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A todos os filhos gerados a partir do grande
útero chamado Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê.
AGRADECIMENTOS
Sinceros e especiais...
A minha mãe Beatriz, Iyabá que me deu a vida, por sua dedicação e amor
incondicional.
A Marlon Mar, meu amigo, que sempre me abre os olhos para outras formas de
entender a vida e pelo apoio fundamental na construção desse trabalho.
A Cláudio Pereira, mestre generoso, pelas aulas de etnografia nas tardes de quintafeira no Centro de Estudo Afro Orientais da UFBA.
Ao querido Professor Genauto França, por ter me apresentado a Antropologia nas
Organizações e todas as possibilidades de um olhar ampliado para a Administração.
A minha amiga Suzana Moreira, pelo apoio metodológico e a solidariedade intelectual.
A Alexandre Fiore Cheuen pela sensível ajuda na escolha do título.
A Marcelo Fraga, pela generosidade e auxílio na normalização.
A Fernanda Márcia pelo apoio e incentivo.
Aos professores da EAUFBA, em destaque Nelson Oliveira, Reginaldo Santos, Neide
Marques, Suzana Moura, Carlos Milani e Marcelo Dantas pela contribuição
imensurável à minha formação.
A Paula Schommer e Profªa Tânia Fischer, pela oportunidade de ter sido bolsista de
iniciação científica no CIAGS/NEPOL.
Aos Babalorixás Everaldo Cardoso Bispo e Augusto César Lacerda e a Iyá Elza Bahia
de Araújo, por me abrirem as portas de seus terreiros.
A todos aqueles que eu entrevistei, pela confiança em prestarem seus depoimentos e
possibilitarem essa experiência enriquecedora e gratificante, da maior importância
para o meu crescimento como ser humano e profissional.
Aos queridos amigos e colegas de faculdade, por todos os momentos de trabalho, os
grupos de estudo e a alegria que eu vivi com vocês durante os cinco anos que passei na
Universidade.
Dessas civilizações, nos foram legadas dimensões essenciais incorporadas à
vida cotidiana: uma relação privilegiada com a natureza, conhecimento das
plantas e das folhas, valores que lhes foram conferidos pela ancestralidade; o
sentido de respeito pela família extensa, à qual são permanentemente
incorporados novos e velhos parentes sob as mais diversas formas de
adoção; o recurso a uma divindade suprema pela intermediação dos
ancestrais; a confiança na vida, estruturada em esperança mítica; uma
solidariedade cotidiana, que se nutre na responsabilidade pelo compromisso
assumido com a palavra dada por amizade, pelo respeito ou pela expectativa
de troca; essa alegria de viver, que ilumina o cotidiano e se intensifica em
dias de festa; musicalidade e expressão rítmica próprias do rigor das
cerimônias rituais, onde se reza pela cantiga e se “vira no santo” pela força
da fé e com participação comunitária; essa convenção social
estrategicamente assumida, como se fôra uma adesão oficial à religião
hegemônica, ditada pela sociedade colonizadora, que hoje se traduz em
aportes culturais, o que na realidade é uma estratégia de convivência. Tudo
isso é vivido de um lado do mesmo mundo, onde o outro lado passa pelos
sistemas dominantes e seus desdobramentos que tem por referência o
Ocidente, sua cultura e seus princípios. (SIQUEIRA, 1998, p. 34-35).
RESUMO
A estrutura hierárquica e os símbolos de poder são apresentados neste estudo através
de descrições, depoimentos e imagens extraídos dos terreiros de Candomblé e de seu
povo. Buscar-se-á, pois, deslindar o cotidiano das relações de poder entre os agentes,
focalizando práticas, saberes e História enquanto experiências constituintes dos seus
modos de vida. Estas experiências se dão num cenário marcado por autoridade,
preceito e muito segredo constituindo-se num ambiente organizacional mítico e
simbólico. A realização deste estudo se justifica pela pouca visibilidade dada, por
parte da teoria organizacional, à abordagem do poder nessas organizações
caracteristicamente baianas e tradicionais do ponto de vista religioso e cultural. Assim,
com o intuito de conhecer o poder nesse universo e como estas pessoas percebem as
suas próprias experiências, utilizamos o estudo exploratório e a observação
participante como instrumentos metodológicos à condução da pesquisa.
Palavras-chave: Poder; Hierarquia; Candomblé; Organização; Terreiro.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Mãe Menininha do Gantois
18
Figura 2 – Iyalorixá Cleusa Millet
18
Figura 3 – Iyalorixá Carmem
19
Figura 4 – Iyalorixá Elza Bahia de Araújo
19
Figura 5 – Ilê Axé Omon Ewá
20
Figura 6 – Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê
20
Figura 7 – Babalorixá Everaldo Bispo
20
Figura 8 – Ilê Odé Axé Oba Omi
20
Figura 9 – Descendência Religiosa nos terreiros
23
Figura 10 – Barracão do Ilê Ode
27
Figura 11 – Barracão do Ilê Omon Ewá
27
Figura 12 – Babá Augusto César
35
Figura 13 – Sr. Nadinho, alabê do Gantois
35
Figura 14 – Ebômi Rosinha
46
Figura 15 – Dofona de Oxum
46
Figura 16 – Iaô dando dobale
48
Figura 17 – Iaôs sentados na esteira
49
Figura 18 – Detalhe: contas
51
Figura 19 – Iaô de Ogum
51
Figura 20 – Detalhe: Xérem
52
Figura 21 – Adjá
52
SUMÁRIO
1
1.1
1.2
2
2.1
2.2
2.3
3
3.1
3.2
3.2.1
3.2.2
3.2.3
3.2.4
3.2.5
3.2.6
3.2.7
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4
4.1
4.2
4.3
4.3.1
4.3.2
4.3.3
4.3.4
4.3.5
4.3.6
4.3.7
4.3.8
4.3.9
5
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ..............................................................
O Nascimento da Idéia ............................................................................
O Arcabouço Teórico ..............................................................................
EGBÉ ÀIYÉ: A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE ...............................
Filhos D’África ........................................................................................
Linhagem Religiosa e Descendência nos Terreiros ..............................
O Poder Feminino ...................................................................................
ILÊ AXÉ: A ORGANIZAÇÃO-TERREIRO .......................................
A Organização-terreiro ...........................................................................
Algumas Fontes de Poder .......................................................................
Autoridade Formal ...................................................................................
Uso da estrutura organizacional, regras e regulamentos .......................
Controle do processo de tomada de decisão ............................................
Controle do conhecimento e da informação ...........................................
Controle dos limites ..................................................................................
Alianças interpessoais, redes e controle da “organização informal” ....
Simbolismo e administração do significado ............................................
Sexo e administração das relações entre os sexos ...................................
O poder que já se tem ...............................................................................
HIERARQUIA E EXPRESSÕES DE PODER ....................................
A hierarquia nos Terreiros .....................................................................
Sobre Ogãs e Iyarobás ............................................................................
Símbolos e Expressões de Poder ............................................................
A senioridade ............................................................................................
O conhecimento ........................................................................................
O xirê .........................................................................................................
Os cumprimentos ......................................................................................
O comportamento .....................................................................................
A obrigação de sete anos ..........................................................................
Adereços e vestimentas .............................................................................
Instrumentos evocatórios .........................................................................
As cadeiras do barracão ...........................................................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................
REFERÊNCIAS ......................................................................................
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útero chamado Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê.
AGRADECIMENTOS
Sinceros e especiais...
A minha mãe Beatriz, Iyabá que me deu a vida, por sua dedicação e amor
incondicional.
A Marlon Mar, meu amigo, que sempre me abre os olhos para outras formas de
entender a vida e pelo apoio fundamental na construção desse trabalho.
A Cláudio Pereira, mestre generoso, pelas aulas de etnografia nas tardes de quintafeira no Centro de Estudo Afro Orientais da UFBA.
Ao querido Professor Genauto França, por ter me apresentado a Antropologia nas
Organizações e todas as possibilidades de um olhar ampliado para a Administração.
A minha amiga Suzana Moreira, pelo apoio metodológico e a solidariedade intelectual.
A Alexandre Fiore Cheuen pela sensível ajuda na escolha do título.
A Marcelo Fraga, pela generosidade e auxílio na normalização.
A Fernanda Márcia pelo apoio e incentivo.
Aos professores da EAUFBA, em destaque Nelson Oliveira, Reginaldo Santos, Neide
Marques, Suzana Moura, Carlos Milani e Marcelo Dantas pela contribuição
imensurável à minha formação.
A Paula Schommer e Profªa Tânia Fischer, pela oportunidade de ter sido bolsista de
iniciação científica no CIAGS/NEPOL.
Aos Babalorixás Everaldo Cardoso Bispo e Augusto César Lacerda e a Iyá Elza Bahia
de Araújo, por me abrirem as portas de seus terreiros.
A todos aqueles que eu entrevistei, pela confiança em prestarem seus depoimentos e
possibilitarem essa experiência enriquecedora e gratificante, da maior importância
para o meu crescimento como ser humano e profissional.
Aos queridos amigos e colegas de faculdade, por todos os momentos de trabalho, os
grupos de estudo e a alegria que eu vivi com vocês durante os cinco anos que passei na
Universidade.
Dessas civilizações, nos foram legadas dimensões essenciais incorporadas à
vida cotidiana: uma relação privilegiada com a natureza, conhecimento das
plantas e das folhas, valores que lhes foram conferidos pela ancestralidade; o
sentido de respeito pela família extensa, à qual são permanentemente
incorporados novos e velhos parentes sob as mais diversas formas de
adoção; o recurso a uma divindade suprema pela intermediação dos
ancestrais; a confiança na vida, estruturada em esperança mítica; uma
solidariedade cotidiana, que se nutre na responsabilidade pelo compromisso
assumido com a palavra dada por amizade, pelo respeito ou pela expectativa
de troca; essa alegria de viver, que ilumina o cotidiano e se intensifica em
dias de festa; musicalidade e expressão rítmica próprias do rigor das
cerimônias rituais, onde se reza pela cantiga e se “vira no santo” pela força
da fé e com participação comunitária; essa convenção social
estrategicamente assumida, como se fôra uma adesão oficial à religião
hegemônica, ditada pela sociedade colonizadora, que hoje se traduz em
aportes culturais, o que na realidade é uma estratégia de convivência. Tudo
isso é vivido de um lado do mesmo mundo, onde o outro lado passa pelos
sistemas dominantes e seus desdobramentos que tem por referência o
Ocidente, sua cultura e seus princípios. (SIQUEIRA, 1998, p. 34-35).
RESUMO
A estrutura hierárquica e os símbolos de poder são apresentados neste estudo através
de descrições, depoimentos e imagens extraídos dos terreiros de Candomblé e de seu
povo. Buscar-se-á, pois, deslindar o cotidiano das relações de poder entre os agentes,
focalizando práticas, saberes e História enquanto experiências constituintes dos seus
modos de vida. Estas experiências se dão num cenário marcado por autoridade,
preceito e muito segredo constituindo-se num ambiente organizacional mítico e
simbólico. A realização deste estudo se justifica pela pouca visibilidade dada, por
parte da teoria organizacional, à abordagem do poder nessas organizações
caracteristicamente baianas e tradicionais do ponto de vista religioso e cultural. Assim,
com o intuito de conhecer o poder nesse universo e como estas pessoas percebem as
suas próprias experiências, utilizamos o estudo exploratório e a observação
participante como instrumentos metodológicos à condução da pesquisa.
Palavras-chave: Poder; Hierarquia; Candomblé; Organização; Terreiro.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Mãe Menininha do Gantois
18
Figura 2 – Iyalorixá Cleusa Millet
18
Figura 3 – Iyalorixá Carmem
19
Figura 4 – Iyalorixá Elza Bahia de Araújo
19
Figura 5 – Ilê Axé Omon Ewá
20
Figura 6 – Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê
20
Figura 7 – Babalorixá Everaldo Bispo
20
Figura 8 – Ilê Odé Axé Oba Omi
20
Figura 9 – Descendência Religiosa nos terreiros
23
Figura 10 – Barracão do Ilê Ode
27
Figura 11 – Barracão do Ilê Omon Ewá
27
Figura 12 – Babá Augusto César
35
Figura 13 – Sr. Nadinho, alabê do Gantois
35
Figura 14 – Ebômi Rosinha
46
Figura 15 – Dofona de Oxum
46
Figura 16 – Iaô dando dobale
48
Figura 17 – Iaôs sentados na esteira
49
Figura 18 – Detalhe: contas
51
Figura 19 – Iaô de Ogum
51
Figura 20 – Detalhe: Xérem
52
Figura 21 – Adjá
52
SUMÁRIO
1
1.1
1.2
2
2.1
2.2
2.3
3
3.1
3.2
3.2.1
3.2.2
3.2.3
3.2.4
3.2.5
3.2.6
3.2.7
3.2.8
3.2.9
4
4.1
4.2
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4.3.1
4.3.2
4.3.3
4.3.4
4.3.5
4.3.6
4.3.7
4.3.8
4.3.9
5
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ..............................................................
O Nascimento da Idéia ............................................................................
O Arcabouço Teórico ..............................................................................
EGBÉ ÀIYÉ: A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE ...............................
Filhos D’África ........................................................................................
Linhagem Religiosa e Descendência nos Terreiros ..............................
O Poder Feminino ...................................................................................
ILÊ AXÉ: A ORGANIZAÇÃO-TERREIRO .......................................
A Organização-terreiro ...........................................................................
Algumas Fontes de Poder .......................................................................
Autoridade Formal ...................................................................................
Uso da estrutura organizacional, regras e regulamentos .......................
Controle do processo de tomada de decisão ............................................
Controle do conhecimento e da informação ...........................................
Controle dos limites ..................................................................................
Alianças interpessoais, redes e controle da “organização informal” ....
Simbolismo e administração do significado ............................................
Sexo e administração das relações entre os sexos ...................................
O poder que já se tem ...............................................................................
HIERARQUIA E EXPRESSÕES DE PODER ....................................
A hierarquia nos Terreiros .....................................................................
Sobre Ogãs e Iyarobás ............................................................................
Símbolos e Expressões de Poder ............................................................
A senioridade ............................................................................................
O conhecimento ........................................................................................
O xirê .........................................................................................................
