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25 a 27 de maio de 2010 – Facom-UFBa – Salvador-Bahia-Brasil ESTÉTICAS DO CIBORGUE NO BRASIL Suzane Lima Costa1 Resumo: Neste artigo pretendo analisar e discutir as formas de representação do ciborgue brasileiro, presentes no romance Santa Clara Poltergeist, de Fausto Fawcett. Para tanto, apresento os formatos que a narrativa de Fawcett assume ao ficcionalizar a situação tecnológica do Brasil para além do papel reativo de exclusão e apagamento social, mas fazendo valer a força antropofágica da escrita high-tech nas ditas periferias do capitalismo. Palavras-chave: ciborgue, periferia, high-tech, antropofagia. A primeira narrativa brasileira de ficção científica que li foi o romance Santa Clara Poltergeist, de Fausto Fawcett. Nem sabia que se tratava do gênero ficção científica. O romance chegou às minhas mãos embalado pela imagem da “Calcinha exocet” da “Kátia Flávia”: música que entrou no primeiro disco de Fawcett, chamado Fausto Fawcett & os Robôs Efêmeros. O sucesso do hit “Alô polícia? eu tô usando, um exocet calcinha!”, além de ter criado um frisson coletivo no final da década de 1980 no Brasil, abriu alas para entendermos o “Rio 40 graus”, “submundo bandidaço da beleza e do caos”. Aos poucos fomos apresentados a uma Copacabana Blade Runner, presente nas músicas e nas performances de Fawcett na TV. Dois anos depois, a “Calcinha exocet” da “Kátia Flávia" revelou a primeira loura da dinastia de Fawcett: Verinha Poltergeist, protagonista ciborgue do romance Santa Clara Poltergeist. Com título pastichizado de um dos filmes de terror de maior sucesso dos anos 1980 nos Estados Unidos, Poltergeist2, a narrativa de Fawcett põe desafios à nossa imaginação que nem de longe chegam perto do terror sobrenatural do filme, mas que nos colocam de cara com o “terror” sucateado das tecnologias das favelas do Rio de Janeiro. O efeito Poltergeist no romance se configura quando os focos de um futuro “império-asiático-econômico-tecnológico-mundial”3 começam a aparecer também em 1 Professor Adjunto do Instituto de Letras - Universidade Federal da Bahia. suzane.costa@yahoo.com.br 2 Pr oduzi do pelo cineasta Steven Spielber g, com dir eção de Tobe Hooper , o longa Polt er geist, o fenômeno mar cou época como uma das melhor es pr oduções do gêner o hor r or nos cinemas do per íodo. 3 FAWCETT. Sant a Cl ar a Polter geist. p. 22. Copacabana. O drama da família Freeling, protagonizado pela “abdução” sobrenatural de Carol Anne pela televisão, foi pastichizado pela força tecno-mística dos rituais do corpo dos protagonistas da narrativa de Fawcett. A casa mal assombrada de Spielberg viraria a Copacabana bairro purgatório, de Fawcett, repleta de invenções e artifícios tecnológicos, numa mistura de sucatas, objetos improvisados, telas de vídeo, microeletrônica, computadores e material reciclado. No submundo da “cidade de cidades vigiadas” transitam os gênios da robótica, da física, da genética, da computação, não para resolver problemas poltergeist, como no filme, mas para pesquisar um tipo de alta tecnologia radiativa que, aos olhos desatentos, poderia ser considerada como “as sujeiras” das ruas. No romance, tal potencial maquínico é sobrenatural não pela presença espiritual de mundos paralelos, como em Poltergeist, mas pelo convívio intenso e sofisticado dos moradores da favela com sucatas de ferro-velho, quinquilharias de camelôs, cabines de chaveiros, carros de pamonhas, tabuleiros equipados com miniaturas, reatores colisores, carrinhos de café, detectores, ímãs, baterias, dispositivos geiger etc. Coisa de gente que “adora entrincheirar-se em parafernálias receptoras, cabos de transmissão sorrateira, mesas telefônicas adaptadas, repletas de mouses, aparelhos radiofônicos e televisivos”.4 Tanta tecnologia de gambiarra oferece aos personagens, no espaço ficcional da narrativa, além dos poderes paranormais, corpos-ciborgues: “todos varridos ou envolvidos minimamente por esses lapsos tecno-místico-científicos”. O que Hollywood costuma chamar de efeito especial, na