25 a 27 de maio de 2010 – Facom-UFBa – Salvador-Bahia-Brasil
ESTÉTICAS DO CIBORGUE NO BRASIL
Suzane Lima Costa1
Resumo: Neste artigo pretendo analisar e discutir as formas de representação do ciborgue
brasileiro, presentes no romance Santa Clara Poltergeist, de Fausto Fawcett. Para tanto,
apresento os formatos que a narrativa de Fawcett assume ao ficcionalizar a situação tecnológica
do Brasil para além do papel reativo de exclusão e apagamento social, mas fazendo valer a força
antropofágica da escrita high-tech nas ditas periferias do capitalismo.
Palavras-chave: ciborgue, periferia, high-tech, antropofagia.
A primeira narrativa brasileira de ficção científica que li foi o romance Santa
Clara Poltergeist, de Fausto Fawcett. Nem sabia que se tratava do gênero ficção
científica. O romance chegou às minhas mãos embalado pela imagem da “Calcinha
exocet” da “Kátia Flávia”: música que entrou no primeiro disco de Fawcett, chamado
Fausto Fawcett & os Robôs Efêmeros. O sucesso do hit “Alô polícia? eu tô usando, um
exocet calcinha!”, além de ter criado um frisson coletivo no final da década de 1980 no
Brasil, abriu alas para entendermos o “Rio 40 graus”, “submundo bandidaço da beleza e
do caos”. Aos poucos fomos apresentados a uma Copacabana Blade Runner, presente
nas músicas e nas performances de Fawcett na TV. Dois anos depois, a “Calcinha
exocet” da “Kátia Flávia" revelou a primeira loura da dinastia de Fawcett: Verinha
Poltergeist, protagonista ciborgue do romance Santa Clara Poltergeist.
Com título pastichizado de um dos filmes de terror de maior sucesso dos anos
1980 nos Estados Unidos, Poltergeist2, a narrativa de Fawcett põe desafios à nossa
imaginação que nem de longe chegam perto do terror sobrenatural do filme, mas que
nos colocam de cara com o “terror” sucateado das tecnologias das favelas do Rio de
Janeiro. O efeito Poltergeist no romance se configura quando os focos de um futuro
“império-asiático-econômico-tecnológico-mundial”3 começam a aparecer também em
1
Professor Adjunto do Instituto de Letras - Universidade Federal da Bahia. suzane.costa@yahoo.com.br
2
Pr oduzi do pelo cineasta Steven Spielber g, com dir eção de Tobe Hooper , o longa Polt er geist, o
fenômeno mar cou época como uma das melhor es pr oduções do gêner o hor r or nos cinemas do
per íodo.
3
FAWCETT. Sant a Cl ar a Polter geist. p. 22.
Copacabana. O drama da família Freeling, protagonizado pela “abdução” sobrenatural
de Carol Anne pela televisão, foi pastichizado pela força tecno-mística dos rituais do
corpo dos protagonistas da narrativa de Fawcett. A casa mal assombrada de Spielberg
viraria a Copacabana bairro purgatório, de Fawcett, repleta de invenções e artifícios
tecnológicos, numa mistura de sucatas, objetos improvisados, telas de vídeo, microeletrônica, computadores e material reciclado.
