Atas do Congresso Internacional
“Musicologia transatlântica:
um momento para reflexão”
Alejandro Reyes Lucero & David Cranmer
(coordenação)
Tomás Antunes Freire
(assistência editorial)
Caravelas - Núcleo de Estudos da História da Música Luso-Brasileira,
CESEM, FCSH-UNL
Lisboa, 2018
Edição online
“Musicologia transatlântica: um momento para reflexão”
Alejandro Reyes Lucero & David Cranmer (coordenação)
Tomás Antunes Freire (assistência editorial)
Capa: Rodrigo Teodoro de Paula
Caravelas - Núcleo de Estudos da História da Música Luso-Brasileira / Centro de Estudos de Sociologia
e Estética Musical (CESEM), FCSH-Universidade Nova de Lisboa
Lisboa, 2018
ISBN: 978-989-54310-2-1
Congresso – 27-29 de setembro de 2018, FCSH-Universidade Nova de Lisboa
Organização
Caravelas – Núcleo de Estudos da História da Música Luso-Brasileira
Museu Nacional da Música
Coordenação geral
David Cranmer
Alberto Pacheco
Rodrigo Teodoro de Paula
Comissão organizadora
Rodrigo Teodoro de Paula
Alberto Pacheco
Alejandro Reyes Lucero
Comissão científica
David Cranmer (coordenador), Alberto Pacheco, Ana Guiomar Rêgo Sousa, Ana Maria Liberal, Carlos
Alberto Figueiredo, Cristina Fernandes, Diósnio Machado Neto, Edite Rocha, Francesco Esposito,
Giorgio Monari, Javier Marín López, Luísa Cymbron, Luiz Guilherme Goldberg, Marcos Holler, Márcio
Páscoa, Mário Trilha, Paulo Kühl, Paulo Esteireiro, Ricardo Bernardes, Rodrigo Teodoro de Paula
Comissão artística
Ricardo Bernardes, Alberto Pacheco
Assistência durante o Congresso
António Baptista, Ricardo Pereira, Tomás Antunes Freire (fotógrafo)
Agradecimentos
Aos nossos oradores convidados: Cristina Magaldi (Towson University), Giorgio Monari (Università La
Sapienza, Roma), Javier Marín López (Universidad de Jaén), Rui Vieira Nery (FCSH-Universidade Nova
de Lisboa/Fundação Calouste Gulbenkian)
Membros dos painéis:
História Temática - Manuel Pedro Ferreira (FCSH-Universidade Nova de Lisboa) e convidados
Projeto Caravelas - David Cranmer, Zuelma Chaves (FCSH-Universidade Nova de Lisboa)
RISM - Sílvia Sequeira (Biblioteca Nacional de Portugal), Carlos Costa
Agradecemos ao Museu Nacional da Música pela cedência do espaço para a exposição de instrumentos
luso-brasileiros, assim como pelo acolhimento do concerto no dia 28 de setembro.
Musicologia transatlântica: um momento para reflexão
ÍNDICE GERAL
Apresentação
1
Programação
5
Textos apresentados
Globalização e o passado cosmopolita da música no Atlântico
Cristina Magaldi
9
As músicas luso-brasileiras do Antigo Regime: matrizes, trocas e sínteses
Rui Vieira Nery
10
A propósito de la Comisión de Trabajo “Música y Estudios Americanos”
(MUSAM/SEdeM): apuntes sobre una musicología trasatlántica desde la
perspectiva española
Javier Marín-López
35
Editando e interpretando recitativos de salão
Alberto Pacheco & Andréa Teixeira
63
A presença de Teresa Carreño em Portugal: as críticas e a relevância do
género
Alejandro Reyes Lucero
85
A Discordia Ajustada: a construção simbólica do Império nas efemérides
realizadas em Vila Boa De Goiás em fins dos setecentos e início dos oitocentos
Ana Guiomar Rêgo Souza
92
A trajetória de atrizes-cantoras no teatro musicado entre Brasil e Portugal na
transição do século XIX para o XX segundo a imprensa
Ângela Portela
108
“Catedrais e Teatros em pleno Atlântico": música para devoção e diversão a
bordo dos navios portugueses dos séculos XVI e XVII para o Brasil e Índia
Cristina Cota
109
A Carmen de Bizet: circulação e sua receção em Portugal e no Brasil até 1915
David Cranmer
110
Memória, realidade e projeção: 10 anos de estudos de significação musical
sobre a música na América Portuguesa
Diósnio Machado Neto
123
Musicologia transatlântica: um momento para reflexão
