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UFBA !"#!$%& '(() %*%+&!,-! !.&/0/*1!$! !% /5 $5-*-01&!34% $! 2&0% $/ +&!$2!34% *-#/&0-$!$/ /$/&!" $! !6-!7 8%5% &/92-0-1% .!&8-!" .!&! %:1/*34% $% +&!2 $/ !86!&/" /5 $5-*-01&!34% &-/*1!$%& &%, !"#!$%& '(() & %0; !&8/"% !*1!0 A todos os filhos gerados a partir do grande útero chamado Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê. AGRADECIMENTOS Sinceros e especiais... A minha mãe Beatriz, Iyabá que me deu a vida, por sua dedicação e amor incondicional. A Marlon Mar, meu amigo, que sempre me abre os olhos para outras formas de entender a vida e pelo apoio fundamental na construção desse trabalho. A Cláudio Pereira, mestre generoso, pelas aulas de etnografia nas tardes de quintafeira no Centro de Estudo Afro Orientais da UFBA. Ao querido Professor Genauto França, por ter me apresentado a Antropologia nas Organizações e todas as possibilidades de um olhar ampliado para a Administração. A minha amiga Suzana Moreira, pelo apoio metodológico e a solidariedade intelectual. A Alexandre Fiore Cheuen pela sensível ajuda na escolha do título. A Marcelo Fraga, pela generosidade e auxílio na normalização. A Fernanda Márcia pelo apoio e incentivo. Aos professores da EAUFBA, em destaque Nelson Oliveira, Reginaldo Santos, Neide Marques, Suzana Moura, Carlos Milani e Marcelo Dantas pela contribuição imensurável à minha formação. A Paula Schommer e Profªa Tânia Fischer, pela oportunidade de ter sido bolsista de iniciação científica no CIAGS/NEPOL. Aos Babalorixás Everaldo Cardoso Bispo e Augusto César Lacerda e a Iyá Elza Bahia de Araújo, por me abrirem as portas de seus terreiros. A todos aqueles que eu entrevistei, pela confiança em prestarem seus depoimentos e possibilitarem essa experiência enriquecedora e gratificante, da maior importância para o meu crescimento como ser humano e profissional. Aos queridos amigos e colegas de faculdade, por todos os momentos de trabalho, os grupos de estudo e a alegria que eu vivi com vocês durante os cinco anos que passei na Universidade. Dessas civilizações, nos foram legadas dimensões essenciais incorporadas à vida cotidiana: uma relação privilegiada com a natureza, conhecimento das plantas e das folhas, valores que lhes foram conferidos pela ancestralidade; o sentido de respeito pela família extensa, à qual são permanentemente incorporados novos e velhos parentes sob as mais diversas formas de adoção; o recurso a uma divindade suprema pela intermediação dos ancestrais; a confiança na vida, estruturada em esperança mítica; uma solidariedade cotidiana, que se nutre na responsabilidade pelo compromisso assumido com a palavra dada por amizade, pelo respeito ou pela expectativa de troca; essa alegria de viver, que ilumina o cotidiano e se intensifica em dias de festa; musicalidade e expressão rítmica próprias do rigor das cerimônias rituais, onde se reza pela cantiga e se “vira no santo” pela força da fé e com participação comunitária; essa convenção social estrategicamente assumida, como se fôra uma adesão oficial à religião hegemônica, ditada pela sociedade colonizadora, que hoje se traduz em aportes culturais, o que na realidade é uma estratégia de convivência. Tudo isso é vivido de um lado do mesmo mundo, onde o outro lado passa pelos sistemas dominantes e seus desdobramentos que tem por referência o Ocidente, sua cultura e seus princípios. (SIQUEIRA, 1998, p. 34-35). RESUMO A estrutura hierárquica e os símbolos de poder são apresentados neste estudo através de descrições, depoimentos e imagens extraídos dos terreiros de Candomblé e de seu povo. Buscar-se-á, pois, deslindar o cotidiano das relações de poder entre os agentes, focalizando práticas, saberes e História enquanto experiências constituintes dos seus modos de vida. Estas experiências se dão num cenário marcado por autoridade, preceito e muito segredo constituindo-se num ambiente organizacional mítico e simbólico. A realização deste estudo se justifica pela pouca visibilidade dada, por parte da teoria organizacional, à abordagem do poder nessas organizações caracteristicamente baianas e tradicionais do ponto de vista religioso e cultural. Assim, com o intuito de conhecer o poder nesse universo e como estas pessoas percebem as suas próprias experiências, utilizamos o estudo exploratório e a observação participante como instrumentos metodológicos à condução da pesquisa. Palavras-chave: Poder; Hierarquia; Candomblé; Organização; Terreiro. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Mãe Menininha do Gantois 18 Figura 2 – Iyalorixá Cleusa Millet 18 Figura 3 – Iyalorixá Carmem 19 Figura 4 – Iyalorixá Elza Bahia de Araújo 19 Figura 5 – Ilê Axé Omon Ewá 20 Figura 6 – Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê 20 Figura 7 – Babalorixá Everaldo Bispo 20 Figura 8 – Ilê Odé Axé Oba Omi 20 Figura 9 – Descendência Religiosa nos terreiros 23 Figura 10 – Barracão do Ilê Ode 27 Figura 11 – Barracão do Ilê Omon Ewá 27 Figura 12 – Babá Augusto César 35 Figura 13 – Sr. Nadinho, alabê do Gantois 35 Figura 14 – Ebômi Rosinha 46 Figura 15 – Dofona de Oxum 46 Figura 16 – Iaô dando dobale 48 Figura 17 – Iaôs sentados na esteira 49 Figura 18 – Detalhe: contas 51 Figura 19 – Iaô de Ogum 51 Figura 20 – Detalhe: Xérem 52 Figura 21 – Adjá 52 SUMÁRIO 1 1.1 1.2 2 2.1 2.2 2.3 3 3.1 3.2 3.2.1 3.2.2 3.2.3 3.2.4 3.2.5 3.2.6 3.2.7 3.2.8 3.2.9 4 4.1 4.2 4.3 4.3.1 4.3.2 4.3.3 4.3.4 4.3.5 4.3.6 4.3.7 4.3.8 4.3.9 5 CONSIDERAÇÕES INICIAIS .............................................................. O Nascimento da Idéia ............................................................................ O Arcabouço Teórico .............................................................................. EGBÉ ÀIYÉ: A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE ............................... Filhos D’África ........................................................................................ Linhagem Religiosa e Descendência nos Terreiros .............................. O Poder Feminino ................................................................................... ILÊ AXÉ: A ORGANIZAÇÃO-TERREIRO ....................................... A Organização-terreiro ........................................................................... Algumas Fontes de Poder ....................................................................... Autoridade Formal ................................................................................... Uso da estrutura organizacional, regras e regulamentos ....................... Controle do processo de tomada de decisão ............................................ Controle do conhecimento e da informação ........................................... Controle dos limites .................................................................................. Alianças interpessoais, redes e controle da “organização informal” .... Simbolismo e administração do significado ............................................ Sexo e administração das relações entre os sexos ................................... O poder que já se tem ............................................................................... HIERARQUIA E EXPRESSÕES DE PODER .................................... A hierarquia nos Terreiros ..................................................................... Sobre Ogãs e Iyarobás ............................................................................ Símbolos e Expressões de Poder ............................................................ A senioridade ............................................................................................ O conhecimento ........................................................................................ O xirê ......................................................................................................... Os cumprimentos ...................................................................................... O comportamento ..................................................................................... A obrigação de sete anos .......................................................................... Adereços e vestimentas ............................................................................. Instrumentos evocatórios ......................................................................... As cadeiras do barracão ........................................................................... CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................. REFERÊNCIAS ...................................................................................... 08 08 09 10 11 14 20 22 22 26 26 27 28 28 30 31 31 32 33 35 35 37 42 43 44 45 45 46 48 48 49 50 51 53 ?@' -5A/07 !2"% #/&1%* %1! +:; B-C;D5!*208&-1%E 6-/&!&92-! / .%$/& /5 1/&&/-&%0 $/ 8!*$%5:"; /F/ !+G *! !6-! = !2"% #/&1%* %1! -5A/0 H '(() (((, I J(85 %.-! $/ 8%5.21!$%& K.&-*1%21K0LL %*%+&!,-!K+&!$2!34%L H 08%"! $/ *-#/&0-$!$/ /$/&!" $! !6-!7 $5-*-01&!34%7 '(() &-/*1!34% &%, & %0; !&8/"% !*1!07 /.!&1!5/*1% M /"-+-4% H 2"12&! H !6-! !*$%5:"; ' !*$%5:"; ? !*$%5:"; /&&/-&%0 $/ !6-! J !*$%5:"; /F/ !+G +:; B-C; 6-/&!&92-! / .%$/& /5 1/&&/-&%0 $/ 8!*$%5:"; F/F/ *!+G *! !6-! -5A/07 !2"% #/&1%* %1! H 'NN )O -86! !1!"%+&<,-8! = -:"-%1/8! 0./8-!"->!$! /5 /0/*#%"#-5/*1% / /014% %8-!" UFBA !"#!$%& '(() %*%+&!,-! !.&/0/*1!$! !% /5 $5-*-01&!34% $! 2&0% $/ +&!$2!34% *-#/&0-$!$/ /$/&!" $! !6-!7 8%5% &/92-0-1% .!&8-!" .!&! %:1/*34% $% +&!2 $/ !86!&/" /5 $5-*-01&!34% &-/*1!$%& &%, !"#!$%& '(() & %0; !&8/"% !*1!0 A todos os filhos gerados a partir do grande útero chamado Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê. AGRADECIMENTOS Sinceros e especiais... A minha mãe Beatriz, Iyabá que me deu a vida, por sua dedicação e amor incondicional. A Marlon Mar, meu amigo, que sempre me abre os olhos para outras formas de entender a vida e pelo apoio fundamental na construção desse trabalho. A Cláudio Pereira, mestre generoso, pelas aulas de etnografia nas tardes de quintafeira no Centro de Estudo Afro Orientais da UFBA. Ao querido Professor Genauto França, por ter me apresentado a Antropologia nas Organizações e todas as possibilidades de um olhar ampliado para a Administração. A minha amiga Suzana Moreira, pelo apoio metodológico e a solidariedade intelectual. A Alexandre Fiore Cheuen pela sensível ajuda na escolha do título. A Marcelo Fraga, pela generosidade e auxílio na normalização. A Fernanda Márcia pelo apoio e incentivo. Aos professores da EAUFBA, em destaque Nelson Oliveira, Reginaldo Santos, Neide Marques, Suzana Moura, Carlos Milani e Marcelo Dantas pela contribuição imensurável à minha formação. A Paula Schommer e Profªa Tânia Fischer, pela oportunidade de ter sido bolsista de iniciação científica no CIAGS/NEPOL. Aos Babalorixás Everaldo Cardoso Bispo e Augusto César Lacerda e a Iyá Elza Bahia de Araújo, por me abrirem as portas de seus terreiros. A todos aqueles que eu entrevistei, pela confiança em prestarem seus depoimentos e possibilitarem essa experiência enriquecedora e gratificante, da maior importância para o meu crescimento como ser humano e profissional. Aos queridos amigos e colegas de faculdade, por todos os momentos de trabalho, os grupos de estudo e a alegria que eu vivi com vocês durante os cinco anos que passei na Universidade. Dessas civilizações, nos foram legadas dimensões essenciais incorporadas à vida cotidiana: uma relação privilegiada com a natureza, conhecimento das plantas e das folhas, valores que lhes foram conferidos pela ancestralidade; o sentido de respeito pela família extensa, à qual são permanentemente incorporados novos e velhos parentes sob as mais diversas formas de adoção; o recurso a uma divindade suprema pela intermediação dos ancestrais; a confiança na vida, estruturada em esperança mítica; uma solidariedade cotidiana, que se nutre na responsabilidade pelo compromisso assumido com a palavra dada por amizade, pelo respeito ou pela expectativa de troca; essa alegria de viver, que ilumina o cotidiano e se intensifica em dias de festa; musicalidade e expressão rítmica próprias do rigor das cerimônias rituais, onde se reza pela cantiga e se “vira no santo” pela força da fé e com participação comunitária; essa convenção social estrategicamente assumida, como se fôra uma adesão oficial à religião hegemônica, ditada pela sociedade colonizadora, que hoje se traduz em aportes culturais, o que na realidade é uma estratégia de convivência. Tudo isso é vivido de um lado do mesmo mundo, onde o outro lado passa pelos sistemas dominantes e seus desdobramentos que tem por referência o Ocidente, sua cultura e seus princípios. (SIQUEIRA, 1998, p. 34-35). RESUMO A estrutura hierárquica e os símbolos de poder são apresentados neste estudo através de descrições, depoimentos e imagens extraídos dos terreiros de Candomblé e de seu povo. Buscar-se-á, pois, deslindar o cotidiano das relações de poder entre os agentes, focalizando práticas, saberes e História enquanto experiências constituintes dos seus modos de vida. Estas experiências se dão num cenário marcado por autoridade, preceito e muito segredo constituindo-se num ambiente organizacional mítico e simbólico. A realização deste estudo se justifica pela pouca visibilidade dada, por parte da teoria organizacional, à abordagem do poder nessas organizações caracteristicamente baianas e tradicionais do ponto de vista religioso e cultural. Assim, com o intuito de conhecer o poder nesse universo e como estas pessoas percebem as suas próprias experiências, utilizamos o estudo exploratório e a observação participante como instrumentos metodológicos à condução da pesquisa. Palavras-chave: Poder; Hierarquia; Candomblé; Organização; Terreiro. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Mãe Menininha do Gantois 18 Figura 2 – Iyalorixá Cleusa Millet 18 Figura 3 – Iyalorixá Carmem 19 Figura 4 – Iyalorixá Elza Bahia de Araújo 19 Figura 5 – Ilê Axé Omon Ewá 20 Figura 6 – Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê 20 Figura 7 – Babalorixá Everaldo Bispo 20 Figura 8 – Ilê Odé Axé Oba Omi 20 Figura 9 – Descendência Religiosa nos terreiros 23 Figura 10 – Barracão do Ilê Ode 27 Figura 11 – Barracão do Ilê Omon Ewá 27 Figura 12 – Babá Augusto César 35 Figura 13 – Sr. Nadinho, alabê do Gantois 35 Figura 14 – Ebômi Rosinha 46 Figura 15 – Dofona de Oxum 46 Figura 16 – Iaô dando dobale 48 Figura 17 – Iaôs sentados na esteira 49 Figura 18 – Detalhe: contas 51 Figura 19 – Iaô de Ogum 51 Figura 20 – Detalhe: Xérem 52 Figura 21 – Adjá 52 SUMÁRIO 1 1.1 1.2 2 2.1 2.2 2.3 3 3.1 3.2 3.2.1 3.2.2 3.2.3 3.2.4 3.2.5 3.2.6 3.2.7 3.2.8 3.2.9 4 4.1 4.2 4.3 4.3.1 4.3.2 4.3.3 4.3.4 4.3.5 4.3.6 4.3.7 4.3.8 4.3.9 5 CONSIDERAÇÕES INICIAIS .............................................................. O Nascimento da Idéia ............................................................................ O Arcabouço Teórico .............................................................................. EGBÉ ÀIYÉ: A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE ............................... Filhos D’África ........................................................................................ Linhagem Religiosa e Descendência nos Terreiros .............................. O Poder Feminino ................................................................................... ILÊ AXÉ: A ORGANIZAÇÃO-TERREIRO ....................................... A Organização-terreiro ........................................................................... Algumas Fontes de Poder ....................................................................... Autoridade Formal ................................................................................... Uso da estrutura organizacional, regras e regulamentos ....................... Controle do processo de tomada de decisão ............................................ Controle do conhecimento e da informação ........................................... Controle dos limites .................................................................................. Alianças interpessoais, redes e controle da “organização informal” .... Simbolismo e administração do significado ............................................ Sexo e administração das relações entre os sexos ................................... O poder que já se tem ............................................................................... HIERARQUIA E EXPRESSÕES DE PODER .................................... A hierarquia nos Terreiros ..................................................................... Sobre Ogãs e Iyarobás ............................................................................ Símbolos e Expressões de Poder ............................................................ A senioridade ............................................................................................ O conhecimento ........................................................................................ O xirê ......................................................................................................... Os cumprimentos ...................................................................................... O comportamento ..................................................................................... A obrigação de sete anos .......................................................................... Adereços e vestimentas ............................................................................. Instrumentos evocatórios ......................................................................... As cadeiras do barracão ........................................................................... CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................. REFERÊNCIAS ...................................................................................... 08 08 09 10 11 14 20 22 22 26 26 27 28 28 30 31 31 32 33 35 35 37 42 43 44 45 45 46 48 48 49 50 51 53 ?@' -5A/07 !2"% #/&1%* %1! +:; B-C;D5!*208&-1%E 6-/&!&92-! / .%$/& /5 1/&&/-&%0 $/ 8!*$%5:"; /F/ !+G *! !6-! = !2"% #/&1%* %1! -5A/0 H '(() (((, I J(85 %.-! $/ 8%5.21!$%& K.&-*1%21K0LL %*%+&!,-!K+&!$2!34%L H 08%"! $/ *-#/&0-$!$/ /$/&!" $! !6-!7 $5-*-01&!34%7 '(() &-/*1!34% &%, & %0; !&8/"% !*1!07 /.!&1!5/*1% M /"-+-4% H 2"12&! H !6-! !*$%5:"; ' !*$%5:"; ? !*$%5:"; /&&/-&%0 $/ !6-! J !*$%5:"; /F/ !+G +:; B-C; 6-/&!&92-! / .%$/& /5 1/&&/-&%0 $/ 8!*$%5:"; F/F/ *!+G *! !6-! -5A/07 !2"% #/&1%* %1! H 'NN )O -86! !1!"%+&<,-8! = -:"-%1/8! 0./8-!"->!$! /5 /0/*#%"#-5/*1% / /014% %8-!" 8 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS “Ode ki a mò dódé. Ode ki a mò dódé, Ode a rere Ode ki a mò dódé Ní Mawo, Ode ki a mò dódé Oníye”. (Saudação a OXÓSSI) 1.1 O Nascimento da Idéia Em 2004 presenciei uma festa de caboclo em um terreiro no Recôncavo da Bahia, foi quando estive pela primeira vez em contato com esse universo religioso tão característico e representativo da cultura afro-baiana – o Candomblé. De lá para cá comecei a freqüentar o culto, que culminou com a minha iniciação em julho de 2005, então não parei mais de ler e pesquisar sobre o tema. A curiosidade incessante e os dilemas presenciados nas relações com o povo-de-santo por conta da estrutura de poder nos terreiros me levaram a querer entender esse sistema. Assim, este trabalho nasceu das minhas indagações acerca do modo como a autoridade e o mando são exercidos no âmbito dos terreiros. A minha inserção nos candomblés possibilitou a observação mais atenta da estrutura e suas tradição/modernidade, especificidades, destacando-se os poder/obediência, juventude/senioridade, contrastes entre sagrado/profano, masculino/feminino, desconhecimento/sabedoria, coletivo/individual, polarizações que me aguçaram a curiosidade e representam inquietações que tornaram-se o estímulo para construir um trabalho interdisciplinar que pudesse dialogar bem tanto com a Administração quanto com a Antropologia. Em 2005, montei o projeto de pesquisa para a monografia de conclusão de curso em Administração analisando o tema Egbé Àiyé1: hierarquia e poder em terreiros de candomblé jeje-nagô na Bahia. Sendo assim, algumas considerações sobre esse universo simbólico do poder foram aqui desenvolvidas, tratando com cuidado dessa temática comum aos estudos organizacionais, porém ousadamente associada ao Candomblé e desenvolvida em uma escola tradicional de Administração. 1 Egbé pode ser traduzido como sociedade e Àiyè significa o mundo material, a Terra, em oposição a Òrun o mundo espiritual. 9 1.2 O Arcabouço Teórico A teoria das organizações tenta dar conta dos vários tipos de organização, por meio da proposição de modelos de análise. No entanto, vários aspectos importantes foram esquecidos no processo de construção dessas teorias. Como lembra Reed (1998, p. 87), “a questão dos fundamentos raciais e étnicos do poder nas organizações está apenas começando a surgir na literatura como um tópico aceitável de investigação e debate”. E é justamente com o objetivo de trazer alguma contribuição a esse tópico que esse trabalho se constrói. Tendo definido o recorte do tema, o desafio constituiu-se na metodologia que pudesse tornar a pesquisa realidade. Assim, segundo a finalidade do trabalho, este se aproxima de um estudo exploratório porque é “realizado em área na qual há pouco conhecimento sistematizado” (VERGARA, 2004, p. 47). É importante frisar que o estudo possui também um claro viés etnográfico, “porque exige do pesquisador contato direto e prolongado com o objeto de estudo”. (VERGARA, 2004, p. 14). Utilizou-se ainda, predominantemente, da observação participante e da entrevista não estruturada para obter dados sobre pessoas, espaços, interações e símbolos na realização da investigação. A escolha dos três terreiros foi fundamental para obter um estudo comparativo sobre o poder no Candomblé. Os terreiros guardam entre si diferenças abissais, sendo assim, para minimizar generalizações a partir de um estudo localizado, escolhi terreiros que possuem um elo, elo este que os caracterizam como candomblés de axé Gantois, i.e., têm origem comum e constituem-se no que LIMA (2001) chamou de família-de-santo. Em outras palavras, os três grupos estudados são casas independentes, porém reproduzem as mesmas práticas e rituais e ainda guardam uma relação de parentesco espiritual, onde seus membros circulam entre elas e são considerados parentes pela religião. Especificamente, depois de ler A Família-de-santo nos Candomblés JejesNagôs na Bahia de Vivaldo da Costa Lima fui encontrando um aporte teórico necessário para sustentar uma análise sobre o poder no Candomblé. Daí, surgiu a idéia de pensar os terreiros além do conceito de família, e, aproximá-lo do conceito de organização. Então, com base nas metáforas de GARETH MORGAN (1996), no livro Imagens da 10 Organização, passei a analisar os terreiros a partir de sua dimensão cultural de organização, aliada ainda, à sua inseparável dimensão política das relações de poder. Várias etnografias foram aqui utilizadas para referendar as observações e possibilitar a concatenação das idéias, em destaque autores como BRAGA (1999), LANDES (2002), PRANDI (1996) e RODRIGUES (2005), sempre buscando manter a coerência entre o vivido-observado e o que já havia sido estudado por estes pesquisadores, principalmente, almejando manter uma postura mais objetiva possível para separar o pesquisador do filho-de-santo. Outros estudiosos aparecem no corpo do trabalho com importantes contribuições, entre eles a antropóloga Maria de Lourdes Siqueira, o historiador João José Reis, o professor Renato da Silveira e o sociólogo Max Weber. À luz das leituras teórico-conceituais desses autores, analisei a estrutura hierárquica e as relações de poder dela decorrentes apontando as formas como o poder se manifesta nessas organizações. Para isso categorizei toda a hierarquia e os símbolos que representam esse poder objetivado, sem esquecer de indicar suas principais fontes e os conflitos que advém dessas relações. O trabalho de campo se desenvolveu a partir do contato direto com pessoas e observação participante no Terreiro do Gantois (Ilê Iyá Omi Axé Iyámassê), no Ilê Axé Omon Ewá, ambos em Salvador, e no Ilê Odé Axé Oba Omi, em São Francisco do Conde. As informações foram colhidas por entrevistas gravadas com membros desses terreiros, além de conversas informais que durante esse período giraram em torno do tema proposto. Dentro dos estudos organizacionais, o poder sempre foi uma temática que despertou meu interesse. No entanto, carecia de um aporte teórico que pudesse conciliar a literatura sobre poder nas organizações com os terreiros. 2 EGBÉ ÀIYÉ: A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE Os laços familiares criados no candomblé através da iniciação no santo não são apenas uma série de compromissos aceitos dentro de uma regra mais ou menos estrita, como nas ordens monásticas e fraternidades laicas, iniciáticas ou não; são laços muito mais amplos no plano das obrigações recíprocas e muito mais densos no âmbito psicológico das emoções e do sentimento. São laços efetivamente familiares: de obediência e disciplina; de proteção e assistência; de gratificação e sanções; de tensões e atritos – tudo isto existe numa família e tudo isto existe no candomblé. (LIMA, 2003, p. 161). 11 2.1 Filhos D’África Antes de iniciar uma abordagem específica sobre as expressões de poder no candomblé, é necessário fazer uma pequena retrospectiva histórica partindo da vinda dos escravos africanos que originaram na Bahia, o que hoje, é conhecido como “candomblé de Ketu”. Além dessa breve retrospectiva, será reconstruída a genealogia dos três terreiros onde a pesquisa foi realizada, e, será contada, mesmo que resumidamente, um pouco de sua história, seja pela pesquisa bibliográfica ou pelas fontes orais. Durante a primeira metade do século XIX intensificou-se o tráfico de escravos vindos da Costa da Mina (hoje Repúblicas do Togo, Benin e da Nigéria, que eram conhecidos principalmente como negros mina-jejes e mina-nagôs). A presença desses africanos na Bahia marcou o surgimento da reelaboração da África no Brasil, suas práticas religiosas e trocas lingüísticas, com o predomínio dos idiomas Fon e Yoruba. No início do século passado, os africanos originários do golfo do Benin, incluindo as etnias Jeje (Ewe), Nagô (Yoruba), Haussá, Tapa e Benin, dentre outras, formavam aproximadamente metade da população africana em Salvador. (LUZ, 1995, p. 469). No livro Os Nagô e a Morte, Juana Elbein dos Santos (2002, p. 28) destaca que: A história de Kétu é preciosa como referência direta no que concerne a herança afro-baiana. Foram os Kétu que implantaram com maior intensidade sua cultura na Bahia, reconstituindo suas instituições e adaptando-as ao novo meio, com tão grande fidelidade aos valores mais específicos de sua cultura de origem, que ainda hoje elas constituem o baluarte dinâmico dos valores afro-brasileiros. Além de Ketu, africanos de várias etnias deram origem ao candomblé jejenagô: 12 Todos esses diversos grupos provenientes do Sul e do Centro do Daomé e do Sudoeste da Nigéria, de uma vasta região que se convenciona chamar de Yoru baland, são conhecidos no Brasil sob o nome genérico de Nagô, portadores de uma tradição cuja riqueza deriva das culturas individuais dos diferentes reinos de onde eles se originaram. Os Kétu, Sabe, Òyó, Ègbá, Ègbado, Ijesa, Ijebu importaram para o Brasil seus costumes, suas estruturas hierárquicas, seus conceitos filosóficos e estéticos, sua língua, sua música, sua literatura oral e mitológica. E, sobretudo, trouxeram para o Brasil sua religião. (SANTOS, J. E. 2002, p. 29). De acordo com Lima (2003, p. 21), “a expressão jeje-nagô, deve ser entendida como significativa do tipo de cultos religiosos organizados na Bahia principalmente sob os padrões culturais originários dos grupos nagô-iorubá e jeje-fon”. Ele esclarece ainda que, “sobre o termo jeje não há dúvida que o mesmo se refere aos grupos étnicos do Baixo Daomé – especialmente os fon e os gu”. É comum, ainda hoje, ouvir o povo-de-santo se referir ao termo nação para designar a influência étnica que lhes deu origem. Portanto, para muitos, ser da nação Ketu é diferente de ser Jeje, Nagô ou Angola. No