Copacabana high-tech de Fawcett, vira “ciência sucateada para todo lado”.5 As performances poltergeist, disseminadas por Fawcett nos ‘Cassinos dos Chacrinhas’ da década de 1980, faziam muito mais do que conciliar modernidade e arcaísmo, corpo e máquina. Os ‘robôs efêmeros’ do músico ensaiavam artifícios de duplicidades, feeling tecnicus: um mecanismo de engendramento da potencialidade dos esquecidos na periferia, para quem a tecnologia sempre cumpriu um papel reativo de exclusão e apagamento.6 É nesse contexto que uma política do ciborgue começou a ser ensaiada no Brasil. A tecnologia como um afeto na montagem da produção de Fawcett recriaria as linhas dessa reatividade para fazer da exclusão e do apagamento parte fundamental da formação de um Brasil High-tech. É também nesse contexto que se FAWCETT. Sant a Cl ar a Polter geist, 1991, p. 15. FAWCETT. Sant a Cl ar a Polter geist. 1991, p. 64. 6 MOREIRA. Um banquete antr opofágico. 2001, p. 46. 4 5 inicia a lenda de Verinha Blumenal, a Santa Clara Poltergeist. Verinha, encarnação da Santa Clara- padroeira da TV, entrou em contato com um desses “lixos sofisticados” espalhados aleatoriamente pelas ruas cariocas: uma bicicleta Calói. Entre uma pedalada e outra, “o banco da bicicleta saiu debaixo dela e o cano penetrou no seu corpo inteiro”7. Verinha acabara de ser atravessada pela energia radioativa de um tipo de ferrugem que lhe garantiria poderes sobrenaturais. Num instante de bytes, “a ferrugem da bicicleta espalhou-se pelo ventre da garota e parecia alimentar-se dele”8. Seu corpo virou ímã de todo tipo de objeto eletrônico, informatizado, metálico. Verinha Blumenau passou a ser o ciborgue paranormal mais poderoso do Brasil, e tirar proveito disso seria sua missão inicial. Com um corpo magnético, Verinha Poltergeist começa os seus shows tecno-místicos se lançando na “empreitada de ser a vedete dos caminhoneiros e viajantes do sul do país”.9 A releitura do fenômeno Poltergeist no Brasil encontra no ciborgue-por-excessode-sucata e na paranormalidade para “tirar proveito”, não só efeitos especiais capazes de deixar qualquer Steven Spielberg invejoso, como uma das primeiras cenas representativas da formação da cultura high-tech na periferia do capitalismo: uma realidade ciborgue ritual mística, matéria de ficção e de experiência vivida. A ex-dançarina erótica passa a ciborgue curandeira e, além de tirar proveito da situação, ganha ao longo da trama uma segunda missão: salvar o Rio de Janeiro, e conseqüentemente o Brasil, da explosão de uma bomba, fruto dos experimentos de grupos de cientistas internacionais, que faziam da favela espaço laboratorial de experimentos em tecnologia avançada. Para tanto, ela precisaria da ajuda de Matheus, um “N.E.I, negão eletricista informatizado,” que devido ao excesso de contato com “encadeamentos de televisores, videogames, baterias eletrônicas... parafernálias completamente contrárias a qualquer minimalismo de design informático de ponta”10, perdeu parte de sua energia cerebral e precisa, como quem precisa de hemodiálise, recarregar de eletricidade o seu cérebro sempre que sente os sintomas tecno-neurais: formigamento intracraniano, epilepsia localizada e perda de certas capacidades.11 Para sobreviver e recompor o seu cérebro o N.E.I Matheus precisava manipular “técnicas de gambiarras” que fornecessem energia suficiente para reengatar seus neurônios. Tal FAWCETT. Sant a Cl ar a Polter geist. 1991, p. 15. FAWCETT. Sant a Cl ar a Polter geist.1991, p. 25. 9 FAWCETT. Sant a Cl ar a Polter geist. 1991, p. 28. 10 FAWCETT. Santa Clar a Pol ter geist, 1991, p. 15 11 FAWCETT. Santa Clar a polt er geist, 1991, p. 21. 