David Dias de Paiva: actividade musical em Braga e no Rio de Janeiro nos
finais do século XIX e primeira metade do século XX
Elisa Lessa
137
Relações musicológicas ibero-americanas: correspondência entre Curt Lange e
M. S. Kastner
Edite Rocha
151
Uma modinha no gabinete do diplomata: a monarquia lusitana na transição
dos séculos XVIII ao XIX
Felipe Novaes & Robson Bessa
152
Os hinos Ut queant laxis e Fortem virili pectore no contexto da produção
musical de Ignâcio António Ferreira de Lima no Fundo Musical da Sé de Évora
Filipe Mesquita de Oliveira
167
Alguns elementos de uma construção simbólica da nação brasileira: Um
enfoque da música da festa do Divino em Vila Boa De Goiás
Fernanda Albernaz do Nascimento Guimarães
184
Produção e práticas musicais religiosas na capela do hospital da Benemérita
Sociedade Portuguesa Beneficente do Pará: das fontes musicais históricas às
práticas do presente
Fernando Lacerda Simões Duarte
195
A Intervenção do Habitus Cortesão Bragantino na articulação da construção
simbólica das instituições musicais brasileiras no Rio de Janeiro oitocentista
Flávia Maria Cruvinel
211
Entre historiografia e etnografia musical latinoamericana: a música indígena
na obra de Jean de Léry (1536-1613)
Giorgio Monari
227
Lauriana atravessa o Atlântico: notícias de uma recepção
Guilherme Goldberg /Amanda Oliveira
235
Canção d’Além-Mar: memória e nomadismo do fado
Heloisa de A. Valente
247
O repertório brasileiro para violino solo de Flausino Valle (1894-1954) e
questões estéticas em seus 26 Prelúdios Característicos e Concertantes para
Violino Só
Leonardo Feichas
261
Musicologia transatlântica: um momento para reflexão
Fluxos e refluxos eurobrasileiros na expressão musicoreográfica do Maxixe:
Pressupostos, reflexões e Considerações
Luiz Carlos Almeida de Araujo
262
Brasil e Portugal: uma relação que perdura
Lutero Rodrigues
263
A construção do país moderno e a ocupação simbólica da música dos chorões:
Rio de Janeiro no final do século XIX e início do século XX
Magda de Miranda Clímaco
291
Teorias em contraponto: relendo os contextos e revendo a categorização de
tratados de música de Melo de Jesus (Bahia, 1760), Álvares Pinto (Recife,
1761) e Solano (Lisboa, 1790)
Mariana Portas de Freitas
307
O teatro de revista na Madeira (1869-1962): das companhias lisboetas,
portuenses e espanholas até à emergência de um repertório de autores
madeirenses
Paulo Esteireiro
331
A "Missa do Mestre Bernardino", o documento musical mais antigo do atual
estado do Paraná
Ricardo Bernardes
332
Música (e outros sons) para os festejos que celebraram os desposórios dos
Infantes de Portugal e Espanha, na Ilha de Moçambique (1786)
Rodrigo Teodoro de Paula
338
A existência de uma “esquerda" na Música de Concerto Brasileira
Teresinha Rodrigues Prada Soares
339
A luta pela causa da Língua portuguesa no Canto de G.R. Salvini
Tânia Valente
345
Entre rotas e derivas: o percurso dos trabalhos sobre a pronúncia do
português brasileiro cantado, nas reuniões temáticas de 2003 a 2018
Wladimir Matos
355
A luta pela causa da Língua portuguesa no Canto de G.R. Salvini
Tânia Valente
CESEM- NOVA/FCSH
CET-FLUL
tvalente@letras.ulisboa.pt
Resumo: O nome de Gustavo Romanoff
Salvini ainda é desconhecido para muitos
musicólogos, e a sua vida também. Na generalidade, sabe-se que foi cantor, professor de Canto,
compositor, que é autor de uma obra chamada Cancioneiro Musical Português e outra intitulada
As minhas lições de Canto: Método Vaccai para uso dos portugueses.
Muitos especulam a sua ligação à família imperial russa, por conta do nome “Romanoff”. Aos
poucos, começa-se a reconhecer o seu papel pioneiro ao pôr em música textos de autores
portugueses, numa tentativa de criar o “Kunstlied” português.
