e 69), por um sistema denominado por
seu autor como symetrized dot patterns.103
102
103
Cf. <http://www.lncc.br/~labinfo/tutorialRN/frm4_perceptronMultiCamadas.htm> Acesso em 29 abr. 2012.
Padrões de pontos simétricos. Tradução nossa.
154
Figura 58: Área de convivência UNOESTE , SP
Fonte: Disponível em: <http://www.unoeste.br/site/> Acesso em 30 jun. 2013.
Figura 59: Área de convivência marcada - UNOESTE, SP
Fonte: Google Earth.
155
7.2 RESULTADOS
É bastante ampla a gama de possibilidades de utilização desses chamados marcadores
biológicos, e mesmo biogeográficos, para o processo de aquisição de dados que serve de entrada
para muitos tipos de processamento de sinais com fins musicais e artísticos, como no caso da
presente pesquisa. O que se busca com Frog’s Signature é a utilização de dados coletados
especificamente para colaborar em um sistema que pode ser considerado como enacionista, por ser
fruto da emergência de estados produzidos pela interação de diferentes atores integrados em um
espaço que oferece experiência estética. Também considera-se a possibilidade de um ciclo
interativo que ressalte a enação de diferentes espécies em diferentes meios próprios de suas
atuações (Umwelt).
Em Frog’s Signature, na medida em que os microfones forem colocados (na situação de
transmissão em tempo real) na lagoa mostrada na imagem da Figura 54 os dados serão enviados à
um servidor e submetidos à rede perceptron multicamadas que irá, por sua vez, encaminhar a
classificação como entrada para um algoritmo (Pickover, 1986) o qual terá como saída a geração de
imagens (data-visualization) projetadas no espaço da instalação da zona biocíbrida. É importante
ressaltar que o sinal de áudio coletado na lagoa será compactado, segmentado e processado para que
já se obtenham in loco os coeficientes cepstrais que servirão de vetores de entrada para a rede
classificadora. Isso deve possibilitar que o sinal seja transmitido com maior agilidade em menores
quantidades de informação, colaborando com a economia e eficiência do sistema computacional.
Ocorre que no momento em que essa tese é finalizada, no outono/inverno, os anfíbios muito
dificilmente vocalizam. Eles apenas o fazem durante a época quente e de chuvas, mais
especificamente entre os meses de Novembro e Fevereiro, conforme se observou anteriormente. De
qualquer maneira a situação não atrapalha a implementação das etapas 1, 2 e 3, uma vez que já foi
realizada a gravação de exemplos do mesmo lugar, em época própria de vocalização.
7.2.1 Classificação das espécies
Realizada a descrição geral, conceitual e técnica de Frog’s Signature, foi realizada então a
modelagem da rede perceptron multicamadas para reconhecer as vocalizações de algumas das
156
espécies que ocorrem na região escolhida para a montagem da instalação. O professor Dr. C.
Miosso a implementou por meio do software Matlab. Iniciou com a escolha de arquivos com áudio
de três espécies (Leptodactilus fuscus, Scinax fuscovarius, Physalaemus cuvieri). Foram escolhidos,
para tal etapa, arquivos do catálogo de Toledo et al (2011) com vocalizações e imagens dessas
espécies de anfíbios do bioma da Mata Atlântica. Esses arquivos foram segmentados e
posteriormente foi feita uma varredura das segmentações para calcular os coeficientes cepstrais de
cada um dos segmentos - tais coeficientes constituiram os vetores (n valores) de entrada da rede
reconhecedora. A indicação de análise cepstral (um tipo especifico de processamento do espectro
sonoro obtido pela inversão da transformada rápida de Fourrier, (FFT) foi feita pelo professor Dr.
Miosso por conta de sua ampla utilização na área de processamento de sinal de áudio para
reconhecimento de voz humana.
Figura 60: Leptodactilus fuscus (rã assobiadora) vocalizando
Fonte: TOLEDO, et al, 2011.
157
Figura 61: Scinax fuscovarius (perereca de banheiro) vocalizando
Fonte: TOLEDO, et al, 2011
Figura 62: Physalaemus cuvieri (rã cachorro)
Fonte: TOLEDO, et al, 2011
158
Figura 63: Physalaemus cuvieri vocalizando
Fonte: TOLEDO, et al, 2011
Com a rede montada e os vetores de entrada criados, foi feita a montagem das matrizes para
os treinamentos para que a rede reconhecesse áudios vindos das vocalizações das três espécies
escolhidas. Essas quatro matrizes envolveram: uma para os coeficientes cepstrais para treinamento,
outra para os coeficientes cepstrais para validação, outra ainda para os alvos do treinamento e uma
última para os alvos de validação. Uma vez que a rede que se está utilizando nesse caso tem seu
treinamento supervisionado, foi necessária a criação dessas matrizes dos alvos para que a mesma
aprenda e ajuste seus pesos para um reconhecimento preciso dos padrões sonoros. Com as matrizes
montadas, a rede foi treinada e apresentou logo de início nível de erro zero. No entanto, ao
submeter um padrão sonoro não usado no treinamento para o reconhecimento, a rede errou. O
professor Dr. Miosso implementou mais duas camadas de 10 unidades intermediárias até que
conseguisse, após a realização de cinco etapas de treinamento sucessivos, um número de erros igual
a zero. Logo após isso a rede reconheceu corretamente um padrão sonoro (entre os que foram
gravados na lagoa, e portanto não utilizado no treinamento) de uma das três espécies para as quais
foi treinada, mostrando que estava pronta e funcionando para a atividade proposta.
159
7.2.2 Visualização de dados
A área denominada por visualização de dados é considerada uma relevante corrente de
expressão artística visual com ampla abrangência e possibilidades para a área de arte e tecnociência.
São diversas as suas utilizações em pesquisas das mais variadas áreas de ciências, humanas,
biológicas e físicas. De maneira geral nas artes visuais ela aparece na esteira dos sistemas de arte
contemporânea no campo do novo abstracionismo. E para além do domínio das artes visuais, as
técnicas de visualização de dados são análogas às de sonificação de dados. De acordo com citação
de Polli (2004) na página 87, a sonificação dos dados matemáticos, bem como a possibilidade de
visualização, auxiliam os cientistas em suas tomadas de decisões porque adicionam informações
emocionais aos dados numéricos da matemática. Nesse sentido, tanto a visualização, quanto a
sonificação são modos de valorizar os aspectos emocionais oferecidos por tais experiências para
completar a lacuna explicativa, que afasta a ciência da fenomenologia. Em outras palavras, esse é
um exemplo de como a percepção, e especialmente percepção estética, vem sendo chave na
contribuição entre arte e tecnociência e entre estética e fenomenologia naturalizada.
Ainda sobre os testes, a saída da rede classificadora perceptron multicamadas, descrita nos
parágrafos anteriores, será enviada à um gerador de sonograma (Pickover, 1986) que opera segundo
técnica de representação visual de dados por SDP. Para que se escolhesse esse algoritmo para a
geração da visualização dos dados sonoros, o professor Dr. Miosso sugeriu inicialmente um
primeiro teste para observar se as diferenças que fossem claramente audíveis em vocalizações de
anfíbios anuros (independente dos locais de ocorrência das espécies) constituíam-se em gráficos
visivelmente diferentes também. Nesse sentido foram tomados exemplos de vocalizações muito
distintas entre si, das espécies Dendropsophus marmoratus e Leptodactylus knudseni).104
104
Exemplo audiovisual n. 05 e n. 06. Respectivamente, áudio de vocalização da espécie Dendropsophus marmoratus
(Toledo et al, 2011). DVD - 05. E áudio de vocalização da espécie Leptodactylus knudseni. (Toledo et al, 2011). DVD 06. Disponível em: <https://vimeo.com/enactivesoundscape> Acesso em 17 jun. 2013.
160
Figura 64: Dendropsophus marmoratus
Fonte: Disponível em: <http://www.amphibiancare.com/frogs/gallery/henryvilaszoo01.html> Acesso em 03
jun. 2013.
Figura 65: Leptodactylus knudseni
Fonte: Disponível em:<http://www.inaturalist.org/check_lists/7106-Bolivia-Check-List> Acesso em: 03 jun
2013.
161
Os gráficos, de modo geral, são amplamente utilizados pela ciência para apresentar
informações e dados advindos das mais variadas situações em estudo. Em caso de análise de sinais
eletrônicos, como especificamente no caso de ondas sonoras, os sonogramas são extremamente
úteis para que se entenda o fenômeno sonoro. As imagens a seguir são espécies de sonogramas
próprias de um tipo de classificação específica a partir de duas espécies distintas. Isso foi feito
como primeiro teste de classificação de eventos sonoros, próprios de vocalizações de anuros
anfíbios, tais como os que se pretende fazer na implementação da obra apresentada. Os gráficos
gerados pelo algoritmo de Pickover (1986), apresentam uma descrição por distribuição de energia
nos diferentes parciais harmônicos de cada sinal advindo das vocalizações, distribuídos em padrões
de pontos simétricos.
Tradicionalmente os gráficos que são utilizados para analisar e classificar vocalizações de
anuros anfíbios, em experimentos da área de herpetologia, são sonogramas como os mostrados nas
imagens das Figuras 66 e 67. São oriundos do sitio eletrônico brasileiro chamado Sapoteca105 que é
um projeto financiado pelo governo brasileiro, envolvendo várias instituições de pesquisa na área.
Dentre as possibilidades que o projeto de Frog’s Signature espera poder oferecer à ciência, mais
especificamente à biologia, encontra-se um novo modelo de coleta e mostra de dados (por
microfones e sistemas computacionais automatizados de classificação, visualização e sonificação de
dados).
105
Cf. <http://ppbio.inpa.gov.br/sapoteca/nomedasespecies> Acesso em 28 abr. 2012.
162
Figura 66: Sonograma tradicional de Dendropsophus marmoratus
Fonte: Disponível em: <http://ppbio.inpa.gov.br/sapoteca/nomedasespecies> Acesso em 29 jun. 2012
Figura 67: Sonograma tradicional de Leptodactylus knudseni
Fonte: Disponível em: <http://ppbio.inpa.gov.br/sapoteca/nomedasespecies> Acesso em 29 jun. 2012
Note-se a diferença entre os sonogramas tradicionais, como os mostrados nas imagens das
Figuras 66 e 67, e os mostrados nas imagens das Figuras 68 e 69 produzidos pelo professor Dr. C.
Miosso no LART - UnB/Gama, utilizando o algoritmo de Pickover (1986). As últimas figuras
citadas contém imagens geradas por SDP. Nelas observa-se a formação de imagens fractais que
mostram a distribuição de energia entre os diferentes parciais harmônicos da vocalização das
163
espécies de anfíbios. Para além da maior possibilidade de uso estético do que os sonogramas
tradicionais, os sonogramas por SDP oferecem ainda mais condições de distinção visual dentre duas
espécies com sonoridades distintas.
Figura 68: Sonograma SDP de Dendropsophus marmoratus
Fonte: Acervo LART - UnB/Gama
164
Figura 69: Sonograma SDP de Leptodactylus knudseni
Fonte: Acervo LART - UnB/Gama.
