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Atas do Congresso Internacional “Musicologia transatlântica: um momento para reflexão” Alejandro Reyes Lucero & David Cranmer (coordenação) Tomás Antunes Freire (assistência editorial) Caravelas - Núcleo de Estudos da História da Música Luso-Brasileira, CESEM, FCSH-UNL Lisboa, 2018 Edição online “Musicologia transatlântica: um momento para reflexão” Alejandro Reyes Lucero & David Cranmer (coordenação) Tomás Antunes Freire (assistência editorial) Capa: Rodrigo Teodoro de Paula Caravelas - Núcleo de Estudos da História da Música Luso-Brasileira / Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM), FCSH-Universidade Nova de Lisboa Lisboa, 2018 ISBN: 978-989-54310-2-1 Congresso – 27-29 de setembro de 2018, FCSH-Universidade Nova de Lisboa Organização Caravelas – Núcleo de Estudos da História da Música Luso-Brasileira Museu Nacional da Música Coordenação geral David Cranmer Alberto Pacheco Rodrigo Teodoro de Paula Comissão organizadora Rodrigo Teodoro de Paula Alberto Pacheco Alejandro Reyes Lucero Comissão científica David Cranmer (coordenador), Alberto Pacheco, Ana Guiomar Rêgo Sousa, Ana Maria Liberal, Carlos Alberto Figueiredo, Cristina Fernandes, Diósnio Machado Neto, Edite Rocha, Francesco Esposito, Giorgio Monari, Javier Marín López, Luísa Cymbron, Luiz Guilherme Goldberg, Marcos Holler, Márcio Páscoa, Mário Trilha, Paulo Kühl, Paulo Esteireiro, Ricardo Bernardes, Rodrigo Teodoro de Paula Comissão artística Ricardo Bernardes, Alberto Pacheco Assistência durante o Congresso António Baptista, Ricardo Pereira, Tomás Antunes Freire (fotógrafo) Agradecimentos Aos nossos oradores convidados: Cristina Magaldi (Towson University), Giorgio Monari (Università La Sapienza, Roma), Javier Marín López (Universidad de Jaén), Rui Vieira Nery (FCSH-Universidade Nova de Lisboa/Fundação Calouste Gulbenkian) Membros dos painéis: História Temática - Manuel Pedro Ferreira (FCSH-Universidade Nova de Lisboa) e convidados Projeto Caravelas - David Cranmer, Zuelma Chaves (FCSH-Universidade Nova de Lisboa) RISM - Sílvia Sequeira (Biblioteca Nacional de Portugal), Carlos Costa Agradecemos ao Museu Nacional da Música pela cedência do espaço para a exposição de instrumentos luso-brasileiros, assim como pelo acolhimento do concerto no dia 28 de setembro. Musicologia transatlântica: um momento para reflexão ÍNDICE GERAL Apresentação 1 Programação 5 Textos apresentados Globalização e o passado cosmopolita da música no Atlântico Cristina Magaldi 9 As músicas luso-brasileiras do Antigo Regime: matrizes, trocas e sínteses Rui Vieira Nery 10 A propósito de la Comisión de Trabajo “Música y Estudios Americanos” (MUSAM/SEdeM): apuntes sobre una musicología trasatlántica desde la perspectiva española Javier Marín-López 35 Editando e interpretando recitativos de salão Alberto Pacheco & Andréa Teixeira 63 A presença de Teresa Carreño em Portugal: as críticas e a relevância do género Alejandro Reyes Lucero 85 A Discordia Ajustada: a construção simbólica do Império nas efemérides realizadas em Vila Boa De Goiás em fins dos setecentos e início dos oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza 92 A trajetória de atrizes-cantoras no teatro musicado entre Brasil e Portugal na transição do século XIX para o XX segundo a imprensa Ângela Portela 108 “Catedrais e Teatros em pleno Atlântico": música para devoção e diversão a bordo dos navios portugueses dos séculos XVI e XVII para o Brasil e Índia Cristina Cota 109 A Carmen de Bizet: circulação e sua receção em Portugal e no Brasil até 1915 David Cranmer 110 Memória, realidade e projeção: 10 anos de estudos de significação musical sobre a música na América Portuguesa Diósnio Machado Neto 123 Musicologia transatlântica: um momento para reflexão David Dias de Paiva: actividade musical em Braga e no Rio de Janeiro nos finais do século XIX e primeira metade do século XX Elisa Lessa 137 Relações musicológicas