Também a sua visão do ensino do Canto, que fazem dele um professor à frente do seu tempo,
continua a ser divulgada. No entanto, o talento artístico de Salvini extravasava para outras artes,
que não só a Música. O mesmo acontecia com o seu conhecimento científico. Mas a faceta mais
extraordinária da vida de Salvini terá sido a sua luta apaixonada pela causa da Língua
Portuguesa no Canto no Lírico. Morreu cego, pobre, e foi sepultado numa “gruta” carregada de
simbolismo. Porém, até ao fim dos seus dias, não perdeu a esperança de que no futuro as lutas,
martírios, desalentos de um artista visionário em prol de uma reforma do ensino do Canto e da
música portuguesa seriam finalmente reconhecidos.
Palavras- chave: Salvini, música portuguesa, Canto, rosa-cruz.
Salvini nasceu em Prauss, uma vila na antiga Polónia Prussiana. Muitas biografias
consideram-no polaco, mas Salvini era na verdade alemão, e o alemão a sua língua materna. O
seu nome de baptismo era Gustav Romanoff Ruzitska (que significa pequena rosa. Salvini é
uma espécie de nome artístico, que adoptaria mais tarde). Não era um filho bastardo de Nicolai
I, como dizem alguns, por conta do nome Romanoff. Salvini teve um pai, chamado Johann
Ruzitschka, que era bailio de Prauss.
Em 1845 inicia a sua formação em canto em Breslau, uma cidade também na
Polónia Prussiana. Biografias oficiais dizem que
fugiu da tua terra natal acossado por
Musicologia transatlântica: um momento para reflexão
perseguições políticas, cujos motivos desconhecem-se. Passa por várias cidades europeias. Da
sua passagem por Viena surge como testemunho um desenho datado de Junho de 1847, onde
Salvini aparece a tocar um trio de Beethoven, ao lado do violinista Dauer. Chegado a Itália,
conserva-se em Florença até Novembro de 1848, data em que é contratado pelo empresário
Bonola de Milão para cantar como 1º tenor no Teatro de Reggio di Parma. É neste teatro que
“Romanoff” começa a sua carreira teatral, que viria a incluir a participação em óperas de
Donizetti e Bellini.
Em 1859, após uma passagem por França, chega a Portugal para cantar no Real
Teatro de São João no Porto, contratado pela empresa Laneuville. Desta empresa fazia também
parte Elisa Hensler (futura esposa consorte do Rei D. Fernando II e Condessa d’Edla). Debuta
neste teatro a 17 de Outubro na ópera Beatrice di Tenda de Bellini, e já com o nome artístico
“Salvini”. É no Real Teatro de São João que Gustavo Salvini termina a sua carreira, pois,
durante a ópera Os Puritanos de Bellini, um incidente fá-lo perder a voz.
Após este incidente, Salvini fixa residência no Porto, onde trabalha como professor
de canto, de piano, e solfejo e até de esgrima. Como professor de Canto, Salvini desenvolve
uma carreira muito prestigiada. De entre os seus alunos, contavam-se o cantor Maurício
Bensaúde (o primeiro cantor lírico português a actuar no MET de Nova Iorque!), muitas pessoas
de famílias ilustres do Porto, de entre as quais as irmãs Berta e Joana Lehmann, às quais Salvini
viria a dedicar canções do seu Cancioneiro Musical Português. Uma dessas canções, dedicada
Joana Lehmann foi “Oh! Rosas Purpurinas”, um cântico nupcial de natureza religiosa,
destinado a reivindicar para os noivos a bênção dos deuses, provavelmente escrito para o
casamento de Joana Lehmann com o empresário João Henrique Andresen (em 1883). E deste
casamento nasceriam 9 filhos, vários netos, e uma neta muito especial. Joana Lehmann
Andresen foi avó da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen.