No submundo da “cidade de cidades vigiadas” transitam os gênios da robótica,
da física, da genética, da computação, não para resolver problemas poltergeist, como no
filme, mas para pesquisar um tipo de alta tecnologia radiativa que, aos olhos desatentos,
poderia ser considerada como “as sujeiras” das ruas. No romance, tal potencial
maquínico é sobrenatural não pela presença espiritual de mundos paralelos, como em
Poltergeist, mas pelo convívio intenso e sofisticado dos moradores da favela com
sucatas de ferro-velho, quinquilharias de camelôs, cabines de chaveiros, carros de
pamonhas, tabuleiros equipados com miniaturas, reatores colisores, carrinhos de café,
detectores, ímãs, baterias, dispositivos geiger etc. Coisa de gente que “adora
entrincheirar-se em parafernálias receptoras, cabos de transmissão sorrateira, mesas
telefônicas adaptadas, repletas de mouses, aparelhos radiofônicos e televisivos”.4 Tanta
tecnologia de gambiarra oferece aos personagens, no espaço ficcional da narrativa, além
dos
poderes
paranormais,
corpos-ciborgues:
“todos
varridos
ou
envolvidos
minimamente por esses lapsos tecno-místico-científicos”. O que Hollywood costuma
chamar de efeito especial, na Copacabana high-tech de Fawcett, vira “ciência sucateada
para todo lado”.5
As performances poltergeist, disseminadas por Fawcett nos ‘Cassinos dos
Chacrinhas’ da década de 1980, faziam muito mais do que conciliar modernidade e
arcaísmo, corpo e máquina. Os ‘robôs efêmeros’ do músico ensaiavam artifícios de
duplicidades, feeling tecnicus: um mecanismo de engendramento da potencialidade dos
esquecidos na periferia, para quem a tecnologia sempre cumpriu um papel reativo de
exclusão e apagamento.6 É nesse contexto que uma política do ciborgue começou a ser
ensaiada no Brasil. A tecnologia como um afeto na montagem da produção de Fawcett
recriaria as linhas dessa reatividade para fazer da exclusão e do apagamento parte
fundamental da formação de um Brasil High-tech. É também nesse contexto que se
FAWCETT. Sant a Cl ar a Polter geist, 1991, p. 15.
FAWCETT. Sant a Cl ar a Polter geist. 1991, p. 64.
6 MOREIRA. Um banquete antr opofágico. 2001, p. 46.
4
5
inicia a lenda de Verinha Blumenal, a Santa Clara Poltergeist.
Verinha, encarnação da Santa Clara- padroeira da TV, entrou em contato com
um desses “lixos sofisticados” espalhados aleatoriamente pelas ruas cariocas: uma
bicicleta Calói. Entre uma pedalada e outra, “o banco da bicicleta saiu debaixo dela e o
cano penetrou no seu corpo inteiro”7. Verinha acabara de ser atravessada pela energia
radioativa de um tipo de ferrugem que lhe garantiria poderes sobrenaturais. Num
instante de bytes, “a ferrugem da bicicleta espalhou-se pelo ventre da garota e parecia
alimentar-se dele”8. Seu corpo virou ímã de todo tipo de objeto eletrônico,
informatizado, metálico. Verinha Blumenau passou a ser o ciborgue paranormal mais
poderoso do Brasil, e tirar proveito disso seria sua missão inicial. Com um corpo
magnético, Verinha Poltergeist começa os seus shows tecno-místicos se lançando na
“empreitada de ser a vedete dos caminhoneiros e viajantes do sul do país”.9
A releitura do fenômeno Poltergeist no Brasil encontra no ciborgue-por-excessode-sucata e na paranormalidade para “tirar proveito”, não só efeitos especiais capazes de
deixar qualquer Steven Spielberg invejoso, como uma das primeiras cenas
representativas da formação da cultura high-tech na periferia do capitalismo: uma
realidade ciborgue ritual mística, matéria de ficção e de experiência vivida.
A ex-dançarina erótica passa a ciborgue curandeira e, além de tirar proveito da
situação, ganha ao longo da trama uma segunda missão: salvar o Rio de Janeiro, e
conseqüentemente o Brasil, da explosão de uma bomba, fruto dos experimentos de
grupos de cientistas internacionais, que faziam da favela espaço laboratorial de
experimentos em tecnologia avançada. Para tanto, ela precisaria da ajuda de Matheus,
um “N.E.I, negão eletricista informatizado,” que devido ao excesso de contato com
“encadeamentos de televisores, videogames, baterias eletrônicas... parafernálias
completamente contrárias a qualquer minimalismo de design informático de ponta”10,
perdeu parte de sua energia cerebral e precisa, como quem precisa de hemodiálise,
recarregar de eletricidade o seu cérebro sempre que sente os sintomas tecno-neurais:
formigamento intracraniano, epilepsia localizada e perda de certas capacidades.11 Para
sobreviver e recompor o seu cérebro o N.E.I Matheus precisava manipular “técnicas de
gambiarras” que fornecessem energia suficiente para reengatar seus neurônios. Tal
FAWCETT. Sant a Cl ar a Polter geist. 1991, p. 15.
FAWCETT. Sant a Cl ar a Polter geist.1991, p. 25.