entanto, pertencer a um candomblé Ketu é, também, dar continuidade ao complexo religioso jeje-nagô. O sentido do termo “candomblé de Ketu” no presente trabalho significa ser jeje-nagô. O professor Vivaldo da Costa Lima ressalta que “dentro dos grupos iorubás-nagôs, nação de Queto passou a significar o rito de todos os nagôs”. (2003, p.30). Nesse contexto, estão inseridos o Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê, o Ilê Axé Omon Ewá e o Ilê Odé Axé Oba Omi, que são predominantemente nagôs porque “as divindades do culto e a língua dos cantos são marcadamente iorubas, mas que apresentam também importantes elementos estruturais da cultura jeje” (LIMA, 2003, p. 22). Uma vez em terras estrangeiras, sem a possibilidade da volta ao seu ambiente original, transformados em escravos e reduzidos a simples mercadorias, foi na religião que esses africanos encontraram um meio de se manter ligados ao seu povo e sua origem, além de um local onde buscar, através da fé, forças para suportar as condições desumanas a que foram submetidos. Apesar das diferenças lingüísticas e da perseguição dos senhores, os africanos criaram um espaço onde os deuses dos povos de diferentes etnias eram cultuados em conjunto. A história do candomblé na Bahia do século XIX é, portanto, a história de sua mistura étnica, racial e, logo, social. Um processo que ocorreu em 13 diversas frentes: a reunião de africanos de diferentes origens étnicas para, juntos, celebrarem seus diferentes deuses, a atração dos descendentes de africanos nascidos na Bahia e a difusão de todo tipo de serviço espiritual entre clientes de diversas origens étnicas, raciais e sociais. (REIS, 2005, p.30). Em consulta a um dos artigos do Professor Renato da Silveira, encontra-se importante relato sobre a primeira tentativa, de que se tem registro, de se organizar o culto urbano aos orixás na Bahia. Segundo ele, a partir de então, o candomblé deixa de ser apenas um espaço para o culto das divindades africanas para tornar-se uma “organização político-social-complexa”: O próximo passo, ousado, nessa trajetória de constituição da religião afrobrasileira, seria precisamente organizar o culto na cidade, exibi-lo como instituição urbana legítima, buscar sua oficialização. Foi em Salvador, no Bairro da Barroquinha, que essa transição foi tentada com relativo sucesso. Segundo as tradições orais dos nagôs (africanos iorubás, originários de regiões da Nigéria, Benin e Togo) baianos, o primeiro candomblé de sua linhagem foi fundado em terras situadas atrás da capela de Nossa Senhora da Barroquinha. (SILVEIRA, 2005, p.23). Sobre a palavra candomblé, pode-se utilizá-la tanto para designar o espaço físico onde acontece o culto, quanto para a festa pública, ou até mesmo para denominar a própria religião afro-brasileira. Siqueira (1998, p. 35) apresenta o Candomblé “como um sistema sociocultural e religioso, centrado nos Orixás, representados simbolicamente e revividos através de rituais”. A autora oferece uma definição de terreiro que leva em conta três dimensões: O Terreiro é um espaço social, mítico, simbólico, onde a natureza e os seres humanos se unem para viver uma realidade diferente daquela que o cotidiano ou a sociedade lhes apresenta como o real, na qual as pessoas que o constituem acreditam. É o espaço onde o mito e o rito fazem parte da própria vida das pessoas que dele participam. (SIQUEIRA, 1998, p. 173). Marco Aurélio Luz informa que já no início do século XIX, a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte reunia na Igreja da Barroquinha grandes sacerdotisas do culto Nagô. Dentre elas, a Iyanassô Oyó Akala Magbo Olodumaré, a mais alta sacerdotisa dedicada ao orixá Xangô, e na época, também fundadora do Ilê Iyá Omi Axé Airá Intilé - o candomblé da Barroquinha. Depois da morte de Iyanassô, o terreiro passou a se chamar Ilê Iya Nassô Oká, em sua homenagem. Essa casa de candomblé 14 existe até hoje e é uma das três mais respeitadas da Bahia, a famosa Casa Branca, situada na Avenida Vasco da Gama. A Iyalorixá Marcelina da Silva, conhecida pelo seu orunkó (nome africano) – Oba Tossi - sucedeu Iyanassô no comando do terreiro até o dia de sua morte. Em decorrência do falecimento de Iyá Oba Tossi, a sucessão passou para a Iyakekerê da casa, sua filha-de-santo, Maria Julia Figueiredo – Omonike. Justamente por conta da disputa do poder para ocupação do cargo de Iyalorixá do terreiro houve uma dissidência, um grupo liderado por Maria Júlia da Conceição Nazaré – Dada Baayáni Ajáku, iniciada por Iya Nassô e irmã-de-santo de Omonike, afastou-se do Ilê Iyá Nassô. 2.2 Linhagem Religiosa e Descendência nos Terreiros Em 1849, no bairro da Federação, em terras que pertenciam a um estrangeiro de sobrenome Gantois, Maria Júlia da Conceição Nazaré fundou uma nova casa de candomblé com o nome de Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê (ou simplesmente Terreiro do Gantois), o ascendente dos outros dois terreiros onde este trabalho se desenvolveu. Desde a sua fundação, o Gantois vem preservando o culto afro-brasileiro buscando manter a forma de culto nagô herdada de seus ancestrais africanos. Apesar das mudanças econômicas, sociais e tecnológicas pelas quais passou a sociedade, desde 1849, ainda é possível presenciar os rituais, que se mantêm vivos, transmitidos de geração a geração. Ao contrário do Ilê Iyá Nassô, onde a sucessão se dava pela consulta ao jogo de búzios, o Gantois adotou o modelo de sucessão hereditária. No terreiro de candomblé, o máximo poder é personificado na figura da Iyalorixá ou do Babalorixá. Lima (2003, p. 59) dá uma explicação para o significado da palavra Iyalorisa = Iaolorisa: A palavra Iya – mãe – em ioruba possui vários sentidos, inclusive o classificatório dos familiares. Iya é a mãe biológica, mas também qualquer parente feminino da geração dos pais – as irmãs da mãe ou do pai e suas primas, para empregar o termo de parentesco de uso no Brasil. Prefixada a uma palavra outra qualquer, como no caso de ialorixá, denota uma relação genitiva entre os dois termos – “a mãe que tem”, “que possui” o orixá. 15 Essa definição mostra o quão importante é o pai ou a mãe-de-santo no terreiro. Sendo alguém que “possui” o orixá dos seus filhos, ou seja, exerce influência e poder sobre os iniciados e suas divindades. Ainda segundo Lima (2003, p. 60): O líder do terreiro exerce toda a autoridade sobre os membros do grupo, em qualquer nível da hierarquia, dos quais recebe obediência e respeito absolutos. O chefe do grupo está naturalmente investido de uma série de poderes que evidenciam, na sua autoridade normativa, muitas vezes acrescentadas pelas manifestações de uma personalidade forte e de uma aguda inteligência. É importante apresentar quais foram as lideranças que estiveram à frente do Terreiro do Gantois até hoje. A primeira delas, Maria Júlia – apelidada de Vovó Júlia, era descendente direta de africanos, “sabe-se que seus pais, africanos de Abeokutá, chamavam-se Akala e Okarinde”2. Nos fins do século XIX, quando desenvolveu seus estudos no Gantois, Nina Rodrigues fez referência à primeira Iyalorixá e sua filha biológica: O terreiro do Gantois faz a sua grande festa anual em fins de setembro, a começar de um sábado, e de ordinário a prolonga por um mês. A mãe de terreiro Julia, velha africana, transfere-se para ali na sexta-feira a fim de preparar e armar o Peij e dispor tudo para o candomblé. Assiste-a imediatamente sua filha Pulcheria. (RODRIGUES, 2005, p.109-110). Pulquéria, filha biológica de Maria Júlia, “que chegou a ser conhecida na época como "Pulquéria, a grande", por suas atitudes enérgicas e capacidade de liderança”3, não teve filhos biológicos. Por isso, assumiu o posto, em 1918, Maria dos Prazeres - sua sobrinha, que permanece como Iyalorixá por dois anos. Mãe Menininha ou Maria Escolástica da Conceição Nazareth, filha de Maria dos Prazeres, torna-se Iyalorixá em 18 de fevereiro de 1922, aos 28 anos de idade. Ela enfrentou muitas dificuldades no inicio da sua gestão à frente do Gantois, principalmente pelo fato de ter apenas 28 anos de idade. Foi considerada jovem demais para assumir as responsabilidades e o poder que lhe conferia o cargo de Iyalorixá. Sobre esse fato ela declarou: A minha confirmação em mãe-de-santo é uma história longa, morrendo minha avó Júlia, sucedeu a Pulquéria, depois minha mãe, que durou pouco, 2 3 Correio da Bahia on line. 28 de agosto de 2001. CLAY, Vinícius. Patrimônio Sagrado. Correio da Bahia on-line, 08 de janeiro de 2003. 16 só dois anos. Mas ela já vinha exercendo a função com Pulquéria. Porque há sempre uma ou duas pessoas a ajudar a yalorixá. Quando minha mãe morreu, eu deixei de vir ao Gantois. Era mocinha, vivia com ela, e ela morrendo, afastei-me. Mas, em fevereiro de 1922, numa missa para Pulquéria, que era minha madrinha e tia, os orixás quiseram logo escolher quem ficaria tomando conta da casa. E me aconselhara. E eles [orixás] mesmo me deram posse, não foram pessoa não. Primeiro foi Oxossi, depois Xangô, Oxum e Obaluayê. Eles me deram esse cargo de felicidade que estou ocupando até o dia que Deus quiser e Oxalá. (SANTOS. J. T, 2002, p. 138). No candomblé, a idade biológica não é o que conta, o que vale é o tempo de iniciação e a experiência da vida “no santo”, ou seja, a vida dedicada ao aprendizado por meio do trabalho é o mais importante. Apesar de ter sido iniciada ainda criança, sua juventude foi considerada um problema para os mais velhos em idade de iniciação. Lima (2003, p. 190) relata: É freqüente a reação dos velhos tios e ebômins à indicação de pessoas consideradas muito jovens para a chefia de um terreiro. São conhecidas as restrições feitas, por exemplo, a ialorixá Menininha do Gantois, ao tempo em que substituiu sua mãe-de-santo, há cinqüenta anos, quando tinha apenas 28 anos de idade. Mãe Menininha tornou-se conhecida em todo o Brasil. Segundo depoimentos, ela possuía uma diplomacia para lidar com os conflitos e adversidades, estava acostumada à presença de filhos-de-santo e amigos ilustres em sua casa, desde artistas, escritores e jornalistas a políticos nacionais até os mais humildes dos vizinhos. Jocélio Teles dos Santos (2002, p. 141) informa que: A respeitabilidade para com Menininha, manifesta pela sua reprodução da tradição afro-religiosa do Gantois, se conjuga com outras características que lhe eram reconhecidas: a serenidade, a bondade, e o que me parece de extremo valor no mundo dos candomblés, o exercício do poder de mando que se associa a uma ética e a uma moral intrínseca aos terreiros. Certamente sua autoridade se constitui em torno de uma personalidade forte, como registrou LANDES, “o status e a disciplina eram preservados por Menininha a todo custo”. Sobre a credibilidade de seu terreiro nessa época, a própria Mãe Menininha afirmou: O nosso templo é um dos mais velhos do país. Durante as cerimônias o terreiro fica tão cheio que parece que toda a cidade está presente. Eles gostam de assistir ao candomblé porque sabe que somos honestos; que tudo sob a minha direção vem diretamente dos velhos africanos, como me ensinou minha Mãe Pulquéria. (LANDES, 2002, p. 125). 17 Figura 1 – Mãe Menininha do Gantois Fonte: Divulgação Figura 2 – Iyalorixá Cleusa Millet Fonte: REVISTA DA FOLHA, 1997 Mãe Menininha de Oxum morreu em 13 de agosto de 1986, uma quartafeira, depois de 64 anos comandando o Gantois. Em 1989, Cleusa Millet, filha mais velha de Mãe Menininha assume o cargo de Iyalorixá. Formada em Medicina pela Universidade Federal da Bahia, casada, tinha três filhos e vivia afastada do terreiro, pois morava no Rio de Janeiro. Depois que seu esposo se aposentou ela voltou a morar em Salvador e se reaproximou do candomblé, ajudando sua mãe no trabalho comunitário do terreiro. Mãe Cleusa disse em entrevista à Revista da Folha: Apesar de ter nascido e vivido até a adolescência dentro de uma casa de candomblé, de ser filha de mãe-de-santo, nunca pensei em ocupar cargo algum. Ao assumir o lugar de mamãe, a sensação que tive era de que aquele sapato cômodo, que usava todos os dias, tinha desaparecido. E até me acostumar a andar descalça ou conseguir um sapato que ficasse bem nos pés sofri muito. (Revista da Folha, 23/02/1997). Mãe Cleusa conduziu o terreiro até sua morte em 1998. O comando da casa, em 30 de maio de 2002, na festa de Oxóssi, foi assumido oficialmente por Carmem de Oliveira da Silva, chamada entre os membros da família Gantois de “Mãe Neném”. Filha mais moça de Mãe Menininha, iniciada aos seis anos de idade ao orixá Oxaguiã, ela foi Iyalaxé do terreiro na gestão de Mãe Cleusa. Formada em Ciências Contábeis, trabalhou por muitos anos como tesoureira do Tribunal de Contas do Estado. Do Terreiro do Gantois surgiram muitas casas de candomblé em vários locais do país. Cada filho-de-santo, que alcançou o direito de ser um pai-de-santo, pôde abrir sua casa e dar continuidade aos fundamentos e preceitos que aprenderam em seu 18 local de origem, sempre respeitando a tradição e os valores do culto. Uma dessas casas é o Ilê Axé Omon Ewá que fica no bairro de Praia Grande no Subúrbio Ferroviário de Salvador. A Iyalorixá Elza Bahia de Araújo, iniciada por Mãe Menininha na década de 1950 é quem comanda o terreiro desde sua fundação nos idos nos anos sessenta. Figura 3 – Iyalorixá Carmem Fonte: CARTA CAPITAL, 2002 Figura 4 – Iyalorixá Elza Bahia de Araújo Fonte: Acervo Próprio Em 1980, Everaldo Cardoso Bispo, hoje advogado e professor, foi iniciado ao orixá Ayrá no Ilê Axé Omon Ewá, tornando-se filho-de-santo de Ebômi Senhora de Ewá (Elza Bahia) e neto de Mãe Menininha (Maria Escolástica). Nessa época, a casa de candomblé onde ele é hoje o Babalorixá, era conduzida por seu pai biológico, que havia herdado o posto de seu tio, que era pai-de-santo desde a década de cinqüenta em São Francisco do Conde. Em 1984, o pai-de-santo da casa morreu e o candomblé ficou restrito apenas a uma cerimônia para Obaluaiyê e outra para o caboclo Boiadeiro, ambas anuais. Em 1992, Ebômi Senhora foi a São Francisco para conduzir a obrigação de sete anos de pai Everaldo, onde o mesmo recebeu de sua Iyalorixá a cuia4 com os objetos rituais sagrados, que simbolizam a transmissão do poder no candomblé. Com esse ritual sua mãe-de-santo outorgava-lhe o direito de se tornar um Babalorixá. 