Há época da chegada de Salvini a Portugal havia um domínio incontestado da ópera
Italiana, tanto sobre qualquer forma de canto em Língua Portuguesa, como também sobre a
música instrumental. Mas Salvini, conhecedor e falante de vários idiomas, rapidamente aprende
e se apaixona pela língua portuguesa. Por isso, não entendia o porquê dos portugueses não
cantarem na sua língua, como exprime nesta frase, retirada do Prólogo do seu Cancioneiro :
“Os dillettanti portugueses gostam de cantar em italiano, do qual às vezes não
entendem palavra, e não só não têm remorsos de abandonar a sua língua às
cantigas do povo, mas não se aventurariam mesmo a cantar n’ell um romance
nos nossos salões e concertos! Ódio, amor, alegria, tristeza (..) a língua sabelhes exprimir tudo isto; mas para o canto?... Nem palavra em tal!...é pouco
lógico. (SALVINI, 1866)
346
Musicologia transatlântica: um momento para reflexão
Salvini, no papel de professor de canto e compositor, enceta uma luta para
“Conseguir que os portugueses cantem na sua língua” (palavras do neto Anselmo de Morais
Sarmento, no Prefácio de As minhas lições de Canto, 1931). Para satisfazer o seu intento,
Salvini começa por escrever e publicar em 1865 o Romanceiro Musical, uma compilação de
canções sobre textos não apenas em português, pois muitos apresentam-se em versão bilingue
italiano/ português, ou espanhol/português. Existe mesmo uma canção em 5 idiomas (italiano,
português, francês, alemão, inglês). Os autores dos textos escolhidos foram Camilo CasteloBranco, Luís Augusto Palmeirim, Alexandre Braga, Barbosa Silva, H. Teixeira, Al. Lido, etc.
O objectivo desta edição poliglota era mostrar a adaptabilidade da língua portuguesa ao canto
lírico, através de uma comparação com outras línguas. Numa 2ª edição, Salvini abandonaria a
ideia do estudo comparativo, e apresentaria canções apenas em português. 1 O objectivo maior
de Salvini era tentar criar a canção de câmara erudita em língua portuguesa .
Paralelamente à sua actividade de professor de canto e compositor, Salvini tem
uma outra actividade menos conhecida como fotógrafo. Teve uma casa de fotografia na Rua do
Almada, chamada “Salvini & Co”. De entre os seus clientes, contavam-se vários membros da
comunidade inglesa (que também eram seus alunos de Canto) , e a jovem Carolina Michaelis
de Vasconcelos, retratada por Salvini, na altura do seu casamento com o musicólogo Joaquim
de Vasconcelos.
Mas na mesma Rua do Almada, no nº 122, existia a loja de um outro fotógrafo, bem mais
conhecido, o alemão Karl Emil Biel.
Depois de fechar a sua casa de fotografia, Salvini vira-se para a reedição das
canções que editara em 1865, com o título de Romanceiro Musical, numa nova edição, sem o
carácter poliglota da primeira, que receberia o título de Cancioneiro Musical Português. E a
primeira pessoa a quem recorre para editar esta nova obra é justamente Emilio Biel, que também
era editor. Mas o negócio não corre bem. No rascunho de uma carta ao amigo Zeferino, aparece
uma frase, em alemão, que diz que “Biel contestou a conta dos meus propectos”2( SALVINI,
Espólio familiar). No mesmo rascunho de carta, diz Salvini: “No ter-me desligado do Biel,
libertei-me de um Vampiro, e fiquei com a liberdade de acção; apesar que isto me tem atrasado
1
De sublinhar que, apesar de Salvini ter sido o primeiro compositor a musicar estes poetas, que aqui citamos,
existe uma obra de 1853 que ficou conhecida como as “Estreias Poético-Musicais”. Nesta obra vários
compositores, de entre os quais Francisco Norberto dos Santos Pinto, musicaram poesia de António Feliciano
Castilho. Mas estas foram escritas com o intuito de serem hinos de instrução, e não com a intenção de criar o
“Lied” português, como era o caso de Salvini.
2
Biel hat mir meiner Prospectus die Rechnung protestiert.
347
Musicologia transatlântica: um momento para reflexão
um poucochinho e eu ter pressa de completar as 150 assinaturas, contudo não lastimo o facto
consumado.”(SALVINI, Espólio familiar, s.d.).
Falhado o negócio com Biel, Salvini procura um novo editor, mas encontra
dificuldades em encontrar apoios para o Cancioneiro. Para começar, ele precisa de 150
assinaturas para cobrir os gastos e garantir esta edição, e para isso envia, propectos a várias
pessoas de influência. Numa carta a um destinatário desconhecido, diz “In manus tuas, Domine,
comendo Romanceirum meum. Machado? Os Andrades? Dirigi uma carta a Ramalho, outra a
Teófilo. Eu estou por tudo o que o amigo me dirá”. (Espólio familiar). A carta (em francês) que
Salvini dirige a Ramalho Ortigão, que aqui reproduzimos (Fig.3) , é um apelo de Salvini ao
apoio de Ortigão, mas também de Teófilo Braga e de outros escritores da mesma geração à
causa da língua portuguesa na música:
J.J. Rousseau em França, Wieland, Lessing na Alemanha trataram há 100
anos, aquela que constituí hoje a minha iniciativa em Portugal. Entro na arena
como um gladiador. “Ave! César…E segundo o Evangelho de São Lucas: In
manus tuas comendo Romanceirum meum.3 (SALVINI, Espólio de Ramalho
Ortigão, carta de 1883).
