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GIANPAOLO POGGIO SMANIO FELIPE CHIARELLO DE SOUZA PINTO ANA CLÁUDIA RUY CARDIA ATCHABAHIAN ANA CLAUDIA POMPEU TOREZAN ANDREUCCI MICHELLE ASATO JUNQUEIRA Organizadores PESSOAS INVISÍVEIS PREVENÇÃO E COMBATE AO TRÁFICO INTERNO E INTERNACIONAL DE SERES HUMANOS PESSOAS INVISÍVEIS PREVENÇÃO E COMBATE AO TRÁFICO INTERNO E INTERNACIONAL DE SERES HUMANOS ORGANIZADORES GIANPAOLO POGGIO SMANIO FELIPE CHIARELLO DE SOUZA PINTO ANA CLÁUDIA RUY CARDIA ATCHABAHIAN ANA CLAUDIA POMPEU TOREZAN ANDREUCCI MICHELLE ASATO JUNQUEIRA PESSOAS INVISÍVEIS PREVENÇÃO E COMBATE AO TRÁFICO INTERNO E INTERNACIONAL DE SERES HUMANOS Londrina/PR 2020 © Direitos de Publicação Editora Thoth. Londrina/PR. www.editorathoth.com.br contato@editorathoth.com.br Diagramação e Capa: Editora Thoth Revisão: os autores. Editor chefe: Bruno Fuga Coordenador de Produção Editorial: Thiago Caversan Antunes Diretor de Operações de Conteúdo: Arthur Bezerra de Souza Junior Conselho Editorial Prof. Me. Anderson de Azevedo • Me. Aniele Pissinati • Prof. Dr. Antônio Pereira Gaio Júnior • Prof. Me. Arthur Bezerra de Souza Junior • Prof. Dr. Bianco Zalmora Garcia • Prof. Me. Bruno Augusto Sampaio Fuga • Prof. Dr. Carlos Alexandre Moraes • Prof. Dr. Celso Leopoldo Pagnan • Prof. Dr. Clodomiro José Bannwart Junior • Prof. Me. Daniel Colnago Rodrigues • Profª. Dr. Deise Marcelino da Silva Prof. Dr. Elve Miguel Cenci • Prof. Me. Erli Henrique Garcia • Prof. Dr. Fábio Fernandes Neves Benfatti • Prof. Dr. Fábio Ricardo R. Brasilino • Prof. Dr. Flávio Tartuce • Prof. Dr. Gonçalo De Mello Bandeira (Port.) • Prof. Me. Henrico Cesar Tamiozzo • Prof. Me. Ivan Martins Tristão Profª. Dra. Marcia Cristina Xavier de Souza • Prof. Dr. Osmar Vieira da Silva • Esp. Rafaela Ghacham Desiderato • Profª. Dr. Rita de Cássia R. Tarifa Espolador • Prof. Me. Smith Robert Barreni • Prof. Me. Thiago Caversan Antunes • Prof. Me. Thiago Moreira de Souza Sabião • Prof. Dr. Thiago Ribeiro de Carvalho • Prof. Me. Tiago Brene Oliveira • Prof. Dr. Zulmar Fachin Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Smanio, Gianpaolo Poggio. Pinto, Felipe Chiarello de Souza. Atchabahian, Ana Cláudia Ruy Cardia. Andreucci, Ana Claudia Pompeu Torezan. Junqueira, Michelle Asato. Pessoas invisíveis: prevenção e combate ao tráfico interno e internacional de seres humanos / Organizadores - Gianpaolo Poggio Smanio, Felipe Chiarello de Souza Pinto, Ana Cláudia Ruy Cardia Atchabahian, Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci, Michelle Asato Junqueira. – Londrina, PR: Thoth, 2020. 478 p. Inclui Bibliografia. ISBN 978-65-86300-08-6 1. Direito. 2. Direitos humanos. I. Título. CDD 323.09 Índices para catálogo sistemático 1. Direitos Humanos : 323.09 Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização. Todos os direitos desta edição reservardos pela Editora Thoth. A Editora Thoth não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta obra por seu autor. SOBRE OS ORGANIZADORES ANA CLAUDIA POMPEU TOREZAN ANDREUCCI Pós-Doutora em Direitos Humanos e Trabalho pelo Centro de Estudos Avançados da Universidade Nacional de Córdoba, Argentina. Pós- Doutora em Novas Narrativas na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Pós Doutora em Direitos Humanos e Democracia pelo Instituto Ius Gentium, Universidade de Coimbra, Portugal. Doutora e Mestre pela PUC/SP. Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero e em Direito pela UPM. Professora do Curso de Graduação da Faculdade de Direito da UPM. Professora Convidada do Curso de Pós Graduação Lato Sensu da ECA/USP. Líder do Grupo de Pesquisa Emergente – CriaDirMackDireitos da Criança do Adolescente no Século XXI da Faculdade de Direito da UPM. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Pessoas Invisíveis da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. ANA CLÁUDIA RUY CARDIA ATCHABAHIAN Doutora e Mestre em Direito I pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro da International Law Association – Ramo Brasileiro (ILA-Brasil) e Conselheira da Seção Latino-Americana da Global Business and Human Rights Scholars Association. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Pessoas Invisíveis: Prevenção e Combate ao Trá co Interno e Internacional de Seres Humanos” Financiado pelo MackPesquisa. Advogada. FELIPE CHIARELLO DE SOUZA PINTO Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Colaborador no Programa de Pós-Graduação da Universidade de Passo Fundo. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq “Estado e Economia no Brasil”. Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Pessoas Invisíveis: Prevenção e Combate ao Tráfico Interno e Internacional de Seres Humanos”, Financiado pelo MackPesquisa. GIANPAOLO POGGIO SMANIO Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq “Políticas Públicas como Instrumento de Efetivação da Cidadania. Membro da Escola Superior do Ministério Público. Procurador Geral de Justiça do Estado de São Paulo. Líder do Grupo de Pesquisa “Pessoas Invisíveis: Prevenção e Combate ao Tráfico Interno e Internacional de Seres Humanos”, Financiado pelo MackPesquisa. MICHELLE ASATO JUNQUEIRA Doutora e Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie-UPM. Especialista em Direito Constitucional com Extensão em Didática do Ensino Superior. Vice-líder dos Grupos de Pesquisa “Políticas Públicas como Instrumento de Efetivação da Cidadania” e “Direitos das Crianças e dos Adolescentes no século XXI”. Pesquisadora do grupo de pesquisa CNPq “Estado e Economia no Brasil”. de Pesquisa “Pessoas Invisíveis: Prevenção e Combate ao Trá co Interno e Internacional de Seres Humanos”. Coordenadora de Pesquisa e TCC da Faculdade de Direito da UPM. APRESENTAÇÃO “E por falar em saudade Onde anda você? Onde anda os seus olhos Que a gente não vê ....” (Vinícius de Moraes e Tom Jobim) Este texto representa o início de algo que finaliza o que não tem fim. Os artigos produzidos nesta obra são frutos de um ano de trabalho, discussões, pesquisas, inquietações e esperança, muito esperança, de poder contribuir para o combate ao tráfico de pessoas, assunto que, sob muitas faces, nos mostrou a sua complexidade e transdisciplinaridade. O projeto “Pessoas Invisíveis: prevenção e combate ao tráfico interno e internacional de seres humanos” nasce em continuação ao projeto de pesquisa “Mulheres Invisíveis: panorama internacional e a realidade brasileira do tráfico transnacional de mulheres”, ambos financiados pelo Mackpesquisa e sediados na força conjunta dos grupos de pesquisa CNPq “Políticas Públicas como Instrumento de Efetivação da Cidadania” e “Estado e Economia no Brasil”, do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. O primeiro projeto, adstrito à análise tráfico de mulheres, foi o primeiro contato dos pesquisadores, em 2017, com a temática inquietante e perturbadora do crime de tráfico de pessoas, que pode ter origem por diversos fatores sociais, econômicos e até mesmo culturais. Contudo, era premente a necessidade de se ampliar os estudos e foi o que aconteceu no ano de 2019. O segundo projeto foi ampliado para o tráfico de pessoas, no cenário nacional e internacional. Já cientes da legislação sobre o tema, das instituições de combate ao crime e apoio às vítimas, da interpretação doutrinária e jurisprudencial do tema, foi possível estabelecer um diálogo interdisciplinar entre o Direito Penal, o Direito Internacional e o Direito Internacional dos Direitos Humanos e, além do universo jurídico, promover um diálogo com outros campos que influenciam nas estatísticas relacionadas ao tráfico internacional de pessoas e nas formas de escravidão moderna tais como a Sociologia, a Psicologia, o Serviço Social, a Arquitetura, dentre outros. Não obstante os esforços das instituições públicas e privadas em promover o debate da problemática, partimos da premissa de que o tráfico nacional e internacional de pessoas ainda sofre da invisibilidade diante da sociedade brasileira, o que dificulta um debate eficiente para a prevenção e combate. Nos aproximamos do grupo de pesquisa emergente “CriADirMack: Direitos da Criança e do Adolescente no Século XXI” para inserir com mais cuidado a análise do tráfico de crianças e adolescentes, oportunidade em que assuntos como a adoção ilegal, o trabalho infantil, crianças-soldado e o desaparecimento de crianças ganharam destaque. Considerando os atuais arranjos institucionais na sociedade internacional, que conta com maior participação de novos atores, como as empresas transnacionais, e seu maior envolvimento nas violações aos Direitos Humanos, os aportes de Direitos Humanos e Empresas recebidos a partir das discussões no grupo de estudos “Mack DH&E” resultaram na análise conjunta do tráfico de pessoas e a submissão de trabalhadores a condições análogas à escravidão ( escravidão moderna) e o papel da exploração de migrantes pelas corporações. Ademais, a análise da vulnerabilidade dos seres humanos, do gênero, das migrações, da atuação estatal na promoção de políticas públicas e da tecnologia também foram tratadas com espírito crítico e reflexivo. São alunos de graduação, pós-graduação e professores que não se furtaram do desafio de dar vez, voz, cor e corpo às pessoas invisíveis. Por trás dessas reflexões acadêmicas há histórias de vida inacabadas e incertezas, com as quais o direito convive e deve procurar interferir pois, mais do que “dever ser”, precisamos interagir com a realidade que “é”. Se tudo que é humano pertence ao estudo do direito, que a humanidade nunca nos escape na busca de um mundo melhor, mais justo e solidário, fundado na dignidade da pessoa humana. Boa leitura, na certeza de que continua sendo o começo. São Paulo, verão de 2020. Gianpaolo Poggio Smanio Felipe Chiarello de Souza Pinto Ana Cláudia Ruy Cardia Atchabahian Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci Michelle Asato Junqueira SUMÁRIO SOBRE OS ORGANIZADORES .................................................................5 APRESENTAÇÃO ...........................................................................................7 PARTE I MIGRAÇÃO E TRÁFICO DE PESSOAS: DESAFIOS ATUAIS .......20 CAPÍTULO 1 Izabela Zonato Villas Boas Letícia Moreira Graça REFUGIADOS VÍTIMAS DO TRÁFICO DE PESSOAS: UMA ANÁLISE SOCIOLEGAL E FILOSÓFICA SOB O PONTO DE VISTA DA CONDIÇÃO HUMANA ARENDTIANA ..........................22 Introdução......................................................................................................22 1 Aspectos legais do tráfico de pessoas e do refúgio e a conexão entre ambos..............................................................................................................24 2 A condição humana e o refugiado ..........................................................29 2.1 A condição em que os refugiados vivem ..........................................29 2.2 Hannah Arendt e o ser refugiado ......................................................30 2.3 A condição humana Arendtiana ........................................................32 3 O refugiado como vítima do tráfico humano internacional ...............33 Considerações finais .....................................................................................35 Referências .....................................................................................................35 CAPÍTULO 2 Richard Luz de Andrade CRISE MIGRATÓRIA VENEZUELANA: A VULNERABILIDADE COMO FATOR AGRAVANTE DE RISCO PARA O TRÁFICO DE PESSOAS E A ATUAÇÃO BRASILEIRA EM AÇÕES DE PREVENÇÃO VOLTADAS A MIGRANTES E REFUGIADOS ......40 Introdução...................................................................................................... 40 1 A crise migratória venezuelana e o papel do Estado brasileiro na acolhida dos migrantes e refugiados .......................................................... 42 2 A indissociável relação entre tráfico de pessoas e migrações – vulnerabilidade como fator agravante de risco......................................... 44 3 Política de prevenção ao tráfico de pessoas no Brasil – A necessidade de uma proteção específica a migrantes e refugiados ............................. 48 Considerações finais ..................................................................................... 50 Referências ..................................................................................................... 51 CAPÍTULO 3 George Takao Komesu Rafael Pepe Romano CRISE HUMANITÁRIA NA REPÚBLICA BOLIVARIANA DA VENEZUELA: VERIFICAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O ACOLHIMENTO, INTEGRAÇÃO E INTERIORIZAÇÃO DE MIGRANTES E REFUGIADOS E ANÁLISE SOBRE CASOS DE VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS CONTRA CIDADÃOS VENEZUELANOS NA REGIÃO NORTE DO BRASIL .................... 54 Introdução...................................................................................................... 54 1 A crise humanitária na Venezuela e seus desdobramentos ................. 55 2 A Operação Acolhida, Política de Interiorização e seu caráter provisório ................................................................................................ ...... 58 2.1 Pontos Positivos da Operação Acolhida ......................................... 58 2.2 Pontos Negativos da Operação Acolhida ....................................... 60 3 Fenômeno migratório na fronteira e seus desdobramentos. Radiografia do Conselho Nacional de Direitos Humanos, papel do Ministério Público, Defensoria Pública da União e da Sociedade Civil Organizada ..................................................................................................................... 61 Considerações finais ..................................................................................... 71 Referências ..................................................................................................... 74 CAPÍTULO 4 Ana Carolina D’Ascenção Botelho GÊNERO, MIGRAÇÃO E TRABALHO ESCRAVO NA CIDADE DE SÃO PAULO: UM OLHAR À LUZ DOS OBJETIVOS DA AGENDA 2030 PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ................... 76 Introdução...................................................................................................... 76 1 Breves considerações acerca das condições de vida e trabalho dos migrantes na cidade de São Paulo .............................................................. 79 2 O enfrentamento ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo em âmbito internacional .................................................................................... 84 2.1 O Protocolo de Palermo e o enfrentamento ao tráfico de pessoas: uma nova perspectiva ................................................................................ 84 2.2 O trabalho escravo e as Convenções da OIT ................................. 86 3 Tráfico de pessoas e trabalho escravo ou em condições análogas na legislação brasileira....................................................................................... 88 3.1 Tráfico de pessoas: do Código Penal à Lei nº 13.344/2016 ......... 88 3.2 Tipificação do trabalho escravo e sua relação com o tráfico de pessoas ......................................................................................................... 92 4 Agenda 2030: novos horizontes no enfrentamento ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo .................................................................... 94 4.1 Trabalho decente e crescimento econômico ................................... 96 4.2 Igualdade de gênero ............................................................................ 97 Considerações finais .................................................................................... 99 Referências .................................................................................................. 100 CAPÍTULO 5 Bianca Isabelle Lourenço de Sousa da Silva NAS COSTURAS DE SÃO PAULO: OS IMPACTOS DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA NO TRÁFICO DE BOLIVIANOS PARA A INDÚSTRIA TÊXTIL NA CAPITAL .................................... 104 Introdução................................................................................................... 104 1 Migração boliviana para São Paulo: origens e aliciamento ............... 105 2 Indústria têxtil e fashion law: a histórica mão de obra análoga à escrava .................................................................................................................. 109 3 Impactos da norma brasileira federal e local: o que mudou para os migrantes? ................................................................................................... 113 4 Programa municipal de enfrentamento e novos fluxos de tráfico de Bolívia-Brasil............................................................................................... 118 Considerações finais .................................................................................. 119 Referências .................................................................................................. 120 CAPÍTULO 6 Ana Cláudia Ruy Cardia Atchabahian Gianpaolo Poggio Smanio Felipe Chiarello de Souza Pinto A COMPLACÊNCIA DO ESTADO BRASILEIRO COM A ESCRAVIDÃO MODERNA: DA DECISÃO NO CASO “FAZENDA BRASIL VERDE V. BRASIL” AOS DESDOBRAMENTOS DA LEGISLAÇÃO NACIONAL SOBRE O TEMA ................................... 126 Introdução....................................................................................................127 1 Escravidão moderna: interpretação internacional sobre tráfico de pessoas e Direitos Humanos e Empresas ............................................... 128 2 A escravidão moderna e o Brasil no banco dos réus: o Caso “Fazenda Brasil Verde v. Brasil” .................................................................................130 3 Consequências legislativas nacionais do Caso “Fazenda Brasil Verde v. Brasil”: novas normas de combate ao tráfico de pessoas e à exploração laboral praticada por empresas .................................................................134 Considerações finais ...................................................................................137 Referências ...................................................................................................138 PARTE II TECNOLOGIA E TRÁFICO DE PESSOAS: USO DE DADOS E REDE DE COMBATE AO CRIME.........................................................142 CAPÍTULO 7 Giovana Auricchio Cardoso Gustavo Acioli Gondim de Almeida O SPOTLIGHT NO COMBATE À PROSTITUIÇÃO DECORRENTE DO TRÁFICO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS ......................... 144 Introdução .......................................................................................................144 1 Tráfico internacional de crianças: por que a prostituição? ................ 147 2 Cenário brasileiro da prostituição infantil decorrente do tráfico internacional de crianças ............................................................................151 3 A utilização da tecnologia no combate ao tráfico de crianças e adolescentes: análise do Spotlight ...........................................................157 4 Boas práticas no combate ao tráfico de crianças e adolescentes por meio do uso da tecnologia: análise da possibilidade de implementação do Spotlight no Brasil ......................................................................................161 4.1 Marco da inovação no Brasil ............................................................ 161 4.2 O uso da Inteligência Artificial no Brasil e a possibilidade de adoção do Spotlight ...............................................................................................164 Considerações finais ...................................................................................165 Referências ...................................................................................................167 CAPÍTULO 8 Antonio Jonas Dias Filho REDE DE DADOS E INFORMAÇÕES SOBRE O TRÁFICO DE PESSOAS NO BRASIL: O DESAFIO DA PRODUÇÃO, DA INTEGRAÇÃO E DO COMPARTILHAMENTO INTERINSTITUCIONAL..........................................................................174 Introdução....................................................................................................174 1 Dados e informações: o que precisamos compreender.....................175 2 Bases de dados e fontes de informações globais ................................177 3 Bases de dados e Fontes de informações do Brasil............................180 Considerações finais ...................................................................................186 Referências ...................................................................................................188 CAPÍTULO 9 Clarisse Laupman Marília Gagliardi A TECNOLOGIA A FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS: COMBATE AO TRÁFICO DE PESSOAS POR MEIO DA CRIAÇÃO DE BASES DE DADOS COMPARTILHADOS E O TRATAMENTO DE DADOS PESSOAIS NO ÂMBITO INTERNACIONAL ............190 Introdução....................................................................................................190 1 A relação entre o tráfico de pessoas, a tecnologia e a proteção de dados .................................................................................................................192 1.1 As formas de tratamento de dados pessoais nos casos de tráfico de pessoas ........................................................................................................194 1.1.1 Âmbito Internacional...................................................................194 2 As bases de dados sobre tráfico de pessoas e as medidas adotadas para a proteção pelas fontes de dados ..............................................................201 2.1 A Organização Internacional para as Migrações ...........................202 2.2 Escritório das Nações Unidas sobre drogas e crime ....................204 2.3 IBM ......................................................................................................205 Considerações finais ...................................................................................207 Referências ...................................................................................................208 CAPÍTULO 10 Carolina Naves Silvestre TRÁFICO DE PESSOAS: DESAFIO DA IMPLEMENTAÇÃO DE UMA REDE SISTEMATIZADA DE DADOS PARA O COMBATE DO FENÔMENO NO BRASIL ...............................................................212 Introdução....................................................................................................212 1 Perspectivas gerais sobre o tráfico de pessoas e análise de sua evolução legislativa no Brasil......................................................................................213 2 Análise da integração de dados oficiais sobre o fenômeno do tráfico de pessoas ..........................................................................................................220 3 Interface de informações entre entes governamentais sobre a notícia dos desaparecimentos ................................................................................231 Considerações finais ...................................................................................237 Referências ...................................................................................................238 Anexos ..........................................................................................................244 CAPÍTULO 11 Maria Eduarda Soares de Alvarenga CIDADES INTELIGENTES E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO COMBATE AO TRÁFICO DE SERES HUMANOS...........................246 Introdução....................................................................................................246 1 O tráfico de seres humanos: evolução, conceitos e aspectos socioeconômicos .........................................................................................248 2 Cidades Inteligentes: um novo mundo.................................................250 3 Impactos da Inteligência Artificial e de Cidades Inteligentes na segregação de vulneráveis ..........................................................................252 4 Avanços tecnológicos no embate ao Tráfico de Seres Humanos.....254 Considerações finais ...................................................................................256 Referências ...................................................................................................258 PARTE III TRÁFICO DE MULHERES E CRIANÇAS: OBJETIFICAÇÃO, CONSENTIMENTO E DESAPARECIMENTO .................................262 CAPÍTULO 12 Ana Beatriz Ribeiro da Silva Monique Peixoto de Souza PESSOAS E PREÇOS: AS DISTORÇÕES NARRATIVAS QUE MERCANTILIZAM OS SERES HUMANOS NO CONTEXTO DO TRÁFICO INTERNACIONAL ................................................................264 Introdução....................................................................................................264 1 Desterritorialização e o “cidadão do mundo” - uma construção histórica ........................................................................................................266 2 A colonização das vítimas ......................................................................268 2.1 A feminização da pobreza.................................................................269 2.2 O abuso das situações de vulnerabilidade ......................................270 3 Narrativas apresentadas ao Judiciário Brasileiro .................................271 Considerações finais ...................................................................................275 Referências ...................................................................................................276 CAPÍTULO 13 Alline Pedra Jorge Birol Thamara Duarte Cunha Medeiros ENTRE DISSENSOS E CONSENSOS: TRÁFICO DE PESSOAS E SITUAÇÕES DE VULNERABILIDADE ..............................................278 Introdução....................................................................................................278 1 Tráfico de pessoas no Brasil: marco legal e conceitual ......................279 2 Consentimento da vítima no crime de tráfico de pessoas e situações de vulnerabilidade ............................................................................................282 Considerações finais ...................................................................................287 Referências ...................................................................................................287 CAPÍTULO 14 Rayane Cardoso dos Santos Rocha CRIANÇAS-SOLDADO, DA GUERRA À FAVELA: UM TEMA DE TRÁFICO DE PESSOAS ............................................................................290 Introdução....................................................................................................290 1 Análise do termo “Crianças-Soldado” e a questão do consentimento....................................................................................................................291 2 Tráfico de pessoas, exploração da mão-de-obra infantil e o recrutamento de crianças para conflitos armados e o crime organizado ....................295 3 Crianças-soldado na África ....................................................................298 4 Crianças-soldado no Brasil .....................................................................301 5 Combate ao uso de crianças-soldado ...................................................306 Considerações finais ...................................................................................311 Referências ...................................................................................................312 CAPÍTULO 15 Maria Luiza Bortoloto Morata ENTRE “PINÓQUIOS” E “STROMBOLIS”: O TRÁFICO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES PARA FINS DE EXPLORAÇÃO NA PRÁTICA DE DELITOS E SUA PROJEÇÃO POTENCIAL NO CONTEXTO BRASILEIRO...........314 Introdução....................................................................................................314 1 Tráfico de crianças e adolescentes: mapeando contextos e vulnerabilidade ............................................................................................316 Considerações finais ...................................................................................327 Referências ...................................................................................................328 CAPÍTULO 16 Gabriel Ferreira da Silva INFÂNCIAS ROUBADAS E TRÁFICO RECEPCIONADO: UMA ANÁLISE DO TRABALHO DOMÉSTICO INFANTIL NO BRASIL SOB A PERSPECTIVA DO TRÁFICO INTERNO DE PESSOAS .330 Introdução ..................................................................................................330 1 O trabalho infantil no Brasil ..................................................................332 2 O tráfico de crianças e suas peculiaridades com tema abordado .....333 3 O sentimento de legalidade, caridade e solidariedade permeando um crime. O berço da banalidade do mal ......................................................338 Considerações finais ...................................................................................341 Referências ...................................................................................................342 CAPÍTULO 17 Alicia Baptista Rodrigues QUEM TEM MEDO DO LOBO MAU? A EXPLORAÇÃO DA VULNERABILIDADE DE RELAÇÕES FAMILIARES E O PROCESSO DE ADOÇÃO NO BRASIL COMO MARGEM PARA O TRÁFICO DE CRIANÇAS ........................................................................344 Introdução....................................................................................................344 1 Panorama do tráfico de pessoas: A relação entre tráfico de crianças e a adoção ...........................................................................................................345 1.1 O esquema persuasivo do tráfico: as diferentes modalidades e o “modus operandi” ....................................................................................345 1.2 Análise das legislações e Políticas Públicas para o combate ao tráfico de pessoas no Brasil e a adoção ilegal....................................................346 2 Perspectivas da lei da adoção e regulação no Brasil ...........................350 2.1 Levantamento de dados nacionais: estatísticas e o processo de adoção.........................................................................................................351 3 Relacionando Tráfico e Adoção: consequências psicológicas e sociais do crime........................................................................................................353 3.1 Exploração dos traficantes da vulnerabilidade de casais que sonham com a parentalidade..................................................................................353 3.2 Crianças: Quais as consequências sociais e psicológicas? ............354 Considerações finais ...................................................................................358 Referências ...................................................................................................359 CAPÍTULO 18 Alana Paterno Godoy CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATUAL CENÁRIO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA MODALIDADE ADOÇÃO ILEGAL.....364 Introdução....................................................................................................364 1 Conceito de políticas públicas ...............................................................366 2 Mecanismos de implementação de políticas públicas ........................367 3 A importância da atuação do Poder Judiciário nas políticas públicas ..................................................................................................................369 4 O sistema de garantias e direitos da criança e do adolescente..........371 5 Instrumentos de enfrentamento ao tráfico de pessoas......................373 6 O atual cenário de políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de crianças e adolescentes ...............................................................................377 7 Considerações sobre a atual gestão de políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de crianças e adolescentes na modalidade adoção ilegal no Brasil................................................................................380 Considerações finais....................................................................................380 Referências ...................................................................................................386 CAPÍTULO 19 Ana Cláudia Pompeu Torezan Andreucci Michelle Asato Junqueira Valéria Jabur Maluf Mavuchian AONDE ESTÁ VOCÊ AGORA? “MÃES DA SÉ” NOS ENCONTROS E DESENCONTROS POR CRIANÇAS DESAPARECIDAS: NARRATIVAS DE PROTAGONISMO, CIDADANIA E SOLIDARIEDADE ......................................................................................392 Introdução....................................................................................................393 1 Desaparecimento como narrativa de um luto inacabado ..................396 2 Mães da Sé: quando os vocábulos dor e luta se tornam sinônimos.398 3 Mães da Sé: diálogos com fontes normativas de proteção à criança e ao adolescente ...................................................................................................401 4 Mães da Sé: comunicação como instrumento para a sensibilização nossa de cada dia ........................................................................................403 4.1 Imagens, impressões, cartazes, bola em campo: parcerias multiplicadoras de engajamento social ..................................................405 4.2 Quando narrativas ficcionais e reais se encontram: telenovelas comunicando discussões sociais .............................................................406 4.3 Ciberativismo ......................................................................................411 Considerações finais ...................................................................................414 Referências ...................................................................................................414 CAPÍTULO 20 Natalia Larissa L. Ribeiro MULHERES, ESTIGMAS E VULNERABILIDADE: BREVE ANÁLISE HISTÓRICA DA POSTURA ESTATAL BRASILEIRA ANTE À CONDIÇÃO DA MULHER TRAFICADA, SOB O PRISMA DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS 418 Introdução....................................................................................................418 1 Vítimas de Tráfico para fins de Exploração sexual e o estigma social da prostituição ..................................................................................................421 1.1 O tráfico de escravas brancas e a omissão estatal .........................423 1.2 Protocolos de Palermo ......................................................................429 2 Principais instrumentos internacionais contra o tráfico de mulheres ..................................................................................................................433 3 Análise dos dados expostos ...................................................................443 3.1 Declaração sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher: suas implicações à postura brasileira..........................443 3.2 Um adendo à resistência internacional à CEDAW .........................443 Considerações finais ...................................................................................446 Referências ...................................................................................................448 CAPÍTULO 21 Ana Flávia Francisco Facury Juliana Vigarani Beluzzo A EXPLORAÇÃO DA MULHER NO CONTEXTO DE CONFLITOS ARMADOS: DA VULNERABILIDADE DE GÊNERO AO TRÁFICO DE PESSOAS ................................................................................................453 Introdução .......................................................................................................453 1 O que é um conflito armado? ................................................................454 2 Um panorama global sobre o tráfico de mulheres no contexto de conflitos armados........................................................................................457 3 A questão de gênero e a vulnerabilidade..............................................460 4 O perfil socioeconômico das vítimas ...................................................464 5 As formas de tráfico de mulheres recorrentes no contexto de conflitos armados ........................................................................................................466 Considerações finais ...................................................................................474 Referências .....................................................................................................475 PARTE I MIGRAÇÃO E TRÁFICO DE PESSOAS: DESAFIOS ATUAIS CAPÍTULO 1 REFUGIADOS VÍTIMAS DO TRÁFICO DE PESSOAS: UMA ANÁLISE SOCIOLEGAL E FILOSÓFICA SOB O PONTO DE VISTA DA CONDIÇÃO HUMANA ARENDTIANA IZABELA ZONATO VILLAS BOAS Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, PósGraduanda em Direito Constitucional e Administrativo pela Escola Paulista de Direito, Mestre em Sociologia Jurídica pelo Instituto Internacional de Sociologia Jurídica de Oñati na Espanha. Membro do Grupo de Pesquisa “Pessoas Invisíveis: Prevenção e Combate ao Tráfico Interno e Internacional de Seres Humanos”. LETÍCIA MOREIRA GRAÇA Graduanda em Direito e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. INTRODUÇÃO O aumento exponencial do número de pessoas que migram ao redor do Planeta é mais uma das consequências do mundo globalizado. A facilidade migratória que se tem atualmente representa inúmeros benefícios à sociedade, como oportunidades de estudo e trabalho, direito à segurança, dignidade e proteção, o que se tem com o instituto do refúgio, por exemplo. No entanto, há também uma faceta contraproducente da facilidade migratória, que se resume na possibilidade da perpetuação de crimes em escala transnacional, como o tráfico de pessoas. O fato de o refúgio e o tráfico de pessoas serem duas questões relevantes em constante crescimento, tanto pela importância, quanto pela gravidade que simbolizam, evidenciam que o ser humano é o foco do Direito Internacional e justificam a escolha da temática para esta pesquisa. O refúgio é instituto que possibilita a concessão de proteção de um país ao migrante, porém com requisitos a serem observados, como será melhor explicado adiante. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), há cerca de 25,9 milhões de pessoas refugiadas no mundo. Já o tráfico de pessoas é crime que assola pessoas com os mais diversos gêneros, características e idades, e está entre as atividades criminosas mais rentáveis do mundo. Diante disso, tem-se como problema de pesquisa verificar se é possível associar a condição humana do refugiado vítima de tráfico de pessoas com o animal laborans arendtiano. Além disso, como questão subsidiária, buscase analisar se há efetiva proteção desses indivíduos, em âmbito nacional e internacional, tendo em vista a sua vulnerabilidade. Tem-se por objetivo principal analisar as violações de direitos sofridas pelas pessoas em situação de refúgio que são vítimas do tráfico de pessoas. Como objetivo secundário verificar se ocorre efetiva proteção legal desses indivíduos. Sendo assim, trabalha-se com a hipótese de que ainda que refugiados vítimas de tráfico de pessoas sofram violações mais severas, quando identificada a ocorrência do crime há efetiva proteção ou ainda de que além destes indivíduos sofrerem incontestáveis violações, não se verifica a adequada proteção à essas pessoas por se tratar de crimes que não se tornam visíveis. Para atingir o objetivo proposto, este trabalho será desenvolvido por meio de pesquisas bibliográfica, documental e legal com caráter descritivo e exploratório, combinadas ao método indutivo para alcançar as principais conclusões. Nesse sentido, são utilizadas como principais fontes documentos oficiais da Organização Internacional para as Migrações, da Organização das Nações Unidas, através de representações como Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), bem como de organizações do terceiro setor, e legislações e tratados internacional e nacional. Sendo assim, inicialmente são explanados e conectados o crime de tráfico de pessoas e o instituto do refúgio. Posteriormente, será tratada a teoria da Condição Humana de Hannah Arendt, de forma a estabelecer o marco teórico desta pesquisa, e, por fim, busca-se conectar este crime, trazendo como vítimas as pessoas protegidas pela condição de refugiados, correlacionando-os com a condição humana de Hannah Arendt. 1 ASPECTOS LEGAIS DO TRÁFICO DE PESSOAS E DO REFÚGIO E A CONEXÃO ENTRE AMBOS O instituto do refúgio é disciplinado internacionalmente pela Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e por seu Protocolo de 1967, que conceituam refugiado como sendo a pessoa que: temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.1 No Brasil, a Lei n° 9.474/1997, conhecida como Estatuto dos Refugiados, adota um conceito ampliado de refugiado, trazendo, além do conceito visto acima, a hipótese do art. 1º, inciso III que traz a possibilidade de grave e generalizada violação de direitos humanos em que o indivíduo é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro.2 Já o crime de tráfico de pessoas é tratado pelo artigo 3 do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, conhecido também por Protocolo de Palermo, assim o detalha: o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou 1. 2. ACNUR. Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951. Disponível em: <https://www. acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_ Refugiados.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2019 BRASIL. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/l9474.htm>. Acesso em: 22 nov 2019. práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos;3 Trata-se de crime que pode ocorrer em âmbito nacional e também transnacional. Além da severidade descrita pelo Protocolo de Palermo, a gravidade do crime é trazida também no art. 7º, 2, “c” do Estatuto de Roma, que trata o tráfico de pessoas como crime contra a humanidade4. Ainda que o controle de fronteiras seja cada vez maior e mais rigoroso, o crime de tráfico de pessoas continua ocorrendo também em proporções maiores. Isso pode se justificar em razão da associação entre crime e globalização. Nunes entende que, com a globalização, pode ser possível a revelação de novas modalidades de crimes, bem como novas configurações de antigos crimes através das novas tecnologias e informações do mundo globalizado5. Nesse sentido, após breve conceituação e contextualização do instituto do refúgio e do crime de tráfico de pessoas, passa-se à abordagem que busca aproximá-los. Para tanto, utiliza-se o Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas6, bem como o Documento Temático do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) sobre a Luta contra o Tráfico de Pessoas em Situações de Conflito7, ambos publicados em 2018. Conforme o Relatório Global, conflitos armados podem aumentar a vulnerabilidade ao tráfico em razão da falta de recursos e grandes níveis de pobreza, o que torna precário o Estado de Direito e propício o ambiente para traficantes cometerem o crime, tendo em vista o clima de impunidade. 3. 4. 5. 6. 7. BRASIL. Decreto nº5.017 de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5017.htm>. Acesso em: 03 nov. 2019. Artigo 7º. Crimes contra a Humanidade. 1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “crime contra a humanidade”, qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:(...) c) Escravidão; (...) 2. Para efeitos do parágrafo 1º: c) Por “escravidão” entende-se o exercício, relativamente a uma pessoa, de um poder ou de um conjunto de poderes que traduzam um direito de propriedade sobre uma pessoa, incluindo o exercício desse poder no âmbito do tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças; BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de Setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm>. Acesso em: 05 nov. 2019. NUNES, Laura M. O crime da globalização e a globalização do crime. Revista da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, n° 7, p. 402 - 410. Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa, 2010. p. 404. UNODC. Global Report on Trafficking Persons. Vienna: 2018. Disponível em: <https://www. unodc.org/documents/data-and-analysis/glotip/2018/GLOTiP_2018_BOOK_web_small. pdf> Acesso em: 06 nov. 2019. UNODC. Thematic Paper on Countering Trafficking in Persons in Conflict Situations. Vienna: 2018. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/2018/17-08776_ ebook-Countering_Trafficking_in_Persons_in_Conflict_Situations.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2019. Além disso, somam-se condições socioeconômicas precárias, situações de perseguição, o que faz com que pessoas nessas circunstâncias sejam mais facilmente enganadas por situações de exploração disfarçadas de propostas fraudulentas, acarretando crises humanitárias, vulnerabilidade entre a população e lucro entre os criminosos8. O Relatório também indica que grupos armados podem utilizar o tráfico como estratégia que potencializa o domínio territorial, disseminando o medo e exercendo controle sobre a população. Além dos grupos armados, há outros autores envolvidos no tráfico de pessoas em regiões de conflitos, como grupos criminosos e traficantes individuais, que possuem como alvo civis, refugiados e populações deslocadas internamente em campos formais e informais de refúgio9. Dessa forma, o documento informa a existência de casos em campos de refugiados no Oriente Médio, em países como Síria e Iraque, bem como em locais de conflito na África Central e Ocidental, onde, por exemplo, crianças são usadas como combatentes, meninas e mulheres jovens são submetidas à “escravidão sexual”, ao casamento forçado (como forma apelativa a recrutar novos potenciais recrutas masculinos), à exploração sexual, além de outras formas criminosas e violentas10. Aprofundando, o Documento Temático do UNODC sobre a Luta contra o Tráfico de Pessoas em Situações de Conflito, alerta que as violações por abuso sexual contra homens e meninos pode aumentar em situações de conflito11. Nessa linha, argumenta que crianças, especialmente desacompanhadas, que fogem de conflitos, correm maiores riscos, pois são particularmente suscetíveis às formas de trabalho exploratório. Os UNODC. Global Report on Trafficking Persons. Vienna: 2018. Disponível em: <https://www. unodc.org/documents/data-and-analysis/glotip/2018/GLOTiP_2018_BOOK_web_small. pdf> Acesso em: 06 nov. 2019. p. 11 e 12. e UNODC. Thematic Paper on Countering Trafficking in Persons in Conflict Situations. Vienna: 2018. Disponível em: <https://www.unodc.org/ documents/human-trafficking/2018/17-08776_ebook-Countering_Trafficking_in_Persons_ in_Conflict_Situations.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2019. p 1 e 2. 9. UNODC. Global Report on Trafficking Persons. Vienna: 2018. Disponível em: <https://www. unodc.org/documents/data-and-analysis/glotip/2018/GLOTiP_2018_BOOK_web_small. pdf> Acesso em: 06 nov. 2019. p. 11. 10. UNODC. Global Report on Trafficking Persons. Vienna: 2018. Disponível em: <https://www. unodc.org/documents/data-and-analysis/glotip/2018/GLOTiP_2018_BOOK_web_small. pdf> Acesso em: 06 nov. 2019. p.11. e UNODC. Thematic Paper on Countering Trafficking in Persons in Conflict Situations. Vienna: 2018. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/ human-trafficking/2018/17-08776_ebook-Countering_Trafficking_in_Persons_in_Conflict_ Situations.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2019. p. x, executive summary. 11. UNODC. Thematic Paper on Countering Trafficking in Persons in Conflict Situations. Vienna: 2018. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/2018/17-08776_ ebook-Countering_Trafficking_in_Persons_in_Conflict_Situations.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2019. p. x, executive summary. 8. exemplos são diversos, como ocorre com crianças afegãs e sudanesas desacompanhadas que vivem em campos de refugiados em Calais e Dunquerque na França, traficadas para exploração sexual, forçadas ao cometimento de crimes, como roubo e venda de drogas12. Ademais, o Documento relata a existência de casos de refugiados sírios que foram traficados para trabalhar em setores como agricultura, indústria, manufatura, restauração em Estados vizinhos à Síria. Há também casos em que sul-asiáticos foram enganosamente recrutados e traficados para trabalho forçado em zonas de conflito em áreas do Oriente Médio. Casos também ocorrem tendo Estados contratando particulares para recrutar trabalhadores migrantes para apoiar operações militares de grande escala13. Sendo assim, nota-se que não há perfis específicos para vítimas de tráfico, podendo se tratar de pessoas de todas as classes sociais, idades, sexo, gênero, população fora de conflito ou em ambientes conflitantes, migrantes em situações regulares ou irregulares, requerentes de asilo e até refugiados14. Além disso, importa salientar que, ainda que exista o consentimento para a exploração, isso não altera o crime de tráfico de pessoas15. Diante da ausência de características específicas e da invisibilidade do crime, tem-se a dificuldade na verificação de casos e da identificação de vítimas e criminosos, e, portanto, aplicação insuficiente da legislação. Tal precariedade é inclusive manifestada pela Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) em julgamento de tráfico de mulheres nigerianas na França, ao reconhecer a dificuldade que essas mulheres têm para que seu problema chegue ao conhecimento das autoridades e para que possam obter proteção16. 12. UNODC. Thematic Paper on Countering Trafficking in Persons in Conflict Situations. Vienna: 2018. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/2018/17-08776_ ebook-Countering_Trafficking_in_Persons_in_Conflict_Situations.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2019. p. 16. 13. UNODC. Thematic Paper on Countering Trafficking in Persons in Conflict Situations. Vienna: 2018. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/2018/17-08776_ ebook-Countering_Trafficking_in_Persons_in_Conflict_Situations.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2019. p. 15. 14. UNODC. Thematic Paper on Countering Trafficking in Persons in Conflict Situations. Vienna: 2018. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/2018/17-08776_ ebook-Countering_Trafficking_in_Persons_in_Conflict_Situations.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2019. p. 8 15. UNODC. Thematic Paper on Countering Trafficking in Persons in Conflict Situations. Vienna: 2018. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/2018/17-08776_ ebook-Countering_Trafficking_in_Persons_in_Conflict_Situations.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2019. p. viii, executive summary. 16. UNODC. Thematic Paper on Countering Trafficking in Persons in Conflict Situations. Vienna: 2018. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/2018/17-08776_ Visando encontrar solução para problemas de tamanha magnitude, o Documento Temático alerta que os esforços dos Estados para combater não devem aumentar a inadvertidamente a vulnerabilidade das pessoas para o tráfico. Assim, propõe medidas como não criminalização da migração17, estabelecimento de caminhos seguros para que as pessoas saiam com segurança das áreas de conflito de maneira regular e ordenada, estabelecimento de serviços de registro civil adequados e gratuitos, para migrantes e pessoas deslocadas internamente nos campos de refugiados. Além disso, o acolhimento de pessoas em situação de refúgio pode ajudar a evitar que essas pessoas sejam vítimas de outras violações, além das que as fizeram buscar refúgio, como o tráfico de pessoas.18 O Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos deixa claro em seu sétimo princípio que pessoas traficadas não devem ser criminalizadas, seja pela ilegalidade de entrada, residência ou ainda por crimes que tenham cometido no curso de seu tráfico19. Não há dúvidas que, ainda no que tangencia a proteção das vítimas, a atuação dos Estados é essencial. Estes, de acordo com a Convenção Internacional sobre a proteção dos direitos de todos os migrantes trabalhadores e membros de suas famílias (ICRMW Convention), devem promover uma proteção efetiva contra violência, violação física, ameaças e intimidação por oficiais públicos ou particulares20. 17. 18. 19. 20. ebook-Countering_Trafficking_in_Persons_in_Conflict_Situations.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2019. p. viii, executive summary. “La Cour, bien que consciente de l’importance du phénomène de la traite des femmes nigérianes en France et des difficultés pour ces personnes à se faire connaître des autorités en vue d’obtenir une protection, ne peut que constater, au vu de ce qui précède, que la requérante n’a pas tenté d’interpeller les autorités sur sa situation.” COUR EUROPÉENNE DES DROITS DE L’HOMME. Cinquième section. Siégeant le 29 novembre 2011. Requête no 7196/10. Disponível em: <https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-108003%22]}>. Acesso em: 04 dec. 2019. O artigo 31(1) da Convenção dos Refugiados específica que: Os Estados Contratantes não aplicarão sanções penais em virtude da sua entrada ou permanência irregulares, aos refugiados que, chegando diretamente do território no qual sua vida ou sua liberdade estava ameaçada no sentido previsto pelo art. 1º, cheguem ou se encontrem no seu território sem autorização, contanto que se apresentem sem demora às autoridades e lhes exponham razões aceitáveis para a sua entrada ou presença irregulares. Como exemplo tem-se:UN Women and WFP provide safe spaces in refugee camps to build resilience among refugee women, for instance at the Za’atari refugee camp in Jordan, which shelters tens of thousands of women who have fled conflict in Syria. UNODC. Thematic Paper on Countering Trafficking in Persons in Conflict Situations. Vienna: 2018. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/ human-trafficking/2018/17-08776_ebook-Countering_Trafficking_in_Persons_in_Conflict_ Situations.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2019. p. 44. OHCHR. Recommended Principles and Guidelines on Human Rights and Human Trafficking. Disponível em <https://www.ohchr.org/Documents/Publications/Traffickingen.pdf>. Acesso em: 07 dez. 2019. OHC. International Convenetion on the Protection of the Rights of All Migrants Workers and Members of their families. Disponível em <https://www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/CMW. aspx>. Acesso em: 07 dez. 2019. O protocolo sobre tráfico de pessoas também especifica que o Estado deve prezar pela segurança física de tais pessoas21. O Estado, portanto, tem obrigação de proteger as vítimas, mesmo que em situações irregulares pois, justamente a irregularidade intensifica a sua vulnerabilidade para que o crime ocorra. Ainda nessa ótica, é garantido a essas pessoas acesso à alojamento adequado, aconselhamento e informação, assistência médica, psicológica e material e oportunidade de emprego, educação e formação. Tais direitos estão previstos no artigo 6 do Decreto nº 5.017, o Protocolo de Tráfico de Pessoas. Assim, com o auxílio adequado, garante-se que estas pessoas continuem tendo direito a ter direitos22, de forma a garantir a dignidade da pessoa humana. Dessa forma, passa-se a análise da condição humana Arendtiana e suas peculiaridades. 