7 8 procedimento consistia em usar um “fuzível (com z) que funcione como uma ponte de safena neuronal”12; uma técnica precária de sobrevida, um puxadinho que mais tarde construiria uma gambiarra cerebral, recarregada constantemente, mas que poderia também desmoronar, “pifar” a qualquer momento. A ação principal do romance gira em torno do movimento dos cientistas tecnológicos multinacionais que cercam Copacabana com um imenso campo magnético para fazer do bairro, principalmente da favela (pela sua potencialidade maquínica), um campo de prova para experimentos de tecnologia de ponta. Com o campo armado, os cientistas terroristas aproveitam a energia tecno-erótica da multidão carioca e criam uma bomba que pode explodir a qualquer momento. Para salvar o Rio de Janeiro, Matheus, N.E.I., precisa achar a bomba e detoná-la dentro da pelve eletrônica de Santa Clara, Santa curandeira de poderes sobrenaturais. Dando um adeus definitivo à abdução poltergeist de Spielberg, o efeito Poltergeist de Fawcett nos coloca diante de uma certeza: a era do ciborgue no Brasil instalava-se, indubitavelmente, aqui e agora. Sendo assim, a tecnologia estrangeira não ameaçaria mais o Brasil, pois a força de quinquilharia da pélvis eletrônica de Santa Clara e do cérebro eletronicamente melhorado de Matheus quebrava o telos dominador e introjetava uma renovação das nossas pesadas heranças arcaicas. Fawcett acabara de consagrar o ‘projeto de emancipação nacional’: caminho para driblar as teorias e práticas do subdesenvolvimento, ingresso na era ‘neoliberal da globalização acelerada’, sem cair no discurso do determinismo desenvolvimentista e do relativismo da dependência. No desenho do corpo ciborgue de gambiarras, de Verinha, e do corpo ciborgue de puxadinhos, de N.E.I., nos defrontamos com a quebra das fronteiras entre base e estrutura, o lugar mais feliz para ‘emancipação’ e ‘desenvolvimento’ nas periferias do capitalismo. O ritual de reconexão do corpo, em Santa Clara Poltergeist, produz um tipo de violência crítica/textual para montar uma práxis discursiva que desfaça as regras de dominação, quando se fala em desenvolvimento tecnocientífico, em função da inventividade e do artifício. Em 1992, Fausto Fawcett nos apresentou ao romance Santa Clara Poltergeist: autêntica “arte do desvio”, reinvenção da arte da sucata, para encontrarmos e darmos corpo ao WWW, ao mundo-Internet que explodiria no Brasil em 1995. Poderia até ser somente, como até hoje vemos se repetir exaustivamente, o início da saga do “menor” a partir de uma nova nomenclatura: excluídos digitais. De todo, tal início não é 12 FAWCETT. Santa Clar a polt er geist, 1991, p. 16. meramente falso. Mas não podemos fechar os olhos para a estética da atualidade: estamos, há muito, no mundo da ficção científica e como protagonistas-ciborgues que somos precisamos começar a ver também “os excluídos” encontrando nos espaços do “fora” “os novos usos para todas as coisas”13. A partir dessa perspectiva, feeling tecnicus, periferia high-tech, economia tecnológica de pirataria, arte das gambiarras, inteligência coletiva de puxadinhos são partes elementares da renovação do léxico político-cultural que vem se constituindo no Brasil. No entanto, esse mesmo ‘efeito especial’ de certa forma já nos parece tão familiar, tão presente há tanto tempo em nossas vidas, que poderíamos questionar qual seria a importância de fazer valer uma discussão sobre isto, uma vez que, e como a própria metáfora ciborgue de Fawcett nos mostra, já vivemos em nossos corpos uma relação tão íntima com as tecnologias que não mais conseguimos localizar onde começamos e onde terminam as máquinas. Em outras palavras, a questão se formularia assim: se “a era do ciborgue é aqui e agora, onde quer que haja um carro, um telefone ou um gravador de vídeo”14, por que ainda nos espanta tanto falar de ciborgues no Brasil? O que há na cultura ciborgue que poderia vetar o imaginário desta representação na nossa cultura? Por que ainda precisamos renovar o léxico de termos como dependência, imperialismo, atraso, subdesenvolvimento, uma vez que tais noções em si já estão tão gastas, tão insuficientes para lermos esse ‘novo mundo possível’ que emerge dia-a-dia aos nossos olhos? Extensões dessas respostas estão presentes na escrita cyberpunk da ficção científica que no Brasil foi nomeada de tupinipunk15: um desdobramento da ficção científica brasileira que brinca com as dicotomias centro e periferia, progresso e atraso, moderno e arcaico, utilizadas na reflexão sobre o processo de modernização dos países subdesenvolvidos, para propor novas metáforas que ponham em xeque essa racionalidade logocêntrica. Em 1996, essas novas metáforas emergem à superfície e redimensionam a configuração textual da ficção científica na nossa cultura, oferecendo uma resposta própria de um país que vive um outro tipo de desenvolvimento cultural e científico. Assim, os textos Tupinipunks funcionam como um lugar de montagem das 13 GIBSON. Burning Chrome. 