7.2.3 O Programa teste de transmissão de dados
O professor Dr. C. Miosso criou, no MatLab e FreeMat, um programa que faz a transmissão,
recepção e classificação dos dados extraídos dos eventos sonoros (vocalizações) dos anfíbios para o
caso de Frog’s Signature. Uma parte desse programa rodou em um computador em Presidente
Prudente - SP, enquanto outra parte rodou no computador em Brasília (LART - UnB/Gama). Por
meio do acionamento manual, escolheu-se a vocalização de cada uma das três espécies selecionadas
(Leptodactilus fuscus, Scinax fuscovarius, Physalaemus cuvieri), dos arquivos de áudio gravados na
lagoa escolhida para captação. Antes de transmitir os dados esse programa extraiu os coeficientes
165
cepstrais que constituiram os vetores de entrada para o sistema de classificação. Tais coeficientes
foram enviados para o computador que estava no LART - UnB/Gama, no qual foram classificados
como uma das três espécies, preparando uma entrada de dados para o algoritmo de visualização de
dados que tinham como saída os sonogramas SDP.
Figura 70: Janelas do programa de transmissão de dados rodando nos computadores de SP e do DF
Fonte: Acervo do autor.
A imagem da Figura 71 mostra a tela do computador de Presidente Prudente - SP e na janela
menor a tela do computador do LART-UnB/Gama. Ela foi feita logo que se acionou o programa
para emitir um evento sonoro (uma das vocalizações das três espécies mencionadas), extrair seus
coeficientes cepstrais e enviá-los ao endereço do servidor virtual Dropbox, no qual o computador de
Brasília fez a busca por tais dados para então classificá-los como uma das três espécies para as
quais a rede fora treinada. Ainda não há a ação do algoritmo de Pickover (1986) e portanto não há
ainda a geração do padrão visual com os sonogramas SDP para essas espécies.
166
Figura 71: Janelas do programa de transmissão de dados rodando nos computadores de SP e do DF
Fonte: Acervo do autor.
Contudo, há como resposta da classificação aos testes citados, a mostra da imagem da espécie
classificada. Na imagem da Figura 70 observe-se que a espécie que está vocalizando aparece na
janela maior (janela do computador de Presidente Prudente), enquanto que na janela menor aparece
a imagem da espécie que a rede no computador de Brasília classificou. No caso da imagem na
Figura 70, o computador de Brasília ainda não havia concluido o reconhecimento e por isso não
havia modificado a imagem em sua tela. Já na imagem da Figura 71 mostra-se uma classificação
realizada com sucesso, com a mesma espécie aparecendo em ambas as janelas, grande e pequena,
respectivamente dos computadores de Presidente Prudente e Brasília.
Os arquivos de áudio originários da gravação das vocalizações feitas na lagoa da UNOESTE
estão armazenados no computador de Presidente Prudente, e só foram utilizadas dessa maneira
(como arquivos pré-gravados) por conta da sazonalidade da atividade acústica dos animais. No
entanto, na medida em que for possível o programa não utilizará como entrada inicial tais arquivos,
167
mas o próprio audio streaming captado em tempo real na lagoa. Para a ocasião presente o professor
Dr. Miosso escreveu essa estrutura de programa, que tem como exemplo a imagem da Figura 72,
com a função de captar os sons dos arquivos dos anuros anfíbios e extrair deles os coeficientes
cepstrais e enviar os dados ao servidos da internet (Dropbox). Essa parte do programa foi rodada no
computador em Presidente Prudente - SP.
Figura 72: Exemplo do programa de transmissão de dados de Frog’s Signature
Fonte: Acervo do LART - UnB/Gama
No computador de Brasília, no LART - UnB/Gama, rodou uma outra parte da estrutura do
programa do professor Dr. Miosso, (Figura 73) a qual buscava no Dropbox os coeficientes cepstrais
(vindos de Presidente Prudente) e os utilizava como entrada da rede neural perceptron
multicamadas, que classificou as espécies que estavam vocalizando. Essa saída da rede, com a
classificação das espécies vocalizadoras, será utilizada como entrada para o algoritmo de Pickover
(1986) que por fim vai gerar as imagens dos sonogramas por SDP referentes à cada espécie que
vocaliza naquela situação.
168
Figura 73: Exemplo do programa de transmissão de dados de Frog’s Signature
Fonte: Acervo LART - UnB/Gama
7.3 DISCUSSÃO:
Os procedimentos descritos anteriormente possibilitam experiências estéticas que de certa
forma se remetem muito mais aos fundamentos da humanidade, do que às culturas que as
distinguem no curso de sua história. E é nesse sentido que se propõe o conceito de estética
naturalizada. Porque é uma experiência estética que se torna possível à todos da natureza humana.
Uma experiência que perpassa as diferentes culturas, não que tais culturas não as influenciem, mas
as experiências vividas na participação de Frog’s Signature permitem encontrar mais ressonâncias
com o que é comum a todos os humanos, do que com o que distingue um homem de outro. E é
relevante atentar que se caminha para a experiência estética por meio das possibilidades
apresentadas por novas tecnologias para um tipo de acoplamento com outras espécies vivas e não
vivas de atores, que integrando seus hábitos em um trama enativa dinâmica e complexa
169
proporcionam condutas estéticas emergentes. É à experiência de tais estados emergentes que estão
ligadas as possibilidades do grau zero de significação referidos à estética naturalizada nos primeiros
capítulos. A possibilidade do grau zero de espacialidade (Merleau-Ponty, 1989) é tomada aqui
como possibilidade de grau zero de significação por meio da partilha do mesmo mundo e do mesmo
formato de corpo, que transpondo barreiras culturais aproximam o humano de sua natureza, a qual
no nível molecular não é distinta dos não-humanos, e mais ainda, no nível atômico é a mesma das
estrelas e de tudo o que se conhece no cosmos.
Entre os principais objetivos da proposição dessa experiência artística chamada de Frog’s
Signature está a especificação de uma PSE como parte de uma zona biocíbrida, formada também
por imagens de visualização de dados. Um dos aspectos a se ressaltar é que pretende-se oferecer à
ciência formas específicas de visualização e sonificação de dados por meio de algoritmos ou de
outros dispositivos computacionais, como modelos com redes de processamento, para se categorizar
as diferentes espécies, as quantidades e seus movimentos nos trechos de biomas monitorados. Na
perspectiva do que afirma A. Polli (2004) espera-se mostrar os dados de uma maneira que envolvam
uma dimensão estética ao invés de mostrá-los apenas em equações matemáticas ou gráficos com
planos cartesianos, uma vez que isso permite outra perspectiva (mais rica) para a compreensão de
tais dados pela ciência.
Nesse sentido se deu a escolha do tipo de algoritmo a ser empregado para essa tarefa da
visualização dos dados. O professor Dr. C. Miosso trouxe os conceitos de um relevante texto de C.
Pickover (1986) que propõe a possibilidade de aproximar mais o gráfico de um sonograma daquilo
que se escuta como fonte para geração do gráfico. O problema inicial delimitado por Pickover
(1986) é que muitas vezes mudanças audíveis em padrões sonoros não são representadas
adequadamente (com a mesma relevância) por um padrão imagético, especialmente no caso dos
sonogramas tradicionais como os mostrados no exemplo anterior. No artigo citado, o autor propõe
um algoritmo com um método que envolve o que ele descreve como sobreposição de symetrized dot
patterns 106, e que produz imagens como a mostrada nas imagens das Figuras 68 e 69. Observa-se
uma convergência entre as perspectivas de Andrea Polli (2004) e o que diz Pickover (1986). O autor
afirma em uma passagem do seu texto que procura por algumas [...] novel ways of graphically
106
Padrões de pontos simetrizados. Tradução nossa.
170
representing speech waveforms in order to capture information missing in the spectrogram [...] 107.
Tais aspectos dos dados que de acordo com o autor são perdidos, ou estão em falta, podem ser
considerados como os mesmos que são acrescidos às representações científicas tradicionais, os
quais A. Polli (2004), conforme citado na seção 4.2, afirma serem conectores emocionais para que o
cientistas, e de modo geral quem mais se relacionar com a imagem, ampliem suas possibilidades de
experimentar e entender os padrões analisados, os dados por trás dos fatos. De maneira geral
ressalta-se a intenção de aproximar a representação visual, do padrão reconhecido sonoramente.
Pickover (1986) aponta para a mesma direção da intenção de A. Polli (2004) quando afirma que,
com novas formas de visualização é possível permitir ao percebedor mais dados e dados mais
amplos do que aqueles fornecidos pelos gráficos científicos tradicionais, como os espectrogramas
tradicionais.
O algoritmo utilizado para a classificação e geração dos gráficos que serão projetados na
instalação, tem como princípio uma característica fenomenológica, na medida em que Pickover
(1986) afirma logo no início de seu texto, que algumas propriedades perceptíveis auditivamente não
são igualmente perceptíveis visualmente nos sonogramas tradicionais.
[...] with traditional representations for speech, such as the speech spectrogram, some
perceptibly differennt sounds may give rise to only very subtle differences in the spectra,
[...]. 108 (PICKOVER, 1986).
O que se tem no presente caso de desenvolvimento de um algoritmo que pode ser considerado como
um aspecto característico da abordagem fenomenológica é a atenção dada à experiência perceptiva,
bem como a busca por um vínculo mais forte entre os dois tipos de experiência, auditiva e visual,
do mesmo fenômeno (vocalização dos animais).
Ao invés de o autor iniciar seu texto técnico diretamente com a descrição matemática que
refuta, e em seguida apresentar suas próprias possibilidades de equações, ele prefere começar como
a citação acima mostra, com a posição de um problema centrado na percepção auditiva. Ao notar
107
Algumas novas formas de representar graficamente as formas de onda da fala, a fim de capturar a informação em
falta no espectrograma [...]. Tradução nossa.
108
[...] com as representações tradicionais da fala, como o espectrograma, alguns sons perceptivelmente diferentes
podem dar origem a apenas diferenças muito sutis nos espectrograma (enquanto representações visuais). Tradução
nossa.
171
que a representação visual gráfica do fenômeno sonoro não funciona perceptivelmente para
entender o fenômeno, ou em outras palavras, ao notar a discrepância entre representação visual (que
é uma experiência) de uma outra experiência (sonora) com experiência traduzida (em imagens), o
autor busca oferecer uma espécie de lastro perceptivo também na representação científica dos
fenômenos. É esse lastro que acaba sendo o “a mais” de que fala Andrea Polli (2004) e que pretende
também Pickover (1986).
Quanto à utilização da rede classificadora perceptron multicamadas, é relevante ressaltar
ainda que uma aplicação conexionista como essa oferece à proposta de Frog’s Signature a
característica de hibridismo nas abordagens computacionais utilizadas, o que é também próprio da
terceira geração da ciência cognitiva109 , a qual tem o enacionismo como uma das importantes
teorias. A maneira como modelou-se a rede também merece destaque e comentário. Os coeficientes
cepstrais têm sido empregados para a atividade de reconhecimento de padrões sonoros vocais
humanos, por permitirem uma modelagem matemática do som mais relacionada à experiência
auditiva humana, principalmente por levar em conta as relações entre valores dos parciais
harmônicos das séries harmônicas e não seus valores fixos. O que se propõe é um sistema para
humanos experimentarem condutas estéticas por meio da relação entre diferentes espécies de
agentes, vivos e não vivos. E por conta disso é que se valoriza uma modelagem matemática que
leve em consideração aspectos (características e limiares da percepção) próprios da experiência
humana.
A criação desse sistema de classificação por meio de rede multicamadas parece ter um
alcance bastante amplo. Se por um lado há dificuldades em reunir diferentes áreas de conhecimento
para produzir um projeto como esse, por outro os resultados parecem sempre permitir certa
transcendência dos propósitos iniciais. E se espera que na sequência dos projetos que devem
decorrer desses testes iniciais estejam presentes aplicações do modelo para usos em áreas como
ecologia, zootecnia entre várias outras já referenciadas anteriormente.