2 A CONDIÇÃO HUMANA E O REFUGIADO Neste tópico em questão, visa-se compreender a condição em que as vítimas de refúgio e a sua condição humana de animal laborans, terminologia usada por Hannah Arendt, em sua obra “A Condição Humana”, de 1958, para então tornar compreensível como a própria condição dessas pessoas potencializa o tráfico humano internacional. 2.1 A CONDIÇÃO EM QUE OS REFUGIADOS VIVEM A condição dos refugiados está intrinsecamente relacionada com a ocorrência de guerras civis no plano internacional, que possuem inúmeros motivos, como religioso, econômico, político ou étnico. Além disso, essas situações de conflito colocam em risco indivíduos e grupos, que, por sua vez, estão sujeitos a sofrer não somente graves ameaças ou perseguições, mas principalmente as atrocidades que são viver em um campo de guerra. Vivem-se em zonas de conflito, que se assemelham à campos minados. Onde se vive, não há segurança ou garantia de que permanecerão vivos, e faltam necessidades básicas23. Há somente o 21. BRASIL. Decreto nº5.017 de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5017.htm>. Acesso em: 07 nov. 2019. 22. AREDNT, Hannah. As origens do totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das letras, 2012. 23. UNODC. Global Report on Trafficking Persons. Vienna: 2018. p. 11. constante medo da morte, da perda de familiares e amigos. Deve-se lutar pela sobrevivência, mesmo que essa sobrevivência seja sinônimo de uma grande incógnita, que será somente encontrada em outras terras. Em terras distantes, em outro continente, do outro lado do oceano. Essas vítimas, vulneráveis pela sua atual condição, quando chegam a uma nova nação, dotadas de sentimentos antagônicos, como medo e positivismo, enfrentam novos desafios, como, por exemplo, o linguístico e cultural, que, mais uma vez, dificulta e vulnerabiliza, ainda mais, a sua própria condição. Perante as tragédias em plano internacional causadas pelas guerras civis, é compreensível que os Estados se preocupem com sua segurança. De acordo com Juan Carlos Murillo24 a segurança e a luta contra o terrorismo vieram exacerbar as políticas restritivas de asilo, já implementadas por muitos Estados em diferentes partes do mundo. Dessa forma, o refugiado é percebido não como uma vítima que precisa de amparo e proteção, mas sim como uma ameaça à segurança do Estado25, podendo, até mesmo, ter a sua condição de refugiado cancelada ou revogada. 2.2 HANNAH ARENDT E O SER REFUGIADO Diante da situação previamente descrita, Hannah Arendt, filósofa política contemporânea que vivenciou os horrores de regimes totalitários, fala com propriedade sobre a condição em que os refugiados vivem. Em sua obra “Nós, os Refugiados”, publicada em 1943 no jornal The Monorah Journal, a autora fala com clareza e intimidade de quem são os refugiados: Um refugiado costuma ser uma pessoa obrigada a procurar refúgio devido a algum ato cometido ou por tomar alguma opinião política. Bom, é verdade que tivemos que procurar refúgio; mas não cometemos nenhum ato e a maioria de nós nunca sonhou em ter qualquer opinião política radial. O sentido do termo “refugiado” mudou conosco. Agora “refugiados” são aqueles de que nós que chegaram à infelicidade de chegar a um novo país sem meios e tiveram que ser ajudados por comitês de refugiados.26 24. MURILLO. Os Legítimos Interesses de Segurança dos Estados e a Proteção Internacional de Refugiados. Sur, Rev. int. direitos human., São Paulo , v. 6, n. 10, p. 120-137, jun 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 07 dez. 2019. 25. MURILLO. Os Legítimos Interesses de Segurança dos Estados e a Proteção Internacional de Refugiados. 2010. Sur, Rev. int. direitos human., São Paulo , v. 6, n. 10, p. 120-137, jun 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 07 dez. 2019. p. 11. 26. ARENDT, Hannah. Nós, os refugiados. The Menorah Journal. 1943. Disponível em: <http:// www.lusosofia.net/textos/20131214-hannah_arendt_nos_os_refugiados.pdf>. Acesso em 07 dez. 2019. p.7. Estes, por sua vez, buscam reconstruir sua vida, adotando uma visão otimista, mesmo frente à inúmeros obstáculos enfrentados, como a perda de suas casas, a familiaridade com a vida quotidiana e até mesmo a confiança no mundo. Perde-se a língua, os familiares e amigos, mortos pelas atrocidades vivenciadas em seu país de origem que se encontra em um estado minimamente caótico27. O otimismo, anteriormente mencionado, serve para evitar especialmente alusões aos acontecimentos de sua pátria-mãe. Este sentimento, por sua vez, é uma forma de lidar com este futuro incerto que os circundam. De acordo com Arendt, “depois de tanta má sorte queremos um percurso infalível. Portanto, deixamos a terra com todas essas incertezas para trás e lançamos o nosso olhar para o céu”28. Por outro lado, o otimismo exacerbado não é suficiente para superar todos os problemas que ainda serão enfrentados. Para a autora, os refugiados são excluídos das fronteiras estatais. Além disso, são, igualmente, seres desprovidos de cidadania, já que esta, por sua vez, engloba o conceito de proteção e pertencimento a um Estado29. Dessa forma, de acordo com Wermuth e Nielsson, ao interpretar o posicionamento de Arendt, é entendido que a crise dos Direitos Humanos está diretamente relacionada à crise do Estado, na medida em que este, sedimentado na cidadania nacional, deixou de alcançar as pessoas desprovidas de nacionalidade30. Em outras palavras, o mero direito de pertencer a uma nova nação lhes é negado. Evidencia-se, a perda de lugar no mundo, o que exclui a humanidade destas vítimas, intensificando, mais uma vez, a sua vulnerabilidade simplesmente pelo que são: nascidos na raça errada, ou na classe errada31. 27. ARENDT, Hannah. Nós, os refugiados. The Menorah Journal. 1943. Disponível em: <http:// www.lusosofia.net/textos/20131214-hannah_arendt_nos_os_refugiados.pdf>. Acesso em 07 dez. 2019. p.8 28. ARENDT. Nós, os refugiados. The Menorah Journal. 1943. Disponível em: <http://www. lusosofia.net/textos/20131214-hannah_arendt_nos_os_refugiados.pdf>. Acesso em 07 dez. 2019. p.9 29. ARENDT. Nós, os refugiados. The Menorah Journal 1943. Disponível em: <http://www. lusosofia.net/textos/20131214-hannah_arendt_nos_os_refugiados.pdf>. Acesso em 07 dez. 2019. p.9 30. WERMUTH, Maiquel Angelo Dezordi; NIELSSON, Joice Graciele. De Hannah Arendt a Judith Butler: em busca da humanidade perdida nas fronteiras do estado-nação. Pensar Revista de Ciências Jurídicas, Fortaleza, v. 22, n. 1, p. 301-334, jan/abr. 2017. Disponível em: <https://periodicos. unifor.br/rpen/article/view/4322>. Acesso em 07 dez. 2019 31. ARENDT. A condição humana. 11. Ed. Trad. R. Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010 p. 328. 2.3 A CONDIÇÃO HUMANA ARENDTIANA Diante das situações descritas sobre os refugiados, faz-se possível a abertura de espaço para as terminologias, análises e conceitos de Hannah Arendt acerca da condição humana destes seres marginalizados. A autora em sua obra “A Condição Humana” de 1958, visa fazer uma análise do ser humano, a partir das perspectivas da ação, trabalho e labor. A condição humana, em termos gerais, se ocupa em refletir sobre o que o homem faz. Nesta perspectiva, Arendt define três atividades centrais que correspondem às condições básicas da vida humana: a ação, o trabalho e o labor, sendo este o mais relevante para a relação que, posteriormente, será feita com o tráfico de pessoas com fins exploratórios.32 De acordo com a filósofa, o labor, condição básica para vida humana, significa ser escravizado pela necessidade33. Em outras palavras, o labor é condição de vida a homens que são sujeitos à necessidade de prover a própria subsistência. É dessa necessidade que surge o termo animal laborans para definir, ou até mesmo reduzir, a condição dos homens. O animal laborans é definido, então, como um homem que reduziu a sua felicidade ao interesse único e exclusivo de buscar a subsistência e manutenção de sua vida. Esse ser perdeu a fé, o mundo comum, a capacidade de pensar, agir. O homem, portanto, se torna um ser condicionado a necessidade, que perde seu senso de humanidade e valores gerais definidos. É assim que ele é reduzido a um simples objeto. Para ele, é impossível compreender a relatividade dos valores, pois, para ele, só existe o valor absoluto da necessidade. Com este pensamento, o animal laborans trata todas as coisas como objeto de consumo gerando uma massiva desvalorização de todos os valores34. Ainda nessa ótica, o labor está relacionado à ideia de servidão, e por isso nunca está relacionado ao produto final das atividades. Ele é sempre fragmentado ao máximo, devido à inesgotabilidade da produtividade do animal laborans. Assim, o que o labor produz é a força de trabalho humano. 32. FIORATI, Jete Jane. Os direitos do homem e a condição humana no pensamento de Hannah Arendt. Brasília. Revista de informação legislativa, v. 36, n. 142, p. 53-63, abr./jun.1999. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/475. Acesso em: 07 dez. 2019. 33. AREDNT, Hannah. A condição humana. 11. Ed. Trad. R. Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. 34. FIORATI, Jete Jane. Os direitos do homem e a condição humana no pensamento de Hannah Arendt. Brasília. Revista de informação legislativa, v. 36, n. 142, p. 53-63, abr./jun.1999. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/475. Acesso em: 07 dez. 2019. 3 O REFUGIADO COMO VÍTIMA DO TRÁFICO HUMANO INTERNACIONAL Em meio a incontestável vulnerabilidade em que vivem os refugiados, a questão do tráfico de pessoas é mais uma dura agravante à esta realidade. Por se tratar de um mercado ilegal e invisível no mundo globalizado e cada vez mais sem-barreiras, o tráfico de refugiados é um fenômeno que carece de medidas protetivas, tanto no âmbito interno quanto externo, dada a impossibilidade de controlar as pessoas que entram e saem de um país, especialmente em um país que acolhe as vítimas de conflitos externos internacionais. De acordo com Queila Paula Rosa e Carlos Henrique Costa Tavares, a fórmula do tráfico de refugiados é a soma do desespero social pautado pela ânsia de sobrevivência e segurança em conjunção com a transformação dessas pessoas em alvos fáceis para os traficantes, em decorrência da vulnerabilidade35. Dessa forma, o refugiado que é traficado, para exploração de trabalho, sexual ou até mesmo para escravização, é duplamente vitimizado e tem a sua condição humana reduzida. Sem nação, sem família, documentos ou amparo estatal, este ser, que de acordo com o paradigma de Hannah Arendt36 é marginalizado pelo Estado-Nação por não ser titular de nacionalidade, quando deveria ser, na verdade, protegido, é agora explorado, subjugado, marginalizado, esquecido, ameaçado e traficado, para dentro de um mercado invisível que, mais uma vez, fará com que a condição humana da vítima desse crime seja questionada. O tráfico de pessoa é entendido como uma forma moderna de escravidão, que, por sua vez, é uma das principais finalidades deste mercado clandestino. Dentre as novas formas de trabalho escravo, pode-se citar a servidão em setores industriais informais, como, por exemplo, a produção de confecções e calçados, produção de produtos alimentícios e lapidação de pedras. O Protocolo de Palermo, dessa forma, em seu artigo 3°, define o tráfico de pessoas como o recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou outras formas de coação, rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade para 35. ROSA, TAVARES. O tráfico internacional de refugiados sob a ótica dos direitos humanos. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/o-trafico-internacional-derefugiados-sob-a-otica-dos-direitos-humanos/>. Acesso em: 07 dez. 2019. 36. ARENDT. Hannah. Nós, os refugiados. The Menorah Journal.1943. Disponível em: <http:// www.lusosofia.net/textos/20131214-hannah_arendt_nos_os_refugiados.pdf>. Acesso em 07 dez. 2019.p.10. obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre a outra para fins de exploração. Esta exploração pode incluir mais de uma forma de exploração simultaneamente, dentre elas, exploração sexual, de trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou remoção de órgãos37. Verifica-se, portanto, a perda de valores, a escravização pela necessidade, a servidão e a objetificação do ser elementos intrínsecos tanto na condição humana do animal laborans arendtiano como na vítima do tráfico humano em condição de refúgio. O refugiado, que nesse cenário é vítima do tráfico humano, é escravizado para sua própria subsistência. Em outras palavras, para que sua sobrevivência seja assegurada, essa vítima, vulnerável por essência, se submete às atrocidades que o crime de tráfico humano pode sujeitá-la, como exploração de trabalho ou sexual. Assim, a servidão é essencial para que se compreenda a condição do animal laborans. A servidão para assegurar a subsistência causa a perda de valores, uma vez que não há valores, somente a do consumo e da produção. Havendo a perda de valores, a objetificação ocorre de forma orgânica, já que a tal carência faz com que o animal laborans se submeta a inenarráveis situações, com o único objetivo de sobreviver. Assim, a falta de valores pode ser identificada facilmente, pois o refugiado traficado os perde, assim como sua própria humanidade, pois não há a esperança de sobreviver ou contemplar uma vida melhor. Há, mais uma vez, a preocupação com a sobrevivência em um ambiente hostil, que o explorará até o seu fim. Com a exploração incessável, a vítima, que se sujeita à exploração para sobreviver, se torna um mero objeto, passível de ser consumido e, claramente, explorado até a sua deturpação. Em outras palavras, as vítimas serão exploradas até que a sua função não tenha mais proveito. A grande descartabilidade destas vítimas caracteriza o seu perfil de objeto, passível de consumação e de ser descartado com facilidade, pois haverá outra vítima, que vive nas mesmas situações e se encontram na mesma situação de vulnerabilidade. 37. GUIA, Maria João. Sete ligações perigosas entre imigração e tráfico de pessoas. In: Mulheres invisíveis: panorama internacional e realidade brasileira do tráfico transnacional de mulheres. SMANIO, Gianpaolo P., PINTO, Felipe Chiarello de S., ATCHABAHIAN, Ana Cláudia Ruy Cardia., JUNQUEIRA, Michelle A., ANDREUCCI, Ana Cláudia P. Torezan. (Orgs.). Curitiba: CRV, 2018. p. 17-36 CONSIDERAÇÕES FINAIS Buscou-se contextualizar o instituto do refúgio, bem como o crime de tráfico de pessoas, de forma a conectá-los, trazendo exemplos de refugiados que foram vítimas de tráfico. Nesse sentido, foi apresentado o Documento Temático do UNODC, que traz a necessidade de integração de esforços contra o tráfico de pessoas no trabalho relacionado ao conflito. Dessa forma, verificou-se que quanto ao problema de pesquisa há possibilidade de associar a condição humana do refugiado vítima de tráfico humano com o animal laborans de Hannah Arendt, uma vez que ambos partilham das mesmas características essenciais para a sua condição de coisa, ou seja, a servidão para subsistência, a perda de seus valores e a sua objetificação, que, por sua vez, é resultado das características anteriores. Em sequência, restou confirmada a hipótese de que a proteção adequada à essas pessoas não é verificada, pois, apesar de existirem institutos jurídicos que legislam sobre a matéria, especialmente de cunho internacional, há grande deficiência em sua aplicabilidade, tendo em vista, especialmente, o cenário sem-fronteiras e a situação de vulnerabilidade das vítimas, que facilita exponencialmente que o crime não só aconteça de forma invisível, mas que continue impune. Sendo assim, compreende-se que para que seja efetiva não só a proteção social em geral, mas principalmente em relação aos refugiados traficados, é necessário que recebam apoio adequado, ajuda humanitária, jurídica e financeira essencial às vítimas, para que se garanta acesso efetivo a serviços e soluções. Assim, pode-se evitar a dupla vitimização a qual esses indivíduos são submetidos, proporcionando proteção e reprimindo a exploração, marginalização e esquecimento. REFERÊNCIAS ACNUR. Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951. Disponível em: <https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/ portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados. pdf>. Acesso em 25 nov. 2019 ACNUR. Global trends: forced displacement in 2018. Disponível em: <https://www.unhcr.org>. Acesso em: 22 nov. 2019. ARENDT, Hannah. Nós, os refugiados. The Menorah Journal.1943. Disponível em: <http://www.lusosofia.net/textos/20131214-hannah_ arendt_nos_os_refugiados.pdf>. Acesso em 07 dez. 2019. AREDNT, Hannah. A condição humana. 11. Ed. Trad. R. Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010 AREDNT, Hannah. As origens do totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das letras, 2012. BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de Setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm>. Acesso em: 05 nov. 2019. BRASIL. Decreto nº5.017 de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5017.htm>. Acesso em: 03 nov. 2019. ______. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ l9474.htm>. Acesso em: 22 nov. 2019. BRASIL. Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016. Dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas; altera a Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, o DecretoLei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e revoga dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20152018/2016/Lei/L13344.htm>. Acesso em: 05 nov. 2019. CORREIA, Adriano. Quem é o animal laborans de Hannah Arendt. Revista de Filosofia Aurora. V. 25, n. 37, 2013. COSTA, Paulo. Tráfico de pessoas. Algumas considerações legais. SOCIUS Working Papers, N.8, 2004 COUR EUROPÉENNE DES DROITS DE L’HOMME. Cinquième section. Siégeant le 29 novembre 2011. Requête no 7196/10. 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SMANIO, Gianpaolo P., PINTO, Felipe Chiarello de S., ATCHABAHIAN, Ana Cláudia Ruy Cardia., JUNQUEIRA, Michelle A., ANDREUCCI, Ana Cláudia P. Torezan. (Orgs.). Curitiba: CRV, 2018. p. 17-36 MOREIRA, Julia Bertino. A Problemática dos Refugiados na América Latina e no Brasil. Cadernos PROLAM/USP (ano 4 - vol. 2 - 2005), p. 57-76. MURILLO, Juan Carlos. Os Legítimos Interesses de Segurança dos Estados e a Proteção Internacional de Refugiados. Sur, Rev. int. direitos human., São Paulo , v. 6, n. 10, p. 120-137, jun 2009. Disponível em: <http://www. scielo.br>. Acesso em: 07 dez. 2019. NUNES, Laura M. O crime da globalização e a globalização do crime. Revista da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, n° 7, p. 402 - 410. Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa, 2010. OHC. International Convenetion on the Protection of the Rights of All Migrants Workers and Members of their families. Disponível em: <https:// www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/CMW.aspx>. Acesso em 07 dez. 2019. 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INTRODUÇÃO Atualmente, segundo dados fornecidos pela plataforma R4V (Resposta a Venezuelanos), existem mais de 224 mil venezuelanos considerados refugiados ou migrantes no Brasil1. Tal plataforma, criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em parceria com entidades da sociedade civil disponibiliza dados atualizados sobre a imigração venezuelana no Brasil, além dos pedidos de refúgio, dados sobre a interiorização e relatórios atualizados. Para que seja disponibilizada a base de dados R4V, segundo matéria publicada pela UNAIDS, programa da ONU que tem a função de criar soluções no combate à AIDS, mais de 20 membros participam incluindo dados no sistema, fornecendo relatórios de monitoramento, fichas sobre 1. Dados obtidos na plataforma online Resposta a Los Venezolanos. Disponível em https://r4v. info/es/situations/platform. Acesso em 30/01/2020. o acolhimento e interiorização dos venezuelanos e até mesmo orientação sobre a vida no Brasil2. O presente artigo tem por objetivo abordar a importância da coleta, uso e administração dos dados obtidos dos migrantes e refugiados venezuelanos, partindo da premissa de que, para que haja maior eficácia nas políticas de acolhida, é imprescindível que o Estado Brasileiro se atente ao perfil sociodemográfico dos imigrantes. A partir da análise de dados, é possível identificar vulnerabilidades que, se administradas, podem culminar numa política de prevenção ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo que seja efetiva. Além disso, o artigo se propõe a analisar as vulnerabilidades identificadas como fatores agravantes de risco para o crime de tráfico de pessoas. Para que se entenda a vulnerabilidade, é necessário além de considerar o indivíduo em si, considerar fatores da comunidade, o que, segundo Neuza Guareschi, desloca a questão de vulnerabilidade para as configurações do contexto social3. Nesse sentido, a vulnerabilidade não deve ser verificada e analisada de maneira individual, mas inserindo os elementos configuradores do status de vulnerável sobre uma camada social volátil, que pode sofrer mudanças de acordo com a conjuntura político-econômica e social. Para que se entenda o indivíduo vulnerável, é necessário entender o contexto social em que este está envolvido. Destaca-se neste ponto a pesquisa realizada pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas, que concluiu pela ausência de infraestrutura em Boa Vista, uma das principais cidades acolhedores de migrantes e refugiados venezuelanos4: O cenário de Boa Vista apresenta parcela da população local carente de políticas integradas de educação, de inserção digna no mercado de trabalho, e de ampliação dos serviços de saúde. A prefeitura, sem o apoio dos governos estadual e federal para atrair projetos de desenvolvimento econômico para a região, não consegue prover o necessário a uma população majoritariamente desempregada, ou inserida no mercado informal, e pouco instruída. 2. 3. 4. UNAIDS. Plataforma reúne dados sobre venezuelanos no Brasil. 2019. Disponível em: https://unaids.org.br/2019/09/plataforma-reune-dados-sobre-venezuelanos-no-brasil/. Acesso em 30 nov. 2019. GUARESCHI, Neuza M. F. et al . Intervenção na condição de vulnerabilidade social: um estudo sobre a produção de sentidos com adolescentes do programa do trabalho educativo. Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro , v. 7, n. 1, jun. 2007. Disponível em <http://pepsic.bvsalud. org>. acesso em 02: dez. 2019. FGV DAPP. Desafio Migratório em Roraima – Repensando a política e gestão de migração no Brasil. Policy Paper – Imihração e Desenvolvimento. pp. 03. 2018 Sendo assim, a partir do reconhecimento da situação vulnerável e delicada presenciada pelos imigrantes venezuelanos que ingressam no Brasil, o uso estratégico de meios que possibilitem uma permanência ou passagem da maneira menos gravosa possível, observadas todas as garantias legais aos refugiados e migrantes, é medida essencial para a promoção dos Direitos Humanos e o respeito à dignidade da pessoa humana, princípio basilar da Constituição Federal do Brasil, bem como das convenções internacionais hoje vigentes. Entretanto, necessário entender, preliminarmente, a origem do fluxo migratório venezuelano ao Brasil, além do perfil dos migrantes e refugiados, bem como suas condições de permanência no país ou de passagem para o destino final em outro território. A presente pesquisa, portanto, se projeta em um cenário de crise migratória na América Latina e busca, através da análise da vulnerabilidade inerente à condição de refugiados e migrantes, verificar se o Brasil tem adotado medidas protetivas que visem prevenir o tráfico de pessoas e outras graves violações aos direitos humanos. Para tanto, será utilizada a base bibliográfica atual sobre tráfico de pessoas, bem como dados fornecidos pelo Governo Federal, Ministério da Justiça e Segurança Pública, institutos internacionais e outros agentes participantes no processo de acolhimento dos migrantes e refugiados venezuelanos. 1 A CRISE MIGRATÓRIA VENEZUELANA E O PAPEL DO ESTADO BRASILEIRO NA ACOLHIDA DOS MIGRANTES E REFUGIADOS Para se entender o êxodo venezuelano para os países da América Latina, é necessário entender o contexto político conturbado vivido pela Venezuela desde a crise mundial de 2008. Em abril de 2002, assumiu o poder o Ex-presidente Hugo Chávez, reeleito em 2006 para mais um mandato, caracterizado pela economia baseada principalmente na produção de petróleo para o mercado externo5. Por basear sua economia basicamente no setor petrolífero, o mercado venezuelano entrou em crise em 2008, momento em que o mundo inteiro também sofria economicamente. Ainda assim, Chávez foi reeleito em 2012, não assumindo em razão de sua morte.6 5. 6. VILLA, Rafael Duarte. Venezuela: mudanças políticas na era Chávez. Estudos Avançados, São Paulo, v. 19, n. 55, p. 153-172, dez. 2005. GOMES, Eduardo Biacchi; LEAHY, Érika, ANDRETTA, Juliane Tedesco. A eficácia da nova Após a morte de Hugo Chávez, assumiu a presidência Nicolás Maduro. Já nos primeiros meses, foi acusado de ilegitimidade pelos opositores, que defendiam que o presidente interino, no período anterior às novas eleições necessárias após a morte de Chávez, deveria ser o presidente da assembleia nacional venezuelana.7 Inobstante, Nicolás Maduro se candidatou e ganhou a corrida presidencial, tendo seu governo, desde o início, sido marcado por manifestações populares veementemente reprimidas pelo Estado venezuelano. Em meados de 2014, o país adentrou novamente em grave crise econômica, com uma inflação projetada de 1.000.000% ao ano8. Ato contínuo, houve crise de abastecimento de medicamentos, itens de higiene pessoal e alimentos, causando emigração em massa e diversas manifestações e protestos no país. Em 2019, segundo informações da Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e da Organização Internacional de migrações, o número de venezuelanos que deixaram o país em decorrência da grave crise humanitária superou 4 milhões de pessoas, incluindo crianças desacompanhadas9. Segundo a R4V, após a atualização de 30 de setembro de 2019, constatou-se que existem 224.102 imigrantes e refugiados no Brasil. Além, a plataforma aponta que 104.858 venezuelanos possuem visto temporário ou definitivo de residência no brasil, estando pendentes 119.244 pedidos de refúgio. De fato, o recebimento de tal número de imigrantes e refugiados em curto lapso temporal gera dificuldades no aparato público, em especial nos sistemas de saúde e ensino. Em agosto de 2018, a ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber indeferiu pedido de tutela antecipada em Ação Civil Originária proposta pelo Estado de Roraima em face da União Federal, que objetivava o fechamento temporário da fronteira entre Brasil e Venezuela ou a limitação do ingresso de imigrantes venezuelanos no Brasil. Em sua decisão, a ministra relatou que a característica da política migratória brasileira é ser pautada sob a prevalência dos direitos humanos 7. 8. 9. legislação migratória no contexto da crise da Venezuela. Revista eletrônica [do] Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, PR, v. 8, n. 78, p. 32-46, maio 2019. VILLA, Rafael Duarte. Venezuela: mudanças políticas na era Chávez. Estudos Avançados, São Paulo, v. 19, n. 55, p. 153-172, dez. 2005 Encuesta Condiciones de Vida (ENCOVI) 2015. UCAB-USB-UCV. 2014 a 2017. <https:// www.ucab.edu.ve>. Acesso em: 05 dez 2019 WELLE, Deutsche. Número de Refugiados e migrantes da Venezuela chega a 4 milhões. 2019. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2019-06/numero-derefugiados-e-migrantes-da-venezuela-chega-4-milhoes. Acesso em 20 nov. 2019. e em observância à cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, de forma que indeferiu o pedido de tutela pleiteado.10 Em especial após o período de redemocratização, o Brasil passou a ser um país considerado acolhedor para migrantes e refugiados. A lei brasileira e os tratados subscritos pelo Brasil fazem com que o país seja considerado possuidor de uma legislação avançada no sentido de garantir previsões a refugiados. Isso se dá em especial em razão dos mecanismos internacionais dos quais o Brasil é signatário, em especial a Convenção de 51 e a Lei de Migração11, que garantem um tratamento digno e equiparação de direitos com os brasileiros, entre outros benefícios. Há, para a acolhida, uma rede que envolve entes estatais, organizações não governamentais e membros da sociedade civil, que têm se mobilizado cada vez mais para auxiliar nessa realidade. Nesse sentido, nasce a necessidade de uma consciência coletiva acerca dos riscos aos quais os imigrantes e refugiados estão mais vulneráveis. 2 A INDISSOCIÁVEL RELAÇÃO ENTRE TRÁFICO DE PESSOAS E MIGRAÇÕES – VULNERABILIDADE COMO FATOR AGRAVANTE DE RISCO Antes de se analisar os dois fenômenos, faz-se necessário conceituar, sob à luz da legislação vigente no Brasil, o tráfico de pessoas, migração e refúgio. A recente Lei 13.344/2016, sancionada pelo presidente Michel Temer e editada sob os moldes do Protocolo de Palermo12, modificou o Código Penal Brasileiro com o intuito de acrescentar o artigo 149-A, que define “agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de...”. Entre os incisos I e V do referido artigo, constam as finalidades determinou as modalidades de tráfico que seriam acolhidas pela legislação penal brasileira, quais sejam, o tráfico de órgãos e tecidos (inciso I), a submissão à trabalho análogo à de escravo (inciso II), servidão 10. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tutela provisória na Ação Cível Originária 3.121 – Roraima. Autor: Estado de Roraima. Ré: União. Brasília, 06 de agosto de 2018. 11. BRASIL. Lei 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Brasília, DF. Maio de 2017. 12. BRASIL. Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Brasília, DF, março de 2004. de qualquer tipo (inciso III), adoção ilegal (inciso IV) e exploração sexual (inciso V). A Lei 13.344/2016 não só alterou a definição de tráfico de pessoas, mas também instituiu diretrizes para a prevenção, proteção e assistência às vítimas, trazendo à legislação interna os princípios presentes no Protocolo de Palermo13. Em relação às políticas migratórias brasileiras, merece destaque outra recente modificação legislativa, que alterou substancialmente o prisma de acolhimento de migrantes no Brasil. Trata-se da Lei 13.445 de 2017, chamada Lei de Migração.14 O diploma legal foi introduzido à legislação pátria em substituição ao antigo Estatuto do Estrangeiro, que trazia em seu bojo princípios da segurança e interesse nacional em detrimento de direitos individuais e dos Direitos Humanos. Portanto, utiliza-se do conceito de migração como “o fenômeno (...) nos remete à ideia de um fluxo de indivíduos ou de grupos de indivíduos que transpassem fronteiras territoriais internas ao Estado-Nação de origem ou ultrapassam limites territoriais estabelecidos com outros países. Fazemno via de regra por motivações de cunho econômico ou político.”15. Já a nova legislação regulamentadora trata o migrante como sujeito de direitos, devendo o estado brasileiro reconhecê-lo como tal através de medidas afirmativas, tratando o migrante com igualdade e garantindo o direito à vida, liberdade, igualdade, segurança e à propriedade.16 Para Gomes, a nova legislação verifica-se como sendo um avanço na política migratória, em especial para a acolhida humanitária, que já era praticada pelo Brasil. Entretanto, com a inclusão expressa na Lei de Migração, fica demonstrada a nova mentalidade de legislação adotada pelo Brasil, que observa os princípios constitucionais de não discriminação e promoção de condições dignas a todos. É indissociável, portanto, que se analise o contexto das migrações venezuelanas sem uma percepção de que a vulnerabilidade dos migrantes 13. CARDOSO, Gleyce Anne. Tráfico de pessoas no Brasil: de acordo com a Lei 13.344/2016. Curitiba: Juruá. 2017. P. 57. 14. BRASIL. Lei 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Brasília, DF. Maio de 2017. 15. SCHUMACHER, Aluisio Almeida; SALUM, Gabriel Cunha. Reconhecimento Social e orientação de políticas públicas para migrantes e refugiados. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos. Volume 5, n. 1, p. 17-36. Jan/jun de 2017. 16. GOMES, Eduardo Biacchi; LEAHY, Érika, ANDRETTA, Juliane Tedesco. A eficácia da nova legislação migratória no contexto da crise da Venezuela. Revista eletrônica [do] Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, PR, v. 8, n. 78, p. 32-46, maio 2019. e refugiados é um fator que gera um maior risco de violação aos Direitos Humanos dos acolhidos. Guia segue no mesmo sentido: é importante que se reflita sobre a maior facilidade de ludibriar, enganar e impor a força sobre indivíduos que se encontram em circunstância de grande vulnerabilidade, como é o caso de uma parte significativa dos migrantes (voluntários ou forçados) e dos requerentes de proteção internacional. Tal não significa que todos s e encontrem em vulnerabilidade ou num mesmo grau da mesma.17 O tráfico de pessoas, dentre as violações de Direitos Humanos, é uma das modalidades a qual os imigrantes estão mais sujeitos, dada a sua vulnerabilidade, seja pelo idioma, pela falta de recursos financeiros e educacionais ou pelo não acolhimento adequado. 18 Segundo a UNODC, Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, como a maioria das vítimas de tráfico de pessoas são de países com más condições sociais e econômicas, é possível concluir que estes fatores influem nas chances de haver o tráfico de imigrantes. Por conta disso, o tráfico de pessoas, a imigração e o refúgio são fenômenos que devem ser analisados conjuntamente na presente pesquisa.19 O Protocolo de Palermo por sua vez, ao definir o tráfico de pessoas em seu art. 3º, considera o uso do recurso à situação de vulnerabilidade da vítima para a tipificação do crime: O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos. 17. GUIA, Maria João. Sete ligações perigosas entre imigração e tráfico de pessoas. In: SMANIO, Gianpaolo P.; CHIARELLO de S. Pinto, Felipe; ATCHABAHIAN, Ana Cláudia Ruy Cardia ; ASATO Junqueira, Michelle; ANDREUCCI, Ana Cláudia P. Torezan (Orgs.) . Mulheres invisíveis: panorama internacional e realidade brasileira do tráfico transnacional de mulheres. 1. ed. Curitiba: EDITORA CRV, 2018. v. 1. 282p . 18. ONU. Tráfico de pessoas aproveita vulnerabilidade de migrantes e refugiados, diz ONU. Disponível em https://nacoesunidas.org/trafico-de-pessoas-aproveita-vulnerabilidade-demigrantes-e-refugiados-diz-onu/. Acesso em 02 dez 2019. 19. RUIVO, Joana. The Fragilities of Human Traffiking Victims. In. GUIA, Maria João (org.). The Illegal Business of Human Traffiking. Springer. 2015. O UNODC, para orientar os países signatários do Protocolo de Palermo, emitiu uma Nota orientativa em que definiu vulnerabilidade como sendo “qualquer situação em que a pessoa envolvida não tenha alternativa real e aceitável a não ser submeter-se ao abuso em questão”20 (tradução livre do autor). Sendo assim, considerando que os migrantes e refugiados venezuelanos chegam ao Brasil sem condições financeiras, tornam-se grupo de fácil aliciamento por criminosos, visto que provavelmente não terão alternativas reais de recusar propostas de trabalho, por exemplo, ante o desconhecimento de direitos básicos. Nesse sentido, considerando que o Brasil é signatário do referido Protocolo, é medida essencial que as vulnerabilidades sejam fatores importantes a se considerar nos momentos de criação e implementação de políticas públicas de prevenção ao tráfico de pessoas, pois agravam demasiadamente o risco de aumento do tráfico de pessoas no Brasil, tanto em sua modalidade interna, em especial para fins de exploração laboral e sexual, quanto em sua modalidade externa. Além de considerar os fatores pessoais dos grupos vulneráveis, os países devem utilizar métodos inteligentes de uso e administração de dados, objetivando evitar que os migrantes, naturalmente mais propensos a se tornarem vítimas de tráfico de pessoas, sejam captados por redes de exploração. Tanto o tráfico de pessoas quanto as migrações no contexto globalizado atual possuem a característica transnacional inerente a ambos os fenômenos. A partir de uma análise crítica, pode-se observar que, não raras vezes, há similitude entre o perfil típico das vítimas traficadas e o perfil dos migrantes e refugiados. É inevitável, portanto, tratar de tráfico de pessoas e migrações como fenômenos que não guardam relação entre si, antes, é essencial que se reconheça que possuem fatores comuns, estando interligados. Se exercida uma análise conjunta dos fatores de vulnerabilidade e dos dados coletados dos migrantes e refugiados, pode-se mitigar o risco de vitimização, causando diminuição nos casos de violação de direitos humanos. 20. UNODC. Nota orientativa sobre el concepto de “abuso de una situación de vulnerabilidad” como medio para cometer el delito de trata de personas, expresado em el artículo 3 del Protocolo para prevenir, reprimir y sancionar la trata de personas, especialmente mujeres y niños, que complementa la Convención de las Naciones Unidas contra la Delincuencia Organizada Transnacional. Oficina de las Naciones Unidas contra la droga y el delito, 2012. Disponível em: <http://justica.sp.gov.br/wp-content/uploads/2017/07/UNODC_2012_ Guidance_Note_Abuse_of_a_Position_spanish1.pdf>. Acesso em: 05 dez 2019 3 POLÍTICA DE PREVENÇÃO AO TRÁFICO DE PESSOAS NO BRASIL – A NECESSIDADE DE UMA PROTEÇÃO ESPECÍFICA A MIGRANTES E REFUGIADOS Como já mencionado, em 2016 foi instituído o marco legal do Tráfico de pessoas no Brasil através da Lei n° 13.344/2016. Entretanto, referida lei não alterou apenas o Código Penal Brasileiro, mas também instituiu diretrizes de prevenção ao tráfico de pessoas. Em seu capítulo II, “da prevenção ao tráfico de pessoas”, a lei dispõe sobre os mecanismos estabelecidos: Art. 4º A prevenção ao tráfico de pessoas dar-se-á por meio: I - da implementação de medidas intersetoriais e integradas nas áreas de saúde, educação, trabalho, segurança pública, justiça, turismo, assistência social, desenvolvimento rural, esportes, comunicação, cultura e direitos humanos; II - de campanhas socioeducativas e de conscientização, considerando as diferentes realidades e linguagens; III - de incentivo à mobilização e à participação da sociedade civil; e IV - de incentivo a projetos de prevenção ao tráfico de pessoas. Deve-se notar que o inciso II autoriza que, considerando as diversas realidades e linguagens, se faça campanhas específicas voltadas a determinados grupos, observadas, inclusive, as vulnerabilidades. Ora, trazendo ao caso concreto, em vista o ingresso de refugiados e migrantes venezuelanos, tem-se que se faz necessário políticas específicas a esses grupos. Vale ressaltar que, no caso de o imigrante se encontrar em situação migratória irregular, para os fins da aplicação da Lei 13.344, tal fato é irrelevante, visto que o inciso IV do artigo 2º veda a discriminação por motivos de situação migratória. Outro instrumento que se destaca ao trazer em seu bojo mecanismos de efetivação de direitos dos migrantes e refugiados é o III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (III PNETP), através das metas estabelecidas para todos os entes que fazem parte do pacto de proteção instituído no plano21. 21. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Disponível em https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-depessoas/coletanea-de-instrumentos-de-enfrentamento-ao-trafico-de-pessoas. Acesso em 30 nov. 2019. O III PNETP, que estará em vigor entre 2018-2022, estabelece diversas medidas para a prevenção do tráfico de pessoas, como o “Fortalecimento e expansão dos Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante”, com atenção às zonas de fronteira e a “Análise do progresso na internalização da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas famílias”. Preocupou-se o Governo Federal, ao editar o decreto que instituiu o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, em estabelecer metas específicas para populações e áreas vulneráveis, não distinguindo entre brasileiros ou não brasileiros. No anexo do III PNETP, que elenca as metas estabelecidas em cada eixo, percebe-se a preocupação do estado brasileiro em se trabalhar os dados e a vulnerabilidade ao se combater e prevenir o tráfico de pessoas. O Eixo número 2 do plano foi dedicado especialmente à Gestão da informação, tendo em seu bojo a meta de desenvolver um sistema integrado de informações sobre o tráfico de pessoas com base nos sistemas já existentes que registram dados sobre o tema. Além disso, é proposto um trabalho conjunto entre o poder executivo através de seus Ministérios, o Judiciário e atores não-governamentais para a criação de um sistema de diagnóstico do cenário nacional sobre tráfico de pessoas (item 2.2). A vulnerabilidade, por sua vez, foi tratada em dois eixos do PNETP, quais sejam, o eixo 5 (assistência à vítima) e o eixo 6 (prevenção e conscientização pública). Ao tratar das metas de assistência à vítima, o plano estabeleceu a necessidade do estabelecimento de acordos para a inclusão produtiva e educacional de populações vulneráveis e, à longo prazo, a criação de um projeto de assistência comunitária em parceria com a sociedade civil em comunidades com alto índice de população vulnerável. Em especial, a vulnerabilidade como fator agravante de risco foi tratada no eixo 6 do PNETP vigente, através da meta de desenvolver parâmetros de escuta qualificada de grupos vulneráveis ao tráfico de pessoas, medida especialmente específica que, cumulada com políticas públicas de acolhimento, faria com que migrantes e refugiados tomassem conhecimentos de direitos básicos concedidos pela legislação brasileira. De maneira a proteger o migrante, um dos planos de ação contínua elaborado pelo Governo Federal é a divulgação de isenção de taxa para tornar o migrante vítima de tráfico de pessoas regular no país. Tal medida mostra-se importante na medida que evita que o migrante acredite que estar em situação irregular vá leva-lo de volta ao país de origem. Em se tratando de medidas práticas adotadas pelo Estado, em especial através da operação acolhida, não foram informados nos relatórios oficiais medidas específicas de prevenção ao tráfico de pessoas voltadas aos migrantes e refugiados venezuelanos através da Operação Acolhida. No sistema de interiorização adotado pelo Governo Federal, a conscientização dos venezuelanos que chegam ao Brasil ocorre principalmente através da atuação de organismos internacionais, como a ACNUR22, que presta assistência tanto informando os venezuelanos que chegam ao Brasil quanto fornecendo cursos de capacitação a agentes nacionais sobre as possíveis violações e como identificá-las23. Portanto, no tocante às políticas migratórias adotadas pelo Brasil, nota-se que o país tem se mostrado acolhedor diante da crise migratória presente na América Latina nos últimos anos. CONSIDERAÇÕES FINAIS O tráfico de pessoas consiste em um crime de grave violação aos direitos humanos, envolvendo desde a violência física até a coação moral e total privação de liberdade e dignidade. Apesar da diversidade de finalidades e meios, fato é que comunidades vulneráveis estão mais propensas a terem vítimas de tráfico humano, sendo a vulnerabilidade fator agravante do risco. Atualmente, a comunidade Sul-americana está passando por uma crise migratória caracterizada pela saída em massa da população venezuelana para países fronteiriços. No Brasil, os imigrantes entram principalmente pelo Estado de Roraima, usando diversos meios de transporte e com características sociais semelhantes, existindo, inclusive, crianças desacompanhadas atravessando a fronteira em direção ao país. Cabe ao Estado Brasileiro, tanto em pedidos de refúgio quanto em pedidos de residência temporária ou permanente coletar as informações básicas dos solicitantes e, a partir disso, utilizar esses dados para formulação de políticas públicas, considerando a necessidade de informar através de campanhas de conscientização a população vulnerável, para que estes não se tornem vítimas de tráfico de pessoas. 22. ACNUR. Refugiados e migrantes venezuelanos acessam serviços de documentação e interiorização da Operação Acolhida em Manaus. Disponível em https://www.acnur. org/portugues/2019/11/07/refugiados-e-migrantes-venezuelanos-acessam-servicos-dedocumentacao-e-interiorizacao-da-operacao-acolhida-em-manaus/. Acesso em 15 nov 2019 23. ONU. Onu capacita oficiais do Exército para combater exploração sexual de venezuelanos em Roraima. Disponível em https://nacoesunidas.org/onu-capacita-oficiais-do-exercito-paracombater-exploracao-sexual-de-venezuelanos-em-roraima/. Acesso em 15 nov 2019 O Brasil, nesse cenário, possui legislação apta ao fomento de meios de prevenção específico para a população venezuelana migrante, naturalmente vulnerável ao chegar ao Brasil, em especial através do III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de pessoas, vigente até 2022, que estabelece diversas metas para que haja uma rede de enfrentamento multidisciplinar com a participação de diversas entidades sociais atuantes na questão migratória e de tráfico de pessoas. Cabe ao Poder Público, a partir da possibilidade legislativa, fomentar projetos e campanha que primeiramente retirem os migrantes e refugiados venezuelanos da linha de vulnerabilidade, através de políticas públicas inclusivas e que os conscientizem acerca de seus direitos, para que se evite o maior risco de ocorrência do crime de tráfico de pessoas. REFERÊNCIAS ACNUR. Refugiados e migrantes venezuelanos acessam serviços de documentação e interiorização da Operação Acolhida em Manaus. Disponível em https://www.acnur.org/portugues/2019/11/07/ refugiados-e-migrantes-venezuelanos-acessam-servicos-de-documentacaoe-interiorizacao-da-operacao-acolhida-em-manaus/. Acesso em 15 nov. 2019 ARONOWITZ, Alexis A. Human Trafficking: a reference. California. ABC-CLIO. 2017. BRASIL. Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Brasília, DF, março de 2004. BRASIL. Lei 13.344, de 6 de outubro de 2016. Dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas; altera a Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e revoga dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).. Brasília, DF. Outubro de 2016. BRASIL. Lei 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Brasília, DF. Maio de 2017. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tutela provisória na Ação Cível Originária 3.121 – Roraima. Autor: Estado de Roraime. Ré: União. Brasília, 06 de agosto de 2018. CARDOSO, Gleyce Anne. Tráfico de pessoas no Brasil: de acordo com a Lei 13.344/2016. Curitiba: Juruá. 2017. FGV DAPP. Desafio Migratório em Roraima – Repensando a política e gestão de migração no Brasil. 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International Monetary Fund. 2019. World Economic Outlook: Global Manufacturing Downturn, Rising Trade Barriers. Washington, DC, October, pp. 175 e 178. milhares de pessoas, marcadas pela fome, violência e opressão, deixaram o seu país de origem em busca de melhores condições de vida. O Brasil se tornou um dos principais destinos desses imigrantes e refugiados. O chamado êxodo venezuelano fez com que a fronteira entre os dois Estados sofresse profunda mudança na dinâmica local. Pacaraima, cidade irmã - no extremo norte do estado de Roraima - com a cidade venezuelana de Santa Elena de Uairén, se tornou a principal porta de entrada dos imigrantes e refugiados venezuelanos em território nacional. O fluxo intenso e constante de pessoas conclama as autoridades brasileiras e a sociedade civil organizada a refletirem sobre a confecção, implementação e manutenção de ferramentas institucionalizadas de acolhimento, integração e proteção contra as vulnerabilidades atreladas aos fenômenos migratórios intensos, como o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, trabalho análogo à escravidão e adoção ilegal de crianças e adolescentes. É preciso articular os propósitos de prevenção e repressão policial aos crimes transfronteiriços, bem como tutelar e consolidar as políticas públicas de assistência social voltadas ao acolhimento digno, integração social adequada às maiores vítimas desta Crise Humanitária: às Pessoas. Trata-se de estudo empírico, descritivo, de natureza documental, com base na leitura dos Relatórios sobre violação de Direitos Humanos contra imigrantes venezuelanos (CEDH) e Missão Roraima, elaborado pela Defensoria Pública da União (DPU), que visa verificar a condição atual dos imigrantes e refugiados venezuelanos e apontar a postura do Estado Brasileiro frente às novas necessidades atinentes à realização de políticas públicas para acolhimento, integração desses cidadãos e medidas de combate e prevenção ao tráfico de pessoas. 1 A CRISE HUMANITÁRIA NA VENEZUELA E SEUS DESDOBRAMENTOS Em “Noite em Caracas”2 , é retratada a saga de uma jovem mulher, Adelaida Falcón, que tem a vida desestabilizada pela morte da mãe em uma realidade de colapso e desintegração que tomou conta da Venezuela. Adelaida diante das adversidades e agruras cotidianas, dá início a uma jornada desafiadora de busca pela própria sobrevivência fora de sua terra natal. Em um país cuja falência institucional é flagrante, com a violência, anarquia e fome, o verbo “perder” se tornou uma marca indelével na história dos cidadãos venezuelanos. 2. BORGO, Karina Sainz. Noite em Caracas. Ed. 1. Rio de Janeiro : Intrínseca, 2019. Em sua obra, Borgo, não apenas aborda a situação dramática de um país e o período da sua história recente, mas sim de todos aqueles que foram e são compelidos a deixar a sua terra, história e vínculos identitários; que são e foram tirados de seu lugar no mundo, que perderam o direito de existir no lugar onde nasceram. A história de Adelaida é a realidade de tantas pessoas que deixaram um pedaço de si para trás e que, em um ato corajoso e desesperado por estabilidade e sobrevivência, buscam a chance de começar uma nova vida. A situação venezuelana, traz consigo relevantes desdobramentos geopolíticos de nível regional e global. Dentre eles, o sintoma mais evidente, a crise humanitária responsável pelo deslocamento generalizado de pessoas para a cidade de Pacaraima, extremo norte do estado de Roraima, e outros países vizinhos, como Colômbia, Panamá e Peru. Segundo dados oficiais do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), entre janeiro e julho de 2017, Roraima recebeu um total de 5787 pedidos de asilo3, sendo que, nos três meses seguintes, mais de 30 000 pessoas atravessaram a fronteira entre Santa Elena de Uairén e Pacaraima. Em outubro do mesmo ano, totalizaram-se mais de 14 mil pedidos de asilo, segundo dados da Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH). Enquanto a instabilidade se agrava, o fluxo e quantidade de pessoas provenientes do país vizinho estão cada vez maiores. A crise humanitária que afeta a Venezuela é um desafio para o Brasil, na medida em que lhe é imposto o imperativo de articular e fortalecer os propósitos de acolhida e integração dos cidadãos venezuelanos que chegam em território nacional em situação de vulnerabilidade. Atravessar uma fronteira possui implicações muito profundas, especialmente em situações marcadas pela fragilidade em que se encontram as pessoas afetadas pelas crises humanitárias de caráter agudo. A República Federativa do Brasil, por meio da Nova Lei de Migração (Lei. 13.445), sancionada em 2017, cujo propósito é delinear a política migratória brasileira, passou a compreender a imigração não mais como uma ameaça à segurança nacional, mas sim como Direito inerente à condição humana. Por esse motivo e, em consonância com o Estado Democrático de Direito, se faz necessário verificar como as instituições da Administração Pública brasileira estão abordando tal problemática com o objetivo de buscar mecanismos de aperfeiçoamento das políticas públicas atinentes ao recebimento e integração de imigrantes e refugiados, compatíveis com os tratados de Direitos Humanos dos quais o Brasil é contratante, bem como, 3. EL futuro del programa de reasentamiento brasileño. - Revista Migraciones Forzadas, Latinoamérica y el Caribe , United Kingdom, ano 2017, n. 56, p. 1-84, outubro 2017. de articulação com segmentos da sociedade civil organizada engajados em dirimir e erradicar os efeitos perversos da crise. A marginalização dos imigrantes está diretamente atrelada às violações de Direitos Humanos. Por este motivo, torna-se imperativa a importância do estabelecimento de mecanismos de comunicação dinâmicos entre órgãos e instituições responsáveis pela repressão ao crime, bem os como aquelas cujas atribuições estão atreladas ao recebimento e integração social dos imigrantes e refugiados. O Tráfico de Pessoas, crime previsto na legislação brasileira, através da Lei 13.344 de 20164, em consonância com o Protocolo de Palermo5, pode ser um dos graves desdobramentos dos grandes fluxos migratórios cuja origem consiste nas crises de caráter humanitário combinadas com a incapacidade das autoridades e instituições daqueles Estados que recebem pessoas que encontram-se em situação de vulnerabilidade, de oferecer a devida assistência. Como aponta o Relatório Missão Roraima, confeccionado pela DPU, há a verificação de um aumento no fluxo de prostituição em Boa Vista, cuja maioria das mulheres, são venezuelanas. Não obstante, o Relatório sobre Violações de Direitos Humanos contra Imigrantes Venezuelanos, elaborado pelo CEDH, é corroborada a denúncia sobre a prática de tráfico de pessoas na capital de Roraima, segundo fontes da Polícia Federal. Diante de tal problemática, nos é colocada urgência de mapear, estudar e verificar os desdobramentos do fluxo intenso de imigrantes venezuelanos, identificar os grupos com maior potencial de risco, a estrutura de assistência e desenvolvimento social por parte do Poder Público e sua capacidade de resposta frente aos desafios impostos pela Crise Humanitária, pois, como escrito por Karina Borgo, “todas as histórias de mar são políticas e nós pedaço de algo em busca de uma terra”6. 4. 5. 6. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA SECRETARIA-GERAL SUBCHEFIA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS. Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13344.htm. Acesso em: 9 set. 2019. PROTOCOLO de Palermo: Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças. [S. l.], 2013. Disponível em: http:// sinus.org.br/2014/wp-content/uploads/2013/11/OIT-Protocolo-de-Palermo.pdf. Acesso em: 29 set. 2019. BORGO, Karina Sainz. Noite em Caracas. Ed. 1. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019,p 24. 2 A OPERAÇÃO ACOLHIDA, POLÍTICA DE INTERIORIZAÇÃO E SEU CARÁTER PROVISÓRIO Em fevereiro de 2018 entrou em vigor a Medida Provisória nº 820 que dispõe sobre medidas de assistência emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária. Logo após, foram criados dois decretos com a temática imigração: o Decreto 9.285/2018 reconhece a situação de vulnerabilidade causado pela crise humanitária na Venezuela e o Decreto 9.970/2019 pelo qual cria o comitê federal de assistência emergencial para acolhimento de pessoas desassistidas, tendo como presidente a casa civil da Presidência da República que coordena os trabalhos de outros 11 Ministérios. 