1986. HARAWAY. Um manifesto para os cyborgs. 1994. 15 Roberto de Souza Causo, em suas discussões sobre a recepção crítica do movimento cyberpunk no Brasil, nos apresenta à noção de Tupinipunk, uma releitura do gênero cyberpunk e ao mesmo tempo uma retomada do programa antropofágico de Oswald de Andrade em 1928 – revisto e atualizado para a FC, sessenta anos depois. Também trato da recepção crítica do ‘gênero’ tupinipunk na ficção científica nacional e internacional, no terceiro capítulo da minha dissertação de Mstrado. Ver: COSTA. Ficção científica brasileira: configurações de uma arte cyberbarroca, 2006. 14 hibridações homem-máquina na periferia e, ao mesmo tempo, como texto-manifesto de afirmação da margem, do ‘atraso’, da arte da sucata como espaços possíveis de produção de sentido. Se, na perspectiva antropofágica oswaldiana, temos o bárbaro tecnizado, imagem síntese do motor de uma postura cultural crítica capaz de compreender o dinamismo das produções culturais, identitárias, literárias e simbólicas do Brasil, (uma visão crítica de nossa herança cultural, baseada na apropriação e, ao mesmo tempo, na desconstrução do outro), na ficção tupinipunk temos o ciborgue como uma nova roupagem desse bárbaro.16 Alfredo Sirkis, Guilherme Kujawski, Ivan Carlos Regina, Finisia Fideli, dentre outros, são escritores que, junto a Fawcett, se apropriam dos elementos próprios do Tupinipunk para, ao invés de indicar o “apocalíptico” ou abdicar do “integrado”, reinventam as condições de uma outra práxis para operar sobre as questões que deflagram a modernidade tardia no Brasil. Precariedade e pobreza brasileira, sincretismo, sensualidade, politização e o lugar das tecnologias digitais em meio a tudo isso, formam o barroquismo que compõe os textos. O corpo Tupinipunk dos ciborgues brasileiros “se relaciona tanto com a tradição modernista brasileira de canibalismo cultural, quanto com uma sensibilidade pós-moderna”17 e seu desenho reescreve o Brasil, questionando o sentido comumente atribuído à idéia de tardio, de dependência cultural e subdesenvolvimento para reelaborar um lugar teórico de desconstrução dos discursos hegemônicos que legislam sobre as produções culturais e simbólicas da periferia. Mais do que metáforas da junção tecnologia-pobreza no Brasil, pensar os formatos do ciborgue brasileiro possui aqui uma dupla função: a primeira delas está em mostrar como essas imagens criam contradições sociais e culturais que vão desde a super-informatização até as favelas para, superpondo as temporalidades, misturar o ‘prémoderno’ e as tecnologias de ponta, o passado e o futuro; a segunda está no corte epistemológico que essa criação opera nos discursos logocêntricos, ao dramatizar a situação tecnológica no Brasil, para além do papel reativo de exclusão e apagamento social, bem como da noção de modernidade tardia como defasagem, atraso ou distância temporal. Ver : COSTA. Ficção cient ífica no Br asi l: configur ações de uma ar te cyber bar r oca. 2006. CAUSO. O cr ítico-fã: r esenhas de ficção cient ífica, fant asi a, hor r or e outr as for mas invisíveis de lit er atur a. P. 7. 16 17 Se em Neuromancer18 identificamos claramente os formatos dos corpos e a montagem dos tipos de ciborgues que ilustraram o imaginário cyberpunk na década de 80, na ficção científica tupinipunk do Brasil os N.E.Is de sucata tomam conta das nossas formas de ver e nos fazem crer em algo muito além das próteses do dia-a-dia. No romance de Gibson, os Ciborgues protéticos, como Ratz e Molly, os ciborgues genéticos, como o clone Hideo ou os ciborgues informáticos, como Linha Plana, constroem uma hipermodernidade na qual o ciborgue deixa de ser uma criatura meramente ficcional, mas passa a ser algo inerente ao cotidiano Moderno. Assim, o processo de ciborguização do corpo de Case, por exemplo, “com seu som e seu notebook onipresentes” é tão possível quanto o de Verinha Poltergeist ou do N.E.I Matheus, com o lixo reciclado da periferia. 