9 FAWCETT. Sant a Cl ar a Polter geist. 1991, p. 28.
10
FAWCETT. Santa Clar a Pol ter geist, 1991, p. 15
11 FAWCETT. Santa Clar a polt er geist, 1991, p. 21.
7
8
procedimento consistia em usar um “fuzível (com z) que funcione como uma ponte de
safena neuronal”12; uma técnica precária de sobrevida, um puxadinho que mais tarde
construiria uma gambiarra cerebral, recarregada constantemente, mas que poderia
também desmoronar, “pifar” a qualquer momento.
A ação principal do romance gira em torno do movimento dos cientistas
tecnológicos multinacionais que cercam Copacabana com um imenso campo magnético
para fazer do bairro, principalmente da favela (pela sua potencialidade maquínica), um
campo de prova para experimentos de tecnologia de ponta. Com o campo armado, os
cientistas terroristas aproveitam a energia tecno-erótica da multidão carioca e criam uma
bomba que pode explodir a qualquer momento. Para salvar o Rio de Janeiro, Matheus,
N.E.I., precisa achar a bomba e detoná-la dentro da pelve eletrônica de Santa Clara,
Santa curandeira de poderes sobrenaturais.
Dando um adeus definitivo à abdução poltergeist de Spielberg, o efeito
Poltergeist de Fawcett nos coloca diante de uma certeza: a era do ciborgue no Brasil
instalava-se, indubitavelmente, aqui e agora. Sendo assim, a tecnologia estrangeira não
ameaçaria mais o Brasil, pois a força de quinquilharia da pélvis eletrônica de Santa
Clara e do cérebro eletronicamente melhorado de Matheus quebrava o telos dominador
e introjetava uma renovação das nossas pesadas heranças arcaicas. Fawcett acabara de
consagrar o ‘projeto de emancipação nacional’: caminho para driblar as teorias e
práticas do subdesenvolvimento, ingresso na era ‘neoliberal da globalização acelerada’,
sem cair no discurso do determinismo desenvolvimentista e do relativismo da
dependência. No desenho do corpo ciborgue de gambiarras, de Verinha, e do corpo
ciborgue de puxadinhos, de N.E.I., nos defrontamos com a quebra das fronteiras entre
base e estrutura, o lugar mais feliz para ‘emancipação’ e ‘desenvolvimento’ nas
periferias do capitalismo. O ritual de reconexão do corpo, em Santa Clara Poltergeist,
produz um tipo de violência crítica/textual para montar uma práxis discursiva que
desfaça as regras de dominação, quando se fala em desenvolvimento tecnocientífico, em
função da inventividade e do artifício.
Em 1992, Fausto Fawcett nos apresentou ao romance Santa Clara Poltergeist:
autêntica “arte do desvio”, reinvenção da arte da sucata, para encontrarmos e darmos
corpo ao WWW, ao mundo-Internet que explodiria no Brasil em 1995. Poderia até ser
somente, como até hoje vemos se repetir exaustivamente, o início da saga do “menor” a
partir de uma nova nomenclatura: excluídos digitais. De todo, tal início não é
12
FAWCETT. Santa Clar a polt er geist, 1991, p. 16.
meramente falso. Mas não podemos fechar os olhos para a estética da atualidade:
estamos, há muito, no mundo da ficção científica e como protagonistas-ciborgues que
somos precisamos começar a ver também “os excluídos” encontrando nos espaços do
“fora” “os novos usos para todas as coisas”13. A partir dessa perspectiva, feeling
tecnicus, periferia high-tech, economia tecnológica de pirataria, arte das gambiarras,
inteligência coletiva de puxadinhos são partes elementares da renovação do léxico
político-cultural que vem se constituindo no Brasil.
No entanto, esse mesmo ‘efeito especial’ de certa forma já nos parece tão
familiar, tão presente há tanto tempo em nossas vidas, que poderíamos questionar qual
seria a importância de fazer valer uma discussão sobre isto, uma vez que, e como a
própria metáfora ciborgue de Fawcett nos mostra, já vivemos em nossos corpos uma
relação tão íntima com as tecnologias que não mais conseguimos localizar onde
começamos e onde terminam as máquinas. Em outras palavras, a questão se formularia
assim: se “a era do ciborgue é aqui e agora, onde quer que haja um carro, um telefone
ou um gravador de vídeo”14, por que ainda nos espanta tanto falar de ciborgues no
Brasil? O que há na cultura ciborgue que poderia vetar o imaginário desta representação
na nossa cultura? Por que ainda precisamos renovar o léxico de termos como
dependência, imperialismo, atraso, subdesenvolvimento, uma vez que tais noções em si
já estão tão gastas, tão insuficientes para lermos esse ‘novo mundo possível’ que
emerge dia-a-dia aos nossos olhos?