2.1 PONTOS POSITIVOS DA OPERAÇÃO ACOLHIDA As três forças armadas brasileiras (Marinha, Exército e Força Aérea) foram acionadas para integrar a Força Tarefa composta por agências nacionais, internacionais e organizações não governamentais que atuam no estado de Roraima. O grau de vulnerabilidade dos imigrantes que chegam ao Brasil, exige ações imediatas da Força Tarefa que ao longo de todo o processo, realiza trabalhos de triagem, identificação documental, políticas de vacinação, construção, recuperação e ampliação de abrigos destinados aos venezuelanos. Segundo informações do Exército Brasileiro, aproximadamente 7.6007 imigrantes foram interiorizados para diversos locais do Brasil. Esse importante pilar consiste em identificar oportunidades em todo o território nacional seja de vagas de emprego, reuniões familiares ou sociais e oferecer a logística necessária para que essas pessoas possam reconstruir suas histórias. Cerca de 15 mil venezuelanos entram mensalmente pelo Estado de Roraima. É importante salientar que a cooperação de todos os estados brasileiros, aliados a sociedade civil organizada (setores públicos + privado), proporcionará rapidez e eficácia no processo de interiorização dos imigrantes. 7. OS REFLEXOS da atual situação Venezuelana para os Estados de Roraima e Amazonas, nas expressões econômica e psicossocial. Orientador: Guilherme Naves Pinheiro. 2018. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Ciências Militares) - Escola de Comando e EstadoMaior do Exército, Rio de Janeiro, 2018. p. 82. Disponível em: bdex.eb.mil.br. Acesso em: 29 set. 2019. Segundo Yssyssay Rodrigue, coordenadora de Projetos da OIM (Organização Internacional de Migração), os relatos das empresas que contrataram os imigrantes são positivos. Grande parte dos venezuelanos que chegam no Brasil possuem competências e formação qualificadas, fazendo com que o mercado de trabalho os absorva rapidamente. No dia 02 de outubro de 2019 em cerimônia realizada em Brasília, no Palácio do Planalto, inaugurou-se a nova fase da Operação Acolhida pela qual segue na campanha de interiorização humana. A reunião contou com a presença de representantes da Casa Civil e Fundação Banco do Brasil (FBB) que assinaram um Acordo de Cooperação Técnica (ACT) e um Protocolo de Intenções entre a União e a Confederação Nacional dos Municípios (CMN), O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), a Organização Internacional para as Migrações (OIM) e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). O acordo tem por finalidade maximizar a ajuda humanitária aos imigrantes venezuelanos e a criação de um fundo privado em parceria com a FBB para administrar as doações advindas em razão da Operação Acolhida. “A Fundação Banco do Brasil disponibilizará soluções para o recebimento de doações, por meio de contas exclusivas, e realizará a gestão dos recursos que estão integralmente investidos em ações de ordenamento, abrigo e interiorização, alinhadas pelas decisões emanadas pelo Comitê Federal, coordenado pela Casa Civil”8, afirmou o Diretor de Governo do Banco do Brasil, Ênio Ferreira. Uma das principais formas de inserção ocorre pela reunião familiar: o imigrante é levado para locais em que haja parentes que já estão estabelecidos no território brasileiro, facilitando a adaptação e reestabelecendo os laços afetivos que foram interrompidos. Outra forma bem-sucedida de inserção ocorre via vagas de trabalho: as empresas parceiras do projeto entram em contato as ONG’s que traçam um perfil de competências e encaminham os imigrantes que atendam aos requisitos profissionais demandados. Os estados de Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte merecem destaque na política de interiorização. O apoio ocorre na forma de recepção em seus abrigos e no processo seletivo de vagas de trabalho. 8. Disponível em: https://www.defesa.gov.br/noticias/61414-governo-federal-lanca-nova-faseda-operacao-acolhida-para-acelerar-interiorizacao-de-venezuelanos. Acesso em: 1 nov. 2019. 2.2 PONTOS NEGATIVOS DA OPERAÇÃO ACOLHIDA Segundo o pesquisador sênior da Human Rights Watch, Cesar Muñoz: “A emergência humanitária está levando as crianças e adolescentes a partir em 7h sozinhos da Venezuela, muitos procurando comida ou serviços de saúde”9. Essa situação coloca os menores em flagrante situação de vulnerabilidade, uma vez que grande parte das crianças e adolescentes desacompanhados acabam vivendo nas ruas, sendo vítimas da atuação e de facções criminosas locais. A Defensoria Pública (DPU) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) informaram que os menores desacompanhados de responsáveis legais não possuem acesso aos serviços de saúde e educação pública. A falta de políticas governamentais de acolhimento dos menores agrava ainda mais a situação de vulnerabilidade. Além disso, os abrigos que acolhiam as crianças e adolescentes desacompanhados, administrados pelos Conselhos Tutelares de Roraima, atingiram a superlotação. Nesse contexto, os menores foram realocados para os abrigos da ONU que recebiam famílias venezuelanas com crianças. Em 8 de outubro de 2019 o corpo de Jesús Alisandro Sarmerón Pérez, 16 anos, foi encontrado com sinais de tortura e estrangulamento nas proximidades do abrigo da ONU em que vivia. A ONU se posicionou em relação ao acontecido e acredita que Sermerón foi executado por integrantes de uma facção criminosa local. A Operação Acolhida apresenta um déficit em relação ao acolhimento de crianças e adolescentes venezuelanos desacompanhados. “Ainda que as autoridades brasileiras estejam fazendo um grande esforço para acolher as centenas de venezuelanos que chegam ao Brasil a cada dia, elas não estão dando a essas crianças e adolescentes a proteção urgente que eles precisam”, concluiu Cesar Muñoz. 9. BRASIL: Crianças e adolescentes venezuelanos fogem sozinhos para o Brasil: As autoridades brasileiras dão proteção insuficiente. Nova York: Human Rights Watch, 6 dez. 2019. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/news/2019/12/05/336329. Acesso em: 10 dez. 2019. 3 FENÔMENO MIGRATÓRIO NA FRONTEIRA E SEUS DESDOBRAMENTOS. RADIOGRAFIA DO CONSELHO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS, PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO E DA SOCIEDADE CIVIL ORGANIZADA A Missão Pacaraima surgiu, com centenas de pessoas deixando a República Bolivariana da Venezuela em direção ao estado de Roraima em busca por melhores condições de vida, frente a um cenário de efeitos de uma crise de insegurança alimentar, altos níveis de criminalidade, repressão política e colapso econômico10. Nesse sentido, as autoridades brasileiras foram obrigadas a burilar uma força tarefa logística de caráter humanitário composta por ação interministerial do Governo Federal, o Exército Brasileiro, a Polícia Federal, com parcerias da Organização Internacional para as Migrações (OIM) e a Agência da ONU para os refugiados (ACNUR), com o objetivo principal de ordenar a fronteira, regularizar o controle migratório, organizar os pedidos de refúgio e de autorização de residência. De acordo com a portaria nº 9, de 2017, a operação ficou conhecida como Operação Acolhida. Entendemos que, a situação instalada na cidade de Pacaraima exigia medidas para além daquelas de caráter provisório. Dessa forma, as políticas públicas de caráter permanente, institucionalizadas, que visam tutelar a dignidade e o bem-estar do imigrante refugiado, se fazem extremamente necessárias para que exista a possibilidade de as pessoas reconstruírem as suas vidas com segurança e estabilidade. O que vem se verificando, na maioria dos casos, é a interiorização de venezuelanos através da via não institucionalizada, ou seja, muitos cidadãos estão se deslocando de Roraima para outras unidades da Federação brasileira em busca de melhor assistência, dada a precariedade dos serviços básicos na fronteira, a provisoriedade abre brecha para a vulnerabilidade e, merece muita atenção o crime de tráfico de pessoas para fins de exploração laboral e sexual como desdobramento perverso. Como elemento norteador deste artigo, será objeto de análise e interpretação o Relatório sobre Violação de Direitos Humanos contra Imigrantes Venezuelanos, confeccionado pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos, a fim de, a partir de uma análise crítica, lúcida e construtiva, constatar a verdadeira realidade dos serviços públicos brasileiros, bem como suas características e gargalos, com 10. WORLD REPORT. Nova York: Human Rights Watch, 2019. p. 646-647. Disponível em: https://www.hrw.org/sites/default/files/world_report_download/hrw_world_report_2019. pdf. Acesso em: 18 dez. 2019. o objetivo de propor o aperfeiçoamento e amadurecimento dos programas de execução de políticas sociais, para se compreender o funcionamento das instituições e órgãos responsáveis por oferecer serviços públicos fundamentais à população. O Relatório Das Violações de Direitos Contra Imigrantes Venezuelanos no Brasil, divulgado em janeiro de 2018, foi resultado de uma missão realizada pelo Comitê Nacional de Direitos Humanos, entre os dias 18 a 26 de janeiro, integrada por membros da sociedade civil organizada, Conectas e Missão Paz, e instituições judiciárias, o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública da União e a Organização Internacional para Migrações, vinculada às Nações Unidas, dada a grave situação verificada nos estados de Roraima, Amazonas e Pará em virtude do intenso fluxo de imigrantes e refugiados de origem venezuelana. Em janeiro, a então governadora de Roraima, Suely Campos (PP), decretou estado de emergência e solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF), o fechamento da fronteira entre Brasil e Venezuela, sob alegação dos fortes efeitos associados à segurança e saúde públicas, decorrentes da crise migratória. Conforme Relatório da Missão Roraima elaborado pela Defensoria Pública da União11, a cidade fronteiriça dobrou de tamanho e uma verdadeira situação de caos se instalou na região. Pessoas em condição de rua se tornaram a paisagem natural do município e situações envolvendo xenofobia se tornaram cada vez mais recorrentes. A insuficiência sobre o fornecimento de serviços básicos como saúde, educação e segurança pública, agravaram a situação de penúria pela qual a cidade vivencia diariamente. Em busca de melhores condições de vida e, com o caráter provisório da Operação Acolhida, muitos venezuelanos começaram a se deslocar para cidades no interior do país, cada vez mais distantes da fronteira. A partir desse acontecimento, foi possível identificar o surgimento de cada vez mais imigrantes nas cidades de Boa Vista (RR), Manaus (AM), Santarém (PA) e Belém (PA). Faz-se atenção especial a indígenas pertencentes à população indígena Warao que também se deslocaram da Venezuela para o Brasil em virtude da situação de inseguridade social e ausência de serviços básicos no país vizinho. A radiografia de verificação sobre a efetividade dos serviços de amparo aos venezuelanos começou em Belém (PA) e merece atenção bastante especial devido ao fato de ter-se verificado a existência de fluxo índios Warao vindos do país vizinho para o Brasil. 11. RELATÓRIO DA MISSÃO RORAIMA. Brasília: Assessoria de Comunicação Social ASCOM, 2018. Disponível em: https://www.dpu.def.br/images/stories/pdf_noticias/2018/ relatorio_missao_roraima.pdf. Acesso em: 20 nov. 2019. Em reunião com integrantes da organização sem fins lucrativos Cáritas e Membros do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Pará, constatouse que um grande grupo de índios Warao se encontravam ou se encontram na capital e que não estavam ou estão sendo devidamente atendidos tanto pelo Estado quanto pelo Município. Faltava estrutura adequada com abrigos sem condição de acolhimento e sem alimento suficiente. Não estavam registrados junto ao Sistema Único de Saúde, portanto não tinham acesso às Unidades Básicas de Saúde e Hospitais Regionais, sendo que foram apontados problemas de saúde com a proliferação de escabiose e de ameaça às suas integridades físicas, já que houve relatos de violência por parte da população de rua brasileira contra os indígenas, que agrediu e matou dois integrantes Warao em um abrigo municipal. Outra informação preocupante foi o relato de que brasileiros estariam se oferecendo para levar as crianças Warao para suas casas com o objetivo de cuidá-las. O conselho tutelar de Belém alegou que as crianças ficam nas ruas pedindo dinheiro e que a sua estrutura é insuficiente para lidar com essa situação. Foi verificado que as instituições judiciárias como DPU, MPF e DPERS – Núcleo de Direitos Humanos, estão articuladas entre si, trocando relevantes informações, entretanto, o Ministério Público do Estado do Pará não se pronunciou. O diagnóstico feito pela DPU, e que posteriormente foi confirmado em reuniões com a Polícia Federal e conversas com os indígenas, é que a quase totalidade das solicitações de refúgio é feita em Roraima, primeiro estado de chegada dos imigrantes. A DPU também confirmou a impressão da sociedade civil de que quase nenhum indígena possui Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), e que haveria uma compreensão informal dos agentes da prefeitura - Fundação Papa João XXIII (FUNPAPA/PA) -, e do Estado, pela Secretaria de Estado de Assistência Social, Trabalho, Emprego e Renda (SEASTER), de que só haveria sentido a emissão da CTPS através de um programa voltado para a capacitação e adequação daquela população ao mercado de trabalho. A DPU também externou grande preocupação ao fato de que a Prefeitura Municipal de Belém até o momento não havia demonstrado mobilização para obtenção de recursos junto ao Ministério do Desenvolvimento Social com o objetivo de auxiliar a sua política de assistência social frente às novas necessidades que se impuseram diante da realidade. A atuação do Ministério Público Federal, através de Ação Civil Pública, foi um chamamento à Prefeitura Municipal de Belém a adotar medidas mínimas e necessárias para não permitir que os índios Warao vindos da Venezuela continuassem sem abrigo nas imediações do Mercado Ver-o-Peso. No que tange à Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o MPF e a DPU receberam um ofício da fundação explicando que sua competência de atuação estava relacionada com grupos de indígenas brasileiros aldeados. Outra questão delicada levantada foi a ação do Conselho Tutelar em separar as crianças das mães que se encontravam em situação de mendicância nos semáforos da cidade, que revelou o sintoma importante de não perceber a complexidade social da questão posta, violando, inclusive, os Princípios do Melhor Interesse e Proteção Integral da Criança consagrados no Estatuto da Criança e Adolescente (ECA, Lei. 8069/1990). A Delegacia de Imigração da Polícia Federal da capital paraense informou à Missão que não havia informação clara e específica sobre os pedidos de refúgio da população indígena Warao uma vez que no caminho de Pacaraima para Belém, seus integrantes pedem status de refúgio nos postos existentes. A Polícia Federal avaliou que há “camadas”, representadas por cidades, no que toca o número de pedidos de refúgio pelos Warao. Boa Vista (RR) seria a primeira camada com maior absorção de número de pedidos, seguido de Manaus como segunda, Santarém como terceira e Belém como quarta. Isso explicaria o baixo registros e as informações imprecisas sobre pedidos de refúgio feitos em Belém. Pelo fato de os índios Warao possuem baixo nível de escolaridade e muitos serem analfabetos, o que dificulta o preenchimento do formulário de pedido de refúgio que é extenso e exige o fornecimento de muitas informações, fazendo com que o processo se torne complexo e moroso. Não foi registrado pedido de venezuelanos não indígenas. No tocante à questão de Belém, verificou-se uma dificuldade de mobilização por parte das autoridades estaduais e municipais, e não obstante, a carência de infraestrutura básica, em especial na seara de assistência social para o atendimento à população de indígenas, que merece um protocolo de abordagem específico, capaz de atender adequadamente às particularidades socioculturais dessa população por meio de ações de caráter transversal, isto é, o envolvimento das instituições judiciárias como o Ministério Público, as secretárias municipais e estaduais de assistência social, a FUNAI, a sociedade civil organizada, bem como as Defensorias Públicas, em consonância com o artigo 134 caput da Constituição Federal de 1988 que estabelece a defensoria como “instituição essencial em termos de função judicial do Estado, encarregada da orientação jurídica e da defesa, em todos os níveis, dos necessitados”12 12. RELATÓRIO DA MISSÃO RORAIMA. Brasília: Assessoria de Comunicação Social ASCOM, 2018. Disponível em: https://www.dpu.def.br/images/stories/pdf_noticias/2018/ relatorio_missao_roraima.pdf. Acesso em: 20 nov. 2019, pp. 27. Não se pode ignorar o fato de que o Poder Público, se viu diante de uma situação emergente e complexa, contudo, a gravidade da conjuntura política, econômica e até mesmo orçamentária, exige um esforço de soma de forças por parte dos órgãos, fundações e instituições do poder público para oferecer a dignidade necessária e oferta mínima de serviços básicos, fundamentais para a garantia da existência humana, em especial, pessoas em extrema situação de fragilidade e vulnerabilidade. No dia vinte de janeiro a Missão chegou em Santarém, também no estado do Pará, para verificar o funcionamento de toda a estrutura pública de assistência e segurança social relacionada ao atendimento aos Warao provenientes da Venezuela. Foi realizada com membros do MPF, professores da Universidade Federal do Oeste do Pará, a OAB/PA e a comissão Justiça e Paz, ligada à Igreja Católica. O que pode se saber, é o relato da sociedade civil sobre a dificuldade de atuação da prefeitura do município bem como de articulação dos seus órgãos com organizações capazes e voluntariosas em ajudar na implementação e processos de atendimento e acolhimento dos migrantes. Pôde-se verificar também, desde o início, que a concentração consideravelmente maior de indígenas em relação a Belém. Os índios foram alocados e abrigo municipal construído de maneira improvisada com dificuldades de armazenar alimentos, insumos básicos além de comportar pessoas para além da capacidade do local. Foi relatado também que foi demonstrada insensibilidade por parte dos servidores públicos municipais no tocante à particularidade indígena do grupo de venezuelanos, deixando de levar em consideração questões essenciais à cultura da população Warao. A partir, destes relatos preliminares, nos é adequado salientar a importância de os governos articularem seus ministérios, secretarias e outros órgãos de maneira transversal, viabilizando maior comunicação e efetividade nos serviços essenciais, em especial aqueles responsáveis por garantir seguridade e assistência social. Por parte do Governo Federal, deve haver a sensibilidade de ajudar os entes federativos em suprir uma necessidade fática de caráter orçamentário e logístico, de liberação de recursos para que medidas afirmativas sejam adotadas com caráter célere e imediato. A Missão verificou através de relatos de representantes locais do Ministério Público Federal, a Prefeitura Municipal de Santarém vem enfrentando com dificuldades a questão dos migrantes de etnia Warao já que o governo local estava agindo isoladamente sem qualquer tipo de apoio por parte do governo estadual e do governo federal. Importante elencar que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) se dispôs a atender os indígenas, apesar de haver um único funcionário sem as mínimas condições materiais para atendê-los. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma (INCRA) disse estar disposto a trabalhar para a disposição de áreas para o estabelecimento de políticas voltadas ao estímulo de atividades econômicas e culturais compatíveis à identidade dos Warao. Igual ao problema constatado em Belém sobre a emissão da Carteira de Trabalho e Previdência Social devido a um problema geral de emissão das carteiras bem como o Conselho Tutelar que demonstrou inabilidade no trato com os indígenas focando-se em adotar uma postura descuidada e repressiva. No que tange à Polícia Federal, as informações são bem semelhantes em relação à superintendência da capital: número de solicitações de refúgio extremamente inferior em relação aos migrantes Warao que se encontram nas ruas. Isso nos faz verificar uma subnotificação importante de ser percebida bem como dificuldade de comunicação interna dentro da própria polícia, já que se acredita que os pedidos são feitos em sua maioria nos postos de Roraima ou durante o caminho até Santarém. No dia vinte e dois de janeiro, a Missão chegou a Manaus, realizando reunião com membros da sociedade civil, a saber: Caritas e Pastoral dos Imigrantes, e membros do Ministério Público Federal e Conselho Federal de Psicologia. Verificou-se desde logo relatos de imigrantes venezuelanos que estavam com muita dificuldade de acessar os serviços básicos de educação e saúde. No primeiro, pais contaram que as escolas municipais de ensino infantil e fundamental estavam solicitando documentação traduzida do espanhol para o português além de protocolo de refúgio para efetuar a matrícula das crianças venezuelanas. No quesito saúde, há uma questão muito delicada a ser levada em consideração que é a questão cultural dos imigrantes Warao. A maioria dos indígenas considera como tratamento o trabalho feito por pajés e não por médicos que fazem parte do programa municipal de saúde “consultório na rua”, o equivalente a médico da família em São Paulo. Por esse motivo, houve dificuldade em oferecer serviço médico aos integrantes da etnia Warao. O fenômeno, contudo, não pode nos pode fazer fechar os olhos para o conflito bastante sensível que é a revolta dos indígenas de Manaus para com o povo Warao, já que houve uma articulação por parte das instituições e órgãos do Estado para apoio e assistências aos indígenas venezuelanos, além disso, não houve nenhum movimento para se estabelecer uma rede de assistência aos venezuelanos não indígenas. As instituições do sistema de justiça desempenham um papel fundamental, que auxilia ao Poder Executivo adequar e aperfeiçoar as suas posturas que versam sobre a realização de políticas públicas sempre voltadas em especial, à parcela mais carente da população. O ideal é que esta postura de parceria seja sempre cada vez mais fortalecida. Isto pôde ser percebido com a atuação do MPF em conjunto com a Prefeitura e o Ministério do Desenvolvimento Social para dirimir o efeito da ausência de assistência aos migrantes não indígenas através da montagem de um espaço de acolhimento, e não obstante, as Defensorias Públicas que defendem os direitos do imigrante, que denunciam os deslizes do Poder Público no atendimento a essas pessoas, bem como, articular medidas de apoio aos imigrantes com o ACNUR, OIM e UNODOC. No que tange a infraestrutura relativa aos abrigos, verificou-se que as casas disponibilizadas para estes espaços de acolhimento não eram suficientes para acolher os 234 indígenas. Quem os organiza é a prefeitura que oferece materiais para higiene pessoal e alimentos. Os próprios indígenas limpam e cozinham e mantém a organização dos abrigos. Chama atenção ao fato de que não há nenhum programa do estado do Amazonas no que versa sobre medidas de inclusão social e geração de renda. Vale salientar que a Caritas e ACNUR, através de convenio entre si, é quem estão fornecendo insumos para a confecção de artesanatos. Pensar sobre a situação dos não-indígenas se faz extremamente necessária. Os venezuelanos não pertencentes a nenhuma população indígena foram negligenciados por parte do Poder Público, pois não receberam nenhum tipo de assistência efetiva, sofrendo, portanto, com o abandono do Poder Público. No que se refere à regularização migratória, cuja competência de gestão e gerenciamento é da Polícia Federal, foram verificados pontos sensíveis que merecem especial atenção. O agendamento para atendimento aos venezuelanos possuía um tempo de espera médio de três meses e, quinhentos e treze já foi o número de pessoas no aguardo para atendimento, devido ao fato de haver apenas um servidor que ficava responsável pelo atendimento de onze pessoas por dia. Ficou, portanto, evidente a necessidade de a Polícia Federal se mobilizar e se articular com outras instituições um procedimento para maior agilidade nos atendimentos, capaz de atender a grande demanda de seus serviços. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), assinou um protocolo de cooperação com a Polícia Federal para dar mais efetividade ao atendimento aos imigrantes. Com o aumento de pessoal, hoje, as três etapas de atendimento são feitas no mesmo dia, fazendo com que trinta e seis pessoas passassem ser atendidas por dia. Essa experiência verificada apenas na cidade de Manaus, nos permite fazer uma reflexão sobre o programa de acolhimento brasileiro para refugiados e os tratados e declarações internacionais que versam sobre este assunto: O Brasil, em 2004, com o motivo da celebração da Declaração de Cartagena de 1984, propôs um programa de reassentamento regional de refugiados13. A Declaração de Cartagena de 1984, conclamou todos os países da América Latina e o Caribe a pensar sobre mecanismos mais efetivos sobre o recebimento e proteção de refugiados. Tal declaração trouxe movimentos muito interessantes, como exemplo, o Plano de Ação do México que se desenvolveu como um programa solidário de acolhimento de refugiados da região, em especial, provenientes da Colômbia e o Triângulo Norte da América Central, região compreendida com os países da Guatemala, Belize, El Salvador e Honduras. O Brasil foi o país que mais recebeu e reassentou refugiados da região, inclusive, vale salientar, que de 2002 até 2018, o governo brasileiro esteve bastante sensível a esta questão. A chamada estrutura tripartida do programa é a maior vantagem contemplando representantes do governo, da sociedade civil e do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). O Comitê Nacional para Refugiados (CONARE)14 desempenha, de característica interministerial, um papel fundamental de suporte legal e burocrático em parceria com ACNUR no processo de acolhimento aos refugiados. O programa brasileiro de reassentamento foi reconhecido e elogiado internacionalmente. Entretanto, nos fica a seguinte questão: Por que o Brasil não consegue receber e reassentar uma maior quantidade de refugiados e vem apresentando dificuldades em lidar com a crise venezuelana? Para compreendermos melhor a situação brasileira nos é importante pensar na forma em como foi concebida a maneira de financiamento do programa de reassentamento que compreende apenas o ACNUR como agência responsável por subsidiar essa importante iniciativa. O ACNUR tem as atribuições de implementar o programa de acolhimento e, ao mesmo tempo, financiá-lo. É compreensível que isso ocorra dado que a agência tem a capacidade de arrecadar fundos da comunidade internacional, o que a maioria dos países não consegue fazer. Por outro lado, os países para os quais o ACNUR destina os fundos, poderiam arrecadar coletivamente recursos da comunidade internacional por conta própria o que traria maior capilaridade, ampliação e efetividade ao atendimento de refugiados. Se faz necessário que o Brasil reafirme os seus esforços para fortalecer os 13. EL futuro del programa de reasentamiento brasileño. - Revista Migraciones Forzadas, Latinoamérica y el Caribe , United Kingdom, ano 2017, n. 56, p. 1-84, outubro 2017. 14. MORAES, Ana Luisa Zago de, Crimigração: a relação entre política migratória e política criminal no Brasil, Porto Alegre, 2016. pp. 313. mecanismos de recebimento e acolhimento de refugiados, ratificando a sua consideração sobre a imigração como Direito Humano e à importância para o acolhimento digno. Os conflitos geopolíticos que acarretam no deslocamento generalizado de pessoas, em especial no Oriente Médio, fazem com que o ACNUR possua recursos bastante limitados e, por isso, o trabalho estreito com a sociedade civil organizada, acompanhado da articulação com órgãos, conselhos e instituições governamentais, em sintonia com os tratados e orientações internacionais, se faz fundamental para que o programa não apenas exista, mas sim, seja perene e efetivo. A missão do CNDH deu prosseguimento às suas atividades no dia vinte e quatro de janeiro em Boa Vista (RR). A superintendência da Polícia Federal de Roraima informou que foi registrado um aumento significativo para demanda de atendimento à imigrantes procedentes da Venezuela e que o tempo médio para tanto é de vinte dias apesar de todo o esforço feito. Foram verificadas todas as etapas de atendimento e, mais uma vez, foi constatado o apoio extremamente importante do ACNUR, que auxilia e subsidia os processos de organização dos atendimentos. Vale salientar o valoroso apoio da sociedade civil organizada em pareceria com o Alto Comissariado, a Universidade Federal de Roraima (UFRR) através do Centro de Apoio ao Migrante, polo idealizado por essas duas instituições a fim de, conjuntamente com a Polícia Federal, estabelecer mecanismos de maior celeridade no atendimento aos imigrantes podendo atender maior quantidade diária de pessoas. No caso de Roraima, com a nova estrutura, cerca de trezentas pessoas em média passaram a ser atendidas. Na superintendência da Polícia Federal em Boa Vista (RR), verificouse uma grande quantidade de agendamentos, mil e cinquenta pessoas estavam agendadas para terem acesso ao atendimento de entrada de protocolo de refúgio e outras, pedido de residência temporária. Segundo dados oficiais, da própria instituição, os pedidos de residência temporária ocorrem em maior número em relação aos pedidos de refúgio. Como confirmado pelo relatório, não há casos registrados de crianças venezuelanas chegando em território nacional desacompanhadas, elas vêm acompanhadas de suas famílias ou pessoas com grau de parentesco próximo, sejam irmãos mais velhos, tios, avós e pais. Mesmo assim, se faz extremamente necessária a atenção especial por parte das polícias, a vara da infância e juventude para se estabelecer protocolos de abordagem adequados aos infantes recém-entrados no Brasil, como o objetivo de verificar a veracidade do vínculo entre os acompanhantes e as crianças. Essa situação nos faz também pensar a necessidade sobre deixar de lado a ideia de políticas migratórias voltadas a um padrão que não reflete mais a realidade: o homem jovem e solteiro que imigra em busca de estabilidade financeira e com o objetivo de estabelecer a sua família em um novo país. Se faz necessário pensar a imigração e suas múltiplas faces, que são capazes de mostrar a complexidade social da situação envolvendo famílias e suas diversas possibilidades de constituição, atendendo sempre à importância da diversidade como preceito fundamental para a elaboração adequada de políticas públicas e a consagração dos Direitos Humanos. Os crimes transfronteiriços sempre serão assuntos sensíveis principalmente quando se trata de um intenso e contínuo fluxo migratório como decorrência de uma grave crise humanitária. O conceito de crimigração15 é um ponto que não deve ser ignorado. Consiste em usar a imigração como um mecanismo para alcance de sucesso de determinada prática criminosa. O tráfico de pessoas é uma das faces odiosas decorrentes das vulnerabilidades de uma crise migratória, eivada de desassistência, sem atenção e tutela necessárias àquelas pessoas que se encontram em condição de fragilidade e vulnerabilidade. Segundo a Superintendência da Polícia Federal em Roraima, há indícios de tráfico de pessoas ocorrendo em Pacaraima e Boa Vista para fins de exploração sexual. Eles podem ser reforçados devido à localização geográfica do estado, que faz fronteira com a Venezuela, bem como o primeiro ponto de chegada dos imigrantes, onde o fluxo e os dramas da crise saltam aos olhos. Outrossim, as mulheres jovens podem ser compreendidas como a parcela mais vulnerável nesse grande fluxo entre Venezuela e Brasil. A questão sobre o Trabalho e suas relações é outro tema sensível, em especial no Estado de Roraima, já que por conta da xenofobia, venezuelanos trabalham na informalidade e que recebem valor em dinheiro baixo do teto do salário mínimo. O Ministério Público do Trabalho (MPT), em conjunto com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) esteve preocupado em desenvolver um projeto de inserção de venezuelanos no mercado de trabalho em Pacaraima (RR), Boa Vista (RR) e Manaus (AM), já que foram verificados indícios de trabalho análogo à escravidão na área rural dos estados de Roraima e Amazonas. Um problema que pôde ser verificado é a dificuldade da atuação do Ministério do Trabalho e Emprego, hoje, incorporado ao Ministério da Economia, em incluir e considerar os imigrantes venezuelanos que sequer conseguem emitir a Carteira de Trabalho e Previdência Social. Através, também, do Ministério Público do Trabalho, foi verificada a ausência de atuação das secretarias de estado quanto aos impactos causados pelo Êxodo Venezuelano, o que torna, mais uma vez, 15. MORAES, Ana Luisa Zago de, Crimigração: a relação entre política migratória e política criminal no Brasil, Porto Alegre, 2016. p 19. evidente a inércia e dificuldade da administração pública em compreender a magnitude da crise, bem como lidar com seus desdobramentos. Sobre a situação em Pacaraima, cidade limítrofe com o município venezuelano de Santa Elena de Uairén, foram iniciados os trabalhos no posto de fronteira da Polícia Federal, que é o primeiro contato dos venezuelanos com as autoridades brasileiras. Verificou-se que o posto atende aos trâmites migratórios delineados pela nova Lei de Migrações. O posto possui estrutura deficitárias e lá são verificados os motivos de entrada e os requisitos legais para a entrada de estrangeiros no país. Os casos mais complexos, como pedidos de refúgio e residência permanente, são tratados pela superintendência regional. Vale salientar, que o número de policiais federais que trabalham na fronteira não é suficiente para atender ao grande fluxo, bem como, muitos oficiais não falam espanhol. Os registros da Polícia Federal, mostraram que no fluxo migratório da cidade, 70% das pessoas eram estrangeiros, em sua grande maioria venezuelanos que entraram, mas não saíram do Brasil. Documentos da instituição evidenciam o aumento expressivo de pessoas nos primeiros meses de 2017, sendo que em um só dia mil e quatorze venezuelanos foram atendidos em um só dia. A Polícia Federal informou, ainda, que a maioria dos venezuelanos entrantes não solicitam refúgio, entram como turistas, havendo, portanto, permanência autorizada para noventa dias. Há uma hipótese subjetiva a ser levantada: o temor de haver impedida a sua entrada no Brasil. A análise mais cuidadosa sobre as constatações feitas pela missão no Conselho Nacional de Direitos Humanos sobre a violação de direitos humanos contra cidadãos venezuelanos que se encontram em território nacional devido à crise humanitária que assola e corrói o país vizinho, nos exige ponderações que nos permitam, através da análise concreta de dados documentados, pensar sob a ótica brasileira a melhor maneira de, referendada pelo nosso ordenamento jurídico, acolher os imigrantes provenientes da Venezuela de forma a integrá-los à sociedade brasileira e garanti-los dignidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS O que pôde ser estudado e documentado aqui, foi uma fragilidade brasileira no tocante às suas políticas de assistência, inserção e inclusão social, que sabemos, não apenas assola os venezuelanos vítimas de uma crise sem precedentes, como de cidadãos brasileiros que também sofrem com a pobreza, a exclusão social e que também estão vulneráveis a crimes gravíssimos como o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, de órgãos e tecidos e adoção ilegal de crianças no exterior. O Estado Social Democrático de Direito é uma recente e importante conquista do Brasil, país de raízes autoritárias e historicamente pensado em favor dos interesses exclusivos das elites. A Constituição Federal de 1988 é a concretização dessa conquista. O caminho, entretanto, é ainda muito longo e árduo para que, aquelas matérias dispostas no texto constitucional, tenham a devida eficácia. Ingo Wolfgang Sarlet definiu os direitos fundamentais como conjunto de prerrogativas, faculdades e instituições reconhecidos e positivados no direito constitucional de determinado Estado e atribuídos à pessoa humana16 nos possibilita construir a reflexão acerca da suas perspectivas subjetiva, que ressalta o indivíduo como titular de direito e objetiva que salienta a norma como aquela responsável pela valiosa função de garantir instituições fortes, atuantes e independentes. Essa dualidade de prospectiva nos permite ponderar, desde logo, a democracia como um sofisticado sistema de engrenagens, que exige senso de institucionalidade e responsabilidade por parte de todos. As instituições judiciárias como os Ministério Público e as Defensoria Pública possuem papel preponderante para a manutenção do Estado Democrático de Direito, bem como a das Garantias Fundamentais e Direitos Sociais Difusos. Ao longo da história a Assistência Social registrou grandes mudanças no Brasil. A sua alteração do ponto de vista passageiro e emergencial, enquanto ação filantrópica, para sua compreensão na condição de política pública comum para todos, consagrada como um direito do cidadão e um dever do Estado. Assim sendo, com a Constituição Federal de 1988 e a promulgação da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), a Assistência Social passa a ser um dos componentes fundamentais na luta pela concretização das práticas de igualdade e justiça estabelecidas no texto constitucional. No que tange ao êxodo venezuelano, situação excepcional, de grave crise humanitária na Venezuela, o papel das instituições judiciárias vem sendo condição sine qua non para a efetividade de garantias mínimas de reivindicação de direitos por parte dos imigrantes e refugiados venezuelanos. Portanto, por meio da análise extensiva dos relatórios sobre violação de Direitos Humanos contra imigrantes venezuelanos, feito pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e Missão Roraima pela DPU, é 16. SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Revista Atual da Livraria do Advogado Editora: Porto Alegre, 2012. pp. 211. possível verificar uma situação de sistemática desassistência em relação a esta população. Os serviços básicos de assistência, se existem, carecem de estrutura e efetividade adequadas e, quase sempre, possuem caráter de provisoriedade. Chama atenção a ausência de comunicação entre as prefeituras dos municípios visitados, bem como de articulação dos seus órgãos da administração direta e indireta entre si e com membros da sociedade civil organizada. A ausência de diálogo, de abordagem e apoio técnicos tornam potencializadas as vulnerabilidades vividas pelos venezuelanos e, como resultado, se fortalecem as violações de direitos humanos. As agruras vividas pelos refugiados e imigrantes, também são muito semelhantes com aquelas vividas pelos cidadãos brasileiros que convivem diariamente com serviços precários de saúde, educação, segurança pública e assistência social. Os gargalos brasileiros mostram-se flagrantes. As estruturas de governo funcionam em caráter de inércia frente às necessidades decorrentes da crise, e têm postura de rejeição de competência quanto às atribuições de execução de políticas públicas de assistência social e acolhimento, em desconformidade quanto às diretrizes do pacto federativo. A sociedade civil organizada, através das ONG’s e OI’s como ACNUR e OIM, é verdadeira protagonista de medidas de acolhimento e integração dos migrantes na sociedade brasileira. Em um paralelo com a história, como pontua Ana Luisa Zago de Moraes, em “Crimigração: a relação entre política migratória e política criminal no Brasil”, o país encarou a imigração sob diferentes perspectivas ao longo de sua história. Desde a primeira república, perpassando pelo Estado Novo e a Ditadura Civil-Militar, a imigração esteve atrelada à ideia de ameaça e criminalização. A transição democrática no final da década dos anos 1980, trouxe novas perspectivas em relação a esse assunto com o esforço consagrado na Constituição de 1988 de abertura aos Direitos Humanos e garantias fundamentais, compreendendo, portanto, o imigrante não apenas como sujeito de direitos, como também, “sujeito de” vulnerabilidades transnacionais de controle e criminalização do Estado. É por isso que se faz primordial tratar-se sobre a consolidação de uma política migratória democrática, pautada no respeito à pluralidade e promoção dos Direitos Humanos e de descriminalização; capaz de reverberar na capacidade do Poder Público de oferecer ao imigrante a devida estrutura de acolhimento e integração, bem como inteligência policial, efetividade judiciária no combate e enfrentamento ao tráfico de pessoas e outros crimes de natureza transfronteiriça que acontecem devido à negligência e a inércia do Estado perante a vulnerabilidade das pessoas deslocadas dos seus países em virtude de guerra, fome, repressão, perseguição e miséria. A mais importante reflexão que até aqui pode ser feita, é a de que a descoordenação do Estado nas políticas públicas voltadas para acolhimento e a sua postura refratária e perante o papel das ONGs é o caminho aberto para um cenário falimentar de descaso e de terreno fértil para violações de Direitos Humanos. Outrossim, olhar para as falhas do serviço público no que tange às orientações de assistência social e oferta aos serviços básicos fundamentais exige abordagem de caráter estrutural e reformista, pautado na revisão do pacto federativo, descentralização orçamentária e maior autonomia de gestão aos municípios; atrelada às diretrizes fundantes de construção e execução de políticas públicas voltadas à dignidade e bem estar de todos os cidadãos. O Governo Federal estendeu o projeto acolhida até março de 2020. Entretanto, é nítida a impossibilidade de realocar o contingente de imigrantes nesse curto espaço de tempo. Desse modo, fica claro a necessidade do caráter perene do Projeto Acolhida. O prazo final do projeto só deverá ser colocado em pauta quando todos os imigrantes receberem as condições humanitárias dignas para o bom desenvolvimento social. A Operação Acolhida vai muito além da atuação sistêmica do Governo Brasileiro e de Agências Internacionais. É uma missão humanitária que tem por finalidade recepcionar pessoas que tiveram seus sonhos interrompidos e que por situações socioeconômicas externas não podem mais chamar de lar o lugar em que nasceram. Destarte, mais do que um ideal, a Operação Acolhida tornou-se sinônimo de esperança para todos aqueles que escolheram o Brasil para começar uma nova história. Sendo assim, é imprescindível que ocorra a mais vigorosa sinergia entre as parcerias público-privada, somada à atuação complementar da Sociedade Civil Organizada e dos Organismos Internacionais. De modo que haja uma ascensão no nível de eficiência na Operação Acolhida, garantindo todos os direitos dos imigrantes e refugiados de forma plena. REFERÊNCIAS BORGO, Karina Sainz. Noite em Caracas. Ed. 1. Rio de Janeiro : Intrínseca, 2019. BRASIL: Crianças e adolescentes venezuelanos fogem sozinhos para o Brasil: As autoridades brasileiras dão proteção insuficiente.. Nova York: Human Rights Watch, 6 dez. 2019. Disponível em: https://www.hrw.org/ pt/news/2019/12/05/336329. Acesso em: 10 dez. 2019. MORAES, Ana Luisa Zago de. Crimigração: a relação entre política migratória e política criminal no Brasil, Porto Alegre, 2016. pp. 17, 313. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA SECRETARIA-GERAL SUBCHEFIA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS. Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20152018/2016/Lei/L13344.htm. Acesso em: 9 set. 2019. PROTOCOLO de Palermo: Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças. [S. l.], 2013. Disponível em: http://sinus.org. br/2014/wp-content/uploads/2013/11/OIT-Protocolo-de-Palermo.pdf. Acesso em: 29 set. 2019. RELATÓRIO DA MISSÃO RORAIMA. Brasília: Assessoria de Comunicação Social - ASCOM, 2018. Disponível em: https://www.dpu. def.br/images/stories/pdf_noticias/2018/relatorio_missao_roraima.pdf. Acesso em: 20 nov. 2019. SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Revista Atual da Livraria do Advogado Editora: Porto Alegre, 2012. WORLD REPORT. Nova York: Human Rights Watch, 2019. Disponível em: https://www.hrw.org/sites/default/files/world_report_download/ hrw_world_report_2019.pdf. Acesso em: 18 dez. 2019. CAPÍTULO 4 GÊNERO, MIGRAÇÃO E TRABALHO ESCRAVO NA CIDADE DE SÃO PAULO: UM OLHAR À LUZ DOS OBJETIVOS DA AGENDA 2030 PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ANA CAROLINA D’ASCENÇÃO BOTELHO Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Pessoas invisíveis da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. INTRODUÇÃO Os movimentos migratórios são indissociáveis da dinâmica humana e estão intimamente relacionados à conformação histórica e ao desenvolvimento sociocultural dos grupos populacionais. A migração econômica é uma das principais causas de mobilidade humana, juntamente com a migração decorrente de conflitos armados, crises ambientais e questões políticas1. Na atualidade, observa-se a ocorrência da colonização reversa, fenômeno que consiste no deslocamento de contingentes populacionais de países em desenvolvimento para países desenvolvidos, em razão da degradação das condições de vida em seus locais de origem. Nos países 1. CASTRO, Sara Andréia da Silva; GASPAR, Renata Alvares. A condição do trabalhador migrante: interfaces entre globalização, migração e trabalho sob a perspectiva regional. In: BAENINGER, Rosana et al. Migrações Sul-Sul. 2. ed. Campinas, 2018, p. 875. PAES, Vanessa Generoso. Fronteiras políticas em movimento - dilemas e tendências de novos fluxos imigratórios em São Paulo: trabalho, gênero e direitos. 2018. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 329. de destino, porém, esses grupos são frequentemente estigmatizados em decorrência da condição de imigrante, dificultando ou mesmo impossibilitando sua integração e mantendo-os à margem da sociedade2. A marginalização dos migrantes os torna mais suscetíveis ao tráfico de pessoas, à exploração e ao trabalho irregular e em condições precárias3, fatores que estão, a priori, intimamente relacionados. No Brasil, os imigrantes econômicos possuem significativa participação no setor produtivo nacional, desempenhando, principalmente, atividades em oficinas de costura, na construção civil, em ambientes domésticos, em fazendas, carvoarias ou na extração de cana-de-açúcar4. Nesse ponto, cabe destacar que se acredita na influência da variável “gênero” como elemento relevante para determinar o setor no qual os migrantes desenvolvem suas atividades. A esse respeito, Juliana Felicidade Armede comenta que para identificar o perfil das vítimas de trabalhos forçados, é preciso identificar o setor produtivo em que estas estão inseridas5. Cenário muito semelhante pode ser observado em relação ao tráfico de pessoas. Sabe-se que, costumeiramente, mulheres e meninas são traficadas com a finalidade de serem sexualmente exploradas ou de prestarem serviços domésticos; enquanto homens e meninos são traficados para fins de trabalho escravo ou para serem soldados. Todavia, essa segmentação não é estanque e pode variar conforme a região considerada. Considerando esse quadro, percebe-se que o enfrentamento ao tráfico de pessoas, assim como à submissão de migrantes a trabalhos forçados demanda ações em âmbito regional e global. Partindo dessa premissa, a pesquisa visa a investigar se há relação entre os fenômenos de tráfico de pessoas e submissão de migrantes a trabalho análogo ao escravo a partir de um recorte espacial. Ademais, considerando as ações desenvolvidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) no que tange ao enfrentamento ao tráfico de pessoas, à promoção do trabalho decente, à redução das desigualdades de gênero e ao empoderamento das mulheres, pretende-se investigar de que maneira os objetivos estabelecidos pela Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável contribuem para atingir tais propostas. 2. 3. 4. 5. CASTRO; GASPAR, op. cit., p. 877. CASTRO; GASPAR, op. cit., p. 882. PAES, Vanessa Generoso. Fronteiras políticas em movimento - dilemas e tendências de novos fluxos imigratórios em São Paulo: trabalho, gênero e direitos. 2018. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 329. PAES, op. cit., p. 350. Em relação aos aspectos metodológicos, foi realizada pesquisa bibliográfica e documental, organizada em três etapas, conforme descrito a seguir. Na primeira etapa, buscou-se traçar um panorama da situação dos migrantes oriundos de países latino-americanos e residentes na cidade de São Paulo, a fim de identificar as condições de vida e trabalho desse grupo populacional. Tendo em vista as dimensões continentais do Brasil, foi preciso realizar um recorte espacial, a fim de viabilizar a pesquisa. Elegeuse, então, a capital paulista por esta ser a maior metrópole do país e por constituir-se como um dos principais destinos dos imigrantes que adentram o território brasileiro na atualidade. Por razões metodológicas, esta fase de pesquisa foi essencialmente bibliográfica. Foi realizada pesquisa em artigos científicos, teses e dissertações e optou-se por utilizar como principais referenciais teóricos Luís Felipe Aires Magalhães, Lúcia Bórgus, Rosana Baeninger e Vanessa Generoso Paes. Os dados obtidos nessa etapa inicial da pesquisa foram de suma importância não só para contextualizar este estudo, mas também para subsidiar as análises desenvolvidas ao longo de todo o trabalho. Na segunda fase, analisou-se o arcabouço jurídico nacional e internacional, com o intuito de identificar o desenvolvimento da legislação referente ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo. A seleção das normativas nacionais e internacionais a serem analisadas deu-se a partir de informações obtidas em artigos científicos que abordavam as temáticas ora em estudo. Para fins de investigação, foram considerados como pontos de partida as Convenções nº 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Protocolo de Palermo, em âmbito internacional, e as disposições do Código Penal acerca dos delitos de tráfico de pessoas e de redução à condição análoga a de escravo, em âmbito nacional. Finalmente, na terceira etapa de pesquisa, estudou-se a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, investigando-se especialmente o processo de elaboração do documento e de seus objetivos. Posteriormente, buscou-se investigar como os objetivos fixados na Agenda 2030 contribuem para o enfrentamento do trabalho forçado e do tráfico de pessoas, sempre considerando as especificidades decorrentes da migração e das questões de gênero. No que tange à estruturação deste artigo, o mesmo encontra-se organizado em quatro seções, nas quais aborda-se, respectivamente, a situação dos migrantes na capital paulista; o desenvolvimento do arcabouço jurídico nacional e internacional relativo ao enfrentamento ao tráfico de seres humanos e ao trabalho escravo; e as contribuições da Agenda 2030 para tal finalidade. 1 BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DAS CONDIÇÕES DE VIDA E TRABALHO DOS MIGRANTES NA CIDADE DE SÃO PAULO O Brasil, mais especificamente São Paulo, sua maior metrópole, consolidou-se nos últimos anos como destino para migrantes internacionais e refugiados, tanto em razão de uma realocação do País no cenário geopolítico latino-americano, quanto em virtude de um novo posicionamento no contexto geopolítico global. Dentre os principais fluxos migratórios observados atualmente, percebe-se a prevalência de sul-americanos (com destaque para bolivianos, peruanos e paraguaios) e sul-coreanos, grupos já tradicionais, acrescidos de novos fluxos migratórios compostos por haitianos, senegaleses e chineses6. No que tange especificamente à cidade de São Paulo, observase uma concentração de imigrantes bolivianos e peruanos acrescida por refugiados sírios e africanos, como quenianos e angolanos. Em razão disso, a capital paulista mostra-se um rico cenário para o estudo da migração e do refúgio internacional, revelando uma diversidade de fluxos migratórios7. Apresentado esse breve panorama, passa-se agora ao estudo das condições de vida e trabalho dos migrantes na capital paulista. De acordo com Luís Felipe Aires Magalhães, Lúcia Bórgus, Rosana Baeninger8 e Vanessa Generoso Paes9, a chegada de novos grupos de migrantes vem modificando a paisagem social e urbana da capital paulista. Os migrantes e refugiados trabalham principalmente no comércio, na indústria da costura, na construção civil e em empreendimentos étnicos como restaurantes e salões de beleza situados na região central da cidade, com destaque para os bairros da Liberdade, Sé, República, Bom Retiro, Brás e Pari. 6. 7. 8. 9. MAGALHÃES, Luís Felipe Aires; BÓRGUS, Lúcia; BAENINGER, Rosana. Migrantes e refugiados Sul-Sul na cidade de São Paulo: trabalho e espacialidades. In: BAENINGER, Rosana et al. Migrações Sul-Sul. 2. ed. Campinas, 2018, p. 402. Ibid., p. 405. Ibid., p. 405. PAES, Vanessa Generoso. Fronteiras políticas em movimento - dilemas e tendências de novos fluxos imigratórios em São Paulo: trabalho, gênero e direitos. 2018. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 335. No contexto das migrações, observa-se um contingente cada vez maior de mulheres migrantes, as quais tornam-se protagonistas desse processo. A despeito desse protagonismo, elas enfrentam uma série de dificuldades como barreiras linguísticas, preconceito e xenofobia. A dificuldade de integração repercute, consequentemente, na inserção desse grupo no mercado de trabalho e, não por acaso, as mulheres alocam-se em serviços de baixa remuneração, informais e com condições precárias, tais como na indústria da costura ou serviços domésticos10. Nesse ponto, é essencial destacar que as mulheres migrantes muitas vezes são invisíveis às fontes tradicionais de dados demográficos empregadas para estudar os fluxos migratórios. Por essa razão, foi necessário recorrer a resultados obtidos por meio de pesquisas qualitativas11. Para tanto, escolheuse o trabalho de Magalhães, Bógus e Baeninger, em que foi realizada uma abordagem etnográfica acerca da migração feminina, trabalho e cultura na capital paulista12. O trabalho acima mencionado aborda a trajetória de mulheres migrantes oriundas de diferentes regiões do globo. No que se refere a mulheres oriundas de países da América do Sul, merecem destaque as bolivianas, que atuam principalmente na indústria da costura e no comércio de rua. Para compreender como ocorre o labor das bolivianas no setor têxtil, é necessário entender, de início, a dinâmica que impera nas oficinas de costura, apontando, ainda que brevemente, o perfil dos trabalhadores, assim como a maneira pela qual se estabelecem as relações de trabalho nesses espaços. Nessa esteira, verifica-se que prevalece o labor de bolivianos, paraguaios e peruanos, os quais costumam ser subcontratados por bolivianos ou coreanos que ascenderam na indústria da costura. Os agenciadores, com os quais os trabalhadores frequentemente possuem relação de compadrio ou apadrinhamento, assumem os custos da viagem, hospedagem e alimentação, despesas estas que passam a constituir uma dívida a ser quitada por meio do trabalho13. 10. BOTEGA, Tuila. Editorial: Por um olhar mais humano sobre as mulheres migrantes. Resenha: migrações na atualidade, v. 27, n. 105, p.2-3, nov. 2016. Trimestral, p. 2. 