A proposta de uma experiência estética que envolva a emergência de relações da ação
conjunta (enação) entre diferentes espécies é a intenção central de Frog’s Signature. A perspectiva
109
De acordo com anotações de aula da professora Dra. Lourdes Brasil, em disciplina cursada no PPG em Engenharia
Biomédica, no primeiro semestre de 2011.
172
da abordagem ecológica aos estudos da arte ou da percepção tem enriquecido o foco dos estudos
sistêmicos entre diferentes espécies em um determinado bioma. Desde os estudos de J. von Uexküll
(1934, 1942) passando por J. J. Gibson (1966 e 1979), ou G. Bateson (1979) até os escritos de
Maturana e Varela (1974/1997) e de Varela et al (1999), diferentes biólogos de formação vêm
contribuindo amplamente na construção de uma abordagem ecológica para os estudos de atividades
mentais, como é o caso da percepção e da significação. Nesse sentido a escolha de um animal que
utilize som para comunicação intra-espécie e que ao mesmo tempo é considerado um marcador de
diversas características vivas e não vivas da paisagem que habita, foi o fundamento das ideias
desenvolvidas na proposta apresentada.
Ao relacionar essa grande quantidade de conhecimento das diferentes áreas citadas espera-se
portanto que Frog’s Signature permita aos participantes uma experiência estética naturalizada, por
caracterizar-se como uma abordagem transcultural e apoiada em possibilidades de conduta estética
próprias da espécie humana, antes de serem próprias de uma ou outra cultura dessa espécie.
Também por ancorar-se na natureza para além da própria espécie humana (propositora e
experimentadora do conjunto da experiência). Para que o sistema produza o ambiente biocíbrido é
necessário o funcionamento conjunto, da inter-relação de diferentes atores vivos e não vivos
(pessoas no espaço da instalação na área de convivência, anuros anfíbios da lagoa próxima ao
córrego Limoeiro, sistemas computacionais automáticos como a rede perceptron multicamadas
classificadora, o algoritmo de visualização de dados (Pickover, 1986), e o sistema de vida artificial
emulando a relação entre espécies de anuros anfíbios e as pessoas no espaço biocíbrido). É a partir
dessa ampla rede de relações de toda a natureza (seres vivos e não vivos) que emergirá uma
situação de experiência estética pelos participantes. A instalação na qual as pessoas poderão
experimentar um relacionamento sonoro-visual-espacial com os anuros anfíbios espera permitir a
experiência do convívio entre tais espécies, e a experiência estética das consequências de diferentes
padrões condutuais em tal convívio. Ao engajar-se ao sistema de Frog’s Signature o participante
fará parte do sistema, e poderá experimentar condutas estéticas próprias de seu envolvimento na
situação.
173
8 ESTÉTICA NATURALIZADA: A NATUREZA DA ARTE NA NATUREZA
A carillon made of living bells would have to possess the hability to play its
tune not just based on a mechanical drive but also controlled merely by a
melody. Thereby, every self -tone would induce the next according to the
sequence of tones established by the melody. (Jacob von Uexküll - A theory
of meaning)
A circularidade presente no título é uma referência direta à concepção de percepção como
um ciclo entre percepção e ação. Conceitualmente essa circularidade pode ser observada em
explicações sobre percepção e hábitos de conduta por uma sequência de autores que caminha a
partir de pressupostos comuns: Uexküll (2010 [1949]), Gibson (1966, 1979), Maturana e Varela
(1974), Varela et al (1991) e Noë (2004, 2009). No campo da produção artística tal circularidade é
sempre redimensionada com as tecnologias de interatividade.
Entre artistas e pesquisadores que já abordaram as relações de acoplamentos estruturais,
especificamente nos termos de H. Maturana, está o arquiteto Ted Krueger. Em texto de 2003,
Krueger traz conceitos de autores ligados à corrente enacionista em ciência cognitiva, como R.
Brooks, E. Thompson e F. Varela. O artigo de Krueger aponta para uma redefinição do próprio ser
humano como aspecto central da contemporaneidade e que pode ser vivenciada em experiências
artísticas.
Há também uma referência direta no título do presente capítulo ao mais novo livro do artista
e pesquisador francês Edmond Couchot (2012), e isso porque essa obra acaba por corroborar no
caminho que a tese desenvolveu até aqui. O artista/pesquisador francês traz exatamente aspectos de
ciência cognitiva contemporânea para a explicação sobre a natureza do fazer artístico. E o faz por
meio da perspectiva da corrente enacionista à qual também está vinculado. Foi uma surpresa muito
relevante no contexto dessa pesquisa o contato com recém publicado livro de E. Couchot. Suas
relações entre práticas artísticas e ciência cognitiva contemporânea, sobretudo apoiadas em relações
afetivas e emocionais, bem como sua fala direta sobre um projeto de naturalização da arte, vieram
indicar a relevância e contemporaneidade do tema abordado pela presente tese.
Ressalte-se que o próprio E. Couchot, quando questionado para fins dessa pesquisa, falou
sobre a possibilidade de classificar o momento atual como terceira cibernética, conforme segue:
174
Dans cette perspective, la troisième cybernétique caractériserait les systèmes
autopoïétiques (c’est-à-dire du type auto-organisateur fort doté d’intentionnalité, comme
l’homo sapiens ou quelques espèces animales supérieures). Le problème, au fond, dans une
démarche de naturalisation de l’art, n’est pas de classifier, mais de pouvoir adapter les
modèles auto-organisateurs ― dont le modèle autopoïétique ― issus de la biologie, de la
neurobiologie et de l’informatique, à la création et à la perception des œuvres d’art, et aux
théories esthétiques. 110 (Couchot, anexo 2).
Mais do que à classificação, é aos modelos auto-organizadores, e mesmo autopoiéticos, que o
professor francês se remete ao tratar dessa descrição do tipo de interatividade própria de
experiências artísticas apoiadas em teorias como o enacionismo, a ecologia e fenomenologia,
conforme essa tese vem apresentando. O desafio apontado pelo autor não é outro senão o
enfrentado durante todo o tempo da presente pesquisa, adaptar modelos auto-organizados, que
aparecem a partir de teorias enacionistas, ecológicas e fenomenológicas, à criação artística e de suas
teorias. Interessa alcançar reflexões a partir da experimentação de procedimentos de criação
artística nos espaços como o das duas bienais de arte (São Paulo, 2010 e Havana, 2012) os quais
foram implementados procedimentos artísticos e tecnocientíficos que se relacionam com a
naturalização da arte.
8.1 NATURALIZANDO A ESTÉTICA COM A CONSTANTE RE-ENGENHARIA DOS AFETOS
Não cabe uma revisão histórica mais profunda sobre o que diferentes correntes de
pensadores através dos tempos têm entendido como estética. Porém, há que se considerar que, para
realizar alguma explicação acerca do que seja a naturalização da estética, é necessário ter em mente
que, o que se tem entendido como noção de estética, sobretudo na modernidade pós-iluminista, está
intimamente associado à sua dimensão metafísica e à tradições espiritualistas e dualistas na
filosofia. É apenas como consequência do amplo desenvolvimento de instrumentos de análise e
estudos - desde o aparecimento das teorias que fundaram a ciência moderna, passando pelos
avanços da medicina nos séculos XVII e XVIII e da psicofísica do século XIX, até o amplo
110
Neste contexto, a terceira cibernética caracteriza os sistemas autopoiéticos (isto é, o tipo de auto-organização forte,
com intencionalidade, próprio do Homo sapiens e alguns animais superiores). O problema, basicamente, em um
processo de naturalização da arte não é classificar, mas adaptar os modelos auto-organizadores - incluindo o modelo
autopoiético - da biologia, da neurobiologia e da computação, à criação e percepção da arte e teorias estéticas. Tradução
nossa.
175
crescimento da neurociência nos séculos XX e XXI - que as chamadas ciências naturais têm
alcançado maior poder explicativo no universo daquilo que até então era denominado por
metafísico, e portanto, para além dos poderes explicativos da física e demais ciências da natureza.
Dois grandes nomes dos estudos em estética na Idade Moderna são, sem sombra de
dúvidas, A. G. Baumgarten (1714 - 62) e G. W. F. Hegel (1770 - 1831). Em obras monumentais
desses autores encontram-se profundas raízes idealistas e metafísicas que orientaram e ainda
orientam tendências de explicação da estética como algo apoiado em dualismos como objetivo/
subjetivo, mente/corpo, entre outros, próprios de sistemas filosóficos de Platão e Descartes.
Conforme informa Kandel111 (2012), enquanto no século XVIII os filósofos germânicos e franceses
citados acima trabalhavam e desenvolviam caminhos que afastavam a metafísica das ciências
naturais, havia também um encaminhamento em direção oposta. Por exemplo, com a intenção de
reorganizar a Universidade de Viena, a imperatriz Maria Theresa recrutou em 1745 o renomado
físico G. van Swieten para trabalhar em sua escola de medicina.
Van Swieten formed what is now known as the First Vienna School of Medicine, a school
that began to transform Viennense medicine from the pratice of therapeutic quackery based
on humanist philosophy and the teaching of Hippocrates and Gallen into a pratice based
on natural science. 112 (KANDEL, 2012, p. 490).
De acordo com Kandel (2012) a intenção dos imperadores austríacos do século XVIII era melhorar
as condições de bem estar da população de seu Estado. É importante realçar que a noção de bem
estar, com a amplitude que se entende o termo hoje, era algo bastante incomum na época do império
de Joseph II. Kandel (2012) ressalta na atitude do casal imperial vienense do século XVIII uma
visão para além de seu tempo e com isso a possibilidade da proposição de um espaço para o
reencontro entre aspectos quebrados há muito pelo dualismo idealista racionalista (Platão, Plotino,
Agostinho, Descartes). A ideia de que cuidar do corpo poderia trazer bem estar e consequentemente
uma vida melhor, depois dos tempos medievais foi algo construído durante a Idade Moderna toda e
111
Eric Kandel é um pesquisador vienense nascido em 1929 que ganhou o prêmio Nobel de medicina em 2000 por seus
trabalhos com “memória”. Em sua mais recente obra, The age of insigth, o autor oferece história e filosofia da ciência
junto de história e filosofia da arte,
112
Van Swieten formou o que hoje é conhecido como a Primeira Escola de Medicina de Viena, uma escola que
começou a transformar a medicina Vienense da prática de charlatanismo terapêutico baseado na filosofia humanista e
nos ensinamentos de Hipócrates e Gallen, em um prática baseada na ciência natural. Tradução nossa.
176
com isso foi também se ampliando a perspectiva de que a física e as demais ciências da natureza,
compreendessem elas mesmas um tipo de conhecimento que antes se entendia como
exclusivamente metafísico. O historiador A. Hauser (1999) fala da emergência do indivíduo durante
toda a Idade Média e Moderna, que culmina na noção de indivíduo do Iluminismo. Seus exemplos
nas artes, como o desenvolvimento do conceito de autoria e de interpretação subjetiva, são bastante
úteis para o entendimento do conceito de mente na Idade Moderna.
O incremento das ciências naturais e muitas de suas consequências práticas e aplicadas,
sobretudo no século XVIII transformaram o mundo amplamente. Tais transformações abriram
espaço para que as teses metafísicas sobre estética começassem a alcançar novos tipos de
explicação, mais ligados às ciências naturais e cada vez mais possíveis de modelagens e
manipulações matemático-científicas. Com o amplo e rápido aparecimento e fortalecimento da
escola vienense de medicina, no século XIX um grande conjunto de estudos em fisiologia, e mais
especificamente em neurofisiologia, revolucionou o conhecimento acerca de atividades perceptivas
e como consequência promoveu mesmo a possibilidade de um reposicionamento do papel da
percepção na descrição da atividade artística, das condutas estéticas.