Extensões dessas respostas estão presentes na escrita cyberpunk da ficção
científica que no Brasil foi nomeada de tupinipunk15: um desdobramento da ficção
científica brasileira que brinca com as dicotomias centro e periferia, progresso e atraso,
moderno e arcaico, utilizadas na reflexão sobre o processo de modernização dos países
subdesenvolvidos, para propor novas metáforas que ponham em xeque essa
racionalidade logocêntrica. Em 1996, essas novas metáforas emergem à superfície e
redimensionam a configuração textual da ficção científica na nossa cultura, oferecendo
uma resposta própria de um país que vive um outro tipo de desenvolvimento cultural e
científico. Assim, os textos Tupinipunks funcionam como um lugar de montagem das
13
GIBSON. Burning Chrome. 1986.
HARAWAY. Um manifesto para os cyborgs. 1994.
15
Roberto de Souza Causo, em suas discussões sobre a recepção crítica do movimento cyberpunk no
Brasil, nos apresenta à noção de Tupinipunk, uma releitura do gênero cyberpunk e ao mesmo tempo uma
retomada do programa antropofágico de Oswald de Andrade em 1928 – revisto e atualizado para a FC,
sessenta anos depois. Também trato da recepção crítica do ‘gênero’ tupinipunk na ficção científica
nacional e internacional, no terceiro capítulo da minha dissertação de Mstrado. Ver: COSTA. Ficção
científica brasileira: configurações de uma arte cyberbarroca, 2006.
14
hibridações homem-máquina na periferia e, ao mesmo tempo, como texto-manifesto de
afirmação da margem, do ‘atraso’, da arte da sucata como espaços possíveis de
produção de sentido. Se, na perspectiva antropofágica oswaldiana, temos o bárbaro
tecnizado, imagem síntese do motor de uma postura cultural crítica capaz de
compreender o dinamismo das produções culturais, identitárias, literárias e simbólicas
do Brasil, (uma visão crítica de nossa herança cultural, baseada na apropriação e, ao
mesmo tempo, na desconstrução do outro), na ficção tupinipunk temos o ciborgue como
uma nova roupagem desse bárbaro.16
Alfredo Sirkis, Guilherme Kujawski, Ivan Carlos Regina, Finisia Fideli, dentre
outros, são escritores que, junto a Fawcett, se apropriam dos elementos próprios do
Tupinipunk para, ao invés de indicar o “apocalíptico” ou abdicar do “integrado”,
reinventam as condições de uma outra práxis para operar sobre as questões que
deflagram a modernidade tardia no Brasil. Precariedade e pobreza brasileira,
sincretismo, sensualidade, politização e o lugar das tecnologias digitais em meio a tudo
isso, formam o barroquismo que compõe os textos. O corpo Tupinipunk dos ciborgues
brasileiros “se relaciona tanto com a tradição modernista brasileira de canibalismo
cultural, quanto com uma sensibilidade pós-moderna”17 e seu desenho reescreve o
Brasil, questionando o sentido comumente atribuído à idéia de tardio, de dependência
cultural e subdesenvolvimento para reelaborar um lugar teórico de desconstrução dos
discursos hegemônicos que legislam sobre as produções culturais e simbólicas da
periferia.
Mais do que metáforas da junção tecnologia-pobreza no Brasil, pensar os
formatos do ciborgue brasileiro possui aqui uma dupla função: a primeira delas está em
mostrar como essas imagens criam contradições sociais e culturais que vão desde a
super-informatização até as favelas para, superpondo as temporalidades, misturar o ‘prémoderno’ e as tecnologias de ponta, o passado e o futuro; a segunda está no corte
epistemológico que essa criação opera nos discursos logocêntricos, ao dramatizar a
situação tecnológica no Brasil, para além do papel reativo de exclusão e apagamento
social, bem como da noção de modernidade tardia como defasagem, atraso ou distância
temporal.
Ver : COSTA. Ficção cient ífica no Br asi l: configur ações de uma ar te cyber bar r oca. 2006.
CAUSO. O cr ítico-fã: r esenhas de ficção cient ífica, fant asi a, hor r or e outr as for mas invisíveis de
lit er atur a. P. 7.