4 Esse ritual acontece geralmente em uma cerimônia interna nos candomblés que têm sua origem no Gantois. É comumente chamado em outros terreiros ketu de decá. 19 Figura 5 – Ilê Axé Omon Ewá Fonte: Acervo Próprio Figura 6 – Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê Fonte: CARTA CAPITAL, 2002 Em julho de 2005, na ocasião do recolhimento do barco dos três primeiros iaôs, Ebômi Senhora retornou ao Ilê e, após consultas ao Ifá (oráculo), verificou que a casa deveria ser dedicada a Oxóssi e ter o axé de Xangô e Oxum. A saída dos três primeiros iaôs marcou a transformação na forma de conduzir o terreiro. Daí em diante, a casa passou a se chamar Ilê Odé Axé Oba Omi, Casa do Caçador com a força do Rei e das Águas, sendo então, elaborado o atual calendário de festas seguindo os padrões litúrgicos do candomblé Ketu de tradição Gantois. A figura 9 apresenta a genealogia religiosa do Babalorixá do Ilê Odé Axé Oba Omi. Figura 7 – Babalorixá Everaldo Bispo Fonte: Acervo próprio Figura 8 – Ilê Odé Axé Oba Omi Fonte: Acervo Próprio 20 2.3 O Poder Feminino É inescapável a um estudo como o que ora se apresenta, deixar de mencionar a participação do poder feminino, personificado nas matriarcas dessa “Roma Negra”, apelido conferido à cidade de Salvador, e ainda hoje tão evidente no universo dos candomblés. Na década de quarenta, quando Ruth Landes esteve em Salvador, visita que posteriormente culminou com a primeira edição de A Cidade das Mulheres em 1947, a presença dos homens nos terreiros predominava na posição de ogãs e existia ainda a figura do Babalawo (Pai do Mistério, do segredo) Martiniano do Bomfim. Ilê Iya Omi Axé Iyamassê 1849 – Maria Júlia da C. Nazaré 1910 – Pulchéria da C. Nazaré 1918 – Maria dos Prazeres Nazaré 1922 – Maria Escolástica Nazaré Ilê Axé Omon Ewá 1960 – Elza Bahia Ilê Odé Axé Oba Omi 1984 – Everaldo Bispo Figura 10 – Genealogia Religiosa do Ilê Odé Axé Oba Omi. Homens iniciados aos orixás, que pudessem entrar em transe eram mal vistos entre o povo-de-santo das três grandes casas ditas tradicionais como consta na etnografia de Landes. Os homens eram encorajados a não cair em transe, pois esse papel era exclusivamente feminino. No entanto, havia nessa época candomblés Angola e os chamados de caboclo, onde os ritos se diferenciavam bastante dos grandes terreiros herdeiros dos nagôs, que permitiam o transe dos homens. Édison Carneiro comenta a respeito do Pai Bernardino: 21 É um homem, d. Ruth, num mundo dominado por mulheres. Um verdadeiro sacerdote do culto deve ser mulher e eu acho que Bernardino é bastante honesto nas práticas do culto para desejar que fosse mesmo mulher, em vez de homem que se comporta como mulher. Sendo homem, tem de delegar muitas funções cruciais a uma mulher do culto e, no final das contas, é ela quem manda, em vez dele. Isto por vezes esvazia o cargo de pai. (LANDES, 2002, p. 264-265). Existiram também grandes homens ligados as matriarcas dos três terreiros tradicionais, na Casa Branca sabe-se de Bamboxê Obiticô; no Axé Opô Afonjá, Martiniano do Bomfim e no Gantois Nezinho de Cahoeira (ou de Muritiba). Grandes homens que colaboraram com as Iyalorixás na estruturação de seus templos. Mas ainda assim, elas é que personificavam a máxima autoridade e poder perante suas famílias-desanto. Para comandar os terreiros, essas mulheres tinham que exercer seu poder e fazer-se respeitar para além dos limites de seus muros, e muitas tornaram-se reconhecidas socialmente por sua liderança nos candomblés. A respeito de Pulquéria, declarou Mãe Menininha: Está casa pertenceu a minha tia – disse, olhando em volta da sala e em direção a um retrato oval de mulher que pendia da parede oposta. – Chamavam-na a Grande Pulquéria. [...] Dizia-se que tinha sido uma ardente lutadora e que conseguira arrancar à polícia proteção para o seu povo. Naquele tempo, quando o povo ainda votava, os grupos de candomblé eram alternadamente tolerados ou perseguidos no interesse de uma ou de outra máquina política. Eram sempre vítimas de chantagem e Pulquéria estava decidida a acabar com esse abuso. Teve o apoio da sua jovem amiga Eugênia Ana dos Santos. Mais tarde conhecida como Mãe Aninha. (LANDES, 2002, p. 126). Sobre a reputação de Mãe Menininha nos fins da década de 30, observou Landes: Embora Mãe Menininha ainda fosse moça segundo os padrões afrobrasileiros, pois estava com quarenta e poucos anos, era provavelmente a mais importante sacerdotisa da Bahia após a morte de Mãe Aninha. Todo mundo sabia da sua existência e dela falava com respeito. Um congresso de estudos do negro realizara uma festa no seu templo no ano anterior [...] Essas atenções se deviam em parte à força de sua personalidade e em parte à reputação do seu templo, conhecido como Gantois. (LANDES, 2002, p. 115). As mulheres negras ocupavam papel central também na família, inclusive a própria Mãe Menininha era grande doceira, além de costureira. Landes esclarece que à 22 sua época muitas delas viviam com homens, mas não aceitavam oficializar o casamento para que não fossem tão dependentes de seus maridos, como lhes impunha as leis da época, já que para professarem sua religião precisavam guardar resguardos e ter autonomia para dedicar-se à religião: A maioria dos homens que vêm de visita é pobre demais para ter uma casa ou para se dar ao luxo de um entretenimento comercial. Raramente conhecem os pais e muitas vezes viveram nas ruas. São parasitas, e as mulheres negras é que garantem a sua estabilidade. E as mulheres têm tudo: os templos, a religião, os cargos sacerdotais, a criação e a manutenção dos filhos e oportunidades de sustentarem a si mesmas pelo trabalho doméstico e coisas semelhantes. (LANDES, 2002, p. 199). 3 ILÊ AXÉ: A ORGANIZAÇÃO-TERREIRO. [....]acredito que foi só num estágio mais tardio, provavelmente no início do século XIX, que se consolidou uma rede social de congregações extradomésticas. Só quando estas congregações, em número suficiente, começaram a estabelecer entre si interações de cooperação, complementaridade e conflito, poderíamos falar de uma “comunidade religiosa afro-brasileira” e do surgimento do Candomblé. (PARÉS, 2006, p. 119). 3.1 A Organização-terreiro Que tipo de organização é um terreiro de candomblé? Ao invés de ir a busca de uma tipologia na teoria organizacional para enquadrá-lo, torna-se mais profícuo, devido às suas peculiaridades, tentar entender seu funcionamento a partir da definição de Herskovits encontrada em Lima (2003, p. 57): Do ponto de vista da organização social, o candomblé deve ser considerado como um grupo baseado na livre participação que, por sua vez, é significativamente influenciada pelo parentesco e pela origem tribal africana. [...] Sua estrutura é hieráquica, com limites de autoridade e responsabilidade bem definidos. [...] O controle social é obtido através das sanções sobrenaturais por aqueles que são investidos de autoridade. A identificação dos membros com o grupo e suas atividades é internalizada para que se torne o mecanismo principal de ajuste individual, provendo a sensação de segurança psicológica e os meios de ascensão social, fins econômicos e de status. 23 Em Morgan (1996), encontra-se metáforas que, segundo ele, poderiam orientar administradores, executivos e estudiosos na interpretação das organizações. Duas delas, podem contribuir para o estudo da hierarquia e do poder nos terreiros. Para o autor, as organizações são vistas como pequenas representações da sociedade, com padrões distintos de cultura e subcultura. Só conhecendo a rotina, as práticas, a linguagem e os rituais das organizações é possível perceber suas características culturais, levando em conta as explicações históricas para o modo pelo qual as coisas acontecem nesse universo. Uma cultura pode ser descrita por meio do significado, da compreensão e dos valores compartilhados. A cultura é um processo de construção da realidade que permite observar os acontecimentos de maneiras distintas. Morgan (1996, p. 133) afirma: “pode-se dizer que a natureza de uma cultura seja encontrada nas suas normas sociais e costumes e que, se alguém adere a essas regras de comportamento, ele será bem sucedido em construir uma realidade social adequada”. Na concepção dele, que é a mesma defendida nesse trabalho, a cultura não é uma variável possuída pela organização, mas é sim, um fenômeno ativo e vivo que possibilita às pessoas a criação e a re-criação dos mundos onde vivem. “O desafio de compreender as organizações enquanto culturas é compreender como esse sistema é criado e mantido, seja nos seus aspectos mais banais, seja nos seus aspectos mais contundentes”. (MORGAN, 1996, p. 138). O terreiro de candomblé tem sua cultura própria, herdada dos ancestres africanos, mas também é fruto da reelaboração dessa cultura no Brasil. O intercâmbio sócio-cultural e religioso entre os povos africanos, os europeus e os índios resultaram em heranças culturais que também foram legados absorvidos pelo universo do terreiro. O ambiente organizacional é permeado por símbolos, regras e preceitos, existe um verdadeiro código de ética entre o povo-de-santo. No universo dos terreiros, a forma de apreender a cultura organizacional e absorver os conhecimentos rituais dá-se por meio do “learning by doing”, é na prática que se aprende. Não é adequado perguntar, observa-se tudo e se guarda o segredo, ou awò, em iorubá. A cada elevação na escala hierárquica o iniciado vai tomando conhecimento dos chamados “fundamentos” ou saber ritual. Certamente, o pai ou mãede-terreiro é quem detém o maior conhecimento, ou seja, um maior capital simbólico acumulado. O desafio aqui vai além. Perceber um terreiro apenas sobre o aspecto cultural-religioso não traria, talvez, alguma contribuição a esse trabalho. Sendo assim, 24 para fazer o estudo do poder será utilizada uma segunda metáfora em complementação à primeira. É preciso pensar o Candomblé, também, como sistema político. Morgan já citou os conceitos de autoridade, poder e relação superior-subordinado como vocábulos comuns na linguagem do administrador. No entanto, aqui, a novidade é pensar esses conceitos nas “organizações-terreiro”, ainda que suas bases sejam distintas das organizações tradicionalmente estudadas pela Administração. Formalmente, um Babalorixá e uma Iyalorixá não são administradores. No entanto, enquanto líderes de uma organização exercem função de comando e gerência, têm o poder de decidir, de controlar recursos e de dar ordens. São eles que buscam manter a ordem e dirigem o terreiro, tendo pessoas sob sua autoridade. A despeito do caráter religioso e da crença nas divindades, sendo um grupo social, também reconhecido como família de santo, não deixam de existir em seu interior interesses pessoais que, podem muitas vezes coincidir, mas que, apesar da ordem aparentemente inquestionável, uma hora ou outra, poderão gerar conflitos. Para auxiliar na compreensão do caráter político do terreiro, quando se falar em administração deve-se considerá-la como o mais alto posto da hierarquia, que é o de pai ou mãe-de-santo, acompanhado dos ogãs e iyarobás e outros portadores de cargos de mando nos terreiros. Ao reconhecer que a organização é intrinsecamente política, no sentido de que devem ser encontradas formas de criar ordem e direção entre as pessoas com interesses potencialmente diversos e conflitantes, muito pode ser aprendido sobre os problemas e a legitimidade da administração como um processo de governo e sobre a relação entre organização e sociedade. (MORGAN, 1996, p. 146). Se existe uma ordem e direção de um grupo de indivíduos, certamente haverá em graus variados de intensidade, conflitos de interesse, desejo de poder, submissão às regras e à autoridade, disputas e em alguma medida pode haver resistência a essa autoridade, dissensões ou autoritarismos. Observar o Candomblé também como sistema político, pressupõe a tentativa de identificar essas possibilidades, demonstrar como elas acontecem e descobrir suas razões, sem nunca perder de vista a existência dos orixás. Não se vai aqui negar o poder das divindades, pelo contrário, esse é um pressuposto ao qual não cabe o questionamento, mas pretende-se descer à esfera do poder dos agentes: pai ou mãe-de-santo, ogãs, iyarobás, ebômis, iaôs e abiãs. O enfoque desse trabalho é o poder do àiyé, ou seja, do mundo físico, material. 25 Os três terreiros aqui estudados possuem uma dinâmica organizacional muito parecida, fazem parte de uma grande família-de-santo. Lima (2003, p. 162) explica esse conceito: “assim é que a família de santo seria uma família extensa, na medida em que os antigos terreiros, por meios institucionalizados ou por sucessão, deram origens a muitos outros candomblés que se reconhecem da mesma linhagem de santo”. Esses terreiros precisam de uma estrutura física para funcionar, conforme Luz (1995, p. 535) “as comunidades-terreiros se caracterizam por um espaço arquitetônico capaz de abrigar a complexidade das atuações que ali se realizam, envolvendo aspectos sagrados e profanos, públicos ou privados”. Assim, essas casas têm os mesmos padrões litúrgicos e mantêm uma configuração física básica: um salão maior, situado à entrada das casas, mais conhecido como barracão, é nesse local que ocorrem as festas e cerimônias públicas, é o espaço do terreiro que é aberto ao contato com a comunidade de fora. Ainda dentro de casa fica o quarto ou os quartos dos santos, que consiste no local onde são guardados os assentamentos dos orixás. Há também na parte interna algumas salas para circulação de pessoas ou de orixás incorporados em seus filhos nas ocasiões de festa; a camarinha ou roncó, também chamada de rondeme ou ariaxé, local onde o iniciado permanece por alguns dias no período de sua iniciação. Figura 10 – Barracão do Ilê Odé Fonte: Acervo Próprio Figura 11 – Barracão do Ilê Ewá Fonte: Acervo Próprio A manutenção dos terreiros, no que tange aos recursos financeiros necessários à sua existência, ocorre por meio das contribuições dos filhos-de-santo, eventuais doações, serviços prestados, como jogo de búzios e ebós ou até mesmo, o pai ou mãe-de-santo arca com as despesas do seu próprio bolso. Os gastos num terreiro são muito grandes, os rituais requerem uma série de objetos que tem que ser comprados: 26 comidas para as oferendas, além de animais, fogos de artifício, material para decoração, roupa dos filhos-de-santo e de seus orixás, tudo custa dinheiro. Na casa existem também quartos para dormir, geralmente o Babalorixá tem o seu separado, há o quarto dos ebômis, dos iaôs e das visitas, além dos banheiros. A cozinha representa um dos locais mais importantes do candomblé, é nesse espaço que, sob o comando da Iyabassê, as iaôs preparam a comida ritual para os orixás e também a alimentação que é servida nas festas e nas refeições diárias do grupo. Do lado de fora fica a casa de Exu e o Ilê Ibó Aku ou casa dos eguns (espíritos dos mortos). Podem existir variações entre o Gantois e os seus dois terreiros descendentes. No entanto, há um padrão ritual predominante e facilmente identificável que faz cada um dos terreiros ser reconhecido como candomblé de axé Gantois. As diferentes casas de candomblé não podem ser consideradas iguais, sem antes perceber sua cultura e subcultura organizacional, por isso que essa pesquisa foi propositadamente direcionada a casas de culto jeje-nagô de axé Gantois, para que se tentasse obter uma coerência na análise. 