Outra dessas pessoas de influência, a quem Salvini escreve, é Carlos Henrique
Kendall, do Orpheon Portuense, que decide devolver a Salvini os prospectos que ele lhe
oferecera, alegando que haveria “verdadeiros amadores, para os quais não há necessidade de
empenhos para que fiquem com exemplares”. A isto Salvini dá uma longa resposta, da qual
apenas citaremos um excerto:
Se penso que vivo numa terra, onde o merecimento dos Lusíadas não grangeou
a Camões mais que o hospital e 300 anos depois uma apoteose penitenciaria
nacional, incluindo ainda assim enorme prejuízo do festeiro literário (Biel), e
se adicionar à história Cristóvão Colombo, zombado dos sabichões do seu
tempo, escarnecido e vilipendiado de 1000 intrigas – não vejo que uma mui
débil esperança que o merecimento do Romanceiro possa ser apreciado
espontaneamente nos verdadeiros amadores para o possuir.(SALVINI,
Espólio familiar, s.d.)
“J.J. Rousseau en France, Wieland, Lessing en Allemagne ont traité il y a cent ans, ce qu’aujourd’hui constitut
mon iniziative en Portugal. J’entre à l’arene comme un gladiateur. “Ave! César.. Et selon l’evangile de St. Luc.
In manus tuas comendo Romanceirum meum”. Não traduzimos a última frase, por ser uma citação de uma citação
alterada do título da Sonata VII de Haydn, “Pater, in manus tuas commendo spiritum meum”, na qual “spiritum”
foi substituído por “romanceirum”.
3
348
Musicologia transatlântica: um momento para reflexão
Ao fim de vários anos de luta, Salvini consegue finalmente editar o Cancioneiro
em 1884, através da David Corazzi de Lisboa, com impressão feita da Alemanha pela
“Breitkopf und Härtel” de Leipzig.
Editado o livro, era preciso que as pessoas o comprassem e, sobretudo, se
interessassem pela música que Salvini fez. Não sentindo em Portugal o apoio que achava que a
sua iniciativa merecia, Salvini decide escrever a Sua Alteza Real, o Príncipe Regente em nome
de El-Rei. O nome do Rei não é mencionado, mas deduzimos, pela forma de tratamento e outras
razões mais místicas, que se tratasse de D. Fernando II:
…a demora do deferimento da sua suplica possa também encadear-se com o
facto de a aludida iniciativa não ter merecido a V.A.R aquele benévolo
acolhimento e adesão que a lógica dos factos e a firme convicção da verdade
insinuam e justificam-lhe, aumentando o remorso de ter tido a precipitada
confiança e esperança de ver desabrochar sob a égide de V.A.R esta
“Lotosblume” da música no terrão lusitano, onde não lhe faltaria o humus para
florescer e dar fruto, se não fosse a desprotecção e indiferença que lhe secam
as raízes (…). Robustecendo a perdida esperança com o grito da verdade
oprimida “e pur se muove”4, julga o requerente que a história da música em
Portugal registará nas suas páginas como corolário e lenitivo póstumo a todos
os sacrifícios, martírios, lutas, obstáculos e desalentos que tentaram sufocar
uma iniciativa que o próximo futuro transformará numa verdade vulgar.
(SALVINI, Espólio familiar, s.d.)
Noutro rascunho desta carta, Salvini faz uma alusão a Gluck e a Wagner: “ Foi a coluna de
fogo que conduziu Gluck e a 100 anos de distância Wagner no mesmo caminho de combate
musical, através de um mar de intrigas – e ambos entraram na terra prometida, a utopia de hoje
será uma realidade no dia de amanhã”(SALVINI, espólio familiar, s.d.). Esta coluna de fogo é
uma imagem bíblica de uma coluna que iluminou os hebreus no caminho até a terra prometida.