16
17
Se em Neuromancer18 identificamos claramente os formatos dos corpos e a
montagem dos tipos de ciborgues que ilustraram o imaginário cyberpunk na década de
80, na ficção científica tupinipunk do Brasil os N.E.Is de sucata tomam conta das nossas
formas de ver e nos fazem crer em algo muito além das próteses do dia-a-dia. No
romance de Gibson, os Ciborgues protéticos, como Ratz e Molly, os ciborgues
genéticos, como o clone Hideo ou os ciborgues informáticos, como Linha Plana,
constroem uma hipermodernidade na qual o ciborgue deixa de ser uma criatura
meramente ficcional, mas passa a ser algo inerente ao cotidiano Moderno. Assim, o
processo de ciborguização do corpo de Case, por exemplo, “com seu som e seu
notebook onipresentes” é tão possível quanto o de Verinha Poltergeist ou do N.E.I
Matheus, com o lixo reciclado da periferia. 19 Isso porque o corpo do ciborgue brasileiro
carrega em si uma noção de tardio que alinha ecologicamente as mais diferentes
potências da periferia: tecnologias de ponta e gambiarras, misticismo e vulgarização
científica, puxadinhos e biotecnologia, classe média e mutirões de cooperação, pobreza
extrema e projeto ‘pré-sal’.
Sim, estamos falando de pobreza, de subdesenvolvimento e atraso; estamos
falando de lugares nos quais qualquer discurso high-tech precisa ser inventado. A
invenção, dessa maneira, “vira encontro, uma hibridização e uma colaboração entre uma
multiplicidade
de
imitativos
(idéias,
hábitos,
comportamentos,
percepções,
sensações)”20. Sendo assim, também estamos falando de atividades socialmente
produtivas e de quando desejos se tornam concretos (seja pelo ódio ou pela indignação)
ou de quando saberes de si constituem um desejo coletivo. Pensar as imagens dos
espaços do precariado, da sucata, da favela como metáforas do high-tech no Brasil é
também entender que há, contudo, uma discussão que se torna particularmente singular
18
Neuromancer, de William Gibson, é um dos mais famosos romances do gênero cyberpunk . Uma das
forças mais significativas desta produção está na forma como essa narrativa introduziu conceitos para a
época, como inteligências artificiais avançadas, cyberespaço, conceitos que mais tardes foram explorados
pela trilogia Matrix, e por outras obras cinematográficas do gênero.
19
Em Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea, André Lemos nos apresenta a
outros processos de ciborguização: o protético e o interpretativo. Ao falar sobre os ciborgues protéticos,
Lemos refere-se aos indivíduos cujo funcionamento fisiológico depende de aparelhos eletrônicos ou
mecânicos. Já o ciborgue interpretativo se constitui pela influência dos mass media, através do poder da
televisão ou do cinema. Na análise de Lemos a cultura de massa e do espetáculo nos fez cyborgs
interpretativos Lemos refere-se ainda aos ‘netcyborgs ou cyborgs interpretativos das redes’, que ao se
organizarem “a partir de conexões Todos-Todos, esvaziam o controle social operado pelos tradicionais
media Um-Todos”. Ver: LEMOS. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea,
2002, P. 187.
20
LAZZARATO. As revoluções do capitalismo. 2006, p. 45.
quando trazemos à tona essas ideias: as teorias terceiro-mundistas do desenvolvimento e
da dependência cultural e política nas nomeadas periferias do capitalismo.