11. MAGALHÃES, Luís Felipe Aires; BÓRGUS, Lúcia; BAENINGER, Rosana. Migrantes e refugiados Sul-Sul na cidade de São Paulo: trabalho e espacialidades. In: BAENINGER, Rosana et al. Migrações Sul-Sul. 2. ed. Campinas, 2018, p. 403. 12. Para mais informações acerca da metodologia utilizada, vide MAGALHÃES, BÓGUS e BAENINGER, p. 403. 13. PAES, Vanessa Generoso. Fronteiras políticas em movimento - dilemas e tendências de novos fluxos imigratórios em São Paulo: trabalho, gênero e direitos. 2018. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, passim. Essa forma de contratação, marcada pela subjugação, por jornadas de trabalho exaustivas, desenvolvidas em ambientes insalubres e em condições de segurança precárias, assemelha-se ao trabalho precarizado e análogo ao escravo. Apesar dessas semelhanças, a relação ora analisada difere-se da mera exploração entre patrões e empregados, uma vez que predominam também fatores culturais, religiosos, compromissos familiares, dentre outras características que a tornam peculiar e ocultam violências materiais e simbólicas14. O cotidiano da indústria da costura revela-se ainda mais perverso para as mulheres, às quais, visando atingir a produtividade necessária, são submetidas a um regime de exploração da força de trabalho maior se comparado àquele imposto aos homens. Isso porque o maquinário, muitas vezes antigo e pesado, demanda maior esforço físico das operadoras do gênero feminino. A despeito disso, a remuneração das mulheres costuma ser inferior àquela conferida aos homens, pois comumente a elas são atribuídas tarefas de menor remuneração ou atividades tidas como não passíveis de remuneração15. Além do labor na confecção, as mulheres também são responsáveis pela limpeza do ambiente de trabalho e pelo preparo das refeições, reforçando a vinculação da figura feminina à atividades domésticas. Ainda, nos contextos em que o local de residência e de trabalho são compartilhados, as migrantes ficam mais suscetíveis a inúmeras formas de violência, tais como assédio e abuso sexual, remetendo às desigualdades de gênero e de poder e evidenciando um grave problema de saúde pública, visto que essa violência provoca sequelas físicas e psicológicas em suas vítimas16. Denunciar os agressores e obter proteção estatal não é tarefa fácil mesmo para mulheres brasileiras. No caso das mulheres migrantes, tal situação mostra-se ainda mais crítica, pois as condições a que elas estão sujeitas coloca-as à margem da sociedade, de modo que desconhecem seus direitos, bem como os mecanismos existentes para buscar auxílio e proteção e acreditam que por não possuírem documentos não podem denunciara violência sofrida17. 14. PAES, op. cit. 15. MAGALHÃES, Luís Felipe Aires; BÓRGUS, Lúcia; BAENINGER, Rosana. Migrantes e refugiados Sul-Sul na cidade de São Paulo: trabalho e espacialidades. In: BAENINGER, Rosana et al. Migrações Sul-Sul. 2. ed. Campinas, 2018, p. 408. 16. Ibid., p. 408. 17. PAES, Vanessa Generoso. Fronteiras políticas em movimento - dilemas e tendências de novos fluxos imigratórios em São Paulo: trabalho, gênero e direitos. 2018. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, passim. A fala da advogada Marina Novaes, extraída da tese de Vanessa Generoso Paes18 bem exemplifica essa situação. Segundo relata a advogada, ao realizar seu primeiro atendimento no CAMI, esta auxiliou uma senhora que sofrera violência doméstica, todavia, acreditava que não podia denunciar o agressor, uma vez que não possuía documentos. De acordo com Novaes, “[...] isso exemplifica um pouco que essa mulher está tão à margem e a vulnerabilidade dela chega a esse ponto, de achar que não tem direito por não ter documento [...]”. A desinformação dos migrantes que residem na capital paulista não se restringe a esse aspecto, estendendo-se também a outras temáticas como o direito à educação, conforme aponta Veronica Yurja. Para exemplificar essa situação, ela conta que muitos imigrantes desconhecem que essa condição não constitui impedimento para estudar em instituições públicas no País19. Essas situações são apenas dois exemplos de como os migrantes, sejam eles do gênero feminino ou masculino, são marginalizados e ficam em uma situação de extrema vulnerabilidade, privados de direitos básicos. Ainda em relação à integração social e às condições de trabalho das mulheres migrantes, Tatiana Solimeo20 com apoio em entrevistas realizadas com 15 bolivianas que se estabeleceram na região da Penha, relata que as mulheres migrantes enfrentam o preconceito por parte da população brasileira devido à condição de migrante. Já aquelas que não são casadas deparam-se com dificuldades de integração e de empregabilidade dentro de seus próprios núcleos culturais, pois os espaços de socialização são pensados para a família (que é sinônimo de casamento) e as oficinas de costura possuem o enredo familiar como pedra fundamental. Visando romper as barreiras à sua integração na sociedade brasileira, as mulheres migrantes organizam-se em coletivos e utilizam-se cada vez mais das redes sociais para se articular e lançar luz à sua condição21. Abordar minuciosamente as pautas mobilizadas pelos coletivos de mulheres migrantes mostra-se uma tarefa incompatível com a os objetivos do presente trabalho, de modo que este limita-se a mapear os principais temas discutidos por esses grupos. 18. Ibid., p. 410. 19. Ibid., pp. 389-390. 20. SOLIMEO, Tatiana. Mulheres bolivianas na zona leste de São Paulo. Territorialidade e gênero. In: BAENINGER, Rosana et al. Migrações Sul-Sul. 2. ed. Campinas, 2018, pp. 813-814. 21. PAES, Vanessa Generoso. Fronteiras políticas em movimento - dilemas e tendências de novos fluxos imigratórios em São Paulo: trabalho, gênero e direitos. 2018. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, passim. Infere-se da leitura de Paes22 que dentre as pautas mobilizadas pelos movimentos de mulheres migrantes estão o parto humanizado e as especificidades culturais relacionadas a esse procedimento, a ocorrência de violência obstétrica e a liberdade de escolha das mulheres, violência doméstica, racismo e xenofobia. Outra questão abordada refere-se à migração como processo identitário, definido como um “entre lugar” ou um “estado do reconhecimento do deslocamento”23. Segundo a autora, muitos migrantes, após o processo de migração, não conseguem reconhecer-se como pertencentes à cultura de seu país de origem, tampouco àquela do país de destino. Esses indivíduos assumem, então, o status de “migrante” que vive na fronteira entre ambas as culturas. Tal situação acentua a importância de se estabelecer políticas de integração dos migrantes à sociedade, a fim de que estes estejam a par de seus direitos e das dinâmicas culturais do país de destino, bem como com o objetivo de que a sociedade que os recebe tenha conhecimento das especificidades da condição de migrante, fomentando uma integração plena e o convívio respeitoso. Diante do exposto até aqui, pode-se concluir que o processo migratório possui um significado simbólico bastante particular para todos os indivíduos que nele se lançam: o sonho de recomeçar, a busca por melhores oportunidades e o desejo de proporcionar melhores condições de vida e trabalho para si e para seus familiares. Para as migrantes do gênero feminino, em particular, o movimento migratório representa uma oportunidade de autonomia, emancipação e concretização de projetos e sonhos, os quais esse grupo talvez não pudesse realizar em seu país de origem24. Em síntese, para as mulheres, a migração representa uma forma de empoderamento. Durante esse processo, os imigrantes veem-se em uma situação de extrema vulnerabilidade, o que os torna mais suscetíveis a violações de direitos, tais como discriminação e exploração da mão de obra. No caso das mulheres, esse quadro é agravado pelas questões de gênero, tal qual demonstrado nesta seção. Para compreender o processo de migração e o que é o “ser mulher” nesse processo, porém, não basta entender a situação dos migrantes no país de destino. É preciso analisar também como este protege e promove os direitos dos indivíduos que a ele se dirigem. Para tanto, foi realizado um 22. Ibid., pp. 333-357. 23. Ibid., p. 443. 24. BOTEGA, Tuila. Editorial: Por um olhar mais humano sobre as mulheres migrantes. Resenha: migrações na atualidade, v. 27, n. 105, p.2-3, nov. 2016. Trimestral, pp. 2-3. estudo do arcabouço jurídico internacional e nacional no que se refere ao enfrentamento ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas, duas condutas às quais os migrantes, sejam mulheres ou homens, estão frequentemente expostos. Os resultados dessas análises encontram-se expostos nas seções que seguem. 2 O ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS E AO TRABALHO ESCRAVO EM ÂMBITO INTERNACIONAL O enfretamento ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo são questões que se destacam há décadas nas pautas da comunidade internacional. Ao longo de muitos anos, foram elaborados diversos instrumentos normativos com o objetivo de prevenir e coibir tais práticas. No âmbito do enfrentamento ao tráfico de pessoas merece destaque o Protocolo de Palermo, elaborado pela Organização das Nações Unidas; no âmbito do enfrentamento ao trabalho escravo destacam-se as Convenções nº 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho. Esses três instrumentos normativos são objeto de análise nesta seção. 2.1 O PROTOCOLO DE PALERMO E O ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS: UMA NOVA PERSPECTIVA Uma análise do histórico das convenções relativas ao tráfico de seres humanos permite afirmar que até o início do século XX a noção de tráfico de pessoas estava associada à exploração de mulheres brancas, principalmente europeias e estadunidenses, para prostituição no exterior. Entre as décadas de 1900 e 1930, a Liga das Nações elaborou quatro disposições, entre acordos e convenções internacionais, com o objetivo de prevenir e coibir o tráfico de crianças e mulheres adultas, a saber: I) Acordo Internacional para a Supressão do Tráfico de Escravas Brancas (1904); II) Convenção Internacional para a Supressão do Tráfico de Escravas Brancas (1910); III) Convenção Internacional para Combater o Tráfico de Mulheres e Crianças (1921) e IV) Convenção Internacional para a Supressão do Tráfico de Escravas Brancas (1933)25. Foi somente no final da década de 1940, com a formulação da Convenção das Nações Unidas sobre a Supressão do Tráfico de Pessoas e a Exploração da Prostituição de Outros (1949), que a perspectiva do tráfico de escravas brancas começou a ser superada. Contudo, esse 25. PISCITELLI, Adriana; VASCONCELOS, Marcia. Apresentação. Cad. Pagu, Campinas, n. 31, pp. 9-28, dez. 2008, p. 11. instrumento normativo, ao definir o tráfico de pessoas como deslocamento de uma pessoa com a finalidade de exercer a prostituição, continuava a vincular ambas as práticas, apontando para a necessidade de eliminá-las. Isso porque a Convenção de 1949 entendia que estas eram incompatíveis com a dignidade humana e representavam um perigo para o bem-estar do indivíduo, da família e da comunidade26. Notam-se dois problemas nessa definição. O primeiro, a vinculação do tráfico de pessoas à prostituição, tratando ambas as condutas como sinônimos. Sabe-se que um dos principais objetivos do tráfico de seres humanos é a exploração sexual, todavia, não se pode reduzi-lo a esse intuito, uma vez que o tráfico de pessoas possui inúmeras finalidades, tal qual o trabalho forçado. O segundo, a estigmatização das vítimas de tráfico, o que as coloca em uma situação de revitimização, impõem uma série de barreiras à sua reinserção em seus núcleos de origem e dificulta a localização e a punição dos agressores. Por outro lado, um ponto positivo observado no texto da Convenção de 1949 é a superação, ainda que parcial, da noção de escravas brancas. Todavia, apenas após a elaboração do Protocolo de Palermo, pôdese observar mudanças mais significativas no que tange às normativas internacionais destinadas ao enfrentamento ao tráfico de pessoas27. Embora tanto a Convenção de 1949, quanto o Protocolo de Palermo enfoquem as mulheres e as crianças como principais sujeitos passivos do crime de tráfico de pessoas, ambos se distinguem em relação aos requisitos para caracterização do delito. Enquanto a primeira não exige que o deslocamento seja forçado, o segundo vincula o cometimento do crime à ocorrência de coerção, fraude ou abuso de situação de vulnerabilidade em qualquer fase do processo de deslocamento envolvendo adultos. No caso de crianças, a coerção é irrelevante. Outra distinção entre ambos os dispositivos é que segundo o Protocolo de Palermo, o tráfico de pessoas não é considerado como sinônimo de prostituição, tampouco é reduzido à exploração dessa atividade. Pelo contrário, o conceito de tráfico de pessoas contido nesse dispositivo adquire uma perspectiva mais ampla, que engloba o trabalho forçado, a escravatura ou práticas análogas, ou ainda a servidão, situações que podem ser verificadas em qualquer atividade, conforme se observa na indústria têxtil e em outros setores produtivos que empregam mão de obra 26. Ibid., p. 12. 27. PISCITELLI, Adriana; VASCONCELOS, Marcia. Apresentação. Cad. Pagu, Campinas, n. 31, pp. 9-28, dez. 2008, p. 9. migrante na capital paulista. Ademais, esse instrumento normativo também considera a remoção de órgãos como finalidade do tráfico de pessoas28. Ainda, o Protocolo de Palermo distingue-se da Convenção de 1949 por apresentar disposições voltadas para a prteção dos direitos fundamentais das vítimas por meio do fornecimento de alojamentos, assistência médica, psicológica e material; oferta de educação e formação; oportunidades de emprego e medidas legislativas que possibilitem que pessoas em situação de tráfico permaneçam no local de destino de forma temporária ou permanente. Por todos esses aspectos, pode-se afirmar que o Protocolo de Palermo representa uma ruptura com a Convenção de 1949 e inicia um novo debate acerca do tráfico de pessoas29. Esse debate, diferentemente do que ocorrera em relação às discussões das décadas pregressas, cuja questão central eram os requisitos para configurar o tráfico de pessoas, pauta-se na análise das inúmeras definições elaboradas pelas legislações internas dos Estados signatários do Protocolo de Palermo, assim como nas ambiguidades existentes no próprio documento no que tange à tipificação do crime30. Segundo o Protocolo de Palermo, o cerne da definição de tráfico de pessoas é a exploração, a qual pode dar-se de várias maneiras, inclusive por meio do trabalho forçado31. Assim, a subseção seguinte visa compreender a lógica que sustenta a exploração a partir do conceito de trabalho escravo ou em condições análogas. 2.2 O TRABALHO ESCRAVO E AS CONVENÇÕES DA OIT A interface entre tráfico de pessoas e trabalho forçado vem sendo considerada pela legislação internacional desde o século XIX. Existem duas modalidades de trabalho escravo, quais sejam: formas tradicionais e novas formas. De acordo com a OIT, as primeiras englobam a servidão por dívida no meio rural, e outras maneiras de exploração dos indivíduos ancoradas em costumes e tradições. As segundas, por seu turno, estão relacionadas com a exploração de trabalhadores e trabalhadoras migrantes no local de destino e possuem íntima relação com o fenômeno do tráfico de pessoas32. 28. 29. 30. 31. Ibid., p. 13. Ibid., p. 13. Ibid., pp. 13-14. VASCONCELOS, Marcia; BOLZON, Andréa. Trabalho forçado, tráfico de pessoas e gênero: algumas reflexões. Cad. Pagu, Campinas, n. 31, p. 65-87, dez. 2008, p. 67. 32. Ibid., p. 68. O primeiro documento internacional a abordar a questão do trabalho escravo foi a Convenção nº 29 da OIT, a qual conceituou esse fenômeno de maneira abrangente, a fim de apresentar uma definição que não estivesse restrita a regiões, países, setores econômicos ou modalidades de exploração específicos. Assim, foi elaborada a seguinte definição: constitui trabalho forçado “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual ela não tiver se oferecido espontaneamente “33. Duas décadas depois, diante da pouca repercussão dessa norma perante os Países Membros que ratificaram a Convenção, a OIT elaborou novo documento, a Convenção nº 105, a qual vedou o emprego de trabalho forçado para promover o desenvolvimento econômico ou para educar politicamente, discriminar, impor disciplina ou sancionar indivíduos que participassem de greves34. A despeito da necessidade de se elaborar uma definição abrangente que englobe uma série de práticas capazes de caracterizar trabalho escravo, a formulação de um conceito amplo impõe uma série de dificuldades e imprecisões para a aplicação da normativa, uma vez que o cerceamento da liberdade pode dar-se em diferentes contextos e momentos e a imposição de ameaça pode manifestar-se de várias maneiras35. Por esse motivo, é de suma importância atentar-se aos elementos fáticos que permitem identificar a ocorrência de trabalho escravo nos mais variados contextos. Ao analisar os fluxos migratórios mais recentes com destino à capital paulista, observa-se que a maioria dos imigrantes chega à cidade por intermédio de parentes ou conhecidos, os quais custeiam suas despesas durante o período de deslocamento. Já em São Paulo, são infligidos a trabalhar para reembolsar essas despesas, normalmente residem no local de trabalho e as mulheres são frequentemente vítimas de violência sexual. Observam-se nesses contextos elementos que apontam para a ocorrência de trabalho escravo. A partir da constatação de que determinada prática caracteriza trabalho escravo ou em condições análogas, é preciso investigar se existe relação entre essa conduta e o tráfico de seres humanos, a fim de delinear uma estratégia de atuação. Para isso, é essencial integrar as normativas nacionais e internacionais que versam acerca das referidas condutas. Destaca-se que no Brasil a legislação pátria criminaliza ambas. Tendo isso em vista, a seção subsequente busca identificar de que maneira o Código Penal brasileiro tipifica os delitos de tráfico de pessoas 33. Ibid., pp. 68-69. 34. Ibid., p. 70. 35. Ibid., pp. 71-73. e redução à condição análoga a de escravo, previstos, respectivamente, nos artigos 149-A e 149. Para tanto, será elaborado um breve histórico da tipificação dessas condutas pela legislação penal brasileira. Ao final, pretende-se analisar quais são os pontos de convergência e de divergência entre as normativas nacionais e internacionais. 3 TRÁFICO DE PESSOAS E TRABALHO ESCRAVO OU EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA 3.1 TRÁFICO DE PESSOAS: DO CÓDIGO PENAL À LEI Nº 13.344/2016 O tráfico de pessoas encontra-se tipificado pela legislação pátria desde o Código Penal Republicano (1890). À época, esse delito era entendido como uma forma de favorecimento da libidinagem alheia, ainda que sem proveito pessoal; por esse motivo, foi inserido no Capítulo acerca do Lenocínio. Tal tipificação visava proteger a moral da família, o decoro e o pudor público36. Posteriormente, após a edição do Acordo Internacional para a Supressão do Tráfico de Escravas Brancas, em 1904, foi preciso reformular a tipificação do tráfico de pessoas, prevista no artigo 278 do Código Penal Republicano. Tal reformulação deu-se por meio da edição da Lei nº 2992/1915, que modificou o caput do referido dispositivo legal e acrescentou três parágrafos a ele37. Em relação ao tipo penal, foram acrescidas as condutas de manter e explorar casas de tolerância; e no que tange às penalidades aplicáveis, procedeu-se ao aumento da pena privativa de liberdade e a incorporação da pena de multa proporcional ao quantum de pena privativa aplicado. Além dessas alterações, os parágrafos do artigo 278 trouxeram novos parâmetros para caracterização do delito e novas regras para processamento e julgamento do mesmo38. O parágrafo primeiro afastou a necessidade do consentimento da vítima para caracterização do delito de tráfico de pessoas, de modo que, mesmo se a mulher fosse menor de idade, estaria configurado o crime. 36. CUNHA, Bianca de Morais; PIMENTEL, Gabriela Regina. Tráfico internacional de mulheres no Brasil: panorama histórico. In: SMANIO, Gianpaolo Poggio et al. Mulheres invisíveis: panorama internacional e a realidade brasileira do tráfico transnacional de mulheres. Curitiba: Editora CRV, 2018, p. 154. 37. Ibid., p. 155. 38. Ibid., p. 155. Também estabeleceu que a ameaça, o engano, a fraude, a violência, o abuso ou qualquer outra forma de coação seriam condutas aptas a caracterizar o delito39. O segundo parágrafo representou uma inovação no âmbito da legislação pátria, pois determinou que o delito de tráfico de pessoas, mesmo se praticado no exterior, seria processado e julgado no País. Finalmente, o parágrafo terceiro dispunha acerca da ação penal, estabelecendo que esta seria pública ou privada40. O Código Penal de 1940 trouxe novas modificações ao tipo penal, que passou a englobar somente o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual. O artigo 231 desse dispositivo legal definia o tráfico internacional de pessoas como a promoção ou a facilitação da entrada de mulheres que viessem exercer a prostituição no Brasil ou a saída daquelas que objetivassem fazê-lo no exterior41. Assim como ocorrera no Código Penal Republicano, o tráfico de mulheres continuou associado ao lenocínio, inserido no Capítulo “Do lenocínio e do tráfico de mulheres”; no entanto, ao contrário do que se verificou naquele diploma legal, o Código Penal de 1940 objetivava tutelar a moralidade sexual e os bons costumes42. Observa-se nesse diploma legal a prevalência de um entendimento reducionista em relação ao tráfico de seres humanos, isto é, a associação desse crime exclusivamente à prostituição. Percebe-se também a ocorrência de uma visão estigmatizada acerca da prostituição, visão esta que se aproximava daquela apresentada pela legislação internacional da época e evidenciava o esforço dos Estados e da comunidade internacional para tutelar a moralidade sexual e os bons costumes em benefício da coletividade. Em relação às causas de aumento de pena, o parágrafo primeiro do artigo 231 estabelecia que esta seria aumentada caso a vítima fosse maior de 14 e menor de 18 anos, e se o agente fosse ascendente ou descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, tutor, curador ou pessoa a quem a vítima estivesse confiada para fins de educação, tratamento ou guarda. O parágrafo segundo também continha uma hipótese de aumento de pena, a qual ocorreria se houvesse o emprego de violência, fraude ou grave ameaça. Nesse caso, seria aplicada também a pena correspondente à violência. Por 39. Ibid., p. 155. 40. CUNHA, Bianca de Morais; PIMENTEL, Gabriela Regina. Tráfico internacional de mulheres no Brasil: panorama histórico. In: SMANIO, Gianpaolo Poggio et al. Mulheres invisíveis: panorama internacional e a realidade brasileira do tráfico transnacional de mulheres. Curitiba: Editora CRV, 2018, p. 155. 41. Ibid., p. 158. 42. Ibid., p. 158. fim, o parágrafo terceiro determinava que se o delito fosse cometido com finalidade lucrativa, o agente estaria sujeito não só a pena privativa de liberdade, mas também a de multa43. Em 2005, após a ratificação do Protocolo de Palermo pelo Brasil, a Lei nº 11.106/2005 alterou o caput do artigo 231 do Código Penal com o intuito de inserir o verbo “intermediar” dentre as condutas puníveis e substituir o termo “mulher” por “pessoa”. Ademais, inseriu o artigo 231-A, a fim de tipificar também o tráfico interno de pessoas44. Esse artigo tipificava a referida conduta como a promoção, intermediação ou facilitação, em território nacional, do recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoa que viesse exercer a prostituição. No que tange às causas de aumento de pena, o parágrafo único determinava que seriam aplicáveis as disposições dos parágrafos primeiro e segundo do artigo 231 do Código Penal45. Quatro anos depois, a Lei nº 12.015/2009 alterou os artigos 231 e 231-A e renomeou o Título IV e o Capítulo I, os quais receberam a denominação de “Dos crimes contra a dignidade sexual” e “Dos crimes contra a liberdade sexual!, respectivamente46. Dentre as principais alterações observadas nos referidos artigos, pode-se apontar a supressão do termo “intermediar”, a incorporação das condutas de agenciar, aliciar, comprar ou vender a pessoa traficada e transportar, transferir e alojar pessoa quando houver conhecimento de que esta é vítima de tráfico de pessoas. Ademais, o parágrafo segundo do artigo 231-A inseriu dentre as causas de aumento de pena a ausência de discernimento da vítima em razão de enfermidade ou deficiência mental, e a existência de relação de parentesco ou outra forma de relação íntima entre vítima e agente47. Com base nas informações supramencionadas, percebe-se que as principais transformações decorrentes das Leis nº 11.106/2005 e 12.015/2009 são a desvinculação do tráfico de pessoas da atividade de prostituição, a substituição do termo “mulher” por “pessoa” e a ampliação das finalidades do tráfico de seres humanos, que passaram a englobar outras formas de exploração sexual. 43. Ibid., p. 158. 44. CUNHA, Bianca de Morais; PIMENTEL, Gabriela Regina. Tráfico internacional de mulheres no Brasil: panorama histórico. In: SMANIO, Gianpaolo Poggio et al. Mulheres invisíveis: panorama internacional e a realidade brasileira do tráfico transnacional de mulheres. Curitiba: Editora CRV, 2018, pp. 161-162. 45. Ibid., p. 162. 46. Ibid., p. 162. 47. Ibid., p. 162. A despeito desses avanços, foi somente em 2016, com a sanção da Lei nº 13.344, que o Brasil começou a contar com uma legislação específica a respeito do tráfico de pessoas. Referida lei constitui o marco legal para a prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, assim como para a adoção de medidas destinadas à proteção e assistência às vítimas desse crime. Ademais a Lei nº 13.344/2016 trouxe inúmeras alterações ao Código Penal48, as quais serão detalhadas a seguir. O artigo 13 da Lei 13.344/2016, inserido no Capítulo V, intitulado “Disposições Processuais”, acrescentou o artigo 149-A ao Código Penal, que definiu o tráfico de pessoas como o agenciamento, aliciamento, recrutamento, transporte, transferência, compra, alojamento ou acolhimento de pessoa, utilizando-se de grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso49. O referido artigo 149-A foi inserido no Capítulo VI, intitulado, “Dos crimes contra a liberdade individual” e representou uma mudança de paradigma no que diz respeito ao bem jurídico tutelado pelo crime ora em estudo. As legislações anteriores visavam tutelar a moralidade, o decoro e a dignidade sexual; já a legislação atual evidencia que o bem jurídico protegido não é apenas a moralidade, tampouco somente a liberdade sexual, mas sim a liberdade do indivíduo de maneira ampla. Essa mudança também pode ser observada ao analisarem-se as modalidades de tráfico de pessoas apresentadas pelo artigo 149-A. Para além da exploração sexual, o dispositivo legal contém outras quatro espécies de tráfico de seres humanos, a saber: I) remoção de órgãos, tecidos ou partes; II) trabalho em condições análogas à de escravo; III) servidão de qualquer natureza; e IV) adoção ilegal50. A partir da análise desses aspectos, pode-se concluir que a Lei nº 13.344/2016 acompanhou a tendência da legislação pregressa e manteve uma definição ampla para o crime de tráfico de pessoas. No que tange à interface entre esse delito e o trabalho escravo ou em condições análogas, observa-se que a legislação penal pátria incorporou o entendimento já prevalente em âmbito internacional de que ambas as práticas estão intimamente relacionadas. 48. Ibid., p. 163. 49. BRASIL. Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016. Dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas; altera a Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e revoga dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Brasília, DF. 50. BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Dispõe sobre o Código Penal. Brasília, DF. Apresentado esse breve histórico acerca da tipificação do crime de tráfico de pessoas pela legislação penal brasileira, a subseção seguinte visa abordar a evolução histórica do delito de redução à condição análoga à de escravo e analisar criticamente a relação que existe entre ambas as. 3.2 TIPIFICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO E SUA RELAÇÃO COM O TRÁFICO DE PESSOAS A redação original do artigo 149 continha uma definição imprecisa do delito em estudo, a qual limitava-se a conceituá-lo como “restringir alguém à condição análoga à de escravo”. Essa definição resultava em inúmeras lacunas que não refletia o espírito das Convenções da OIT ratificadas pelo País51. Na prática, para caracterizar o crime de redução à condição análoga à de escravo, era necessária a associação entre alguma forma de privação de liberdade (retenção de documentos pessoais, isolamento geográfico do local de trabalho, servidão por dívida, vigilância constante, por exemplo) e elementos das condições de trabalho (má alimentação, alojamentos precários, ausência de assistência médica e humilhações, por exemplo)52. Por essas razões, o referido artigo foi alterado pela Lei nº 10.803/2003, a qual estabeleceu quatro condutas para caracterizar o delito de redução à condição análoga à de escravo, quais sejam: I) submeter um indivíduo a trabalhos forçados; II) impor jornada de trabalho exaustiva; III) sujeitar alguém a trabalho em condições degradantes e IV) restringir a liberdade de locomoção do indivíduo devido à existência de dívida contraída com o empregador. Cabe ressaltar que o artigo 149 do Código Penal é um tipo penal misto alternativo, portanto, basta a ocorrência de uma das condutas para caracterizar o delito53. Ademais, o §1º do referido dispositivo legal equipara à redução à condição análoga à de escravo as três práticas seguintes: cercear o uso de qualquer transporte pelo trabalhador; manter vigilância ostensiva no local de trabalho e apoderar-se de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, todas com a finalidade de retê-lo no local de trabalho54. Em relação à interface entre trabalho escravo ou em condições análogas e tráfico de seres humanos, pode-se afirmar que, embora o 51. VASCONCELOS, Marcia; BOLZON, Andréa. Trabalho forçado, tráfico de pessoas e gênero: algumas reflexões. Cad. Pagu, Campinas, n. 31, p. 65-87, dez. 2008, pp. 76-78. 52. Ibid., p. 78. 53. Ibid., pp. 76-77. 54. Ibid., p. 77. aliciamento, o transporte e a recepção de trabalhadores e trabalhadoras seja uma prática comum em casos de tráfico, a caracterização do trabalho escravo não depende da ocorrência daquele55. Nesse sentido, o professor Mohsen Rezaeian56, da Universidade de Ciências Médicas de Rafsanjan, afirma que: Na literatura, o tráfico de seres humanos é considerado como uma forma de escravidão moderna, ou ao menos, como um subtipo desta. No entanto, do meu ponto de vista, deveria ser considerado um mediador da escravidão moderna. A intensão do tráfico de seres humanos é capturar pessoas e vendê-las a alguém que queira comprálas para utilizá-las em várias atividades que constituem a escravidão moderna. O objetivo desse comércio é obter ganhos econômicos. A escravidão moderna pode incluir prostituição, exploração sexual, trabalho forçado, trabalho escravo, trabalho forçado infantil, crianças soldados e remoção de órgãos [...] (tradução simples)57. Nesse excerto, Rezaeian apresenta um dos entendimentos atuais acerca da interrelação entre tráfico de pessoas e trabalho escravo e esclarece que o tráfico de seres humanos pode ser uma espécie de trabalho escravo. Essa perspectiva distingue-se daquela utilizada pela legislação pátria, a qual considera o trabalho escravo como uma modalidade de tráfico de pessoas. Embora as duas correntes partam de pressupostos distintos, resta evidente um ponto de convergência entre ambas: a existência de uma interface entre as duas condutas. Isso posto, resta ainda um questionamento sem solução: dentre os dois entendimentos, qual o mais adequado? A resposta a essa pergunta não é categórica. Ao refletir sobre as considerações de Rezaeian, conclui-se que a linha divisória entre o tráfico de seres humanos e o trabalho escravo ou em condições análogas é muito tênue. Por essa razão, o enfrentamento a ambas as práticas requer uma análise cuidadosa do caso concreto, tendo sempre em mente que um crime de tráfico de pessoas pode ocultar um delito de trabalho escravo e viceversa. 55. VASCONCELOS, Marcia; BOLZON, Andréa. Trabalho forçado, tráfico de pessoas e gênero: algumas reflexões. Cad. Pagu, Campinas, n. 31, p. 65-87, dez. 2008, p. 77. 56. REZAEIAN, Mohsen. The emerging epidemiology of human trafficking and modern slavery. Middle East Journal Of Business, v. 11, n. 3, pp. 32-37, jul. 2019, p. 32. 57. Original: Within literature human trafficking is considered as modern slavery or at the very least as a subtype of it. However, in my point of view, it should be more considered as a mediator for modern slavery. The ultimate intention of human trafficking is to capture humans and sell them to someone who wants to buy and abuse humans in one of the various types of modern slavery, for economic gain from such trade. Modern slavery may include: prostitution, sexual exploitation, forced labor, bonded labor, forced child labor, slavery, servitude, child soldiering, brides and removal of organs for economic gain. Conforme já está evidente, a discussão acerca do trabalho escravo e do tráfico de pessoas passa, necessariamente, por um estudo de normativas internacionais e do papel das organizações internacionais no enfrentamento dessas práticas. Por esses motivos, na próxima seção será analisado de que maneira a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável pode contribuir para esse fim. Para tanto, , será apresentado sucintamente o contexto de formação do referido documento e será desenvolvido um estudo mais detalhado acerca dos ODS pertinentes à temática deste trabalho. 4 AGENDA 2030: NOVOS HORIZONTES NO ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS E AO TRABALHO ESCRAVO A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável advém do engajamento de organizações internacionais para estabelecer uma agenda destinada a financiar o desenvolvimento sustentável durante o período compreendido entre 2015 e 2030. Para elaborar o referido documento, foram organizadas conferências e cúpulas internacionais durante a Rio +20, evento que originou o Relatório Global para o Desenvolvimento Sustentável (GRSD, sigla em inglês)58. Segundo o referido relatório, o objetivo central da Agenda 2030 é contribuir para o fortalecimento da interface entre ciência e política e fomentar o desenvolvimento sustentável. Para tanto, foram mobilizados pesquisadores de diversas áreas do conhecimento e oriundos de diferentes localidades do globo, a fim de propiciar uma ampla gama de conhecimentos acerca das ciências da sustentabilidade59. O resultado desse trabalho foi a elaboração do GRSD, o qual constitui-se em uma avaliação dos relatórios produzidos em 2014 e 2015 e busca explorar possíveis abordagens para se analisar a interrelação entre ciência e política. O documento também visa subsidiar políticas baseadas na integração entre diferentes setores que possuem propósitos distintos, de modo a dialogar acerca de questões relacionadas ao desenvolvimento sustentável60. A partir dos estudos desenvolvidos, a Agenda 2030 foi desenhada em torno de um tema central, a saber, “garantir que ninguém seja deixado para trás”. Essa temática possui dois pilares principais: a) ações focadas em 58. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Global sustainable development report. Nova York: Julho/2016, p. 1. 59. Ibid., p. 1. 60. Ibid., p. 1. grupos desfavorecidos, tais como mulheres e migrantes, e b) ações focadas na redução das desigualdades entre os países61. Com o intuito de auxiliar na abordagem da questão e na formulação dos objetivos previstos pela Agenda 2030 foram elaboradas quatro questões base a fim de auxiliar na identificação dos indivíduos deixados para trás e nas razões pelas quais o são, bem como para identificar métodos e mecanismos para alcançá-los e estratégias apropriadas para modificar essa realidade62. Diante do exposto até então, pode-se concluir que o principal objetivo da Agenda 2030 é fomentar o desenvolvimento em suas variadas dimensões e proporcionar um cenário em que nenhum indivíduo seja colocado à margem da sociedade. Para isso, pensou-se em três dimensões chave: enfrentamento da pobreza; busca da inclusão e enfrentamento das desigualdades. A seguir discorre-se brevemente acerca de cada uma dessas dimensões. A dimensão do enfrentamento à pobreza, tal qual ocorrera com os Objetivos do Milênio, permaneceu como ponto central na Agenda 2030 e relaciona-se diretamente aos ODS 1 (erradicação da pobreza), 8 (trabalho decente e crescimento econômico) e 10 (redução das desigualdades). A busca pela inclusão está relacionada com o empoderamento, com o princípio da não discriminação e com à necessidade de incluir todos os indivíduos nos processos sociais. A ideia transmitida é de que as pessoas devem ter oportunidades efetivas e voz para determinar o curso do desenvolvimento. Essa última dimensão faz-se presente nos ODS 5 (igualdade de gênero), 10 (redução das desigualdades) e 16 (paz, justiça e instituições eficazes)63. Por fim, a busca pela igualdade (ou enfrentamento às desigualdades) também ocupa uma posição de destaque na Agenda 2030. O enfrentamento às desigualdades parece como uma meta autônoma, prevista pelo ODS 10 e inscrito nos ODS 3 (saúde e bem-estar), 4 (educação de qualidade) e 5 (igualdade de gênero)64. De acordo com o GRSD, O conceito de igualdade apresenta duas dimensões tradicionais associadas à igualdade de resultados e igualdade de oportunidades. A igualdade de resultados pode ser observada em variados contextos e está relacionada à distribuição de bens e recursos. Já a igualdade de oportunidades refere-se a oferta de oportunidades semelhantes para que 61. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Global sustainable development report. Nova York: Julho/2016, pp. 3-4. 62. Ibid., p. 4. 63. Ibid., p. 4. 64. Ibid., p. 4. indivíduos ou segmentos da sociedade possam participar ativamente de processos decisórios que repercutam no desenvolvimento65. Depreende-se da leitura do relatório que para atingir a essa igualdade, é preciso superar barreiras explícitas e implícitas impostas por meio de legislações, práticas e costumes discriminatórios. Para além do significado tradicional, a igualdade pode ser entendida também como um caminho para empoderar grupos vulneráveis66. Tendo em vista essas considerações, percebe-se que o desenvolvimento sustentável inclui o desenvolvimento econômico e social, que por sua vez inclui o enfrentamento às desigualdades, à discriminação e a todas as formas de violência e violações de direitos. A partir disso, clarividente a importância da Agenda 2030 para o enfrentamento do tráfico de pessoas e do trabalho escravo, visando proteger os migrantes e garantir que estes gozem plenamente de seus direitos Diante disso, foram selecionados, dentre os 17 ODS da Agenda 2030, aqueles que apresentavam pertinência direta com a temática deste artigo. Escolheram-se, pois, o ODS 8 (trabalho decente e crescimento econômico) e 5 (igualdade de gênero). As subseções seguintes objetivam analisar criticamente o conteúdo dessas disposições, ressaltando a maneira como os ODS podem contribuir para o enfrentamento ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo. 4.1 TRABALHO DECENTE E CRESCIMENTO ECONÔMICO Segundo o disposto na Agenda 2030, o ODS 8 foi estabelecido com o intuito de incentivar a promoção do crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, do emprego pleno e produtivo e do trabalho decente para todos. Nesse sentido, estabelece uma série de metas que envolvem fomentar o incremento da renda per capta e do PIB nos países menos desenvolvidos, diversificar e agregar valor aos setores produtivos por meio de inovação tecnológica, e apoiar a formulação de políticas voltadas para o incentivo ao empreendedorismo e à inovação, geração de emprego decente e formalização de micro e pequenas empresas67. O referido ODS propõe ainda que sejam adotadas medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, bem como garantir de imediato a proibição e a eliminação das 65. Ibid., p. 5. 66. Ibid., p. 5. 67. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Disponível em: https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/. Acesso em: 20 jun. 2019. piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças soldado, e erradicar completamente qualquer modalidade de trabalho infantil até 202568. No que tange às pessoas em situação de migração, o ODS 8 estabelece que deve-se proteger os direitos trabalhistas e promover ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores, inclusive os trabalhadores migrantes e em especial as mulheres migrantes69. Da análise do ODS 8, conclui-se que a referida disposição busca garantir tanto os direitos dos migrantes que trabalham sob regime de contratação, quanto daqueles que, trabalhando como autônomos, deparamse com o empreendedorismo. Há também disposições voltadas para o combate e a prevenção do trabalho escravo e à garantia do trabalho decente, uma das principais violações de direitos às quais os migrantes estão sujeitos. Não se pode esquecer também do enfrentamento ao tráfico de seres humanos, visto que o esse crime é muitas vezes um caminho utilizado pelos agenciadores para promover o deslocamento dos indivíduos de seu local de origem até o local de destino. Assim, as metas estabelecidas pelo ODS 8 estão intimamente relacionadas entre si e possuem considerável relevância para o enfrentamento ao tráfico de pessoas e trabalho escravo. Retomando as considerações realizadas ao longo deste trabalho, não se pode fechar os olhos para as especificidades das mulheres migrantes, cujas trajetórias são marcadas pela questão do gênero. Diante disso, a próxima seção visa elucidar como o ODS 5(igualdade de gênero) relacionase com o enfrentamento ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo. 4.2 IGUALDADE DE GÊNERO O texto da Agenda 2030 ao enunciar o ODS 5 assim o faz: “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”. Esse intuito é reforçado já na primeira meta estabelecida pelo documento, a qual objetiva eliminar todas as formas de discriminação contra mulheres e meninas em toda parte70. Desse primeiro objetivo decorre uma série de metas que visam repercutir na esfera social e cultural. Como exemplos pode-se mencionara eliminação de todas as práticas nocivas contra a população feminina, tais como os casamentos prematuros e forçados e as mutilações genitais, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada na esfera familiar e a 68. Ibid. 69. Ibid. 70. Ibid. disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social que fomentem o reconhecimento e a valorização do trabalho doméstico e assistencial não remunerados71. No que tange especificamente ao enfrentamento do tráfico de pessoas, a Agenda 2030 estabeleceu como uma de suas metas a eliminação de todas as formas de violência contra mulheres e meninas tanto na esfera pública, quanto na privada, considerando inclusive o tráfico de seres humanos e a exploração sexual72. Analisando-se as metas fixadas pela Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, percebe-se que estas possuem elevado potencial para contribuir com o enfrentamento às violências sofridas pelas mulheres em situação de migração e para a melhoria das condições de vida e trabalho das mesmas. Ao pesquisar acerca das condições de vida e trabalho dos migrantes na capital paulista observou-se que, embora todos estejam sujeitos a inúmeras violações de direitos, as mulheres frequentemente são mais suscetíveis, em razão da própria condição feminina. Dessa feita, além de serem submetidas a trabalho em condições análogas à escravidão, estão expostas a outras formas de violência, como violência doméstica e exploração sexual. Os marcadores de gênero também se revelam na remuneração recebida por tarefas desempenhadas. Constatou-se ao longo da pesquisa que, mesmo nas atividades em que é atribuída uma pequena remuneração, costuma-se destinar para as mulheres atividades que, no entendimento corriqueiro, não exigem remuneração. Situações como as observadas durante esse estudo revelam que as mulheres migrantes estão duplamente vulneráveis e enfrentam não apenas as barreiras decorrentes da condição de migrantes, mas também aquelas típicas da condição feminina. Em outras palavras, ao estudar a migração feminina, percebe-se que existem inúmeras questões interseccionais que devem ser consideradas para uma correta compreensão do quadro. A pesquisa não evidenciou a ocorrência de tráfico de mulheres latino-americanas para fins de exploração sexual, tampouco apontou para o emprego de mão de obra infantil em qualquer das atividades analisadas. Tal conclusão, no entanto, não afasta a relevância da Agenda 2030 para o enfrentamento do tráfico de seres humanos e da exploração sexual, visto que essa é uma das principais formas de violência contra as mulheres e há décadas vem sendo combatida pelas legislações nacionais e internacionais. 71. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Disponível em: https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/. Acesso em: 20 jun. 2019. 72. Ibid. Em síntese, ao analisar os ODS 5 e 8 da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, conclui-se que o referido documento possui forte potencial e grande relevância para auxiliar no enfrentamento ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo. Isso ocorre porque seus objetivos foram pensados com a finalidade de repercutir nas diferentes dimensões sociais, respeitando as peculiaridades culturais de cada nação, e buscando combater a ocorrência de violações aos direitos humanos em nome do desenvolvimento. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho buscou investigar se existe relação entre os fenômenos de tráfico de pessoas e submissão de migrantes a trabalho escravo a partir de um recorte espacial que englobou a cidade de São Paulo. Também se investigou de que maneira os objetivos estabelecidos pela Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável contribuem para o enfrentamento dessas práticas. As questões de pesquisa foram respondidas e as hipóteses foram parcialmente confirmadas. Analisando-se os fluxos migratórios atuais na capital paulista, identificou-se um predomínio de migrantes latino-americanos oriundos principalmente da Bolívia e do Peru, os quais são acompanhados por refugiados sírios e africanos. Esses migrantes trabalham normalmente na informalidade e atuam principalmente na indústria têxtil e no comércio. Há também aqueles que trabalham em empreendimentos étnicos, com destaque para o setor gastronômico. As fontes utilizadas durante o desenvolvimento da pesquisa não permitiram apurar com profundidade as causas dos deslocamentos desses migrantes. Observou-se, ainda, que a maioria dos migrantes concentra-se na região central da cidade e no eixo que liga o centro à zona leste. Nessa região situam-se a maioria das indústrias têxtis, nas quais predomina o labor de bolivianos. Analisando-se a dinâmica laboral que impera nas oficinas de costura, nota-se que nesse setor predominam relações de submissão entre empregado e empregador, condições de trabalho precárias, jornadas abusivas, retenção de salário para custear dívidas (ou remuneração aquém daquela devida) e a informalidade, caracterizando trabalho análogo ao escravo. Outro elemento observado nas relações empregatícias é o predomínio de fatores culturais que legitimam uma série de violações aos direitos dos migrantes. Esse fator, somado às barreiras linguísticas, coloca esses indivíduos em situação de extrema vulnerabilidade. No caso das mulheres, existe ainda outro elemento: os marcadores de gênero. Durante a pesquisa, constatou-se que as mulheres que trabalham nas oficinas de costura são submetidas às mesmas dinâmicas de trabalho impostas aos homens e exigese delas a realização de tarefas domésticas. Além disso, nas sombras da indústria têxtil, as mulheres migrantes estão sujeitas à violência doméstica e violência sexual. Conclui-se, pois, que a despeito das peculiaridades da população feminina migrante, esta encontra-se exposta a violações de direitos bastante semelhantes àquelas vivenciadas pelas mulheres brasileiras. No que diz respeito ao desenvolvimento das normativas nacionais e internacionais acerca do tráfico de seres humanos e do trabalho escravo, observou-se um afastamento da vinculação do tráfico de pessoas da prostituição e da exploração sexual, bem como uma aproximação entre o delito de tráfico e o de trabalho forçado. Nesse aspecto, existem três entendimentos: o primeiro que entende o trabalho escravo como uma modalidade de tráfico de pessoas; o segundo que considera o trabalho escravo como uma espécie de tráfico de pessoas e o terceiro, o qual considera que o tráfico é um mediador do trabalho escravo. Considerando essas três correntes, é certo que existe uma relação entre o tráfico de seres humanos e o trabalho escravo. A maneira como tal relação se estabelece, porém, deve ser analisada caso a caso, tendo em vista os elementos da situação específica. Em relação às contribuições advindas da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, pode-se afirmar que o referido documento possui forte potencial para colaborar para o enfrentamento do tráfico de pessoas e do trabalho escravo. Ao estudar a Agenda 2030, observou-se que os ODS 5 (igualdade de gênero) e 8 (trabalho decente e crescimento econômico) possuem íntima relação com o enfrentamento dessas práticas. Tendo em mente o exposto neste trabalho, conclui-se que o enfrentamento ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo pressupõe uma visão abrangente acerca das particularidades que marcam as dinâmicas empregatícias desse grupo, assim como acerca das questões de gênero que permeiam não só a atividade laboral de mulheres migrantes, mas também todo o processo de deslocamento e integração no país de destino. REFERÊNCIAS BOTEGA, Tuila. Editorial: Por um olhar mais humano sobre as mulheres migrantes. Resenha: migrações na atualidade, v. 27, n. 105, p.2-3, nov. 2016. Trimestral. Disponível em: https://www.csem.org.br/wp-content/ uploads/2018/09/Resenha_n__105_-_Novembro_2016-1.pdf. em: 21 nov. 2019. Acesso BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Dispõe sobre o Código Penal. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 23 nov. 2019. BRASIL. Lei nº 13.344, de 06 de outubro de 2016. Dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas; altera a Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e revoga dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13344.htm. Acesso em: 23 nov. 2019. CASTRO, Sara Andréia da Silva; GASPAR, Renata Alvares. A condição do trabalhador migrante: interfaces entre globalização, migração e trabalho sob a perspectiva regional. In: BAENINGER, Rosana et al. Migrações Sul-Sul. 2. ed. Campinas, 2018. CUNHA, Bianca de Morais; PIMENTEL, Gabriela Regina. Tráfico internacional de mulheres no Brasil: panorama histórico. In: SMANIO, Gianpaolo Poggio et al. 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CAPÍTULO 5 NAS COSTURAS DE SÃO PAULO: OS IMPACTOS DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA NO TRÁFICO DE BOLIVIANOS PARA A INDÚSTRIA TÊXTIL NA CAPITAL BIANCA ISABELLE LOURENÇO DE SOUSA DA SILVA Graduanda em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Interesse na área de pesquisa de Direito Internacional. Atualmente estagiária na área contratual cível e trabalhista empresarial. Atuou como pesquisadora discente voluntária no projeto de pesquisa “Pessoas invisíveis: panorama internacional e realidade brasileira do tráfico transnacional de pessoas”. INTRODUÇÃO O presente trabalho visa discutir as mudanças ocorridas na imigração boliviana na cidade de São Paulo, primordialmente para o trabalho na indústria têxtil. Inicia-se o debate pela contextualização histórica da imigração boliviana em massa ao Brasil, distinguindo dois grandes fluxos migratórios que ocorreram entre os países e suas principais características. O primeiro, decorrente de um acordo entre Brasil e Bolívia para intercâmbio educacional; o segundo, originado de uma extrema pobreza, quando houve um grande deslocamento de bolivianos para São Paulo na década de 1980 em virtude de uma crise econômica que assolava a Bolívia. É neste segundo êxodo que se trata as qualidades do imigrante boliviano utilizado como mão de obra: suas origens, idade, gênero e forma de aliciamento. Na segunda parte, se aborda as relações entre a indústria de fashion law (considerado o Direito nas relações da indústria da moda) e a mão de obra análoga à escravidão. É abordado o histórico da indústria têxtil no Brasil, sua ascensão no mercado interno e internacional, o destaque que ocorreu particularmente no Estado de São Paulo durante o século XX, com levantamento de questões concorrenciais e precarização do setor. Quando houve crises econômicas no setor, derivadas de políticas que buscavam proteger a indústria nacional e assim fechou os portos para produtos externos ocorridas na primeira metade do século; como também a forma que a indústria nacional teve de se reinventar para continuar o jogo comercial econômico com grandes empresas estrangeiras. Diante deste contexto, aborda-se como ocorreu a precarização das oficinas de costura que levam ao trabalho análogo à escravidão. No terceiro tópico, foram elencadas as legislações nacionais e internacionais que tem como objetivo a repressão e combate ao trabalho escravo e tráfico de pessoas no país. Demonstrou-se os efeitos que os referidos diplomas legais têm surtido em escala nacional, como a criação de planos de ação nos âmbitos federais, estaduais e até municipais para a erradicação do tráfico de pessoas e trabalho escravo, mudança que pode ser percebida essencialmente após a incorporação do Protocolo de Palermo pelo Brasil. Aborda, também, quais as modificações e adaptações que o ordenamento jurídico pátrio sofreu ao incorporar tratados internacionais que procurem versar sobre o tema em apreço. Logo após, se demonstra o Plano Municipal para a Erradicação do Trabalho Escravo, criado pela prefeitura da cidade de São Paulo, que delimita um plano de ações a serem tomadas por equipes compostas de órgãos oficiais, organizações não governamentais e associações de classe para enfrentar o problema. Neste capítulo, discute-se também a efetividade do plano e questão, com a demonstração dos resultados parciais trazidos por seus membros. Por fim, nota-se que, apesar de haver de fato esforços para buscar erradicar o tráfico de seres humanos da América Latina para exercerem trabalho análogo à escravidão, no Brasil, depende de uma grande articulação dos entes federativos em conjunto. 1 MIGRAÇÃO BOLIVIANA PARA SÃO PAULO: ORIGENS E ALICIAMENTO A despeito de haver registros de migração boliviana no Brasil desde o século XIX, especialmente em regiões de fronteira, é certo que esse fluxo migratório adquiriu grande expressividade somente na segunda metade do século XX.1 Tal deslocamento massivo pode ser dividido em 1. SILVA, Sidney Antonio da. Bolivianos em São Paulo: entre o sonho e a realidade. Estud. av., São Paulo, v. 20, n. 57, p. 157-170, Ago. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acessado duas grandes fases: a partir da década de 1950, sob a influência de um acordo de intercâmbio cultural firmado entre Brasil e Bolívia; e a partir da década de 1980, em busca de melhores condições de trabalho.2 Em suma, os bolivianos migrantes da década de 1950 eram estudantes intercambistas, que se alocaram em sua maior parte na região do Mato Grosso do Sul, especialmente na cidade de Corumbá, espalhando um pouco à região sudeste, em São Paulo e no Rio de Janeiro. A medida em que esses estudantes acabam seus respectivos cursos, muitos permaneciam ainda no Brasil uma vez que já haviam construído suas vidas no país. Já o boliviano migrante da década de 1980 possuía qualificações muito mais precárias que o estudante de 1950: este segundo caso trata-se de pessoas em grande nível de pobreza que buscavam no Brasil uma oportunidade para melhorarem sua condição econômica e de sua própria família. Os imigrantes bolivianos preferiam deixar um país majoritariamente agrário que passava por graves recessões econômicas – mesmo ao considerar que a década de 1980 também foi um período de recessão para o Brasil. Por maioria, instalaram-se na cidade de São Paulo, em subempregos principalmente na indústria têxtil.3 Se trata de jovens, homens e mulheres, predominantemente oriundos da região do altiplano andino, solteiros, que procuram realizar um sonho, alimentado pela falsa promessa de bons salários e qualidade de vida. Assim, a partir do momento em que efetivamente se instalam no país, as famílias desses imigrantes passam a migrar também, elevando assim ao processo de reunificação familiar.4 Já em terras brasileiras, os bolivianos encontraram sua fonte de renda principalmente nas indústrias e pequenas oficinas de costura. A exploração da mão de obra boliviana na indústria têxtil inclusive não foi por acaso: primeiro e principalmente, por se tratar de segmento que não exige prévia experiência e baixos custos de produção, uma vez que se baseia na quantidade de produto produzido individualmente; segundo, em razão da tradição histórica no tear predominante nos povos andinos5. É importante entender também sob quais aspectos os migrantes bolivianos chegam até o Brasil. Em decorrência da baixa qualidade de 2. 3. 4. 5. em 21 nov. 2019, p. 159. Ibidem, p. 160. Ibidem, p. 159-160. Ibidem, p. 159-160 MATIAS, Jéssica Carreiro. Migrações contemporâneas e trabalho em condição análoga à de escravo: os imigrantes bolivianos na indústria têxtil em São Paulo. 2016. 91 f. Tese (Bacharel) - Curso de Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2016. Disponível em: https:// bdm.unb.br/bitstream/10483/16207/1/2016_JessicaCarreiroMatias_tcc.pdf. Acesso em: 28 nov. 2019, p. 74 vida econômica, muitos bolivianos não têm a possibilidade de arcar com os custos de toda a viagem. É nesse sentido que os bolivianos buscam os serviços de “traficante de migrantes”, ou seja, a pessoa que auxilia os imigrantes que de fato possuem a vontade de emigrar, para que possam fazer uma travessia mais segura e barata. Ainda assim, os “gatos”, como assim podem ser chamados, foram acusados de resgatar valores baixos apenas no intuito de realizar a travessia. A principal diferença entre o tráfico de migrantes e o tráfico de pessoas reside no entendimento do que é consentimento. Os bolivianos que buscam os serviços do traficante de migrantes atravessam a fronteira ao Brasil por sua própria vontade, mesmo que em viagem extremamente longas devido ao baixo custo. Já o traficante de pessoas busca recrutar, transportar, transferir ou alojar as pessoas, mediante coerção ou fraude: entretanto, desconsidera a característica do fornecimento porque efetivamente tomou uma atitude não fraudulenta6. Nesse sentido, o aliciador faz promessas de trabalho e pagamento de salários ao imigrante, arca com todos os custos da viagem e alimentação do trajeto, que na verdade se tornam dívidas das quais o imigrante não poderia pagar, para controlar seu tempo7. Para se explicar a migração boliviana para São Paulo para o trabalho na indústria têxtil, é imprescindível que se entenda a migração coreana para o mesmo setor8. Incentivada pelo governo sul coreano em consequência do problema da superpopulação, a migração dessa comunidade para a América Latina teve seu início na década de 1960. Com pouca experiência em atividades rurais, parte dos imigrantes se inseriram no setor de confecções, em trabalhos mal remunerados e com grandes dívidas para suprir sua subsistência no novo país. A partir da década de 1970, é possível notar uma nova leva de imigrantes sul coreanos já com um maior acúmulo de capital, que vieram a fim de investir no setor têxtil já iniciado por seus familiares. Neste sentido, a população sul coreana passa a se instalar majoritariamente em São Paulo com o intuito de prosseguir o trabalho na indústria da confecção, além de outras regiões da América Latina9. Com 6. 7. 8. 9. Ibidem, p. 73-74. Ibidem, p. 75. WEBER, Nicole Garske; SOUZA, Lucas Nader de. Migrações e gênero: análise à luz da incidência do tráfico de pessoas para fins de exploração laboral no Brasil. Anais eletrônicos do VII Seminário Corpo, Gênero e Sexualidade, do III Seminário Internacional Corpo, Gênero e Sexualidade e do III Luso-Brasileiro Educação em Sexualidade, Gênero, Saúde e Sustentabilidade [recurso eletrônico] / organizadoras, Paula Regina Costa Ribeiro... [et al.] – Rio Grande : Ed. da FURG, 2018. Disponível em: http://www.7seminario.furg.br/ http://www. seminariocorpogenerosexualidade.furg.br/ ISBN:978-85-7566-547-3 PRETULAN, Renata Barreto. Mobilidade e classes sociais: o fluxo migratório boliviano para São Paulo. o fim oficial ao incentivo à migração coreana pelo governo nacional, os migrantes entraram no país pela fronteira com a Bolívia, onde começam a recrutar trabalhadores nativos para suas oficinas em São Paulo10. Contudo, a partir da década de 1990, a relação entre bolivianos e coreanos começa a se distanciar. A comunidade coreana passa a ganhar destaque por seu sucesso no vestuário nos bairros do Brás e Bom Retiro, enquanto a comunidade boliviana passa a se mostrar como exploradores de seus compatriotas também. Agora parte dos bolivianos são “oficinistas” (donos das oficinas de costura), na qual submetem outros bolivianos ao trabalho superexplorado nas pequenas indústrias de vestuário na cidade de São Paulo11. Na atualidade, o aliciamento de bolivianos para a exploração laboral na indústria têxtil paulista se faz diretamente entre o migrante e o seu empregador, inclusive com a atuação presencial em viagens à Bolívia por parte dos aliciadores. O aliciador ludibria o nativo, no qual se firma um contrato de trabalho verbal e a viagem é custeada pelo próprio patrão. A partir daí, o migrante chega à São Paulo com uma dívida muito alta a pagar ao seu patrão referente às despesas de sua viagem e estadia, na qual terá de trabalhar para ele a fim de quitá-la12. Aqui importa salientar que a definição de tráfico humano é caracterizada também pelo tráfico consensual, em razão de fraude, conforme alínea “a” do Artigo 3, do Protocolo de Palermo13. Destaca-se, portanto, que a falsa promessa feita pelos aliciadores aos bolivianos em seu local de origem não se trata de um simples anúncio de emprego, mas sim se tráfico internacional de pessoas. Os trabalhadores imigrantes, então, são submetidos a um regime de exploração laboral em condições degradantes, com baixos salários e uma grande dívida a quitar com seus patrões, jornadas exaustivas muito superiores ao limite legal, além de viverem em condições precárias de 10. 11. 12. 13. Orientador: Brasílio João Sallum Junior. São Paulo, 2012. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de Sociologia. Área de concentração. Sociologia. p. 76. Disponível em https://www.teses.usp.br/ teses/disponiveis/8/8132/tde-11062013-105409/publico/2012_RenataBarretoPreturlan.pdf. Acesso em 30 nov. 2019. Ibidem, p. 77. FREITAS, Patrícia Tavares de. Imigração boliviana para São Paulo e o setor de confecção: Em busca de um paradigma analítico alternativo. Campinas: Núcleo de Estudos de População (Nepo) Unicamp, 2012, p. 162. Disponível em: <https://www.nepo.unicamp.br>. Acesso em: 14 nov. 2019. SILVA, op. cit., p. 160. BRASIL. Decreto n.º 5.017, de 12 de março de 2004. “Protocolo de Palermo”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5017.htm>. Acesso em 01. dez. 2019. higiene e moradia. Em sua maioria, no início da migração boliviana em São Paulo a partir da década de 1980, os imigrantes passaram a povoar os bairros das regiões centrais da capital paulista, principalmente nas regiões nas quais se inserem a maior parte das indústrias têxteis. Ao longo dos anos, a comunidade se expandiu ocupando cidades satélites e cidades do interior do Estado, como Santo André, Diadema, Jundiaí e Americana14, sendo um dos motivos a atuação massiva do Ministério Público e da Polícia Federal nas regiões centrais da capital paulista. 2 INDÚSTRIA TÊXTIL E FASHION LAW: A HISTÓRICA MÃO DE OBRA ANÁLOGA À ESCRAVA A atividade têxtil no Brasil é observada desde os povos nativos que aqui viviam. Nos primeiros registros dos navegadores portugueses, já se afirmava que foram aqui encontradas mulheres que carregavam seus filhos em panos, além de esteios de fios entrelaçados nas casas nos quais as pessoas se penduravam15. Durante a colonização do país, as regiões Norte e Nordeste tiveram significativo crescimento com a monocultura de algodão e o início de um processo de industrialização. Após a chegada da família real e sua instalação na cidade do Rio de Janeiro, em 1808, as indústrias manufatureiras de tecido e algodão passaram a migrar para a região sudeste do país: sobretudo nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Anos mais tarde, uma normativa do Estado taxou as importações, estagnando o crescimento industrial no país – reverberando, portanto, na indústria têxtil. Ao fim do século XIX e a reabertura dos portos, o setor de confecção voltou a crescer ante a possibilidade de importação de maquinário necessário para sua produção. O Brasil se tornou grande exportador de algodão, com um significativo crescimento no Estado de São Paulo, tornando-se o maior polo industrial do país16. O setor de tecelagem sofre duas grandes recessões ao longo do século XX: a primeira, após a I Guerra Mundial, pela falta de exportação; e a segunda, na década de 1930, em que se considera a hipótese de ter sido causada por uma obsolescência da tecnologia utilizada no ramo. Na década de 1970, há a entrada de grandes investidores estrangeiros no país. Nos anos de 1980, no entanto, o país passava por grande crise econômica, que 14. SILVA, op. cit., p. 160. 15. FUJITA, Renata Mayumi Lopes; JORENTE, Maria José. A indústria têxtil no Brasil: uma perspectiva histórica e cultural. Modapalavra, Florianópolis, v. 8, n. 15, p.153-174, jul. 2015. Semestral. Disponível em: <http://www.revistas.udesc.br/index.php/modapalavra/article/ view/5893>. Acesso em: 03 dez. 2019, p. 158. 16. Ibidem, p. 161-162. ricocheteou em diversos setores comerciais e industriais – inclusive o têxtil. É nesse aspecto que o ramo se vê fragilizado, tecnologicamente atrasado em comparação às grandes potências e pouco exportador. A qualidade ultrapassada do maquinário utilizado perdurou pelos anos de 1990, de modo que as pequenas fábricas possuíam poucas chances de sobreviver ante as grandes indústrias de capital internacional. Neste sentido, a indústria do vestuário buscou elevar a eficiência produtiva e o trabalho a fim de concorrer com a grandes empresas asiáticas instaladas17. A carência de investimentos que ocorreu nos anos 1980, em virtude da estagnação econômica registrada dos primeiros anos até 1983, bem como a continuidade dos desequilíbrios, que persistiu no resto da década, tiveram papel fundamental para o cenário econômico em que se encontrava a indústria quando se iniciou o processo de abertura comercial. A indústria têxtil foi um dos setores que mais sofreu com a crise que desencadeou a obsolescência do parque industrial brasileiro, gerando um gap tecnológico em relação ao mundo, e, principalmente, em relação aos países asiáticos, que se tornaram grandes produtores e exportadores, criando sérias dificuldades para esta indústria no Brasil no período seguinte, por ocasião da abertura comercial.18 O mercado industrial têxtil nacional não possuía estrutura bastante para enfrentar a concorrência de produtos importados, o que culminou no fechamento de muitas fábricas de tecidos e sintéticos. A abertura comercial se deu como medida econômica para tentar reduzir os efeitos da crise advinda dos anos de 198019. As empresas situadas nos bairros centrais da cidade de São Paulo passaram a reduzir o tamanho de suas plantas, para investir numa produção diversificada em pequena escala, alavancando o valor agregado do setor de produção de vestuário no Brasil. Entretanto, da reestruturação supramencionada, houve uma cisão entre as empresas que se ocupavam da modelagem, desenho e criação das roupas; e as empresas que se ocupavam diretamente da confecção e costura das peças, de forma a terceirizar este último serviço. As oficinas de produção em pequena escala diminuíram seu tamanho para se adequar aos novos moldes e, por consequência, demitiram seus empregados a medida em que não mais havia espaço para seu trabalho. Em contrapartida, as oficinas de confecção e costura passam para a 17. Ibidem, p. 163-166. 18. KON, Anita; COAN, Durval Calegari. Transformações da Indústria Têxtil Brasileira: A Transição para a Modernização. Revista de Economia Mackenzie, São Paulo, v. 3, n. 3, p.11-34, 25 jun. 2009. Disponível em: <http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/rem/article/ view/774>. Acesso em: 04 dez. 2019. 19. Ibidem. informalidade, empregando esses trabalhadores que antes faziam parte do sistema de produção, em instalações precárias e informais20. Desta forma, para baratear os custos e, assim, poder concorrer com grandes indústrias que produzem peças em larga escala, a indústria têxtil nacional pouco modernizada se vale da subcontratação – ou seja, da terceirização – para a produção de suas mercadorias. É a partir desta contratação indireta que se encontram os abusos em relação aos trabalhadores do setor. É por trás dessa prática empresarial que se escondem os migrantes precarizados, não raramente em situação irregular no país21. Marcada pela utilização do “sistema de suor”, a indústria da moda paulista cresce sobre o lucro advindo da redução de trabalhadores à condição análoga à escravidão. O termo “sistema de suor”, tentativa de tradução da expressão em inglês sweat system, é um método em oposição ao sistema fabril, no qual consiste num fracionamento da cadeia produtiva em microempresas que concorrem entre si, ignorando normas laborais e assim criando condições indignas aos seus trabalhadores. É a situação de precariedade do trabalho pouco modernizado, no qual os trabalhadores são submetidos a condições degradantes para poder produzir as mercadorias da empresa na qual estão inseridos. Muito comum no ramo da confecção, no qual os trabalhadores frequentemente são remunerados por cada peça feita e, assim, tendo metas intangíveis para cumprir o número de peças em um determinado prazo. A remuneração está diretamente ligada à produtividade do trabalhador na oficina de costura, o que tem como consequência jornadas de trabalho exaustivas, em confinamentos onde não se pode deixar a máquina por períodos longos22. No Brasil, este fenômeno do “sistema de suor” normalmente está relacionado às indústrias têxteis, por ser prática comum no ramo de vestuário que atende ao varejo. Entre outras características, é comum que imigrantes em situação irregular sejam submetidos a essas práticas, aliada à servidão por dívida em razão do patrocínio, por parte do patrão, na viagem desse migrante para trabalhar em sua oficina23. 20. RIZEK, Cibele Saliba; GEORGES, Isabel; SILVA, Carlos Freire da. Trabalho e imigração: uma comparação Brasil-Argentina. Lua Nova, São Paulo, n. 79, p. 111-142, 2010 Disponível em: <http://www.scielo.br> Acesso em 05 dez. 2019. 21. BIGNAMI, Renato. Trabalho escravo na indústria da moda: o sistema do suor como expressão do tráfico de pessoas. Revista de direito do trabalho, São Paulo, SP, v. 40, n. 158, p. 35 -59, jul./ago. 2014. Disponível em: <https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/94673>. Acesso em 06 dez. 2019, p. 17. 22. Ibidem, p. 5. 23. Ibidem, p. 14. Importa destacar também o que se entende como mão de obra escrava contemporânea. Há uma questão técnico-terminológica que diferencia a mão de obra análoga à escravidão da escravidão propriamente dita: haja vista não se permitir mais a possibilidade jurídica de se ter um escravo, de exercer o direito de propriedade sobre um ser humano. Atualmente não há, portanto, o trabalho escravo – mas sim análogo ao escravo. O aliciamento é feito por falsas promessas, ameaças de deportação, confisco de documentos, limitação da liberdade de ir e vir – mas não necessariamente seu cerceamento por completo24. Não há, aqui, a compra e venda do ser humano, reduzindo-o a condição máxima de objeto, como havia na escravidão dos séculos XVI ao XIX. A definição do trabalho forçado contemporâneo guarda suas características nas jornadas exaustivas muito além do permitido, ambiente de trabalho sem a mínima condição de higiene e ergonomia, entre outros aspectos.25 Além da clara e direta violação à dignidade da pessoa humana e aos direitos trabalhistas básicos, a redução do trabalhador à condição de trabalho análogo à escravidão configura não só numa prática criminosa26, como também numa prática anticoncorrencial, em fenômeno denominado como “dumping social”. A prática de dumping, do ponto de vista econômico, se enquadra na situação da oferta de um produto no comércio estrangeiro, em outro país, em preço inferior ao praticado naquela ou em outras regiões para o mesmo produto, no intuito de dominar aquele sistema de mercado27. O conceito de dumping social, portanto, é entendido como o desrespeito contínuo de direitos trabalhistas no ímpeto de se obter uma vantagem econômica sobre a sua concorrência. Confere-se, portanto, numa agressão ao estado democrático de direito social, como também uma agressão à livre concorrência28. 24. KEMPFER, Marlene; MARTINS, Lara Caxico. Trabalho escravo urbano contemporâneo: o trabalho de bolivianos nas oficinas de costura em São Paulo. Revista do Direito Público, [s.l.], v. 8, n. 3, p.77-102, 12 dez. 2013. Universidade Estadual de Londrina. http://dx.doi. org/10.5433/1980-511x.2013v8n3p77. 25. MARTINS; KEMPFER, op. cit., p. 91. 26. Conforme os artigos 149 e 149-A do Código Penal, que tratam, respectivamente, do crime de redução análoga à de escravo; e tráfico de pessoas (Decreto-Lei n.º 2.848/1942. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em 05 nov. 2019). 27. FRANCO, Claudia Regina Lovato. Mestrado em Direito. [et al]. Brasília: ESMPU, 2017. 5 t. (Séries Pós-Graduação; v. 5), p. 106. 28. Ibidem, p. 107. 3 IMPACTOS DA NORMA BRASILEIRA FEDERAL E LOCAL: O QUE MUDOU PARA OS MIGRANTES? É importante perceber o impacto cultural que a comunidade boliviana no Brasil sofreu ao longo dos anos 1980 até 2017, uma vez que o país tratava a situação do migrante sob a égide do Estatuto do Estrangeiro (Lei n.º 6.815 de 1990)29. Não havia políticas públicas que buscassem incluí-los, além de serem frequentemente tratados como uma ameaça. (...) inúmeros relatos de pessoas que passam por situações constrangedoras e humilhantes, pois não há uma política pública voltada à questão do atendimento ao imigrante. Dessa forma, muitas vezes, eles não são atendidos em hospitais e unidades básicas de saúde por não conseguirem explicar o que necessitam e por não existirem pessoas habilitadas e preparadas para essa demanda, ou ainda, a assistência é negada com base em seu status migratório30. O Estatuto do Estrangeiro, promulgado em 1981, reflete o contexto de guerra fria que assolava o mundo inteiro na época. Buscava, em verdade, proteger o cidadão brasileiro do “risco” do qual se acreditava que a população estava exposta com a comunidade não brasileira. O referido diploma legal pautava seus dispositivos no princípio da segurança nacional, nos interesses políticos, culturais e socioeconômicos brasileiros, como também na proteção ao trabalhador nacional.31 Em vista dessa cultura protecionista, os imigrantes bolivianos que trabalhavam em São Paulo nas oficinas de confecções em condições degradantes não buscavam auxílio de nenhuma autoridade, nem buscavam fazer denúncias, em razão do medo da deportação, uma vez que a sua permanência no país estava em situação irregular.32 Em âmbito internacional, o Brasil é signatário de diversos documentos que tratam não apenas do tráfico de pessoas, como também do trabalho análogo à condição de escravo. Dentre estes, encontra-se a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, incorporado 29. BRASIL, Lei n.º 6.815/1980. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/ L6815.htm, acesso em 29 nov. 2019. 30. ILLES, Paulo. Tráfico de Pessoas para fins de exploração do trabalho na cidade de São Paulo. Cadernos Pagu, n. 31, p. 199-217, 11 abr. 2016. Disponível em: <https://periodicos.sbu. unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8644878>. Acesso em: 03 dez. 2019. 31. ISHIKIRIYAMA, Anne. A condição jurídica do estrangeiro no Brasil. Monografia de Trabalho de Conclusão de Curso de Dirieto da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2005. Disponível em https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/10141/10141.PDF. Acesso em 29, nov. 2019, p. 5. 32. BIGNAMI, Renato. O tráfico de pessoas no setor têxtil, em NOGUEIRA, Christiane V.; NOVAES, Marina; BIGNAMI, Renato. Tráfico de pessoas: reflexões para a compreensão do trabalho escravo contemporâneo. 2014, 1. Ed. São Paulo, Paulinas. 2014, p. 187. pelo Brasil mediante o Decreto sob o n.º 5.015 de 200433, doravante denominado por sua sigla em inglês como “UNODC”, e suas alterações. Também foram realizadas algumas convenções da Organização Internacional do Trabalho (“OIT”), que versam sobre esse assunto. Neste sentido se encontra a Convenção n.º 97, que trata sobre a situação de Trabalhadores Migrantes em países diversos que o seu de origem34, como também a Convenção n.º 182 e a Recomendação n.º 190, ambas incorporadas ao ordenamento jurídico pátrio através do Decreto de n.º 3.597 de 2000, que dispõem sobre a proibição das piores formas de trabalho infantil35. Um dos dispositivos legais mais importantes do início da década de 2000 sobre o tema com certeza foi o “Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças”, popularmente conhecido como “Protocolo de Palermo”. O referido diploma foi consubstanciado no ordenamento jurídico pátrio pelo decreto n.º 5.017 de 2004. A adesão do Brasil ao Protocolo de Palermo resultou em grandes ações que puderam crescer, ainda que minimamente, no impulso de combater e erradicar o tráfico de pessoas dentro do país. Foi nesse sentido que se criou o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (“PNETE”), por meio do Decreto n.º 5.948/2006, com 58 metas destinadas a prevenir, reprimir e responsabilizar o crime de tráfico humano no Brasil. Dividido em eixos de trabalho, possui o objetivo de estabelecer diretrizes para reduzir e combater as ocorrências desse crime em âmbito nacional36. Ao admitir-se que o tráfico de pessoas e o trabalho escravo são crimes correlatos, uma vez que o tráfico de pessoas é um crime que busca atingir um fim – sendo esse, a exploração da vítima – é importante notar também a criação do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, a nível federal. O referido plano apresenta medidas a serem cumpridas por órgãos 33. BRASIL. Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004. Promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Brasília, DF, Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5015.htm. Acesso em: 30 nov. 2019. 34. BRASIL, Câmara dos Deputados. Convenção n.º 97 da Organização Internacional do Trabalho. Disponível em https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/ comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-externa/ ConvOITTrabMig.html, acesso em 30 nov, 2019. 35. BRASIL, Decreto n.º 3.597, de 12 de setembro de 2000. Disponível em http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto/D3597.htm. Acesso em 25 nov. 2019. 36. BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Com 58 metas, plano nacional contra tráfico de pessoas mobiliza governo e sociedade. Disponível em https://www.justica.gov. br/news/collective-nitf-content-1564776536.05. Acesso em 05 dez. 2019. dos três poderes, pela sociedade civil e pela classe empresarial do país. Como uma das medidas de ação, foi criado um sistema de monitoramento do trabalho escravo desenvolvido pela Organização Não Governamental Repórter Brasil, o monitor tem como finalidade identificar as ações realizadas para o cumprimento deste Plano. A pesquisa é feita em cada um dos 5 eixos estabelecidos, com indicadores traduzidos em perguntas que são enviadas anualmente às organizações responsáveis para responde-las e assim verificar o que houve de avanço em cada um deles37. Um destaque do PNETE é oriundo do Grupo Especial de Fiscalização Móvel: a chamada “lista suja” elaborada pelo Ministério Público do Trabalho38. Criado pela portaria n.º 540, de 19 de outubro de 2004, hoje reformada pela Portaria Interministerial n.º 4, de 11 de maio de 2016, a lista em questão publica os nomes dos empregadores que se utilizaram diretamente de mão de obra análoga ao trabalho escravo. Em ação paralela, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo promulgou a lei n.º 14.946/2013, que estabelece a cassação do cadastro de contribuintes do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Intermunicipal e Interestadual (ICMS) a qualquer empresa que faça uso de trabalho escravo, ou de trabalho análogo ao escravo.39 A aplicação da legislação paulista pode ocorrer, por exemplo, no caso referente à empresa M5 Indústria e Comércio, detentora da marca “M. Officer”, que foi condenada em segunda instância por se beneficiar de trabalho análogo à escravidão em sua cadeia produtiva. A legislação determina cassação do cadastro tributário pelo período de 10 (dez) anos após a decisão em 2ª instância, a partir da abertura de procedimento administrativo na Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo40. Como consequência, a referida empresa não poderá mais atuar comercialmente no Estado de São Paulo. Por fim, nos anos de 201641 e 2017, houve a publicação de duas importantes legislações sobre o tema: a primeira, lei n.º 13.344, regulamenta 37. BRASIL Monitoramento do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escavo. Disponível em: https://www.monitoramentopnete.org.br/. Acesso em: 05 dez. 2019. 38. BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DOS DIREITOS HUMANOS. . II Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. 2008. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/ documentos/novoplanonacional.pdf. Acesso em: 25 nov. 2019, p. 12. 39. ESTADO DE SÃO PAULO. ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Lei n.º 14.946, de 28 de janeiro de 2013. Disponível em https://www.al.sp.gov.br/ repositorio/legislacao/lei/2013/lei-14946-28.01.2013.html. Acesso em 04 dez. 2019. 40. O ESTADO DE S. PAULO (São Paulo/sp). Justiça mantém condenação da M. Officer por trabalho escravo. 2018. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,decisaomantem-condenacao-da-mofficer-por-trabalho-escravo,70002240222. Acesso em: 04 dez. 2019. 41. BRASIL. Lei n.º 13.344, de 06 de outubro de 2016. Disponível em .http://www.planalto.gov. o combate e como as instituições públicas devem tratar o tráfico de pessoas; a segunda, Lei de Migração42, n.º 13.445, a qual modifica a perspectiva que a sociedade civil possui do imigrante que chega ao Brasil procurando por melhores qualidades de vida. O protocolo de palermo define que os Estados-membros tipifiquem em sua legislação a prática de tráfico de pessoas como crime. Nesse sentido, foi adicionado ao código penal os artigos 231 e 231-A, que limitava o crime de tráfico de pessoas exclusivamente à prática da exploração sexual. Contudo, é importante notar que, de acordo com o relatório da UNODC divulgado no ano de 2016, a maior parte do tráfico humano se destina à exploração do trabalho de suas vítimas, ao chamado de “trabalho forçado” ou “trabalho escravo”43. Em razão dessa lacuna existente na legislação brasileira que, com o advento da Lei n.º 13.344 de 2016, foram revogados ambos os dispositivos supracitados do Código Penal, bem como inserido o art. 149-A, que alarga a definição do tipo penal “tráfico de pessoas” para as hipóteses de escravidão, servidão, adoção ilegal e remoção de órgãos44. Podemos notar o impacto do medo imposto pelo patrão da situação irregular dos trabalhadores no caso a seguir: Malena Aruquipo Rios, boliviana natural de El Alto, conta sua experiência enquanto migrante e trabalhadora da indústria têxtil na cidade de São Paulo. Malena veio ao Brasil com 20 anos de idade, a fim de trabalhar aqui pelo período de um ano para acumular o dinheiro necessário para voltar à Bolívia e estudar, ou abrir seu próprio negócio. Conta que seu primeiro trabalho se deu em uma oficina de costura no bairro do Tucuruvi, na Zona Norte da capital. Começava a sua jornada às 7h da manhã e terminava as 3h da madrugada. Suas atividades consistiam em: costurar, cuidar das crianças, cozinhar e arrumar a oficina. Passou seis meses trabalhando nessas condições e seu único pagamento foi a quantia de R$ 50,00 (cinquenta reais). Recebia ameaças constantes de sua patroa, que dizia que iria entregar-lhe à imigração, como tentativa de coagi-la a não deixar a oficina. Conseguiu uma oportunidade em outra oficina, que desta vez pagava o valor de R$ 130,00 – entretanto, não havia o que comer na oficina, motivo pelo qual chegou a passar fome. A boliviana br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13344.htm. Acesso em 01 dez, 2019. 42. BRASIL. Lei n.º 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Disponível em. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm. Acesso em 01 dez, 2019. 43. OLIVEIRA, Gabriel Henrique de Lima; OBREGON, Marcelo Fernando Quiroga. Contra o tráfico de pessoas no Brasil (Lei 13.344/2016) à luz do Protocolo de Palermo: avanços e retrocessos. Derecho y Cambio Social, Lima, v. 1, n. 55, p.501-525, 01 jan. 2019. Disponível em: https://lnx.derechoycambiosocial.com/ojs-3.1.1-4/index.php/derechoycambiosocial/ article/view/39. Acesso em: 12 dez. 2019. 44. OLIVEIRA; OBREGON, op. cit., p. 16. afirma também ter trabalhado em outras oficinas, nos bairros do Bom Retiro, Santana, Itaquera e Penha – todos na capital paulista45. Em diferente reportagem feita pela BBC Brasil, os empregados bolivianos de uma fábrica afirmam não se entenderem como em situação de trabalho escravo e acreditam possuir aqui uma vida melhor do que tinham quando estavam na Bolívia. Afirmam que normalmente se assustam com as fiscalizações realizadas pelo auditor do Ministério Público do Trabalho, uma vez que grande parte destes imigrantes está em situação irregular no país, acreditando então que a auditoria realizada seria para deportá-los.46 Outros relatos demonstram promessas de trabalho feitas verbalmente entre os coiotes e os bolivianos, ainda na Bolívia, para que viessem ao Brasil. Ronaldo, em entrevista ao Repórter Brasil, afirma que veio ao país na mesma semana em que foi convidado. O trabalhador foi resgatado após auditoria realizada pela Secretaria Regional do Trabalho, em São Paulo. Ronaldo mantinha uma relação de dependência com seu patrão, uma vez que não possuía nenhum documento oficial nacional. Afirma que trabalhava, em média, 13 horas por dia, e que no começo de seu trabalho não podia procurar emprego diferente47. De acordo com a última Lista Suja publicada pelo Ministério Público do Trabalho, foram feitas, no Estado de São Paulo, fiscalizações que encontraram trabalho análogo a escravidão em 13 empregadores, que foram cadastrados na referida lista, dentre os quais 7 são oficinas de costura ou relacionados com moda em geral. Dentre outros ramos presentes, estão a construção civil e a agricultura48. O dado em questão se refere à lista publicada constando o ano de 2018. De acordo com o relato do auditor fiscal do trabalho, sr. Renato Bignami, estima-se que haja cerca de 12 mil a 14 mil sweatshops no Estado de São Paulo.49 45. BBC BRASIL. ‘A vida no Brasil não é normal, é só trabalho’, conta boliviana que foi escravizada em SP. 29 de janeiro de 2015. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/ noticias/2015/01/150127_boliviana_escravizada_ms>. Acesso em 03 dez. 2019. 46. BBC BRASIL. Voltar para a Bolívia não é uma opção, diz vítima de exploração em SP. Disponível em <https://www.bbc.com>. Acesso em 05 dez. 2019. 47. BIANCA PYL, via REPÓRTER BRASIL. De La Paz para São Paulo, a história de exploração de uma vítima do tráfico de pessoas. 27 de julho de 2017. Disponível em https://reporterbrasil.org. br/2012/07/de-la-paz-para-sao-paulo-a-historia-de-exploracao-de-uma-vitima-do-trafico-depessoas/. Acesso em 28 nov. 2019. 48. h ttps://d37iydjzb dkvr9.clo udfro n t.n et/a rquivo s/2019/01/21/cadastro -deempregadores-2019-1-17.pdf 49. BIGNAMI, op. cit., p. 50. Ao analisar o relatório da UNODC publicado em 2018 sobre o tráfico de pessoas na América do Sul, dividido por país, o Brasil é um dos principais destinos das pessoas traficadas, perdendo somente para a Argentina50. 4 PROGRAMA MUNICIPAL DE ENFRENTAMENTO E NOVOS FLUXOS DE TRÁFICO DE BOLÍVIA-BRASIL No compromisso de erradicar o trabalho escravo no município de São Paulo, a Prefeitura, em 2013, instituiu a Comissão para Erradicação do Trabalho Escravo (COMTRAE), através da Lei n.º 15.764/201351, regulamentada pelo Decreto 54.432/201352. Em seu primeiro ano de existência, a COMTRAE elaborou o I Plano Municipal para a Erradicação do Trabalho Escravo, no ímpeto de enfrentar essa violação. A COMTRAE foi instituída sabendo sobre a aproximação entre o crime de tráfico de pessoas e o trabalho escravo contemporâneo, definindo, portanto, como “violações correlatas” para a construção do plano. Com 58 ações, o Plano Municipal para a Erradicação do Trabalho Escravo (PMETE) conta com diversas frentes atuantes, para repreender, prevenir, dar assistência às vítimas e gerar emprego e renda, além de mapear o risco do trabalho análogo ao escravo no município de São Paulo. Prioriza a criação de um banco de dados do trabalho escravo, um mapeamento que conste o diagnóstico e risco do trabalho, incluir as ações previstas em leis orçamentárias para a captação de recursos pra execução, divulgar canais de denúncia, promover condições básicas à sobrevivência das vítimas de trabalho escravo e tráfico de pessoas (como acesso à educação e saúde), estendendo aos seus familiares, entre outras ações. O plano conta também com a participação multidisciplinar de órgãos da própria prefeitura, como outras comissões que fazem parte da Secretaria Municipal de Direitos Humanos. órgãos públicos aliados no combate ao tema, como as Defensorias Públicas, Ministério Público do Trabalho, Tribunal de Justiça e outras comissões estadual e nacional de enfrentamento 50. UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. 2018 – Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas – Perfil de país América do Sul. Disponível em https://www.unodc.org/documents/ lpo-brazil//Topics_TIP/Publicacoes/2018_GloTiP_South_America.pdf. Acesso em 29 nov. 2019. 51. SÃO PAULO (Município). Lei nº 15.764, de 27 de maio de 2013. . São Paulo, SP, Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/governo/legislacao/index. php?p=170844. Acesso em: 14 nov. 2019. 52. SÃO PAULO (Município). Constituição (2013). Decreto nº 54432, de 07 de outubro de 2013. São Paulo, SP, Disponível em: <http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/decreto-54432-de7-de-outubro-de-2013/consolidado>. Acesso em: 14 nov. 2019. ao trabalho escravo; e por fim, com representantes da sociedade civil, como a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (ABIT), o Repórter Brasil, o Sindicato das Costureiras de São Paulo e Osasco, as Organizações Não Governamentais Conectas, InPACTO, entre outros53. O plano tem funcionado dividido em diferentes eixos e Grupos de Trabalho que se reúnem periodicamente para debater as ações tomadas nesse contexto. Com funcionamento no período entre os anos de 2015 e 2018, a COMTRAE apresentou seus resultados preliminares em um evento, junto da Organização Internacional do Trabalho, em julho de 2019. O resultado demonstra que apesar de a maior parte dos trabalhos definidos no plano terem sido cumpridos, ainda há eixos que não terminaram seu cumprimento. Nesse sentido, há a necessidade de acompanhamento permanente e sistemático para que haja a consolidação desses processos e assim se utilizar num próximo ciclo. A COMTRAE propôs que seja realizado um fluxo de atendimento a pessoa que foi submetida ao trabalho escravo ou vulnerável a este, com a participação de equipe multidisciplinar, contando com as comissões da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e órgãos da sociedade civil, como o Brasil Repórter e Centros de Apoio ao Imigrante. O objetivo apresentado é o de criar uma sistemática de atendimento à vítima de uma forma mais eficiente, com a articulação das instituições responsáveis por prestá-lo. Os resultados preliminares apresentados pela COMTRAE demonstram que 68,2% de todas as ações definidas no PMETE foram cumpridos, ao passo que 41,46% desses indicadores carecem de cumprimento. De todos os eixos apresentados, o grupo de trabalho que menos demonstrou avanço foi o de geração de emprego e renda, não tendo demonstrado qualquer indicador totalmente cumprido54. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao final de toda a pesquisa realizada, é possível perceber que as ações pontuais de órgãos oficiais não impedem que a prática do trabalho análogo à escravidão continue acontecendo. É o caso da extensão de oficinas de costura que exploram a mão de obra ilícita às cidades satélites e do interior 53. SÃO PAULO. Prefeitura do Município de São Paulo. Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania. Plano Municipal para Erradicação do Trabalho Escravo. 2015. Disponível em: <https:// www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/direitos_humanos/PMETE(1).pdf>. Acesso em: 07 nov. 2019. 54. SÃO PAULO. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Especialistas debatem avanços e desafios no enfrentamento do trabalho escravo no município de São Paulo. 2018. Disponível em: https://www.ilo.org/global/docs/WCMS_714425/lang--en/index.htm. Acesso em: 27 nov. 2019. do Estado de São Paulo, após ações e fiscalizações do Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal. Nesse sentido, se faz extremamente importante a articulação conjunta de diferentes frentes para inibir e combater a prática: é o caso, por exemplo, da Lei n.º 14.946 de 2013, que cancela o cadastro de contribuinte para o ICMS da empresa condenada. O que se pretende com a prática é o isolamento econômico das empresas envolvidas, a fim de força-las a regularizarem tal prática, bem como garantir que haverá um esforço de outras na diligência para contratação de novos fornecedores e parceiros. Aqui também se nota que a migração boliviana para o Estado de São Paulo se dá por questões de razões econômicas principalmente. Insta pontuar, portanto, que se faz necessária uma ação massiva em conjunto com as instituições bolivianas a fim de mapear as rotas de tráfico humano a fim de impedi-las, como também dar o suporte necessário à população que se encontra mais vulnerável à prática em questão. O tráfico humano de bolivianos é mascarado, no qual as próprias vítimas não se enxergam na situação em vista de sua condição social antes de serem traficadas. É por essa razão que se necessita de uma maior informação a essa população, mesmo em seu país de origem, para que entendam o que é a exploração no Brasil e assim evitar que sejam ludibriadas pelos aliciadores, ou mesmo que possam contatar uma autoridade caso sejam vítimas. REFERÊNCIAS BBC BRASIL. ‘A vida no Brasil não é normal, é só trabalho’, conta boliviana que foi escravizada em SP. 29 de janeiro de 2015. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/01/150127_boliviana_ escravizada_ms. Acesso em 03 dez. 2019 BBC BRASIL. Voltar para a Bolívia não é uma opção, diz vítima de exploração em SP. Disponível em https://www.bbc.com. Acesso em 05 dez. 2019. BIANCA PYL, via REPÓRTER BRASIL. De La Paz para São Paulo, a história de exploração de uma vítima do tráfico de pessoas. 27 de julho de 2017. Disponível em https://reporterbrasil.org.br/2012/07/de-la-pazpara-sao-paulo-a-historia-de-exploracao-de-uma-vitima-do-trafico-depessoas/. Acesso em 28 nov. 2019 BIGNAMI, Renato. Trabalho escravo na indústria da moda: o sistema do suor como expressão do tráfico de pessoas. Revista de direito do trabalho, São Paulo, SP, v. 40, n. 158, p. 35 -59, jul./ago. 2014. Disponível em https:// juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/94673. Acesso em 06 dez. 2019. BIGNAMI, Renato. O tráfico de pessoas no setor têxtil, em NOGUEIRA, Christiane V.; NOVAES, Marina; BIGNAMI, Renato. Tráfico de pessoas: reflexões para a compreensão do trabalho escravo contemporâneo. 2014, 1. Ed. São Paulo, Paulinas. 2014, p. 187 BRASIL, Câmara dos Deputados. Convenção n.º 97 da Organização Internacional do Trabalho. Disponível em https://www2.camara.leg.br/ atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comitebrasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-externa/ConvOITTrabMig.html. Acesso em 30 nov, 2019 BRASIL, Decreto n.º 3.597, de 12 de setembro de 2000. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3597.htm. Acesso em 25 nov. 2019. BRASIL. Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004. Promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Brasília, DF, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2004/decreto/d5015.htm. Acesso em: 30 nov. 2019. BRASIL. Decreto n.º 5.017, de 12 de março de 2004. “Protocolo de Palermo”. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ Ato2004-2006/2004/Decreto/D5017.htm. Acessado em 01, dec. 2019 BRASIL, Lei n.º 6.815/1980. 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Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/documentos/novoplanonacional.pdf. Acesso em: 25 nov. 2019 O ESTADO DE S. PAULO (São Paulo/SP). Justiça mantém condenação da M. Officer por trabalho escravo. 2018. Disponível em: https://economia. estadao.com.br/noticias/negocios,decisao-mantem-condenacao-damofficer-por-trabalho-escravo,70002240222. Acesso em: 04 dez. 2019 FRANCO, Claudia Regina Lovato. Mestrado em Direito. [et al]. Brasília: ESMPU, 2017. 5 t. (Séries Pós-Graduação; v. 5), p. 106. FREITAS, Patrícia Tavares de (Org.). Imigração boliviana para São Paulo e o setor de confecção: Em busca de um paradigma analítico alternativo. Campinas: Núcleo de Estudos de População (Nepo) - Unicamp, 2012. 318 p. Disponível em: https://www.nepo.unicamp.br. Acesso em: 14 nov. 2019 FUJITA, Renata Mayumi Lopes; JORENTE, Maria José. A indústria têxtil no Brasil: uma perspectiva histórica e cultural. Modapalavra, Florianópolis, v. 8, n. 15, p.153-174, jul. 2015. Semestral. 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Disponível em: http:// www.7seminario.furg.br/. http://www.seminariocorpogenerosexualidade. furg.br/ ISBN:978-85-7566-547-3. CAPÍTULO 6 A COMPLACÊNCIA DO ESTADO BRASILEIRO COM A ESCRAVIDÃO MODERNA: DA DECISÃO NO CASO “FAZENDA BRASIL VERDE V. BRASIL” AOS DESDOBRAMENTOS DA LEGISLAÇÃO NACIONAL SOBRE O TEMA1 ANA CLÁUDIA RUY CARDIA ATCHABAHIAN Doutora e Mestre em Direito I pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro da International Law Association – Ramo Brasileiro (ILABrasil) e Conselheira da Seção Latino-Americana da Global Business and Human Rights Scholars Association. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Pessoas Invisíveis: Prevenção e Combate ao Trá co Interno e Internacional de Seres Humanos” Financiado pelo MackPesquisa. Advogada. GIANPAOLO POGGIO SMANIO Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq “Políticas Públicas como Instrumento de Efetivação da Cidadania. Membro da Escola Superior do 1. Abstract (em inglês) apresentado no Congresso da IRC-WASET, em outubro de 2019, em viagem financiada pelo Instituto Presbiteriano Mackenzie – MackPesquisa e publicada nos anais daquele evento: CARDIA A., Ana Cláudia Ruy. SMANIO, Gianpaolo Poggio. The Complacency of the Brazilian State with Modern Slavery: From the Decision in the ‘Fazenda Brasil Verde v. Brazil’ Case to National Legislation on the Matter. ICHTS 2019: XIII International Conference on Human Trafficking and Social Justice. Los Angeles: International Research Conference Proceedings, 2019, p. 1134. Ministério Público. Procurador Geral de Justiça do Estado de São Paulo. Líder do Grupo de Pesquisa “Pessoas Invisíveis: Prevenção e Combate ao Tráfico Interno e Internacional de Seres Humanos”, Financiado pelo MackPesquisa. FELIPE CHIARELLO DE SOUZA PINTO Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Colaborador no Programa de Pós-Graduação da Universidade de Passo Fundo. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq “Estado e Economia no Brasil”. Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Pessoas Invisíveis: Prevenção e Combate ao Tráfico Interno e Internacional de Seres Humanos”, Financiado pelo MackPesquisa. INTRODUÇÃO Em outubro de 2016, o Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso “Fazenda Brasil Verde v. Brasil” por ter sido negligente no tratamento dispensado às vítimas de tráfico de pessoas e condições análogas à escravidão em uma fazenda no estado do Pará, configurando a chamada escravidão moderna. Contudo, poucos dias antes da publicação de referida decisão internacional, foi publicada no Brasil a Lei n° 13.344, voltada especificamente para o estabelecimento de novas medidas para prevenir e reprimir o tráfico doméstico e internacional de pessoas, bem como garantir maior assistência às vítimas de referido crime. O que parecia ser um momento protetivo para as vítimas de abusos praticados por corporações, no entanto, não se concretizou em 2018: no Decreto que estabeleceu as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos (Decreto n° 9.571/2018), não houve qualquer menção sobre a possiblidade de responsabilização de empresas por tráfico de pessoas, mas tão-somente à submissão de trabalhadores às condições análogas à escravidão, sendo esta última válida apenas para os casos de empresas que, voluntariamente, aderissem àquela regra. Considerando que o Brasil apresenta dados alarmantes relacionados à escravidão moderna, tendo, somente no ano de 2019, sido resgatados mais de novecentos trabalhadores2, faz-se imprescindível o estudo do tema à luz de ambos os panoramas. Neste sentido, o presente artigo visa demonstrar – por meio de pesquisa qualitativa baseada em análise documental de fontes primárias e secundárias, com método de interpretação indutivo derivado principalmente de fontes secundárias, tais como literatura jurídica nacional e internacional sobre Tráfico de Pessoas, Direito Internacional dos Direitos Humanos e Direitos Humanos e Empresas - que as iniciativas normativas do Estado brasileiro desde 2016, se louváveis teoricamente, representaram apenas parte do processo de cumprimento da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, posto que as reformas e políticas implementadas não se coadunam com os standards internacionais assumidos pelo Brasil. O presente trabalho será dividido em três partes. No primeiro capítulo, serão trazidos os conceitos iniciais de tráfico de pessoas e de escravidão moderna para o Direito Internacional e o Direito Internacional dos Direitos Humanos. No segundo capítulo, será feita a análise da interpretação da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso “Fazenda Brasil Verde v. Brasil” em relação a ambos os temas. No terceiro capítulo, será feita uma leitura crítica das normas estabelecidas pelo Estado brasileiro quanto ao tráfico de pessoas e ao tema Direitos Humanos e Empresas, na tentativa de analisar se houve ou não congruência entre as normativas desenvolvidas sobre tráfico de pessoas e Direitos Humanos e Empresas em relação à decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos e aos demais instrumentos internacionais aplicáveis ao tema ora sob análise. 1 ESCRAVIDÃO MODERNA: INTERPRETAÇÃO INTERNACIONAL SOBRE TRÁFICO DE PESSOAS E DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS A definição de escravidão moderna pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) pressupõe a ocorrência de práticas tradicionais de trabalho forçado, como “vestígios de escravidão ou práticas semelhantes (...), e várias formas de servidão por dívida, bem como novas formas de trabalho forçado (...), como o tráfico de pessoas”3. O termo, assim, busca representar as condições de vida e de trabalho contrárias à dignidade humana. 2. 3. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Portal da Inspeção do Trabalho. Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil. Disponível em: <https://sit.trabalho.gov.br/ radar/>. Acesso em: 30 Jan. 2020. No original: “(...) traditional practices of forced labour, such as vestiges of slavery or slavelike practices, and various forms of debt bondage, as well as new forms of forced labour that have emerged in recent decades, such as human trafficking.” INTERNATIONAL LABOUR De referida definição, portanto, decorre o raciocínio de que o tráfico de pessoas, tal qual determinado no Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Internacional (Protocolo de Palermo)4, deve se constituir como o pressuposto para o cometimento de outros crimes, sejam eles de natureza laboral, sexual, dentre outros5. É possível, portanto, perceber que, das possíveis facetas que a escravidão moderna pode apresentar na atualidade, o tráfico de seres humanos e sua consequente redução à condição análoga à escravidão são marca indelével6. Da normativa internacional voltada ao combate de referido crime, destacam-se o ora mencionado Protocolo de Palermo, bem como - no plano do trabalho forçado e da redução do indivíduo à condição análoga à escravidão -, mas não apenas, a Convenção n° 297 e seu Protocolo de 20148, ambos da OIT. Ainda, no plano dos Direitos Humanos e Empresas, deve ser dada especial atenção aos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos9 da Organização das Nações Unidas (ONU), as Diretrizes 4. 5. 6. 7. 8. 9. ORGANIZATION. What is forced labour, modern slavery and human trafficking. Disponível em: <https://www.ilo.org/global/topics/forced-labour/definition/lang--en/index.htm>. Acesso em: 30 Jan. 2020. BRASIL. Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm>. Acesso em: 30 Jan. 2020. CARDIA A., Ana Cláudia Ruy. PINTO, Felipe Chiarello de Souza. O tráfico internacional de pessoas sob as lentes da jurisprudência recente da Corte Interamericana de Direitos Humanos: lições para o Brasil. MENEZES, Wagner (Org.). Direito Internacional em expansão: Volume 10. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017, p. 272-292. Neste sentido, ver também NOGUEIRA, Christiane. NOVAES, Marina, BIGNAMI, Renato e PLASSAT, Xavier. Tráfico de pessoas e trabalho escravo: além da interposição de conceitos. In NOGUEIRA, Christiane. NOVAES, Marina. BIGNAMI, Renato (Org.) Tráfico de Pessoas: Reflexões para a compreensão do trabalho escravo contemporâneo. São Paulo: 2014, p. 220-221. Em sentido contrário quanto à ligação entre o tráfico de pessoas no Brasil e o termo “escravidão moderna”, em crítica a partir de referências de classe, gênero e raça, ver BENITEZ, Carla. SEFERIAN, Gustavo. Tráfico de Pessoas e a Lei n° 13.344/2016: leituras jurídico-críticas desde as referências de classe, gênero e raça. Revista do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Edição Especial. Julho de 2019. São Paulo: Tribunal Regional Federal da 3 ª Região, p. 155. INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. Convenção n° 29 sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório. Disponível em: <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_norm/--normes/documents/normativeinstrument/wcms_c029_pt.htm>. Acesso em: 30 Jan. 2020. Referida convenção foi internalizada pelo Brasil no Decreto nº 41.721, de 25 de junho de 1957. INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. Protocol of 2014 to the Forced Labour Convention, 1930. Disponível em: <https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f ?p=NORMLEX PUB:12100:0::NO:12100:P12100_INSTRUMENT_ID:3174672:NO >. Acesso em: 30 Jan. 2020. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Guiding Principles on Business and Human Rights: implementing the United Nations “protect, respect and remedy” framework. 2011. Disponível em: <https://www.ohchr.org/documents/publications/guidingprinciplesbusinesshr_en.pdf Acesso em: 30 Jan. 2020. da OCDE para as Empresas Multinacionais10, bem como a recente iniciativa Onusiana de estabelecimento de um tratado sobre a matéria11. No plano adjudicatório internacional de direitos humanos, merece relevo o papel da Corte Interamericana de Direitos Humanos no combate à escravidão moderna12. Coincidentemente, o primeiro caso contencioso decidido por aquela Corte com relação direta à temática ora sob análise teve como réu o Brasil, resultando em condenação ao país e colocando-o sob os holofotes da sociedade internacional em função do descumprimento dos pressupostos estabelecidos na Convenção Americana de Direitos Humanos. 2 A ESCRAVIDÃO MODERNA E O BRASIL NO BANCO DOS RÉUS: O CASO “FAZENDA BRASIL VERDE V. BRASIL” O Caso “Fazenda Brasil Verde vs. Brasil”13 foi objeto de análise pela Corte Interamericana de Direitos Humanos entre os anos de 2015 e 2016. Relacionado especificamente à ocorrência de violações aos direitos humanos na Fazenda Brasil Verde, localizada no Município de Sapucaia, no sul do Estado do Pará, a decisão de referido caso foi proferida em 20 de outubro de 2016, consolidando o entendimento daquela Corte de que o tráfico de pessoas e as formas de exploração análogas à escravidão constituem modalidades da ora denominada “escravidão moderna”. As violações, ocorridas e documentadas a partir do final dos anos 1980 até os primeiros anos do século XXI, foram analisadas internamente pelo Estado Brasileiro, mas não tiveram a devida atenção pelas autoridades administrativas e judiciais em seus julgamentos, razão, inclusive, da admissão daquele caso pela Corte. Em resumo, a demanda relaciona-se à prática de tráfico interno de pessoas e escravidão de trabalhadores contratados para trabalhar no corte 10. ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). OECD Guidelines for Multinational Enterprises. OECD Publishing, 2011. 11. Neste sentido, ver CARDIA, Ana Cláudia Ruy. GIANNATTASIO, Arthur Roberto Capella. O Estado de Direito Internacional na condição pós-moderna: a força normativa dos princípios de Ruggie sob a perspectiva de uma Radicalização Institucional. BENACCHIO, Marcelo (Coord.). VAILATTI, Diogo Basílio. DOMINIQUINI, Eliete Doretto (Org.). A sustentabilidade da relação entre empresas transnacionais e direitos humanos. Curitiba: Editora CRV, 2016, p. 127-146. DEVA, Surya. BILCHITZ, David (Ed.). Building a treaty on business and human rights: context and contours. Reino Unido: Cambridge University Press, 2017. 12. CARDIA A., Ana Cláudia Ruy. Empresas e Direitos Humanos: contribuições dos sistemas adjudicatórios de proteção. PAMPLONA, Danielle Anne. FACHIN, Melina (Coord.). BOLZANI, Giulia Fontana (Org.). Direitos Humanos e Empresas. Curitiba: Íthala, 2019. 13. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Série C, nº 318. Sentença de 20 de outbro de 2016. Disponível em: <http://www. corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_esp.pdf>. Acesso em: 30 Jan. 2020. de juquira14 na Fazenda Brasil Verde, à época dos fatos de propriedade de João Luiz Quagliato Neto. Os trabalhadores eram aliciados por gatos15 - que lhes seduziam com a garantia de bons salários e condições dignas de vida, com moradia e alimentação -, e, por muitas vezes, deixavam seus familiares na esperança de lhes garantir melhores condições em sua terra natal. Ao chegarem ao local de trabalho – que se encontrava em local afastado dos principais centros urbanos, incrustrado na Floresta Amazônica -, contudo, deparavam-se com condições desumanas e degradantes de moradia e de trabalho, com jornadas superiores a doze horas diárias e folgas escassas, retenção de seus documentos de trabalho e de identidade e ameaças de morte em caso de saída ou fuga da Fazenda, além de desaparecimentos de trabalhadores que questionavam sua condição. Ademais, os trabalhadores encontravam-se, desde o primeiro momento de sua jornada, em dívida: inicialmente com os aliciadores, que lhes pediam o pagamento pela viagem até o local de trabalho, além das despesas com alimentação e eventual hospedagem e, logo em seguida, com seus patrões, que lhes descontavam valores dos utensílios utilizados para a consecução do trabalho e até mesmo do alojamento e do alimento que lhes era servido, não lhes restando nenhuma forma de remuneração ao final do período de trabalho16. Não obstante a prática de tráfico, restava, também, configurada a exploração da mão-de-obra em condições análogas à escravidão e a prática de servidão por dívida. A despeito das denúncias feitas por trabalhadores que conseguiram escapar daquele contexto, assim como das fiscalizações levadas a cabo em diferentes períodos por representantes da Polícia Federal e do Ministério Público do Trabalho, que culminaram em ações judiciais e procedimentos administrativos17, não houve, no plano interno, efetiva punição aos perpetradores de tais violações, razão pela qual entidades da sociedade civil submeteram referida demanda à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que posteriormente a conduziu à análise da Corte pertencente ao mesmo sistema. A decisão, acertadamente celebrada em relação ao crime de sujeição dos trabalhadores submetidos a condições de trabalho análogas 14. Planta nativa da região. 15. Nomenclatura usualmente dada aos funcionários contratados para fazer o aliciamento dos trabalhadores nessa modalidade de exploração. 16. Os detalhes sobre as condições degradantes a que foram submetidos os trabalhadores da Fazenda Brasil Verde encontram-se nos parágrafos 163 a 173 da sentença em comento. 17. Para uma cronologia detalhada das medidas judiciais e administrativas que foram concretizadas no plano interno, ver os parágrafos 128 a 188 da sentença ora sob análise. à escravidão18, traz relevantes considerações sobre o crime de tráfico de pessoas, especialmente em relação à interpretação dada por aquele órgão ao artigo 6.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Fez-se, na decisão em comento, interpretação extensiva e evolutiva daquele instrumento19, também em relação a outras fontes internacionais de natureza semelhante20, a fim de compreender a determinação da proibição ao tráfico, expressamente relacionada somente ao crime de tráfico de mulheres e escravos na Convenção Americana, a toda e qualquer categoria de pessoas que se encontre em posterior condição de vulnerabilidade, confirmando a teoria ora apresentada de que o tráfico de pessoas é o principal pressuposto para a ocorrência de outras formas exploratórias do indivíduo. A interpretação evolutiva do dispositivo considerou não apenas o diálogo entre as fontes e os órgãos internacionais21, tais como a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, o Protocolo de Palermo, o Convênio do Conselho da Europa sobre a luta contra o tráfico de seres humanos, o entendimento do Grupo de Trabalho sobre Formas Contemporâneas de Escravidão, mas também o diálogo das Cortes Internacionais, mediante a análise do precedente da Corte Europeia de Direitos Humanos no Caso “Rantsev vs. Chipre e Rússia”22, que trouxe considerações sobre o tráfico de pessoas e a apropriação dos trabalhadores pelos empregadores, novamente corroborando com o argumento da “coisificação” dos indivíduos e de sua possibilidade de apropriação por outras pessoas, então mencionado e defendido nos itens anteriores do presente trabalho. Fez-se também o 18. A esse respeito, é válida a observância da matéria realizada pela organização não-governamental Repórter Brasil: REPÓRTER BRASIL. Eu fui escravo. Disponível em: <https://reporterbrasil. org.br/brasilverde/reportagem.html>. Acesso em 30 Jan. 2020. 19. Parágrafos 281 a 290 da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 20. Sobre a possibilidade de a Convenção Americana ser interpretada em conformidade com outros instrumentos internacionais, ver os parágrafos 78 e 79 da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 21. A esse respeito, cita-se a seguinte passagem definida por Paulo Borba Casella: “Não se constrói sistema internacional com a simples superposição, mais que soma de sistemas internos, colocados lado a lado. É preciso ter conjunto de princípios, normas e instituições também na ordem internacional”. A análise dos mandamentos internacionais em harmonia para a construção da interpretação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no presente caso demonstra a busca pela necessária harmonia e diálogo também no plano internacional. CASELLA, Paulo Borba. Fundamentos do Direito Internacional Pós-Moderno. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p; 712. 22. Parágrafos 284 a 289 da sentença. Ainda, a esse respeito, é válida a posição de Flávia Piovesan: “É a partir de interlocuções e empréstimos jurisprudenciais que cada qual dos sistemas regionais desenvolve o refinamento de argumentos, interpretações e princípios voltados à afirmação da dignidade humana”. PIOVESAN, Flávia. Diálogo entre Cortes: a interamericanização do sistema europeu e a europeicização do sistema interamericano In PIOVESAN, Flávia. SALDANHA, Jânia Maria Lopes (Coord.). Diálogos jurisdicionais e direitos humanos. Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2016, p. 175-196. paralelo da proibição de referida modalidade criminosa a um mandamento de jus cogens23, norma que não pode ser derrogada pelos Estados, alegando também seu caráter de imprescritibilidade diante da normativa de Direito Internacional24. A transcendência do sentido literal do artigo 6.1 da Convenção Americana ao crime de tráfico de pessoas, trazendo interpretação mais genérica àquele dispositivo, foi acertadamente definida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, acompanhando, portanto, a evolução da sociedade internacional em relação às formas de combate aos crimes que constituem a escravidão contemporânea. Por fim, mas não menos importante, referido documento mencionou expressamente pela segunda vez na história de sua jurisprudência os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU. Ademais, um dos critérios considerados por aquele tribunal para garantir sustentação aos argumentos de sua sentença teve relação com a condição de vulnerabilidade socioeconômica dos indivíduos submetidos a tal modalidade exploratória, sendo, inclusive, a primeira vez que se restou decidido um caso com base na discriminação estrutural histórica de um país25. A miséria anterior a que os trabalhadores estavam submetidos foi também condicionante para seu consentimento baseado nas falsas promessas feitas pelos aliciadores. Novamente, destaca-se a constatação de uma realidade que não somente permeia a sociedade brasileira – com suas desigualdades sociais, por muitas vezes, fruto de seu próprio passado escravocrata -, mas também outras jurisdições submetidas àquele Órgão e que contam com práticas semelhantes na contemporaneidade. Referida sentença, portanto, ao apresentar uma nova interpretação do artigo 6.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, consoante com as mais recentes fontes do Direito Internacional, permitiu a abertura de um importante precedente quanto ao combate ao tráfico de pessoas e à redução de trabalhadores a condições análogas à escravidão, razão pela qual seus efeitos devem ser analisados em relação ao Estado Brasileiro tanto do ponto de vista normativo quanto prático, perfazendo-se o primeiro objeto do presente trabalho. 23. A respeito das normas de jus cogens, ver TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. International law for humankind: towards a new jus gentium. The Hague Academy of International Law. The Netherlands: Martinus Nijhoff Publishers, 2010. 24. Parágrafos 249 a 258 da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 25. Parágrafos 81 a 100 da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 3 CONSEQUÊNCIAS LEGISLATIVAS NACIONAIS DO CASO “FAZENDA BRASIL VERDE V. BRASIL”: NOVAS NORMAS DE COMBATE AO TRÁFICO DE PESSOAS E À EXPLORAÇÃO LABORAL PRATICADA POR EMPRESAS A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos foi proferida em 20 de outubro de 2016. Curiosamente, no dia 06 daquele mesmo mês, foi promulgada a Lei n° 13.344/201626, que revogou os artigos 231 e 231A do Código Penal, vigorando a partir de então regra mais abrangente a respeito do crime de tráfico de pessoas, qual seja, o artigo 149-A. Além do Código Penal, foram também estabelecidas disposições específicas à infância no Estatuto da Criança e do Adolescente e, em conformidade com o disposto no II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas27, medidas de auxílio às vítimas daquela modalidade criminosa28. Percebe-se, assim, que, ao menos em relação ao crime de tráfico de pessoas, a mudança legislativa em comento foi louvável, sobretudo pela finalidade essencial de aproximar a normativa brasileira da regra internacional existente e internalizada desde 2004, a saber, o Protocolo de Palermo. O estabelecimento do artigo 149-A e o deslocamento do tipo penal para os crimes contra a liberdade pessoal também visaram a eliminação dos estigmas de gênero, o que, como visto, caminhou em paralelo ao decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em sua interpretação dinâmica e evolutiva do artigo 6.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Contudo, tal regra também foi objeto de críticas, seja em relação à pena estabelecida e às causas de aumento de pena, inferiores a crimes contra o patrimônio (corroborando os argumentos de objetificação do ser humano nos crimes de tráfico de pessoas e redução à condição análoga 26. BRASIL. Lei nº 13.344, de 06 de outubro de 2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13344.htm>. Acesso em: 30 Jan. 2020. 27. Meta “2.D.6” do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Secretaria Nacional de Justiça. II Plano nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Secretaria Nacional de Justiça. Brasília: Ministério da Justiça, 2013. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/politicabrasileira/anexos_ii-plano-nacional/ii-plano-nacional.pdf>. Acesso em: 30 Jan. 2020. Neste mesmo sentido, ver SILVA, Ronaldo Alves Marinho da. MATTOS, Fernanda Carolina Alves de. Tráfico de Pessoas: Uma análise da Lei N. 13.344/2016 à Luz dos Direitos Humanos. Revista Direitos Humanos e Democracia. Ano 7. N° 14. Jul./Dez. 2019. Editora Unijuí, p. 187-200. 28. Apesar de a Lei n° 13.344/2016 ter sido publicada temporalmente em momento anterior à publicação da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sua edição se deu em grande parte em função do temor do Estado brasileiro de possível condenação no caso ora sob análise. Dessa maneira, para fins do presente trabalho, a edição da Lei n° 13.344/2016 será também compreendida como consequência da decisão internacional de caráter vinculante. à escravidão29), seja em função das leituras sociais referentes ao tema, condenatórias ao chamado Estado penal máximo e da forma expressamente determinada naquela Lei de atendimento às vítimas30. Na esteira da proteção aos direitos humanos por empresas, o Brasil, sobretudo após a visita do Grupo de Trabalho sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU ao Brasil em 2015 e a publicação de extenso relatório por parte daquele Grupo em 201631, buscou implementar nacionalmente uma política voltada à temática. O processo que, inicialmente, contou com a participação de órgãos nacionais e entidades da sociedade civil acabou por resultar na expedição de um decreto presidencial, cujo texto - até sua publicação desconhecido das entidades públicas e privadas então participantes dos debates32, – reproduzia os Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos. Apresentada, portanto, a gênese do Decreto n° 9.571, de 21 de novembro de 2018, que estabeleceu as chamadas Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos33. Apesar de o Decreto em comento espelhar os ditames da norma internacional de soft law que o originou, não houve interesse do Estado brasileiro em endurecer as previsões de responsabilização das empresas no caso de potenciais violações aos direitos humanos. Ao contrário: referida norma, de adesão voluntária por parte das empresas interessadas (artigo 1°, § 2°), não trouxe qualquer mecanismo de reparação de danos causados às vítimas de violações aos direitos humanos e ao meio ambiente praticada por corporações atuantes em solo nacional. 29. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução Mauro Gama, Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 34. 30. BENITEZ, Carla. SEFERIAN, Gustavo. Tráfico de Pessoas e a Lei n° 13.344/2016: leituras jurídico-críticas desde as referências de classe, gênero e raça. Revista do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Edição Especial. Julho de 2019. São Paulo: Tribunal Regional Federal da 3 ª Região, p. 156. 31. UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS COUNCIL. A/HRC/32/45/Add.1. Disponível em: <https://undocs.org/A/HRC/32/45/Add.1>. Acesso em: 30 Jan 2020. Deve-se ressaltar neste momento o fato de que o maior envolvimento do Brasil com o tema se deu sobretudo após a tragédia ocorrida em Mariana, estado de Minas Gerais, após o rompimento da barragem de rejeitos de minérios de Fundão, de propriedade da empresa Samarco. O acontecimento em comento acabou por inserir novamente o Brasil no rol de Estados violadores de direitos humanos por corporações. CONECTAS DIREITOS HUMANOS. Direitos Humanos e Empresas no Brasil: Relatório do Grupo de Trabalho da ONU. São Paulo: Conectas Direitos Humanos, 2017. 32. Sobre os trabalhos prévios à edição do Decreto, ver HOMA – Centro de Direitos Humanos e Empresas. Reflexões sobre o Decreto 9571/2018 que estabelece Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos. Caderno de Pesquisa Homa. Vol. 1. N.7. 2018. Disponível em: <http:// homacdhe.com/wp-content/uploads/2019/01/Análise-do-Decreto-9571-2018.pdf>. Acesso em: 30 Jan. 2020, p. 6-7. 33. BRASIL. Decreto n° 9.571, de 21 de novembro de 2018. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9571.htm>. Acesso em: 30 Jan. 2020. Em relação ao crime de tráfico de pessoas, compreendido ao longo deste artigo como um dos potenciais pressupostos para violações à dignidade dos trabalhadores, o Decreto n° 9.571/2018 não fez menção expressa à necessidade de as empresas prevenirem tal prática criminosa, deixando, assim, de dialogar diretamente com a Lei n° 13.344/2016. Dessa maneira, a nova norma não apenas deixou de compreender a ligação intrínseca entre os crimes e violações aos direitos humanos objeto do presente artigo como também não atentou para a centralidade do sofrimento das vítimas de tráfico de pessoas e submetidas a condições análogas à escravidão, tendo a mesma situação ocorrido com a Lei n° 13.344/2016. Em outras palavras, não obstante ambas as regras domésticas terem sido estabelecidas a partir da observância de documentos normativos internacionais (Protocolo de Palermo e Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos), bem como à luz de uma decisão internacional vinculante da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Relatório do Grupo de Trabalho da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos, suas respectivas redações não consideraram as características intrínsecas ao Estado Brasileiro e típicas do contexto latino-americano34 que o diferenciam da redação genérica e compreensiva daquelas normas. Assim, ainda que dados recentes provenientes do Ministério da Economia apontem um aumento da fiscalização de empresas que contem com práticas abusivas à dignidade de seus trabalhadores, tais como tráfico de pessoas e redução a condições análogas à escravidão35, não é possível, a partir apenas da análise normativa posterior à decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso “Fazenda Brasil Verde v. Brasil”, afirmar que os avanços legais serão efetivos e eficazes na repressão e punição de empresas envolvidas com os crimes que compõem a chamada escravidão moderna. Conforme explicitado naquela sentença, não basta a mera abstenção das práticas voltadas ao tráfico e exploração de indivíduos. São necessárias medidas positivas, tais como a existência de um adequado marco jurídico de proteção, além de políticas de prevenção e práticas que permitam aos 34. Principalmente em relação ao tema Empresas e Direitos Humanos na América Latina e suas particularidades, ver SANTORO, Michael A. Business and Human Rights in the Latin American political context: the enduring importance of Nation States. PAMPLONA, Danielle Anne. FACHIN, Melina (Coord.). BOLZANI, Giulia Fontana (Org.). Direitos Humanos e Empresas. Curitiba: Íthala, 2019, p. 250. 35. AGÊNCIA BRASIL. Brasil teve mais de mil pessoas resgatadas do trabalho escravo em 2019. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-01/brasil-teve-maisde-mil-pessoas-resgatadas-do-trabalho-escravo-em>. Acesso em: 30 Jan. 2020. agentes nacionais atuar de maneira eficaz diante das denúncias36. Dessa maneira, a redação das normas apresentadas deveria ter considerado a ligação intrínseca entre a responsabilidade corporativa no combate à escravidão moderna e seu diálogo inseparável com o crime de tráfico de pessoas. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho teve por objetivo analisar, no plano legislativo doméstico, os dois principais desdobramentos verificados sobretudo após o proferimento, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2016, de decisão condenatória ao Estado brasileiro no Caso “Fazenda Brasil Verde v. Brasil”. Referida decisão, pioneira no sistema adjudicatório interamericano de proteção aos direitos humanos, contribuiu para posicionar o Brasil sob os holofotes da sociedade internacional como Estado praticante da chamada escravidão moderna. Assim, uma vez definidos os contornos principais da escravidão moderna tanto a partir da normativa internacional quanto da decisão ora sob análise, foi possível concluir que o tráfico de pessoas e a redução dos trabalhadores a condição análoga à escravidão são práticas complementares, consistindo o crime tráfico de pessoas em pressuposto para o cometimento dos crimes a ele conexos. Daí, portanto, se avaliar o tema à luz das regras voltadas ao combate ao tráfico de pessoas e relacionadas ao tema Empresas e Direitos Humanos. Dessa maneira, foi feita análise crítica da Lei n° 13.344/2016, que estabeleceu novo tipo penal para o crime de tráfico de pessoas, bem como do Decreto n° 9.571/2018, que definiu as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos. Não obstante os potenciais avanços encontrados em suas respectivas redações, provenientes sobretudo dos tratados que lhes serviram de inspiração, resta evidente o fato de que ambos os instrumentos foram redigidos de maneira isolada em seus contextos, não havendo diálogo capaz de implicar em verdadeiro arcabouço normativo de repressão à escravidão moderna no Brasil. Apesar de a instituição da norma não constituir aspecto único no combate aos crimes que a caracterizam, é a partir da intepretação sistêmica de tais ditames que se consolida uma verdadeira ordem protetiva às vítimas de tráfico de pessoas, tanto do ponto de vista judicial quanto de estabelecimento de novos arranjos institucionais e implementação de políticas públicas. Uma cultura protetiva dos trabalhadores submetidos à escravidão 36. Parágrafo 320 da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos. moderna apenas pode ser estabelecida quando a correta eliminação de suas conjunturas tem como pedra angular o estabelecimento de normas claras e coesas o suficiente para garantir sua eficácia e aplicabilidade práticas. REFERÊNCIAS AGÊNCIA BRASIL. Brasil teve mais de mil pessoas resgatadas do trabalho escravo em 2019. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com. br/direitos-humanos/noticia/2020-01/brasil-teve-mais-de-mil-pessoasresgatadas-do-trabalho-escravo-em>. 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INTRODUÇÃO O tráfico de pessoas é um dos crimes que mais cresce mundialmente. Motivado pela ganância do lucro e pela ausência de penalidades eficientes, a exploração de vulneráveis por sexo ou trabalho forçado operam tanto em âmbito nacional quanto internacional, sendo só a exploração sexual capaz de gerar cerca de 150,2 bilhões de dólares por ano1. 1. INTEGRITY, Global Financial. Transnational Crime and the Developing World. 2017. Disponível em: https://secureservercdn.net/45.40.149.159/34n.8bd.myftpupload.com/wp-content/ uploads/2017/03/Transnational_Crime-final.pdf>. Acesso em: 20 set. 2019. LEAL, Maria Lúcia e LEAL Maria de Fátima (Orgs.). Pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil. Brasília: Cecria, 2002, p. xii. Aproximadamente 21 milhões de vítimas são traficadas em todo o mundo, constituindo destas, no período de 2010 a 2012, 33% de crianças, número que se apresenta cada vez mais alarmante com o passar dos anos2. Na América do Sul, de 2.949 vítimas detectadas pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), as crianças se apresentam em 37%, destinadas às mais diversas finalidades, destacando-se em primeiro lugar a exploração sexual (58%) e em seguida os trabalhos laborais forçados (32%)3. Tais dados apresentados podem ser constituídos sobretudo em virtude da vulnerabilidade. Os traficantes se aproveitam principalmente das populações mais vulneráveis, pelo uso da força, engano e coerção. Em relação às crianças e adolescentes, a vulnerabilidade se intensifica com a ausência da eficiência das políticas estatais perante proteção da criança e desenvolvimento da sua educação e formação, na zona da pobreza e da exclusão social e na mera ingenuidade capaz de fazê-las confiar no outro mais facilmente. Assim, com esses pontos mais aparentes, as crianças se tornam alvos cada vez mais suscetíveis à concretização do crime4. Na tentativa de contribuição à discussão, a proposta do presente artigo concentra-se na análise do contexto do tráfico sexual de crianças, em especial voltado à prostituição infantil, com a finalidade de combatê-la a partir da inteligência no desenvolvimento das tecnologias atuais, bem como na possibilidade da adoção de tais práticas no cenário nacional, sobretudo a partir do estudo do Spotlight. Importante salutar que a tecnologia nacional e internacional apresenta um constante progresso em diversos setores, com destaque na área da medicina e aeronáutica.5 Entretanto, em relação ao combate do tráfico sexual, em âmbito nacional, há certo antagonismo em relação ao desenvolvimento tecnológico dos demais países do mundo como Estados Unidos e Canadá6. Ainda que o Brasil se mostre interessado 2. 3. 4. 5. 6. Ibid., p. 21. UNODC. Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas – Perfil de País América do Sul. 2018, p. 4950. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//Topics_TIP/ Publicacoes/2018_GloTiP_South_America.pdf>. Acesso em 05 de dezembro de 2019. LOWENKRON, Laura. Abuso sexual infantil, exploração sexual de crianças, pedofilia: diferentes nomes, diferentes problemas?. Revista Latinoamericana: Sexualidad, Salud y Sociedad. Nº. 5. 2010, p. 18. UFES, Comunicação Corporativa da Embraer e Superintendência de Comunicação da Ufes. Ufes e Embraer conduzem primeiro teste de aeronave autônoma no Brasil. 2019. Disponível em: <http://www.ufes.br/conteudo/ufes-e-embraer-conduzem-primeiro-teste-de-aeronaveautonoma-no-brasil>. Acesso em: 14 out. 2019. THORN. Spotlight. We are thorn. Estados Unidos, 2019. Disponível em: <https://www.thorn. org/spotlight/>. Acesso em: 20 set. 2019. no desenvolvimento da Inteligência Artificial (IA) e de novos métodos tecnológicos, ainda há muito o que ser feito, em especial quando relativo ao combate criminal. Assim, cada capítulo demonstra uma evolução no estudo do tema. Por primeiro, apresenta-se como propósito o panorama mundial perante o tráfico internacional de crianças, por meio do desenvolvimento histórico e cultural. Tal como os conceitos existentes em tratados e convenções sobre o tráfico internacional de pessoas, a apresentação dos dados relativos ao tráfico internacional de crianças e as vertentes existentes acerca da exploração sexual que deram ensejo à escolha do estudo da prostituição infantil. Em segundo plano, será abarcado o contexto brasileiro sobre o tráfico de crianças. Neste âmbito, importante ressaltar as diversas formas de aliciamento e de destinos diferentes que sofrem esses menores, visto ser o Brasil um país de grande extensão territorial, capaz de apresentar formas distintas em cada região. Ademais, serão apresentadas as formas de combate ao crime, tanto por parte governamental, como por Organizações Não-Governamentais (ONGS). Desta forma, passa-se à análise do desenvolvimento das tecnologias ao combate do crime em exposto. Como objeto central do artigo, aprimorarse-á o estudo perante o Spotlight, bem como seu conceito, funcionamento e efeitos produtivos. Por último, necessária a comparação da tecnologia brasileira perante o mundo. De modo mais específico, será estudado o conceito de inovação com as leis que regulam o tema no Brasil e a análise das formas de tecnologia e de Inteligência Artificial existentes, a fim de observar a viabilidade da inclusão de novas tecnologias à assistência no combate ao ilícito penal. A pesquisa será realizada a partir do método dedutivo, com análise de fontes primárias - documentos de organizações internacionais e nacionais - e secundárias, a saber, obras acadêmicas e jurisprudência. A concepção crítica analítica se mostrará necessária para o viés de comparação das formas de combate existentes no mundo, em especial, ao Spotlight, a fim de que seja implementado em solo brasileiro. A análise que será apresentada terá como pressuposto o impacto que o atual modelo globalizado, voltado ao acúmulo de capital e de pessoas que se aproveitam da vulnerabilidade das crianças dentro do sistema, pode proporcionar ao desenvolvimento de métodos tecnológicos de combate ao cenário existente. 1 TRÁFICO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS: POR QUE A PROSTITUIÇÃO? As relações de poder são consideradas disputas ou jogos estratégicos dos quais pessoas livres se posicionam acima de outro grupo a fim de controlar seus comportamentos e possibilitar diversos crimes, dentre eles, o tráfico de pessoas. Tal delito esteve presente na história da humanidade, tão logo no século XIX e teve destaque com o tráfico de escravos para colônias de Portugal e Espanha7. Este conceito tem origem no ano 2000, com o Protocolo de Palermo, e apresenta no artigo 3º sua definição de forma bem abrangente como: Tráfico de pessoas constitui-se no “recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação rapto, fraude, engano, abuso de autoridade ou situação de vulnerabilidade ou entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração”, entretanto, sem conceituar o que seria as “outras formas de coerção”, “abuso de poder” ou “outras formas de exploração sexual. Mesmo sem uma definição concisa, é considerado uma das atividades criminosas mais rentáveis do mundo, por apresentar como margem de lucro aproximadamente 150,2 bilhões de dólares por ano, perdendo em termos numéricos apenas do tráfico de armas e de drogas8. Tem como objeto principal o ser humano, podendo ser tanto mulher, homem, criança, adolescente ou até mesmo pessoa transgênero. Entretanto, todos os sujeitos listados possuem a finalidade de serem transformados em mercadorias com o intuito de adquirir o lucro9. Devido à sua abrangência indiscutível, o tráfico de pessoas se subdivide de acordo com suas finalidades: trabalhos ou serviços forçados, servidão, remoção de órgãos e exploração sexual.10 Nesta última, é PEDRO, Joana Maria; VENSON, Anamaria Marcon. Tráfico de pessoas: uma história do conceito. Revista brasileira de história. v.33, nº65. São Paulo, 2013, p. 62. 8. INTEGRITY, Global Financial. Transnational Crime and the Developing World. 2017. Disponível em: <https://secureservercdn.net/45.40.149.159/34n.8bd.myftpupload.com/wp-content/ uploads/2017/03/Transnational_Crime-final.pdf>. Acesso em: 20 set. 2019. LEAL, Maria Lúcia e LEAL Maria de Fátima (Orgs.). Pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil. Brasília: Cecria, 2002, p. xii. 9. BORGES, Paulo César Corrêa. Tráfico de pessoas: exploração sexual versus trabalho escravo. Tráfico de pessoas para exploração sexual: prostituição e trabalho sexual escravo. Editora Cultura Acadêmica. São Paulo. 2013, p. 17. 10. PEDRO, Joana Maria; VENSON, Anamaria Marcon. Tráfico de pessoas: uma história do conceito. Revista brasileira de história. v.33, nº65. São Paulo, 2013, p. 75. 7. identificável quando há uma relação de abuso e mercantilização do corpo alheio com o intuito de adquirir serviços sexuais. Dela correlacionam-se o turismo sexual, a prostituição, a pornografia e o casamento forçado.11 A doutrina se diverge em referência ao conceito de consentimento, ressaltando os pesquisadores Mirabete e Fabbrini, que abordam a prostituição como uma forma consentida de exploração sexual. Com ênfase de que a prostituição e a exploração sexual não se confundem, mas possuem uma relação uma vez que a prostituição é o exercício habitual do comércio e para exercê-la, há a cessão de seu corpo. Entretanto, o conceito mais utilizado no mundo ainda é o associado ao Protocolo de Palermo, que, independente de consentimento, o tráfico sexual com fins de prostituição, ainda configura o ilícito penal. Pois, ainda que a mulher tenha consentimento que terá como fim a prostituição, não tem noção das condições degradantes que lhe esperam. Assim, doutrinariamente, a prostituição é compreendida como uma espécie de exploração econômica, escravidão ou simplesmente de obtenção de prazer e satisfação de desejos sexuais visado à preservação do sistema patriarcal e machista, do qual o homem acredita ter algum poder sobre o corpo de outrem12. Por ser considerada como a “profissão mais antiga do Mundo”, a discussão sobre a prostituição já esteve a cargo de diversas correntes distintas como estratégias de controle13. A primeira, definida como “proibicionismo” proibia a prática, independente de sexo ou idade. Em seguida, a corrente que surgiu foi pelo “sistema de regulamentação”, que visa em princípio proteger a saúde social, tornando-a tolerável. Por último, existe atualmente, o “abolicionismo”, da qual procura estruturar tal ato como liberdade de expressão sexual14. 11. TERESI, Verônica Maria. HEALY, Claire. Guia de Referência para enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Justiça. 2012. p. 58. Brasília. Disponível em:<https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/ cartilhaguiareferencia.pdf>. Acesso em: 21 ago. 2019. 12. SAFFIOTI, Heleieth. Exploração sexual de crianças. In: Azevedo MA, Guerra VN de A. Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. São Paulo. 1989, p. 45-95. 13. RIBEIRO, Fernando Bessa; SÁ, José Manuel de Oliveira. Interrogando a prostituição: uma crítica radical aos discursos hegemônicos. In. Atas do V Congresso Português de Sociologia: Sociedades Contemporâneas - Reflexividade e Ação. Associação Portuguesa de Sociologia. Lisboa, 2004. p. 12. 14. CARVALHO, Érika Mendes de; Gisele Mendes de. direito penal, paternalismo jurídico e tráfico de pessoas para fim de prostituição ou outra forma de exploração sexual. BORGES, Paulo César Corrêa. Tráfico de pessoas: exploração sexual versus trabalho escravo. Tráfico de pessoas para exploração sexual: prostituição e trabalho sexual escravo. Editora Cultura Acadêmica. São Paulo. 2013, p. 73-74. Ademais, leis e acordos internacionais foram criados com a finalidade de uma cooperação entre Estados para o combate deste crime. O primeiro tratado de combate ao tráfico sexual de pessoas constituiu-se no ano de 1904 (White Slave Traffic) com o intuito de impor aos governos a proteção de “objetivos imorais” tanto de mulheres como de crianças no estrangeiro15. Posteriormente, demais institutos foram criados como a Convenção de Paris em 1910, Convenções de Genebra de 1921 e 1933, a Convenção Internacional para a Repressão ao Tráfico de Mulheres Maiores de 1947 e a Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas.16 Dentro dessa rede sexual, também há a visão de como uma forma de sobrevivência - muitas vezes por ser a única forma de sustento da famíliae obtenção de lucro perante as desigualdades sociais existentes, quanto forma de manutenção do tráfico de pessoas17. Neste último, extremamente conectado ao sistema capitalista, é alvo de mulheres, homens e crianças, presente nas ruas, bares, praças públicas, boates, postos de gasolina, estacionamentos, casas especializadas ou simplesmente onde existir público que consuma tal ato18. Neste âmbito, a preservação do sistema patriarcal muito contribui para a manutenção do tráfico, pelo fato dos homens acreditarem possuir um poder superior perante os demais seres da família, cria-se uma corrente entre os próprios traficantes, donos dos prostíbulos e até mesmo policiais, de modo a dificultar alguma forma de denunciação à situação presente19. Estima-se que, em 2005, o tráfico de pessoas fez cerca de 2.4 milhões de vítimas no globo, com aproximadamente 43% destinadas ao tráfico sexual.20 Conquanto existam ínfimos e divergentes dados referentes a categoria, identificou-se dentre as vítimas mais de 1.2 milhões como crianças e adolescentes, com 14.000 casos de desaparecidos apenas na 15. PEDRO, Joana Maria; VENSON, Anamaria Marcon. Tráfico de pessoas: uma história do conceito. Revista brasileira de história. v.33, nº65. São Paulo, 2013, p. 64. 16. CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Tráfico de Pessoas: da Convenção de Genebra ao Protocolo de Palermo. Ministério da Justiça. Brasília, 2007, p. 0708. 17. DIMENSTEIN, Gilberto. Meninas da Noite - A prostituição de meninas-escravas no Brasil. Editora Ática. São Paulo, 1992, p. 31. 18. CECCARELLI, Paulo Roberto. Prostituição - Corpo como mercadoria. In mente & cérebro Sexo. v.4 (edição especial). dez. 2008, p. 06. 19. GOMES, Romeu; MINAYO, Maria Cecília de Souza; FONTOURA, Helena Amaral da. A prostituição infantil sob a ótica da sociedade e da saúde. Revista de Saúde Pública, [s.l.], v. 33, n. 2, p.171-179, abr. 1999, p. 175. 20. BASTOS, Márcio Thomaz. Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Exposição de motivos. 2007. Ministério da Justiça. Brasília, Brasil, p. 57. América Latina,21 sendo dentro da forma de exploração sexual mundial 83% mulheres, 72% garotas, 10% homens e 27% garotos22. No mais, uma criança traficada consiste, de acordo com o Programa Crianças Separadas na Europa (SCEP), como: “Qualquer pessoa menor de 18 anos que seja recrutada, transportada, transferida, mantida sob guarda ou recebida com o propósito de exploração, seja dentro ou fora de um país, ainda que nenhum elemento de coerção, engano, abuso de autoridade ou qualquer outra forma de abuso seja usada”. 23 Algumas garotas, devido à cultura imposta, ainda apresentam enraizada a necessidade do casamento com um homem para poder ter uma vida digna. Por essa razão, muitas meninas, principalmente, se apaixonam por rapazes que pagam seus “programas” que as garantem tirá-las dessa situação, entretanto, nem sempre as promessas são cumpridas24. Logo, a criança demonstra dupla vulnerabilidade perante o sistema ora apresentado. Primeiro, quando exposta às desigualdades, injustiça, negligência, violência doméstica, abuso sexual intrafamiliar, miserabilidade, crescimento da indústria do sexo, ciclo de convivência, falta de estudos e contravenções penais.25 Também junto à globalização por meio das formas de privatização que levam a concorrência, o distanciamento do Estado, a ausência de leis eficazes, a segurança social, e principalmente a predominância do mercado com o incentivo ao consumo e ao sistema capitalista.26 Por fim, possui um maior desamparo por estar na condição de criança e invisível perante os direitos sociais, tanto na ausência de poder em sua voz quanto na inércia do Estado e da família à manutenção de seus direitos27. 21. CUBER Simone; GÓES, Guilherme Sandoval; PAIVA, Lívia. O desaparecimento forçado de meninas no Rio de Janeiro: Desafios do sistema de justiça. NUPEGERE. Rio de Janeiro, 2019. p. 21. 22. UNODC. Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas - Perfil de País América do Sul. 2018. p. 28. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//Topics_TIP/Publicacoes/2018_ GloTiP_South_America.pdf>. Acesso em 05 de dezembro de 2019. 23. TERESI, Verônica Maria. HEALY, Claire. Guia de Referência para enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Justiça. 2012. Brasília. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/ cartilhaguiareferencia.pdf>. Acesso em: 21 ago. 2019, p. 25. 24. DIMENSTEIN, Gilberto. Meninas da Noite - A prostituição de meninas-escravas no Brasil. Editora Ática. São Paulo, 1992, p. 138-139. 25. LOWENKRON, Laura. Abuso sexual infantil, exploração sexual de crianças, pedofilia: diferentes nomes, diferentes problemas?. Revista Latinoamericana: Sexualidad, Salud y Sociedad. nº. 5. 2010. p. 07. 26. BARROS, Marco Antonio de. Tráfico de Pessoas para Fim de Exploração Sexual e Adoção Internacional Fraudulenta. Universidade Presbiteriana Mackenzie. 2010. São Paulo. Disponível em: <http:// www.institutoelo.org.br/site/files/publications/e952d35650c7015da6816b8dae3041f1.pdf>. Acesso em: 20 set. 2019, p. 03-04. 27. MARCHI, Rita de Cássia. Pesquisa Etnográfica com crianças: participação, voz e ética. Rev. Assim, quanto mais suscetível a criança se apresenta, mais brandas serão as formas de aliciamento presentes. Dentre elas são comuns os raptos em supermercados ou shoppings, a venda dos filhos com a promessa da melhoria de vida, as promessas de empregos em especial relativos a modelos ou jogadores de futebol, as idealizações de casamentos às adolescentes, mudança de sexualidade e principalmente, nas comunidades mais pobres a indicação dos próprios familiares para o sustento da casa28. 2 CENÁRIO BRASILEIRO DA PROSTITUIÇÃO INFANTIL DECORRENTE DO TRÁFICO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS O Brasil não se encontra em um cenário tão diverso quanto o restante do planeta quanto ao tráfico de crianças. Quando está na origem do crime, destacam-se as mais variadas formas de aliciamento como a pobreza, ausência de políticas públicas e violência urbana. No entanto, quando proporcionado como país de destino, as crianças e adolescentes são alvos para a utilização como soldados em guerrilhas, tráfico de drogas, tráfico de órgãos e até mesmo adoção ilegal29. Mesmo com o Brasil sendo signatário do Protocolo de Palermo desde 2004 e buscando meios de prevenção e combate a esse crime, necessita-se salientar que é um país de grandes proporções territoriais, com cada região responsável por uma espécie predominante de tráfico de pessoas. Na região Norte, por exemplo, há um predomínio de tráfico para trabalho escravo na região dos garimpos, enquanto no Nordeste o trabalho doméstico e a promessa de casamento com estrangeiros prevalecem. No Sudeste, as cidades apresentam-se mais como as receptoras do tráfico. Por fim, no Centro-Oeste o tráfico é utilizado para servir sexualmente o mercado internacional30. Mesmo com um longo caminho a percorrer, o Brasil apresentou sinais de evolução em relação ao tema. Estudos realizados pelo jornalista Gilberto Dimenstein, próximo aos anos 1990, em regiões do Norte, Nordeste e Centro-Oeste brasileiros contextualizam o cenário a ser passado31. Educação & realidade. v. 43. nº.2. Porto Alegre. abr./jun. 2018, p. 729. 28. DIMENSTEIN, op. cit. passim. 29. LEAL, Maria Lúcia e LEAL Maria de Fátima (Orgs.). Pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil. Brasília: Cecria, 2002. 30. Ibid., p. 76-85. 31. Em Laranjal do Jari, no Amapá, a lenda do boto era comumente conhecida sendo capaz de aterrorizar jovens garotas e acalmar a ira paterna de diversas famílias. No entanto, sabese que o querido boto não é o responsável por essa história. Local de poucos habitantes e forte corrupção política, famosas eram as casas de prostituição. Nelas, diversas meninas eram rotineiramente violentadas e estupradas em troca de dinheiro para manutenção de suas A ingenuidade das crianças e adolescentes pela ausência de estudos e recursos facilita uma boa parte da ação dos criminosos, que as prometem formas de lazer que nunca tiveram acesso na vida. Ademais, muitas que já estão inseridas na vida da prostituição, também se iludem por companheiros fixos que as prometem tirar da vida, quando na realidade, pode ser só mais um facilitador da entrada ao tráfico sexual32. Em São Paulo, uma das mais importantes metrópoles, no século XIX, a prostituição já estava presente, tanto no nível de mulheres e homens adultos, como no que concerne às crianças. Na região do Brás, próximo as chamadas “Hospedaria dos Imigrantes” cafetões aliciavam jovens inexperientes e recém-chegadas para a venda de seu corpo33. Nas casas de prostituição em si, o funcionamento se dava mediante lei, devendo haver fiscalização, fixação local afastado de escolas ou fábricas, pagamento de taxas municipais e tratamento das mulheres. Caso menores fossem encontrados nesses lugares, eram encaminhadas para o “Asilo Bom Pastor” ou para a “seção de regeneração”. Com o passar dos anos, esses estabelecimentos especializados estavam extremamente lotados e a repressão a prostituição se tornava cada vez mais difícil, mesmo com a criação do Juizado de Menores, do qual visava a assistência e proteção à essas crianças34. De acordo com a Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (PESTRAF), as meninas costumam tomar o lugar de preferência no mercado sexual. As principais características apresentadas são de meninas negras ou mulatas, com idades de 15 a 25 anos, sendo as menores de idade mais condizentes com o tráfico interno visto a dificuldade na retirada de crianças do país. Mesmo assim, ainda, não se pode realizar com exatidão um perfil de meninas e mulheres, nem mesmo um número de vítimas, uma vez que os dados são extremamente variáveis. Além do que, muitas das vítimas famílias, com a esperança de ganharem o seu “passe”, espécie de carta de alforria, para aquela situação tão deplorável (DIMENSTEIN, 1992, p. 38). Outro tipo de violência apresentada, mas em Manaus, capital do Amazonas, eram os abusos sexuais em família. Aproximadamente 95% das meninas apresentadas no estudo são de famílias desestruturadas. De rigor, 80% não possuem contato com o pai, 30% os pais já faleceram, 35% alegam já terem sofrido abuso dentro de casa e 50% condenam a bebida como o problema da família. Além do mais, o padrasto ocupa o terceiro lugar em tentativas de estupro e o cunhado em primeiro (DIMENSTEIN, 1992, p. 66-71). 32. Ibid., p. 108. 33. FONSECA, Guido. História da prostituição em São Paulo. Editora Resenha Universitária. São Paulo. 1982, p. 135. 34. Ibid., p. 67 e 165-166. têm receio de denunciar, tanto pelos estigmas sociais impostos quanto por medo do que lhes podem acontecer. A coisificação da pessoa nesses casos possui um agravante, pois, as meninas se tornam dependentes financeiramente dos cafetões de modo a gerar um quadro cíclico. O princípio da violência fica na cobrança pelos serviços sexuais para saldar as dívidas, no abuso da situação de vulnerabilidade, violência, no cárcere privado, retenção de documentos e os gastos com o deslocamento35. Conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, nos últimos 10 anos registrou-se uma média de 8 desaparecimentos por hora, com registro de 693.076 boletins de ocorrência por desaparecimento. Tal desaparecimento, bem como já alegado, possui “relação” com um longo processo de exclusão capitalista, do qual descarta-se aqueles que não são capazes de produzir ou consumir em quantidades suficientes à satisfação do lucro. Além do que, as vulnerabilidades econômicas muito contribuem dentro desses acontecimentos sociais36. Ademais, segundo o UNODC, em 2014 obteve-se uma incidência de 28 de 44 crianças traficadas com propósitos sexuais, aumentando em 2015 para 50 meninas de 101 casos e em 2016 para 42 meninas de 75 casos37. Com o intuito de dirimir os números apresentados anualmente, o Governo brasileiro apresentou mudanças nas legislações, bem como ratificações a tratados internacionais. Por primeiro, de maior importância no âmbito nacional, se trata da própria regulamentação da lei penal. O artigo 232-A regulamenta penas àqueles que promoverem a entrada ilegal de estrangeiro no território nacional ou de pessoa brasileira em país estrangeiro, com o intuito de obter vantagem econômica. Ademais, a Lei nº 13.344/2016 dispõe sobre o combate e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas com o intuito de apreender os criminosos, proteger as vítimas e disponibilizar campanhas a fim de enfrentar o assunto. Ao contrário do senso comum, não há ato ilícito para o adulto que se prostitui. A prostituição é reconhecida na Classificação Brasileira das Ocupações, por portaria do Ministério do Trabalho e do Emprego, inexiste uma lei que regulamente a profissão. O que está regulamentado no Código 35. DIMENSTEIN, op. cit., p. 114-115. 36. FÓRUM DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário brasileiro de segurança pública. 2019. Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Anuario-2019FINAL_21.10.19.pdf>. Acesso em 05 de dezembro de 2019, p. 69. 37. UNODC. Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas - Perfil de País América do Sul. 2018. p. 28. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//Topics_TIP/Publicacoes/2018_ GloTiP_South_America.pdf>. Acesso em 05 de dezembro de 2019. 10-11 Penal consiste apenas no favorecimento da utilização do corpo em troca de lucratividade. O artigo 228 do Código Penal dispõe sobre o favorecimento da prostituição ou qualquer outra forma de exploração sexual com pena de 2 a 5 anos e multa, com possíveis formas qualificadoras quando se tratar de agentes específicos como ascendentes, enteados, cônjuges ou curadores. Apenas em 2009 foi incluído o artigo 218-B, do qual inclui a criança ou adolescente, com aumento de 4 a 10 anos de reclusão, a fim de combater a prostituição infantil, em especial ao se constatar que determinadas regiões do norte passavam a ser consideradas paraísos para o turismo sexual38. Ainda no mesmo diploma legal, aquele que mantiver estabelecimento em que ocorra a exploração sexual ou para quem apenas obter proveito da prostituição alheia participando de lucros, também são passíveis de cometer crime. Desta forma, estabeleceu-se uma proteção maior ao menor de idade com a condenação do agenciador, mediador, proprietário do estabelecimento e até mesmo do próprio cliente39. Ademais, apesar de não ser exatamente o tema tratado, a migração possui drásticas influências, visto que permite a entrada ou saída de migrantes no país, também podem auxiliar na trajetória das vítimas do tráfico. Por esse motivo, em 2017 foi instituída a lei de migração (Lei nº 13.445/2017) que dispõe sobre os direitos e deveres do migrante, bem como a regulamentação da chegada ao país, a regulamentação dos documentos, de suas condições, a viabilização da proteção desse ser e as vedações ou medidas de cooperação que podem ser aplicadas ao caso. Em relação às crianças e adolescentes, são codificados seus direitos pessoais e sociais principalmente por meio da Constituição Federal, nos artigos, 203, inciso II, 208, inciso IV e todo o capítulo VII deste código. O principal dispositivo brasileiro assegura o dever do Estado com a educação, desde a pré-escola e educação infantil até o ensino médio e o dever de ser assegurar para esses indivíduos o direito à vida, saúde, dignidade e respeito. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei nº 8.069/1990) apresenta-se como segundo maior regulador da proteção integral da criança e do adolescente, sobretudo nos direitos de vida, saúde, liberdade, respeito, dignidade, convivência familiar e comunitária, a guarda ou tutela, educação, cultura, esporte, lazer, profissionalização e 38. BORGES, Paulo César Corrêa. Tráfico de pessoas: exploração sexual versus trabalho escravo. Tráfico de pessoas para exploração sexual: prostituição e trabalho sexual escravo. Editora Cultura Acadêmica. São Paulo. 2013, p. 30-36. 39. BORGES, Paulo César Corrêa. Tráfico de pessoas: exploração sexual versus trabalho escravo. Tráfico de pessoas para exploração sexual: prostituição e trabalho sexual escravo. Editora Cultura Acadêmica. São Paulo. 2013, p. 31. proteção ao trabalho e das práticas de atos infracionais, visto que menores de 18 (dezoito) anos não cometem crimes. Neste aspecto, a norma surgiu para regularizar a “situação irregular” destes indivíduos, anteriormente considerados “menor”, à substituição de novos termos como “proteção integral” e “o melhor interesse da criança”, fatos plausíveis a transformação das crianças em sujeitos de direito. O Governo Federal também criou, junto à Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) e a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, por do Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006. Considera-se o mais importante instrumento habilitado a carregar diretrizes, regulamentação da prevenção, repressão e a responsabilização do crime. No plano internacional, há um projeto conjunto entre o Ministério da Justiça e o UNODC com o Programa de Combate ao Tráfico de Seres Humanos, a ratificação do Protocolo Contra o Tráfico de Pessoas em 2004, o alinhamento a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança em 1998, o Protocolo Facultativo da Convenção sobre os Direitos da Criança sobre a Venda de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil (1999) e a Convenção Interamericana sobre o Tráfico Internacional de Menores (1994). Bem como já supracitado por Dimenstein, devido às dificuldades encontradas, as garotas veem em seus clientes uma forma de saída desse mundo para ter uma família, contudo muitas delas se frustram por não terem as promessas realizadas. Assim, o psicológico é outro ponto a se abordar, visto que os abusos e os traumas se perpetuarão pela vida da pessoa. A necessidade desse acompanhamento pós-traumático é dever do Estado Brasileiro, conforme dispõe o artigo 39 da convenção dos Direitos da Criança da ONU, no qual o Brasil é signatário: Os Estados Partes devem adotar todas as medidas apropriadas para promover a recuperação física e psicológica e a reintegração social de todas as crianças vítimas de: qualquer forma de negligência, exploração ou abuso; tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; ou conflitos armados. A recuperação e a reintegração devem ocorrer em ambiente que estimule a saúde, o respeito próprio e a dignidade da criança. Outrossim, junto aos órgãos não governamentais, foram implementados alguns programas de combate ao tráfico internacional de crianças. O programa de Assistência a Crianças e Adolescentes vítimas de tráfico para fins de exploração sexual, criado desde outubro de 2006 tem o intuito de propagar eficiência ao atendimento social psicológico e jurídico às crianças vítimas de tráfico, com o mero intuito de ressocializar a criança e retorná-la a uma possível convivência familiar e atividades produtivas40. Por sua vez, o Serviço de Prevenção ao Tráfico de Mulheres e Meninas (SMM), criado em 1991, possui a finalidade de combater a exploração sexual comercial de mulheres, crianças e adolescentes por meio da promoção da justiça social. Junto a Pastoral da Mulher Marginalizada, localizada em Caxias do Sul, RS, essa entidade iniciou uma parceria de prevenção ao crime direcionado a grupos de estudantes a fim de instruir e fortalecer sobre os riscos do tráfico sexual e apresentar o senso crítico perante a realidade disposta41. Foi criado também o projeto “Itineris: Proteção dos direitos dos migrantes contra a exploração, do Brasil para Estados-Membros da União Europeia”, responsável pelo fortalecimento institucional ao tráfico de pessoas. O objetivo principal da pesquisa consistia em levantar informações sobre os Núcleos e Postos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, bem como suas necessidades e as recomendações das equipes responsáveis pelas atividades dos locais de atendimento a vítimas. Ao todo, constituiu-se de onze núcleos de enfrentamento, postos de atendimento e organizações governamentais e não governamentais. Neste projeto estudou-se as debilidades ao enfrentar o tema, que serão abordadas com mais detalhes no próximo capítulo42. Apesar de toda legislação vigente e todos os programas criados com o intuito de prevenir e combater o tráfico sexual de crianças, nenhuma das medidas apresentadas são totalmente eficazes, visto que a inércia no modo de atuação dos governos existe de forma exponencial. Assim, outras medidas concretas de outros Estados devem ser estudadas para possíveis implementos no país, sobretudo em relação ao uso da tecnologia no combate ao tráfico de crianças e adolescentes para fins de exploração sexual, como veremos a seguir. 40. BRASIL; UNODC. Prevenção ao tráfico de pessoas com jovens e adolescentes. Disponível em: <https:// www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos-pesquisas/ prevencaotpja.pdf>. Acesso em 05 de dezembro de 2019, p. 05-06. 41. BRASIL; UNODC. Prevenção ao tráfico de pessoas com jovens e adolescentes. Disponível em: <https:// www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos-pesquisas/ prevencaotpja.pdf>. Acesso em 05 de dezembro de 2019. 42. BRASIL. Guia de Formação de Formadores para a Rede de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil / Raul Araujo; Secretaria Nacional de Justiça – 1a ed. Brasília : Ministério da Justiça, 2013. p. 08. 