3.2 Algumas Fontes de Poder Antes de descrever as expressões do poder nos terreiros será utilizado nesse ponto um roteiro analítico, proposto por Morgan (1996), para identificar as fontes de poder nos terreiros estudados. Certamente, o referido esquema não esgota todas as possibilidades de enxergar de onde o poder emana, entrementes, com o auxílio deste, identificaremos as principais. 3.2.1 Autoridade Formal É “um tipo de poder legitimado que é respeitado e conhecido por aqueles com quem se interage” (MORGAN, 1996, p. 164). Segundo uma perspectiva Weberiana o poder implica dominação, alguém manda porque os que são mandados obedecem e acreditam que o que manda tem direito legítimo de fazê-lo. Dos três tipos de dominação 27 caracterizados por Weber, o da dominação tradicional e a carismática são os mais adequados para explicar a autoridade formal que há nos terreiros. A dominação tradicional tem sua legitimidade alicerçada na crença de uma santidade das ordens e poderes existentes desde sempre e na legitimidade daqueles que, por conta dessas tradições, são os representantes dessa autoridade. No caso dos terreiros é exatamente assim, todo o complexo de regras e estrutura de poder vai sendo transferido de geração a geração, conformando-se uma tradição religiosa fossilizada. Os pais e mães-de-santo ocupam essas posições por herança familiar, são nomeados pela tradição em virtude de uma devoção aos hábitos costumeiros desde tempos imemoriais. “No caso da dominação carismática obedece-se ao líder carismaticamente qualificado como tal, em virtude de confiança pessoal em revelação, heroísmo ou exemplaridade dentro do âmbito da crença nesse seu carisma” (WEBER, 1994, p. 141). Os Babás ou Iyás congregam algumas características mágicas em torno de sua personalidade, principalmente se estes têm uma boa “mão de jogo” e conseguem encantar os freqüentadores de suas casas por meio de conselhos e orientação espiritual que gere satisfação nos mesmos. Mãe Menininha é um exemplo prático da influência da liderança carismática no universo estudado, até hoje, estar ligado ao axé desta célebre Iyalorixá é símbolo de prestígio religioso para os que por ela foram iniciados na religião. 3.2.2 Uso da estrutura organizacional, regras e regulamentos. Nesse ponto, a própria estrutura que os terreiros assumem para dar prosseguimento às suas atividades, são reforçadores das relações de poder. O desenho organizacional típico dos terreiros jeje-nagô, mesmo aqueles que não possuem vinculação de parentesco espiritual, é sempre muito semelhante. As regras de comportamento conformam uma ética própria do povo-de-santo que estimula o respeito a tais regras e a hierarquia e, acima de tudo, o não questionamento da autoridade dos líderes religiosos. Portanto, tanto para os membros do terreiro quanto para os visitantes, a estrutura é posta de forma a criar uma demarcação de territórios, definição de papéis e postos, tornando bem definidas funções e responsabilidades de cada pessoa. 28 Primordialmente, a estrutura, as regras e regulamentos convergem para manutenção da ordem e centralização do máximo poder no pai ou mãe-de-santo e aqueles por ele empoderados. 3.2.3 Controle do processo de tomada de decisão É notório que o controle do processo decisório pertence ao Babalorixá. Embora não se possa desconsiderar que existe uma componente metafísica que orienta os rumos da organização - a vontade dos orixás, expressa em sua comunicação através do jogo de búzios, - isso não retira do líder o papel fundamental no processo decisório. A decisão do calendário de festas, do recolhimento de barcos de iaôs, das reformas, da concessão de oyês, entre outros, estão sobre o crivo direto do alto sacerdote. Essa é uma importante fonte de poder no terreiro, constitui-se também, em alvo de disputas veladas pelo poder, já que, deter controle da decisão significa ter autoridade e influência sobre toda a organização. Alguns atores buscam boas relações com o Babalorixá com intenção de influenciar as decisões em benefício próprio, para obtenção de cargos ou de autonomia dentro da estrutura hierárquica. No entanto, este controle é mais restrito ao Babalorixá e aos seus prepostos diretos – Iyá ou Babalaxé; Iyá ou Babakekerê. 3.2.4 Controle do conhecimento e da informação O ambiente organizacional do candomblé é caracterizado por uma atmosfera de mistério, os neófitos são, logo cedo, advertidos que é inconveniente perguntar e sempre muito oportuno observar. Aí está um pilar fundamental para sustentação da estrutura de poder, i.e., saber é poder, e controlar esse saber, principalmente quando poucos o conhecem, garante aos detentores do conhecimento uma posição privilegiada. Para se fazer os ebós, para dar conta de todos os rituais e realizações dentro da dinâmica do terreiro é necessário o comando do Babá ou da Iyá, isso não acontece por acaso, mas sim porque eles são os que mais conhecem os preceitos e a forma de agir correta em cada situação. 29 Assim, faz parte do processo de luta pela manutenção do poder controlar esse conhecimento ritual. O mesmo vai sendo transmitido, muito lentamente, para os iniciados que vivem a rotina do axé e quando estes completam seu ciclo iniciático, que leva no mínimo sete anos, é comum que algum deles saia do terreiro e vá abrir sua própria casa, onde dessa vez, será aquele que detém o máximo conhecimento. No entanto, os pais e mães-de-santo costumam resguardar apenas para si muitos segredos, garantindo assim a necessidade de serem consultados sempre que necessário. A busca do saber ritual é constante, as pessoas querem saber cantar, rezar e fazer ebós para ter poder. Desta maneira, o acesso ao saber litúrgico naquilo que é considerado como ‘coisa de fundamento’, se faz de maneira gradual em consonância direta com os diferentes estágios ascensionais do indivíduo dentro do grupo religioso. Transgredir essa pedagogia, isto é, querer antecipar esta aprendizagem atropelando o tempo estabelecido, é ferir os sustentáculos da estrutura religiosa dos candomblés pondo em risco, entre outras coisas, a própria noção de poder que parece se apoiar também na noção de controle do saber religioso. (BRAGA, 1998, p. 25). Existe um forte aliado dentro do terreiro, que auxilia os pais e mães-desanto no controle da informação, desta vez trata-se de um eficiente mecanismo dentro da comunicação organizacional, i. é., uma forma de controle da circulação de informações dentro do terreiro – o ejó: O ejó, o fuxico feito, possibilita a circulação de informação, até mesmo das circunstâncias do sagrado, pela via não oficial, através da revelação de bocaem-boca, - o denominado “correio nagô”, do que está acontecendo de novidade em determinado terreiro de candomblé. Pelo ejó se chega às tramas mais complexas do mundo religioso alcançado, pelo detalhamento da ocorrência, aspectos preciosos que nenhuma competente etnografia seria capaz de captar. (BRAGA, 1998, p. 24). Já que não existe um processo de comunicação documentado é o ejó que possibilita aos líderes dos terreiros ter conhecimento do que acontece fora do alcance de suas vistas. O mesmo revela acontecimentos não só da vida “no santo” como das relações pessoais dos iniciados, ou seja, saber o que os filhos-de-santo fazem quando não são vistos, por onde andam, o que dizem confere ao sacerdote mais poder, pois, é preciso conhecer para dominar. 30 3.2.5 Controle dos limites Cada posto da hierarquia é caracterizado por obrigações a serem cumpridas bem como algumas prerrogativas que determinam uma função específica para cada posto. Demarcar os limites de cada um é fator primordial para manutenção da autoridade e poder dentro do terreiro. Esses limites dizem respeito não só às relações interpessoais como também ao espaço que é permitido a cada um ocupar dentro do universo religioso. Se considerarmos, por exemplo, que os iaôs têm seu espaço limitado, pois não podem entrar no quarto do santo em determinadas obrigações, na maioria das vezes não ficam conscientes nas horas “de fundamento”, pois por serem iaôs são novos no santo e nem tudo podem presenciar, são então tomados pelo orixá e entram em transe. Os ogãs tem seus limites, desde que não viram no santo não podem cumprir determinadas tarefas, outras ocupações são destinadas apenas às iyarobás e assim por diante. Ao longo dos anos, após as obrigações rituais que tornam os iniciados ebômis, alguns filhos-de-santo vão ultrapassando algumas fronteiras e seus limites tornam-se, com autorização de seu pai ou mãe, menos demarcados. Mas, nunca, deixarão de ser apenas iaôs perante o sacerdote que lhes iniciou, tendo sempre na figura deste, a maior autoridade que lhes governam depois do orixá pessoal. Embora cada um tenha suas idade, vai crescendo, subindo mais, vai tendo mais uma confiança de pai e mãe-de-santo revelar algumas coisas, ensinar, tudo isso, mas eu acho que sempre diante de uma mãe, de um pai-de-santo, o filho-de-santo sempre é pequeno. Porque a pessoa nunca vai se igualar. Embora que hoje tem filho-de-santo que jura pai-de-santo, jura mãe-de-santo e fica por isso mesmo. Agora quando tem um santo mesmo, que é desses que não leva desaforo, porque tem muito santo que age, que vê seus cavalo fazendo besteira e eles age na maneira do possível, já tem outros que deixa corrê a rivilia, que não acontece nada. Mas o santo que é santo mesmo, verdadeiro, que se preza, que se valoriza, quando vê que o cavalo ta errado eles tem por obrigação de agir. Ebômi Aldira de Omolu. Iniciada na década de cinqüenta por Mãe Menininha e atualmente auxilia a Iyalorixá do Ilê Axé Omon Ewá. Depoimento citado. 31 3.2.6 Alianças interpessoais, redes e controle da “organização informal”. Dentro da estrutura formal do terreiro, objetivada na hierarquia, estão expressas as relações de dependência daí recorrentes. No entanto, além de deter o controle, dessa que é a chamada organização formal, é útil para a mãe-de-santo conhecer e ter como aliadas as conformações da suposta organização informal e “todas as organizações têm redes informais nas quais as pessoas interagem de maneira a satisfazer a muitos tipos diferentes de necessidades sociais”. (MORGAN, 1996, p. 180). Filhos-de-santo que tem mais afinidade entre si vão se unindo em grupos de interesse, em caso de desentendimento ou por amizade ficam ao lado de quem gostam ou posicionam-se contra as atitudes de quem não se dão bem. Além disso, observa-se nesse ambiente que as pessoas acabam se unindo também por conta dos interesses. Então, se alguém quer aprender os segredos e “fundamentos”, este se une a algum membro mais velho do grupo e cerca-lhe de delicadezas e préstimos buscando ter em troca os ensinamentos desse ebômi. As relações de amizade e aliança são muito importantes, pois para o iniciado realizar suas obrigações, i.e, os ritos de passagem que permitem seu avanço gradativo na hierarquia, ele conta com o apoio das pessoas que farão todo o trabalho de preparar as comidas, os ebós, cuidar dos sacrifícios, uma infinidade de coisas que sem o apoio de outros conhecedores seria impossível de realizar. Da mesma forma, alguns filhos cercam seu pai ou mãe e mantêm uma postura prestativa e obediente, esperando ter o reconhecimento destes e as possíveis vantagens que possam advir dessa relação. Portanto, se o pai ou mãe-de-santo conhece os grupos informais que estão sendo constituídos no seu terreiro torna-se mais fácil a utilização a seu favor ou o mero controle destes. 3.2.7 Simbolismo e administração do significado O caráter eminentemente simbólico das relações que vão se estabelecendo entre posições na hierarquia possibilita aos agentes a construção de cenários e posições de poder dentro da estrutura religiosa. É importante lembrar que “imagens, linguagem, 32 símbolos, histórias, cerimônias, rituais e todos os outros atributos [...] são ferramentas que podem ser usadas na administração do sentido e, portanto, para delinear relações de poder na vida organizacional”. (MORGAN, 1996, p.182). O simbolismo está presente nas roupas que diferem explicitamente as posições hierárquicas de quem as utiliza, da mesma forma nas contas e adereços do povo-de-santo, nos objetos e utensílios, até mesmo na disposição dos móveis nos ambientes do terreiro. A cultura organizacional vai sendo construída e mantida por meio desse simbolismo. Pais e mães-de-santo são capazes de exercer influência na forma dos filhosde-santo perceberem a sua realidade e sobre a forma de agir de cada um. Essa capacidade de administrar o significado de sonhos, de atitudes e de acontecimentos coloca estes em situação de vantagem sobre seus filhos que terminam por acatar suas disposições dado o aparente caráter inquestionável da autoridade dos altos sacerdotes. E estes, por sua vez, conseguem chegar aos fins e objetivos desejados. 