Os cumprimentos ......................................................................................
O comportamento .....................................................................................
A obrigação de sete anos ..........................................................................
Adereços e vestimentas .............................................................................
Instrumentos evocatórios .........................................................................
As cadeiras do barracão ...........................................................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................
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8
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
“Ode ki a mò dódé.
Ode ki a mò dódé,
Ode a rere
Ode ki a mò dódé Ní Mawo,
Ode ki a mò dódé Oníye”.
(Saudação a OXÓSSI)
1.1 O Nascimento da Idéia
Em 2004 presenciei uma festa de caboclo em um terreiro no Recôncavo da
Bahia, foi quando estive pela primeira vez em contato com esse universo religioso tão
característico e representativo da cultura afro-baiana – o Candomblé. De lá para cá
comecei a freqüentar o culto, que culminou com a minha iniciação em julho de 2005,
então não parei mais de ler e pesquisar sobre o tema. A curiosidade incessante e os
dilemas presenciados nas relações com o povo-de-santo por conta da estrutura de poder
nos terreiros me levaram a querer entender esse sistema. Assim, este trabalho nasceu
das minhas indagações acerca do modo como a autoridade e o mando são exercidos no
âmbito dos terreiros.
A minha inserção nos candomblés possibilitou a observação mais atenta da
estrutura
e
suas
tradição/modernidade,
especificidades,
destacando-se
os
poder/obediência,
juventude/senioridade,
contrastes
entre
sagrado/profano,
masculino/feminino, desconhecimento/sabedoria, coletivo/individual, polarizações que
me aguçaram a curiosidade e representam inquietações que tornaram-se o estímulo para
construir um trabalho interdisciplinar que pudesse dialogar bem tanto com a
Administração quanto com a Antropologia.
Em 2005, montei o projeto de pesquisa para a monografia de conclusão de
curso em Administração analisando o tema Egbé Àiyé1: hierarquia e poder em terreiros
de candomblé jeje-nagô na Bahia. Sendo assim, algumas considerações sobre esse
universo simbólico do poder foram aqui desenvolvidas, tratando com cuidado dessa
temática comum aos estudos organizacionais, porém ousadamente associada ao
Candomblé e desenvolvida em uma escola tradicional de Administração.
1
Egbé pode ser traduzido como sociedade e Àiyè significa o mundo material, a Terra, em oposição a
Òrun o mundo espiritual.
9
1.2 O Arcabouço Teórico
A teoria das organizações tenta dar conta dos vários tipos de organização,
por meio da proposição de modelos de análise. No entanto, vários aspectos importantes
foram esquecidos no processo de construção dessas teorias. Como lembra Reed (1998,
p. 87), “a questão dos fundamentos raciais e étnicos do poder nas organizações está
apenas começando a surgir na literatura como um tópico aceitável de investigação e
debate”. E é justamente com o objetivo de trazer alguma contribuição a esse tópico que
esse trabalho se constrói.
Tendo definido o recorte do tema, o desafio constituiu-se na metodologia
que pudesse tornar a pesquisa realidade. Assim, segundo a finalidade do trabalho, este
se aproxima de um estudo exploratório porque é “realizado em área na qual há pouco
conhecimento sistematizado” (VERGARA, 2004, p. 47). É importante frisar que o
estudo possui também um claro viés etnográfico, “porque exige do pesquisador contato
direto e prolongado com o objeto de estudo”. (VERGARA, 2004, p. 14). Utilizou-se
ainda, predominantemente, da observação participante e da entrevista não estruturada
para obter dados sobre pessoas, espaços, interações e símbolos na realização da
investigação.
A escolha dos três terreiros foi fundamental para obter um estudo
comparativo sobre o poder no Candomblé. Os terreiros guardam entre si diferenças
abissais, sendo assim, para minimizar generalizações a partir de um estudo localizado,
escolhi terreiros que possuem um elo, elo este que os caracterizam como candomblés de
axé Gantois, i.e., têm origem comum e constituem-se no que LIMA (2001) chamou de
família-de-santo. Em outras palavras, os três grupos estudados são casas independentes,
porém reproduzem as mesmas práticas e rituais e ainda guardam uma relação de
parentesco espiritual, onde seus membros circulam entre elas e são considerados
parentes pela religião.
Especificamente, depois de ler A Família-de-santo nos Candomblés JejesNagôs na Bahia de Vivaldo da Costa Lima fui encontrando um aporte teórico necessário
para sustentar uma análise sobre o poder no Candomblé. Daí, surgiu a idéia de pensar os
terreiros além do conceito de família, e, aproximá-lo do conceito de organização. Então,
com base nas metáforas de GARETH MORGAN (1996), no livro Imagens da
10
Organização, passei a analisar os terreiros a partir de sua dimensão cultural de
organização, aliada ainda, à sua inseparável dimensão política das relações de poder.
Várias etnografias foram aqui utilizadas para referendar as observações e
possibilitar a concatenação das idéias, em destaque autores como BRAGA (1999),
LANDES (2002), PRANDI (1996) e RODRIGUES (2005), sempre buscando manter a
coerência entre o vivido-observado e o que já havia sido estudado por estes
pesquisadores, principalmente, almejando manter uma postura mais objetiva possível
para separar o pesquisador do filho-de-santo.
Outros estudiosos aparecem no corpo do trabalho com importantes
contribuições, entre eles a antropóloga Maria de Lourdes Siqueira, o historiador João
José Reis, o professor Renato da Silveira e o sociólogo Max Weber. À luz das leituras
teórico-conceituais desses autores, analisei a estrutura hierárquica e as relações de poder
dela decorrentes apontando as formas como o poder se manifesta nessas organizações.
Para isso categorizei toda a hierarquia e os símbolos que representam esse poder
objetivado, sem esquecer de indicar suas principais fontes e os conflitos que advém
dessas relações.
O trabalho de campo se desenvolveu a partir do contato direto com pessoas
e observação participante no Terreiro do Gantois (Ilê Iyá Omi Axé Iyámassê), no Ilê
Axé Omon Ewá, ambos em Salvador, e no Ilê Odé Axé Oba Omi, em São Francisco do
Conde. As informações foram colhidas por entrevistas gravadas com membros desses
terreiros, além de conversas informais que durante esse período giraram em torno do
tema proposto. Dentro dos estudos organizacionais, o poder sempre foi uma temática
que despertou meu interesse. No entanto, carecia de um aporte teórico que pudesse
conciliar a literatura sobre poder nas organizações com os terreiros.
2 EGBÉ ÀIYÉ: A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE
Os laços familiares criados no candomblé através da iniciação no santo não
são apenas uma série de compromissos aceitos dentro de uma regra mais ou
menos estrita, como nas ordens monásticas e fraternidades laicas, iniciáticas
ou não; são laços muito mais amplos no plano das obrigações recíprocas e
muito mais densos no âmbito psicológico das emoções e do sentimento. São
laços efetivamente familiares: de obediência e disciplina; de proteção e
assistência; de gratificação e sanções; de tensões e atritos – tudo isto existe
numa família e tudo isto existe no candomblé. (LIMA, 2003, p. 161).
11
2.1 Filhos D’África
Antes de iniciar uma abordagem específica sobre as expressões de poder no
candomblé, é necessário fazer uma pequena retrospectiva histórica partindo da vinda
dos escravos africanos que originaram na Bahia, o que hoje, é conhecido como
“candomblé de Ketu”. Além dessa breve retrospectiva, será reconstruída a genealogia
dos três terreiros onde a pesquisa foi realizada, e, será contada, mesmo que
resumidamente, um pouco de sua história, seja pela pesquisa bibliográfica ou pelas
fontes orais.
Durante a primeira metade do século XIX intensificou-se o tráfico de
escravos vindos da Costa da Mina (hoje Repúblicas do Togo, Benin e da Nigéria, que
eram conhecidos principalmente como negros mina-jejes e mina-nagôs). A presença
desses africanos na Bahia marcou o surgimento da reelaboração da África no Brasil,
suas práticas religiosas e trocas lingüísticas, com o predomínio dos idiomas Fon e
Yoruba.
No início do século passado, os africanos originários do golfo do Benin,
incluindo as etnias Jeje (Ewe), Nagô (Yoruba), Haussá, Tapa e Benin, dentre
outras, formavam aproximadamente metade da população africana em
Salvador. (LUZ, 1995, p. 469).
No livro Os Nagô e a Morte, Juana Elbein dos Santos (2002, p. 28) destaca
que:
A história de Kétu é preciosa como referência direta no que concerne a
herança afro-baiana. Foram os Kétu que implantaram com maior intensidade
sua cultura na Bahia, reconstituindo suas instituições e adaptando-as ao novo
meio, com tão grande fidelidade aos valores mais específicos de sua cultura
de origem, que ainda hoje elas constituem o baluarte dinâmico dos valores
afro-brasileiros.
Além de Ketu, africanos de várias etnias deram origem ao candomblé jejenagô:
12
Todos esses diversos grupos provenientes do Sul e do Centro do Daomé e do
Sudoeste da Nigéria, de uma vasta região que se convenciona chamar de
Yoru baland, são conhecidos no Brasil sob o nome genérico de Nagô,
portadores de uma tradição cuja riqueza deriva das culturas individuais dos
diferentes reinos de onde eles se originaram. Os Kétu, Sabe, Òyó, Ègbá,
Ègbado, Ijesa, Ijebu importaram para o Brasil seus costumes, suas estruturas
hierárquicas, seus conceitos filosóficos e estéticos, sua língua, sua música,
sua literatura oral e mitológica. E, sobretudo, trouxeram para o Brasil sua
religião. (SANTOS, J. E. 2002, p. 29).
De acordo com Lima (2003, p. 21), “a expressão jeje-nagô, deve ser
entendida como significativa do tipo de cultos religiosos organizados na Bahia
principalmente sob os padrões culturais originários dos grupos nagô-iorubá e jeje-fon”.
Ele esclarece ainda que, “sobre o termo jeje não há dúvida que o mesmo se refere aos
grupos étnicos do Baixo Daomé – especialmente os fon e os gu”.
É comum, ainda hoje, ouvir o povo-de-santo se referir ao termo nação para
designar a influência étnica que lhes deu origem. Portanto, para muitos, ser da nação
Ketu é diferente de ser Jeje, Nagô ou Angola. No entanto, pertencer a um candomblé
Ketu é, também, dar continuidade ao complexo religioso jeje-nagô. O sentido do termo
“candomblé de Ketu” no presente trabalho significa ser jeje-nagô. O professor Vivaldo
da Costa Lima ressalta que “dentro dos grupos iorubás-nagôs, nação de Queto passou a
significar o rito de todos os nagôs”. (2003, p.30).
Nesse contexto, estão inseridos o Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê, o Ilê Axé
Omon Ewá e o Ilê Odé Axé Oba Omi, que são predominantemente nagôs porque “as
divindades do culto e a língua dos cantos são marcadamente iorubas, mas que
apresentam também importantes elementos estruturais da cultura jeje” (LIMA, 2003, p.
22).
Uma vez em terras estrangeiras, sem a possibilidade da volta ao seu
ambiente original, transformados em escravos e reduzidos a simples mercadorias, foi na
religião que esses africanos encontraram um meio de se manter ligados ao seu povo e
sua origem, além de um local onde buscar, através da fé, forças para suportar as
condições desumanas a que foram submetidos. Apesar das diferenças lingüísticas e da
perseguição dos senhores, os africanos criaram um espaço onde os deuses dos povos de
diferentes etnias eram cultuados em conjunto.
A história do candomblé na Bahia do século XIX é, portanto, a história de
sua mistura étnica, racial e, logo, social. Um processo que ocorreu em
13
diversas frentes: a reunião de africanos de diferentes origens étnicas para,
juntos, celebrarem seus diferentes deuses, a atração dos descendentes de
africanos nascidos na Bahia e a difusão de todo tipo de serviço espiritual
entre clientes de diversas origens étnicas, raciais e sociais. (REIS, 2005,
p.30).
Em consulta a um dos artigos do Professor Renato da Silveira, encontra-se
importante relato sobre a primeira tentativa, de que se tem registro, de se organizar o
culto urbano aos orixás na Bahia. Segundo ele, a partir de então, o candomblé deixa de
ser apenas um espaço para o culto das divindades africanas para tornar-se uma
“organização político-social-complexa”:
O próximo passo, ousado, nessa trajetória de constituição da religião afrobrasileira, seria precisamente organizar o culto na cidade, exibi-lo como
instituição urbana legítima, buscar sua oficialização. Foi em Salvador, no
Bairro da Barroquinha, que essa transição foi tentada com relativo sucesso.
Segundo as tradições orais dos nagôs (africanos iorubás, originários de
regiões da Nigéria, Benin e Togo) baianos, o primeiro candomblé de sua
linhagem foi fundado em terras situadas atrás da capela de Nossa Senhora da
Barroquinha. (SILVEIRA, 2005, p.23).
Sobre a palavra candomblé, pode-se utilizá-la tanto para designar o espaço
físico onde acontece o culto, quanto para a festa pública, ou até mesmo para denominar
a própria religião afro-brasileira. Siqueira (1998, p. 35) apresenta o Candomblé “como
um
sistema
sociocultural
e
religioso,
centrado
nos
Orixás,
representados
simbolicamente e revividos através de rituais”. A autora oferece uma definição de
terreiro que leva em conta três dimensões:
O Terreiro é um espaço social, mítico, simbólico, onde a natureza e os seres
humanos se unem para viver uma realidade diferente daquela que o cotidiano
ou a sociedade lhes apresenta como o real, na qual as pessoas que o
constituem acreditam. É o espaço onde o mito e o rito fazem parte da própria
vida das pessoas que dele participam. (SIQUEIRA, 1998, p. 173).
Marco Aurélio Luz informa que já no início do século XIX, a Irmandade de
Nossa Senhora da Boa Morte reunia na Igreja da Barroquinha grandes sacerdotisas do
culto Nagô. Dentre elas, a Iyanassô Oyó Akala Magbo Olodumaré, a mais alta
sacerdotisa dedicada ao orixá Xangô, e na época, também fundadora do Ilê Iyá Omi
Axé Airá Intilé - o candomblé da Barroquinha. Depois da morte de Iyanassô, o terreiro
passou a se chamar Ilê Iya Nassô Oká, em sua homenagem. Essa casa de candomblé
14
existe até hoje e é uma das três mais respeitadas da Bahia, a famosa Casa Branca,
situada na Avenida Vasco da Gama.