19 Isso porque o corpo do ciborgue brasileiro carrega em si uma noção de tardio que alinha ecologicamente as mais diferentes potências da periferia: tecnologias de ponta e gambiarras, misticismo e vulgarização científica, puxadinhos e biotecnologia, classe média e mutirões de cooperação, pobreza extrema e projeto ‘pré-sal’. Sim, estamos falando de pobreza, de subdesenvolvimento e atraso; estamos falando de lugares nos quais qualquer discurso high-tech precisa ser inventado. A invenção, dessa maneira, “vira encontro, uma hibridização e uma colaboração entre uma multiplicidade de imitativos (idéias, hábitos, comportamentos, percepções, sensações)”20. Sendo assim, também estamos falando de atividades socialmente produtivas e de quando desejos se tornam concretos (seja pelo ódio ou pela indignação) ou de quando saberes de si constituem um desejo coletivo. Pensar as imagens dos espaços do precariado, da sucata, da favela como metáforas do high-tech no Brasil é também entender que há, contudo, uma discussão que se torna particularmente singular 18 Neuromancer, de William Gibson, é um dos mais famosos romances do gênero cyberpunk . Uma das forças mais significativas desta produção está na forma como essa narrativa introduziu conceitos para a época, como inteligências artificiais avançadas, cyberespaço, conceitos que mais tardes foram explorados pela trilogia Matrix, e por outras obras cinematográficas do gênero. 19 Em Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea, André Lemos nos apresenta a outros processos de ciborguização: o protético e o interpretativo. Ao falar sobre os ciborgues protéticos, Lemos refere-se aos indivíduos cujo funcionamento fisiológico depende de aparelhos eletrônicos ou mecânicos. Já o ciborgue interpretativo se constitui pela influência dos mass media, através do poder da televisão ou do cinema. Na análise de Lemos a cultura de massa e do espetáculo nos fez cyborgs interpretativos Lemos refere-se ainda aos ‘netcyborgs ou cyborgs interpretativos das redes’, que ao se organizarem “a partir de conexões Todos-Todos, esvaziam o controle social operado pelos tradicionais media Um-Todos”. Ver: LEMOS. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea, 2002, P. 187. 20 LAZZARATO. As revoluções do capitalismo. 2006, p. 45. quando trazemos à tona essas ideias: as teorias terceiro-mundistas do desenvolvimento e da dependência cultural e política nas nomeadas periferias do capitalismo. Ao falarmos das utopias antropofágicas desse corpo-fetiche-tecnológico não nos referimos ao sentido de telos apocalíptico das teorias do determinismo tecnológico que substituem o homem pela máquina ou a ação política pelo texto. Nesse sentido, essas representações dos corpos dos ciborgues estão em sintonia, e ao mesmo tempo produzindo novos arranjos, com o pensamento estético-cultural-antropofágico, sustentado pela proposta de fundir ludicamente a ‘cultura da reciclagem’ com o ‘mundo da tecnologia moderna’. Isso porque, como bem nos alertou Oswald, no mundo supertecnizado que se anuncia, quando caírem as barreiras finais do Patriarcado, o homem poderá cevar a sua preguiça inata, mãe da fantasia, da invenção e do amor. E restituir a si mesmo, no fim de seu longo estado de negatividade, na síntese, enfim, da técnica que é civilização e da vida natural que é cultura, o seu instinto lúdico. Sobre a Faber, o Viator e o Sapiens, prevalecerá então o Homo Ludens. À espera serena da devoração do planeta pelo imperativo do seu destino cósmico. (sic)21 O Homo Ludens da cultura antropofágica rompe com o tempo e com as hermenêuticas desse racionalismo cartesiano - em busca de uma invenção, de uma