A obra de Herman von Helmholtz (1954 [1863]), que se propõe a ser uma explicação
naturalizada dos fenômenos da audição, da sensação do tom,113 é um marco histórico na construção
de um caminho não metafísico à teorias estéticas. Não cabe aqui qualquer especulação de
julgamento sobre a realização plena ou não dos propósitos de Helmholtz (1954), porém, cabe antes
o reconhecimento de sua filiação a um caminho específico que vinha se despreendendo da
metafísica espiritualista do dualismo cartesiano. Por tal trilha feita por Helmholtz passaram as
vertentes pragmatista, especialmente dos EUA, e fenomenológica da Europa, durante os séculos
XIX/XX.
Ao se propor a fazer uma teoria da música e da significação musical com bases
fisiológicas, Helmholtz (1954) contraria diretamente a perspectiva kantiana do não acesso à coisa
em si. Se para o filósofo iluminista o acesso ao mundo fosse realizado pela mente, o que era
inevitável, então o acesso estaria comprometido, por que alcançaria apenas a representação possível
pela mente, e não o próprio mundo. Helmholtz almeja partir de leis físicas encontrar fenômenos
mentais como a percepção do som, ou das regras tonais. Vai, dessa maneira, em caminho oposto ao
proposto pelo Iluminismo em seu filósofo maior, Imanuel Kant.
113
On the sensation of the tone é o título do livro de Helmholtz, 1863.
177
Ao desenvolver a noção de Psicofísica em torno de 1860, o grupo de pesquisadores
germânicos, dentre os quais G. T. Fechner (1801 - 1887), H. von Helmholtz (1821 - 1894) e C.
Stumpf (1848 - 1936), institui bases de grande importância para todo o desdobramento da
neurociência nos séculos seguintes. O que é relevante ao contexto dessa pesquisa é que tais bases
são lançadas com estudos sobre percepção, e percepção de arte, especificamente de música, nos
casos das obras de Helmholtz (1954) e de Stumpf (2013 [1883]). Fato este que remete diretamente à
força da vida cultural e artística da Viena do século XIX. Helmholtz escreve em 1863 um grande
tratado sob o título Sobre a sensação do tom como uma base fisiológica para a teoria da música.
Logo na introdução o autor deixa explícita sua intenção de conectar as fronteiras de duas ciências
que embora tenham muito em comum permaneciam separadas até aquele momento, e as nomeia
como acústica física e fisiológica de um lado, e ciência musical e estética de outro. Helmholtz
(1954) lança os fundamentos práticos e teóricos para o desenvolvimento do que hoje tem se
denominado não apenas por psicofísica, mas mesmo por neuroestética. Ele influenciou uma ampla
gama de áreas de conhecimento desde a musicologia, passando pela estética e alcançando a física,
engenharias, biologia e medicina.
Figura 74: Ressonador de Helmholtz
Fonte: HELMHOLTZ, 1954 [1863], p. 121
Por sua vez Carl Stumpf publica em 1883 Psicologia do tom, e embora seja muitas vezes
colocado ao lado de H. von Helmholtz, principalmente no que tange à temática, há que se lembrar
que eles caminham em direções distintas quanto a algumas premissas fundamentais em seus
178
estudos. Conforme lembra a professora M. Fonterrada (2008, p. 86), por conta da filiação
fenomenológica de Stumpf (2013 [1883]), por influência direta do filósofo Franz Brentano, sua
abordagem difere da perspectiva fisiológica (e reducionista) que estava sendo desenvolvida por
Helmholtz. Segundo Stumpf (2013) toda a física e a matemática empregada para explicar a
percepção nos termos da psicofísica de autores como Helmholtz e Fechner, não eram ainda assim
suficientes para explicar por completo a experiência sonora e menos ainda a experiência artística,
tais abordagens acabavam por perder a dimensão total da experiência na medida em que se
distanciavam dela e trabalhavam com dados extraídos dela, como se reduzissem a experiência às
equações matemáticas que as modelam. Nesse aspecto Stumpf (2013) antecipa o problema do
explanatory gap114 ao qual se referem os autores que serão tratados a seguir sobre o projeto de
naturalização da fenomenologia.
Esse autor, Carl Stumpf, tem uma grande relevância para diferentes origens de áreas de
estudos contemporâneas que vão desde a musicologia comparativa e etnomusicologia, passando
pelos fundamentos da teoria da gestalt, em psicologia, e do pragmatismo e fenomenologia na
filosofia. Foi aluno de Franz Brentano (professor de E. Husserl). Nesse sentido Stumpf (2013)
encontra-se bastante próximo da perspectiva de buscar um outro caminho para reconciliar aspectos
tidos como metafísicos com teorias próprias das ciências naturais, um caminho que critica a postura
psicofísica por alguns pressupostos fisicalistas que perdem a totalidade e a essência da experiência
que buscam descrever.
É interessante observar a obra coletânea organizada por J. C. Petitot et al (1999) chamada
Naturalizing Phenomenology, a qual é inspiradora não apenas do título dessa seção, mas de toda a
trajetória em direção à construção da hipótese da possibilidade de condutas estéticas naturalizadas.
No livro citado a proposta dos organizadores foi reunir textos que mostrassem uma abordagem da
fenomenologia relacionada diretamente com ciências naturais e que têm a matemática como
instrumento altamente relevante. O caminho de naturalizar a fenomenologia aparece no sentido em
que o autor E. Husserl, ao propor sua fenomenologia a entende como a busca pela essência por
meio de um método específico, a redução fenomenológica, que realça o que Petitot et al
denominam por explanatory gap. Segundo os autores a distância entre os dados da experiência e os
dados da representação dessa experiência (especialmente as representações lógico-matemáticas) é o
114
Lacuna explicativa. Tradução nossa.
179
que forma essa lacuna (gap) de entendimento e em último caso fomenta a perspectiva dualista. Os
autores afirmam que a distinção entre o dado físico e o fenomenológico seria que, nessa primeira
área de atividade humana (a física) os dados da experiência tendem a ser filtrados e purificados, e
na filtragem perde-se a experiência em sua dimensão completa. Para fechar essa fenda explicativa
os autores argumentam:
This further specification throws light on an additional feature of the sort of
phenomenology needed to close the gap: it should be a naturalized or naturalistic one in
the minimal sense of not being commited to a dualistic kind of ontology. In other words, it is
not enough that such a phenomenology be descriptive and analytical; it should be also
explanatory, and the explanations it gives should make clear how phenomenological data
can be properties of the brain and the body without the help of any spiritual substance. 115
(ROY, et al. In: PETITOT et al. 1999, p. 19).
Essa busca por uma explicação descritiva e analítica, menos metafísica, dos autores ligados
à perspectiva naturalizada da fenomenologia não indica uma desconsideração dos fenômenos
metafísicos, mas procura uma explicação que se mantenha congruente às explicações físicas. Vai
exatamente em tal caminho a abordagem de Couchot (2012) na medida em que se apóia em dados
da ciência cognitiva enacionista para postular a direção à seu projeto de naturalização da arte. O
que é muito relevante ao contexto que a presente pesquisa traz, é a aproximação dos dois projetos
de naturalização citados. Ao propor uma naturalização da fenomenologia, Petitot et al (1999)
fornecem material para fundamentar o suporte conceitual apresentado nessa tese. Ao mesmo tempo,
toma-se o projeto de naturalização da arte de Couchot (2012) como subsídio conceitual
confirmando a possibilidade das PSE como experiências estéticas naturalizadas.
A necessidade de integrar na explicação física os aspectos metafísicos faz com que a
abordagem naturalista da fenomenologia amplie a própria noção de natureza. Há uma nítida saída
do caminho explicativo dualista que propõe a natureza como algo dado de antemão, independente
do percebedor, que a descreve, e que nessa perspectiva racionalista-dualista é tomada como
contrário de cultura. De acordo com a citação a seguir pode-se observar o caminho em direção à
uma noção de natureza que se desenvolve em um projeto conjunto com o desenvolvimento de quem
115
Esta nova especificação lança luz sobre um recurso adicional do tipo de que a fenomenologia precisava para fechar a
lacuna: ela deve ser naturalizada ou naturalista, no sentido mínimo de não ser comprometida com um tipo dualista da
ontologia. Em outras palavras, não é o suficiente para uma tal fenomenologia ser descritiva e analítica, mas deve ser
também explicativa, e as explicações que dá devem tornar claro o modo como os dados fenomenológicos podem ser
propriedades do cérebro e do corpo, sem a ajuda de qualquer substância espiritual. Tradução nossa.
180
nela vive, a percebe e a descreve.
[...] it is possible to extend the concept of the natural world to include mental intentionality,
under the condition that the unity of the mental and the physical be understood as the
product of a categorial constitution and not as a factual reality. [...] As a result of
evolutionary adaptation, the perception and action of a living organism are pretuned to the
qualitative structure of its Umwelt: forms, qualities (colors textures), and so on. 116 (ROY, et
al. In: PETITOT et al. 1999, p. 69)
O caminho apontado pela fenomenologia, especialmente por esse projeto de fenomenologia
naturalizada, que já é encontrado em Merleau-Ponty (1996), em Petitot et al (1999) e Varela et al
(1991) apresenta o mundo como projeto do sujeito, que por sua vez também só existe enquanto o
projeto de um mundo que ele faz ao viver e fazer-se a si próprio. A citação feita pelos autores ao
biólogo estoniano Jacob von Uexkül, coloca a noção de Umwelt no seio da discussão e das
possibilidades de explicação das atividades perceptivas.
Figura 75: Litografia Drawing hands - M. C. Escher (1948)
Fonte: Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Drawing_Hands> Acesso em:
30 jun. 2013.
Esse ciclo de percepção e ação em que são feitos o mundo (a realidade) e o próprio sujeito,
também está explicitado na utilização do termo Umwelt, que no contexto da filosofia ecológica tem
sido traduzido como “mundo de percepções próprias” de um indivíduo de dada espécie. Segundo J.
116
[...] é possível estender o conceito do mundo natural para incluir intencionalidade mental, sob a condição de que a
unidade do mental e do físico seja entendida como o produto de uma constituição categorial e não como uma realidade
factual. [...] Como resultado da adaptação evolucionária, a percepção e ação de um organismo vivo são pré-afinadas à
estrutura qualitativa do seu Umwelt: formas, texturas qualidades (cores), e assim por diante. Tradução nossa.
181
von Uexküll (2010 [1940]) a natureza, feita junto com o animal que nela vive, se faz por meio de
um contraponto com o próprio fazer de seus diferentes habitantes. O autor usa mesmo a noção de
contraponto da música (técnica de composição polifônica por excelência), no sentido de que uma
voz é composta sempre com uma intima relação com uma outra (ou outras) voz (vozes), já dada ou
criada ao mesmo tempo. Em seu livro de 1940 não há referência alguma sobre qual é o tipo de tal
contraponto, se com um Cantus Firmus dado, ou não. Parece interessante para certo alinhamento de
premissas, que o autor estivesse se referindo àquele que é feito sem o Cantus Firmus dado, no qual
uma voz é composta ao mesmo tempo que o seu contraponto. De qualquer forma, o que Uexküll
(2010) aponta é um caminho comum para a descrição da percepção das várias espécies de seres
vivos que repartem um mesmo meio físico.