ibero-americanas: correspondência entre Curt Lange e M. S. Kastner Edite Rocha 151 Uma modinha no gabinete do diplomata: a monarquia lusitana na transição dos séculos XVIII ao XIX Felipe Novaes & Robson Bessa 152 Os hinos Ut queant laxis e Fortem virili pectore no contexto da produção musical de Ignâcio António Ferreira de Lima no Fundo Musical da Sé de Évora Filipe Mesquita de Oliveira 167 Alguns elementos de uma construção simbólica da nação brasileira: Um enfoque da música da festa do Divino em Vila Boa De Goiás Fernanda Albernaz do Nascimento Guimarães 184 Produção e práticas musicais religiosas na capela do hospital da Benemérita Sociedade Portuguesa Beneficente do Pará: das fontes musicais históricas às práticas do presente Fernando Lacerda Simões Duarte 195 A Intervenção do Habitus Cortesão Bragantino na articulação da construção simbólica das instituições musicais brasileiras no Rio de Janeiro oitocentista Flávia Maria Cruvinel 211 Entre historiografia e etnografia musical latinoamericana: a música indígena na obra de Jean de Léry (1536-1613) Giorgio Monari 227 Lauriana atravessa o Atlântico: notícias de uma recepção Guilherme Goldberg /Amanda Oliveira 235 Canção d’Além-Mar: memória e nomadismo do fado Heloisa de A. Valente 247 O repertório brasileiro para violino solo de Flausino Valle (1894-1954) e questões estéticas em seus 26 Prelúdios Característicos e Concertantes para Violino Só Leonardo Feichas 261 Musicologia transatlântica: um momento para reflexão Fluxos e refluxos eurobrasileiros na expressão musicoreográfica do Maxixe: Pressupostos, reflexões e Considerações Luiz Carlos Almeida de Araujo 262 Brasil e Portugal: uma relação que perdura Lutero Rodrigues 263 A construção do país moderno e a ocupação simbólica da música dos chorões: Rio de Janeiro no final do século XIX e início do século XX Magda de Miranda Clímaco 291 Teorias em contraponto: relendo os contextos e revendo a categorização de tratados de música de Melo de Jesus (Bahia, 1760), Álvares Pinto (Recife, 1761) e Solano (Lisboa, 1790) Mariana Portas de Freitas 307 O teatro de revista na Madeira (1869-1962): das companhias lisboetas, portuenses e espanholas até à emergência de um repertório de autores madeirenses Paulo Esteireiro 331 A "Missa do Mestre Bernardino", o documento musical mais antigo do atual estado do Paraná Ricardo Bernardes 332 Música (e outros sons) para os festejos que celebraram os desposórios dos Infantes de Portugal e Espanha, na Ilha de Moçambique (1786) Rodrigo Teodoro de Paula 338 A existência de uma “esquerda" na Música de Concerto Brasileira Teresinha Rodrigues Prada Soares 339 A luta pela causa da Língua portuguesa no Canto de G.R. Salvini Tânia Valente 345 Entre rotas e derivas: o percurso dos trabalhos sobre a pronúncia do português brasileiro cantado, nas reuniões temáticas de 2003 a 2018 Wladimir Matos 355 A luta pela causa da Língua portuguesa no Canto de G.R. Salvini Tânia Valente CESEM- NOVA/FCSH CET-FLUL tvalente@letras.ulisboa.pt Resumo: O nome de Gustavo Romanoff Salvini ainda é desconhecido para muitos musicólogos, e a sua vida também. Na generalidade, sabe-se que foi cantor, professor de Canto, compositor, que é autor de uma obra chamada Cancioneiro Musical Português e outra intitulada As minhas lições de Canto: Método Vaccai para uso dos portugueses. Muitos especulam a sua ligação à família imperial russa, por conta do nome “Romanoff”. Aos poucos, começa-se a reconhecer o seu papel pioneiro ao pôr em música textos de autores portugueses, numa tentativa de criar o “Kunstlied” português. Também a sua visão do ensino do Canto, que fazem dele um professor à frente do seu tempo, continua a ser divulgada. No entanto, o talento artístico de Salvini extravasava para outras artes, que não só a Música. O mesmo acontecia com o seu conhecimento científico. Mas a faceta mais extraordinária da vida de Salvini terá sido a sua luta apaixonada pela causa da Língua Portuguesa