A Iyalorixá Marcelina da Silva, conhecida pelo seu orunkó (nome africano)
– Oba Tossi - sucedeu Iyanassô no comando do terreiro até o dia de sua morte. Em
decorrência do falecimento de Iyá Oba Tossi, a sucessão passou para a Iyakekerê da
casa, sua filha-de-santo, Maria Julia Figueiredo – Omonike. Justamente por conta da
disputa do poder para ocupação do cargo de Iyalorixá do terreiro houve uma
dissidência, um grupo liderado por Maria Júlia da Conceição Nazaré – Dada Baayáni
Ajáku, iniciada por Iya Nassô e irmã-de-santo de Omonike, afastou-se do Ilê Iyá Nassô.
2.2 Linhagem Religiosa e Descendência nos Terreiros
Em 1849, no bairro da Federação, em terras que pertenciam a um
estrangeiro de sobrenome Gantois, Maria Júlia da Conceição Nazaré fundou uma nova
casa de candomblé com o nome de Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê (ou simplesmente
Terreiro do Gantois), o ascendente dos outros dois terreiros onde este trabalho se
desenvolveu.
Desde a sua fundação, o Gantois vem preservando o culto afro-brasileiro
buscando manter a forma de culto nagô herdada de seus ancestrais africanos. Apesar das
mudanças econômicas, sociais e tecnológicas pelas quais passou a sociedade, desde
1849, ainda é possível presenciar os rituais, que se mantêm vivos, transmitidos de
geração a geração. Ao contrário do Ilê Iyá Nassô, onde a sucessão se dava pela consulta
ao jogo de búzios, o Gantois adotou o modelo de sucessão hereditária.
No terreiro de candomblé, o máximo poder é personificado na figura da
Iyalorixá ou do Babalorixá. Lima (2003, p. 59) dá uma explicação para o significado da
palavra Iyalorisa = Iaolorisa:
A palavra Iya – mãe – em ioruba possui vários sentidos, inclusive o
classificatório dos familiares. Iya é a mãe biológica, mas também qualquer
parente feminino da geração dos pais – as irmãs da mãe ou do pai e suas
primas, para empregar o termo de parentesco de uso no Brasil. Prefixada a
uma palavra outra qualquer, como no caso de ialorixá, denota uma relação
genitiva entre os dois termos – “a mãe que tem”, “que possui” o orixá.
15
Essa definição mostra o quão importante é o pai ou a mãe-de-santo no
terreiro. Sendo alguém que “possui” o orixá dos seus filhos, ou seja, exerce influência e
poder sobre os iniciados e suas divindades. Ainda segundo Lima (2003, p. 60):
O líder do terreiro exerce toda a autoridade sobre os membros do grupo, em
qualquer nível da hierarquia, dos quais recebe obediência e respeito
absolutos. O chefe do grupo está naturalmente investido de uma série de
poderes que evidenciam, na sua autoridade normativa, muitas vezes
acrescentadas pelas manifestações de uma personalidade forte e de uma
aguda inteligência.
É importante apresentar quais foram as lideranças que estiveram à frente do
Terreiro do Gantois até hoje. A primeira delas, Maria Júlia – apelidada de Vovó Júlia,
era descendente direta de africanos, “sabe-se que seus pais, africanos de Abeokutá,
chamavam-se Akala e Okarinde”2. Nos fins do século XIX, quando desenvolveu seus
estudos no Gantois, Nina Rodrigues fez referência à primeira Iyalorixá e sua filha
biológica:
O terreiro do Gantois faz a sua grande festa anual em fins de setembro, a
começar de um sábado, e de ordinário a prolonga por um mês. A mãe de
terreiro Julia, velha africana, transfere-se para ali na sexta-feira a fim de
preparar e armar o Peij e dispor tudo para o candomblé. Assiste-a
imediatamente sua filha Pulcheria. (RODRIGUES, 2005, p.109-110).
Pulquéria, filha biológica de Maria Júlia, “que chegou a ser conhecida na
época como "Pulquéria, a grande", por suas atitudes enérgicas e capacidade de
liderança”3, não teve filhos biológicos. Por isso, assumiu o posto, em 1918, Maria dos
Prazeres - sua sobrinha, que permanece como Iyalorixá por dois anos. Mãe Menininha
ou Maria Escolástica da Conceição Nazareth, filha de Maria dos Prazeres, torna-se
Iyalorixá em 18 de fevereiro de 1922, aos 28 anos de idade.
Ela enfrentou muitas dificuldades no inicio da sua gestão à frente do
Gantois, principalmente pelo fato de ter apenas 28 anos de idade. Foi considerada jovem
demais para assumir as responsabilidades e o poder que lhe conferia o cargo de
Iyalorixá. Sobre esse fato ela declarou:
A minha confirmação em mãe-de-santo é uma história longa, morrendo
minha avó Júlia, sucedeu a Pulquéria, depois minha mãe, que durou pouco,
2
3
Correio da Bahia on line. 28 de agosto de 2001.
CLAY, Vinícius. Patrimônio Sagrado. Correio da Bahia on-line, 08 de janeiro de 2003.
16
só dois anos. Mas ela já vinha exercendo a função com Pulquéria. Porque há
sempre uma ou duas pessoas a ajudar a yalorixá. Quando minha mãe morreu,
eu deixei de vir ao Gantois. Era mocinha, vivia com ela, e ela morrendo,
afastei-me. Mas, em fevereiro de 1922, numa missa para Pulquéria, que era
minha madrinha e tia, os orixás quiseram logo escolher quem ficaria tomando
conta da casa. E me aconselhara. E eles [orixás] mesmo me deram posse, não
foram pessoa não. Primeiro foi Oxossi, depois Xangô, Oxum e Obaluayê.
Eles me deram esse cargo de felicidade que estou ocupando até o dia que
Deus quiser e Oxalá. (SANTOS. J. T, 2002, p. 138).
No candomblé, a idade biológica não é o que conta, o que vale é o tempo de
iniciação e a experiência da vida “no santo”, ou seja, a vida dedicada ao aprendizado
por meio do trabalho é o mais importante. Apesar de ter sido iniciada ainda criança, sua
juventude foi considerada um problema para os mais velhos em idade de iniciação.
Lima (2003, p. 190) relata:
É freqüente a reação dos velhos tios e ebômins à indicação de pessoas
consideradas muito jovens para a chefia de um terreiro. São conhecidas as
restrições feitas, por exemplo, a ialorixá Menininha do Gantois, ao tempo em
que substituiu sua mãe-de-santo, há cinqüenta anos, quando tinha apenas 28
anos de idade.
Mãe Menininha tornou-se conhecida em todo o Brasil. Segundo
depoimentos, ela possuía uma diplomacia para lidar com os conflitos e adversidades,
estava acostumada à presença de filhos-de-santo e amigos ilustres em sua casa, desde
artistas, escritores e jornalistas a políticos nacionais até os mais humildes dos vizinhos.
Jocélio Teles dos Santos (2002, p. 141) informa que:
A respeitabilidade para com Menininha, manifesta pela sua reprodução da
tradição afro-religiosa do Gantois, se conjuga com outras características que
lhe eram reconhecidas: a serenidade, a bondade, e o que me parece de
extremo valor no mundo dos candomblés, o exercício do poder de mando que
se associa a uma ética e a uma moral intrínseca aos terreiros.
Certamente sua autoridade se constitui em torno de uma personalidade forte,
como registrou LANDES, “o status e a disciplina eram preservados por Menininha a
todo custo”. Sobre a credibilidade de seu terreiro nessa época, a própria Mãe Menininha
afirmou:
O nosso templo é um dos mais velhos do país. Durante as cerimônias o
terreiro fica tão cheio que parece que toda a cidade está presente. Eles gostam
de assistir ao candomblé porque sabe que somos honestos; que tudo sob a
minha direção vem diretamente dos velhos africanos, como me ensinou
minha Mãe Pulquéria. (LANDES, 2002, p. 125).
17
Figura 1 – Mãe Menininha do Gantois
Fonte: Divulgação
Figura 2 – Iyalorixá Cleusa Millet
Fonte: REVISTA DA FOLHA, 1997
Mãe Menininha de Oxum morreu em 13 de agosto de 1986, uma quartafeira, depois de 64 anos comandando o Gantois. Em 1989, Cleusa Millet, filha mais
velha de Mãe Menininha assume o cargo de Iyalorixá. Formada em Medicina pela
Universidade Federal da Bahia, casada, tinha três filhos e vivia afastada do terreiro, pois
morava no Rio de Janeiro. Depois que seu esposo se aposentou ela voltou a morar em
Salvador e se reaproximou do candomblé, ajudando sua mãe no trabalho comunitário do
terreiro. Mãe Cleusa disse em entrevista à Revista da Folha:
Apesar de ter nascido e vivido até a adolescência dentro de uma casa de
candomblé, de ser filha de mãe-de-santo, nunca pensei em ocupar cargo
algum. Ao assumir o lugar de mamãe, a sensação que tive era de que aquele
sapato cômodo, que usava todos os dias, tinha desaparecido. E até me
acostumar a andar descalça ou conseguir um sapato que ficasse bem nos pés
sofri muito. (Revista da Folha, 23/02/1997).
Mãe Cleusa conduziu o terreiro até sua morte em 1998. O comando da casa,
em 30 de maio de 2002, na festa de Oxóssi, foi assumido oficialmente por Carmem de
Oliveira da Silva, chamada entre os membros da família Gantois de “Mãe Neném”.
Filha mais moça de Mãe Menininha, iniciada aos seis anos de idade ao orixá Oxaguiã,
ela foi Iyalaxé do terreiro na gestão de Mãe Cleusa. Formada em Ciências Contábeis,
trabalhou por muitos anos como tesoureira do Tribunal de Contas do Estado.
Do Terreiro do Gantois surgiram muitas casas de candomblé em vários
locais do país. Cada filho-de-santo, que alcançou o direito de ser um pai-de-santo, pôde
abrir sua casa e dar continuidade aos fundamentos e preceitos que aprenderam em seu
18
local de origem, sempre respeitando a tradição e os valores do culto. Uma dessas casas é
o Ilê Axé Omon Ewá que fica no bairro de Praia Grande no Subúrbio Ferroviário de
Salvador. A Iyalorixá Elza Bahia de Araújo, iniciada por Mãe Menininha na década de
1950 é quem comanda o terreiro desde sua fundação nos idos nos anos sessenta.
Figura 3 – Iyalorixá Carmem
Fonte: CARTA CAPITAL, 2002
Figura 4 – Iyalorixá Elza Bahia de Araújo
Fonte: Acervo Próprio
Em 1980, Everaldo Cardoso Bispo, hoje advogado e professor, foi iniciado ao
orixá Ayrá no Ilê Axé Omon Ewá, tornando-se filho-de-santo de Ebômi Senhora de
Ewá (Elza Bahia) e neto de Mãe Menininha (Maria Escolástica). Nessa época, a casa de
candomblé onde ele é hoje o Babalorixá, era conduzida por seu pai biológico, que havia
herdado o posto de seu tio, que era pai-de-santo desde a década de cinqüenta em São
Francisco do Conde. Em 1984, o pai-de-santo da casa morreu e o candomblé ficou
restrito apenas a uma cerimônia para Obaluaiyê e outra para o caboclo Boiadeiro, ambas
anuais. Em 1992, Ebômi Senhora foi a São Francisco para conduzir a obrigação de sete
anos de pai Everaldo, onde o mesmo recebeu de sua Iyalorixá a cuia4 com os objetos
rituais sagrados, que simbolizam a transmissão do poder no candomblé. Com esse ritual
sua mãe-de-santo outorgava-lhe o direito de se tornar um Babalorixá.
4
Esse ritual acontece geralmente em uma cerimônia interna nos candomblés que têm sua origem
no Gantois. É comumente chamado em outros terreiros ketu de decá.
19
Figura 5 – Ilê Axé Omon Ewá
Fonte: Acervo Próprio
Figura 6 – Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê
Fonte: CARTA CAPITAL, 2002
Em julho de 2005, na ocasião do recolhimento do barco dos três primeiros
iaôs, Ebômi Senhora retornou ao Ilê e, após consultas ao Ifá (oráculo), verificou que a
casa deveria ser dedicada a Oxóssi e ter o axé de Xangô e Oxum. A saída dos três
primeiros iaôs marcou a transformação na forma de conduzir o terreiro. Daí em diante, a
casa passou a se chamar Ilê Odé Axé Oba Omi, Casa do Caçador com a força do Rei e
das Águas, sendo então, elaborado o atual calendário de festas seguindo os padrões
litúrgicos do candomblé Ketu de tradição Gantois. A figura 9 apresenta a genealogia
religiosa do Babalorixá do Ilê Odé Axé Oba Omi.
Figura 7 – Babalorixá Everaldo Bispo
Fonte: Acervo próprio
Figura 8 – Ilê Odé Axé Oba Omi
Fonte: Acervo Próprio
20
2.3 O Poder Feminino
É inescapável a um estudo como o que ora se apresenta, deixar de
mencionar a participação do poder feminino, personificado nas matriarcas dessa “Roma
Negra”, apelido conferido à cidade de Salvador, e ainda hoje tão evidente no universo
dos candomblés. Na década de quarenta, quando Ruth Landes esteve em Salvador,
visita que posteriormente culminou com a primeira edição de A Cidade das Mulheres
em 1947, a presença dos homens nos terreiros predominava na posição de ogãs e existia
ainda a figura do Babalawo (Pai do Mistério, do segredo) Martiniano do Bomfim.
Ilê Iya Omi Axé
Iyamassê
1849 – Maria Júlia da C. Nazaré
1910 – Pulchéria da C. Nazaré
1918 – Maria dos Prazeres Nazaré
1922 – Maria Escolástica Nazaré
Ilê Axé Omon Ewá
1960 – Elza Bahia
Ilê Odé Axé Oba Omi
1984 – Everaldo Bispo
Figura 10 – Genealogia Religiosa do Ilê Odé Axé Oba Omi.