Sobre o reconhecimento da intima relação entre a cultura e a natureza, ou o percebedor e o
mundo percebido, bem como com uma posição para além do paradigma dualista cartesiano que
opõe essas noções ao invés de integrá-las, encontra-se o trabalho de Ted Krueger. Em um texto de
2003, a partir de colocações de Maturana sobre o acoplamento estrutural entre percebedor e mundo,
o autor afirma:
Humans and their environments are deeply intertwined. This paper reviewed the
relationship between physics and physiology. Bodies subjected to altered physical
conditions are vigorously adaptive. Bone porosity and muscle atrophy were cited as
examples of this adaptation. Perception is altered as well, especially with respect to the
fusion between sensory modalities, and for a sense of orientation. In this respect, microgravitational and virtual environments exhibit similar adaptations. 117 (KRUEGER, 2003,
p. 8).
É a modificação no tipo de experiência estética que se propõe ao trazer o termo naturalizado. Sendo
a percepção, parte de um ciclo percepção/ação, ao apresentar sempre novos elementos para
perceber, ao mesmo tempo se traz novas possibilidades para agir. No caso das propostas de práticas
artísticas (Biocybrid Latin American Memorial, Ouroboros Biocíbrido e Frog’s Signature) tratadas
nos capítulos anteriores, são dados exemplos dessas oportunidades de experiências nas zonas
biocíbridas. Em tais espaços se proporciona a possibilidade de novos acoplamentos estruturais entre
117
Os seres humanos e seus ambientes estão profundamente interligados. Este trabalho analisou a relação entre a física
e a fisiologia. Os organismos sujeitos a condições físicas alteradas são vigorosamente adaptativos. Porosidade óssea e
atrofia muscular foram citados como exemplos dessa adaptação. A percepção é alterada, bem como, especialmente no
que diz respeito à fusão entre modalidades sensoriais, e ao sentido de orientação. A este respeito, ambientes microgravitacionais e virtuais exibem adaptações similares. Tradução nossa.
182
diferentes atores (vivos e não vivos) e de diferentes espécies (como no caso de Frog’s Signature)
que permitem experiências reconfiguradas entre as espécies humanas, não humanas e de atores não
vivos. Essa rede de relações novas possibilitadas na zona biocíbrida é fruto de tecnologias
desenvolvidas a partir de conceitos advindos das perspectivas fenomenológica, enacionista e
ecológica da mente e da cognição em geral.
A referência feita no início da tese à característica de grau zero de significações, atribuída à
estética naturalizada, pode ser retomada a partir da citação de Merleau-Ponty tratando da maneira
como o ser humano percebe o mundo e como lida com os instrumentos:
[...] o corpo já não é meio da visão e do tato, é depositário destes. Longe de serem os
nossos órgãos instrumentos, nossos instrumentos, ao contrário é que são órgãos
acrescentados. [...] (O espaço) é contado a partir de mim como ponto ou grau zero da
espacialidade. Eu não o vejo segundo seu invólucro exterior, vivo-o por dentro, estou
englobado nele. Afinal de contas o mundo está em torno de mim, e não adiante de mim.
(MERLEAU-PONTY, 1989, p. 62).
Para Merleau-Ponty (1989) O grau zero espacialidade está no corpo que age em um mundo no qual
encontra-se afundado, mergulhado. Tal é o caráter do grau zero de significação que a estética
naturalizada realça. Lembra-se da noção de espaço esboçada em obras de J. Cage, no capítulo sobre
paisagens sonoras, como precursoras das experiências estéticas naturalizadas. A busca por condutas
estéticas apoiadas em condutas mais naturais do que culturais, e o próprio entendimento de natureza
e cultura mais gradual do que ambíguo ou paradoxal, permite propor a estética naturalizada apoiada
no oferecimento de possibilidades de experiências artísticas orientadas por tal grau zero de
significação, uma significação direta ao corpo todo em ação, não uma significação segunda, fruto
do raciocínio pré ou pós-ação.
O entendimento do corpo como um anexo de diversos órgãos/instrumentos acrescentados,
negociados, aparece também na perspectiva externalista do enacionismo na ciência cognitiva. Entre
seus principais argumentadores estão filósofos como Alva Noë (2004, 2009) e Andy Clark (2003,
2008). Suas abordagens da mente e de suas ações, como a percepção, têm sido encaminhadas a
partir de conceitos como os apontados por Merleau-Ponty (1989) em citação anterior. E se é o corpo
183
a medida de todas as coisas, para o mundo perceptivo, como afirmam Merleau-Ponty (1996) e
Uexküll (2010), a ideia de que o corpo seja parte do mundo e vice-versa é explicitada por Clark
(2008):
[...] human minds and bodies are essentially open to episodes of deep and transformative
restructuring in which new equipment (both physical and mental) can become quite
literally incorporated into the thinking and acting systems that we identify as our minds
and bodies. 118 (CLARK, 2008, p. 30, 31).
Dessa forma, o corpo passa a ser o conjunto de suas possibilidades de ação no mundo, ação essa
que é perceptiva. A ideia de um ciclo entre percepção e ação encontra raízes diretas nas explicações
do biólogo J. von Uexkül (2010), que a despeito de muita discussão acerca de particularidades de
algumas de suas premissas, é ampla a concordância sobre a importância da noção de Umwelt para a
biologia em geral, e mais especificamente para a ecologia. Esse é também o cientista mais citado
por Heidegger, talvez pela aproximação das perspectivas fenomenológicas de ambos, mas com
certeza por conta de certa similaridade dada na descrição das relações entre natureza e cultura, ou
mais especificamente de uma aproximação entre o que o biólogo faz apontando características
comuns entre tecnologias da natureza e tecnologias de criação artística. Também Maurice MerleauPonty (1964, 1989, 2004) traz uma série de considerações a partir de leituras de obras de J. von
Uexküll, sobretudo, em sua abordagem sobre o conceito de natureza.
Ao propor uma trilha comum para os mundo dos animais e humanos, Uexküll (2010 [1934])
inicia sua explanação pela proposição de um modus operandi de toda a natureza, ou de outra forma,
de todo o tipo de desenvolvimento que é próprio da natureza. Ele apresenta inicialmente um ciclo
funcional entre percepção e ação com exemplo do ciclo de vida do carrapato. Segundo o autor, esse
animal representa todo o ciclo da vida (de qualquer vida) por meio de um ciclo de percepção-ação
bastante simplificado e específico.
118
[...] Mentes e corpos humanos são, essencialmente, abertos a episódios de reestruturação profunda e transformadora
em que novos equipamentos (físicos e mentais) podem se tornar literalmente incorporados no pensar e agir dos sistemas
que identificamos como nossas mentes e corpos. Tradução nossa.
184
As diferentes espécies de carrapato podem hibernar por longos períodos de tempo, algumas
até mesmo por anos. Enquanto hibernam, aguardam pela presença do ácido butírico (que é próprio
dos mamíferos) como uma marca perceptiva. Quando esse ácido aparece o carrapato então o
detecta, o percebe como uma marca de ação e desencadeia o processo de alimentação que põe fim à
sua hibernação e o levará à reproduzir e morrer. Nesse contexto Uexküll (2010) apresenta sua noção
de Umwelt, que pode ser traduzida como “mundo próprio de percepções”. Segundo o biólogo
estoniano, o animal se faz na medida em que está acoplado ao seu “mundo próprio de percepções”.
Esse mundo existe por meio da própria ação e configuração dos corpos juntamente com seus
hábitos de percepção e ação constituídos historicamente nas condutas de tais espécies. O mundo que
vem sendo produzido juntamente como o percebedor é que Uexkül (2010) denomina por Umwelt.
Figura 76: Ciclo funcional do carrapato segundo Uexküll
Fonte: UEXKÜLL, 2010, p. 49.
O esquema apresentado por Uexküll (2010) pode ser tomado como uma espécie de
fundamento para a fenomenologia, sobretudo de orientação merleaupontyana, na medida em que
185
entende o objeto como algo que se dá apenas na relação entre percebedor (receptores e efetores) e o
mundo. Nessa relação é que também se fazem o mundo de sentidos e significados. É a essa corrente
que se filiam Varela et al (1991) ao apresentarem a sua versão para a descrição de mente e de
percepção como um de seus atributos. E também é à essa tradição que está filiado, ainda que tenha
características que por outro lado o distinga dessa linha fenomenológica, o filósofo A. Noë quando
afirma que: Actual perception counsciousness is anchored by the fact that we interact with, refer to,
and have access to the environment.119 (NOË, 2004, p. 214). É esse acesso ao meio-ambiente,
através de um conjunto de sensores e efetores, que Noë aponta como fundamento da realidade
percebida e vivida. É o mesmo que J. J. Gibson (1969) vai tratar por self-tunning mutualistico entre
percebedor e meio. E ainda pode-se notar em tais noções bastante similaridade com o conceito de
“acoplamento estrutural” e de “percepção como configuração condutual consensual entre
percebedor e mundo” apresentados por H. Maturana (1997).
Também comprometido com tais tendências fenomenológica, ecológica e enacionista, está
claramente T. Krueger:
Our experience of solidity and constancy in the environment is a function of the
invariants in the internal patterns that we experience. We have the impression that
this is the totality of our world as it is the totality of our experience. We perceive but
a minute fraction of the available spectra and there is much that is not yet available
through scientific instrumentation. Making available additional dimensions of
perception will result in a richer experience of the world. It will also illuminate
certain aspects of it of which we are normally not aware.120 (KRUEGER, 2003, p.
10).
O trecho citado pode ser relacionado diretamente com parte das intenções, tecnologias e
procedimentos apresentados no capítulo anterior quando se delineou o projeto Frog’s Signature. Se,
conforme aponta Krueger, (2003) podemos ampliar nossas capacidades perceptivas por meio de tais
119
A consciência da percepção do real está ancorada pelo fato de que nós interagimos com, nos referimos à, e temos
acesso ao meio-ambiente. Tradução nossa.
120
Nossa experiência de solidez e constância no ambiente é uma função das invariantes nos padrões internos que
experimentamos. Temos a impressão de que esta é a totalidade do nosso mundo como ele é, a totalidade de nossa
experiência. Percebemos apenas uma fração diminuta do espectro disponível e há muita coisa que ainda não está
disponível através de instrumentação científica. Dimensões adicionais disponíveis de percepção irão resultar em uma
experiência mais rica do mundo. E também irão iluminar certos aspectos dela que nós normalmente não temos
consciência. Tradução nossa.
186
tecnologias próprias a isso, estaremos, portanto, ampliando nossa própria experiência vivida, uma
vez que essa experiência seja definida conforme os teóricos citados no parágrafo anterior.
De acordo com Varela et al (1991), Maturana (1997), A. Clark (2003, 2008) e ainda A. Noë
(2004, 2009) é por meio da percepção e ação do corpo no mundo que se faz a consciência, o ser, a
vida do ser. E há aqui uma filiação direta à noção de Dasein (ser ai) de M. Heidegger (1997). Com a
expansão do ciclo percepção/ação por meio de diferentes tecnologias, como as descritas, parece
ser possível a realização de experiências de um ser que também pode ser considerado expandido. A
computação ubíqua, senciente e móvel expande as práticas artísticas por meio de dispositivos
móveis ao apresentar a emergência advinda da sobreposição de experiências, do virtual trazido
misturado com o real, naquilo que já foi denominado como cíbrido por Peter Anders (1997), e que
tem sido chamado de zona de experiência biocíbrida (Domingues et al, 2011). Nos exemplos
abordados nos capítulos anteriores, bem como na apresentação do projeto de Frog’s Signature,
mostra-se que os diferentes corpos humanos, maquínicos e de outros tipos de agentes acoplam-se
mutualmente em interações recorrentes por meio de tecnologias, compartilham uma senciência/
consciência de lugares e corpos locais e remotos. Dotado então de interfaces de naturezas e origens
distintas, o homem sente distribuindo-se e agindo a distância, com outros que estão também colocalizados e distribuídos. Tais tecnologias têm sido denominadas por vezes como “disruptivas”
conforme já se mencionou na introdução. Elas são inovações que por vezes não são muito
previsíveis por buscarem uma re-engenharia do ser no mundo, e não apenas repetir a engenharia
que está em uso em determinado momento ou local. O que mais uma vez lembra a citação de
Krueger (2003) sobre a possibilidade de re-definição do humano na medida em que se reconfiguram
suas capacidades de ser no mundo (Heidegger, 1997), ou mesmo de redefinir o que Uexküll chama
de self-tone121, seu acoplamento estrutural (Maturana)122 , ou seus auto-ajustes (Gibson), ou ainda
seus padrões sensório-motores (Clark, 2008; Noë 2009) e re-engenharia do sensório (Domingues,
2011).