no Canto no Lírico. Morreu cego, pobre, e foi sepultado numa “gruta” carregada de simbolismo. Porém, até ao fim dos seus dias, não perdeu a esperança de que no futuro as lutas, martírios, desalentos de um artista visionário em prol de uma reforma do ensino do Canto e da música portuguesa seriam finalmente reconhecidos. Palavras- chave: Salvini, música portuguesa, Canto, rosa-cruz. Salvini nasceu em Prauss, uma vila na antiga Polónia Prussiana. Muitas biografias consideram-no polaco, mas Salvini era na verdade alemão, e o alemão a sua língua materna. O seu nome de baptismo era Gustav Romanoff Ruzitska (que significa pequena rosa. Salvini é uma espécie de nome artístico, que adoptaria mais tarde). Não era um filho bastardo de Nicolai I, como dizem alguns, por conta do nome Romanoff. Salvini teve um pai, chamado Johann Ruzitschka, que era bailio de Prauss. Em 1845 inicia a sua formação em canto em Breslau, uma cidade também na Polónia Prussiana. Biografias oficiais dizem que fugiu da tua terra natal acossado por Musicologia transatlântica: um momento para reflexão perseguições políticas, cujos motivos desconhecem-se. Passa por várias cidades europeias. Da sua passagem por Viena surge como testemunho um desenho datado de Junho de 1847, onde Salvini aparece a tocar um trio de Beethoven, ao lado do violinista Dauer. Chegado a Itália, conserva-se em Florença até Novembro de 1848, data em que é contratado pelo empresário Bonola de Milão para cantar como 1º tenor no Teatro de Reggio di Parma. É neste teatro que “Romanoff” começa a sua carreira teatral, que viria a incluir a participação em óperas de Donizetti e Bellini. Em 1859, após uma passagem por França, chega a Portugal para cantar no Real Teatro de São João no Porto, contratado pela empresa Laneuville. Desta empresa fazia também parte Elisa Hensler (futura esposa consorte do Rei D. Fernando II e Condessa d’Edla). Debuta neste teatro a 17 de Outubro na ópera Beatrice di Tenda de Bellini, e já com o nome artístico “Salvini”. É no Real Teatro de São João que Gustavo Salvini termina a sua carreira, pois, durante a ópera Os Puritanos de Bellini, um incidente fá-lo perder a voz. Após este incidente, Salvini fixa residência no Porto, onde trabalha como professor de canto, de piano, e solfejo e até de esgrima. Como professor de Canto, Salvini desenvolve uma carreira muito prestigiada. De entre os seus alunos, contavam-se o cantor Maurício Bensaúde (o primeiro cantor lírico português a actuar no MET de Nova Iorque!), muitas pessoas de famílias ilustres do Porto, de entre as quais as irmãs Berta e Joana Lehmann, às quais Salvini viria a dedicar canções do seu Cancioneiro Musical Português. Uma dessas canções, dedicada Joana Lehmann foi “Oh! Rosas Purpurinas”, um cântico nupcial de natureza religiosa, destinado a reivindicar para os noivos a bênção dos deuses, provavelmente escrito para o casamento de Joana Lehmann com o empresário João Henrique Andresen (em 1883). E deste casamento nasceriam 9 filhos, vários netos, e uma neta muito especial. Joana Lehmann Andresen foi avó da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen. Há época da chegada de Salvini a Portugal havia um domínio incontestado da ópera Italiana, tanto sobre qualquer forma de canto em Língua Portuguesa, como também sobre a música instrumental. Mas Salvini, conhecedor e falante de vários idiomas, rapidamente aprende e se apaixona pela língua portuguesa. Por isso, não entendia o porquê dos portugueses não cantarem na sua língua, como exprime nesta frase, retirada do Prólogo do seu Cancioneiro : “Os dillettanti portugueses gostam de cantar em italiano, do qual às vezes não entendem palavra, e não só não têm remorsos de abandonar a sua língua às cantigas do povo, mas não se aventurariam mesmo a cantar n’ell um romance nos nossos salões e concertos! Ódio, amor, alegria, tristeza (..) a língua sabelhes exprimir tudo isto; mas para o canto?... Nem palavra em tal!...