Ao falarmos das utopias antropofágicas desse corpo-fetiche-tecnológico não nos
referimos ao sentido de telos apocalíptico das teorias do determinismo tecnológico que
substituem o homem pela máquina ou a ação política pelo texto. Nesse sentido, essas
representações dos corpos dos ciborgues estão em sintonia, e ao mesmo tempo
produzindo novos arranjos, com o pensamento estético-cultural-antropofágico,
sustentado pela proposta de fundir ludicamente a ‘cultura da reciclagem’ com o ‘mundo
da tecnologia moderna’. Isso porque, como bem nos alertou Oswald,
no mundo supertecnizado que se anuncia, quando caírem as barreiras finais do
Patriarcado, o homem poderá cevar a sua preguiça inata, mãe da fantasia, da
invenção e do amor. E restituir a si mesmo, no fim de seu longo estado de
negatividade, na síntese, enfim, da técnica que é civilização e da vida natural
que é cultura, o seu instinto lúdico. Sobre a Faber, o Viator e o Sapiens,
prevalecerá então o Homo Ludens. À espera serena da devoração do planeta
pelo imperativo do seu destino cósmico. (sic)21
O Homo Ludens da cultura antropofágica rompe com o tempo e com as
hermenêuticas desse racionalismo cartesiano - em busca de uma invenção, de uma ética
de identidade para além da ideia de que a tecnologia desenvolvida pelo mundo
capitalista é um reflexo da economia das grandes potências. E, nessa inversão, a
“expansão da potencialidade dos esquecidos na periferia do mundo” vai sendo
equacionado na forma como a favela, o candomblé, as aldeias indígenas ou as
multinacionais entram na cena tecnológica para levar em conta os diferentes tipos de
modernização processados nas várias, e improváveis, regiões do Brasil.
Eis o início do manifesto do ciborgue brasileiro: ter um corpo híbrido que
fetichize a tecnologia, fazendo do lugar do ciborgue um espaço metafórico de ação
política ao romper com os fundamentos da ideia moderna e liberal de progresso técnico.
Na ficção científica de Fawcett, o Brasil assim estaria – e isso graças à sua própria
formação histórica e cultural - mais próximo do mundo do ócio e, portanto, seria um
lugar propício à realização do corpo-arte-de-sucata do ciborgue tupinipunk: “ união do
progresso técnico - em seu estágio futuro de negação do próprio negócio que o
propiciou - ao humanismo que o "atraso" das culturas "não-calvinistas" pôde
resguardar”22. Sabemos que é lugar comum relacionar o papel dos países
subdesenvolvidos ao de consumidores passivos não apenas da tecnologia, mas também
21
22
ANDRADE. A utopia antropofágica. 1990, p. 106.
Cf. ANDRADE. A utopia antropofágica. 1990.
dos discursos a ela relacionados. Assim, perpetua-se a idéia de que somente o contexto
das grandes potências mundiais propiciaria as condições de aparecimento de textos
como os da ficção científica, e com ele as possibilidades de se vislumbrar um outro ser
– o sujeito civilizado, emancipado, tecnicizado – e um outro mundo – a sociedade
tecnocientífica do futuro.
No texto de Fawcett, a composição do corpo do ciborgue pela deglutição e
expurgação possui uma relação estreita com as transformações da geografia da política
imperialista no mundo, que, em parceria com as realizações do mercado global, marcam
o ponto
de mudança
no modo capitalista de produção de imagens
na
contemporaneidade. Dessa forma, o corpo do ciborgue brasileiro é uma extensão das
divisões espaciais dos três mundos (Primeiro, Segundo e Terceiro), uma vez que tais
fronteiras ficaram “tão misturadas que a qualquer momento nos deparamos com o
Primeiro Mundo no Terceiro, o Terceiro no Primeiro, e o Segundo, a bem dizer, em
parte alguma”.23
Quebrando a obrigação de ampliar os consensos que dão apoio a tal hierarquia, a
metáfora do ciborgue acaba nos dando uma amostra de que os esforços para contestar e
subverter o Império já começaram: estão ficcionalizados na forma como as narrativas da
ficção científica brasileira fazem uso do Manifesto Antropofágico de Oswald, para reler
a ficção científica norte-americana, inventando formas democráticas e poderes
constituintes que a conduz através e para além da própria representação de império
deste último.24 Para além do cyber e do tupi, o corpo do ciborgue brasileiro configura
outra linguagem para entendermos melhor a produção e disseminação dos textos de
ficção científica na nossa cultura ao agenciar um tipo de performance que “admite a
contemporização, ensina artifícios de duplicidade, dribla a idéia de fim com a promessa
de que tudo pode recomeçar e coexistir, sem, no entanto, eliminar o sentimento de
precariedade da vida”.25
Assim sendo, a imagem do ciborgue é um retorno em diferença ao discurso da
periferia sendo movido para além da perspectiva temporal que vai da emergência do
projeto nacional desenvolvimentista (no imediato segundo pós-guerra) à crise das
políticas neoliberais (final dos anos 1990)26. No Brasil, esse retorno em diferença é
elucidado quando a perspectiva do desenvolvimento, depois da década de 1960, perde
23
NEGRI; HARDT. Império. 2005, p. 13.