Homens iniciados aos orixás, que pudessem entrar em transe eram mal
vistos entre o povo-de-santo das três grandes casas ditas tradicionais como consta na
etnografia de Landes. Os homens eram encorajados a não cair em transe, pois esse papel
era exclusivamente feminino. No entanto, havia nessa época candomblés Angola e os
chamados de caboclo, onde os ritos se diferenciavam bastante dos grandes terreiros
herdeiros dos nagôs, que permitiam o transe dos homens. Édison Carneiro comenta a
respeito do Pai Bernardino:
21
É um homem, d. Ruth, num mundo dominado por mulheres. Um verdadeiro
sacerdote do culto deve ser mulher e eu acho que Bernardino é bastante
honesto nas práticas do culto para desejar que fosse mesmo mulher, em vez
de homem que se comporta como mulher. Sendo homem, tem de delegar
muitas funções cruciais a uma mulher do culto e, no final das contas, é ela
quem manda, em vez dele. Isto por vezes esvazia o cargo de pai. (LANDES,
2002, p. 264-265).
Existiram também grandes homens ligados as matriarcas dos três terreiros
tradicionais, na Casa Branca sabe-se de Bamboxê Obiticô; no Axé Opô Afonjá,
Martiniano do Bomfim e no Gantois Nezinho de Cahoeira (ou de Muritiba). Grandes
homens que colaboraram com as Iyalorixás na estruturação de seus templos. Mas ainda
assim, elas é que personificavam a máxima autoridade e poder perante suas famílias-desanto.
Para comandar os terreiros, essas mulheres tinham que exercer seu poder e
fazer-se respeitar para além dos limites de seus muros, e muitas tornaram-se
reconhecidas socialmente por sua liderança nos candomblés. A respeito de Pulquéria,
declarou Mãe Menininha:
Está casa pertenceu a minha tia – disse, olhando em volta da sala e em
direção a um retrato oval de mulher que pendia da parede oposta. –
Chamavam-na a Grande Pulquéria. [...] Dizia-se que tinha sido uma ardente
lutadora e que conseguira arrancar à polícia proteção para o seu povo.
Naquele tempo, quando o povo ainda votava, os grupos de candomblé eram
alternadamente tolerados ou perseguidos no interesse de uma ou de outra
máquina política. Eram sempre vítimas de chantagem e Pulquéria estava
decidida a acabar com esse abuso. Teve o apoio da sua jovem amiga Eugênia
Ana dos Santos. Mais tarde conhecida como Mãe Aninha. (LANDES, 2002,
p. 126).
Sobre a reputação de Mãe Menininha nos fins da década de 30, observou
Landes:
Embora Mãe Menininha ainda fosse moça segundo os padrões afrobrasileiros, pois estava com quarenta e poucos anos, era provavelmente a
mais importante sacerdotisa da Bahia após a morte de Mãe Aninha. Todo
mundo sabia da sua existência e dela falava com respeito. Um congresso de
estudos do negro realizara uma festa no seu templo no ano anterior [...] Essas
atenções se deviam em parte à força de sua personalidade e em parte à
reputação do seu templo, conhecido como Gantois. (LANDES, 2002, p. 115).
As mulheres negras ocupavam papel central também na família, inclusive a
própria Mãe Menininha era grande doceira, além de costureira. Landes esclarece que à
22
sua época muitas delas viviam com homens, mas não aceitavam oficializar o casamento
para que não fossem tão dependentes de seus maridos, como lhes impunha as leis da
época, já que para professarem sua religião precisavam guardar resguardos e ter
autonomia para dedicar-se à religião:
A maioria dos homens que vêm de visita é pobre demais para ter uma casa ou
para se dar ao luxo de um entretenimento comercial. Raramente conhecem os
pais e muitas vezes viveram nas ruas. São parasitas, e as mulheres negras é
que garantem a sua estabilidade. E as mulheres têm tudo: os templos, a
religião, os cargos sacerdotais, a criação e a manutenção dos filhos e
oportunidades de sustentarem a si mesmas pelo trabalho doméstico e coisas
semelhantes. (LANDES, 2002, p. 199).
3 ILÊ AXÉ: A ORGANIZAÇÃO-TERREIRO.
[....]acredito que foi só num estágio mais tardio, provavelmente no início do
século XIX, que se consolidou uma rede social de congregações
extradomésticas. Só quando estas congregações, em número suficiente,
começaram a estabelecer entre si interações de cooperação,
complementaridade e conflito, poderíamos falar de uma “comunidade
religiosa afro-brasileira” e do surgimento do Candomblé. (PARÉS, 2006, p.
119).
3.1 A Organização-terreiro
Que tipo de organização é um terreiro de candomblé? Ao invés de ir a
busca de uma tipologia na teoria organizacional para enquadrá-lo, torna-se mais
profícuo, devido às suas peculiaridades, tentar entender seu funcionamento a partir da
definição de Herskovits encontrada em Lima (2003, p. 57):
Do ponto de vista da organização social, o candomblé deve ser considerado
como um grupo baseado na livre participação que, por sua vez, é
significativamente influenciada pelo parentesco e pela origem tribal africana.
[...] Sua estrutura é hieráquica, com limites de autoridade e responsabilidade
bem definidos. [...] O controle social é obtido através das sanções
sobrenaturais por aqueles que são investidos de autoridade. A identificação
dos membros com o grupo e suas atividades é internalizada para que se torne
o mecanismo principal de ajuste individual, provendo a sensação de
segurança psicológica e os meios de ascensão social, fins econômicos e de
status.
23
Em Morgan (1996), encontra-se metáforas que, segundo ele, poderiam
orientar administradores, executivos e estudiosos na interpretação das organizações.
Duas delas, podem contribuir para o estudo da hierarquia e do poder nos terreiros. Para
o autor, as organizações são vistas como pequenas representações da sociedade, com
padrões distintos de cultura e subcultura. Só conhecendo a rotina, as práticas, a
linguagem e os rituais das organizações é possível perceber suas características
culturais, levando em conta as explicações históricas para o modo pelo qual as coisas
acontecem nesse universo. Uma cultura pode ser descrita por meio do significado, da
compreensão e dos valores compartilhados. A cultura é um processo de construção da
realidade que permite observar os acontecimentos de maneiras distintas.
Morgan (1996, p. 133) afirma: “pode-se dizer que a natureza de uma cultura
seja encontrada nas suas normas sociais e costumes e que, se alguém adere a essas
regras de comportamento, ele será bem sucedido em construir uma realidade social
adequada”. Na concepção dele, que é a mesma defendida nesse trabalho, a cultura não é
uma variável possuída pela organização, mas é sim, um fenômeno ativo e vivo que
possibilita às pessoas a criação e a re-criação dos mundos onde vivem. “O desafio de
compreender as organizações enquanto culturas é compreender como esse sistema é
criado e mantido, seja nos seus aspectos mais banais, seja nos seus aspectos mais
contundentes”. (MORGAN, 1996, p. 138).
O terreiro de candomblé tem sua cultura própria, herdada dos ancestres
africanos, mas também é fruto da reelaboração dessa cultura no Brasil. O intercâmbio
sócio-cultural e religioso entre os povos africanos, os europeus e os índios resultaram
em heranças culturais que também foram legados absorvidos pelo universo do terreiro.
O ambiente organizacional é permeado por símbolos, regras e preceitos, existe um
verdadeiro código de ética entre o povo-de-santo.
No universo dos terreiros, a forma de apreender a cultura organizacional e
absorver os conhecimentos rituais dá-se por meio do “learning by doing”, é na prática
que se aprende. Não é adequado perguntar, observa-se tudo e se guarda o segredo, ou
awò, em iorubá. A cada elevação na escala hierárquica o iniciado vai tomando
conhecimento dos chamados “fundamentos” ou saber ritual. Certamente, o pai ou
mãede-terreiro é quem detém o maior conhecimento, ou seja, um maior capital
simbólico acumulado.
O desafio aqui vai além. Perceber um terreiro apenas sobre o aspecto
cultural-religioso não traria, talvez, alguma contribuição a esse trabalho. Sendo assim,
24
para fazer o estudo do poder será utilizada uma segunda metáfora em complementação
à primeira. É preciso pensar o Candomblé, também, como sistema político. Morgan já
citou os conceitos de autoridade, poder e relação superior-subordinado como vocábulos
comuns na linguagem do administrador. No entanto, aqui, a novidade é pensar esses
conceitos nas “organizações-terreiro”, ainda que suas bases sejam distintas das
organizações tradicionalmente estudadas pela Administração.
Formalmente, um Babalorixá e uma Iyalorixá não são administradores. No
entanto, enquanto líderes de uma organização exercem função de comando e gerência,
têm o poder de decidir, de controlar recursos e de dar ordens. São eles que buscam
manter a ordem e dirigem o terreiro, tendo pessoas sob sua autoridade. A despeito do
caráter religioso e da crença nas divindades, sendo um grupo social, também
reconhecido como família de santo, não deixam de existir em seu interior interesses
pessoais que, podem muitas vezes coincidir, mas que, apesar da ordem aparentemente
inquestionável, uma hora ou outra, poderão gerar conflitos.
Para auxiliar na compreensão do caráter político do terreiro, quando se falar
em administração deve-se considerá-la como o mais alto posto da hierarquia, que é o de
pai ou mãe-de-santo, acompanhado dos ogãs e iyarobás e outros portadores de cargos
de mando nos terreiros.
Ao reconhecer que a organização é intrinsecamente política, no sentido de
que devem ser encontradas formas de criar ordem e direção entre as pessoas
com interesses potencialmente diversos e conflitantes, muito pode ser
aprendido sobre os problemas e a legitimidade da administração como um
processo de governo e sobre a relação entre organização e sociedade.
(MORGAN, 1996, p. 146).
Se existe uma ordem e direção de um grupo de indivíduos, certamente
haverá em graus variados de intensidade, conflitos de interesse, desejo de poder,
submissão às regras e à autoridade, disputas e em alguma medida pode haver
resistência a essa autoridade, dissensões ou autoritarismos. Observar o Candomblé
também como sistema político, pressupõe a tentativa de identificar essas possibilidades,
demonstrar como elas acontecem e descobrir suas razões, sem nunca perder de vista a
existência dos orixás. Não se vai aqui negar o poder das divindades, pelo contrário, esse
é um pressuposto ao qual não cabe o questionamento, mas pretende-se descer à esfera
do poder dos agentes: pai ou mãe-de-santo, ogãs, iyarobás, ebômis, iaôs e abiãs. O
enfoque desse trabalho é o poder do àiyé, ou seja, do mundo físico, material.
25
Os três terreiros aqui estudados possuem uma dinâmica organizacional
muito parecida, fazem parte de uma grande família-de-santo. Lima (2003, p. 162)
explica esse conceito: “assim é que a família de santo seria uma família extensa, na
medida em que os antigos terreiros, por meios institucionalizados ou por sucessão,
deram origens a muitos outros candomblés que se reconhecem da mesma linhagem de
santo”. Esses terreiros precisam de uma estrutura física para funcionar, conforme Luz
(1995, p. 535) “as comunidades-terreiros se caracterizam por um espaço arquitetônico
capaz de abrigar a complexidade das atuações que ali se realizam, envolvendo aspectos
sagrados e profanos, públicos ou privados”.
Assim, essas casas têm os mesmos padrões litúrgicos e mantêm uma
configuração física básica: um salão maior, situado à entrada das casas, mais conhecido
como barracão, é nesse local que ocorrem as festas e cerimônias públicas, é o espaço do
terreiro que é aberto ao contato com a comunidade de fora. Ainda dentro de casa fica o
quarto ou os quartos dos santos, que consiste no local onde são guardados os
assentamentos dos orixás. Há também na parte interna algumas salas para circulação de
pessoas ou de orixás incorporados em seus filhos nas ocasiões de festa; a camarinha ou
roncó, também chamada de rondeme ou ariaxé, local onde o iniciado permanece por
alguns dias no período de sua iniciação.
Figura 10 – Barracão do Ilê Odé
Fonte: Acervo Próprio
Figura 11 – Barracão do Ilê Ewá
Fonte: Acervo Próprio
A manutenção dos terreiros, no que tange aos recursos financeiros
necessários à sua existência, ocorre por meio das contribuições dos filhos-de-santo,
eventuais doações, serviços prestados, como jogo de búzios e ebós ou até mesmo, o pai
ou mãe-de-santo arca com as despesas do seu próprio bolso. Os gastos num terreiro são
muito grandes, os rituais requerem uma série de objetos que tem que ser comprados:
26
comidas para as oferendas, além de animais, fogos de artifício, material para decoração,
roupa dos filhos-de-santo e de seus orixás, tudo custa dinheiro.
Na casa existem também quartos para dormir, geralmente o Babalorixá tem
o seu separado, há o quarto dos ebômis, dos iaôs e das visitas, além dos banheiros. A
cozinha representa um dos locais mais importantes do candomblé, é nesse espaço que,
sob o comando da Iyabassê, as iaôs preparam a comida ritual para os orixás e também a
alimentação que é servida nas festas e nas refeições diárias do grupo. Do lado de fora
fica a casa de Exu e o Ilê Ibó Aku ou casa dos eguns (espíritos dos mortos).
Podem existir variações entre o Gantois e os seus dois terreiros
descendentes. No entanto, há um padrão ritual predominante e facilmente identificável
que faz cada um dos terreiros ser reconhecido como candomblé de axé Gantois. As
diferentes casas de candomblé não podem ser consideradas iguais, sem antes perceber
sua cultura e subcultura organizacional, por isso que essa pesquisa foi
propositadamente direcionada a casas de culto jeje-nagô de axé Gantois, para que se
tentasse obter uma coerência na análise.
3.2 Algumas Fontes de Poder
Antes de descrever as expressões do poder nos terreiros será utilizado nesse
ponto um roteiro analítico, proposto por Morgan (1996), para identificar as fontes de
poder nos terreiros estudados. Certamente, o referido esquema não esgota todas as
possibilidades de enxergar de onde o poder emana, entrementes, com o auxílio deste,
identificaremos as principais.