Não se sabe se o rei terá respondido a Salvini, e o facto é que D. Fernando morre em 1885,
portanto, ainda que quisesse dar apoio a Salvini, a sua saúde já não o teria permitido
possivelmente. Destacaríamos aqui o nome de Wagner, nome importante ligado ao lado místico
de Salvini.
Depois do Cancioneiro, Salvini lança-se numa nova obra, bastante ambiciosa: As
minhas lições de Canto: notas ao Vaccai para uso dos portugueses. O título remete-nos
naturalmente para o Método de Canto de Vaccai, e de facto, esta obra de Salvini, contém as
peças de Vaccai, mas adaptadas à Língua Portuguesa.
No entanto, ela contém muito mais
coisas. Para Salvini, esta obra seria o seu testamento musical, por isso, ele queria o melhor para
4
Citação de Galileu
349
Musicologia transatlântica: um momento para reflexão
ela. Na capa surge a indicação de que a obra é dedicada ao Príncipe D. Carlos e adoptada pelo
Conservatório”. E aqui temos que fazer uma correcção: o método de Salvini não chegou a ser
adoptado pelo Conservatório. Salvini tinha esperança que fosse, e para tal, dirigiu uma carta ao
poeta Luís Augusto Palmeirim, que era então director do Conservatório, explicando que se este
método, o único em vernáculo, fosse adoptado pelo Conservatório, ele poderia ser adoptado em
todo o país.
Na mesma carta, Salvini ainda expôs a Palmeirim as partes que compunham este método,- e
que incluíam descrições da anatomia e fisiologia da voz, respiração, timbre escuro/timbre claro,
a higiene e o vestuário do cantor, etc., - numa tentativa de demonstrar-lhe que se tratava de uma
obra complexa e completa. Porém, o seu apelo não teve o acolhimento desejado junto à direcção
do Conservatório.
Olhando para o livro, uma das coisas mais fascinantes são os desenhos anatómicos,
de uma grande precisão. Estes demonstram que Salvini tinha um conhecimento científico
profundo da voz, comparável ao de um médico.
Para além da parte da anatomia, Salvini queria também fazer um projecto de
método prático de pronuncia das palavras portuguesas no Canto. Para ele, era indispensável
adoptar a Língua Portuguesa desde os primeiros exercícios práticos de silabação, pois “num
idioma estrangeiro como hão-de o mestre e o discípulo fazer as suas observações e identificarse com a estética musical?” (SALVINI, 1931).
Salvini entra também no campo da Linguística e faz uma, “ classificação das
consoantes”, segundo a sua constrição e ponto de articulação, pois para ele esta classificação
“tem a mais alta importância no canto” (SALVINI, espólio familiar, s.d.). E mais uma vez,
Salvini volta a ser pioneiro, quer por ter sido o primeiro a tentar sistematizar as regras de
pronúncia da Língua Portuguesa a pensar no Canto, quer porque esta obra, com a sua vertente
científica e pedagógica, poder ser considerada como o primeiro tratado científico sobre VOZ
alguma vez escrito em Portugal, e para uso os portugueses.
Porém, apesar dos esforços de Salvini, ele não conseguiu apoios para publicá-la
em vida. Esta obra só viria a ser publicada postumamente em 1931, e bem assim, só
parcialmente.
Outra coisa que torna esta obra extraordinária são os autores que Salvini cita.
Nomeando só alguns: Antoine Ferrein, o homem que inventou o termo "cordas vocais",
comparando as pregas vocais com as cordas de um violino; Albert Magnus, ou Alberto o
Grande, um sacerdote alemão, filósofo, escritor, astrólogo e teólogo católico venerado
350
Musicologia transatlântica: um momento para reflexão
como santo, que ficou conhecido como “o santo patrono dos cientistas” e também como “o pai
da pedra filosofal”, cujo segredo teria entregue ao seu aluno São Tomás de Aquino antes de
falecer; Johann Kasper Lavater, pastor, poeta, teólogo, filósofo, entusiasta do magnetismo
animal na Suíça. É considerado o fundador da fisiognomonia; Stephen de la Madeleine, cantor
francês, professor de canto e autor de “Théories complètes du chant”, e que era um seguidor de
Manuel Garcia, um professor cantor que inventou o laringoscópio em 1854 e tornou-se
conhecido como o primeiro professor científico; Christoph Hufeland, físico e patologista
alemão e fundador da Macrobiótica (Salvini fala de Hufeland a propósito da alimentação dos
cantores, portanto, mais uma vez ele estava bastante avançado para o seu tempo). A maioria
dos autores citados por Salvini, exceptuando talvez Garcia e Stephen de la Madeleine, têm uma
coisa em comum, que é um interesse pela Alquimia, ou mesmo uma ligação a organizações
secretas, onde a Alquimia era uma prática comum. E aqui entramos no lado oculto ou ocultista
de Salvini.