3 A UTILIZAÇÃO DA TECNOLOGIA NO COMBATE AO TRÁFICO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES: ANÁLISE DO SPOTLIGHT O tráfico sexual de crianças tem sido objeto primordial nos discursos políticos tanto em âmbito nacional quanto internacional na tentativa de combater o tráfico e na manutenção dos direitos humanos, bem como o direito de liberdade43. Contudo, a elaboração de política criminal depende do interesse do Estado no combate as organizações criminosas como um todo. Ademais, existem determinados indicadores passíveis de identificar o tráfico de crianças, como o não acesso aos pais ou tutores, aparência intimidadora com atitudes habituais, comportamentos atípicos para sua idade, a inexistência de acesso à educação ou para o lazer, a separação com outras crianças e má alimentação44. Assim, o que merece maior destaque no momento, é o combate a esses seres mais vulneráveis. Atualmente os métodos de combate existentes para esse crime organizado partem basicamente do trabalho em rede, com a “cooperação internacional, regional e até multilateral, e ainda por meio da cooperação, técnica policial, tecnológica, econômica e de mecanismos de comunicação”45. A tecnologia já está enraizada no cotidiano das pessoas. O rápido avanço que ela proporciona é de suma importância em vários setores, inclusive no combate ao tráfico de pessoas. Mesmo com o avanço tecnológico e com a difusão de informações o crime só aumenta, ainda mais no que concerne às crianças, das quais são alvos ainda mais procurados devido a sua vulnerabilidade na Internet. Assim, a tecnologia muito tem sido utilizada em detrimento das vítimas de tráfico de pessoas, posto que atualmente é o meio mais eficaz de contato e recrutamento, principalmente com o estímulo das redes sociais, dos quais podem desde conversar anonimamente com as vítimas até mesmo aliciar pelas postagens de serviços diversos46. 43. BRAGA, Ana Gabriela Mendes. A vítima-vilã: A constrição da prostituta e seus reflexos na política criminal. Tráfico de pessoas para exploração sexual: prostituição e trabalho sexual escravo. BORGES, Paulo César Corrêa. Tráfico de pessoas: exploração sexual versus trabalho escravo. Tráfico de pessoas para exploração sexual: prostituição e trabalho sexual escravo. Editora Cultura Acadêmica. São Paulo. 2013. p.228. 44. TERESI, Verônica Maria. HEALY, Claire. Guia de Referência para enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Justiça. 2012. Brasília. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/ cartilhaguiareferencia.pdf>. Acesso em: 21 Ago. 2019. 45. TERESI, op. cit., p.44 46. SHADDIX, Rebecca Sadwick. 7 Ways Technology is Fighting Human Trafficking. Forbes. 2016. Disponível em: <https://www.forbes.com> Acesso em: 27 Ago. 2019. Entretanto, apesar de ser utilizado com finalidades negativas, os avanços tecnológicos e a ciência em si têm se mostrado como uma ferramenta facilitadora no combate por agentes públicos responsáveis pelo caso, tanto no monitoramento das atividades ilícitas, localização do resgate das vítimas, coleta de dados ou até mesmo na comunicação com os traficantes47. Os principais meios utilizados são: O programa Memex da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (DARPA), o Centro Nacional de Recursos de Tráfico Humano (NHTRC), o PhotoDNA da Microsoft, a CyberTipline e o Spotlight. Este último, como se verá adiante, é um software de IA desenvolvido pela ONG Thorn com o objetivo de identificar e diminuir o tempo de investigação do crime de tráfico.48 A fundação Thorn, inicialmente conhecida como DNA, foi fundada em 2009 pelo então casal de atores Ashton Kutcher e Demi Moore que tinham como foco o combate no tráfico de crianças nos EUA e Canadá 49. De início, os fundadores perceberam que o crime não era tão simples quanto parecia, uma vez que não se apresentava apenas em um país específico, mas sim no mundo inteiro. Com a ajuda da atual CEO Julie Cordua, descobriuse que a tecnologia possuía um papel de grande influência tanto na extensão do crime como em sua solução. A partir de então, investiram em possíveis inovações tecnológicas a fim de cessar com o tráfico de crianças50. Inicialmente a Thorn criou um protótipo para auxiliar na identificação das crianças vítimas do tráfico sexual e fornecimento de forma gratuita à polícia, o que possibilitou o desenvolvimento de outras tecnologias e o aprofundamento de conhecimentos técnicos sobre o assunto a fim de adquirir melhores soluções aos casos51. Decerto que este recurso surgiu para simplificar o processo e auxiliar na busca das vítimas, com a utilização de três princípios básicos: acelerar a identificação da vítima, trabalhar sob uma plataforma em equipe e empoderar o público, uma vez que os agentes não possuem o tempo necessário para navegar neste mercado tão vasto52. 47. Ibid. 48. SHADDIX, Rebecca Sadwick. 7 Ways Technology is Fighting Human Trafficking. Forbes. 2016. Disponível em: <https://www.forbes.com/sites/rebeccasadwick/2016/01/11/tech-fightinghuman-trafficking/#10b8207c6cac> Acesso em: 27/08/2019. 49. THORN. Spotlight. We are thorn. Estados Unidos, 2019. Disponível em: <https://www.thorn. org/spotlight/>. Acesso em: 20 set. 2019. 50. THORN. 51. THORN. 52. THORN. Spotlight. We can eliminate sexual abuse from internet. Estados Unidos, 2019. Disponível em: <https://www.thorn.org/spotlight/>. Acesso em: 20 set. 2019. Atualmente, contam com parceiros na ajuda da identificação com o software de IA e patrocinadores como: Google.org, Microsft, AWS, Facebook, Twitter entre outras organizações que são líderes do mercado na área de tecnologia e ao mesmo tempo sites estratégicos que as pessoas utilizam no cotidiano. Além do que, no setor público contam com a ajuda de 8.345 policiais nos 50 estados americanos, e no Canadá. Ademais, há parceria com 70 organizações sem fins lucrativos, contabilizando mais de 350 membros da comunidade tecnológica para auxiliar na missão e mais de 2.000 doadores investindo na causa53. Outrossim, estão presentes em seu site propostas de doações e a possibilidade de serem feitas denúncias por chat online, mensagens de texto ou ligação, sendo as denúncias são tanto de relatos vistos, como das próprias vítimas que buscam ajuda54. Com todo aporte financeiro e estratégico, o Spotlight apresenta como principal objetivo a busca por crianças desaparecidas pelo tráfico sexual, por meio do aumento na eficiência e eficácia das investigações a fim de majorar o número de pessoas e crianças identificadas e conectadas com recursos de ajuda55. A atuação da plataforma também se dá na proteção de plataformas vulneráveis ao conteúdo e aos comportamentos abusivos. Com o guia de boas práticas fornecido pela ONG, há um cadastro para o fornecimento das melhores práticas e concretização dos passos das empresas no auxílio à proteção da criança em suas plataformas. Outro auxílio também consiste no aumento da velocidade para identificação e remoção de conteúdos acerca do tráfico infantil56. Esses recursos são capazes de identificar vítimas do tráfico sexual de crianças ou apenas resgatá-las por meio de abusos registrados. Os temas que abrangem a plataforma consistem no material de abuso infantil, sendo este basicamente o termo mais completo a fazer referência sobre atividades sexuais que envolvem uma criança como a divulgação de vídeos e imagens, transmissão ao vivo (incluído neste tópico a prostituição da criança), a extorsão (ameaça na divulgação de imagens que foram tiradas sem seu consentimento) e o tráfico doméstico menor (exploração sexual e abuso 53. THORN. Spotlight. Our Strategy to Eliminate CSAM From the internet. Estados Unidos, 2019. Disponível em: <https://www.thorn.org/spotlight/>. Acesso em: 20 set. 2019. 54. THORN. Spotlight. Sextortion is an emerging from online abuse. Estados Unidos, 2019. Disponível em: <https://www.thorn.org/spotlight/>. Acesso em: 20 set. 2019. 55. THORN. Spotlight. Getting the best advantage into the rights hands. Estados Unidos, 2019. Disponível em: <https://www.thorn.org/spotlight/>. Acesso em: 20 set. 2019. 56. THORN. Spotlight. Child pornography is sexual abuse material. Estados Unidos, 2019. Disponível em: <https://www.thorn.org/spotlight/>. Acesso em: 20 set. 2019. nas fronteiras dos estados, tipicamente conhecido como tráfico sexual). Em síntese, utilizam a frase a seguir como pioneira de seu site: Toda nova plataforma e nova tecnologia poderia permitir um agressor. Também pode ser a nossa melhor arma contra eles. Dedicamo-nos a acabar com o tráfico sexual de crianças e a exploração sexual de crianças. E não vamos parar até que toda criança possa ser apenas uma criança.57 Contudo, tal sistema vai muito além de uma frase de impacto nas redes sociais. O Spotlight já pôde identificar cerca de 10.496 traficantes e 37.741 vítimas, sendo 9.380 crianças. Em média, a utilização desta ferramenta auxilia na identificação de mais de 8 crianças por dia com 63% de economia de tempo nos processos judiciais ou investigações criminais58. Relata-se que, nos últimos dez anos, de cada quatro vítimas menores de idade, três afirmaram já terem sido anunciadas online em algum momento do tráfico e mais de 44 milhões de imagens e vídeos suspeitos de abuso sexual de crianças já foram reportados para o National Center for Missing and Exploited Children em 201859. No mais, com o número crescente de fake news, propagação de mentiras pela internet e a facilidade de alterar idade – em que quase sempre as crianças são anunciadas como se fossem maiores de 18 anos -, nomes e esconder rostos em fotos, dificulta a ação das autoridades competentes. Entretanto, com o Spotlight, há um auxílio aos agentes do Estado norteamericano para uma melhor compreensão do histórico familiar e do ambiente do qual elas vivem, além do que, o software é essencial para o combate e prevenção do crime60. Segundo o relatório de impacto de 2016 daquela organização, 2.020 crianças foram identificadas na condição de abuso sexual. Em 2017, esse número cresceu para 5.894 crianças identificadas e 103 resgatadas, além da visualização de mais de 2,6 milhões de pessoas com 140.000 casos que esses indivíduos procuram por ajuda. Por fim, o último relatório de 2018 constatou mais de 9.000 policiais usando a plataforma diariamente, com 57. Every new platform and new technology could enable an abuser. It can also be our best weapon against them. We are dedicated to ending child sex trafficking and the sexual exploitation of children. And we won’t stop until every child, can just be a kid. 58. THORN. Spotlight. Spotlight helps find kids faster. Estados Unidos, 2019. Disponível em: <https://www.thorn.org/spotlight/>. Acesso em: 20 set. 2019. 59. THORN. Spotlight. Child pornography is sexual abuse material. Estados Unidos, 2019. Disponível em: <https://www.thorn.org/spotlight/>. Acesso em: 20 set. 2019. 60. THORN. Spotlight. Our Strategy to Eliminate CSAM From the internet. Estados Unidos, 2019. Disponível em: <https://www.thorn.org/spotlight/>. Acesso em: 20 set. 2019. 35 funcionários inspirados na inovação 24 horas por dia em nome das crianças61. Atualmente, conforme já mencionado, o Spotlight atua somente nos EUA e Canadá. Contudo, o foco é expandir as fronteiras. Os programas, a comunidade e a equipe crescem a cada dia, fato que proporciona ao programa pensar em maiores contribuições e novos lançamentos de ferramentas na plataforma, bem como a divulgação de oito novos países, tamanha eficiência que o software tem se mostrado62. Dessa maneira, o capítulo seguinte objetivará demonstrar quais seriam os benefícios da possível implementação do Spotlight no Brasil para o combate ao tráfico de crianças e adolescentes para fins de exploração sexual. 4 BOAS PRÁTICAS NO COMBATE AO TRÁFICO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES POR MEIO DO USO DA TECNOLOGIA: ANÁLISE DA POSSIBILIDADE DE IMPLEMENTAÇÃO DO SPOTLIGHT NO BRASIL A inserção do Spotlight no Brasil seria inviável sem uma análise prévia das circunstâncias positivas e negativas da implementação da tecnologia no país. Com isso, não há a possibilidade de se falar de tecnologia se não junto à inovação. A inovação consiste na criação ou aperfeiçoamento de bem ou serviço no mercado produtivo, capaz de afetar empresas, indivíduos e sociedade como um todo, a partir das condições de produção e mercado e perante o estudo dos desafios tecnológicos e científicos63. 4.1 MARCO DA INOVAÇÃO NO BRASIL Para o desenvolvimento da inovação, é necessária a aproximação entre governo, empresa e universidade. Este trio atua a partir de concessões de bolsas a pesquisadores, auxílio à pesquisa e infraestrutura, subvenção econômica, empréstimos, variação de renda, compra do Estado com margem de preferência local, encomendas tecnológicas, incentivos fiscais, 61. THORN. Spotlight. Our Strategy to Eliminate CSAM From the internet. Estados Unidos, 2019. Disponível em: <https://www.thorn.org/spotlight/>. Acesso em: 20 set. 2019. 62. THORN. Spotlight. We are thorn. Estados Unidos, 2019. Disponível em: <https://www.thorn. org/spotlight/>. Acesso em: 20 set. 2019. 63. SALERNO, Mario Sergio. Políticas de inovação no Brasil: desafios de formulação, financiamento e implantação. COUTINHO, Diogo R; FOSS, Maria Carolina; MOUALLEM, Pedro Salomon B. Inovação no Brasil: Avanços e desafios jurídicos e institucionais. Editora Edgard Blücher Ltda. 2017, p.80. bônus tecnológico e títulos financeiros. Tais cláusulas podem caminhar tanto em conjunto quanto isoladamente, mas todas são essenciais à propagação da Inovação no país64. No Brasil, apesar de não ser um parâmetro mundial, desde o governo de Juscelino Kubitschek existem políticas de incentivos à inovação nas empresas, com sua internacionalização e atração de multinacionais ao país65. Ademais, diversas leis foram criadas com a finalidade do incentivo à inovação, como a Lei de Inovação, capaz de regulamentar pela primeira vez as inovações no país e a Lei do Bem e da Informática, responsáveis por incentivos fiscais. Estas regulamentações, já foram capazes de beneficiar cerca de 510 empresas, juntas com isenções tributárias de aproximadamente 6,9 bilhões.de reais66. São também dignas de destaque instituições, como o plano Inova Empresa e o BNDES, que atuam junto às agências federais no intuito de estimular as parcerias existentes entre universidades e as empresas, a partir da concessão de programas de crédito e de bolsas de estudos para a formação e capacitação dos funcionários67. Somente o BNDES, a partir dos anos 2000, foi responsável pela contratação de 13,7 bilhões de reais em programas de incentivo à inovação68. Importante salientar que sem a intervenção governamental e o comprometimento com as pesquisas científicas, a inovação se torna impossível. Os Estados mais desenvolvidos atualmente, em algum momento da sua história, já utilizaram dos recursos de seus governos para desenvolverem suas tecnologias, tendo assim incentivos à pesquisa e ao 64. MCTIC. ESTRATÉGIA NACIONAL DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO: Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Econômico e Social. Brasília, 2016. Disponível em: <https://portal.insa.gov.br/images/documentos-oficiais/ENCTI-MCTIC-2016-2022. pdf>. Acesso em: 14 out. 2019. 65. SALERNO, Mario Sergio. Políticas de inovação no Brasil: desafios de formulação, financiamento e implantação. COUTINHO, Diogo R; FOSS, Maria Carolina; MOUALLEM, Pedro Salomon B. Inovação no Brasil: Avanços e desafios jurídicos e institucionais. Editora Edgard Blücher Ltda. 2017, p.81 66. RAUEN, André Tortato. Avaliação de políticas federais de inovação: desconexão e ausência. COUTINHO, Diogo R; FOSS, Maria Carolina; MOUALLEM, Pedro Salomon B. Inovação no Brasil: Avanços e desafios jurídicos e institucionais. Editora Edgard Blücher Ltda. 2017, p.132 67. BUAINAIN, Márcio; JÚNIOR, Irineu de Souza Lima; CORDER, Solange. Desafios do financiamento à inovação no Brasil. COUTINHO, Diogo R; FOSS, Maria Carolina; MOUALLEM, Pedro Salomon B. Inovação no Brasil: Avanços e desafios jurídicos e institucionais. Editora Edgard Blücher Ltda. 2017, p. 119-120 68. SOUZA, Eduardo Pinho Pereira e Souza; MARQUES, Felipe Silveira;Abreu, Isabela Brod Lemos de; CAPANEMA, Luciana Xavier de Lemos; SILVA, Vanessa Pinto Machado e. Atuação do BNDES no sistema brasileiro de inovação: avanços e oportunidades. COUTINHO, Diogo R; FOSS, Maria Carolina; MOUALLEM, Pedro Salomon B. Inovação no Brasil: Avanços e desafios jurídicos e institucionais. Editora Edgard Blücher Ltda. 2017, p.117 desenvolvimento se propagando até os dias atuais69. Os Estados Unidos e a China por exemplo, já muito investiram em tecnologia militar, com o primeiro investimento em pesquisa básica e especificação de seus recursos70. Estes Estados não atingiram o nível de tecnologia que possuem repentinamente. Os riscos inerentes à tecnologia são amplos, motivo pelo qual os investimentos em pesquisas científicas de base são essenciais, tanto para o próprio desenvolvimento da tecnologia como para o atendimento das exigências da sociedade71. Com a crise econômica de 2008, os Estados afetados e integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), da qual o Brasil faz parte, começaram a investir na pesquisa científica, que é a base da geração de conhecimento, e no suporte teórico de geração de tecnologia, para então poder gerar inovação72. Incontestável, a partir dos parâmetros apresentados, que a inovação é o ponto essencial ao avanço de um Estado nos campos econômicos e tecnológicos. Contudo, a interpretação não pode ser restrita. Se a inovação é crucial para tais avanços, infere-se que poderia ser também utilizada no combate da criminalidade. Conforme salientado, a inovação é essencial ao desenvolvimento tecnológico, que pode se dividir em convencional e social. A tecnologia convencional é capaz de produzir mercadorias, trabalhos sociais e consequentemente o lucro, de modo a alimentar o sistema capitalista e poupar a mão-de-obra73. Entretanto, apesar de ser muito contributivo no âmbito da produção e sociedade, é capaz de prejudicar os pequenos empresários ao aumentar cada vez mais a concorrência apenas entre as grandes empresas, e deixar o lucro apenas para quem já os detém. Por esse motivo, a tecnologia convencional não é a finalidade deste trabalho. O que se pretende construir e analisar neste artigo consiste nos benefícios apresentados pela tecnologia social e pelo empreendedorismo de 69. NEGRI, Fernanda de. Novos caminhos para a inovação no Brasil. Editora Wilson Center. Washington, DC. 2018, p. 100-101 70. SALERNO, Mario Sergio. Políticas de inovação no Brasil: desafios de formulação, financiamento e implantação. COUTINHO, Diogo R; FOSS, Maria Carolina; MOUALLEM, Pedro Salomon B. Inovação no Brasil: Avanços e desafios jurídicos e institucionais. Editora Edgard Blücher Ltda. 2017. p.79 71. SALERNO, op. cit., p. 84. 72. MCTIC. ESTRATÉGIA NACIONAL DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO: Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Econômico e Social. Brasília, 2016. Disponível em: <https://portal.insa.gov.br/images/documentos-oficiais/ENCTI-MCTIC-2016-2022. pdf>. Acesso em: 14 out. 2019, p.74 73. BANCO DO BRASIL. Transformar realidades por meio das tecnologias sociais. Disponível em: <https://transforma.fbb.org.br/sobre-nos>. Acesso em: 14 out. 2019. impacto social. Tal tecnologia é de suma importância ao desenvolvimento da criatividade e do estímulo ao produtor direto, por ser um conjunto de técnicas e metodologias capazes de propiciar a melhor qualidade de vida a partir da interação da população74. No Brasil, a Fundação Banco do Brasil apresenta-se como um dos principais propagadores da tecnologia social a partir da busca de inclusão social produtiva nos segmentos que apresentam maior vulnerabilidade dentro da sociedade, tal como trabalho de renda, preservação do meio ambiente e educação. Apresenta como propósito a valorização da vida com o intuito de mudar realidades, tal como o reconhecimento pelas soluções de alguns dos problemas do país75. Ainda que esta fundação não tenha como primórdio o combate a violência, e muito menos o combate ao tráfico de crianças, sua atuação pode ser utilizada como inspiração. A visão da tecnologia social ora apresentada não se basta no desenvolvimento da sociedade. A tecnologia social, a partir do amparo às vulnerabilidades apresentadas pela sociedade, seria capaz de ser utilizada como auxílio à segurança social e então, ser passível de combater a criminalidade com a assistência prestada aos agentes públicos. Neste sentido, pode-se encontrar a tecnologia como auxílio ao governo como nos testes de DNA realizados para a identificação de criminosos ou de participação nos crimes. A criação do banco de dados de DNA é essencial para a apuração de novos crimes hediondos, com materiais genéticos já reconhecidos, trabalho este que facilita, e muito, a atuação tanto da polícia, quanto do judiciário no reconhecimento de uma causa76. 4.2 O USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO BRASIL E A POSSIBILIDADE DE ADOÇÃO DO SPOTLIGHT Em questão de segurança pública, no mundo, além do Spotilght, existem outros sistemas de software que utilizam a IA para encontrar vítimas de tráfico de pessoas, como o Traffic Jam, desenvolvido pela startup Marinus Analytics. Este sistema é capaz de utilizar o reconhecimento Facial (FaceSearch) para encontrar pessoas através de um grande banco de dados (Big Data), como por exemplo, na identificação de uma criança em 74. BANCO DO BRASIL. 75. BANCO DO BRASIL. 76. FONSECA, Claudia. Mediações, tipos e figurações: reflexões em torno do uso da tecnologia DNA para identificação criminal. Anuário Antropológico [Online], I | 2013. Disponível em: http://journals. openedition.org/aa/363. Acesso em 14 outubro 2019, p. 26-27 um anúncio na internet. Quando este reconhecimento ocorre, o próprio sistema comunica a polícia local o mais rápido possível77. O grande desafio de poder usar essa tecnologia no Brasil é a dificuldade de comunicação entre os órgãos brasileiros, fato diferenciador entre os Estados mais desenvolvidos, em que até mesmo a polícia se comunica com o sistema de uma organização privada com o objetivo de propagar o bem social. Todavia, nacionalmente, nos setores aeronáutico e médico, a academia apresenta uma maior aproximação com o desenvolvimento tecnológico, a utilização da IA e até mesmo com o governo78. Ademais, importa em grande escala, o desenvolvimento da tecnologia em solo nacional. Em outubro de 2019, a Faculdade Federal do Espírito Santo em parceria com a Embraer conduziu o primeiro teste de aeronave em um avião operado por IA. Iniciativas como essa, combinadas com políticas públicas de incentivo à longo prazo, podem potencializar a capacidade de desenvolvimento de tecnologia nacional do Brasil para um maior acesso da população79. Por fim, o país tem capacidade, pessoas qualificadas e tecnologia que possibilita a criação de IA ou o desenvolvimento de parcerias com o Spotlight ou com o Traffic Jam. Essas parcerias ou criações apesar de apresentarem dificuldades na comunicação entre as autarquias responsáveis, como a Abin, Polícia Federal e Polícias Estaduais, deveriam estimular a troca de informações entre si, academia, ONGs e empresas80. CONSIDERAÇÕES FINAIS O tráfico sexual de crianças é intensificado pela dupla vulnerabilidade apresentada por esse grupo social. Os dados existentes, ainda são preocupantes por todo o território nacional e internacional, de modo a ser 77. HALPERN, Arie. Tecnologia ajuda EUA no combate ao tráfico sexual infantil. Disruptivas e Conectadas. 2019. Disponível em: <http://www.ariehalpern.com.br/tecnologia-ajuda-euano-combate-ao-trafico-sexual-infantil/>. Acesso em: 15 out. 2019. 78. UFES, Comunicação Corporativa da Embraer e Superintendência de Comunicação da Ufes. Ufes e Embraer conduzem primeiro teste de aeronave autônoma no Brasil. 2019. Disponível em: <http://www.ufes.br/conteudo/ufes-e-embraer-conduzem-primeiro-teste-de-aeronaveautonoma-no-brasil>. Acesso em: 14 out. 2019. 79. UFES, Comunicação Corporativa da Embraer e Superintendência de Comunicação da Ufes. Ufes e Embraer conduzem primeiro teste de aeronave autônoma no Brasil. 2019. Disponível em: <http://www.ufes.br/conteudo/ufes-e-embraer-conduzem-primeiro-teste-de-aeronaveautonoma-no-brasil>. Acesso em: 14 out. 2019. 80. HALPERN, Arie. Tecnologia ajuda EUA no combate ao tráfico sexual infantil. Disruptivas e Conectadas. 2019. Disponível em: <http://www.ariehalpern.com.br/tecnologia-ajuda-euano-combate-ao-trafico-sexual-infantil/>. Acesso em: 15 out. 2019. mais do que necessário um sistema mundial de políticas de combate a tal crime. No Brasil, as políticas públicas sobre o tema se apresentam de forma mais aparente perante os métodos normativos, como em tratados e convenções: a Convenção Americana de Direitos Humanos, a Convenção dos Direitos da Criança da ONU e o Protocolo de Palermo; e como leis de âmbito nacional: a Constituição Federal, Lei 13.344/16, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei de Migração e a criação dos Ministérios e Secretarias. Ainda existem alguns projetos não governamentais, como o Serviço de Prevenção ao Tráfico de Mulheres e Meninas (SMM) e o Itineris. Contudo, apesar da existência de diversas políticas públicas, até então, não há efetividade suficiente afim de amenizar o crescimento anual do tráfico de crianças. Ademais, por ser um país de grandes proporções territoriais, o tráfico apresenta-se nas suas formas mais variadas dependendo da região de destino, de modo a contribuir para a dificuldade no combate dos crimes de exploração sexual e facilitar o aliciamento dos menores, seja por sua condição social, por sua situação de miserabilidade, por seus sonhos de carreira ou até mesmo por sua condição de menor incapaz. Por consequência, cria-se uma violação aos direitos da criança de tamanho exponencial, que muitas vezes, a aprisiona dentro do sistema, em virtude da dependência financeira e econômica com seu traficante. Com o intuito de enfrentar esse problema grave e de pouca discussão social, fez-se necessária a análise do contexto em que a criança está inserida, seja por seu ambiente ou por suas condições econômicas e financeiras, de modo a sempre minimizar a vulnerabilidade a que estas crianças estão expostas, com uma maior proteção dos pais e do Estado. Por esse motivo, para desenvolver os meios de combate existentes, apresentou-se por meio deste artigo, um conjunto de tecnologias usadas, para as mais diversas áreas, em países mais desenvolvidos em conjunto com os governos locais como o DARPA, NHTRC, PhotoDNA da Microsoft, a Cybertipline, o Traffic Jam e o Spotlight. Este último, desenvolvido pela ONG Thorn, tem como objeto a utilização da Inteligência Artificial para identificar possíveis vítimas do tráfico sexual de crianças nos Estados Unidos, e encaminhar dados aos agentes com o intuito de facilitar a investigação e solucionar a maior quantidade de casos possíveis81. 81. THORN. Spotlight. We are thorn. Estados Unidos, 2019. Disponível em: <https://www.thorn. Assim, percebe-se que, por meio da IA, a inovação tecnológica traz grande auxílio pela busca de crianças traficadas e ao combate da criminalidade, pois, ao identificar possíveis vítimas, informam a polícia local e otimizam tempo para um melhor resultado. A tecnologia, cada vez mais, está inserida no cotidiano das pessoas, e com o decorrer do tempo, será natural sua evolução. Entretanto, para que essa evolução ocorra, é indispensável a aproximação entre Estados, empresas e universidades, com amplos investimentos financeiros e capacitação técnica. No Brasil, já existe um poder de tecnologia avançado, com pessoas competentes nas mais diversas áreas. A partir da busca pela implementação de novas aplicações e o funcionamento em rede do conhecimento de todas as áreas, o Brasil tem apresentado qualidade suficiente para a implementação de inovações no país, tais como o próprio Spotlight no combate ao tráfico de crianças e adolescentes. Por fim, entende-se que perante a pesquisa realizada o Brasil apresenta um ambiente propício e grande potencial para a implementação de novas tecnologias de combate ao tráfico internacional de crianças. É necessário somente uma maior aproximação entre governo, academia, organizações não-governamentais e empresas para que o desenvolvimento dos recursos seja realizado da melhor maneira possível. REFERÊNCIAS BANCO DO BRASIL. Transformar realidades por meio das tecnologias sociais. Disponível em: <https://transforma.fbb.org.br/sobre-nos>. Acesso em: 14 out. 2019. BARROS, Marco Antonio de. Tráfico de Pessoas para Fim de Exploração Sexual e Adoção Internacional Fraudulenta. 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INTRODUÇÃO Apesar da pressão nacional e internacional e das frequentes críticas sobre a falta de atualização, dispersão e desintegração constante dos dados acerca da movimentação de pessoas – contrabandeadas ou traficadas – para fins de trabalho escravo, adoção ilegal, exploração sexual e outros tipos de crimes com a mesma origem, os órgãos do Estado responsáveis pela produção, guarda, compartilhamento e usos de dados estatísticos e informações ainda não atentaram para a necessidade da integração dos mesmos a fim de otimizar o trabalho das entidades públicas e nãogovernamentais que combatem esse tipo de prática envolvendo brasileiros e estrangeiros que entram e saem do Brasil nessas condições. Os organismos internacionais, que possuem canais de troca de dados e informações com países emissores e receptores de pessoas traficadas e ou contrabandeadas, demandam sem muito sucesso mas com frequência que a Polícia Federal, o Ministério Público, a Defensoria Pública da União, o Ministério da Justiça e o Ministério das Relações Exteriores compartilhem de forma integrada, tanto os resultados dos seus mecanismos de controle, quanto as medidas tomadas e a sua quantificação a partir das políticas públicas postas em prática no combate e na prevenção deste tipo de crime. Essas solicitações pedem que sejam enviados relatórios, processos, números de prisões, identificação internacional de traficantes e traficados para as devidas checagens com os seus bancos de dados e informações. O objetivo é remeter de volta ao Brasil informações cruzadas que mostrem o desenlace das ações dos grupos criminosos no exterior. Esse tipo de compartilhamento é de suma importância para a visualização monitorada do Circuito do Tráfico1 e suas alterações constantes. As afirmações acima resumem um pouco da nossa experiência como pesquisador deste tema ao longo de duas décadas, ouvindo especialistas, ativistas, autoridades e vítimas no Brasil e no exterior. Neste breve artigo, pretendemos mostrar alguns aspectos deste cenário, dando ênfase: à localização e armazenamento dos dados e informações disponíveis para consulta nacional e internacional; a utilização dos mesmos pelos órgãos públicos responsáveis pela prevenção e controle dos crimes de tráfico de pessoas e; a necessidade crescente de integração em rede desses órgãos no compartilhamento interno e internacional de dados com vistas à formação de um mapa mais fidedigno do Brasil como país emissor, intermediário e receptor de seres humanos traficados. 1 DADOS E INFORMAÇÕES: COMPREENDER O QUE PRECISAMOS Quando falamos em Dados e Informações, surge imediatamente a dúvida se ambos não seriam sinônimos. Não. As definições e os usos de cada um deles mostram que devemos prestar bastante atenção quando resolvemos utilizar os mesmos para agrupar, sintetizar e relatar qualquer aspecto da realidade social. Neste sentido, seguimos ROSLING (2019:214) quando ele argumenta para reforçar sua tese acerca do factfulness2. 1. 2. Expressão que criamos em 1998, para denominar o conjunto de países para onde são levadas ou se dirigem as pessoas traficadas bem como os Estados brasileiros que são emissores e receptores deste público alvo. O uso ampliado ou restrito do universo de pesquisa depende da dimensão e da necessidade da investigação. Factfulness é reconhecer que uma única perspectiva é limitada e a melhor atitude para analisar um fenômeno social – principalmente os de natureza social-global – seria olhar o problema a partir de fatos e múltiplos ângulos e fatores. Números, mas não só números. O mundo não pode ser compreendido sem números e não pode ser compreendido só com números. Aprecie os dados numéricos por aquilo que dizem sobre vidas reais. O dado obtido em uma pesquisa é de natureza quantitativa e deve ser expresso de forma matemática ou estatística. Isolado e sem um objetivo claro para ser usado, ele tem pouca utilidade e acaba se perdendo tornandose paulatinamente desatualizado. A informação é o dado tratado que possui significado e compreensão para uma situação que precisamos compreender melhor. Pode aparecer também sob forma de depoimentos e documentos que fornecem à pesquisa características qualitativas. Essas definições são fundamentais para explicarmos uma das nossas maiores dificuldades quando buscamos informações sobre o Tráfico de Pessoas, tendo em vista que os dados e informações internacionais estão geralmente bem agrupados e vem sendo atualizados com razoável frequência por organismos bilaterais e entidades sem fins lucrativos ao redor do mundo ao contrário do Brasil que está longe de seguir essa tendência. São poucos os canais públicos de buscas de dados sobre tráfico de pessoas no Brasil – seja via internet, em material impresso ou através da Lei de Acesso à Informação (LAI)3 – que expõem e fornecem material atualizado e de fácil compreensão. Neste sentido, identificamos como problema a maneira como os casos são agrupados e disponibilizados, sem seguir os padrões internacionais mais frequentes, ou seja: dado/informação, e colocados dentro de uma rede que estabeleça canais de trabalho e espaços de cooperação entre o poder público e a sociedade civil organizada tendo em vista o combate a este tipo de crime que, juntamente com o tráfico de drogas são atualmente as atividades ilegais internacionais mais rentáveis do mundo, segundo as Nações Unidas4, com a exploração sexual ocupando o primeiro lugar no início de 2019 com 24.000 casos em 142 países5. Em relação a esses dados presentes em diversas plataformas globais, que visam informar e servir de base para pesquisas sobre o assunto, podemos dizer que os mesmos são abundantes, porém, retratam em sua maioria cenários mundiais e quando se direcionam para realidades locais esbarram na falta de uma rede devidamente preparada para incorporá-los e 3. 4. 5. Lei 12.527 de 16 de maio de 2012 que regulamenta o direito constitucional de acesso às informações públicas. https://exame.abril.com.br/mundo/onu-zonas-de-guerra-tem-aumento-do-trafico-humanoe-da-escravidao-sexual/. Acesso em 20.dez.2019. Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime – UNODC (Sigla em inglês). acrescentar mais qualidade aos números que chegam de diversas partes do mundo. Para explicar a dificuldade de incorporação e atualização dessa massa de dados e informações sobre o tema que circulam pelo mundo e chegam ao Brasil, bem como a dispersão dos dados e informações locais que deveriam usar o Big Data6 global sobre o assunto a seu favor, mostraremos inicialmente os tipos de dados disponíveis nas Bases de dados e fontes de informações globais e em seguida vamos traçar um quadro sobre a produção da base de dados e informações dos órgãos públicos no Brasil, apontando alguns sinais acerca das dificuldades de integração e cooperação internacional e local que tanto emperram o trabalho de combate ao Tráfico de Pessoas. 2 BASES DE DADOS E FONTES DE INFORMAÇÕES GLOBAIS Tomaremos como referência a UN.GIFT7 que, no Brasil recebe o suporte do UNODC (Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime) que é o guardião do Protocolo à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Este trabalho conta com a participação de diversas Agências da ONU, mas, iremos destacar duas delas como exemplos, pela relevância das mesmas para o estudo acerca do Tráfico de pessoas: 1. Organização Internacional do Trabalho (OIT): no Brasil atua em diversas frentes participando e influenciando Planos de combate ao Trabalho Escravo; Comissões Estaduais para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE) e Cadastro de Empregadores na “Lista Suja” do Trabalho Escravo. Esta entidade possui informações e dados atualizados sobre o problema e as suas ações demandam, dos Estados membros da ONU, uma agenda de combate. No entanto, a cooperação esbarra na imensa teia de órgãos e secretarias que cuidam principalmente da fiscalização, aplicação de sanções e da criação de políticas públicas que se pulverizam por Estados e Municípios com milhares de dados e informações que seriam úteis e integráveis ao pacto global. Da mesma forma, essas informações globais poderiam ser incorporadas para o enfrentamento do problema local e aplicação das boas práticas internacionais, pois as tendências do Tráfico 6. 7. Numa definição ampliada seria o termo que descreve o grande volume de dados, estruturados ou não, que circulam pelo mundo sobrecarregando as instituições (empresas e Estado) e a destinação muitas vezes incerta dada aos mesmos. Iniciativa global de mobilização em torno de metas comuns para alcançar a melhor maneira de lutar contra o Tráfico de Pessoas. e do Trabalho Escravo mudam a todo instante no Brasil e no mundo e é necessário acompanhá-las. PESSOAS PRESAS AO TRABALHO ESCRAVO – OIT A OIT estima que até o final da segunda década do Século XXI, cerca de 20,9 milhões de pessoas serão vítimas de trabalho forçado em todo o mundo. Isso representa cerca de três em cada 1.000 pessoas da população mundial atual. Destas, 90% serão exploradas por pessoas físicas e jurídicas na economia privada, enquanto 10% forçadas a trabalhar pelo Estado, por grupos militares rebeldes ou em prisões, em condições que violam as normas fundamentais da OIT. A exploração sexual forçada afeta 22% de todas as vítimas, enquanto a exploração laboral atinge 68%. 8 ...... A estimativa da OIT mostra como o fenômeno afeta diferentes grupos de pessoas: 55% de todas as vítimas são mulheres e meninas, enquanto 45% são homens e meninos. As crianças constituem cerca de um quarto de todas as vítimas. A OIT estimou ainda quantas pessoas estão presas em trabalhos forçados como resultado da migração interna ou transfronteiriça: 29% de todas as vítimas foram submetidas a trabalhos forçados após cruzarem fronteiras internacionais, sendo que a maioria foi obrigada a se prostituir; 15% se tornaram vítimas de trabalho forçado após a migração dentro de seu país, ao passo que os 56% restantes não deixaram seu local de origem ou de residência. A duração média de tempo vivido em trabalho forçado varia, dependendo da forma e região. A OIT estima que as vítimas são exploradas 8. OIT Brasília.Quantas pessoas estão presas no trabalho forçado, c2018. Página:Trabalho Forçado.Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-escravo/WCMS 393068/lang--pt/index.htm. Acesso em 19 de nov. de 2018. em média por quase 18 meses em condições de trabalho forçado, antes de serem resgatadas ou escaparem de seus exploradores. FONTE:https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-escravo/ WCMS_393068/lang--pt/index.htm 2. Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF): o ano de 2021 segundo a ONU, deve ser considerado como o “Ano Internacional para Eliminação do Trabalho Infantil” no mundo. Essa difícil missão caberá a OIT e a própria UNICEF que registram números alarmantes na exploração da mão de obra envolvendo crianças ao redor do globo. São cerca de 152 milhões, com idades que variam entre 5 e 17 anos. Deste total, no final de 2017, cerca de 73 milhões estavam envolvidas em trabalhos de alta periculosidade. Esses dados fizeram a Assembleia aprovar uma resolução que exige dos Estados-membros a tomada de medidas imediatas e efetivas para erradicar o trabalho forçado, a escravidão moderna e o tráfico de seres humanos. No que diz respeito às crianças e adolescentes, a Assembleia centralizou o foco da resolução nas seguintes formas de exploração: trabalho infantil urbano e rural e recrutamento e uso de crianças-soldados, tendo em vista que essas são as formas atuais mais incidentes de acordo com dados da UNICEF. Por si mesmos os números acima e as informações que os reforçam indicam a direção a ser seguida por cada um dos Estados-membros. Neste sentido, entendemos que o Brasil poderia incorporar esta pauta acrescentando seus dados para comparar com o panorama externo tendo em vista a erradicação dessas práticas em seu território. Mas, a mesma situação verificada em relação a OIT, como vimos anteriormente, também aparece quando nos deparamos com a imensa teia burocrática e hierárquica de órgãos públicos nos planos estadual, municipal e federal que tratam do problema. O que se verifica na prática é a existência de dados dispersos e muitas vezes defasados além da morosidade entre a identificação do objetivo a ser alcançado e a efetivação das ações planejadas. No final de 2018, por exemplo, a UNICEF estimou que 2,5 milhões de brasileiros entre 5 e 17 anos estavam envolvidas em algum tipo de trabalho infantil. Neste mesmo período, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontou que cerca de 250 mil crianças estavam nas mesmas condições na Grande São Paulo, ou seja, 10% do total verificado no Brasil. No primeiro semestre de 2019, a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) apurou que atualmente são 3 milhões de crianças e adolescentes, perfazendo um total de 6% da população nesta faixa etária. Esta variação de 500 mil crianças e adolescentes, em menos de um ano, nos leva mais uma vez a questionar a falta de unificação e uniformização de dados para direcionar de maneira efetiva as ações pretendidas e deixa clara também, a falta de sincronia entre os agentes públicos que produzem os dados e informações. O exemplo em questão mostra ainda que as informações extraídas dos dados internacionais se distanciam claramente daqueles apresentados pelo IBGE, comprovando a nossa afirmação anterior acerca das divergências na relação global/local. 3 BASES DE DADOS E FONTES DE INFORMAÇÕES DO BRASIL Quando analisamos os dados e informações produzidos no Brasil, que servem de parâmetro para ações internas de combate ao Tráfico de Pessoas em suas diversas faces, verificamos que boa parte deles são utilizados para dar respostas gerais e muitas vezes sem o devido cruzamento com as fontes internacionais ou locais. Um exemplo disso são os números do período 2018-2019 que pesquisamos no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). Segundo a sua ouvidoria, que respondeu o nosso pedido em agosto de 2019, o balanço anual do Disque 100 (Disque Direitos Humanos), referente ao Tráfico de Pessoas no Brasil mostra que ocorreram 159 denúncias que revelaram 170 casos concretos. Deste total, apuramos também que o tráfico interno para fins de exploração sexual por exemplo, representou no mesmo período, 16,9% do total registrado. Os números consolidados de 2018 foram extraídos de um universo bastante reduzido, mas mostram uma realidade bastante preocupante principalmente para mulheres e adolescentes, que figuram no topo da lista. Segundo este Ministério, o tráfico interno cresceu a tal ponto que em algumas situações supera a sua vertente internacional como é o caso da exploração sexual, crescente em todos os Estados da Federação, tendo como destino final e preferencial, as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. TABELA 1 - O TRÁFICO DE PESSOAS EM NÚMEROS Modalidades Exploração Sexual – Tráfico Interno Exploração Sexual - Tráfico Internacional Tráfico Interno para fins de Adoção Tráfico Internacional para fins de Adoção Tráfico Interno para fins de exploração laboral Tráfico Internacional para fins de exploração laboral Tráfico Interno para remoção de órgãos Tráfico Internacional para remoção de órgãos Tráfico de Pessoas para outras finalidades 16,9% 8,15 7,5% 2,5% 6,9% 5,0% 1,8% 0,63% 57,23% Fonte: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos 2019 Apesar da importância dessas informações o que chama atenção na Tabela 1 é a generalidade como cerca de 2/3 dos casos, ou seja, 57,23% das notificações foram apresentadas pelo Ministério. Entendemos que a expressão clara dos dados e a sua explicação são essenciais para que tenhamos um panorama mais amplo do problema no Brasil e naquilo que o país colabora para o aumento global do Tráfico de Pessoas e o agrupamento aleatório dificulta qualquer análise consistente sobre o tema. TABELA 2 - O TRÁFICO DE PESSOAS EM NÚMEROS - Vítimas Sexo Feminino Sexo Masculino Sexo Não Informado Faixa Etária de 15 a 17 anos Faixa Etária de 0 a 3 anos Faixa Etária de 25 a 30 anos Faixa Etária de 12 a 14 anos Faixa Etária de 18 a 24 anos Recém-Nascido Faixa Etária não revelada 53,1% 11,7% 35,14% 18,9% 7,2% 6,31% 4,5% 3,6% 1,8% 54,9% Fonte: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos 2019 Na Tabela 2 é possível notar mais uma vez a concentração de dados sem a devida descrição. Primeiro, quando o Ministério deixa em aberto quem são os 35,14% traficados por sexo/gênero, quando é de conhecimento das próprias autoridades que, além de homens e mulheres, existem registros de transgêneros como vítimas desse tipo de crime. E segundo, com a falta de precisão em relação a 54,9% de pessoas traficadas sem que se revele clara e publicamente quais são as faixas etárias relativas a este total. TABELA 3 - O TRÁFICO DE PESSOAS EM NÚMEROS – Relação suspeito/vítima Relação familiar - Avós Relação familiar - Mães Relação de trabalho - Empregador Relação não informada 4,2% 1,8% 1,2% 86,7% Fonte: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos 2019 Somam-se a estes dados os números relativos aos locais onde ocorreram os contatos, o aliciamento e as violações. A maior parte dos casos teriam ocorrido na própria casa da vítima, ou seja, em 34,1% dos registros. Em 20,2% dos casos, o crime começou a ser praticado na casa do suspeito. Em 5% das ocorrências, a casa da vítima foi a origem do contato com o suspeito e em 3% dos casos registrados o local de trabalho aparece como referência do ilícito. Por entender que a dinâmica do Tráfico é muito veloz e multifacetada, notamos que esses dados não foram cruzados entre si com o objetivo de produzir um perfil mais aproximado do problema no Brasil nos últimos doze meses. Além disso, a totalização, em várias partes das séries apresentadas não alcançam ou ultrapassam 100% do total de casos informados pelo MMFDH em sua resposta. Vale ressaltar ainda que, essa dificuldade não atinge apenas a massa de dados e as fontes de informação atuais sobre o Tráfico de Pessoas interno ou internacional, tendo o Brasil como referência. Um dos documentos mais interessantes que revelam estas dificuldades foi produzido pelo Ministério da Justiça a cerca de três anos. Trata-se do Relatório Nacional sobre o Tráfico de Pessoas: dados 2014 – 20169. O seu conteúdo aponta diversas 9. EXPEDIENTE MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Presidente da República, Michel Temer. Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública, Torquato Lorena Jardim. Secretário Nacional de Justiça, Astério Pereira dos Santos. Diretor do Departamento de Políticas de Justiça, Jorge da Silva. Coordenadora de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, Renata Braz Silva. Equipe técnica de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, Alyne Antunes Diogenes Bessa Johnes dos Santos Salustiano Maria Celva Bispo dos Reis Maria Fernanda Jorquera Briceno Marina Soares Lima Borges Natasha Barbosa Mercaldo de Oliveira. ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME (UNODC), Representante do Escritório de Ligação e Parceria do UNODC no Brasil, Rafael Franzini. Coordenador da Unidade de Estado de Direito, Nívio Nascimento. Oficial de Programa, Fernanda Patricia Fuentes Munoz. inconsistências acerca da unificação, do compartilhamento e da produção desordenada de dados e informações sobre o tema. Naquele contexto, as ações do Governo brasileiro para o enfrentamento do Tráfico de Pessoas contava com a parceria entre os Ministérios (Educação, Saúde, Desenvolvimento Social e Combate à Fome e do Desenvolvimento Agrário); Órgãos do Governo (Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, Secretaria Especial de Direitos Humanos, Secretaria Nacional de Justiça - cooperação técnica com Goiás, Rio de Janeiro e São Paulo, Secretaria Nacional de Segurança Pública, Polícia Federal; e Polícia Rodoviária Federal) e a Cooperação Internacional (ONU e suas agências – OIT, UNICEF, UNIFEM e UNODC). A primeira inconsistência foi verificada pelos técnicos revisores dos procedimentos adotados quando eles analisaram as fontes dos dados e informações que deveriam fornecer indicadores sobre as rotas do Tráfico, os fluxos de entrada e saída de pessoas e o modus operandi no Brasil. As bases para análise, utilizadas para obtenção desses resultados, deveriam ser os inquéritos policiais e os processos judiciais onde a descrição do fenômeno criminal seria, em tese, mostrada com riqueza de detalhes. Porém, quando a Metodologia Integrada criada pelos órgãos públicos confrontou essas referências nos Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Bahia, Pernambuco, Ceará, Maranhão, Rio Grande do Norte, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, os técnicos se depararam com um grande problema: “as policias locais, quando muito, registram o número de procedimentos, inquéritos e indiciados”.(Relato de uma técnica de campo). Dessa forma, a determinação da origem, das formas de aliciamento, do tráfico em si e da exploração em cada Estado – com suas especificidades - foram comprometidas, dificultando a análise do fenômeno, bem como as ações futuras de prevenção e combate às redes locais, nacionais e internacionais que atuam no país. Outra dificuldade para a produção de informações foi identificada nas ações da justiça criminal, que estão reunidas no banco de dados do CNJ. Segundo os técnicos, nele estão contidos apenas o número de processos, de acordo com os tipos penais previstos no Código Penal e na legislação especial. Consultora UNODC, Alline Pedra Jorge Birol (Doutora). PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO (PNUD)Representante-Residente Interino do PNUD no Brasil, José Eguren. Representante-Residente Assistente e Coordenadora da Área Programática, Maristela Baioni. Chefe de Operações para o Brasil, Caroline Brito Fernandes. Chefe da Unidade de Paz e Governança, Moema Freire. Isso criou um problema adicional para as equipes interdisciplinares que investigam o problema porque, os dados quantitativos ou as estatísticas criminais disponíveis no Brasil, não revelam informações sobre rotas ou modus operandi do crime de tráfico de pessoas. E mesmo que revelassem, não seriam representativas, tendo em vista que as falhas das fontes de origem, como vimos acima produzem uma série de subnotificações. As dificuldades na produção, sistematização e compartilhamento interinstitucional desses dados e informações ficam ainda mais claras quando lemos as conclusões do Relatório 2014 – 2016. Em seus pareceres, os técnicos refletem sobre os dois principais elementos do crime de tráfico de pessoas: a ação e a finalidade dos seus operadores. Segundo eles, os dois aspectos só poderão ser devidamente compreendidos se forem incorporados aos dados quantitativos expostos pelo CNJ, os relatos das autoridades, os depoimentos das vítimas e dos traficantes. Neste sentido, o compartilhamento qualificado a partir de parcerias entre agentes públicos, órgãos estatais, universidades, centros de pesquisa e ONGs deve ter como base alguns padrões que combinem dados e informações em fluxo contínuo. A partir das conclusões da equipe técnica do Ministério da Justiça, destacamos e iremos comentar a seguir, alguns erros na metodologia de coleta e sistematização que contribuem para tornar ainda mais complexo o estudo e o combate ao Tráfico de Pessoas de forma coordenada e interinstitucional: 1. Manualidade: a validade/qualidade dos dados quantitativos sobre tráfico de pessoas no Brasil é questionável. O grande problema aqui é: Quem manipula os dados e como esses dados são manipulados. O que os técnicos do Ministério, responsáveis pelo Relatório 2014 – 2016 observaram foi que a manualidade no registro dos dados em algumas instituições ou a manualidade no momento de se gerar relatórios apresentam diversos erros metodológicos Além disso, eles assinalam também que ocorreram diversas mudanças na forma de coleta ou registro de dados entre os períodos desde o início da coleta, impossibilitando a comparação adequada e dentro dos padrões básicos para este tipo de trabalho. 2. Ausência de variáveis importantes: apesar da construção da Metodologia Integrada de TP sugerindo um mínimo de variáveis, não há sistemas de informação capazes de registrar dados de enfrentamento ao tráfico de pessoas adequadamente, ou que contemple as características que constituem o crime. Particularmente, os sistemas da justiça criminal são os mais precários em termos de nível de detalhamento 3. Diferenças nos conceitos: assim como observado no Relatório Nacional que cobriu o período de 2005 a 2011, cada termo, segundo os técnicos, pode ter uma definição diferente em cada sistema de informação, impossibilitando a comparação. Exemplificando: o conceito de tráfico de pessoas adotado pela polícia é o previsto no Código Penal, que considera tráfico de pessoas exclusivamente quando a finalidade da exploração é sexual. Já o conceito adotado pelas instituições que assistem às vítimas é o da Política Nacional, que engloba diversas modalidades de exploração. O Ministério do Trabalho, por sua vez, contabiliza os casos de redução a condição análoga à de escravo, que nem sempre são casos de tráfico de pessoas. Com a previsão do tipo penal do tráfico de pessoas e pelo menos quatro modalidades e exploração, nos termos da redação do art. 149-A, dada pela Lei n. 13.433/2016, e em acordo com o Protocolo de Palermo e com a Política Nacional, é possível que este obstáculo seja vencido, caso os sistemas se adequem a este conceito; Diferença nos períodos de coleta: as instituições estão em descompasso temporal. Há instituições que não concluíram o tratamento dos dados colhidos em 2015, por isso não publicaram, enquanto outras instituições geraram normalmente relatórios até dos dados colhidos em 2016; 4. Forma de apresentação dos dados inadequada: muitas instituições ainda fornecem, números absolutos em seus relatórios, quando o ideal para efeito de análise ou comparabilidade seriam as porcentagens ou as taxas, por exemplo, por 1.000 mil habitantes. Isto porque não se pode comparar o número de casos de tráfico de pessoas registrados em São Paulo com o número de casos registrados no Acre, pois a diferença populacional entre estes dois estados é considerável. Obviamente, existem mais casos no primeiro Estado. A escala estatística é uma convenção internacional e deve ser seguida para a devida incorporação às bases globais. 5. Margem de erro: quando são analisados os sistemas de verificação para identificar se houve algum avanço em razão da implementação da Metodologia Integrada os dados que registram, percentuais ou números “não informados”, ocupam uma parcela significativa da coleta, chegando até 40% do total. Para efeito de cálculos estatísticos, esses “não informados” deveriam ser excluídos da amostra na hora dos cálculos, mas isto implicaria na redução do universo para pouco mais da metade. Ou seja, a margem de erro para qualquer análise de frequência ou comparativa é muito grande, não devendo ser feita porque pode induzir a erro grave nas conclusões. 6. Ausência de periodicidade no levantamento das informações: o problema mais sério e fatal para que haja fluxo contínuo no acompanhamento da dinâmica do Tráfico de Pessoas, apontado pelos técnicos que elaboraram o Diagnóstico 2014 – 2016, foi a falta de periodicidade na análise dos dados pelas próprias instituições públicas. Para eles, o problema é que a análise acontece motivada por algum tipo de demanda. Se por exemplo, a Coordenação Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas solicitar dados do tráfico de pessoas para a elaboração deste Relatório Nacional fazse um levantamento do que está disponível ou providencia-se uma coleta para aquele momento. Isso implica na ausência de análise da qualidade ou na crítica dos dados. 