NEGRI; HARDT. Império. 2005, p. 15.
25
BARBOZA FILHO. Tradição e artifício. 2000, p. 409.
26
Ver: COCCO;NEGRI. Glob(AL). 2005, p. 34.
24
sua diretriz nacional. Dessa forma, emerge outra perspectiva política e econômica, não
mais pautada na centralização nacional para o desenvolvimento; há um deslocamento do
papel do Estado e do capital diante da força de uma nova realidade política: a
interdependência. A velha questão sobre dependência e desenvolvimentismo era uma
teoria do crescimento econômico, estava prisioneira em uma gaiola de dimensões
economicistas e de medidas quantitativas totalmente insuperáveis e, mesmo quando
conseguia ativar forças sociais novas, o fazia para fechá-las no esquema da disciplina
industrial. A ilusão de unir crescimento e emancipação, de transformar assim os
projetos econômicos em poderosas condições para libertação democrática dos
trabalhadores, mostra-se aqui de corpo inteiro. Por outro lado, desenvolvimento hoje só
pode significar uma relação direta entre potencialização das condições sociais de
produção (educação universal, pesquisa, livre circulação da força de trabalho,
emancipação das mulheres, liberação da expressão cultural e política indígena,
desarticulação das barreiras raciais etc.), mobilização democrática dos trabalhadores a
partir das bases e abertura para dimensões sempre mais amplas de cooperação
interdependente.
No atual lugar ético de constituição das multidões, lugar das projeções e projetos
high-tech as escolhas culturais são tão decisivas quanto às questões econômicopolíticas, não só por lhe serem intrínsecas, mas principalmente por produzirem
dispositivos tecnológicos para emancipação do trabalho afetivo, ligados a um tipo de
movimento que atravessa a tradição de forma criativa. Porém, o que embaça essa
maneira de pensar é o discurso da pobreza e de sua mitificação como exclusão absoluta,
como lugar de uma carência, de uma falta, que aniquila as forças e imobiliza os sujeitos.
Um tema muito particular que Antonio Negri põe em discussão, e que alguns já
batizaram de “o complexo de Harry Potter”27, diz respeito à idéia da “Riqueza dos
pobres”, discutida amplamente em boa parte de suas obras, e enfatizada na obra
Multidão, escrita em parceria com Michael Hardt. Para Negri, não é a necessidade que
move o sujeito. Afirma o filósofo: "não existe necessidade objetiva. Não há isso. O que
há sempre é uma luta constante para resistir aos mecanismos de produção da miséria"28.
O que move o sujeito é, portanto, a luta, e isso é mais que um soco na ideologia da
esquerda tradicional.
27
Robert Kurz, sociólogo alemão, faz uma crítica severa ao neo-utopismo dos conceitos de multidão,
poder constituinte, amor e pobreza, desenvolvidos por Antonio Negri e Michael Hardt, na obra Multidão.
Ver: KURZ. “O complexo de Harry Potter”. 2005.
28
NEGRI. Kairós, Alma Venus e Multitudo. 2003.
A riqueza do pobre, para Negri, tem dois rostos: “o primeiro é reduzido pelo
capitalismo com seus processos de exploração; o segundo é o máximo de potência,
mostra como o pobre tudo pode produzir e tem de produzir, por viver no limiar da
ausência"29. Segundo Negri, esse é um paradoxo produtivo, que não podemos esquecer
ao discutirmos questões que falam de países ricos e países pobres. Paradoxo que se
forma e se exerce antes de tudo nos espaços biopolíticos e que consiste na coprodução
de singularidade e no comum, na cooperação e na inovação, na linguagem e na decisão.
Por essa co-produção fica determinado, ontologicamente, quem pode, produzido pela
potência da pobreza, gerar o telos comum através da práxis amorosa30. Para produzir
novas temporalidades e novos espaços comuns, cooperativos, e para realizar essa
inovação afetiva, amorosa, é necessário abrir novos campos de discussão para
refletirmos como o pobre e a pobreza podem ser portadores de uma potência outra de
mobilização coletiva. Isso porque a pobreza é pensada no limite, na borda, nos pontos
máximos de tensão, no que há de mais comum a todos. “Na era do homem- máquina, a
militância do comum é produto de uma ‘tecnologia de amor’ específica”31.