121
A noção de self-tone aparece nas obras “A forway into the words of animals and humans” e “A theory of meaning”.
A primeira aparição termo pode ser vista em (UEXKÜLL, 2010, p 148). Nas obras referidas há diversas outras citações
acerca da expressão que indica algo como uma característica própria para um conjunto, ou uma ação específica. É
interessante lembrar da noção de self-tuning de J. J. Gibson, que parece coincidir em muitos aspectos com as propostas
de Uexküll.
122
É preciso que se reconheça a diferença específica entre princípios teleonômicos de J. von Uexküll e o afastamento de
tais princípios na teoria da Autopoiese de Maturana e Varela (2002). No entanto, o que se aproxima pontualmente são as
noções citadas no parágrafo.
187
Figura 77: Representação do acoplamento estrutural de Maturana (1997)
Fonte: MATURANA, 1997, p. 39.
O que se tem chamado de reconfiguração do ser humano por Ted Krueger (2003) está em
consonância com que os autores citados no parágrafo anterior entendem como a dinâmica do
acoplamento estrutural (nos termos de Maturana) (cf. Figura 77) ou o auto-ajuste do sistema
perceptivo com o meio-ambiente, que ocorre durante toda a vida do animal em um meio específico
e que, nesse viver, vai melhorando a qualidade do ajuste por meio do que J. J. Gibson (1979) chama
de enriquecimento do sistema perceptivo, o qual permite ao indivíduo encontrar padrões cada vez
mais complexos, mais específicos no meio. E se o animal está sempre em re-configuração por conta
desse constante auto-ajuste à própria natureza de que faz parte, a natureza, por conseguinte, também
encontra-se em constante re-configuração, por conta da ação e interação dos vários elementos que
são descritos como suas partes. Na medida em que a natureza e os atores que dela fazem parte estão
em uma re-configuração constante, (para manter sua constante sua ordem, segundo Maturana), o
modo como se afetam também se re-configura e permite uma constante re-engenharia dos afetos,
das emoções e então da própria consciência junto da natureza. É para descrever tal elaboração
conjunta da natureza e do homem, como uma parte dela, que Couchot (2012) parece localizar como
marca muito relevante o que denomina por conduta estética.
188
8.2 CONDUTA ESTÉTICA COMO FUNDAMENTO DA ESTÉTICA NATURALIZADA
As abordagens de ciência cognitiva na da obra de Couchot (2012) ao mesmo tempo que
corroboram o caminho pretendido por essa tese, também despertam e encaminham alguns aspectos
fundamentais do que se pretende descrever por uma estética naturalizada. Entre tais aspectos está a
noção de conduta estética. Segundo o autor, esse tipo de padrão de comportamento (conduta) é o
próprio fundamento da experiência artística como uma prática humana. Couchot (2012) apresenta
um amplo suporte em estudos advindos da neurociência, possibilitadores de uma abordagem que
tem sido denominada contemporaneamente por neuroestética e que é mostrada como um dos
marcos fundamentais do que o autor chama de programa de naturalização da arte, ou das práticas
(experiências) artísticas. A similaridade com o que, no contexto da investigação em curso, se tem
chamado de estética naturalizada foi de fato uma grande surpresa ao primeiro contato com a obra de
E. Couchot (2012). Lembre-se que a pesquisa ora descrita propôs tais hipóteses no ano de 2009,
portanto, antes da publicação da obra de Couchot, e antes de conhecer seu projeto de naturalização
conforme descrito na referida produção.
A noção de conduta estética é apresentada por Couchot (2012) como sendo inicialmente
uma característica do que ele denomina por atenção cognitiva. De acordo com o autor a atenção,
como ação cognitiva, tem duas funções básicas que podem ser designadas não apenas enquanto
caraterísticas humanas, mas de agentes percebedores em geral (cf. tabela em COUCHOT, 2012, p.
50), a saber, um [...] faisceau exploratoire dirigé vers une cible [...] e um Méchanism d’anticipation
qui prépare à agir e qui configure le monde [...]. 123 Essas duas descrições das funções da atenção
cognitiva podem ser relacionadas diretamente com a descrição da percepção como detecção de
informações na filosofia ecológica de J. J. Gibson (1966 e 1979) que propõem ser a informação
uma seta bi-direcional, com uma ponta voltada ao mundo e outra ao percebedor, affordances e
invariantes, respectivamente. Outra relação que se pode encontrar na citação de Couchot (2012) está
na fenomenologia da percepção, consolidada por Merleau-Ponty e seus leitores como F. Varela
123
[...] feixe exploratório dirigido para um alvo [...] e um mecanismo de antecipação que prepara um ato que define o
mundo [...]. Tradução nossa.
189
(1991) e Andy Clark (2003 e 2008), quando tratam de evidenciar percepção como um ciclo entre
percepção e ação.
Para caracterizar a noção de atenção estética, Couchot (2012) utiliza dois termos
específicos, afirma que ela é [...] morphotropique. Elle se porte sur des gestalts et non sur des
concepts.124 (COUCHOT, 2012, p. 39). E também afirma, referenciando Jean-Marie Schaeffer
(2000), que a atenção estética é autoteleológica. Conforme Couchot (2012) indica, esse tipo de
atenção (estética) nutre-se dela mesma (como o mito ouroboros) [...] au sens où elle fonctionne en
boucle sous l’impulsion de l’indice de satisfaction qu’elle génère.125 (COUCHOT, 2012, p. 41). O
fato do autor descrever a atenção estética como morfotrópica indica uma dimensão fenomenológica
bastante acentuada. Em outras palavras, pode se entender que tal atenção, antes de ser um raciocínio
abstrato, um conceito, é uma experiência total que se dá por meio da relação (acoplamento) entre
percebedor e meio, dinamicamente. O morfotropismo indica a predominância da forma, da gestalt.
E esse fluxo em forma de loop é o que Couchot ressalta com a noção de autoteleologia. O
fechamento estrutural pode ser relacionado diretamente com o fechamento de fluxo informacional
que Maturana e Varela (2002) descrevem como modus operandi para os sistemas nervosos dos seres
vivos.
Como um sistema autopoiético não possui entradas nem saídas, todas as trocas que ele
experimente sem perder sua identidade, e portanto, mantendo suas relações definitórias, são
necessariamente determinadas por sua organização homeostática. Assim, a fenomenologia
de um sistema autopoiético está necessariamente sempre em correspondência com as
perturbações ou deformações que ele sofre sem perder sua identidade, e com o ambiente
deformador em que está situado; não fosse assim, desintegrar-se-ia. (MATURANA e
VARELA, 2002, p. 92).
Embora haja trocas e interações constantes entre organismo e meio, o organismo não recebe do
meio instruções que determinem o que ele é e será, ao contrário, Maturana e Varela (2002) afirmam
que as interações não podem determinar o operar do organismo, este em seu fechamento
operacional, modifica suas estruturas mantendo sua organização. Nesse sentido, a colocação de
Couchot (2012) sobre o fechamento da atenção estética está em concordância com os mesmos
124
[...] morfotrópica. Ela (a atenção estética) se concentra sobre gestalts e não sobre conceitos. Tradução nossa.
125
[...] no sentido em que ele é executado em um loop, sob a liderança do índice de satisfação que gera. Tradução nossa.
190
fechamentos operacionais informacionais para descrever o sistema perceptivo, conforme explicam
Maturana e Varela (2002).
Mais do que caracterizar a arte, Couchot (2012) busca compreender os processos mais
basais da atividade estética, e por isso essa noção de atenção estética como uma dimensão
específica do que neurocientistas têm denominado por atenção cognitiva. Nesse sentido o autor
reconhece e afirma que muito antes de procurar expressões artísticas em diversas culturas humanas
é possível encontrar a atenção estética em toda a natureza humana, e se pode ampliar essa
perspectiva para descrever também condutas de outros agentes vivos e não vivos. Por conta de tal
descrição é que se entende que o argumento em favor de uma estética naturalizada, ou um projeto
de naturalização estética passa por buscar princípios poéticos que permitem experiências artísticas
que se remetem mais diretamente à dimensões da atenção estética, do que aqueles relacionados a
dimensões simbólicas e culturais específicas. A perspectiva de encontrar nas condutas estéticas o
veículo de expressão de emoções (Couchot, 2012) está relacionada à abordagem do psicólogo russo
L. S. Vigotski (2001), quando diz que a arte é uma importantíssima moduladora das emoções; e está
ligada também ao entendimento do neurocientista Jean-Pierre Changeux (2009) de que a arte (podese dizer, as condutas estéticas) estimulam e ampliam as possibilidades de comunicação
intersubjetiva; e ainda, relaciona-se ao posicionamento de Clark (2003), sobretudo, quando este fala
de suas influências “subterrâneas” de autores como J. J. Gibson, G. Bateson e L. S. Vigotski. Na
citação de Couchot (2013) apresentada na introdução da tese, está nítida a concordância direta e
explícita do autor com os objetivos da naturalização da estética para além da cultura. A
possibilidade de entender e explicar experiências estéticas por meios biológicos, físicos e
fisiológicos, amplia as possibilidades das próprias experiências que foram descritas.
Em sua incursão pela neurociência Couchot (2012) apresenta inicialmente a noção de
conduta estética como um tipo de atenção estética, ligada à outros mecanismos de atenção. O autor
relaciona esse tipo de atenção ao prazer estético. Couchot (2012) cita o neurocientista A. Damásio
(2003, 2009, 2010) e sua noção de que o prazer é uma característica, ou uma qualidade, constituinte
de diferentes emoções. A noção de que a conduta estética esteja relacionada diretamente com a
modulação de emoções, as quais são formadas por diferentes porções e qualidades de sentimentos
mais ou menos prazerosos também pode ser encontrada na obra de Lev S. Vigotski. Especialmente
191
em sua Psicologia da Arte (2001) é patente a noção de que a experiência artística é antes de mais
nada uma poderosa moduladora de emoções. Tudo consiste em que a arte sistematiza um campo
inteiramente específico do psiquismo do homem social - precisamente o campo de seu sentimento
(VIGOTSKI, 2001, p. 13). Cabe ainda realçar que o pesquisador russo afirma que a modulação de
emoções (e que a tradução aqui apresentada traz como sentimento) não é específica de um
indivíduo, mas antes, do que ele trata por homem social.