é pouco lógico. (SALVINI, 1866) 346 Musicologia transatlântica: um momento para reflexão Salvini, no papel de professor de canto e compositor, enceta uma luta para “Conseguir que os portugueses cantem na sua língua” (palavras do neto Anselmo de Morais Sarmento, no Prefácio de As minhas lições de Canto, 1931). Para satisfazer o seu intento, Salvini começa por escrever e publicar em 1865 o Romanceiro Musical, uma compilação de canções sobre textos não apenas em português, pois muitos apresentam-se em versão bilingue italiano/ português, ou espanhol/português. Existe mesmo uma canção em 5 idiomas (italiano, português, francês, alemão, inglês). Os autores dos textos escolhidos foram Camilo CasteloBranco, Luís Augusto Palmeirim, Alexandre Braga, Barbosa Silva, H. Teixeira, Al. Lido, etc. O objectivo desta edição poliglota era mostrar a adaptabilidade da língua portuguesa ao canto lírico, através de uma comparação com outras línguas. Numa 2ª edição, Salvini abandonaria a ideia do estudo comparativo, e apresentaria canções apenas em português. 1 O objectivo maior de Salvini era tentar criar a canção de câmara erudita em língua portuguesa . Paralelamente à sua actividade de professor de canto e compositor, Salvini tem uma outra actividade menos conhecida como fotógrafo. Teve uma casa de fotografia na Rua do Almada, chamada “Salvini & Co”. De entre os seus clientes, contavam-se vários membros da comunidade inglesa (que também eram seus alunos de Canto) , e a jovem Carolina Michaelis de Vasconcelos, retratada por Salvini, na altura do seu casamento com o musicólogo Joaquim de Vasconcelos. Mas na mesma Rua do Almada, no nº 122, existia a loja de um outro fotógrafo, bem mais conhecido, o alemão Karl Emil Biel. Depois de fechar a sua casa de fotografia, Salvini vira-se para a reedição das canções que editara em 1865, com o título de Romanceiro Musical, numa nova edição, sem o carácter poliglota da primeira, que receberia o título de Cancioneiro Musical Português. E a primeira pessoa a quem recorre para editar esta nova obra é justamente Emilio Biel, que também era editor. Mas o negócio não corre bem. No rascunho de uma carta ao amigo Zeferino, aparece uma frase, em alemão, que diz que “Biel contestou a conta dos meus propectos”2( SALVINI, Espólio familiar). No mesmo rascunho de carta, diz Salvini: “No ter-me desligado do Biel, libertei-me de um Vampiro, e fiquei com a liberdade de acção; apesar que isto me tem atrasado 1 De sublinhar que, apesar de Salvini ter sido o primeiro compositor a musicar estes poetas, que aqui citamos, existe uma obra de 1853 que ficou conhecida como as “Estreias Poético-Musicais”. Nesta obra vários compositores, de entre os quais Francisco Norberto dos Santos Pinto, musicaram poesia de António Feliciano Castilho. Mas estas foram escritas com o intuito de serem hinos de instrução, e não com a intenção de criar o “Lied” português, como era o caso de Salvini. 2 Biel hat mir meiner Prospectus die Rechnung protestiert. 347 Musicologia transatlântica: um momento para reflexão um poucochinho e eu ter pressa de completar as 150 assinaturas, contudo não lastimo o facto consumado.”(SALVINI, Espólio familiar, s.d.). Falhado o negócio com Biel, Salvini procura um novo editor, mas encontra dificuldades em encontrar apoios para o Cancioneiro. Para começar, ele precisa de 150 assinaturas para cobrir os gastos e garantir esta edição, e para isso envia, propectos a várias pessoas de influência. Numa carta a um destinatário desconhecido, diz “In manus tuas, Domine, comendo Romanceirum meum. Machado? Os Andrades? Dirigi uma carta a Ramalho, outra a Teófilo. Eu estou por tudo o que o amigo me dirá”. (Espólio familiar). A carta (em francês) que Salvini dirige a Ramalho Ortigão, que aqui reproduzimos (Fig.3) , é um apelo de Salvini ao apoio de Ortigão, mas também de Teófilo Braga e de outros escritores da mesma geração à causa da língua portuguesa na música: J.J. Rousseau em