Quando fala em amor, Negri se refere ao amor alegre, como em Spinoza, é “um
amor que constrói, porque é um amor de conhecimento e, portanto, de cooperação, de
construção.”32 Sendo assim, o ciborgue brasileiro de Fawcett é o pobre! Isso porque
participa, de alguma forma, da produção social. É esta, em última análise, a riqueza dos
pobres. Esse tipo de discurso é difícil de ser digerido por todos aqueles que se
angustiam diante da situação de países como o Brasil, com milhões de pobres,
favelados, com contingentes de pessoas fora do sistema formal da produção. É difícil
porque aprendemos a objetificar esse lugar de existência e a reduzir seu nome “à plebe
(vulgus), ou pior, à ralé, à abjeção. A potência dessas representações está sempre
expropriada”33. É muito mais confortável permanecermos no esquema próprio da
racionalidade moderna que pensa o pobre dentro da experiência da escassez, sem força
29
NEGRI. Kairós, Alma Venus e Multitudo. 2003, p. 146.
HARDT;NEGRI. Multidão. 2005. p. 146.
31
Esses dois pontos dentro dos estudos de Negri – amor e pobreza – são os lugares de atuação do comum.
Negri não define o amor como desejo de transcendência, mas como trabalho vivo, trabalho da multidão.
Ver: NEGRI. Kairós, Alma Venus e Multitudo. 2003, p. 145 e 146.
32
Amor e pobreza são os elementos imanentes do processo de singularização da multidão. Segundo Hardt
e Negri, "as pessoas hoje em dia parecem incapazes de entender o amor como um conceito político, mas é
precisamente de um conceito de amor que precisamos para apreender o poder constituinte da multidão. O
moderno conceito de amor é quase exclusivamente limitado ao casal burguês e ao espaço claustrofóbico
da família nuclear. O amor tornou-se uma questão estritamente privada. Precisamos de uma concepção
mais generosa e irrestrita de amor. Precisamos recuperar a concepção pública e política de amor comum
às tradições pré-modernas (...). O amor significa precisamente que nossos encontros expansivos e nossas
contínuas colaborações nos proporcionam alegria.” Ver: HARDT;NEGRI. Multidão. 2005.
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NEGRI. NEGRI. Kairós, Alma Venus e Multitudo. 2003.
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vital, associado geralmente ao crime, à violência, ao improdutivo. Dentro dessas regras
de representação se formatam os discursos sobre o pobre como objeto de disputas
diversas entre a igreja, os políticos, as ONGs, ou como resultado das práticas
conformistas e assistencialistas. Não negamos essas formas de representar, mas,
preferimos fazer o paradoxo produtivo, exposto por Negri, funcionar, deixando clara a
justificativa dada pelo autor de que
Não se trata, aqui, de enfrentar exaustivamente o problema, mas apenas de
apresentá-lo do ponto de vista da teoria do poder constituinte. E como a nossa
resposta está inscrita no centro de uma dinâmica histórica de alternativas e de
lutas, trata-se de esclarecer e destacar, sobretudo, uma forma de pensar que se
contrapõe à racionalidade moderna34.
Quando o N.E.I Matheus ou Verinha Poltergeist entram na cena high-tech do
Brasil de Fawcett, entra também em cena um outro mundo possível, para além do
determinismo desenvolvimentista e do relativismo da dependência, mas em nome de
uma vontade de teorizar a constituição de uma ética comum como único ‘pacto’ para
organizar movimentos e mobilizar produtivamente a sociedade. Exercício de um tipo de
pós-utopia que nos faz
perguntar se os chamados elementos antimodernos, que estão presentes na
história cultural e na tradição das lutas de cada uma das grandes áreas de
subdesenvolvimento (China, índia, América Latina), podem ser apropriados não
como pesadas heranças arcaicas, mas como funções criadoras de uma outra
modernidade, de uma outra modernização?35
Acredito que as representações das imagens do ciborgue nas favelas cariocas podem
funcionar como exercícios de pensamento e de respostas para essas “pesadas heranças
arcaicas”. Nas representações dos brasileiros ciborgues, o antimoderno, para além do
arcaico, pode configurar inovações do léxico político no imaginário coletivo e, quiçá,
permitir metamorfoses do espírito e dos corpos, tão importantes quanto as
metamorfoses maquínicas.
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34
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