No seu jazigo, que está no Cemitério de Agramonte, no Porto, temos uma gruta,
uma imagem associada a rituais iniciáticos. Não existe aqui uma cruz. Mas o que representa
realmente a cruz no ideário cristão? A cruz representa morte e ressurreição. (FLORES, 1993)
E esta gruta também representa morte e ressurreição, não no ideário cristão, mas no contexto
da Alquimia. A gruta é um símbolo alquimista de morte e renascimento, lugar da busca da
verdade num útero simbólico, de onde brota a matéria-prima, os minerais e os metais usados na
alquimia. A gruta é também o lugar onde Hermes Trismegisto, alquimista e o mítico fundador
da química, terá sido enterrado em conjunto com “Tábua Esmeralda”, uma pedra, onde ele terá
mandado gravar o essencial dos seus ensinamentos. (COSTA, 1999) . Assim sendo, esta gruta
poderá ser a personificação de uma faceta desconhecida de Salvini. Mas ela não está completa,
pois para além da gruta, existia neste jazigo um busto de Salvini e, mais importante, uma roseira.
Por sua vez, as rosas levam-nos para outro documento.
Numas páginas em italiano dirigidas ao senhor Romanoff que encontramos no seu espólio, a
primeira coisa que captou a nossa atenção foram uns símbolos com as palavras “Corpus Anima
Spiriti”. Ao realizar-se uma pesquisa destes termos aparece recorrentemente a expressão “RosaCruz”. Ainda neste documento aparece, numa outra página, uma citação do frontispício de
“Clavis Artis”, um tratado de alquimia do final do séc.17-principio do sé. 18, que terá sido
escrito pelo persa Zoroastro (ou Zaratrusta). Aparece também uma referência a Zanoni, o título
do mais famoso romance ocultista do escritor inglês Edward Bulwer-Lytton (1803-1873). Foi
editado pela primeira vez em 1842, dizendo a informação de capa apenas que o seu autor (então
351
Musicologia transatlântica: um momento para reflexão
anónimo) também escrevera outros dois romances, nomeadamente Rienzi, obra em que Richard
Wagner se inspirou para a sua ópera homónima. O livro tem como pano de fundo os princípios
da Ordem Rosa-cruz, através de uma história de amor entre Zanoni, um ser imortal, e uma
cantora de ópera. A música é o tema central de todo o primeiro capítulo do romance. O escritor
Lytton foi um rosa-cruz. Richard Wagner também terá sido pelo menos bastante influenciado
pelos princípios Rosa-cruz. E Salvini não era um homem comum, era um homem muito à frente
do seu tempo e do país que o acolheu. Talvez por isso não tenha sido compreendido pelos seus
contemporâneos.
Os rosa-cruz tem como princípio lutar pela evolução da humanidade e pela
elevação do homem. Uma das maiores lutas de Salvini era, segundo as suas palavras, uma luta
pelo progresso da música em Portugal. Disse ele: “Meu fim é de arrastar os compositores de
música para uma reforma tão vivamente desejada, e não desistirei de fazer e continuar a fazer
novas tentativas para realizar o meu fim e se olivar o meu assentimento.” (SALVINI, Espólio
familiar).