França, Wieland, Lessing na Alemanha trataram há 100 anos, aquela que constituí hoje a minha iniciativa em Portugal. Entro na arena como um gladiador. “Ave! César…E segundo o Evangelho de São Lucas: In manus tuas comendo Romanceirum meum.3 (SALVINI, Espólio de Ramalho Ortigão, carta de 1883). Outra dessas pessoas de influência, a quem Salvini escreve, é Carlos Henrique Kendall, do Orpheon Portuense, que decide devolver a Salvini os prospectos que ele lhe oferecera, alegando que haveria “verdadeiros amadores, para os quais não há necessidade de empenhos para que fiquem com exemplares”. A isto Salvini dá uma longa resposta, da qual apenas citaremos um excerto: Se penso que vivo numa terra, onde o merecimento dos Lusíadas não grangeou a Camões mais que o hospital e 300 anos depois uma apoteose penitenciaria nacional, incluindo ainda assim enorme prejuízo do festeiro literário (Biel), e se adicionar à história Cristóvão Colombo, zombado dos sabichões do seu tempo, escarnecido e vilipendiado de 1000 intrigas – não vejo que uma mui débil esperança que o merecimento do Romanceiro possa ser apreciado espontaneamente nos verdadeiros amadores para o possuir.(SALVINI, Espólio familiar, s.d.) “J.J. Rousseau en France, Wieland, Lessing en Allemagne ont traité il y a cent ans, ce qu’aujourd’hui constitut mon iniziative en Portugal. J’entre à l’arene comme un gladiateur. “Ave! César.. Et selon l’evangile de St. Luc. In manus tuas comendo Romanceirum meum”. Não traduzimos a última frase, por ser uma citação de uma citação alterada do título da Sonata VII de Haydn, “Pater, in manus tuas commendo spiritum meum”, na qual “spiritum” foi substituído por “romanceirum”. 3 348 Musicologia transatlântica: um momento para reflexão Ao fim de vários anos de luta, Salvini consegue finalmente editar o Cancioneiro em 1884, através da David Corazzi de Lisboa, com impressão feita da Alemanha pela “Breitkopf und Härtel” de Leipzig. Editado o livro, era preciso que as pessoas o comprassem e, sobretudo, se interessassem pela música que Salvini fez. Não sentindo em Portugal o apoio que achava que a sua iniciativa merecia, Salvini decide escrever a Sua Alteza Real, o Príncipe Regente em nome de El-Rei. O nome do Rei não é mencionado, mas deduzimos, pela forma de tratamento e outras razões mais místicas, que se tratasse de D. Fernando II: …a demora do deferimento da sua suplica possa também encadear-se com o facto de a aludida iniciativa não ter merecido a V.A.R aquele benévolo acolhimento e adesão que a lógica dos factos e a firme convicção da verdade insinuam e justificam-lhe, aumentando o remorso de ter tido a precipitada confiança e esperança de ver desabrochar sob a égide de V.A.R esta “Lotosblume” da música no terrão lusitano, onde não lhe faltaria o humus para florescer e dar fruto, se não fosse a desprotecção e indiferença que lhe secam as raízes (…). Robustecendo a perdida esperança com o grito da verdade oprimida “e pur se muove”4, julga o requerente que a história da música em Portugal registará nas suas páginas como corolário e lenitivo póstumo a todos os sacrifícios, martírios, lutas, obstáculos e desalentos que tentaram sufocar uma iniciativa que o próximo futuro transformará numa verdade vulgar. (SALVINI, Espólio familiar, s.d.) Noutro rascunho desta carta, Salvini faz uma alusão a Gluck e a Wagner: “ Foi a coluna de fogo que conduziu Gluck e a 100 anos de distância Wagner no mesmo caminho de combate musical, através de um mar de intrigas – e ambos entraram na terra prometida, a utopia de hoje será uma realidade no dia de amanhã”(SALVINI, espólio familiar, s.d.). Esta coluna de fogo é uma imagem bíblica de uma coluna que iluminou os hebreus no caminho até a terra prometida. Não se sabe se o rei terá respondido a Salvini, e o facto é que D. Fernando morre em 1885, portanto, ainda que quisesse dar apoio a Salvini, a sua saúde já não o teria permitido possivelmente. Destacaríamos aqui o nome de