3.2.1
Autoridade Formal
É “um tipo de poder legitimado que é respeitado e conhecido por aqueles
com quem se interage” (MORGAN, 1996, p. 164). Segundo uma perspectiva Weberiana
o poder implica dominação, alguém manda porque os que são mandados obedecem e
acreditam que o que manda tem direito legítimo de fazê-lo. Dos três tipos de dominação
27
caracterizados por Weber, o da dominação tradicional e a carismática são os mais
adequados para explicar a autoridade formal que há nos terreiros.
A dominação tradicional tem sua legitimidade alicerçada na crença de uma
santidade das ordens e poderes existentes desde sempre e na legitimidade daqueles que,
por conta dessas tradições, são os representantes dessa autoridade. No caso dos terreiros
é exatamente assim, todo o complexo de regras e estrutura de poder vai sendo
transferido de geração a geração, conformando-se uma tradição religiosa fossilizada. Os
pais e mães-de-santo ocupam essas posições por herança familiar, são nomeados pela
tradição em virtude de uma devoção aos hábitos costumeiros desde tempos imemoriais.
“No caso da dominação carismática obedece-se ao líder carismaticamente
qualificado como tal, em virtude de confiança pessoal em revelação, heroísmo ou
exemplaridade dentro do âmbito da crença nesse seu carisma” (WEBER, 1994, p. 141).
Os Babás ou Iyás congregam algumas características mágicas em torno de sua
personalidade, principalmente se estes têm uma boa “mão de jogo” e conseguem
encantar os freqüentadores de suas casas por meio de conselhos e orientação espiritual
que gere satisfação nos mesmos. Mãe Menininha é um exemplo prático da influência da
liderança carismática no universo estudado, até hoje, estar ligado ao axé desta célebre
Iyalorixá é símbolo de prestígio religioso para os que por ela foram iniciados na
religião.
3.2.2
Uso da estrutura organizacional, regras e regulamentos.
Nesse ponto, a própria estrutura que os terreiros assumem para dar
prosseguimento às suas atividades, são reforçadores das relações de poder. O desenho
organizacional típico dos terreiros jeje-nagô, mesmo aqueles que não possuem
vinculação de parentesco espiritual, é sempre muito semelhante. As regras de
comportamento conformam uma ética própria do povo-de-santo que estimula o respeito
a tais regras e a hierarquia e, acima de tudo, o não questionamento da autoridade dos
líderes religiosos.
Portanto, tanto para os membros do terreiro quanto para os visitantes, a
estrutura é posta de forma a criar uma demarcação de territórios, definição de papéis e
postos, tornando bem definidas funções e responsabilidades de cada pessoa.
28
Primordialmente, a estrutura, as regras e regulamentos convergem para manutenção da
ordem e centralização do máximo poder no pai ou mãe-de-santo e aqueles por ele
empoderados.
3.2.3
Controle do processo de tomada de decisão
É notório que o controle do processo decisório pertence ao Babalorixá.
Embora não se possa desconsiderar que existe uma componente metafísica que orienta
os rumos da organização - a vontade dos orixás, expressa em sua comunicação através
do jogo de búzios, - isso não retira do líder o papel fundamental no processo decisório.
A decisão do calendário de festas, do recolhimento de barcos de iaôs, das reformas, da
concessão de oyês, entre outros, estão sobre o crivo direto do alto sacerdote.
Essa é uma importante fonte de poder no terreiro, constitui-se também, em
alvo de disputas veladas pelo poder, já que, deter controle da decisão significa ter
autoridade e influência sobre toda a organização. Alguns atores buscam boas relações
com o Babalorixá com intenção de influenciar as decisões em benefício próprio, para
obtenção de cargos ou de autonomia dentro da estrutura hierárquica. No entanto, este
controle é mais restrito ao Babalorixá e aos seus prepostos diretos – Iyá ou Babalaxé;
Iyá ou Babakekerê.
3.2.4
Controle do conhecimento e da informação
O ambiente organizacional do candomblé é caracterizado por uma atmosfera
de mistério, os neófitos são, logo cedo, advertidos que é inconveniente perguntar e
sempre muito oportuno observar. Aí está um pilar fundamental para sustentação da
estrutura de poder, i.e., saber é poder, e controlar esse saber, principalmente quando
poucos o conhecem, garante aos detentores do conhecimento uma posição privilegiada.
Para se fazer os ebós, para dar conta de todos os rituais e realizações dentro da dinâmica
do terreiro é necessário o comando do Babá ou da Iyá, isso não acontece por acaso, mas
sim porque eles são os que mais conhecem os preceitos e a forma de agir correta em
cada situação.
29
Assim, faz parte do processo de luta pela manutenção do poder controlar
esse conhecimento ritual. O mesmo vai sendo transmitido, muito lentamente, para os
iniciados que vivem a rotina do axé e quando estes completam seu ciclo iniciático, que
leva no mínimo sete anos, é comum que algum deles saia do terreiro e vá abrir sua
própria casa, onde dessa vez, será aquele que detém o máximo conhecimento. No
entanto, os pais e mães-de-santo costumam resguardar apenas para si muitos segredos,
garantindo assim a necessidade de serem consultados sempre que necessário.
A busca do saber ritual é constante, as pessoas querem saber cantar, rezar e
fazer ebós para ter poder.
Desta maneira, o acesso ao saber litúrgico naquilo que é considerado como
‘coisa de fundamento’, se faz de maneira gradual em consonância direta com
os diferentes estágios ascensionais do indivíduo dentro do grupo religioso.
Transgredir essa pedagogia, isto é, querer antecipar esta aprendizagem
atropelando o tempo estabelecido, é ferir os sustentáculos da estrutura
religiosa dos candomblés pondo em risco, entre outras coisas, a própria noção
de poder que parece se apoiar também na noção de controle do saber
religioso. (BRAGA, 1998, p. 25).
Existe um forte aliado dentro do terreiro, que auxilia os pais e mães-desanto no controle da informação, desta vez trata-se de um eficiente mecanismo dentro
da comunicação organizacional, i. é., uma forma de controle da circulação de
informações dentro do terreiro – o ejó:
O ejó, o fuxico feito, possibilita a circulação de informação, até mesmo das
circunstâncias do sagrado, pela via não oficial, através da revelação de bocaem-boca, - o denominado “correio nagô”, do que está acontecendo de
novidade em determinado terreiro de candomblé. Pelo ejó se chega às tramas
mais complexas do mundo religioso alcançado, pelo detalhamento da
ocorrência, aspectos preciosos que nenhuma competente etnografia seria
capaz de captar. (BRAGA, 1998, p. 24).
Já que não existe um processo de comunicação documentado é o ejó que
possibilita aos líderes dos terreiros ter conhecimento do que acontece fora do alcance de
suas vistas. O mesmo revela acontecimentos não só da vida “no santo” como das
relações pessoais dos iniciados, ou seja, saber o que os filhos-de-santo fazem quando
não são vistos, por onde andam, o que dizem confere ao sacerdote mais poder, pois, é
preciso conhecer para dominar.
30
3.2.5
Controle dos limites
Cada posto da hierarquia é caracterizado por obrigações a serem cumpridas
bem como algumas prerrogativas que determinam uma função específica para cada
posto. Demarcar os limites de cada um é fator primordial para manutenção da
autoridade e poder dentro do terreiro. Esses limites dizem respeito não só às relações
interpessoais como também ao espaço que é permitido a cada um ocupar dentro do
universo religioso.
Se considerarmos, por exemplo, que os iaôs têm seu espaço limitado, pois
não podem entrar no quarto do santo em determinadas obrigações, na maioria das vezes
não ficam conscientes nas horas “de fundamento”, pois por serem iaôs são novos no
santo e nem tudo podem presenciar, são então tomados pelo orixá e entram em transe.
Os ogãs tem seus limites, desde que não viram no santo não podem cumprir
determinadas tarefas, outras ocupações são destinadas apenas às iyarobás e assim por
diante.
Ao longo dos anos, após as obrigações rituais que tornam os iniciados
ebômis, alguns filhos-de-santo vão ultrapassando algumas fronteiras e seus limites
tornam-se, com autorização de seu pai ou mãe, menos demarcados. Mas, nunca,
deixarão de ser apenas iaôs perante o sacerdote que lhes iniciou, tendo sempre na figura
deste, a maior autoridade que lhes governam depois do orixá pessoal.
Embora cada um tenha suas idade, vai crescendo, subindo mais, vai tendo
mais uma confiança de pai e mãe-de-santo revelar algumas coisas, ensinar,
tudo isso, mas eu acho que sempre diante de uma mãe, de um pai-de-santo, o
filho-de-santo sempre é pequeno. Porque a pessoa nunca vai se igualar.
Embora que hoje tem filho-de-santo que jura pai-de-santo, jura mãe-de-santo
e fica por isso mesmo. Agora quando tem um santo mesmo, que é desses que
não leva desaforo, porque tem muito santo que age, que vê seus cavalo
fazendo besteira e eles age na maneira do possível, já tem outros que deixa
corrê a rivilia, que não acontece nada. Mas o santo que é santo mesmo,
verdadeiro, que se preza, que se valoriza, quando vê que o cavalo ta errado
eles tem por obrigação de agir. Ebômi Aldira de Omolu. Iniciada na década
de cinqüenta por Mãe Menininha e atualmente auxilia a Iyalorixá do Ilê Axé
Omon Ewá. Depoimento citado.
31
3.2.6
Alianças interpessoais, redes e controle da “organização informal”.
Dentro da estrutura formal do terreiro, objetivada na hierarquia, estão
expressas as relações de dependência daí recorrentes. No entanto, além de deter o
controle, dessa que é a chamada organização formal, é útil para a mãe-de-santo
conhecer e ter como aliadas as conformações da suposta organização informal e “todas
as organizações têm redes informais nas quais as pessoas interagem de maneira a
satisfazer a muitos tipos diferentes de necessidades sociais”. (MORGAN, 1996, p. 180).
Filhos-de-santo que tem mais afinidade entre si vão se unindo em grupos de
interesse, em caso de desentendimento ou por amizade ficam ao lado de quem gostam
ou posicionam-se contra as atitudes de quem não se dão bem. Além disso, observa-se
nesse ambiente que as pessoas acabam se unindo também por conta dos interesses.
Então, se alguém quer aprender os segredos e “fundamentos”, este se une a algum
membro mais velho do grupo e cerca-lhe de delicadezas e préstimos buscando ter em
troca os ensinamentos desse ebômi.
As relações de amizade e aliança são muito importantes, pois para o iniciado
realizar suas obrigações, i.e, os ritos de passagem que permitem seu avanço gradativo
na hierarquia, ele conta com o apoio das pessoas que farão todo o trabalho de preparar
as comidas, os ebós, cuidar dos sacrifícios, uma infinidade de coisas que sem o apoio de
outros conhecedores seria impossível de realizar.
Da mesma forma, alguns filhos cercam seu pai ou mãe e mantêm uma
postura prestativa e obediente, esperando ter o reconhecimento destes e as possíveis
vantagens que possam advir dessa relação. Portanto, se o pai ou mãe-de-santo conhece
os grupos informais que estão sendo constituídos no seu terreiro torna-se mais fácil a
utilização a seu favor ou o mero controle destes.
3.2.7
Simbolismo e administração do significado
O caráter eminentemente simbólico das relações que vão se estabelecendo
entre posições na hierarquia possibilita aos agentes a construção de cenários e posições
de poder dentro da estrutura religiosa. É importante lembrar que “imagens, linguagem,
32
símbolos, histórias, cerimônias, rituais e todos os outros atributos [...] são ferramentas
que podem ser usadas na administração do sentido e, portanto, para delinear relações de
poder na vida organizacional”. (MORGAN, 1996, p.182). O simbolismo está presente
nas roupas que diferem explicitamente as posições hierárquicas de quem as utiliza, da
mesma forma nas contas e adereços do povo-de-santo, nos objetos e utensílios, até
mesmo na disposição dos móveis nos ambientes do terreiro. A cultura organizacional
vai sendo construída e mantida por meio desse simbolismo.
Pais e mães-de-santo são capazes de exercer influência na forma dos filhosde-santo perceberem a sua realidade e sobre a forma de agir de cada um. Essa
capacidade de administrar o significado de sonhos, de atitudes e de acontecimentos
coloca estes em situação de vantagem sobre seus filhos que terminam por acatar suas
disposições dado o aparente caráter inquestionável da autoridade dos altos sacerdotes. E
estes, por sua vez, conseguem chegar aos fins e objetivos desejados.
3.2.8
Sexo e administração das relações entre os sexos
As relações de gênero no universo organizacional dos candomblés
encontram-se no cerne das relações. O papel feminino historicamente constituído é de
fundamental importância, por isso mesmo por muito tempo o Candomblé foi
considerado uma religião feminina, daí a palavra iaô significar a esposa do orixá. Dos
três terreiros, apenas o Ilê Odé é comandado por um homem, as duas casas ascendentes
são governadas por mulheres desde a sua fundação, isso se deve também pelo fato do
Babalorixá Everaldo ter herdado o cargo de pai-de-santo do seu pai biológico, que era
pai-de-santo do Terreiro Ogun de Ronda.
Existem papéis específicos atribuídos apenas para homens ou somente para
mulheres, há formas de se comportar e se vestir dentro do universo simbólico que são
orientadas pelo sexo das divindades. A administração dessas relações entre os sexos não
é feita somente considerando o sexo biológico, pois, muitas atividades são consagradas
as pessoas de determinadas entidades, independente do sexo dos iniciados. Portanto,
posições de poder guardam estreita relação com a sexualidade, seja do iniciado, seja do
orixá a qual pertencem. Jamais foi visto durante a pesquisa uma mulher realizar o
sacrifício votivo de um animal, exceto a Iyalorixá que tem a prerrogativa de dar o
primeiro golpe.
33
Acontece que, com a grande inserção de homossexuais femininos e
masculinos nos terreiros, os limites dessas relações parecem tornar-se cada vez mais
fluidos, o que, a depender da tradição da casa e do prestígio do seu líder no campo das
religiões de matriz africana, principalmente dentro do grupo que segue a mesma
tradição, pode causar impactos na diminuição da credibilidade dessa liderança e na
seriedade do terreiro. Portanto, dentro dessa tradição fossilizada pelo costume saber
administrar as relações entre os sexos também é garantir a manutenção das relações de
poder.