Embora não caiba ampliar especificamente esse ponto, é preciso reconhecer que o
enacionismo, enquanto concepção da ciência cognitiva contemporânea, tem uma de suas raízes em
concepções como as de homem social e formação social da mente de Vigostski, bem como em
fundamentos biológicos para a explicação da noção de catarse. O professor E. Couchot (2012,
2013) parece também alinhar-se à posição de que aspectos biologicamente investigáveis estão na
raiz da possibilidade de conduta estética. No entanto, a investigação biológica não pode tratar o
organismo em questão separado de seu meio-ambiente, bem como de outros organismos e suas
histórias. Tanto para um autor como para o outro a natureza da arte parece estar na própria natureza
humana, e antes disso, na própria natureza.
Nesse sentido, é que se fala de uma experiência estética como naturalizada uma vez que
ocorre em ambientes transculturais e também porque não necessita de elementos extra-naturais,
(extra-sistema original) para ser descrita adequadamente. Em outras palavras, encontra-se nos
argumentos de E. Couchot (2012) e de outros autores apresentados, os fundamentos para validar as
hipóteses apresentadas, de que conduta estética, ou experiência estética, é uma possibilidade
humana antes de ser possibilidade cultural, e que as poéticas fundadas em teorias enacionistas,
fenomenológicas e ecológicas sobre a percepção e cognição, são profícuas tanto à criação artística,
quanto ao desenvolvimento tecnocientífico.
Dada a complexidade e contemporaneidade do tema abordado o que se espera é que a tese
contribua com estudos acerca das possibilidades de relacionamento entre arte e tecnociência em
uma perspectiva colaborativa que envolva especialistas em artes, engenharias, biologia, geografia,
na qual todos os envolvidos respeitem suas áreas de saber e de ignorância. Esse é o tipo de ambiente
em que se espera dar continuidade aos diversos apontamentos expressos partir dos relatos e
reflexões ora apresentados. Dessa maneira, as PSE se configuram como exemplos de propostas
192
artísticas que permitem experiências estéticas naturalizadas, por basearem-se em teorias e
tecnologias advindas da relação entre arte e tecnociência, de acordo com o que foi descrito.
193
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Anexo1: Entrevistas com alunas do Instituto Superior de Arte - La Habana Cuba
As entrevistas que seguem foram feitas por mim com cinco participantes da oficina. Foram
realizadas antes de iniciarmos o segundo e o terceiro dia de atividades na oficina que foi ministrada
pelo LART - UnB/Gama no ISA - La Habana, em 08 e 09 de Maio de 2012. A partir de perguntas
bastante semelhantes sobre as atividades realizadas e as hipóteses desta tese o texto abaixo foi
trascrito e traduzido do que foi dito por todos os entrevistados. Eu fiz as perguntas e gravei as
respostas em um gravador digital e posteriormente realizei então a transcrição já traduzida do
espanhol.
Entrevista 1 Dayana Puito - aluna do primeiro ano do bacharelado em Dança Contemporânea ISA.
P. Como você sentiu as atividades desenvolvidas até aqui?
R. Corporalmente ou emocionalmente?
Corporalmente senti que não havia uma técnica. Estávamos mais livres e eu podia me mover da
forma que queria ou que me sentia naquele momento. Por meio da música e de todos os sons que
estava escutando, eu podia perceber o que estavam querendo transmitir, através disso o meu corpo
se movia e se expressava. E não era uma coisa esquemática, mas muito livre e espontâneo.
P. E como foi isso, foi mais fácil por ser bailarina de dança contemporânea?
R. Foi difícil, mas não difícil como quando tenho algo preparado com técnica. Isso foi mais perto
do comum, de trabalhar não como bailarina, mas como pessoas normais, naturais. Foi mais como
aprender a mover-se de uma maneira simples sem uma técnica a seguir, mas que põem a pensar o
corpo e a mente. E tal atividade, quando se consegue fazê-la é muito rica e te sentes muito aberto e
que pode fazer qualquer coisa que não está pré-planejada, qualquer coisa que o corpo te diz.
203
P. E o que pensas da diferença cultural que podia haver entre brasileiros e cubanos? Sentiste
algum tipo de diferença cultural?
R. SIm. Claro. Nós nunca tinhamos tido oportunidade de trabalhar com estas novas formas de
mover-se, ou de sentir as coisas que nos rodeiam, da natureza, da música que vamos escutar. E
pudemos sentir todo nosso mundo exterior de outra forma. Nunca haviamos focado nessas coisas
e aqui eu vi muita diferença entre as propostas culturais. A nossa era muito mais ligada à técnica.
P. E quando nos focamos na natureza, como fizemos, houve alguma barreira cultural?
R. Não. Chegamos à um momento em que éramos todos pessoas. Formando um corpo com vários
corpos que independente das formas de viver, ou da cultura, somos todos seres humanos e
sentimos as coisas iguais e ouvimos igual, podemos ver e sentir simplesmente como um corpo
que está experimentando coisas que não tem nada que ver com o país de origem ou culturas.
Entrevista 2 - Noel Moya Quintero aluno do terceiro ano no bacharelado em Dança folclórica no
ISA:
P. Como vc sentiu o trabalho e o que lhe significaram as atividades que desenvolvemos até
agora?
R. Bem, em primeiro lugar essas atividades nos educam sobre o que é o contato com a natureza. E
nos educa o ouvido sobre o contato com a natureza, nos limpa o ouvido. Nos ensina a escutar os
sons exteriores que escutamos diariamente mas não prestamos atenção por algum automatismo
do cérebro. Assim, esse trabalho educa o ouvido, limpa. E depois buscamos levar o que ouvimos
lá fora ao nosso corpo. E fazemos de uma maneira muito natural. Guiamo-nos pelo que estamos
ouvindo nesse momento, uma música de um diferente orixá, ou o murmúrio das pessoas lá fora.
Só temos que concentrar-nos e escutar o que nos emitem nossos sentidos, aquilo que sentimos, e
realiza-lo em nosso corpo de uma maneira muito natural.
204
P. Como você vê os aspectos culturais e naturais envolvidos na atividade realizada? Somos
brasileiros trazendo uma proposta para ca. Sentiste alguma forma de barreira cultural ou
pensas que a natureza pode tirar alguma barreira cultural?
R. Não creio que haja barreira cultural, mesmo que falemos línguas diferentes, penso que não haja
tanta diferença entre o que se passou em Cuba ou no Brasil. Vejo algumas diferenças na maneira
de como fazer arte. Vocês tem outras perspectivas que não são os problemas ou políticos, ou de
outra índole que temos aqui. Têm mais possibilidades que nós. Mas não que haja uma barreira.
A natureza colabora no sentido de ser um ponto de união para os trabalhos que se podem realizar
aqui.
P. E sobre o trabalho com o corpo feito aqui? Houve a possibilidade de sentir-te como parte
de um corpo maior, de um cosmo?
R. Sim, como não?! O trabalho nos ajudou a isso. Nós alunos de folclore não temos muitas
possibilidades de experimentar o contato com outros corpos da maneira como fizemos aqui. O
que fazemos é dançar com diferentes coreografias e muito pouco fazemos contato com outro
corpo. E esse trabalho nos permite sentir de verdade os outros corpos e a soma vai tomando os
outros corpos quando se unem.
Entrevista 3 - Zainé Rosabal Cuza - aluna do primeiro ano de dança contemporânea.
P. Com vc viu o trabalho que estamos fazendo, como pensa isso para sua formação
profissional.
R. Primeiramente penso que esse trabalho é um tanto interessante porque não pensamos em que se
pode fazer com todos esses sons que se tem ao redor e que simplesmente não se dá importância.
E esse trabalho consiste em levar esses sons ao corpo, toda essa vinculação buscando
transformar os sons em movimentos do corpo por todo o espaço. Penso que quando se coloca o
relógio (sensor) alguém pode ver como formam os gráficos e pode pensar em como seus
movimentos produzem os gráficos e mover-se nesse sentido. Creio que isso é bastante
interessante.
205
P. Sobre os aspectos que estão envolvidos, percebeu que falamos muito de natureza, mas com
culturas diferentes. Vc pensa que a cultura pode ter sido uma barreira ou que a natureza
pode transpor tais barreiras?
R. Eu penso que não importa as tradições ou culturas, porque sempre ainda que não sejamos do
mesmo lugar há algo que nos une e isso pode ser a natureza. Há sempre algo nas tradições de
diferentes povos que é semelhante às tradições de outros países.
P. E o corpo, pode ser um desses elementos de ligação?
R. Sim, porque a energia dos corpos podem se transmitir mesmo entre pessoas do Japão ou da
Alemanha. Simplesmente com suas energias os corpos podem estabelecer semelhanças e disso
pode-se fazer bons trabalhos artísticos.
P. E aqui, estamos conseguindo tais conexões?
R. Creio que pelo pouco tempo que tivemos conseguimos bastante coisa, e que se houvesse mais
tempo fariamos mais.
Entrevista 4 - Danyelis Caridad Sagarra Portuondo- Dança Folclórica.
P. Como te sentiu nesses dois dias fazendo esses exercícios?
R. Realmente me senti muito bem. É uma técnica que não haviamos experimentado antes. Na
minha opinião é uma técnica muito boa que ajuda-nos a chegar mais perto das relações com a
escuta da natureza. Os sons da natureza que nos circunda, nos auxiliam a chegar à verdadeira
natureza de nosso corpo e de nosso movimento sem ter que ir basicamente à dança. É dançar
segundo o que te dá os sentimentos e as emoções que te brindam os sons da natureza.
P. E como viste as possíveis diferenças culturais entre nós, foram alguma barreira para o
trabalho?
206
R. Não, creio que podemos trabalhar muito próximos porque nossas culturas têm muitas
similaridades. Tais culturas trabalham juntas sem problema.
P. E sobre o trabalho com os corpos, coletivamente? Como foi traduzir emoções dos sons em
movimentos do corpo.
R. Foi da melhor maneira, nos auxiliou a trabalhar com o corpo dos outros. Ajudou a entregar-nos
um pouco mais sem muita tensão, e de forma mais relaxada encontrar os corpos dos outros.
Senti que de forma natural e relaxada estabelecemos contatos entre nossos corpos.
Entrevista 5 - (...) Garcia - Dança contemporânea.
P. Como você se sentiu durante o trabalho nesses dois dias?
R. Penso que primeiramente esse trabalho é muito interessante em uma era em que tudo chega à
computação, à tecnologia, e tentar sensibilizar, humanizar isso, ou a tecnologia, é realmente genial.
Porque o ser humano depende cada vez mais dos instrumentos que está construindo e por
conseguinte, não servem apenas para destruir o mundo ou para criar novas coisas que vão fazer
outros novos equipamentos, mas para que o homem se aproprie deles com sentidos que se
estabelecem muito profundamente em si. E creio que o trabalho vai nesse sentido. Vamos conectar
sensores que podem captar movimentos do nosso corpo que irão produzir sons. Essa
retroalimentação de que nos falaram no começo
me parece maravilhosa e genial como nos
apresentaram.
Também o trabalho com os movimentos do corpo me foi interessante. O movimento
enquanto articulações, quer dizer, um descobrimento de seu corpo. E não se mover de uma maneira
geral, mas particular. Ir as partes pequenas, como pode ser um dedo, uma munheca, ou apenas
mover os cabelos por que bate um vento, ou porque outra pessoa o inclui em seu movimento. Então
penso que é genial o movimento que vc pode fazer e incluir outras pessoas, porque temos q ter em
conta que vivemos em sociedade, vivemos no espaço e o mundo todo é nosso espaço. É um ponto
geral, mas particular, porque somos seres particulares, cada um e individualmente se inclui a si
mesmo e no resto do mundo.
207
P. E como você vê a relação entre natureza, cultura e tecnologia. Houveram diferenças
culturais?