Wagner, nome importante ligado ao lado místico de Salvini. Depois do Cancioneiro, Salvini lança-se numa nova obra, bastante ambiciosa: As minhas lições de Canto: notas ao Vaccai para uso dos portugueses. O título remete-nos naturalmente para o Método de Canto de Vaccai, e de facto, esta obra de Salvini, contém as peças de Vaccai, mas adaptadas à Língua Portuguesa. No entanto, ela contém muito mais coisas. Para Salvini, esta obra seria o seu testamento musical, por isso, ele queria o melhor para 4 Citação de Galileu 349 Musicologia transatlântica: um momento para reflexão ela. Na capa surge a indicação de que a obra é dedicada ao Príncipe D. Carlos e adoptada pelo Conservatório”. E aqui temos que fazer uma correcção: o método de Salvini não chegou a ser adoptado pelo Conservatório. Salvini tinha esperança que fosse, e para tal, dirigiu uma carta ao poeta Luís Augusto Palmeirim, que era então director do Conservatório, explicando que se este método, o único em vernáculo, fosse adoptado pelo Conservatório, ele poderia ser adoptado em todo o país. Na mesma carta, Salvini ainda expôs a Palmeirim as partes que compunham este método,- e que incluíam descrições da anatomia e fisiologia da voz, respiração, timbre escuro/timbre claro, a higiene e o vestuário do cantor, etc., - numa tentativa de demonstrar-lhe que se tratava de uma obra complexa e completa. Porém, o seu apelo não teve o acolhimento desejado junto à direcção do Conservatório. Olhando para o livro, uma das coisas mais fascinantes são os desenhos anatómicos, de uma grande precisão. Estes demonstram que Salvini tinha um conhecimento científico profundo da voz, comparável ao de um médico. Para além da parte da anatomia, Salvini queria também fazer um projecto de método prático de pronuncia das palavras portuguesas no Canto. Para ele, era indispensável adoptar a Língua Portuguesa desde os primeiros exercícios práticos de silabação, pois “num idioma estrangeiro como hão-de o mestre e o discípulo fazer as suas observações e identificarse com a estética musical?” (SALVINI, 1931). Salvini entra também no campo da Linguística e faz uma, “ classificação das consoantes”, segundo a sua constrição e ponto de articulação, pois para ele esta classificação “tem a mais alta importância no canto” (SALVINI, espólio familiar, s.d.). E mais uma vez, Salvini volta a ser pioneiro, quer por ter sido o primeiro a tentar sistematizar as regras de pronúncia da Língua Portuguesa a pensar no Canto, quer porque esta obra, com a sua vertente científica e pedagógica, poder ser considerada como o primeiro tratado científico sobre VOZ alguma vez escrito em Portugal, e para uso os portugueses. Porém, apesar dos esforços de Salvini, ele não conseguiu apoios para publicá-la em vida. Esta obra só viria a ser publicada postumamente em 1931, e bem assim, só parcialmente. Outra coisa que torna esta obra extraordinária são os autores que Salvini cita. Nomeando só alguns: Antoine Ferrein, o homem que inventou o termo "cordas vocais", comparando as pregas vocais com as cordas de um violino; Albert Magnus, ou Alberto o Grande, um sacerdote alemão, filósofo, escritor, astrólogo e teólogo católico venerado 350 Musicologia transatlântica: um momento para reflexão como santo, que ficou conhecido como “o santo patrono dos cientistas” e também como “o pai da pedra filosofal”, cujo segredo teria entregue ao seu aluno São Tomás de Aquino antes de falecer; Johann Kasper Lavater, pastor, poeta, teólogo, filósofo, entusiasta do magnetismo animal na Suíça. É considerado o fundador da fisiognomonia; Stephen de la Madeleine, cantor francês, professor de canto e autor de “Théories complètes du chant”, e que era um seguidor de Manuel Garcia, um professor cantor que inventou o laringoscópio em 1854 e tornou-se conhecido como o primeiro professor científico; Christoph Hufeland, físico e patologista alemão e fundador da Macrobiótica (Salvini fala de Hufeland a propósito da alimentação