3.2.8 Sexo e administração das relações entre os sexos As relações de gênero no universo organizacional dos candomblés encontram-se no cerne das relações. O papel feminino historicamente constituído é de fundamental importância, por isso mesmo por muito tempo o Candomblé foi considerado uma religião feminina, daí a palavra iaô significar a esposa do orixá. Dos três terreiros, apenas o Ilê Odé é comandado por um homem, as duas casas ascendentes são governadas por mulheres desde a sua fundação, isso se deve também pelo fato do Babalorixá Everaldo ter herdado o cargo de pai-de-santo do seu pai biológico, que era pai-de-santo do Terreiro Ogun de Ronda. Existem papéis específicos atribuídos apenas para homens ou somente para mulheres, há formas de se comportar e se vestir dentro do universo simbólico que são orientadas pelo sexo das divindades. A administração dessas relações entre os sexos não é feita somente considerando o sexo biológico, pois, muitas atividades são consagradas as pessoas de determinadas entidades, independente do sexo dos iniciados. Portanto, posições de poder guardam estreita relação com a sexualidade, seja do iniciado, seja do orixá a qual pertencem. Jamais foi visto durante a pesquisa uma mulher realizar o sacrifício votivo de um animal, exceto a Iyalorixá que tem a prerrogativa de dar o primeiro golpe. 33 Acontece que, com a grande inserção de homossexuais femininos e masculinos nos terreiros, os limites dessas relações parecem tornar-se cada vez mais fluidos, o que, a depender da tradição da casa e do prestígio do seu líder no campo das religiões de matriz africana, principalmente dentro do grupo que segue a mesma tradição, pode causar impactos na diminuição da credibilidade dessa liderança e na seriedade do terreiro. Portanto, dentro dessa tradição fossilizada pelo costume saber administrar as relações entre os sexos também é garantir a manutenção das relações de poder. 3.2.9 O poder que já se tem O poder é uma via para o poder e, com freqüência, é possível usá-lo para se adquirir mais poder ainda. [...] A presença do poder atrai e mantém pessoas que desejam alimentar aquele poder e, na realidade, serve para aumentar o poder dos próprios detentores de poder. [...] O poder, como o mel, é uma fonte perpétua de sustento e atração para as abelhas trabalhadoras. (MORGAN, 1996, p. 190). O prestígio e legitimidade alcançada por um líder de terreiro é garantia de atração e continuidade na detenção do poder sobre outros. Um terreiro reconhecido e respeitado como é o Gantois, seguramente adquiriu um status no campo das religiões de matriz africana, que lhe foi legado por Mãe Menininha, que durante 64 anos liderou a casa e manteve relações internas e com a sociedade que ajudaram a construir sua personalidade mítica da maior Iyalorixá de todos os tempos na Bahia. Seguramente, mesmo após os 20 anos de sua morte, o terreiro que lhe pertenceu usufrui desse prestigio, hoje, representado na figura de sua filha biológica Mãe Carmem. Se um pai-de-santo é reconhecido por seus dons no jogo de búzios, por ter uma casa próspera e cheia de filho-de-santo e clientes, é indicativo de que desempenha bem seu trabalho, e isso atrai a atenção das pessoas, aumenta seu séqüito e, evidentemente, dilata as fronteiras de influência da sua personalidade sobre outras pessoas, conserva ou aumenta seu poder. 34 Figura 12 – Babá Augusto César Fonte: Acervo Próprio Figura 13 – Sr. Nadinho, alabê do Gantois Fonte: Acervo Próprio Ao longo da pesquisa algumas citações e depoimentos colhidos demonstram a relação entre personalidade e poder, i.e., a ligação entre a figura de um líder e o que a imagem desse líder, seja na mídia, seja entre as pessoas, pode trazer de reconhecimento também para seu terreiro e descendentes. Em 1982, o escritor Jorge Amado conduziu Mãe Menininha a uma festa no centro de Salvador, a mesma estava impedida de andar por problemas de saúde: Ao chegar, achei que não seria possível atravessar a multidão até o palanque com Menininha naquele sofá. Mas quando o povo a reconheceu, surgiu um corredor no meio da multidão. Eles recuavam e aplaudiam. Foi de arrepiar. (Revista VEJA. 8 de fevereiro de 1984, p. 62). Em ocasião do sepultamento de Mãe Menininha: As homenagens que os representantes do poder prestaram à velha senhora do Gantois por ocasião de seu sepultamento mostraram até onde haviam chegado a sua influência e o seu prestígio. [...] A matriarca de uma religião que até há quarenta anos era praticada por descendentes de escravos – ela própria nessa condição – tinha a louvá-la toda uma gama de representantes do poder. (Revista VEJA. 20 de agosto de 1986, p. 76). No depoimento de um filho-de-santo: No ano de 1974 eu tive a graça de ser iniciado por Mãe Menininha. Vou fazer nesse ano de 2006 trinta e dois anos de feito. Quando eu fui feito minha Mãe Menininha disse que eu seria muito feliz, e eu sou. Tudo o que eu sou eu 35 devo ao candomblé, eu devo a minha mãe. Ebômi Augusto César de Logunedé5. Depoimento Citado. 4 HIERARQUIA E EXPRESSÕES DE PODER A hierarquia é um fator da maior importância no Candomblé. É quem rege todo o sistema, é muito rígida, é uma parte importantíssima dentro do sistema. Existem determinados postos que são relacionados com a família, no sentido de se manter a família organizada e com o poder da casa do candomblé. Esses postos são vitalícios. Babalorixá Augusto César de Logunedé. Depoimento Citado. 4.1 A hierarquia nos Terreiros O Candomblé é uma religião de caráter iniciático, ou seja, para que uma pessoa se integre, de forma participante, à organização formal é necessário passar por uma série de rituais, que não serão descritos nesse trabalho. Pessoas se aproximam de uma casa de santo por diferentes motivos, que vão desde alguém que nasceu no terreiro, por curiosidade, por problemas de saúde ou investigação científica. O indivíduo que começa a freqüentar a casa e ainda não é iniciado chama-se abiã, este acompanha as festas, freqüenta a casa, pode passar por banhos de folha e alguns rituais mais simples, mas a ele não é revelado nenhum segredo. O abiã não entra no quarto-de-santo e nem no roncó (camarinha), ele fica privado de participar das cerimônias até que se torne um iâo. “A Abiã ainda não é filha-de-santo. É uma aspirante que ainda se encontra no estágio de quem já fez uma pequena obrigação, que freqüenta o terreiro e participa de certas cerimônias rituais. A abiã pode ou não tornar-se uma Iyawô.” (SIQUEIRA, 1998, p. 197). Prandi (1991, p. 164) faz uma síntese para explicar a distinção entre os iniciados que manifestam orixá e aqueles que não têm essa possibilidade: Há duas classes de sacerdotes no candomblé, os que rodam no santo, viram no santo, entram em transe; e os que não. Os primeiros são os chamados 5 Trinta e dois anos de iniciado por Mãe Menininha no Gantois. È Babalorixá do Ilê Omorodé Orixá N’Lá no bairro de Portão em Lauro de Freitas. 36 rodantes e terão que passar pelo rito de feitura, fixação do orixá na cabeça (ori) e no assentamento, o ibá-orixá, que é o altar particular deste orixá pessoal [...]. Estes rodantes, uma vez “feitos”, formam a classe dos iaôs, os quais, após a obrigação do sétimo ano de iniciação, atingem o grau de ebômi, passando a fazer parte do alto clero, recebendo cargos na hierarquia, ao lado do pai ou da mãe-de-santo, a autoridade suprema. Na base da escala hierárquica estão os iaôs, esses são os filhos-de-santo, que podem ser homens ou mulheres, de quando se iniciam a um determinado orixá por meio da feitura até o fechamento do ciclo iniciático, no momento da obrigação de sete anos. A feitura é o início do processo de formação do iaô, “considera-se como fundamental saber observar com respeito, e sem fazer perguntas; esta é a base de formação de uma Iyawô”. (SIQUEIRA, 1998, p. 200). Segundo Lima (2003, p. 73) “a palavra iaô provém do iorubá iyawo (iauô), que significa a esposa mais nova nos sistemas familiares poligínicos dos iorubas”. Nota-se em Prandi (2001, p. 54) que “as iaôs (ou os iaôs, pois há muito a palavra iaô perdeu no candomblé a conotação de esposa), os jovens iniciados, enfim, só fazem obedecer, usando símbolos e cultivando gestos e posturas que denotam a sua inferioridade hierárquica”. Os iaôs representam a base do trabalho em uma casa de candomblé, varrem o chão, limpam a casa, acendem o fogo, carregam água, decoram o barracão, se houver necessidade podem fazer a comida, tanto ritual como a alimentação. Ainda não têm poder decidir, somente obedecem às autoridades da casa. Para facilitar o entendimento do processo de mobilidade na hierarquia do terreiro, é oportuno observar a explicação de Prandi (1991, p. 155) para o termo obrigação na linguagem do povo de santo: A idéia de obrigação, no candomblé, é sempre associada à obrigação ritual, ou seja, à relação entre o deus e seu filho iniciado para seu culto. Nessa relação a mãe ou o pai-de-santo é o único intermediador, pois só ele conhece a forma de lidar com o orixá da pessoa, orixá que ele “fez”, quando se trata do pai da iniciação original, ou orixá que ele “consertou”, quando se trata de filho ou filha anteriormente iniciada em outra casa. A idéia de dever é sempre referida à divindade, nunca ao outro, ao grupo, à sociedade envolvente. Ou seja, a idéia de obrigação, dever, dívida, pagamento, código de conduta, diz sempre de algo que se realiza no espaço sagrado de terreiro, no culto. No candomblé, o culto é todo ele organizado em torno de sacrifícios rituais e muitas vezes pessoais, como conseqüência. Outra categoria é formada pelos ebômis, iniciados que eram iaôs e passaram pela obrigação de sete anos. Em Iorubá, egbon mi quer dizer meu irmão ou minha irmã mais velho (a). O ebômi possui certo prestígio dentro da casa, é dentre eles 37 que o pai ou mãe-de-santo escolhe aqueles a quem dará o direito de também ser um pai ou mãe e abrir sua própria casa de candomblé ou outorga-lhes um cargo executivo, no sentido de desempenhar uma função específica, na organização. “As ebômins elevadas a essas categorias executivas partilham, de certa maneira, da autoridade da mãe do terreiro, por seu consentimento e sob a sua constante supervisão. É um privilégio da liderança delegar poderes e fazer-se representar”. (LIMA, 2003, p. 81). Sobre distinção de ebômi e iaô é oportuno observar Prandi (1991, p. 164): Os ebômis distinguem-se publicamente dos iaôs usando peças de vestuário àqueles interditadas; ao invés dos colares de contas de muitas voltas do iaô, o ebômi usa colares montados de forma diferente [...] Iaô dança descalço; ebômi usa sapato, ebômi trata a mãe-de-santo quase como igual; o iaô, nem pensar. 4.2 Sobre Ogãs e Iyarobás Embora Nina Rodrigues seja acusado de preconceituoso por conta de sua teoria evolucionista, pautada na inferioridade da raça negra, não serão consideradas aqui suas teorias, mas a grande contribuição que suas observações deram, tornando-se O Animismo Fetichista dos Negros Baianos, a primeira etnografia brasileira sobre as religiões e o culto afro-brasileiro na Bahia no final do século XIX. A iyarobá, ‘preposta especial’ também aparece descrita em sua obra, quando ele observa uma festa no terreiro, onde “os negros se entregam nas suas danças sagradas, por horas e horas seguidas, por dias e noites inteiras; é preciso tê-las visto cobertas de suor copiosíssimo que as companheiras ou prepostas especiais enxugam de tempos em tempos em grandes toalhas ou panos”. ( 2005, p.76). As iyarobás também podem ser escolhidas pelo Babá ou Iyá para receberem títulos hierárquicos que venham a lhes constituir mais autoridade e poder no terreiro, podendo chegar a Iyalaxé, a mãe do axé, ou Iyakekerê – a mãe pequena da casa estando abaixo apenas do pai ou mãe-de-santo. No Ilê Odé, a Iyakekerê é uma Iyarobá, iniciada ao orixá Oxum, foi indicada pelo orixá do pai-de-santo para ser a mãe pequena. No dia 18 de março de 2006, na festa de Oxóssi, o orixá do Babalorixá, comunicou publicamente a todos que estavam no barracão que, a partir daquele dia, ela seria a Iyakekerê do Ilê. Esse cargo só deixará de ser ocupado pela mesma em caso de 38 falecimento, é um cargo vitalício como também o são: Babalorixá, Babalaxé, Iyaegbé e muitos outros. O processo para tornar-se iyarobá ou ogã não é o mesmo a que são submetidos os iaôs. Em alguma festa pública, quando os orixás estão manifestados nos filhos-de-santo, ou até mesmo no pai ou mãe-de-santo, um deles dirige-se a alguém na platéia e oferece-lhe o braço, se a pessoa aceitar, ao toque dos atabaques, o orixá conduzirá a pessoa aos quatro lados do barracão e em seguida sentará a pessoa numa cadeira para que todos venham cumprimentá-la. Esse é o momento onde o orixá “suspende” ou “aponta” o ogã ou a iyarobá. A partir daí, se interessar, a pessoa procura o pai ou mãe do terreiro para realizar a iniciação, que lhe conferirá um grau de pai e mãe, porém em uma escala hierárquica inferior ao pai ou mãe-de-santo. Esta é uma categoria de iniciados que não manifestam o orixá, ou na linguagem de terreiro, não viram no santo. Os homens são chamados de ogãs e as mulheres de iyarobás. Há vários tipos de ogãs, cada um com atribuições delimitadas: os Alabês, que são os músicos que tocam os atabaques, instrumentos sagrados que propiciam a descida dos orixás ao mundo físico; o Axogum é aquele que tem autoridade de utilizar a faca nos sacrifícios rituais; Akirijebó é aquele que leva os ebós que precisam ser entregues a Exú nas ruas ou encruzilhadas; o Pejigã é quem cuida da organização dos assentamentos de orixá, o Elemaxó se encarrega dos objetos e do culto a Oxaguiã. As iyarobás também se dividem por funções; Iyateni cuida dos iaôs quando entram em transe, vestem e acompanham os orixás no salão na hora em que dançam; a Iyabassê faz a comida dos orixás, ou ainda, podem ser encarregadas de cuidar de um orixá em específico, elas ajudam o líder do terreiro na preparação dos rituais. O ogã, em alguns trabalhos, aparece como uma figura que tinha certo prestígio social e podia contribuir para o bom andamento das atividades do candomblé, pois, “as incursões policiais ocorriam tão inesperadamente e podiam ser tão violentas que era vital para os adeptos do candomblé ter amigos em muitos lugares”.