3.2.9
O poder que já se tem
O poder é uma via para o poder e, com freqüência, é possível usá-lo para se
adquirir mais poder ainda. [...] A presença do poder atrai e mantém pessoas
que desejam alimentar aquele poder e, na realidade, serve para aumentar o
poder dos próprios detentores de poder. [...] O poder, como o mel, é uma
fonte perpétua de sustento e atração para as abelhas trabalhadoras.
(MORGAN, 1996, p. 190).
O prestígio e legitimidade alcançada por um líder de terreiro é garantia de
atração e continuidade na detenção do poder sobre outros. Um terreiro reconhecido e
respeitado como é o Gantois, seguramente adquiriu um status no campo das religiões de
matriz africana, que lhe foi legado por Mãe Menininha, que durante 64 anos liderou a
casa e manteve relações internas e com a sociedade que ajudaram a construir sua
personalidade mítica da maior Iyalorixá de todos os tempos na Bahia.
Seguramente, mesmo após os 20 anos de sua morte, o terreiro que lhe
pertenceu usufrui desse prestigio, hoje, representado na figura de sua filha biológica
Mãe Carmem. Se um pai-de-santo é reconhecido por seus dons no jogo de búzios, por
ter uma casa próspera e cheia de filho-de-santo e clientes, é indicativo de que
desempenha bem seu trabalho, e isso atrai a atenção das pessoas, aumenta seu séqüito e,
evidentemente, dilata as fronteiras de influência da sua personalidade sobre outras
pessoas, conserva ou aumenta seu poder.
34
Figura 12 – Babá Augusto César
Fonte: Acervo Próprio
Figura 13 – Sr. Nadinho, alabê do Gantois
Fonte: Acervo Próprio
Ao longo da pesquisa algumas citações e depoimentos colhidos demonstram
a relação entre personalidade e poder, i.e., a ligação entre a figura de um líder e o que a
imagem desse líder, seja na mídia, seja entre as pessoas, pode trazer de reconhecimento
também para seu terreiro e descendentes. Em 1982, o escritor Jorge Amado conduziu
Mãe Menininha a uma festa no centro de Salvador, a mesma estava impedida de andar
por problemas de saúde:
Ao chegar, achei que não seria possível atravessar a multidão até o palanque
com Menininha naquele sofá. Mas quando o povo a reconheceu, surgiu um
corredor no meio da multidão. Eles recuavam e aplaudiam. Foi de arrepiar.
(Revista VEJA. 8 de fevereiro de 1984, p. 62).
Em ocasião do sepultamento de Mãe Menininha:
As homenagens que os representantes do poder prestaram à velha senhora do
Gantois por ocasião de seu sepultamento mostraram até onde haviam
chegado a sua influência e o seu prestígio. [...] A matriarca de uma religião
que até há quarenta anos era praticada por descendentes de escravos – ela
própria nessa condição – tinha a louvá-la toda uma gama de representantes do
poder. (Revista VEJA. 20 de agosto de 1986, p. 76).
No depoimento de um filho-de-santo:
No ano de 1974 eu tive a graça de ser iniciado por Mãe Menininha. Vou fazer
nesse ano de 2006 trinta e dois anos de feito. Quando eu fui feito minha Mãe
Menininha disse que eu seria muito feliz, e eu sou. Tudo o que eu sou eu
35
devo ao candomblé, eu devo a minha mãe. Ebômi Augusto César de
Logunedé5. Depoimento Citado.
4 HIERARQUIA E EXPRESSÕES DE PODER
A hierarquia é um fator da maior importância no Candomblé. É quem rege
todo o sistema, é muito rígida, é uma parte importantíssima dentro do
sistema. Existem determinados postos que são relacionados com a família,
no sentido de se manter a família organizada e com o poder da casa do
candomblé. Esses postos são vitalícios.
Babalorixá Augusto César de Logunedé. Depoimento Citado.
4.1 A hierarquia nos Terreiros
O Candomblé é uma religião de caráter iniciático, ou seja, para que uma
pessoa se integre, de forma participante, à organização formal é necessário passar por
uma série de rituais, que não serão descritos nesse trabalho. Pessoas se aproximam de
uma casa de santo por diferentes motivos, que vão desde alguém que nasceu no terreiro,
por curiosidade, por problemas de saúde ou investigação científica.
O indivíduo que começa a freqüentar a casa e ainda não é iniciado chama-se
abiã, este acompanha as festas, freqüenta a casa, pode passar por banhos de folha e
alguns rituais mais simples, mas a ele não é revelado nenhum segredo. O abiã não entra
no quarto-de-santo e nem no roncó (camarinha), ele fica privado de participar das
cerimônias até que se torne um iâo. “A Abiã ainda não é filha-de-santo. É uma aspirante
que ainda se encontra no estágio de quem já fez uma pequena obrigação, que freqüenta
o terreiro e participa de certas cerimônias rituais. A abiã pode ou não tornar-se uma
Iyawô.” (SIQUEIRA, 1998, p. 197).
Prandi (1991, p. 164) faz uma síntese para explicar a distinção entre os
iniciados que manifestam orixá e aqueles que não têm essa possibilidade:
Há duas classes de sacerdotes no candomblé, os que rodam no santo, viram
no santo, entram em transe; e os que não. Os primeiros são os chamados
5
Trinta e dois anos de iniciado por Mãe Menininha no Gantois. È Babalorixá do Ilê Omorodé
Orixá N’Lá no bairro de Portão em Lauro de Freitas.
36
rodantes e terão que passar pelo rito de feitura, fixação do orixá na cabeça
(ori) e no assentamento, o ibá-orixá, que é o altar particular deste orixá
pessoal [...]. Estes rodantes, uma vez “feitos”, formam a classe dos iaôs, os
quais, após a obrigação do sétimo ano de iniciação, atingem o grau de ebômi,
passando a fazer parte do alto clero, recebendo cargos na hierarquia, ao lado
do pai ou da mãe-de-santo, a autoridade suprema.
Na base da escala hierárquica estão os iaôs, esses são os filhos-de-santo,
que podem ser homens ou mulheres, de quando se iniciam a um determinado orixá por
meio da feitura até o fechamento do ciclo iniciático, no momento da obrigação de sete
anos. A feitura é o início do processo de formação do iaô, “considera-se como
fundamental saber observar com respeito, e sem fazer perguntas; esta é a base de
formação de uma Iyawô”. (SIQUEIRA, 1998, p. 200).
Segundo Lima (2003, p. 73) “a palavra iaô provém do iorubá iyawo (iauô),
que significa a esposa mais nova nos sistemas familiares poligínicos dos iorubas”.
Nota-se em Prandi (2001, p. 54) que “as iaôs (ou os iaôs, pois há muito a palavra iaô
perdeu no candomblé a conotação de esposa), os jovens iniciados, enfim, só fazem
obedecer, usando símbolos e cultivando gestos e posturas que denotam a sua
inferioridade hierárquica”.
Os iaôs representam a base do trabalho em uma casa de candomblé, varrem
o chão, limpam a casa, acendem o fogo, carregam água, decoram o barracão, se houver
necessidade podem fazer a comida, tanto ritual como a alimentação. Ainda não têm
poder decidir, somente obedecem às autoridades da casa. Para facilitar o entendimento
do processo de mobilidade na hierarquia do terreiro, é oportuno observar a explicação
de Prandi (1991, p. 155) para o termo obrigação na linguagem do povo de santo:
A idéia de obrigação, no candomblé, é sempre associada à obrigação ritual,
ou seja, à relação entre o deus e seu filho iniciado para seu culto. Nessa
relação a mãe ou o pai-de-santo é o único intermediador, pois só ele conhece
a forma de lidar com o orixá da pessoa, orixá que ele “fez”, quando se trata
do pai da iniciação original, ou orixá que ele “consertou”, quando se trata de
filho ou filha anteriormente iniciada em outra casa. A idéia de dever é
sempre referida à divindade, nunca ao outro, ao grupo, à sociedade
envolvente. Ou seja, a idéia de obrigação, dever, dívida, pagamento, código
de conduta, diz sempre de algo que se realiza no espaço sagrado de terreiro,
no culto. No candomblé, o culto é todo ele organizado em torno de
sacrifícios rituais e muitas vezes pessoais, como conseqüência.
Outra categoria é formada pelos ebômis, iniciados que eram iaôs e
passaram pela obrigação de sete anos. Em Iorubá, egbon mi quer dizer meu irmão ou
minha irmã mais velho (a). O ebômi possui certo prestígio dentro da casa, é dentre eles
37
que o pai ou mãe-de-santo escolhe aqueles a quem dará o direito de também ser um pai
ou mãe e abrir sua própria casa de candomblé ou outorga-lhes um cargo executivo, no
sentido de desempenhar uma função específica, na organização.
“As ebômins elevadas a essas categorias executivas partilham, de certa
maneira, da autoridade da mãe do terreiro, por seu consentimento e sob a sua constante
supervisão. É um privilégio da liderança delegar poderes e fazer-se representar”.
(LIMA, 2003, p. 81). Sobre distinção de ebômi e iaô é oportuno observar Prandi (1991,
p. 164):
Os ebômis distinguem-se publicamente dos iaôs usando peças de vestuário
àqueles interditadas; ao invés dos colares de contas de muitas voltas do iaô, o
ebômi usa colares montados de forma diferente [...] Iaô dança descalço;
ebômi usa sapato, ebômi trata a mãe-de-santo quase como igual; o iaô, nem
pensar.
4.2 Sobre Ogãs e Iyarobás
Embora Nina Rodrigues seja acusado de preconceituoso por conta de sua
teoria evolucionista, pautada na inferioridade da raça negra, não serão consideradas
aqui suas teorias, mas a grande contribuição que suas observações deram, tornando-se
O Animismo Fetichista dos Negros Baianos, a primeira etnografia brasileira sobre as
religiões e o culto afro-brasileiro na Bahia no final do século XIX. A iyarobá, ‘preposta
especial’ também aparece descrita em sua obra, quando ele observa uma festa no
terreiro, onde “os negros se entregam nas suas danças sagradas, por horas e horas
seguidas, por dias e noites inteiras; é preciso tê-las visto cobertas de suor copiosíssimo
que as companheiras ou prepostas especiais enxugam de tempos em tempos em grandes
toalhas ou panos”. ( 2005, p.76).
As iyarobás também podem ser escolhidas pelo Babá ou Iyá para receberem
títulos hierárquicos que venham a lhes constituir mais autoridade e poder no terreiro,
podendo chegar a Iyalaxé, a mãe do axé, ou Iyakekerê – a mãe pequena da casa estando abaixo apenas do pai ou mãe-de-santo. No Ilê Odé, a Iyakekerê é uma Iyarobá,
iniciada ao orixá Oxum, foi indicada pelo orixá do pai-de-santo para ser a mãe pequena.
No dia 18 de março de 2006, na festa de Oxóssi, o orixá do Babalorixá, comunicou
publicamente a todos que estavam no barracão que, a partir daquele dia, ela seria a
Iyakekerê do Ilê. Esse cargo só deixará de ser ocupado pela mesma em caso de
38
falecimento, é um cargo vitalício como também o são: Babalorixá, Babalaxé, Iyaegbé e
muitos outros.
O processo para tornar-se iyarobá ou ogã não é o mesmo a que são
submetidos os iaôs. Em alguma festa pública, quando os orixás estão manifestados nos
filhos-de-santo, ou até mesmo no pai ou mãe-de-santo, um deles dirige-se a alguém na
platéia e oferece-lhe o braço, se a pessoa aceitar, ao toque dos atabaques, o orixá
conduzirá a pessoa aos quatro lados do barracão e em seguida sentará a pessoa numa
cadeira para que todos venham cumprimentá-la. Esse é o momento onde o orixá
“suspende” ou “aponta” o ogã ou a iyarobá. A partir daí, se interessar, a pessoa procura
o pai ou mãe do terreiro para realizar a iniciação, que lhe conferirá um grau de pai e
mãe, porém em uma escala hierárquica inferior ao pai ou mãe-de-santo.
Esta é uma categoria de iniciados que não manifestam o orixá, ou na
linguagem de terreiro, não viram no santo. Os homens são chamados de ogãs e as
mulheres de iyarobás. Há vários tipos de ogãs, cada um com atribuições delimitadas: os
Alabês, que são os músicos que tocam os atabaques, instrumentos sagrados que
propiciam a descida dos orixás ao mundo físico; o Axogum é aquele que tem autoridade
de utilizar a faca nos sacrifícios rituais; Akirijebó é aquele que leva os ebós que
precisam ser entregues a Exú nas ruas ou encruzilhadas; o Pejigã é quem cuida da
organização dos assentamentos de orixá, o Elemaxó se encarrega dos objetos e do culto
a Oxaguiã. As iyarobás também se dividem por funções; Iyateni cuida dos iaôs quando
entram em transe, vestem e acompanham os orixás no salão na hora em que dançam; a
Iyabassê faz a comida dos orixás, ou ainda, podem ser encarregadas de cuidar de um
orixá em específico, elas ajudam o líder do terreiro na preparação dos rituais.
O ogã, em alguns trabalhos, aparece como uma figura que tinha certo
prestígio social e podia contribuir para o bom andamento das atividades do candomblé,
pois, “as incursões policiais ocorriam tão inesperadamente e podiam ser tão violentas
que era vital para os adeptos do candomblé ter amigos em muitos lugares”.(LANDES,
2002, p. 74). A presença de ogãs jornalistas, intelectuais ou até políticos serviam para
intimidar as invasões policiais. Esta presença, ainda nos fins do século XIX, foi assim
comentada:
O ougan ou os ougans, porque cada confraria de um santo pode ter o seu
ougan. São os responsáveis e protetores do candomblé. A perseguição de que
eram alvo os candomblés e a má fama em que são tidos os feiticeiros,
tornavam uma necessidade a procura de protetores fortes e poderosos que
39
garantissem a tolerância da polícia [...] Os ougans têm obrigações limitadas e
direitos muito amplos. Além da proteção dispensada devem fazer ao seu
santo presentes de animais para as festas e sacrifícios. Têm direitos a
cumprimentos especiais dos filhos de santo, a serem ouvidos nas
deliberações do terreiro, a saírem todos os santos e o terreiro em seu favor,
no caso que estejam ameaçados de alguma ofensa ou desgraça, etc.