R. Eu penso que a natureza é fator comum de todos os seres humanos e por conseguinte nos faz
iguais em alguma medida. Isso é o primeiro fator. Segundo, a tecnologia está em toda parte. Em uns
lugares mais em outros menos. Há países de terceiro mundo e de primeiro mundo, mas mesmo
assim todos usam tecnologias. Ademais estamos em uma era que necessitamos de tecnologia para o
desenvolvimento. E quanto à cultura creio que uma das maiores diferenças foi a língua, e mesmo
assim nos entendemos, porque vamos além do idioma. Vamos através de uma expressão corporal,
através de símbolos, de ícones marcados que todo o ser humano tem. E que o movimento para
dançar para expressar com o corpo não necessita falar, porque se fala com o corpo. Se eu dou adeus
com a mão, todos saberão que dou adeus. E se te convido a dançar com o corpo você sabe que estou
te convidando, tu sentes a energia. Então a energia é parte desse movimento desse intercâmbio
cultural que estamos fazendo. Por muito diferentes, ou muito parecidas que sejam as culturas,
porque também temos raízes comuns que são afro-americanas. E esse é um ponto de contato.
Muitos nomes são comuns, muitas danças são comuns, e não se pode passar por alto. Está presente.
E isso nos irmana, essas coisas nos fazem humanos, nos fazem pessoas, nos fazem americanos, que
pertencemos a essa cultura e que temos esse sangue que nos corre nas veias. Simplesmente há
pontos em contato e há pontos que não se contactam, mas estão ai. E a natureza é o primeiro. A
tecnologia vem a complementar tudo q é tratado. Mas quanto à natureza e cultura, todos os povos
do mundo, por mais cosmopolita que sejam (como o Canadá e como os EUA) têm culturas, tem
idiossincrasias e não se pode passar por cima. E Cuba e Brasil tem muitos pontos em comum como
é a presença da cultura africana em nossos países.
208
Anexo 2: Entrevista por email com professor Dr. Edmond Couchot
Durante o mês de agosto de 2012 troquei algumas mensagens por correio eletrônico com o
professor E. Couchot, que gentilmente concedeu a entrevista relatada no original e íntegra a seguir.
Cher Professeur E. Couchot
Je suis un étudiant au doctorat du professeur Diana Domingues. Merci pour l'opportunité de
parler avec M. Ci-joint une copie en pdf texte de la thèse en portugais, tel qu'il est aujourd'hui. Ma
thèse traite spécifiquement de la description d'un type de travail artistique que nous avons (moi et
ma directrice de recherche Prof. Domingues) appelé Paysages Enactives puisque leurs principes
technoscientifiques sont basés dans les théories de la perception et de la cognition des auteurs
comme Merleau-Ponty, Varela, Maturana, Noë, Clark, Gregory Bateson, parmi d’autres que vous
reliés à la description de ce que vous appelez comme le paradigme enaccioniste dans les sciences
cognitives
Ce type de paysage s’utilise des procédures qui mettent ensemble, dans un espace appelé
Biocybride (bio + cyber+ hybride ), les actions de différentes espèces qui vivent dans des endroits
dans le monde physique. Ma thèse travaille, en particulier, avec la possibilité de caractérizer cette
expérience dans les domaines biocybrides ( bio+cyber+hybride) comme celles qui appartiennent à
une “esthétique naturalisée." Je me suis rapporté à l’esthétique naturalisé du point de vue de la
naturalisation de la phénoménologie (Varela, Petitot et al) et des points de vue de l'écologie de
l'esprit et cognition enactive. Votre livre a été vraiment une agréable surprise et riche contribution
pour les associations faites autour de nombreux auteurs que j’avais lus depuis mes dix dernières
années de recherche (depuis le master en Sciences Cognitives).
1) Jusqu’à la page 30, vous faites une révision de la littérature des sciences cognitives et de
leurs technologies ( de la Science Cognitive et de ses technologies). Vous parlez de la première
cybernétique liée aux modèles autorégulateurs (le Wattgovernor) et d’une deuxième cybernétique,
liée à l'auto-organisation et aux Réseaux Neuronaux Artificiels. Il serait donc possible d'affirmer
209
l'existence d'une troisième cybernétique soutenue par la théorie de autopoiesis? En ce dernier cas,
quels modèles seraient-ils possibles et nécessaires?
Réponse
S’il faut catégoriser et hiérarchiser l’évolution des concepts cybernétiques, au lieu de
troisième cybernétique, je préférerais parler de systèmes auto-organisateurs et adopter la
classification d’Henri Atlan (Le vivant post-génomique ou qu’est-ce que l’auto-organisation, O.
Jacob, paris, 2011) :
« Atlan distingue trois types d’émergence : un type faible où ce qui émerge est prédictible,
un type fort où l’émergence est en partie non déterminée ― elle est alors le fruit du hasard
et de la complexité ―, et un type intentionnel ― où le système s’attribue lui-même ses
propres buts et les modifie éventuellement. On ne peut pas prédire facilement (en
additionnant, par exemple, les propriétés des composants), fait remarquer Atlan, le résultat
global de l’activité d’un système auto-organisateur complexe ― ce qui émerge ― à partir
de ces propriétés. » (Ce paragraphe est extrait de mon article « Une approche émergentiste
l’expérience esthétique », à paraître, écrit à l’occasion d’un colloque récent sur la notion
d’émergence avec la participation de scientifiques, d’artistes et de théoriciens de l’art.)
Dans cette perspective, la troisième cybernétique caractériserait les systèmes autopoïétiques (c’està-dire du type auto-organisateur fort doté d’intentionnalité, comme l’homo sapiens ou quelques
espèces animales supérieures). Mais certains chercheurs ne sont pas d’accord.
Le problème, au fond, dans une démarche de naturalisation de l’art, n’est pas de classifier, mais de
pouvoir adapter les modèles auto-organisateurs ― dont le modèle autopoïétique ― issus de la
biologie, de la neurobiologie et de l’informatique, à la création et à la perception des œuvres d’art,
et aux théories esthétiques. J’ai traité de ce sujet dans l’article cité plus haut.
2) À la page 31, vous traitez la notion d'information et son rôle dans la description de la
perception, en particulier du point de vue de la science cognitive enactiviste. Plusieurs d’autres
auteurs (Noë; Clark, Shapiro, Maturana et Varela, etc) emportent à la scène les notions de la théorie
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de l'information écologique de
James J. Gibson (en particulier dans ses écrits de 1966 et
1979).Votre silence en ce qui concerne la pensé de Gibson est un simple choix ou dénote quelque
raison conceptuelle? Pourriez-vous commenter cette absence ou prérefriez vous maintenir le
silence? Merci.
Réponse
Mon silence à propos de Gibson est simplement dû à la nécessité de ne pas alourdir mon livre par
une démonstration qui me paraissait trop éloignée du sujet dans ce chapitre. Mais j’accorde une
grande importance à la pensée de ce chercheur. Si j’avais eu de la place et du temps, j’aurais utilisé
la notion d’affordance dans la réception esthétique : ainsi certains objets naturels ou artificiels
(œuvres d’art) peuvent être ressentis comme « esthétiquement jouissables » par un observateur,
mais ce ressenti dépend aussi de l’état subjectif de l’observateur. Je vous invite à développer cette
idée si elle vous intéresse.
3) En ce qui concerne à la notion d'Art que vous apportez dans ce livre, est-il possible
d’affirmer que l’art est une des formes (la façon occidentale contemporaine) pour l’être humain de
réaliser ces conduites/procédures esthétiques? Et, par conséquent, cette base pourrait-elle rendre
possible de se penser l’esthétique au-delà de la culture?
Réponse
L’art (il faudrait écrire Art, avec un a majuscule) a été le moyen inventé par la culture occidentale
pour libérer peu à peu les conduites esthétiques opératoires de leur dépendance à l’égard de la
magie, de la religion et de diverses formes de pouvoir, afin de constituer un domaine préservé (que
j’ai appelé « Sphère de l’art ») qui s’annonce comme le garant de la liberté de création. Mais en
même temps, la Sphère de l’art trie, et sélectionne les œuvres candidates à la reconnaissance
artistique et fonctionne à son tour comme une institution idéologique, politique et économique
(dominée en particulier par le marché de l’art). Sa fonction consiste toujours, mais avec d’autres
intentions et moyens, à contrôler les conduites esthétiques, spontanées ou volontaires, car ces
conduites sont « naturellement » des conduites « à risque » dont la société craint qu’elles
211
déstabilisent l’ordre culturel. J’ai traité du caractère risqué ou déstabilisateur des conduites
esthétiques dans La Nature de l’art (voir section La fonction de l’art dans la culture occidentale et
sous-section La sphère de l’Art, un système autonome,
« Rappelons-le encore une fois, la notion d’art n’existe pas dans toutes les cultures. En
revanche, les conduites esthétiques (réceptrices et opératoires) sélectionnées au cours de la
phylogénèse pour les raisons précédemment décrites sont communes à toutes les cultures :
elles en constituent l’origine et les fondements. Elles ont subsisté parce qu’elles dotaient
l’espèce humaine de capacités cognitives attentionnelles et communicationnelles vitales
pour l’espèce. Ces conduites esthétiques apportent aux cultures épigénétiques ce qu’elles
ont de plus expressif et de plus individualisé. Elles ont la particularité d’être de très
puissants générateurs de diversité. Elles aiguisent l’attention cognitive et renforcent son
action ; elles sont en outre gratifiées d’un plaisir souvent intense et donnent à partager des
émotions et des sentiments qui contribuent à tisser le réseau de la matrice intersubjective.
Or, l’impulsion hypertélique qui anime ces conduites les rend risquées et potentiellement
déstabilisatrices : elle met en péril l’homéostasie culturelle des sociétés. La boucle
« attention-plaisir-attention-plaisir… » menace à tout instant, en se refermant sur ellemême, de paralyser l’attention cognitive, d’emprisonner le sujet dans un monde intérieur
détaché du monde réel et de rompre les liens qui le relient à autrui. Il est impératif, en
conséquence, pour une culture qui veut maintenir son homéostasie de réguler fortement ces
comportements et de définir rigoureusement leurs rôles : autrement dit de transformer les
effets de l’évolution en fonctions culturelles. Fonctions spécifiques qui s’ajoutent à la
culture phylogénétique d’arrière-plan, la différencient et la modèlent pour l’inscrire dans le
développement épigénétique. » Et la suite…
En conséquence, il faut penser l’esthétique au-delà de la culture. Le plaisir esthétique n’est pas un
produit de la culture humaine: son enracinement est biologique, mais cet enracinement est
largement compensé par la culture épigénétique, l’histoire et la subjectivité des individus.
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Anexo 3: DVD com exemplos de áudio e audiovisual.
Todos as faixas do DVD encontram-se disponíveis em:
<https://vimeo.com/enactivesoundscape> Acesso em: 20 jun. 2013.
Faixas:
01) 1984 - Peça de Paisagem Sonora (eletroacústica) composta durante a escrita da tese com texto
da obra homônima de G. Orwell.
02) Estação Anápolis - paisagem sonora instalada como camada de PS no terminal urbano de
Anápolis - GO, no Festival de Arte e Mídia ocorrido na cidade em 2011.
3) Vídeo com imagens da instalação Biocybrid Latin American Memorial (Galeria Marta Traba 29a. Bienal de São Paulo, 2010)
4) Vídeo com imagens da oficina Ouroboros Biocíbrido e da instalação homônima (11na. Bienal de
La Habana - Cuba, 2012)
5) Áudio de vocalização da espécie Dendropsophus marmoratus
6) Áudio de vocalização da espécie Leptodactylus knudseni
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