ética de identidade para além da ideia de que a tecnologia desenvolvida pelo mundo capitalista é um reflexo da economia das grandes potências. E, nessa inversão, a “expansão da potencialidade dos esquecidos na periferia do mundo” vai sendo equacionado na forma como a favela, o candomblé, as aldeias indígenas ou as multinacionais entram na cena tecnológica para levar em conta os diferentes tipos de modernização processados nas várias, e improváveis, regiões do Brasil. Eis o início do manifesto do ciborgue brasileiro: ter um corpo híbrido que fetichize a tecnologia, fazendo do lugar do ciborgue um espaço metafórico de ação política ao romper com os fundamentos da ideia moderna e liberal de progresso técnico. Na ficção científica de Fawcett, o Brasil assim estaria – e isso graças à sua própria formação histórica e cultural - mais próximo do mundo do ócio e, portanto, seria um lugar propício à realização do corpo-arte-de-sucata do ciborgue tupinipunk: “ união do progresso técnico - em seu estágio futuro de negação do próprio negócio que o propiciou - ao humanismo que o "atraso" das culturas "não-calvinistas" pôde resguardar”22. Sabemos que é lugar comum relacionar o papel dos países subdesenvolvidos ao de consumidores passivos não apenas da tecnologia, mas também 21 22 ANDRADE. A utopia antropofágica. 1990, p. 106. Cf. ANDRADE. A utopia antropofágica. 1990. dos discursos a ela relacionados. Assim, perpetua-se a idéia de que somente o contexto das grandes potências mundiais propiciaria as condições de aparecimento de textos como os da ficção científica, e com ele as possibilidades de se vislumbrar um outro ser – o sujeito civilizado, emancipado, tecnicizado – e um outro mundo – a sociedade tecnocientífica do futuro. No texto de Fawcett, a composição do corpo do ciborgue pela deglutição e expurgação possui uma relação estreita com as transformações da geografia da política imperialista no mundo, que, em parceria com as realizações do mercado global, marcam o ponto de mudança no modo capitalista de produção de imagens na contemporaneidade. Dessa forma, o corpo do ciborgue brasileiro é uma extensão das divisões espaciais dos três mundos (Primeiro, Segundo e Terceiro), uma vez que tais fronteiras ficaram “tão misturadas que a qualquer momento nos deparamos com o Primeiro Mundo no Terceiro, o Terceiro no Primeiro, e o Segundo, a bem dizer, em parte alguma”.23 Quebrando a obrigação de ampliar os consensos que dão apoio a tal hierarquia, a metáfora do ciborgue acaba nos dando uma amostra de que os esforços para contestar e subverter o Império já começaram: estão ficcionalizados na forma como as narrativas da ficção científica brasileira fazem uso do Manifesto Antropofágico de Oswald, para reler a ficção científica norte-americana, inventando formas democráticas e poderes constituintes que a conduz através e para além da própria representação de império deste último.24 Para além do cyber e do tupi, o corpo do ciborgue brasileiro configura outra linguagem para entendermos melhor a produção e disseminação dos textos de ficção científica na nossa cultura ao agenciar um tipo de performance que “admite a contemporização, ensina artifícios de duplicidade, dribla a idéia de fim com a promessa de que tudo pode recomeçar e coexistir, sem, no entanto, eliminar o sentimento de precariedade da vida”.25 Assim sendo, a imagem do ciborgue é um retorno em diferença ao discurso da periferia sendo movido para além da perspectiva temporal que vai da emergência do projeto nacional desenvolvimentista (no imediato segundo pós-guerra) à crise das políticas neoliberais (final dos anos 1990)26. No Brasil, esse retorno em diferença é elucidado quando a perspectiva do desenvolvimento, depois da década de 1960, perde 23 NEGRI; HARDT. Império. 2005, p. 13. NEGRI; HARDT. Império. 2005, p. 15. 25 BARBOZA FILHO. Tradição e artifício. 2000, p. 409. 26 Ver: COCCO;NEGRI. Glob(AL). 2005, p. 34. 