(RODRIGUES, 2005, p. 49).
Braga (1999) estudou a presença do ogã nos candomblés de Salvador. Ele
lembra que na época das invasões policiais aos terreiros, os ogãs desempenhavam o
papel fundamental de negociação e mediação de conflitos entre os terreiros, o poder
público e/ou a sociedade. Em certa época, os mesmos foram escolhidos por conta de
seu prestígio e condição social para serem protetores dos terreiros, embora ainda ocorra
essa prática, isso não significa dizer que todos os ogãs são brancos ou possuam certa
notoriedade na sociedade. Há muitos deles escolhidos também dentro do grupo social
interno, como parentes do Babá, amigos dos filhos-de-santo ou até mesmo vizinhos. É
freqüente a escolha do ogã que é membro da família biológica do líder religioso, sendo
comum iniciação ainda quando criança. Também pode haver um caráter político para a
escolha do ogã por parte do pai ou mãe-de-santo, a esse respeito Braga esclarece:
A compreensão que se tem é de que parece existir uma necessidade de o
líder se cercar de algumas pessoas de confiança a quem atribui, além das
funções normais do cargo, outras tarefas do dia-a-dia que exigem grau maior
de confiabilidade, como cuidar das economias pessoais e resolver outros
tantos problemas específicos da comunidade religiosa. Alguns ogãs se fazem
merecedores da confiança do pai ou mãe-de-santo, tornam-se confidentes e
participam da vida íntima da comunidade religiosa, despertando o ciúme de
outros que não desfrutam da mesma situação. (BRAGA, 1999, p. 47).
O que deve ser esclarecido a respeito da participação do ogã na estrutura
funcional do terreiro é que, mesmo que a sua integração ao grupo tenha se dado,
inicialmente, porque os líderes religiosos tinham interesse na participação de pessoas
bem colocadas na sociedade para defenderem o candomblé das ameaças e preconceitos
da sociedade, isso não isentou esses participantes das obrigações rituais e sua relação
com o sagrado dentro do terreiro. Eles têm status de autoridade, podem ocupar cargos
de grande prestígio e poder na hierarquia, prova-se essa afirmação no Ilê Odé, casa
onde o Babalaxé, ou seja, o pai do axé, da força-motriz do culto - Rogério da Hora - é
um ogã iniciado a Oxaguiã, que também ocupou o cargo de Elemaxó, o responsável
pelo culto e pelos objetos sagrados do orixá Oxalá – o grande pai. O ogã Cristiano
Aguiar, de Xangô Ogodô, é portador do título (oyê) de Sobaloju, que é o responsável
40
pela organização do culto a Xangô na casa do candomblé, bem como cuidar dos objetos
sagrados que pertencem a esse orixá e participar da organização de sua festa.
Na mais alta escala hierárquica estão os Babalorixás e Iyalorixás. Para
tornar-se um Babá ou Iyá é necessário, um dia, ter sido uma iaô. Só os filhos-de-santo,
ou seja, aqueles que recebem o orixá, podem vir a ocupar essa posição. Pois, “sem
santo que se manifeste em transe, não há poder, autoridade, disciplina e, sobretudo,
investidura no cargo de iniciador” (PRANDI, 1991, p. 175) Destarte, os pais e mães-desanto viveram como iaôs e participaram por longo tempo das cerimônias rituais, antes
que viessem a se tornar líderes religiosos. Segundo uma expressão do próprio povo de
santo “é preciso ter lodo na unha” para ocupar esse cargo, isso significa dizer que é
necessário muito trabalho.
O Babalorixá é o pai que tem o orixá, porque em realidade nós não somos
pais dos orixás, os orixás é que são nossos pais. O Babalorixá, ele tem o
poder, a ele é dado o poder de uma relação mais íntima com o orixá. Ele é
pai no sentido porque ele é homem, e Iyá porque é mulher. Ebômi Augusto
César. Depoimento Citado.
O líder do axé exerce autoridade sobre todos os membros da hierarquia.
Ninguém faz nada sem que antes informe o que pretende fazer. Todas as vezes que
alguém for levar uma oferenda para ser colocado no peji (espécie de altar), levar a
comida na casa de Exu ou qualquer outra atividade que implica uma oferenda ou ebó, é
necessário antes solicitar ao pai ou mãe que coloque sua mão sobre o objeto. Ao tocálo, simbolicamente, se está concedendo poder para que a pessoa possa entregar aos
orixás a oferenda. Lima (2003, p. 136) informa que:
É a mãe-de-santo, além disso, quem dirige efetivamente toda atividade da
casa: as cerimônias públicas das grandes festas dos orixás maiores dos
terreiros e os ritos privados que só os filhos da casa participam; o ossé
semanal dos santos; a disciplina dos filhos e a economia do terreiro; os
mecanismos de promoção e de mobilidade intragrupal e a assistência
espiritual e material à imensa variedade de situações de crise e de
necessidades de todos os seus filhos e suas famílias.
A autoridade de um pai ou da mãe se renova todos os dias no seu contato
com os orixás, mas nem por isso, é exercida sem que haja conflitos ou tensões. Assim,
mais uma vez, a dimensão política da organização faz-se manifestar, só o poder da
divindade não é suficiente para manter a ordem. Além de bons líderes religiosos, os
41
pais e mães precisam desenvolver habilidades de fazer alianças, cercar-se de pessoas
que possam facilitar e/ou legitimar sua gestão, além de ter habilidade para se relacionar
e fazer-se respeitar, ou seja, é necessário criar uma política organizacional que facilite a
aceitação de sua autoridade.
Morgan
(1996)
sugere,
como
critério
para
análise
da
política
organizacional, o foco nas relações entre interesses, conflito e poder. “Ao se falar a
respeito de interesses, fala-se sobre um conjunto complexo de predisposições que
envolvem objetivos, valores, desejos, expectativas e outras orientações e inclinações
que levam a pessoa a agir em uma e não em outra direção” (p. 153). Essa proposição é
válida também no Candomblé. Observa-se no contato com o povo-de-santo, que as
pessoas vivem em dois universos paralelos: a vida no terreiro e a vida cotidiana do lar,
do trabalho e da família. Ou seja, mesmo submetendo-se a viver uma realidade de
restrições e obediência na religião, estando no terreiro ou fora dele, não é possível
despir-se das concepções e interesses da vida material. Portanto, pessoas que possuem
diferentes modos de vida e formas de perceber o mundo, convivendo num ambiente
autoritário, hierárquico e cheio de mistérios como o dos terreiros, acabam, em algum
momento, manifestando suas diferenças e conflitos de interesse.
Sobre o conflito, Morgan elucida:
O conflito aparece sempre que os interesses colidem. A reação natural ao
conflito dentro do contexto organizacional é vê-lo comumente como uma
força disfuncional que pode ser atribuída a um conjunto de circunstâncias ou
causas lamentáveis. [...] Pode ser explícito ou implícito. Qualquer que seja a
razão e qualquer que seja a forma que assuma, a sua origem reside em algum
tipo de divergência de interesses percebidos ou reais. (MORGAN, 1996, p.
160).
Mais uma vez Lima (2003, p. 170), esclarece muito bem a existência de
conflitos nos candomblés:
O quadro que se tem visto descrito freqüentemente nos relatos etnográficos
ou nas análises mais ambiciosas de alguns autores, é o do candomblé
enquanto grupo homogêneo – que sem dúvida o é – e harmônico – o que,
certamente, não acontece. Ou não acontece sempre. A harmonia e o
equilíbrio são a finitude mesma de qualquer organização grupal mas a tensão
e o atrito formam a dialética deste equilíbrio. Os irmãos na família, e,
portanto os irmãos na família de santo, podem ser rivais e mesmo inimigos.
Podem discordar em termos de um fácil entendimento posterior ou chegar a
disputas mais sérias, de mais difícil acordo, ou que levem a um rompimento
duradouro ou permanente.
42
O desrespeito à hierarquia ou sua supressão representa um constante ponto
de conflito nas casas de santo, por exemplo: não pedir a bênção aos mais velhos, não
fazer o cumprimento diferenciado às maiores autoridades da casa e passar à frente de
alguém mais velho no santo em alguma obrigação. Quando tratou-se da origem dos
terreiros foi citado sucintamente um exemplo crítico de conflito no candomblé: a
fundação do Gantois, em 1849, só aconteceu porque Maria Júlia da Conceição Nazaré
não aceitou ser preterida como a Iyalorixá do Ilê Iyanassô Oká, que fora herdado por
sua irmã-de-santo. Sua dissidência culminou na fundação de sua própria casa de axé.
Outro exemplo de conflito extraído da pesquisa ocorre no Ilê Odé Axé Oba
Omi: a Iyakekerê, ou mãe pequena, da casa é irmã biológica do Babalorixá, foi iniciada
em um terreiro onde a sua mãe-de-santo possuía conhecimentos dos padrões litúrgicos
da nação Ketu e Angola6, nesse terreiro os rituais diferem das casas tradicionais Ketu,
como é o caso do Gantois. Por conta disso, a mesma vem apresentando oposição e
discordância ao andamento das atividades da casa. É comum também haver
divergências, mesmo que latentes, entre os recém iniciados e as autoridades da casa,
por conta do processo inicial de adaptação à rigidez das normas da religião.
4.3 Símbolos e Expressões de Poder
O poder nos terreiros não se expressa somente na estruturação da divisão
hierárquica e dos oyês (títulos honoríficos). Pode-se observá-los desde representações
simbólicas físicas – o poder objetivado – até às maneiras com que pessoas se
comportam na presença de outras, às quais têm uma relação desigual de poder. É
possível distinguir quem tem mais poder pela roupa que veste, pelas contas que usa e
até mesmo pela forma como se dirige a outros membros do grupo.
Ao se observar as interações, entre membros do candomblé que possuem
uma relação assimétrica de poder, alguns exemplos possibilitam a percepção do
exercício do poder no terreiro:
6
Denominam-se de candomblé Angola, os cultos de matriz africana onde predomina a influência
da língua kimbundo, e rituais religiosos herdados dos povos Bantu (Congo e Angola).
43
4.3.1 A senioridade:
No terreiro, a idade biológica pouco importa o que vale é a idade de santo,
onde os mais velhos têm prerrogativas e direitos a se posicionar na frente dos mais
novos.“Toda hierarquia religiosa é montada sobre o tempo de aprendizagem iniciática,
numa lógica segundo a qual quem é mais velho viveu mais e, por conseguinte, sabe
mais” Prandi (2001, p. 54).
Quando se recolhe um barco de iaôs para iniciar os ritos de feitura no santo,
que é o primeiro passo para se integrar à hierarquia, é obedecida uma ordem, essa
ordem será para sempre respeitada enquanto os componentes daquele barco fizerem
parte do candomblé. O barco nada mais é do que o grupo de pessoas que passam juntas
pelos ritos iniciáticos. “O ilê axé é composto por uma hierarquia baseada na idade
iniciática. Esse valor da antiguidade da iniciação caracteriza as diferenças de poder e
status entre os irmãos”. (LUZ, 1995, p. 534).
Após o período de reclusão haverá uma cerimônia pública, onde os orixás,
incorporados em seus iniciados irão gritar seu orunkó (nome) no barracão. A partir daí,
eles serão chamados dentro do grupo pela ordem de entrada na camarinha onde
passaram pela iniciação e pela mesma ordem onde serão apresentados ao público na
saída: o primeiro é o dofono; o segundo dofonitinho; o terceiro fomo; o quarto
fomutinho; o quinto gamo; o sexto gamotinho; o sétimo domo; o oitavo domutinho; o
nono vito e o décimo vitutinho. Luz (1995, p. 533) elucida: “Para os sacerdotes,
antiguidade significará posto, isto é, espaços específicos para o exercício das qualidades
e atributos do seu axé”. Sobre este princípio, afirma Vivaldo:
Esse princípio, já foi dito, é válido na estrutura do próprio barco, em que o
dofono é sempre o mais velho do que os outros irmãos do barco, e o segundo
mais velho do que o terceiro, este mais velho do que o quarto, e assim
sucessivamente. Pequeno ou desprezível que pareça o tempo de diferença em
termos de duração mensurável, esse intervalo no candomblé possui um
sentido que está para além das dimensões convencionais do tempo. (LIMA,
2003, p. 78).
44
Figura 14 – Ebômi Rosinha
Fonte: Acervo Próprio
Figura 15 – Dofona de Oxum
Fonte: Acervo Próprio
4.3.2 O conhecimento:
É “o tempo de santo”, que confere a sabedoria – o maior dom que uma
pessoa pertencente ao Candomblé pode receber. De alguém do candomblé
que sabe, diz-se “Ela sabe”. Pode entrar e sair de qualquer Terreiro, “sem
fazer vergonha”, como se diz no Candomblé, a vergonha é não saber. Saber,
no candomblé, significa ser capaz de participar com perfeição, seja nos atos
mais simples como a recepção de alguém no Terreiro, seja na preparação de
tudo que é necessário para a realização de um rito, ou seja, ainda, ser capaz
de receber seu próprio orixá ou preparar os outros para sua recepção.
(SIQUEIRA, 1998, p. 202).
Trata-se aqui do conhecimento ritual, ou na linguagem do povo de
Candomblé – “os fundamentos”. Esse conhecimento é transmitido oralmente e pela
participação nas obrigações no terreiro, onde os mais velhos vão ensinando os mais
novos como fazer as comidas votivas, os ebós, os cânticos e as danças. “Os ebômis são
os que sabem, porque são mais velhos, viveram mais, acumularam maior experiência.
Sua autoridade é dada pelo conhecimento acumulado, que pressupõe saber maior”
(PRANDI, 2001, p. 54).
Para deter esse conhecimento é preciso, antes, viver a religião e demonstrar
compromisso e humildade para que os ebômis o transmitam. Sendo assim, quem possui
esse conhecimento detém um poder acumulado ao longo dos anos. “Conhecer e saber,
nesse contexto é experimentar, sentir, vivenciar. Não há separação estanque entre
vivido e concebido, saber é fazer e fazer é saber”. (LUZ, 1995, p. 574). Ou como
complementa Prandi (2001, p. 55): “Saber é poder, é proximidade maior com os deuses
45
e seus mistérios, é sabedoria no trato das coisas de axé, a força mística que move o
mundo, manipulada pelos ritos”.