(LANDES, 2002, p. 74). A presença de ogãs jornalistas, intelectuais ou até políticos serviam para intimidar as invasões policiais. Esta presença, ainda nos fins do século XIX, foi assim comentada: O ougan ou os ougans, porque cada confraria de um santo pode ter o seu ougan. São os responsáveis e protetores do candomblé. A perseguição de que eram alvo os candomblés e a má fama em que são tidos os feiticeiros, tornavam uma necessidade a procura de protetores fortes e poderosos que 39 garantissem a tolerância da polícia [...] Os ougans têm obrigações limitadas e direitos muito amplos. Além da proteção dispensada devem fazer ao seu santo presentes de animais para as festas e sacrifícios. Têm direitos a cumprimentos especiais dos filhos de santo, a serem ouvidos nas deliberações do terreiro, a saírem todos os santos e o terreiro em seu favor, no caso que estejam ameaçados de alguma ofensa ou desgraça, etc. (RODRIGUES, 2005, p. 49). Braga (1999) estudou a presença do ogã nos candomblés de Salvador. Ele lembra que na época das invasões policiais aos terreiros, os ogãs desempenhavam o papel fundamental de negociação e mediação de conflitos entre os terreiros, o poder público e/ou a sociedade. Em certa época, os mesmos foram escolhidos por conta de seu prestígio e condição social para serem protetores dos terreiros, embora ainda ocorra essa prática, isso não significa dizer que todos os ogãs são brancos ou possuam certa notoriedade na sociedade. Há muitos deles escolhidos também dentro do grupo social interno, como parentes do Babá, amigos dos filhos-de-santo ou até mesmo vizinhos. É freqüente a escolha do ogã que é membro da família biológica do líder religioso, sendo comum iniciação ainda quando criança. Também pode haver um caráter político para a escolha do ogã por parte do pai ou mãe-de-santo, a esse respeito Braga esclarece: A compreensão que se tem é de que parece existir uma necessidade de o líder se cercar de algumas pessoas de confiança a quem atribui, além das funções normais do cargo, outras tarefas do dia-a-dia que exigem grau maior de confiabilidade, como cuidar das economias pessoais e resolver outros tantos problemas específicos da comunidade religiosa. Alguns ogãs se fazem merecedores da confiança do pai ou mãe-de-santo, tornam-se confidentes e participam da vida íntima da comunidade religiosa, despertando o ciúme de outros que não desfrutam da mesma situação. (BRAGA, 1999, p. 47). O que deve ser esclarecido a respeito da participação do ogã na estrutura funcional do terreiro é que, mesmo que a sua integração ao grupo tenha se dado, inicialmente, porque os líderes religiosos tinham interesse na participação de pessoas bem colocadas na sociedade para defenderem o candomblé das ameaças e preconceitos da sociedade, isso não isentou esses participantes das obrigações rituais e sua relação com o sagrado dentro do terreiro. Eles têm status de autoridade, podem ocupar cargos de grande prestígio e poder na hierarquia, prova-se essa afirmação no Ilê Odé, casa onde o Babalaxé, ou seja, o pai do axé, da força-motriz do culto - Rogério da Hora - é um ogã iniciado a Oxaguiã, que também ocupou o cargo de Elemaxó, o responsável pelo culto e pelos objetos sagrados do orixá Oxalá – o grande pai. O ogã Cristiano Aguiar, de Xangô Ogodô, é portador do título (oyê) de Sobaloju, que é o responsável 40 pela organização do culto a Xangô na casa do candomblé, bem como cuidar dos objetos sagrados que pertencem a esse orixá e participar da organização de sua festa. Na mais alta escala hierárquica estão os Babalorixás e Iyalorixás. Para tornar-se um Babá ou Iyá é necessário, um dia, ter sido uma iaô. Só os filhos-de-santo, ou seja, aqueles que recebem o orixá, podem vir a ocupar essa posição. Pois, “sem santo que se manifeste em transe, não há poder, autoridade, disciplina e, sobretudo, investidura no cargo de iniciador” (PRANDI, 1991, p. 175) Destarte, os pais e mães-desanto viveram como iaôs e participaram por longo tempo das cerimônias rituais, antes que viessem a se tornar líderes religiosos. Segundo uma expressão do próprio povo de santo “é preciso ter lodo na unha” para ocupar esse cargo, isso significa dizer que é necessário muito trabalho. O Babalorixá é o pai que tem o orixá, porque em realidade nós não somos pais dos orixás, os orixás é que são nossos pais. O Babalorixá, ele tem o poder, a ele é dado o poder de uma relação mais íntima com o orixá. Ele é pai no sentido porque ele é homem, e Iyá porque é mulher. Ebômi Augusto César. Depoimento Citado. O líder do axé exerce autoridade sobre todos os membros da hierarquia. Ninguém faz nada sem que antes informe o que pretende fazer. Todas as vezes que alguém for levar uma oferenda para ser colocado no peji (espécie de altar), levar a comida na casa de Exu ou qualquer outra atividade que implica uma oferenda ou ebó, é necessário antes solicitar ao pai ou mãe que coloque sua mão sobre o objeto. Ao tocálo, simbolicamente, se está concedendo poder para que a pessoa possa entregar aos orixás a oferenda. Lima (2003, p. 136) informa que: É a mãe-de-santo, além disso, quem dirige efetivamente toda atividade da casa: as cerimônias públicas das grandes festas dos orixás maiores dos terreiros e os ritos privados que só os filhos da casa participam; o ossé semanal dos santos; a disciplina dos filhos e a economia do terreiro; os mecanismos de promoção e de mobilidade intragrupal e a assistência espiritual e material à imensa variedade de situações de crise e de necessidades de todos os seus filhos e suas famílias. A autoridade de um pai ou da mãe se renova todos os dias no seu contato com os orixás, mas nem por isso, é exercida sem que haja conflitos ou tensões. Assim, mais uma vez, a dimensão política da organização faz-se manifestar, só o poder da divindade não é suficiente para manter a ordem. Além de bons líderes religiosos, os 41 pais e mães precisam desenvolver habilidades de fazer alianças, cercar-se de pessoas que possam facilitar e/ou legitimar sua gestão, além de ter habilidade para se relacionar e fazer-se respeitar, ou seja, é necessário criar uma política organizacional que facilite a aceitação de sua autoridade. Morgan (1996) sugere, como critério para análise da política organizacional, o foco nas relações entre interesses, conflito e poder. “Ao se falar a respeito de interesses, fala-se sobre um conjunto complexo de predisposições que envolvem objetivos, valores, desejos, expectativas e outras orientações e inclinações que levam a pessoa a agir em uma e não em outra direção” (p. 153). Essa proposição é válida também no Candomblé. Observa-se no contato com o povo-de-santo, que as pessoas vivem em dois universos paralelos: a vida no terreiro e a vida cotidiana do lar, do trabalho e da família. Ou seja, mesmo submetendo-se a viver uma realidade de restrições e obediência na religião, estando no terreiro ou fora dele, não é possível despir-se das concepções e interesses da vida material. Portanto, pessoas que possuem diferentes modos de vida e formas de perceber o mundo, convivendo num ambiente autoritário, hierárquico e cheio de mistérios como o dos terreiros, acabam, em algum momento, manifestando suas diferenças e conflitos de interesse. Sobre o conflito, Morgan elucida: O conflito aparece sempre que os interesses colidem. A reação natural ao conflito dentro do contexto organizacional é vê-lo comumente como uma força disfuncional que pode ser atribuída a um conjunto de circunstâncias ou causas lamentáveis. [...] Pode ser explícito ou implícito. Qualquer que seja a razão e qualquer que seja a forma que assuma, a sua origem reside em algum tipo de divergência de interesses percebidos ou reais. (MORGAN, 1996, p. 160). Mais uma vez Lima (2003, p. 170), esclarece muito bem a existência de conflitos nos candomblés: O quadro que se tem visto descrito freqüentemente nos relatos etnográficos ou nas análises mais ambiciosas de alguns autores, é o do candomblé enquanto grupo homogêneo – que sem dúvida o é – e harmônico – o que, certamente, não acontece. Ou não acontece sempre. A harmonia e o equilíbrio são a finitude mesma de qualquer organização grupal mas a tensão e o atrito formam a dialética deste equilíbrio. Os irmãos na família, e, portanto os irmãos na família de santo, podem ser rivais e mesmo inimigos. Podem discordar em termos de um fácil entendimento posterior ou chegar a disputas mais sérias, de mais difícil acordo, ou que levem a um rompimento duradouro ou permanente. 42 O desrespeito à hierarquia ou sua supressão representa um constante ponto de conflito nas casas de santo, por exemplo: não pedir a bênção aos mais velhos, não fazer o cumprimento diferenciado às maiores autoridades da casa e passar à frente de alguém mais velho no santo em alguma obrigação. Quando tratou-se da origem dos terreiros foi citado sucintamente um exemplo crítico de conflito no candomblé: a fundação do Gantois, em 1849, só aconteceu porque Maria Júlia da Conceição Nazaré não aceitou ser preterida como a Iyalorixá do Ilê Iyanassô Oká, que fora herdado por sua irmã-de-santo. Sua dissidência culminou na fundação de sua própria casa de axé. Outro exemplo de conflito extraído da pesquisa ocorre no Ilê Odé Axé Oba Omi: a Iyakekerê, ou mãe pequena, da casa é irmã biológica do Babalorixá, foi iniciada em um terreiro onde a sua mãe-de-santo possuía conhecimentos dos padrões litúrgicos da nação Ketu e Angola6, nesse terreiro os rituais diferem das casas tradicionais Ketu, como é o caso do Gantois. Por conta disso, a mesma vem apresentando oposição e discordância ao andamento das atividades da casa. É comum também haver divergências, mesmo que latentes, entre os recém iniciados e as autoridades da casa, por conta do processo inicial de adaptação à rigidez das normas da religião. 4.3 Símbolos e Expressões de Poder O poder nos terreiros não se expressa somente na estruturação da divisão hierárquica e dos oyês (títulos honoríficos). Pode-se observá-los desde representações simbólicas físicas – o poder objetivado – até às maneiras com que pessoas se comportam na presença de outras, às quais têm uma relação desigual de poder. É possível distinguir quem tem mais poder pela roupa que veste, pelas contas que usa e até mesmo pela forma como se dirige a outros membros do grupo. Ao se observar as interações, entre membros do candomblé que possuem uma relação assimétrica de poder, alguns exemplos possibilitam a percepção do exercício do poder no terreiro: 6 Denominam-se de candomblé Angola, os cultos de matriz africana onde predomina a influência da língua kimbundo, e rituais religiosos herdados dos povos Bantu (Congo e Angola). 43 4.3.1 A senioridade: No terreiro, a idade biológica pouco importa o que vale é a idade de santo, onde os mais velhos têm prerrogativas e direitos a se posicionar na frente dos mais novos.“Toda hierarquia religiosa é montada sobre o tempo de aprendizagem iniciática, numa lógica segundo a qual quem é mais velho viveu mais e, por conseguinte, sabe mais” Prandi (2001, p. 54). Quando se recolhe um barco de iaôs para iniciar os ritos de feitura no santo, que é o primeiro passo para se integrar à hierarquia, é obedecida uma ordem, essa ordem será para sempre respeitada enquanto os componentes daquele barco fizerem parte do candomblé. O barco nada mais é do que o grupo de pessoas que passam juntas pelos ritos iniciáticos. “O ilê axé é composto por uma hierarquia baseada na idade iniciática. Esse valor da antiguidade da iniciação caracteriza as diferenças de poder e status entre os irmãos”. (LUZ, 1995, p. 534). Após o período de reclusão haverá uma cerimônia pública, onde os orixás, incorporados em seus iniciados irão gritar seu orunkó (nome) no barracão. A partir daí, eles serão chamados dentro do grupo pela ordem de entrada na camarinha onde passaram pela iniciação e pela mesma ordem onde serão apresentados ao público na saída: o primeiro é o dofono; o segundo dofonitinho; o terceiro fomo; o quarto fomutinho; o quinto gamo; o sexto gamotinho; o sétimo domo; o oitavo domutinho; o nono vito e o décimo vitutinho. Luz (1995, p. 533) elucida: “Para os sacerdotes, antiguidade significará posto, isto é, espaços específicos para o exercício das qualidades e atributos do seu axé”. Sobre este princípio, afirma Vivaldo: Esse princípio, já foi dito, é válido na estrutura do próprio barco, em que o dofono é sempre o mais velho do que os outros irmãos do barco, e o segundo mais velho do que o terceiro, este mais velho do que o quarto, e assim sucessivamente. Pequeno ou desprezível que pareça o tempo de diferença em termos de duração mensurável, esse intervalo no candomblé possui um sentido que está para além das dimensões convencionais do tempo. (LIMA, 2003, p. 78). 44 Figura 14 – Ebômi Rosinha Fonte: Acervo Próprio Figura 15 – Dofona de Oxum Fonte: Acervo Próprio 4.3.2 O conhecimento: É “o tempo de santo”, que confere a sabedoria – o maior dom que uma pessoa pertencente ao Candomblé pode receber. De alguém do candomblé que sabe, diz-se “Ela sabe”. Pode entrar e sair de qualquer Terreiro, “sem fazer vergonha”, como se diz no Candomblé, a vergonha é não saber. Saber, no candomblé, significa ser capaz de participar com perfeição, seja nos atos mais simples como a recepção de alguém no Terreiro, seja na preparação de tudo que é necessário para a realização de um rito, ou seja, ainda, ser capaz de receber seu próprio orixá ou preparar os outros para sua recepção. (SIQUEIRA, 1998, p. 202). Trata-se aqui do conhecimento ritual, ou na linguagem do povo de Candomblé – “os fundamentos”. Esse conhecimento é transmitido oralmente e pela participação nas obrigações no terreiro, onde os mais velhos vão ensinando os mais novos como fazer as comidas votivas, os ebós, os cânticos e as danças. “Os ebômis são os que sabem, porque são mais velhos, viveram mais, acumularam maior experiência. Sua autoridade é dada pelo conhecimento acumulado, que pressupõe saber maior” (PRANDI, 2001, p. 54). Para deter esse conhecimento é preciso, antes, viver a religião e demonstrar compromisso e humildade para que os ebômis o transmitam. Sendo assim, quem possui esse conhecimento detém um poder acumulado ao longo dos anos. “Conhecer e saber, nesse contexto é experimentar, sentir, vivenciar. Não há separação estanque entre vivido e concebido, saber é fazer e fazer é saber”. (LUZ, 1995, p. 574). Ou como complementa Prandi (2001, p. 55): “Saber é poder, é proximidade maior com os deuses 45 e seus mistérios, é sabedoria no trato das coisas de axé, a força mística que move o mundo, manipulada pelos ritos”. 