dos cantores, portanto, mais uma vez ele estava bastante avançado para o seu tempo). A maioria dos autores citados por Salvini, exceptuando talvez Garcia e Stephen de la Madeleine, têm uma coisa em comum, que é um interesse pela Alquimia, ou mesmo uma ligação a organizações secretas, onde a Alquimia era uma prática comum. E aqui entramos no lado oculto ou ocultista de Salvini. No seu jazigo, que está no Cemitério de Agramonte, no Porto, temos uma gruta, uma imagem associada a rituais iniciáticos. Não existe aqui uma cruz. Mas o que representa realmente a cruz no ideário cristão? A cruz representa morte e ressurreição. (FLORES, 1993) E esta gruta também representa morte e ressurreição, não no ideário cristão, mas no contexto da Alquimia. A gruta é um símbolo alquimista de morte e renascimento, lugar da busca da verdade num útero simbólico, de onde brota a matéria-prima, os minerais e os metais usados na alquimia. A gruta é também o lugar onde Hermes Trismegisto, alquimista e o mítico fundador da química, terá sido enterrado em conjunto com “Tábua Esmeralda”, uma pedra, onde ele terá mandado gravar o essencial dos seus ensinamentos. (COSTA, 1999) . Assim sendo, esta gruta poderá ser a personificação de uma faceta desconhecida de Salvini. Mas ela não está completa, pois para além da gruta, existia neste jazigo um busto de Salvini e, mais importante, uma roseira. Por sua vez, as rosas levam-nos para outro documento. Numas páginas em italiano dirigidas ao senhor Romanoff que encontramos no seu espólio, a primeira coisa que captou a nossa atenção foram uns símbolos com as palavras “Corpus Anima Spiriti”. Ao realizar-se uma pesquisa destes termos aparece recorrentemente a expressão “RosaCruz”. Ainda neste documento aparece, numa outra página, uma citação do frontispício de “Clavis Artis”, um tratado de alquimia do final do séc.17-principio do sé. 18, que terá sido escrito pelo persa Zoroastro (ou Zaratrusta). Aparece também uma referência a Zanoni, o título do mais famoso romance ocultista do escritor inglês Edward Bulwer-Lytton (1803-1873). Foi editado pela primeira vez em 1842, dizendo a informação de capa apenas que o seu autor (então 351 Musicologia transatlântica: um momento para reflexão anónimo) também escrevera outros dois romances, nomeadamente Rienzi, obra em que Richard Wagner se inspirou para a sua ópera homónima. O livro tem como pano de fundo os princípios da Ordem Rosa-cruz, através de uma história de amor entre Zanoni, um ser imortal, e uma cantora de ópera. A música é o tema central de todo o primeiro capítulo do romance. O escritor Lytton foi um rosa-cruz. Richard Wagner também terá sido pelo menos bastante influenciado pelos princípios Rosa-cruz. E Salvini não era um homem comum, era um homem muito à frente do seu tempo e do país que o acolheu. Talvez por isso não tenha sido compreendido pelos seus contemporâneos. Os rosa-cruz tem como princípio lutar pela evolução da humanidade e pela elevação do homem. Uma das maiores lutas de Salvini era, segundo as suas palavras, uma luta pelo progresso da música em Portugal. Disse ele: “Meu fim é de arrastar os compositores de música para uma reforma tão vivamente desejada, e não desistirei de fazer e continuar a fazer novas tentativas para realizar o meu fim e se olivar o meu assentimento.” (SALVINI, Espólio familiar). No entanto, Salvini nunca se afirmou como rosa-cruz, nem poderia fazê-lo, pois o primeiro voto do iniciado é o do silêncio. Nenhum verdadeiro irmão se intitula, publicamente, “Rosa-cruz”. Os iniciados, e só eles, conhecem aqueles que, no passado, foram rosa-cruzes, porque nas suas obras há sinais, palavras e frases indicadoras dessa ligação, embora estejam ocultas aos profanos. Uma dessas pessoas, Bach, terá comunicado esta filiação à maneira barroca, em código, utilizando a linguagem cifrada dos números em toda a sua obra. Salvini também deixou pistas nos seus textos (nomeadamente as já referidas em