4.3.3 O xirê:
A roda realiza princípios hierárquicos entre as sacerdotisas iniciadas. Se, no
início do xirê, a ocupação do espaço do ilê nla, templo das festas públicas, a
disposição de cada indivíduo pertencente ao egbe indica o seu grau
hierárquico, se uma série de formas de cumprimentos e saudações reforçam
os vínculos de aliança e hierarquia do egbe, durante a roda a mobilidade e a
dinâmica litúrgica reforçam na representação espaço-temporal as formas de
coesão grupal. (LUZ, 1995, p. 578).
O xirê ou sirè que significa festa, ou ainda, é a roda que formam os filhosde-santo em sentido anti-horário, liderados pelo pai. Ao som dos atabaques, tocados
pelos alabês, o pai ou mãe puxa a roda, sendo seguido das autoridades e dos filhos-desanto, conforme o princípio da senioridade. Todos cantam e dançam três cantigas para
cada orixá, na seqüência: Exu, Ogum, Oxossi/Logun, Ossain, Iroko, Omolu, Oxumarê,
Nanã, Oxum, Ewá, Obá, Oyá, Iyemanjá, Xangô, Oxaguian e Oxalufan. Cada filho-desanto, enquanto a roda prossegue cantando para seu orixá, em sinal de respeito, dirigise ao pai-de-santo e suas autoridades para pedir-lhes a bênção.
4.3.4 Os cumprimentos:
A forma de cumprimento entre o povo-de-santo é diferenciada para as
distintas posições hierárquicas. Os iaôs dão dobale ao pai-de-santo, ao Pai pequeno, ao
Babalaxé, à Iyakekerê, à Iyaegbé e aos filhos-de-santo que estiverem incorporados de
seus orixás. Entre si os iaôs, após ter cumprimentado todos os mais velhos na
hierarquia, pedem a bênção aos outros iaôs mais velhos e estes lhes abençoam e seguida
pedem-lhes a bênção como manda a tradição.
O dobale7 é um cumprimento que simboliza o respeito dos iaôs às pessoas
ou entidades aos quais rendem essa homenagem, consiste em prostrar o corpo no chão
aos pés desses, sendo que, há uma variação nos movimentos, a depender do sexo e de
que orixá o filho-de-santo pertence. Os ebômis cumprimentam o seu pai-de-santo,
também com o dobale, a não ser em casos de impedimentos físicos ou quando estes os
7
O mesmo cumprimento aparece na literatura como foribalé. (LIMA, F. B. 2005).
46
liberam dessa obrigação. Entre si cumprimentam-se pedindo a bênção: o mais novo ao
mais velho e este abençoa o primeiro e lhe pede a bênção em seguida, em demonstração
de respeito e obrigação. Os ogãs e iyarobás, a depender do grau na hierarquia, também
dão dobale ao pai-de-santo.
Figura 16 – Iaô dando dobale
Fonte: Acervo Próprio
Os cumprimentos rituais revelem simetrias e assimetrias de poder, podem
expressar autoridade e hierarquia, status e posição social no grupo. Nas sutilezas do
povo-de-santo pode ser usado para expressar graus de afinidade ou desapreço pessoal,
ainda demonstram respeito ou hostilidade.
4.3.5 O comportamento:
Facilmente identifica-se um iaô na casa de axé. Na época da feitura usam
guizos amarrados aos pés, os xaurôs, para que seus movimentos sejam sempre vigiados.
Eles andam descalços ou com uma espécie de sandália branca, fechada na frente e
aberta na parte traseira do pé – os chagrins. Sentam-se em esteiras feitas de palha ou
em pequenos bancos chamados de apotis, esses bancos são confeccionados em tamanho
inferior a todos os assentos da casa, justamente para que o iaô nunca se sente à mesma
altura dos ebômis ou do Babalorixá.
Além disso, nunca se dirigem ao pai-de-santo olhando-o nos olhos ou de pé.
Quando são retaliados, ou repreendidos, nunca respondem e pedem a benção ao seu pai
47
por aquela correção, isso, quando não são tomados por seus orixás, que se manifestam,
tal o poder do pai-de-santo sobre seus filhos. Cada vez que algo de novo é ensinado a
um filho-de-santo, independente de sua idade de iniciação, se tem educação de axé, este
pede a bênção, em sinal de respeito e agradecimento, ao que lhe transmitiu mais um
conhecimento.
A hora das refeições no candomblé é, acima de tudo, um momento de
reunião da família-de-santo e, das visitas ou pessoas próximas à casa do candomblé,
quando as mesmas estão no terreiro. No Ilê Odé, a mesa é posta e sentam-se ao seu
redor somente o Babalorixá, os ebômis, ogãs e iyarobás e demais autoridades. Todos os
iaôs sentam-se em esteiras, segundo a ordem de idade de iniciação e irão comer em
pratos diferenciados dos demais membros da hierarquia, utilizam o prato e o caneco de
ágata, um tipo de prato metálico e esmaltado na cor branca.
Figura 17 – Iaôs sentados na esteira
Fonte: Acervo Próprio
Depois que alguém mais velho põe a comida em seus pratos, cada um dos
iaôs, na ordem da idade de iniciação dirige-se ao pai-de-santo pra pedir a bênção,
oferecendo-lhe o prato e este então o abençoa. O mesmo será feito para todos os mais
velhos, e só após esse ritual, é que o filho-de-santo poderá comer. Os ebômis, por
conseguinte, pedem também a bênção aos seus mais velhos e são retribuídos da mesma
forma.
48
4.3.6 A obrigação de sete anos
É a cerimônia que marca a passagem da categoria de iaô para ebômi,
podendo este vir a tornar-se Babá ou Iyalorixá. No dia da festa pública na obrigação de
sete anos a mãe-de-santo pode entregar ao ebômi uma cuia contendo uma navalha e a
tesoura, que representam os símbolos da feitura de iaô. Esse momento representa a
transferência do poder, onde a Iyá concede a seu filho a permissão para abrir uma casa
de candomblé e ter seus próprios filhos-de-santo. Nos candomblés Gantois essa
cerimônia não é formalmente chamada de decá, usa-se o termo obrigação de sete anos.
No entanto para efeito de esclarecimento o termo foi citado, pois é conhecido entre o
povo-de-santo e, aparece na literatura consultada com o mesmo sentido da obrigação de
sete anos, como em Luz (1995, p. 528):
Esse processo está inserido na própria instituição do “decá”, palavra Jeje que
caracteriza o ritual de entrega da cuia, da tesoura e da “navalha”, elementos
simbólicos da iniciação da iawô, isto é, da neófita, quando esta, depois de
sua obrigação de sete anos, solenemente passa ao status de ebômi e encontrase em condições de poder ter sua própria casa de culto.
4.3.7 Adereços e vestimentas
As roupas e os tipos de colares utilizados são marcos simbólicos do
pertencimento a determinado orixá, bem como distintivos de poder e diferenciação
entre os membros da hierarquia. Cada orixá é representado por colares de contas em
cores específicas: para Oxóssi o azul claro leitoso, para Oyá o marrom terra, para
Iyemanjá miçangas transparentes, para Oxalá o branco, para Xangô miçangas
alternadas entre vermelho e branco ou marrom e branco.
Quando se é iaô, usa-se um colar de palha-da-costa trançada com uma
espécie de vassoura em cada ponta – o mocã. Também usam os diloguns – “na verdade,
o termo dilogun é a abreviação da palavra iorubá mérindínlógún, que significa
dezesseis” (CAPONE, 2004, p. 63) - são as insígnias do iaô, constituem-se em colares
de dezesseis fios de miçangas fechados por uma firma.
Geralmente usam-se três
diloguns: um representando o orixá do pai-de-santo, outro do orixá pessoal e um de
Oxalá. O pai-de-santo e os ebômis usam contas mais grossas, muito enfeitadas, por
vezes feitas de coral, pedras africanas e símbolos que representam elementos da
natureza e os orixás. Existe um colar característico que se usa após os sete anos de
49
iniciação – o runjebe, que possui intrínseca ligação com o orixá Oyá. São comumente
usados também o Brajá, todo feito em búzios da costa, e o Laguidibá, colar distintivo
do ebômi de Omolu, feito de chifre.
Figura 18 – Detalhe: Contas
Fonte: Acervo Próprio
Figura 19 – Iaô de Ogum
Fonte: Acervo Próprio
As roupas dos iaôs são mais simples, geralmente brancas, para os homens
calça e uma camisa branca sem bolsos ou enfeites; para as mulheres saias rodadas com
fitas e bico nas bordas, anáguas, um camisu e o pano-da-costa. Em dias de festa
utilizam estampas em cores que lembram seus orixás. A mãe e o pai-de-santo, os
ebômis e ogãs têm roupas mais incrementadas do que os iaôs, usam rechilier e outros
tecidos mais nobres e bastante coloridos com um pano da costa. Só os ebômis entram
no xirê calçados, os iaôs dançam descalços.
4.3.8 Instrumentos evocatórios
O Ajá ou Adjá é uma sineta de metal, utilizada pelos líderes e autoridades
do candomblé nas festas públicas ou durante as oferendas e rituais, com a finalidade de
chamar os Orixás. É composta de um cabo do mesmo material com vários cones
(bocas) acoplados, pode ter uma, duas, três ou mais bocas. Só pessoas de autoridade no
terreiro podem usar esse instrumento, ao balançar o adjá junto ao ouvido do filho-desanto, este, imediatamente, será tomado por seu orixá.
50
Figura 20 – Detalhe: Xérem
Fonte: Acervo Próprio
Figura 21 – Adjá
Fonte: www.omundodamagia.com
O Xérem (ou xeré) tem um formato de uma esfera metálica oca, presa em
um cabo, que pode ser de madeira ou de metal. Dentro da esfera há pequenas partículas
sólidas, que quando se balança o instrumento tem-se um som muito peculiar que é
invocatório aos orixás. Geralmente um ogã de Xangô ou o próprio Babalorixá o
utilizam sempre nas obrigações e festas desse orixá. Exitem também, o kalakolô,
formado por dois cones de metal e os ogués, que são dois chifres de búfalo, ambos os
instrumentos são empunhados por alguém investido de autoridade para manuseá-los.
3.3.9 As cadeiras do barracão
No barracão do terreiro existem as cadeiras dos pais de santo e demais
autoridades. Em geral a cadeira do pai ou mãe é maior e mais rica em detalhes, próxima
a ela fica a cadeira do Babálaxé e da Iyakekerê. Existem também cadeiras para receber
autoridades de outros terreiros. É comum, nos terreiros, os pais e mães-de-santo
possuírem cadeiras que assemelham-se a verdadeiras obras de arte esculpidas com
detalhes que remetam ao universo mítico da religião.
Certamente, essa breve análise não abrange todos os símbolos existentes
nesses terreiros, mas fornece uma descrição que é ilustrativa para o entendimento da
temática do poder nesse contexto.
51
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O terreiro é organizado por laços espirituais e erigido sobre uma rigorosa
estrutura hierárquica, que confere ao Babalorixá o mais alto poder. No entanto, quando
se olha mais de perto, percebe-se que para manter a coerência e subordinação dos
demais, ele não o faz sem sacrifícios, por mágica ou por encantamento dos deuses. Do
contrário, ele cerca-se de pessoas, com as quais, mantém vínculos, não só biológicos,
como de confiança. São essas pessoas que vão formar o corpo “diretivo” da
organização, representados principalmente nos cargos de Babalaxé e Iyakekerê.
Além disso, ocupar a posição de sacerdote, cuidar da espiritualidade e, muitas
vezes, do bem estar psicológico dos filhos-de-santo, requer o reconhecimento das
qualidades pessoais do Babá ou Iyá, que precisam ser suficientes para ele obter
legitimidade, respeito e reconhecimento de sua autoridade e poder. Esse
reconhecimento é indicativo de prestígio e poder no campo religioso e garante-lhe um
capital simbólico que confere um status, tanto para atrair clientes como para inspirar
confiança naqueles que aspiram tornarem-se algum dia filhos-de-santo daquele terreiro.
A cultura organizacional dos terreiros é marcada pela tradição, oralidade,
valorização do saber ancestral e, conseqüentemente, respeito ao mais velho. Há normas
tácitas, impossíveis de serem materializadas, pois obedecem a uma ética do preceito,
respeito e segredo, e se reproduzem num ambiente de rigidez normativa demarcado pela
hierarquia religiosa. Entrementes, essa rigidez não é excludente, principalmente no que
tange a idade, cor da pele, sexualidade ou posição social. Todos são bem vindos a
integrar esse universo, evidentemente, desde que mantenham uma postura aceita pelo
controle social do grupo.
Apesar dos vínculos religiosos, a preservação da ordem por parte de uns e o
desejo de poder da parte de outros, como em toda organização, gera conflitos e
dissensões. Suscita curiosidade, também, para estudos posteriores, o fato da linhagem
espiritual de Babá Everaldo, sacerdote do Ilê Ode Axé Oba Omi, ser hegemonicamente
feminina (observar figura 9). Como se terá dado o processo de legitimação do poder de
um Babá num universo tão marcado pelo poder feminino?
Longe de esgotar a discussão sobre hierarquia e as manifestações do poder nos
terreiros de candomblé, este trabalho almejou fazer uma análise organizacional destes,
buscando conhecer as origens, a sua estrutura física e social, sua cultura organizacional
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e as formas pelas quais a organização logra atingir seus objetivos, pretendendo
conhecer, também, seus mecanismos de sustentabilidade econômica. Embora seja
explícito o caráter do terreiro enquanto templo religioso, observou-se que os
apontamentos da teoria das organizações podem aportar seu arcabouço para além das
tradicionais esferas do mercado, Estado e do, hoje tão estudado, Terceiro Setor.
Foi possível analisar uma organização religiosa, caracteristicamente baiana, de
enorme riqueza cultural e permeada por valores que quase nada dizem respeito ao
capital, ao lucro, mas do contrário, oferecem um rico cabedal simbólico, artístico, étnico
e cultural, que pode, se utilizado com seriedade e comprometimento, gerar
contribuições ao estudo das organizações locais contemporâneas.
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