24 sua diretriz nacional. Dessa forma, emerge outra perspectiva política e econômica, não mais pautada na centralização nacional para o desenvolvimento; há um deslocamento do papel do Estado e do capital diante da força de uma nova realidade política: a interdependência. A velha questão sobre dependência e desenvolvimentismo era uma teoria do crescimento econômico, estava prisioneira em uma gaiola de dimensões economicistas e de medidas quantitativas totalmente insuperáveis e, mesmo quando conseguia ativar forças sociais novas, o fazia para fechá-las no esquema da disciplina industrial. A ilusão de unir crescimento e emancipação, de transformar assim os projetos econômicos em poderosas condições para libertação democrática dos trabalhadores, mostra-se aqui de corpo inteiro. Por outro lado, desenvolvimento hoje só pode significar uma relação direta entre potencialização das condições sociais de produção (educação universal, pesquisa, livre circulação da força de trabalho, emancipação das mulheres, liberação da expressão cultural e política indígena, desarticulação das barreiras raciais etc.), mobilização democrática dos trabalhadores a partir das bases e abertura para dimensões sempre mais amplas de cooperação interdependente. No atual lugar ético de constituição das multidões, lugar das projeções e projetos high-tech as escolhas culturais são tão decisivas quanto às questões econômicopolíticas, não só por lhe serem intrínsecas, mas principalmente por produzirem dispositivos tecnológicos para emancipação do trabalho afetivo, ligados a um tipo de movimento que atravessa a tradição de forma criativa. Porém, o que embaça essa maneira de pensar é o discurso da pobreza e de sua mitificação como exclusão absoluta, como lugar de uma carência, de uma falta, que aniquila as forças e imobiliza os sujeitos. Um tema muito particular que Antonio Negri põe em discussão, e que alguns já batizaram de “o complexo de Harry Potter”27, diz respeito à idéia da “Riqueza dos pobres”, discutida amplamente em boa parte de suas obras, e enfatizada na obra Multidão, escrita em parceria com Michael Hardt. Para Negri, não é a necessidade que move o sujeito. Afirma o filósofo: "não existe necessidade objetiva. Não há isso. O que há sempre é uma luta constante para resistir aos mecanismos de produção da miséria"28. O que move o sujeito é, portanto, a luta, e isso é mais que um soco na ideologia da esquerda tradicional. 27 Robert Kurz, sociólogo alemão, faz uma crítica severa ao neo-utopismo dos conceitos de multidão, poder constituinte, amor e pobreza, desenvolvidos por Antonio Negri e Michael Hardt, na obra Multidão. Ver: KURZ. “O complexo de Harry Potter”. 2005. 28 NEGRI. Kairós, Alma Venus e Multitudo. 2003. A riqueza do pobre, para Negri, tem dois rostos: “o primeiro é reduzido pelo capitalismo com seus processos de exploração; o segundo é o máximo de potência, mostra como o pobre tudo pode produzir e tem de produzir, por viver no limiar da ausência"29. Segundo Negri, esse é um paradoxo produtivo, que não podemos esquecer ao discutirmos questões que falam de países ricos e países pobres. Paradoxo que se forma e se exerce antes de tudo nos espaços biopolíticos e que consiste na coprodução de singularidade e no comum, na cooperação e na inovação, na linguagem e na decisão. Por essa co-produção fica determinado, ontologicamente, quem pode, produzido pela potência da pobreza, gerar o telos comum através da práxis amorosa30. Para produzir novas temporalidades e novos espaços comuns, cooperativos, e para realizar essa inovação afetiva, amorosa, é necessário abrir novos campos de discussão para refletirmos como o pobre e a pobreza podem ser portadores de uma potência outra de mobilização coletiva. Isso porque a pobreza é pensada no limite, na borda, nos pontos máximos de tensão, no que há de mais comum a todos. “Na era do homem- máquina, a militância do comum é produto de uma ‘tecnologia de amor’ específica”31. Quando fala em amor, Negri se refere ao amor alegre, como em Spinoza, é “um amor que constrói, porque é um amor de conhecimento e, portanto, de cooperação, de construção.”32 Sendo assim, o ciborgue brasileiro de Fawcett é o pobre! Isso porque participa, de