4.3.3 O xirê: A roda realiza princípios hierárquicos entre as sacerdotisas iniciadas. Se, no início do xirê, a ocupação do espaço do ilê nla, templo das festas públicas, a disposição de cada indivíduo pertencente ao egbe indica o seu grau hierárquico, se uma série de formas de cumprimentos e saudações reforçam os vínculos de aliança e hierarquia do egbe, durante a roda a mobilidade e a dinâmica litúrgica reforçam na representação espaço-temporal as formas de coesão grupal. (LUZ, 1995, p. 578). O xirê ou sirè que significa festa, ou ainda, é a roda que formam os filhosde-santo em sentido anti-horário, liderados pelo pai. Ao som dos atabaques, tocados pelos alabês, o pai ou mãe puxa a roda, sendo seguido das autoridades e dos filhos-desanto, conforme o princípio da senioridade. Todos cantam e dançam três cantigas para cada orixá, na seqüência: Exu, Ogum, Oxossi/Logun, Ossain, Iroko, Omolu, Oxumarê, Nanã, Oxum, Ewá, Obá, Oyá, Iyemanjá, Xangô, Oxaguian e Oxalufan. Cada filho-desanto, enquanto a roda prossegue cantando para seu orixá, em sinal de respeito, dirigise ao pai-de-santo e suas autoridades para pedir-lhes a bênção. 4.3.4 Os cumprimentos: A forma de cumprimento entre o povo-de-santo é diferenciada para as distintas posições hierárquicas. Os iaôs dão dobale ao pai-de-santo, ao Pai pequeno, ao Babalaxé, à Iyakekerê, à Iyaegbé e aos filhos-de-santo que estiverem incorporados de seus orixás. Entre si os iaôs, após ter cumprimentado todos os mais velhos na hierarquia, pedem a bênção aos outros iaôs mais velhos e estes lhes abençoam e seguida pedem-lhes a bênção como manda a tradição. O dobale7 é um cumprimento que simboliza o respeito dos iaôs às pessoas ou entidades aos quais rendem essa homenagem, consiste em prostrar o corpo no chão aos pés desses, sendo que, há uma variação nos movimentos, a depender do sexo e de que orixá o filho-de-santo pertence. Os ebômis cumprimentam o seu pai-de-santo, também com o dobale, a não ser em casos de impedimentos físicos ou quando estes os 7 O mesmo cumprimento aparece na literatura como foribalé. (LIMA, F. B. 2005). 46 liberam dessa obrigação. Entre si cumprimentam-se pedindo a bênção: o mais novo ao mais velho e este abençoa o primeiro e lhe pede a bênção em seguida, em demonstração de respeito e obrigação. Os ogãs e iyarobás, a depender do grau na hierarquia, também dão dobale ao pai-de-santo. Figura 16 – Iaô dando dobale Fonte: Acervo Próprio Os cumprimentos rituais revelem simetrias e assimetrias de poder, podem expressar autoridade e hierarquia, status e posição social no grupo. Nas sutilezas do povo-de-santo pode ser usado para expressar graus de afinidade ou desapreço pessoal, ainda demonstram respeito ou hostilidade. 4.3.5 O comportamento: Facilmente identifica-se um iaô na casa de axé. Na época da feitura usam guizos amarrados aos pés, os xaurôs, para que seus movimentos sejam sempre vigiados. Eles andam descalços ou com uma espécie de sandália branca, fechada na frente e aberta na parte traseira do pé – os chagrins. Sentam-se em esteiras feitas de palha ou em pequenos bancos chamados de apotis, esses bancos são confeccionados em tamanho inferior a todos os assentos da casa, justamente para que o iaô nunca se sente à mesma altura dos ebômis ou do Babalorixá. Além disso, nunca se dirigem ao pai-de-santo olhando-o nos olhos ou de pé. Quando são retaliados, ou repreendidos, nunca respondem e pedem a benção ao seu pai 47 por aquela correção, isso, quando não são tomados por seus orixás, que se manifestam, tal o poder do pai-de-santo sobre seus filhos. Cada vez que algo de novo é ensinado a um filho-de-santo, independente de sua idade de iniciação, se tem educação de axé, este pede a bênção, em sinal de respeito e agradecimento, ao que lhe transmitiu mais um conhecimento. A hora das refeições no candomblé é, acima de tudo, um momento de reunião da família-de-santo e, das visitas ou pessoas próximas à casa do candomblé, quando as mesmas estão no terreiro. No Ilê Odé, a mesa é posta e sentam-se ao seu redor somente o Babalorixá, os ebômis, ogãs e iyarobás e demais autoridades. Todos os iaôs sentam-se em esteiras, segundo a ordem de idade de iniciação e irão comer em pratos diferenciados dos demais membros da hierarquia, utilizam o prato e o caneco de ágata, um tipo de prato metálico e esmaltado na cor branca. Figura 17 – Iaôs sentados na esteira Fonte: Acervo Próprio Depois que alguém mais velho põe a comida em seus pratos, cada um dos iaôs, na ordem da idade de iniciação dirige-se ao pai-de-santo pra pedir a bênção, oferecendo-lhe o prato e este então o abençoa. O mesmo será feito para todos os mais velhos, e só após esse ritual, é que o filho-de-santo poderá comer. Os ebômis, por conseguinte, pedem também a bênção aos seus mais velhos e são retribuídos da mesma forma. 48 4.3.6 A obrigação de sete anos É a cerimônia que marca a passagem da categoria de iaô para ebômi, podendo este vir a tornar-se Babá ou Iyalorixá. No dia da festa pública na obrigação de sete anos a mãe-de-santo pode entregar ao ebômi uma cuia contendo uma navalha e a tesoura, que representam os símbolos da feitura de iaô. Esse momento representa a transferência do poder, onde a Iyá concede a seu filho a permissão para abrir uma casa de candomblé e ter seus próprios filhos-de-santo. Nos candomblés Gantois essa cerimônia não é formalmente chamada de decá, usa-se o termo obrigação de sete anos. No entanto para efeito de esclarecimento o termo foi citado, pois é conhecido entre o povo-de-santo e, aparece na literatura consultada com o mesmo sentido da obrigação de sete anos, como em Luz (1995, p. 528): Esse processo está inserido na própria instituição do “decá”, palavra Jeje que caracteriza o ritual de entrega da cuia, da tesoura e da “navalha”, elementos simbólicos da iniciação da iawô, isto é, da neófita, quando esta, depois de sua obrigação de sete anos, solenemente passa ao status de ebômi e encontrase em condições de poder ter sua própria casa de culto. 4.3.7 Adereços e vestimentas As roupas e os tipos de colares utilizados são marcos simbólicos do pertencimento a determinado orixá, bem como distintivos de poder e diferenciação entre os membros da hierarquia. Cada orixá é representado por colares de contas em cores específicas: para Oxóssi o azul claro leitoso, para Oyá o marrom terra, para Iyemanjá miçangas transparentes, para Oxalá o branco, para Xangô miçangas alternadas entre vermelho e branco ou marrom e branco. Quando se é iaô, usa-se um colar de palha-da-costa trançada com uma espécie de vassoura em cada ponta – o mocã. Também usam os diloguns – “na verdade, o termo dilogun é a abreviação da palavra iorubá mérindínlógún, que significa dezesseis” (CAPONE, 2004, p. 63) - são as insígnias do iaô, constituem-se em colares de dezesseis fios de miçangas fechados por uma firma. Geralmente usam-se três diloguns: um representando o orixá do pai-de-santo, outro do orixá pessoal e um de Oxalá. O pai-de-santo e os ebômis usam contas mais grossas, muito enfeitadas, por vezes feitas de coral, pedras africanas e símbolos que representam elementos da natureza e os orixás. Existe um colar característico que se usa após os sete anos de 49 iniciação – o runjebe, que possui intrínseca ligação com o orixá Oyá. São comumente usados também o Brajá, todo feito em búzios da costa, e o Laguidibá, colar distintivo do ebômi de Omolu, feito de chifre. Figura 18 – Detalhe: Contas Fonte: Acervo Próprio Figura 19 – Iaô de Ogum Fonte: Acervo Próprio As roupas dos iaôs são mais simples, geralmente brancas, para os homens calça e uma camisa branca sem bolsos ou enfeites; para as mulheres saias rodadas com fitas e bico nas bordas, anáguas, um camisu e o pano-da-costa. Em dias de festa utilizam estampas em cores que lembram seus orixás. A mãe e o pai-de-santo, os ebômis e ogãs têm roupas mais incrementadas do que os iaôs, usam rechilier e outros tecidos mais nobres e bastante coloridos com um pano da costa. Só os ebômis entram no xirê calçados, os iaôs dançam descalços. 4.3.8 Instrumentos evocatórios O Ajá ou Adjá é uma sineta de metal, utilizada pelos líderes e autoridades do candomblé nas festas públicas ou durante as oferendas e rituais, com a finalidade de chamar os Orixás. É composta de um cabo do mesmo material com vários cones (bocas) acoplados, pode ter uma, duas, três ou mais bocas. Só pessoas de autoridade no terreiro podem usar esse instrumento, ao balançar o adjá junto ao ouvido do filho-desanto, este, imediatamente, será tomado por seu orixá. 50 Figura 20 – Detalhe: Xérem Fonte: Acervo Próprio Figura 21 – Adjá Fonte: www.omundodamagia.com O Xérem (ou xeré) tem um formato de uma esfera metálica oca, presa em um cabo, que pode ser de madeira ou de metal. Dentro da esfera há pequenas partículas sólidas, que quando se balança o instrumento tem-se um som muito peculiar que é invocatório aos orixás. Geralmente um ogã de Xangô ou o próprio Babalorixá o utilizam sempre nas obrigações e festas desse orixá. Exitem também, o kalakolô, formado por dois cones de metal e os ogués, que são dois chifres de búfalo, ambos os instrumentos são empunhados por alguém investido de autoridade para manuseá-los. 3.3.9 As cadeiras do barracão No barracão do terreiro existem as cadeiras dos pais de santo e demais autoridades. Em geral a cadeira do pai ou mãe é maior e mais rica em detalhes, próxima a ela fica a cadeira do Babálaxé e da Iyakekerê. Existem também cadeiras para receber autoridades de outros terreiros. É comum, nos terreiros, os pais e mães-de-santo possuírem cadeiras que assemelham-se a verdadeiras obras de arte esculpidas com detalhes que remetam ao universo mítico da religião. Certamente, essa breve análise não abrange todos os símbolos existentes nesses terreiros, mas fornece uma descrição que é ilustrativa para o entendimento da temática do poder nesse contexto. 51 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O terreiro é organizado por laços espirituais e erigido sobre uma rigorosa estrutura hierárquica, que confere ao Babalorixá o mais alto poder. No entanto, quando se olha mais de perto, percebe-se que para manter a coerência e subordinação dos demais, ele não o faz sem sacrifícios, por mágica ou por encantamento dos deuses. Do contrário, ele cerca-se de pessoas, com as quais, mantém vínculos, não só biológicos, como de confiança. São essas pessoas que vão formar o corpo “diretivo” da organização, representados principalmente nos cargos de Babalaxé e Iyakekerê. Além disso, ocupar a posição de sacerdote, cuidar da espiritualidade e, muitas vezes, do bem estar psicológico dos filhos-de-santo, requer o reconhecimento das qualidades pessoais do Babá ou Iyá, que precisam ser suficientes para ele obter legitimidade, respeito e reconhecimento de sua autoridade e poder. Esse reconhecimento é indicativo de prestígio e poder no campo religioso e garante-lhe um capital simbólico que confere um status, tanto para atrair clientes como para inspirar confiança naqueles que aspiram tornarem-se algum dia filhos-de-santo daquele terreiro. A cultura organizacional dos terreiros é marcada pela tradição, oralidade, valorização do saber ancestral e, conseqüentemente, respeito ao mais velho. Há normas tácitas, impossíveis de serem materializadas, pois obedecem a uma ética do preceito, respeito e segredo, e se reproduzem num ambiente de rigidez normativa demarcado pela hierarquia religiosa. Entrementes, essa rigidez não é excludente, principalmente no que tange a idade, cor da pele, sexualidade ou posição social. Todos são bem vindos a integrar esse universo, evidentemente, desde que mantenham uma postura aceita pelo controle social do grupo. Apesar dos vínculos religiosos, a preservação da ordem por parte de uns e o desejo de poder da parte de outros, como em toda organização, gera conflitos e dissensões. Suscita curiosidade, também, para estudos posteriores, o fato da linhagem espiritual de Babá Everaldo, sacerdote do Ilê Ode Axé Oba Omi, ser hegemonicamente feminina (observar figura 9). Como se terá dado o processo de legitimação do poder de um Babá num universo tão marcado pelo poder feminino? Longe de esgotar a discussão sobre hierarquia e as manifestações do poder nos terreiros de candomblé, este trabalho almejou fazer uma análise organizacional destes, buscando conhecer as origens, a sua estrutura física e social, sua cultura organizacional 52 e as formas pelas quais a organização logra atingir seus objetivos, pretendendo conhecer, também, seus mecanismos de sustentabilidade econômica. Embora seja explícito o caráter do terreiro enquanto templo religioso, observou-se que os apontamentos da teoria das organizações podem aportar seu arcabouço para além das tradicionais esferas do mercado, Estado e do, hoje tão estudado, Terceiro Setor. Foi possível analisar uma organização religiosa, caracteristicamente baiana, de enorme riqueza cultural e permeada por valores que quase nada dizem respeito ao capital, ao lucro, mas do contrário, oferecem um rico cabedal simbólico, artístico, étnico e cultural, que pode, se utilizado com seriedade e comprometimento, gerar contribuições ao estudo das organizações locais contemporâneas. 53 REFERÊNCIAS BRAGA, Julio. Santana. A cadeira de Ogã e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pallas, 1999. CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas: Contra Capa, 2004. 375p. CAROSO, Carlos & BACELAR, Jefferson. Faces da tradição afro-brasileira: religiosidade, sincretismo, anti-sincretismo, reafricanização, práticas terapêuticas, etnobotânica e comida. Rio de Janeiro: Pallas, Salvador: CEAO, 1999. CLAY, Vinicius. Patrimônio sagrado. 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