As minhas lições de Canto, onde alguns dos autores citados eram alquimistas, iluminatti ou mesmo rosa-cruzes) , e quiçá também na sua música, para além de o tema das rosas ser recorrente no Cancioneiro. Por exemplo, na já mencionada canção “Oh!Rosas purpurinas”, canção dedicada a Joana Lehmann Andresen, avó de Sophia de Mello Breyner, temos 42 compassos. A soma dá o nº 6, nº de Afrodite e de Vénus, deusas do amor, e de facto a canção é um epitalâmio, isto é, um hino nupcial. Em “Queres a flor, canção com poema de Camilo Castelo-Branco, mas cujo texto foi alterado por Salvini nalgumas passagens, encontramos várias leituras numerológicas possíveis, das quais destacamos estas. Começamos pela presença do nº 4 da tonalidade (lá bemol maior) , dos primeiros intervalos da melodia da voz (4as perfeitas), e nas 4 flores que o sujeito poético entrega a alguém, sendo a última uma rosa. O nº4 está associado aos 4 elementos, fogo, água, ar e terra, e julgamos possível poder associar estes mesmos elementos a cada uma das flores (a saber, saudade, martírio, goivo e a rosa) do poema de Camilo. E o nº 4 é também o nº da cruz. Combinado com o nº 5, número de partes em que se divide a peça e a duração total em minutos 352 Musicologia transatlântica: um momento para reflexão da mesma, e sendo o 5 o nº da rosa, a última das flores do poema, temos a combinação entre a rosa e a cruz. Outra canção bastante “rosa-cruz” é a Canção Cínica. Começando pelo tema, é uma canção que usa a roda de fiar como metáfora para o sentido da vida. Não tem rosas, mas na alquimia, a rosa também pode ser representada por uma roda. O piano imita o movimento de uma roda de fiar (como em “Gretchen am Spinnrade” de Schubert). Mas a parte mais extraordinária desta peça está na introdução do piano, que expõe em 6 compassos 3 ciclos de 12 notas. O nº 12 é associado na numerologia ao ciclo dos signos do Zodíaco, e este número é uma constante na peça, na medida em que, nas partes do tema-refrão as frases apresentam uma divisão de 2 em 2 compassos, sempre com 12 notas no baixo do piano. Talvez este percurso pelo nº zodiacal fosse uma tentativa de ilustrar a roda de fiar, no seu sentido metafórico: o girar da vida (“gira gira, sem repouso”) em movimentos ascendentes e descendentes, em encadeamentos perfeitos e imperfeitos, mas que no fundo vão dar todos ao mesmo: “a morte só é constante” (mensagem final da canção. ) Terminamos este artigo com uma frase encontrada nos rascunhos de Salvini, que demonstra que ele, apesar de se sentir injustiçado em vida, acreditava que no futuro o seu trabalho seria reconhecido: O tempo virá. O reconhecimento popular é como a flor do cacto. Primeiro cresce a planta revestida de espinhos, mas um dia, no meio das agudas defesas, desabrocha a púrpura flor de mil pétalas e anuncia o fruto saboroso. É certo que quase sempre a flor da justiça precisa, para desabrochar, da terra sepulcral do laureado. E tão melindrosa planta, leva tanto tempo a medrar! (SALVINI, Espólio familiar, s.d.) Referências bibliográficas: CARVALHO, Delmar Domingos de. Mozart, esse desconhecido. Lisboa: Minerva, 2007 COSTA, A.M. Amorim da. Alquimia: um discurso religioso.Almeirim: Vega, 1999 FLORES, Francisco Moita. Os Cemitérios de Lisboa: entre o real e o imaginário. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1993 GUIMARÃES, Bertino Daciano. Bibliografia de Gustavo Romanoff Ruzitschka (G. R. Salvini) (1825-1894). Lisboa: Serenata da Arte Musical, 30 de Agosto de 1933. 353 Musicologia transatlântica: um momento para reflexão SALVINI, Gustavo Romanoff. Cancioneiro Musical Português. 2ªedição. Leipzig: Breitkopf & Härtel, 1884 SALVINI, G.R. As minhas lições de canto : notas ao "Vaccai" : para uso dos portugueses. Porto : Edição dos Herdeiros do autor, 1931. VALENTE, Tânia. A Língua Portuguesa no Canto Lírico: contexto histórico e relações entre técnica e fonética. USA: Creatspace Independent Publishing Platform, 2017. 354