alguma forma, da produção social. É esta, em última análise, a riqueza dos pobres. Esse tipo de discurso é difícil de ser digerido por todos aqueles que se angustiam diante da situação de países como o Brasil, com milhões de pobres, favelados, com contingentes de pessoas fora do sistema formal da produção. É difícil porque aprendemos a objetificar esse lugar de existência e a reduzir seu nome “à plebe (vulgus), ou pior, à ralé, à abjeção. A potência dessas representações está sempre expropriada”33. É muito mais confortável permanecermos no esquema próprio da racionalidade moderna que pensa o pobre dentro da experiência da escassez, sem força 29 NEGRI. Kairós, Alma Venus e Multitudo. 2003, p. 146. HARDT;NEGRI. Multidão. 2005. p. 146. 31 Esses dois pontos dentro dos estudos de Negri – amor e pobreza – são os lugares de atuação do comum. Negri não define o amor como desejo de transcendência, mas como trabalho vivo, trabalho da multidão. Ver: NEGRI. Kairós, Alma Venus e Multitudo. 2003, p. 145 e 146. 32 Amor e pobreza são os elementos imanentes do processo de singularização da multidão. Segundo Hardt e Negri, "as pessoas hoje em dia parecem incapazes de entender o amor como um conceito político, mas é precisamente de um conceito de amor que precisamos para apreender o poder constituinte da multidão. O moderno conceito de amor é quase exclusivamente limitado ao casal burguês e ao espaço claustrofóbico da família nuclear. O amor tornou-se uma questão estritamente privada. Precisamos de uma concepção mais generosa e irrestrita de amor. Precisamos recuperar a concepção pública e política de amor comum às tradições pré-modernas (...). O amor significa precisamente que nossos encontros expansivos e nossas contínuas colaborações nos proporcionam alegria.” Ver: HARDT;NEGRI. Multidão. 2005. 33 NEGRI. NEGRI. Kairós, Alma Venus e Multitudo. 2003. 30 vital, associado geralmente ao crime, à violência, ao improdutivo. Dentro dessas regras de representação se formatam os discursos sobre o pobre como objeto de disputas diversas entre a igreja, os políticos, as ONGs, ou como resultado das práticas conformistas e assistencialistas. Não negamos essas formas de representar, mas, preferimos fazer o paradoxo produtivo, exposto por Negri, funcionar, deixando clara a justificativa dada pelo autor de que Não se trata, aqui, de enfrentar exaustivamente o problema, mas apenas de apresentá-lo do ponto de vista da teoria do poder constituinte. E como a nossa resposta está inscrita no centro de uma dinâmica histórica de alternativas e de lutas, trata-se de esclarecer e destacar, sobretudo, uma forma de pensar que se contrapõe à racionalidade moderna34. Quando o N.E.I Matheus ou Verinha Poltergeist entram na cena high-tech do Brasil de Fawcett, entra também em cena um outro mundo possível, para além do determinismo desenvolvimentista e do relativismo da dependência, mas em nome de uma vontade de teorizar a constituição de uma ética comum como único ‘pacto’ para organizar movimentos e mobilizar produtivamente a sociedade. Exercício de um tipo de pós-utopia que nos faz perguntar se os chamados elementos antimodernos, que estão presentes na história cultural e na tradição das lutas de cada uma das grandes áreas de subdesenvolvimento (China, índia, América Latina), podem ser apropriados não como pesadas heranças arcaicas, mas como funções criadoras de uma outra modernidade, de uma outra modernização?35 Acredito que as representações das imagens do ciborgue nas favelas cariocas podem funcionar como exercícios de pensamento e de respostas para essas “pesadas heranças arcaicas”. Nas representações dos brasileiros ciborgues, o antimoderno, para além do arcaico, pode configurar inovações do léxico político no imaginário coletivo e, quiçá, permitir metamorfoses do espírito e dos corpos, tão importantes quanto as metamorfoses maquínicas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Oswald. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo/SEC-SP, 1990. BARBOZA FILHO, Rubem. 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