No entanto, Salvini nunca se afirmou como rosa-cruz, nem poderia fazê-lo, pois o
primeiro voto do iniciado é o do silêncio. Nenhum verdadeiro irmão se intitula, publicamente,
“Rosa-cruz”. Os iniciados, e só eles, conhecem aqueles que, no passado, foram rosa-cruzes,
porque nas suas obras há sinais, palavras e frases indicadoras dessa ligação, embora estejam
ocultas aos profanos. Uma dessas pessoas, Bach, terá comunicado esta filiação à maneira
barroca, em código, utilizando a linguagem cifrada dos números em toda a sua obra. Salvini
também deixou pistas nos seus textos (nomeadamente as já referidas em As minhas lições de
Canto, onde alguns dos autores citados eram alquimistas, iluminatti ou mesmo rosa-cruzes) , e
quiçá também na sua música, para além de o tema das rosas ser recorrente no Cancioneiro. Por
exemplo, na já mencionada canção “Oh!Rosas purpurinas”, canção dedicada a Joana Lehmann
Andresen, avó de Sophia de Mello Breyner, temos 42 compassos. A soma dá o nº 6, nº de
Afrodite e de Vénus, deusas do amor, e de facto a canção é um epitalâmio, isto é, um hino
nupcial. Em “Queres a flor, canção com poema de Camilo Castelo-Branco, mas cujo texto foi
alterado por Salvini nalgumas passagens, encontramos várias leituras numerológicas possíveis,
das quais destacamos estas. Começamos pela presença do nº 4 da tonalidade (lá bemol maior)
, dos primeiros intervalos da melodia da voz (4as perfeitas), e nas 4 flores que o sujeito poético
entrega a alguém, sendo a última uma rosa. O nº4 está associado aos 4 elementos, fogo, água,
ar e terra, e julgamos possível poder associar estes mesmos elementos a cada uma das flores (a
saber, saudade, martírio, goivo e a rosa) do poema de Camilo. E o nº 4 é também o nº da cruz.
Combinado com o nº 5, número de partes em que se divide a peça e a duração total em minutos
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Musicologia transatlântica: um momento para reflexão
da mesma, e sendo o 5 o nº da rosa, a última das flores do poema, temos a combinação entre a
rosa e a cruz.
Outra canção bastante “rosa-cruz” é a Canção Cínica. Começando pelo tema, é
uma canção que usa a roda de fiar como metáfora para o sentido da vida. Não tem rosas, mas
na alquimia, a rosa também pode ser representada por uma roda. O piano imita o movimento
de uma roda de fiar (como em “Gretchen am Spinnrade” de Schubert). Mas a parte mais
extraordinária desta peça está na introdução do piano, que expõe em 6 compassos 3 ciclos de
12 notas. O nº 12 é associado na numerologia ao ciclo dos signos do Zodíaco, e este número é
uma constante na peça, na medida em que, nas partes do tema-refrão as frases apresentam uma
divisão de 2 em 2 compassos, sempre com 12 notas no baixo do piano. Talvez este percurso
pelo nº zodiacal fosse uma tentativa de ilustrar a roda de fiar, no seu sentido metafórico: o girar
da vida (“gira gira, sem repouso”) em movimentos ascendentes e descendentes, em
encadeamentos perfeitos e imperfeitos, mas que no fundo vão dar todos ao mesmo: “a morte só
é constante” (mensagem final da canção. )
Terminamos este artigo com uma frase encontrada nos rascunhos de Salvini, que
demonstra que ele, apesar de se sentir injustiçado em vida, acreditava que no futuro o seu
trabalho seria reconhecido:
O tempo virá. O reconhecimento popular é como a flor do cacto. Primeiro
cresce a planta revestida de espinhos, mas um dia, no meio das agudas defesas,
desabrocha a púrpura flor de mil pétalas e anuncia o fruto saboroso. É certo
que quase sempre a flor da justiça precisa, para desabrochar, da terra sepulcral
do laureado. E tão melindrosa planta, leva tanto tempo a medrar! (SALVINI,
Espólio familiar, s.d.)
Referências bibliográficas:
CARVALHO, Delmar Domingos de. Mozart, esse desconhecido. Lisboa: Minerva, 2007
COSTA, A.M. Amorim da. Alquimia: um discurso religioso.Almeirim: Vega, 1999
FLORES, Francisco Moita. Os Cemitérios de Lisboa: entre o real e o imaginário. Lisboa:
Câmara Municipal de Lisboa, 1993
GUIMARÃES, Bertino Daciano. Bibliografia de Gustavo Romanoff Ruzitschka (G. R. Salvini)
(1825-1894). Lisboa: Serenata da Arte Musical, 30 de Agosto de 1933.
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SALVINI, Gustavo Romanoff. Cancioneiro Musical Português. 2ªedição. Leipzig: Breitkopf
& Härtel, 1884
SALVINI, G.R. As minhas lições de canto : notas ao "Vaccai" : para uso dos portugueses.
Porto : Edição dos Herdeiros do autor, 1931.
VALENTE, Tânia. A Língua Portuguesa no Canto Lírico: contexto histórico e relações entre
técnica e fonética. USA: Creatspace Independent Publishing Platform, 2017.
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