7. Inconsistência dos dados: a inconsistência dos dados também foi notada pelos analistas. Para eles, é uma consequência direta dos problemas que tratamos nos itens anteriores. Foi observado, por exemplo, que o número total de casos difere, num mesmo ano, a depender da variável estudada. As comparações, então, poderiam também induzir a erro grave de interpretação, à elaboração de hipóteses distorcidas e contraditórias em relação à realidade, o que leva a inferências incorretas e inadequadas. CONSIDERAÇÕES FINAIS A nossa análise e crítica, dirigidas à forma como os dados e informações são produzidos, bem como às dificuldades de compartilhamento interinstitucionais se justificam porque enxergamos nessas falhas as brechas que tornam os itinerários10, as rotas11 e o Circuito do Tráfico de Pessoas12, mais invisíveis para a maioria dos olhos que buscam combater esta prática. Entendemos que, qualquer informação deve ter como base uma coleta adequada para que a mesma possa ser utilizada de forma segura, seja ela produzida por uma fonte global ou por uma fonte brasileira. 10. O itinerário do Tráfico é outro termo que criamos em nossas pesquisas sobre o tema e constituem a parte mais sensível deste campo de pesquisa porque representam o contato direto com as histórias, as condições de origem, as formas de aliciamento, os motivos e as consequências pessoais e jurídicas para a vida das pessoas que se envolvem ou são envolvidas nesse universo. É através dos seus itinerários que homens, mulheres, crianças e adolescentes se conectam com as rotas e consequentemente com os circuitos. Esta parte do campo da pesquisa permite que se faça a etnografia das Pessoas Invisíveis possibilitando desde a ajuda humanitária que muitas vezes lhes falta até políticas mais efetivas de prevenção ao tráfico e a exploração de seres humanos nas dimensões que são observadas atualmente. 11. As rotas são justamente os corredores por onde transitam milhões de pessoas levadas de forma clandestina, legalmente, ilegalmente ou por conta própria, ao redor mundo ou dentro do território brasileiro, preferencialmente para fins de trabalho escravo, adoção ilegal, casamentos arranjados, casamento infantil, prostituição, comércio de órgãos ou como mulas para o tráfico de drogas e contrabando de mercadorias diversas. Existem muitas rotas que se ramificam em trechos que se alteram rapidamente para dificultar o combate a esse tipo de crime como também para atender novas demandas por pessoas que possam compor o mercado de seres humanos. As rotas fazem a conexão com o Circuito constituindo os pilares de sustentação do Tráfico. 12. Ver a Nota de pé de página 2. Neste sentido, acreditamos que existe um vácuo entre as redes locais e suas relações com a rede internacional porque a checagem da coleta e o agrupamento de dados, no Brasil, enfrenta por um lado a falta de um controle de qualidade na “manualidade”, como observaram os técnicos do Ministério da Justiça no Relatório 2014-2016 e do por outro lado, a morosidade com que os mesmos são sistematizados, atualizados e disponibilizados para gerar um fluxo contínuo entre as instituições. As rotas, os agentes, as estratégias e os itinerários possuem uma fluidez impressionante o que dificulta um mapeamento mais permanente do Tráfico. Além disso, as mudanças nas gestões das instituições que cuidam do combate a este crime, motivadas pelas trocas de governo também impactam fortemente a montagem de uma rede segura e acessível para troca de informações. Sendo assim, a demarcação de um campo comum que serviria de base para a coleta e a sistematização de dados a partir de indicadores, poderia sanar boa parte dos problemas elencados anteriormente. Defendemos a demarcação de um espaço de trabalho colaborativo interinstitucional que denominamos há algum tempo de “Campo da Pesquisa”. CAMPO DA PESQUISA CIRCUITO CIRCUITO CIRCUITO CIRCUITO CIRCUITO ROTAS CIRCUITO ROTAS ITINERÁRIOS ROTAS CIRCUITO CIRCUITO ROTAS ITINERÁRIOS ROTAS CIRCUITO ROTAS CIRCUITO CIRCUITO CIRCUITO CIRCUITO CIRCUITO Fonte: Antonio Jonas Dias Filho Corresponde ao universo total por onde circulam pessoas e grupos no Brasil ou no mundo Corresponde às rotas mapeadas e potenciais por onde e para onde são levadas pessoas ou grupos Origem, características e formas de contato das pessoas que transitam pelo circuito e pelas rotas Fonte: AntonioJonasDiasFilho Neste “Campo”, poderiam ser estabelecidos os indicadores que seriam buscados, para efeito da composição de um banco de dados. Vale ressaltar que não seriam necessários grandes esforços para escolher os dados e informações tendo em vista que existem problemas comuns a todos os países que lidam com o Tráfico de Pessoas de forma mais intensa. A base para definir o Campo da Pesquisa poderia ser formada a partir dos seguintes indicadores básicos com seus respectivos dados e informações: Modalidades de Tráfico (vide Tabela 1); Vítimas (vide Tabela 2); Relação Suspeito/ Vítima (vide Tabela 3); Origem/Destinos; Suspeitos/Prisões/Processos/Penas. Como é de conhecimento dos especialistas que estudam e lidam com este problema, como agentes públicos ou pesquisadores, a dinâmica do Tráfico é intensa e imprevisível. Neste sentido, as variáveis por regiões dentro de um mesmo país, como também de um país para o outro, poderiam ser objeto de Relatórios especiais que comparassem o fluxo de dados a partir dos indicadores propostos, com os casos excepcionais, em busca de novos padrões dentro do Circuito. Acreditamos que o “Campo da Pesquisa” poderia ser produzido como uma Plataforma Digital Compartilhada em fluxo contínuo, pelos órgãos municipais, estaduais, federais e internacionais, com o objetivo de diminuir o abismo que separa, o problema das formas eficazes de combatê-lo, bem como as instituições que atuam dentro e fora do território brasileiro. REFERÊNCIAS ARY, Thalita C. O tráfico de pessoas em três dimensões: evolução, globalização e rota Brasil-Europa. Brasília: Universidade de Brasília, 2009. BORGES FILHO, Francisco B. Crime organizado transnacional: tráfico de seres humanos. Disponível em: www.uj.com.br/publicações/doutrinas. Acesso 02 jan. 2020. CASTILHO, Ela W. A Legislação Penal Brasileira Frente aos Protocolos Adicionais à Convenção de Palermo. Brasília: 2007. DE LARA, Caroline S. Conceito e Contexto do Tráfico Internacional de Mulheres: a situação no Brasil, In Revista Direitos Fundamentais e Democracia, v. 5, 2009. ESTRELA, Tatiana S. O Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas para fins de Exploração Sexual no Brasil: Trajetória e Desafios. Dissertação de Mestrado. Brasília: Universidade de Brasília, 2007. FERNANDES, Adriana da S. Seminário sobre o tráfico de seres humanos: Desafios e Perspectivas no Enfrentamento. Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão: São Paulo, 2008. QUALIA, Giovanni. Tráfico de Pessoas, um panorama histórico e mundial. Cartilha Ministério da Justiça: Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília: MJ, 2007. ROSILING, Hans. Fact Fulness. O hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos. Record: Rio de Janeiro, 2019. SILVA, Maria do Socorro Nunes da; SANTOS, Eloísa Gabriel dos. Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – Guia do Professor Ensino Médio das Escolas Públicas Estaduais. Serviço à Mulher Marginalizada. São Paulo: 2008. SIQUEIRA, Priscila. Tráfico de Mulheres: oferta, demanda e impunidade. São Paulo, 2004. Disponível em: www.smm.org.br/artigo.htm. Acesso em: 05.01.2019. CAPÍTULO 9 A TECNOLOGIA A FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS: COMBATE AO TRÁFICO DE PESSOAS POR MEIO DA CRIAÇÃO DE BASES DE DADOS COMPARTILHADOS E O TRATAMENTO DE DADOS PESSOAIS NO ÂMBITO INTERNACIONAL CLARISSE LAUPMAN Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e Professora da mesma instituição de sua formação. Concentração em Direito Internacional e Direitos Humanos. Membro do Grupo de Pesquisa “Pessoas Invisíveis: Prevenção e Combate ao Tráfico Interno e Internacional de Seres Humanos”. MARÍLIA GAGLIARDI Advogada e Pesquisadora do CEPI FGV. Membro do Grupo de Pesquisa “Pessoas Invisíveis: Prevenção e Combate ao Tráfico Interno e Internacional de Seres Humanos”. INTRODUÇÃO Uma das características mais perceptíveis do crime de tráfico de pessoas consiste justamente na dificuldade de detectá-lo. É por esse motivo que um dos maiores desafios para desenvolver respostas para o combate deste delito atualmente reside na falta de dados confiáveis e de qualidade que permitam analisar a escala do tráfico de pessoas, o perfil das vítimas e o impacto e proporção deste crime. Por ser um crime que ocorre ao redor do globo, e muitas vezes, em uma rede de tráfico que tem seu processo distribuído entre vários Estados, tem-se a crescente preocupação internacional em encontrar formas de erradicá-lo. Justamente por este motivo, houve a inclusão ao seu combate nos objetivos dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas (ONU) e no Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular (GCM). Para que seja possível atingir qualquer um destes objetivos, no entanto, faz-se necessário que, além dos agentes que visam o combate do tráfico de pessoas estejam preparados e suficientemente informados para identificálo, haja a cooperação e o intercâmbio de informações entre estes agentes. Nesse contexto, o presente artigo busca analisar como a tecnologia pode ser utilizada para auxiliar no combate ao tráfico de pessoas. Ainda, procura-se entender como o uso da tecnologia poderá ser feito e quais os limites que devem ser respeitados para a proteção dos titulares dos dados coletados. Em outras palavras, procura-se entender qual a preocupação com o tratamento de dados sensíveis, bem como qual a preocupação com as consequências na divulgação desses dados, a fim de que não haja a violação de direitos fundamentais das vítimas. Nesse sentido, considera-se também como o Brasil adequou seu ordenamento jurídico interno tanto quanto à matéria de tráfico de pessoas, com o Decreto n° 5.017/2004; com o advento da Lei n° 13.344/2016, bem como a maneira com a qual adotou uma nova postura quanto à proteção de dados pessoais (Lei n° 13.709/2019). Este texto visa, portanto, verificar como a tecnologia pode ser utilizada como forma de combate ao tráfico de pessoas no contexto das bases de dados compartilhados das vítimas deste crime. Para tanto, consideram-se os aspectos protetivos, tanto do ponto de vista internacional como os aspectos legais do ordenamento jurídico brasileiro no que atine tanto às normas específicas com relação ao tráfico de pessoas, como quanto às normas relacionadas à proteção de dados pessoais e dados sensíveis das vítimas deste delito. Para os fins desejados nesse artigo utilizamos o método indutivo, construído a partir de pesquisa bibliográfica sobre proteção de dados e casos de pessoas vítimas de tráfico, considerando-se (i) literatura a respeito, (ii) leitura de reports, guidelines e recomendações em geral sobre a matéria disponibilizadas por organizações nacionais e internacionais e (iii) análise de dados disponibilizados por diferentes instituições identificadas a contento. 1 A RELAÇÃO ENTRE O TRÁFICO DE PESSOAS, A TECNOLOGIA E A PROTEÇÃO DE DADOS Antes de adentrar especificamente no âmbito dos aspectos legais do tratamento de dados1, importante entender as características do crime de tráfico de pessoas e como este se relaciona com os avanços tecnológicos. Também é fundamental entender como esta conexão se relaciona com a proteção de dados pessoais. Primeiro, esclarece-se que o crime de tráfico de pessoas é um crime complexo e dinâmico, o qual ocorre em diversos lugares, em uma ampla variedade de contextos, com diferentes finalidades. Os registros e relatos de tráfico humano denunciam que esta prática pode ter por fim (i) exploração sexual; (ii) tráfico de órgãos, sangue ou outras partes do corpo; (iii) trabalho escravo; (iv) trabalho militar forçado; (v) casamento forçado; (vi) prática de atividades criminosas; (vii) outros objetivos e a combinação desses. Nesse sentido, destaca-se que muitos aspectos do crime de tráfico de pessoas se alteraram em razão dos recentes desenvolvimentos da tecnologia. Isso porque alteraram-se as maneiras pelas quais se dão as conexões entre os exploradores, compradores e vítimas do tráfico de pessoas. Outro aspecto que também merece atenção diz respeito às transformações do crime de tráfico de pessoas no que se refere à maior circulação de informações sobre como se envolver neste tipo de atividade criminosa2. A aplicação da tecnologia na estrutura do tráfico de seres humanos pode tanto ser danosa quanto trazer benefícios. Esta também pode ser percebida como uma importante ferramenta de auxílio na prevenção, investigação, judicialização (no âmbito nacional ou transnacional); mapeamento, bem como na proteção das vítimas deste crime. Tais medidas se dão, inclusive, por meio da criação de bases de dados suficientemente 1. 2. Para todos os fins deste artigo, o termo “tratamento” terá o mesmo significado que o atribuído pelo artigo 5ª, X da Lei nº 13.709/2018 que define tratamento como “toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm>. Acesso em: 10 nov. 2019. LATONERO M., BERHANE G., HERNANDEZ A, MOHEBI T., MOVIUS,L. Human Trafficking Online: The Role of Social Networking Sites and Online Classifieds (Technology and human trafficking, 2011). Disponível em: <https://technologyandtrafficking.usc.edu/ report// Acesso em: 24 nov. 2019. E ; M. Latonero, J. Musto, Z. Boyd, E. Boyle, A. Bissel, K.Gibson, and J. Kim, The rise of mobile and the diffusion of technology-facilitated trafficking (USC Annenberg Center on Communication Leadership and Policy, 2012. Disponível em: <https:// technologyandtrafficking.usc.edu>Acesso em: 24 nov. 2019. completas que permitam o aprimoramento de políticas de identificação das redes de tráfico e na prevenção desse crime ao redor do mundo. Ressalta-se deste modo que o crime de tráfico possui um padrão e, consequentemente, um fluxo de informações típicos da prática deste delito. Nesse sentido, o crime também passa a ser rastreável e mapeável. Identificar as informações necessárias para traçar tais rotas e fazer o mapeamento necessário, contudo, não é uma tarefa simples. Isso porque é muito difícil identificar fontes completas e confiáveis sobre o assunto. A ausência de uma base precisa e consistente de informações gera maior dificuldade para identificar as rotas e traçar meios de combate efetivo a este crime. E a escassez de fontes nesse sentido é justificável. A elaboração de uma base de dados é vinculada ao tratamento de informações de pessoais de vítimas do tráfico e, portanto, de informações de pessoas em que acabaram de vivenciar uma situação traumática e que ainda pode estar expostas a riscos.3 Destaca-se que os dados coletados nos casos de tráfico de pessoas envolvem inevitavelmente detalhes pessoais e, muitas vezes, dados íntimos. Muitas agências que lidam com vítimas de tráfico coletam detalhes pessoais como (i) o local de residência, (ii) nome e endereço (iii) membros da família (iv) histórico médico, incluindo possivelmente o status de HIV. Se os dados pessoais não estiverem protegidos e devidamente tratados antes de integrarem uma base de dados, as consequências podem ser graves. Nesse sentido, tem-se que (i) as testemunhas e vítimas podem ser identificadas, localizadas e intimidadas; (ii) as vítimas podem ser publicamente expostas ou pior, suas vidas podem ser colocadas em perigo; e (iii) informantes podem ser identificados e virar alvos de perseguição. Além disso, o uso indevido de informações pessoais não afeta apenas o indivíduo, como também prejudica a eficácia de todo o esforço e de medidas anti-tráfico. Se as informações pessoais não estiverem protegidas contra o uso indevido, as vítimas ficarão ainda mais relutantes em contar 3. Sobre esse aspecto, dispõe o estudo Collateral Damage: the impact of anti-trafficking measures on human rights around the world (GAATW, 2007: 2), “Muitas agências governamentais assumem sem dúvida que o objetivo de fazer cumprir a lei e o de defender os direitos humanos, são os mesmos. No entanto, no caso do tráfico de pessoas nem sempre é assim. As provas existentes sugerem que especialmente as pessoas marginalizadas, como os migrantes, as pessoas deslocadas internamente, os refugiados ou os solicitantes de asilo, têm sofrido injustamente as consequências negativas de medidas anti-tráfico, que têm sido contraproducentes para o grupo que deveria beneficiar”. GLOBAL ALLIANCE AGAINST TRAFFIC IN WOMEN/ GATTW. Collateral Damage. The Impact of Anti-Trafficking Measures on Human Rights Around the World. Bangkok, 2007. Disponível em: <https://www.iom.int/jahia/webdav/shared/shared/ mainsite/microsites/IDM/workshops/ensuring_protection_070909/collateral_damage_ gaatw_2007.pdf> Acesso em: 24 nov. 2019. suas experiências, e os informantes e testemunhas não se sentirão seguros para ajudar nas investigações. Dessa maneira, é vital que existam políticas e procedimentos para proteger a segurança e privacidade de informações pessoais nas hipóteses de comparilhamentos de dados para fins de combate ao tráfico de pessoas. 1.1 AS FORMAS DE TRATAMENTO DE DADOS PESSOAIS NOS CASOS DE TRÁFICO DE PESSOAS Dados não pessoais ou dados devidamente tratados e anonimizados são geralmente suficientes para fins de formulação de políticas anti-tráfico. Em outras palavras, caso se torne impossível identificar o titular dos dados a partir da análise destes, tem-se que está sendo dada a proteção necessária aos envolvidos na rede de tráfico. Pode-se inferir ainda que o acesso a dados pessoais sensíveis geralmente não precisa estar disponível aos formuladores de políticas de prevenção a este crime de modo que, em tese, a proteção estaria devidamente assegurada. Contudo, tem-se por certo que, em determinado cenários, o acesso e intercâmbio de dados pessoais sensíveis podem ser solicitados por motivos e razões operacionais legítimas. Essa é uma previsão existente em todas as normativas sobre tratamento de dados. Destaca-se, desde já, que esse acesso de dados e intercâmbio de informações pessoais deve ser conduzido dentro de uma estrutura de políticas e procedimentos que protejam os dados pessoais contra uso indevido destes. O tratamento dos dados destas vítimas, portanto, deve ser feito de maneira específica, considerando ainda que todos os aspectos protetivos necessários estão sendo tomados. Nesse sentido, importante ponderar quais as medidas sugeridas para o tratamento de dados de vítimas de tráfico de pessoas no âmbito internacional, bem como as disposições nacionais sobre o tema, para que seja possível averiguar como a tecnologia pode ser uma aliada ao combate ao tráfico de pessoas. Assim, tal problemática será analisada a partir dos planos internacional e nacional. 1.1.1 ÂMBITO INTERNACIONAL O uso da tecnologia para fins de identificação do crime de tráfico de pessoas suscita preocupações significativas sobre como pode ser identificado sem comprometer a segurança e os direitos fundamentais das vítimas e de outros indivíduos que podem ser afetados de forma colateral. No âmbito internacional importante destacar tanto a atuação da Organização Mundial da Saúde (OMS), do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), da “Ação das Nações Unidas para a Cooperação contra o Tráfico de Pessoas” (UNACT), e da Cruz Vermelha como organizações que estabelecem diretrizes para o tratamento de dados das vítimas de tráfico. Nesse sentido tem-se que em 2003 a OMS publicou um conjunto de dez diretrizes sobre como entrevistar mulheres vítimas de tráfico de pessoas4. Este foi um grande passo para assegurar o respeito ao direito das vítimas de tráfico, bem como de indicar os princípios sobre o uso dos dados coletados. Este guia se soma às diretrizes estipuladas pela UNICEF em 2006 sobre a Proteção de Crianças Vítimas de Tráfico5, no que atine a indicação de procedimento a ser adotado para o tratamento dos dados provenientes de crimes de tráfico de pessoas. Nesse sentido, interessante destacar que as diretrizes da UNICEF estabelecem que, dentre os dados que devem ser protegidos, deve-se considerar não apenas dados como nome, endereço, data de nascimento e nacionalidade, mas também informações sobre circunstâncias pessoais, como atividades, finanças e estado de saúde, incluindo questões como HIV ou gravidez. Visando complementar as diretrizes já existentes, a UNACT lançou, em 2008, uma série de diretrizes com o objetivo de contemplar mais hipóteses de tráfico de pessoas, abordando também homens, comunidades e pessoas ainda em situação de vulnerabilidade. Vale destacar que a UNACT é um projeto regional gerenciado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que atua com uma ampla gama de parceiros, incluindo a ONU e agências afiliadas, como OIT, UNICEF, UNODC, OIM e ONU Mulheres; e organizações da sociedade civil como World Vision, Save the Children ou ECPAT. A UNACT possui um guia de Padrões éticos para Pesquisa e Programação no tema de combate ao tráfico de pessoas6. 4. 5. 6. WHO (2003). WHO Ethical and Safety Recommendations for Interviewing Trafficked Women. Disponível em: <https://www.who.int/mip/2003/other_documents/en/Ethical_SafetyGWH.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2019. UNICEF (2006). Guidelines on the Protection of Child Victims of Trafficking. Disponível em: <https://www.unicef.org/protection/Unicef_Victims_Guidelines_en.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2019. UNACT. Guide to Ethics and Human Rights in Counter-Trafficking. 2008. Disponível em: <http:// un-act.org/publication/guide-ethics-human-rights-counter-trafficking/> Acesso em: 10 nov. 2019. Em todos os casos elencados, os princípios usados especificamente quanto ao tratamento das informações obtidas pelas vítimas tendem a serem o mesmos, sendo estes: (i) o de não gerar mais dano/ prejudicar às vítimas; (ii) o de garantir a confidencialidade; e (iii) o de obter o consentimento livre e informado das vítimas. As diretrizes aqui dispostas são amplas, mas demonstram, desde já, que todos os dados coletados das vítimas de tráfico devem ser tratados objetivando o sigilo e a confidencialidade quanto ao titular dos dados, inclusive para garantir a maior segurança destes. Ainda, quanto as recomendações sobre o tratamento de dados pessoais em casos de tráfico de pessoas, destaca-se a disposição da ONU sobre o tema, no documento intitulado “Princípios e diretrizes recomendados sobre direitos humanos e tráfico de pessoas (E/2002/68/Add.1) (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos) Diretriz 37.” Nesta, um dos princípios que se destaca diz respeito àquelede que os dados devem ser protegidos. Nesse sentido, os dados devem ser protegidos com políticas e procedimentos claros que equilibrem os interesses da aplicação da lei com a necessidade de garantir privacidade, confidencialidade e segurança aos titulares dos dados. Neste documento, mais uma vez destaca-se que dados anonimizados e dados não pessoais tendem a ser suficientes para a formulação de políticas de proteção. Contudo, nos cenários em que estes sejam necessários, elesdevem estar sujeitos a controles rigorosos de proteção. Por fim, a Cruz Vermelha possui um manual estruturado sobre como tratar os dados de pessoas em crises humanitárias. Ainda que nem sempre a vítima de tráfico de pessoas esteja em um cenário de crise humanitária, este é um importante paradigma para se considerar titulares que passaram por situações de grave violação de direitos humanos. O manual baseia-se nas diretrizes, procedimentos e práticas de trabalho existentes, estabelecidos em ações humanitárias em benefício das vítimas mais vulneráveis de emergências humanitárias. Ele procura auxiliar as organizações humanitárias a cumprir os padrões de proteção de dados pessoais, aumentando a conscientização e fornecendo orientações específicas sobre a interpretação dos princípios de proteção de dados no contexto de ações humanitárias, particularmente quando novas tecnologias são empregadas. 7. UN. Recommended Principles and Guidelines on Human Rights and Human Trafficking.2002 Disponível em: <https://undocs.org/E/2002/68/Add.1>. Acesso em: 24 nov. 2019. A Organização define dados pessoais como qualquer informação relacionada a uma pessoa natural identificada ou identificável. Neste mesmo sentido, titular de dados é consequentemente um indivíduo que pode ser identificado, direta ou indiretamente, em particular por referência a dados pessoais. A Organização destaca ainda que algumas leis de proteção de dados incluem a categoria adicional de Dados Sensíveis no conceito de dados pessoais. Para os fins do Manual, “Dados Sensíveis” são dados pessoais, que, se divulgados, podem resultar em discriminação ou repressão de um indivíduo. Normalmente, dados relacionados à saúde, raça ou etnia, filiação religiosa / política / grupo armado, informações genéticas e dados biométricos são considerados dados sensíveis. A Cruz Vermelha ressalta também que todos os dados sensíveis exigem maior proteção. Nesse sentido, destaca-se que, as organizações humanitárias trabalham em diferentes cenários, sempre em situações e graves violação de direitos humanos. Como estas situações são muito delicadas, as organizações passaram a considerar que muitos elementos particulares das situações de violação são elementos que podem gerar discriminação, ampliando assim, o esccopo do que pode ser considerado como dado sensível. Evidente que todas as situações devem ser analisadas caso a caso. Em determinadas situações, por exemplo, a ausência dda anonimiação do sobrenome de um indivíduo pode colocá-lo em uma situação dde maior risco, situação na qual o nome é tido como dado sensível. Nesse sentido, tem-se que aquela Organização considera que todos os dados que possam colocar as vítimas em uma situação de maior risco devem ser tratados como dados sensíveis. Por analogia, deste modo, pode-se dizer que todos os dados no estudo do tráfico de pessoas que puder identificar as vítimas ou colocalas em situações de maior vulnerabilidade devem ser considerados dados sensíveis e portanto tratados com as precauções necessárias. Uma das precauções necessárias no caso de tráfico, extraído de todos os manuais e guias ora listados8, é justamente a de anonimizar de forma eficaz as informações obtidas para impedir que os titulares de dados sejam colocados em maior risco. Âmbito Nacional - Aspectos Legais do Tráfico de Seres Humanos e Proteção de Dados no Brasil Muito embora não exista nenhuma disposição específica quanto ao tratamento de dados de vítimas do crime de tráfico de pessoas no Brasil, 8. As fontes observadas são as mais consistentes até o momento da pesquisa, existem mais recentes, porém não tão adequadas. existem disposições específicas sobre tratamento de dados e tratamento de dados sensíveis, bem como disposições sobre tráfico de pessoas no ordenamento jurídico brasileiro. Ainda, tem-se que o Estado Brasileiro se comprometeu no âmbito internacional com o combate ao tráfico de pessoas, de modo que ele também está atrelado às disposições internacionais sobre o tema9. Deste modo, interessante entender como as legislações nacional e internacional se vinculam a esta temática. A Constituição Federal indica como direito fundamental a dignidade da pessoa humana10, o que se relaciona diretamente com a proteção das vítimas de tráfico de pessoas. Ainda, tem-se que de acordo com o artigo 5º, X, da Carta Magna, o direito à intimidade não deve ser violado11. Evidente, portanto, que toda medida adotada visando o combate ao tráfico de pessoas deve obedecer estas disposições. Existe ainda, legislação específica relativa ao crime de tráfico de pessoas, qual seja, a Lei n°13.344/2016. Esta alterou o Código Penal Brasileiro, ampliando as modalidades de tráfico e as suas penas. Isso porque, anteriormente à promulgação desta Lei, apenas o tráfico para fins de exploração sexual estava expresso no Código Penal. Assim, além da exploração sexual, estão previstos o tráfico para remoção de órgãos ou tecidos, para fins de submissão de pessoas a condições análogas às de escravo ou a qualquer tipo de servidão, e para adoção ilegal (Código Penal, art. 149-A). Dentre as diretrizes estipuladas pela lei para o combate ao tráfico de pessoas, para fins de estudo quanto aos dados coletados destas vítimas, destacam-se os princípios de “respeito à dignidade da pessoa humana”; “atenção integral às vítimas diretas e indiretas, independentemente de nacionalidade e de colaboração em investigações ou processos judiciais12. O Brasil ratificou dentre outros tratados: Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial de Mulheres e Crianças, que foi adotado em Nova York em 15 de novembro de 2000. O Protocolo foi aprovado pelo Congresso Nacional por meio de Decreto Legislativo 231/2003, e determinada sua execução através do Decreto 5.017/2004. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016-out-17/cesar-dario-brasil-cumprindotratados-trafico-pessoas>. Acesso em: 129nov. 2019. 10. Artigo 1º, III da CF “ Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana.” 11. Artigo 5º da Constituição Federal, “X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;” 12. Princípios previstos no artigo 2 da Lei 13.344/2016 “ Art. 2º O enfrentamento ao tráfico de pessoas atenderá aos seguintes princípios: I - respeito à dignidade da pessoa humana; II 9. Evidente, portanto, que ainda que mediante uma investigação judicial, as vítimas devem ser sempre assistidas de modo a garantir sua segurança e sua dignidade. A referida Lei ainda dispõe que o enfrentamento ao tráfico de pessoas atenderá às diretrizes de “II- articulação com organizações governamentais e não governamentais nacionais e estrangeiras; III- o incentivo à participação da sociedade em instâncias de controle social e das entidades de classe ou profissionais na discussão das políticas sobre tráfico de pessoas; VI estímulo à cooperação internacional; VII o incentivo à realização de estudos e pesquisas e ao seu compartilhamento; VIII-preservação do sigilo dos procedimentos administrativos e judiciais, nos termos da lei”.13 Deste modo, tem-se que a própria legislação brasileira reconhece a necessidade do compartilhamento de dados e da cooperação em âmbito nacional e internacional. Contudo, esta lei também reconhece a necessidade do sigilo nos procedimentos adotados, visando sempre a proteção das vítimas. Não há na referida lei uma disposição específica quanto ao intercâmbio de dados e informações no âmbito internacional para o combate a este delito. Interessante destacar, portanto, o Decreto n° 5.017 de março de 2004 que promulgou o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. O Decreto mencionado, em que um dos objetivos é o de promover cooperação entre os Estados para o combate ao crime de tráfico, estipula que uma das formas desta cooperação se dá por meio do intercâmbio de informações. Como isto pode envolver informações sensíveis, o artigo 10 daquele documento dispões que “Um Estado Parte que receba informações respeitará qualquer pedido do Estado Parte que transmitiu essas informações, no sentido de restringir sua utilização.” Tal medida garante que o Estado que possui os dados das vítimas de tráfico indique a finalidade com a qual tais dados serão utilizados antes de promoção e garantia da cidadania e dos direitos humanos; III - universalidade, indivisibilidade e interdependência; IV - não discriminação por motivo de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, nacionalidade, atuação profissional, raça, religião, faixa etária, situação migratória ou outro status ; V - transversalidade das dimensões de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, raça e faixa etária nas políticas públicas; VI - atenção integral às vítimas diretas e indiretas, independentemente de nacionalidade e de colaboração em investigações ou processos judiciais; VII - proteção integral da criança e do adolescente.” 13. Art. 3º da Lei n°13.344, de 2016. seu compartilhamento. Deste modo, caso este compartilhamento ocorra para mapear dados, eles não poderão ser usados para outro fim e terão que ser descartados se necessário. Este, contudo, também dispõe que: “Nos casos em que se considere apropriado e na medida em que seja permitido pelo seu direito interno, cada Estado Parte protegerá a privacidade e a identidade das vítimas de tráfico de pessoas, incluindo, entre outras (ou inter alia), a confidencialidade dos procedimentos judiciais relativos a esse tráfico.” Embora o Decreto disponha sobre a troca de dados no âmbito internacional, tem-se que este regula o intercâmbio de informações entre Estados, e não entre Estados e membros da sociedade civil, de modo que a relação estabelecida nesse segundo caso não está devidamente tutelada. Deste modo, para se entender as limitações quanto ao tratamento e compartilhamento de dados, ainda que em casos de tráfico de pessoas, temse como necessária a análise da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). A Lei n° 13.709/2018 também traz, como um de seus princípios fundamentais, o respeito à privacidade e os direitos humanos14. Para os fins desta Lei, dado pessoal é toda a informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável; enquanto dados sensíveis são dados pessoais sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural. Evidente, deste modo, que os dados coletados quanto ao tráfico de pessoas são dados pessoais e, muitas vezes, dados sensíveis. Nesse sentido, destaca-se que a LGPD dispõe que o tratamento de dados sensíveis poderá ocorrer independentemente do consentimento do titular, se este for indispensável para o “ tratamento compartilhado de dados necessários à execução, pela administração pública, de políticas públicas previstas em leis ou regulamentos;”15. Assim, o tratamento de informações para compor bases de dados internacionais é autorizado pela legislação brasileira, especialmente se tiver como finalidade o tratamento de dados para consolidar uma política pública 14. Artigo 2º da Lei 13.709/2018, incisos I e VII. 15. Artigo 11 da Lei 13.709/2018 “O tratamento de dados pessoais sensíveis somente poderá ocorrer nas seguintes hipóteses: (...) II - sem fornecimento de consentimento do titular, nas hipóteses em que for indispensável para: (...)b) tratamento compartilhado de dados necessários à execução, pela administração pública, de políticas públicas previstas em leis ou regulamentos. de combate ao tráfico de pessoas. Para tanto, é necessário garantir sempre a dignidade do titular destes dados, tendo como necessária a anonimização dos dados com vistas a assegurar a devida proteção às vítimas deste crime. 2 AS BASES DE DADOS SOBRE TRÁFICO DE PESSOAS E AS MEDIDAS ADOTADAS PARA A PROTEÇÃO PELAS FONTES DE DADOS Consoante o exposto, com os crescentes adventos tecnológicos é possível notar não apenas a criação de bases de dados mais amplas, como também a possibilidade de fazer o mapeamento e cruzar informações provenientes do mundo todo. Estas bases, contudo, além de ainda serem escassas, também tem o dever de se adequar a disposições especificas sobre proteção dos dados pessoais das vítimas de tráfico, para assegurar a elas os direitos fundamentais quanto à sua segurança, privacidade e dignidade, direitos fundamentais previstos tanto na Constituição Brasileira, como em diferentes pactos internacionais. A obrigatoriedade em adotar medidas para a proteção de dados nestes contextos está prevista tanto em tratados e regulamentos internacionais como na legislação nacional brasileira. Necessário, portanto, verificar como mecanismos de bases de dados que também se utilizam de informações disponibilizadoss por membros da sociedade civil brasileira se adequaram às medidas necessárias para o devido tratamento aos dados pessoais. As bases de dados relevantes para o presente estudo que, atualmente, permitem a análise de informações sobre o tráfico de pessoas ao redor do mudo são compostas tanto por agências da ONU como por diversas organizações não-governamentais internacionais (ONGs) e, até mesmos, empresas privadas. Dentre essas fontes destacam-se: (i) a Organização Internacional para as Migrações (OIM); (ii) oEscritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) sobre tráfico de seres humanos; (iii) a International Business Machines Corporation (IBM). Cada uma das bases de dados listada apresenta tanto aspectos positivos como negativos quanto ao mapeamento das informações sobre o tráfico de pessoas. Interessante, portanto, verificar como estas fontes lidam com as questões de proteção de dados pessoais em casos de tráfico de pessoas, considerando, por um lado, a necessidade de troca de dados para a formação de uma base confiável, bem como a sensibilidade destes mesmos dados. 2.1 A ORGANIZAÇÃO MIGRAÇÕES INTERNACIONAL PARA AS A OIM destaca-se por possuir o maior banco de dados de vítimas de tráfico no mundo. Isto se dá em decorrência dos programas de assistência e pesquisa da OIM quanto aos fluxos migratórios. Nesse sentido, é correto inferir que o processamento de dados pessoais é parte essencial das operações da Organização Internacional para as Migrações (OIM), vez que a coleta destes dados advém justamente da prestação de assistência direta às vítimas de tráfico de pessoas. Atualmente o banco de dados da organização contém mais de 90.000 casos individuais, com aproximadamente 5.000 novos casos adicionados a cada ano. Os dados capturados incluem informações sobre (i) os antecedentes das vítimas, (ii) locais e rotas de tráfico, (iii) como as pessoas se enquadram no processo de tráfico, (iv) formas associadas de exploração e abuso, (v) setores de exploração, (vi) meios pelos quais as vítimas são controladas e (vii) algumas informações sobre os autores. Pode-se dizer, portanto, que a OIM lida com dados altamente sensíveis. É por esse motivo que a organização foi uma das primeiras a desenvolver sua própria política interna de proteção de dados, os “Princípios de Proteção de Dados da OIM” adotados em 2009.16 Posteriormente, foi elaborado o “Manual de Proteção de Dados da OIM” em 201017. É justamente no manual de proteção de dados que se encontra uma recomendação específica para o tratamento de dados quando a pessoa for vítima do tráfico de pessoas. Nesse sentido, a OIM estabelece que caso o atendido tenha sido uma vítima de tráfico humano, considerações adicionais devem ser levadas em conta, inclusive salvaguardas para proteger a confidencialidade e o anonimato deste beneficiário. O princípio que rege esta disposição é o princípio de não causar danos às vítimas, o que inclui proteger o beneficiário da mídia onde existe o risco de que a interação comprometa seus interesses pessoais segurança ou reabilitação. Além disso, deve ser dado tempo adequado para permitir à OIM considerar a solicitar e, se apropriado, identificar um indivíduo adequado que possa estar disposto a participar a cobertura da mídia18. 16. https://www.iom.int/data-protection Acesso em: 24 nov. 2019. 17. https://publications.iom.int/books/iom-data-protection-manual Acesso em: 24 nov. 2019. 18. Informações disponíveis no manual da proteção de dados da OIM, disponível no site da Organização <https://publications.iom.int/books/iom-data-protection-manual> Acessado em: 24 nov. 2019. Tendo em vista a sensibilidade dos dados tratados pela organização, o banco de dados da OIM nem sempre esteve disponível ao público. A principal razão decorria da preocupação em resguardar as vítimas, bem como em prestar a devida proteção de dados e garantir a confidencialidade das informações. Foi apenas em 2017 que dados primários, anonimizados (“deidentified”), em nível individual, sobre vítimas de tráfico de pessoas, foram disponibilizados on-line. As informações foram disponibilizadas por meio do portal de dados de Counter Trafficking Data Collaborative (CTDC)19. Este é o primeiro hub20 global de dados sobre tráfico de pessoas, com dados provenientes de contribuições de organizações de todo o mundo. Este hub permite analises sob o tráfico de pessoas sob perspectivas de (i) gênero; (ii) idade; (iii) finalidade; (iv) rotas de tráfico. Atualmente, esse conjunto de dados global permite a pesquisa sobre mais de 55.000 registros anonimizados de pessoas vítimas do tráfico humano21, além de fornecer informações gerais a partir da análise de dados não pessoais de mais de 90.000 casos. Muito embora exista essa iniciativa, tem-se que os dados compartilhados, até o momento, servem majoritariamente para fins estatísticos. Isso porque, ainda que anonimizados, o compartilhamento de dados pessoais entre organizações continuaria possibilitando a reidentificação das vítimas, o que poderia levar a graves consequências. A propria ONU possui disposições que estabelecem que os dados sejam estritamente confidenciais e usados exclusivamente para fins estatísticos (ONU, 2013)22. Este é um dos motivos pelos quais o acesso aos dados e seu uso em várias iniciativas tem sido limitado até o momento. Nesse cenário observa-se que, embora a OIM possua uma grande base de dados, esta não é compartilhada em sua integridade. Deste modo, tem-se que, por um lado, a proteção atribuída contribui para a implementação eficaz dos projetos da OIM, garantindo a privacidade e a segurança de todas as pessoas assistidas pela organização, inclusive as vítimas de tráfico de pessoas. Por outro, a 19. THE COUNTER TRAFFICKING DATA COLLABORATIVE. GLOBAL DATA HUB ON HUMAN TRAFFICKING. Disponível em: <https://www.ctdatacollaborative.org/ > Acesso em: 24 nov. 2019. 20. Para fins deste artigo o termo “hub” será usado como “concentrador” e “processador” pelo qual se transmite ou difundem informações. 21. THE COUNTER TRAFFICKING DATA COLLABORATIVE. THE GLOBAL DATASET. Disponível em: <https://www.ctdatacollaborative.org/> Acesso em: 10 nov. 2019. 22. UN. 2013/21. Fundamental Principles of Official Statistics. Resolution adopted by the Economic and Social Council on 24 July 2013. Disponível em: <https://unstats.un.org/unsd/dnss/gp/FPRev2013-E.pdf>. Acesso em: 24 nov. 2019. limitação das informações disponibilizadas diminui o intercâmbio de dados possivelmente relevantes com demais órgãos, e dificulta a identificação dos perpetradores do crime de tráfico humano. Ainda, tem-se que o conjunto de dados têm um escopo geográfico e abrangência limitada. Isso porque a disponibilidade dos dados da OIM depende da sua programação, que varia em extensão por país. Destaca-se, por fim, que o hub da OIM se vale de dados colhidos no mundo inteiro, o que inclui também os dados colhidos no Brasil23. Inclusive, estes dados revelam que apenas 0,5% das pessoas traficadas do Brasil são identificadas apropriadamente. 2.2 ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME O UNODC realiza um trabalho importante quanto ao tráfico de pessoas que envolve elaborar periodicamente um relatório global sobre o tráfico de pessoas. O relatório mais recente data de 201824, e foi elaborado por meio do envio de questionários com diferentes perguntas aos governos a fim de identificar uma série de padrões sobre o tráfico de pessoas. Os dados coletados permitem identificar o sexo, idade e tipo de exploração das vítimas desse tipo de crime. Além disso, o UNODC coleta informações oficiais, como relatórios policiais (disponíveis em domínio público). O banco de dados do UNODC, contudo, se baseia na coleta de informações oficiais principalmente dos governos participantes. Desse modo, a abrangência dos dados varia de acordo com o Estado. As leis e políticas dos países para combater o tráfico, bem como suas capacidades para identificar vítimas podem tanto facilitar como prejudicar na coleta de dados25. 23. https://www.ctdatacollaborative.org/map 24. UNODC. Global Report on Trafficking in Persons 2018 (United Nations publication, Sales No. E.19.IV.2). Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/ glotip/2018/GLOTiP_2018_BOOK_web_small.pdf> Acesso em: 24 nov. 2019. 25. Nesse sentido, importante destacar o trecho extraído do artigo “ESTATÍSTICAS RELACIONADAS AO TRÁFICO DE PESSOAS: dos relatórios do UNODC à busca de uma metodologia compreensiva sobre o tema” que dispõe que “ Não obstante os esforços do UNODC em aprimorar sua metodologia de coleta de dados, uma dificuldade foi comum a todos os relatórios: o problema dos desarranjos verificados nas mais diferentes jurisdições não apenas em relação ao combate do crime em si, mas também no que tange à coleta interna de dados, muitas vezes sujeita a dificuldades inerentes à própria organização dos órgãos internos dos Estados ou mesmo da ausência de uma metodologia capaz de considerar as informações obtidas por cada uma das entidades atuantes no combate ao tráfico e suporte às vítimas.” SMANIO Gianpaolo P.. CHIARELLO Felipe de S. Pinto. ATCHABAHIAN, Ana Cláudia Destaca-se, por fim, que o Brasil é um dos Estados que colabora com as informações prestadas ao órgão, sendo, portanto, importante entender como este trata dos dados disponibilizados. 2.3 IBM As empresas privadas também têm um papel importante no mapeamento de informações para o combate ao crime de tráfico de pessoas. Nesse sentido, vale destacar a atuação da IBM, empresa norte-americana voltada para a área de informática que atua junto a ONGs no combate ao tráfico de pessoas26. A IBM trabalhou com a Watson Speech to Tex (STT) para desenvolver um hub de dados que permita que diferentes instituições financeiras (como Barclays, Europol, Liberty Global, Lloyd’s Banking Group, University College London, e outras) a identificar as redes e os fluxos de tráfico de pessoas. A análise de informações provindas de instituições financeiras é particularmente relevante, considerando-se que uma das características do tráfico de pessoas sua rentabilidade, o que tornaria possível o rastreamento de valores envolvidos. Nesse sentido, ao acompanhar o fluxo de dinheiro, também será possível acompanhar o fluxo de seres humanos traficados. Destaca-se ainda que a lavagem de dinheiro é uma parte predominante do tráfico de pessoas, logo é possível buscar e mapear dados de tráfico partindo-se também da identificação de padrões específicos relacionados à lavagem de dinheiro. A identificação destes dados se dá em dois passos diferentes. Em um primeiro momento, há a coleta de dados em grande escala. Em um segundo momento, é usada uma ferramente de Inteligência Artificial (IA) para enriquecer e refinar os dados coletados. Esta IA é treinada para reconhecer e detectar termos e incidentes específicos de tráfico de pessoas. A IA também permite que o hub receba dados de código aberto em escala - incluindo milhares de feeds de notícias diários - para ajudar os analistas a identificar as características dos incidentes de tráfico de pessoas (como métodos de recrutamento e transporte) com mais facilidade. Ruy Cardia. JUNQUEIRA, Michelle Asato. ANDREUCCI, Ana Cláudia P. Torezan (Orgs.). Mulheres invisíveis: panorama internacional e realidade brasileira do tráfico transnacional de mulheres. Curitiba: CRV, 2018. 26. IBM. Working with NGOs, non–profits and industry partners to disrupt human trafficking by using cloud and AI technologies to identify patterns of activity to make communities safer. Human TraffickiNg. <https://www.ibm.org/initiatives/human-trafficking> Acesso em: 24 nov. 2019. A ferramenta usa a IA para agregar e interpretar os dados transformando-os em informações acionáveis para uso por governos, ONGs e instituições financeiras. Os dados analisados não contêm informações específicas sobre entidades ou pessoas. Eles informam quando a transação ocorreu, e a relação com as cidades de origem e de destino. O cruzamento de dados agrupados de várias fontes - ONGs, notícias e outras instituições financeiras não é comum. São estas as informações que permitem uma análise mais precisa de fluxos de dinheiro relacionado ao fluxo de pessoas traficadas. Também permite um maior mapeamento de informações. Essa coleta e tratamento de dados tem como fim identificar onde as rotas de tráfico acontecem, quais são os pontos de trânsito,e que tipos de tráfico prevalecem em diferentes períodos de tempo e em diferentes locais. A estratégia utilizada pela IBM consiste em fazer a análise de dados não pessoais relacionados ao tráfico de pessoas. Muito embora as informações sejam provenientes de instituições financeiras, estas informações não se vinculam com os titulares dos dados. Isso porque o hub não armazena informações pessoais ou confidenciais. Como não são dados específicos, a legislação acerca do tratamento não é um problema. Ao analisar dados não pessoais, a IBM contorna os problemas quanto às políticas de privacidade e permite o compartilhamento de resultados. Deste modo, a plataforma IBM/STT facilita uma melhor colaboração intersetorial para interromper ou reduzir ao máximo o tráfico de pessoas. Por outro lado, tem-se que as informações coletadas dependem exclusivamente das informações prestadas pelas instituições que fazem uso da IBM e concordam em processar seus dados com a finalidade de identificar o tráfico de pessoas. Deste modo, muito embora a análise de dados financeiros por meio do uso de uma IA consista em uma chance para identificar casos de tráfico de pessoas, tem-se que esta medida se encontra sujeita à vontade dos controladores destes dados. Mais uma vez, tem-se a análise dos fluxos, mas não a identificação dos agentes que atuam no crime de tráfico de pessoas, em razão da anonimização dos dados pessoais. Não suficiente, tem-se que essa coleta identifica grandes fluxos, de modo que casos isolados provavelmente passam desapercebidos pelo mapeamento realizado. Muito embora a IBM não use, em um primeiro momento, dados prestados por entes situados no Estado Brasileiro, temse que ela pode se valer de dados anomizados de brasileiros que tenham informações em uma das instituições financeiras que cede as informações ao AI. CONSIDERAÇÕES FINAIS A tecnologia mudou o modo como se deve lidar com o tráfico de pessoas. Isso porque esta alterou não apenas a dinâmica do tráfico, mas também aprimorou as formas de combate deste. Uma das formas de combate consiste justamente em rastrear as formas e os padrões contidos neste tipo de crime, para identificar rotas usadas e, a partir desta informação, tentar estabelecer novas políticas de combate e prevenção. Para tanto, é necessária a análise e o uso de dados das vítimas de tráficos de pessoas. Nesse sentido, destaca-se que embora não exista nenhuma diretriz específica no Brasil para esse tratamento particular, existem diretrizes e tratados internacionais, bem como legislação interna sobre o tratamento de dados e sobre o tráfico de pessoas. Todas essas normas devem ser combinadas em casos concretos para assegurar a proteção às vitimas, bem como uma maior efetividade nas redes de proteção e combate ao crime. Destaca-se, assim, que diversas instituições que tem sede no Brasil, ou usam dados proporcionados pelo Governo brasileiro ou, potencialmente, utilizam dados de brasileiros, encontraram formas assegurar a proteção de dados e, ao mesmo tempo, gerar bases de dados que podem ser compartlhadas internacionalmente. Essas informações, contudo, ainda são escassas. Nesse sentido, muito embora as bases de dados geradas não consigam contemplar todas as hipóteses de tráfico, estas auxiliam significantemente na identificação de rotas e rotinas dos agentes que praticam este crime, e consequentemente, auxiliam em seu combate. Salienta-se que uma medida que poderia auxiliar profundamente no mapeamento destes dados consistiria em que todos os envolvidos na assistência das vitimas de tráfico de pessoas realizassem o commpartilhamento dos dados depois destes terem sido devidamente anonimizados. Tal ação, por si só, aumentaria as informações coletadas ao redor do mundo e auxiliaria no mapeamento a ser feito por diversos Estados. Lembra-se, todavia, que o uso da tecnologia para fins de integrar bases de dados não é irrestrito. Isso porque os dados atinentes às vítimas de tráfico de pessoas são dados pessoais, muitas vezes sensíveis, que devem ser tratados adequadamente, para não expor ainda mais as vítimas a uma situação de violência e maior vulnerabilidade. Nesse sentido, embora seja preciso expandir cada vez mais a rede de compartilhamento de informações relevantes para tentar combater este crime, é necessário também atentar aos direitos de privacidade e à proteção de dados pessoais dos titulares dos dados, garantindo sempre a dignidade, a proteção e a segurança destes. O compartilhamento de bases de dados é essencial. Isso porque reunir dados globais em uma plataforma fortalece e capacita instituições locais, nacionais e internacionais para erradicar crimes de tráfico e exploração. Este compartilhamento, para ser efetivo, exige um esforço coletivo, tanto por membros da sociedade civil, como de instituições privadas e dos próprios governos. Por certo, portanto, que o esforço visando o compartilhamento de dados de vítimas de tráfico de pessoas tem que se aprimorar, para que as bases de dados fiquem cada vez mais completas, respeitando-se sempre a proteção aos titulares dos dados mapeados. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição Federal do Brasil de 1988. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 30 Jan. 2020. ______. Decreto n° 5017/2004. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5017.htm>. Acesso em: 30 Jan. 2020. ______. Lei nº 13.344/2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13344.htm>. Acesso em: 30 Jan. 2020. ______. Lei nº 13.709/2018. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm>. Acesso em: 30 Jan. 2020. CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Tráfico de pessoas: Da convenção de Genebra ao Protocolo de Palermo. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf. gov.br/publicacoes/docs_artigos/artigo_trafico_depessoas.pdf>. Acesso em: 28 nov. 2019. IBM. Working with NGOs, non–profits and industry partners to disrupt human trafficking by using cloud and AI technologies to identify patterns of activity to make communities safer. Disponível em:. <https://www.ibm. org/initiatives/human-trafficking>. Acesso em: 07 Dez. 2019. M. Latonero, G. Berhane, A. Hernandez, T. Mohebi, L. Movius. Human Trafficking Online: The Role of Social Networking Sites and Online Classifieds. Technology and human trafficking, 2011. 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WHO Ethical and Safety Recommendations for Interviewing Trafficked Women. Disponível em: <https://www.who.int/mip/2003/other_documents/en/Ethical_SafetyGWH.pdf>. Acesso em: 30 Jan. 2020 CAPÍTULO 10 TRÁFICO DE PESSOAS: DESAFIO DA IMPLEMENTAÇÃO DE UMA REDE SISTEMATIZADA DE DADOS PARA O COMBATE DO FENÔMENO NO BRASIL CAROLINA NAVES SILVESTRE Graduada em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie; advogada. Membro do Grupo de Pesquisa “Pessoas Invisíveis: Prevenção e Combate ao Tráfico Interno e Internacional de Seres Humanos”. INTRODUÇÃO O trabalho em apreço traz a análise da importância da coleta e sistematização de informações sobre o crime do tráfico de pessoas no Brasil, com o intuito de que sejam estruturadas políticas públicas em consonância à realidade do crime perpetuado no território nacional. Essa abordagem é extremamente relevante ao considerar que o tráfico humano é um crime de grandes proporções, altamente rentável e, ao mesmo tempo, invisível, superando limites territoriais físicos e envolvendo organizações criminosas estruturadas, por meio das quais comercializam-se pessoas como se objeto fossem, para o fomento do lucro. Desse modo, esse trabalho consiste na coleta e análise de dados de diversos órgãos sobre o tráfico de pessoas, com o intuito de verificar se há congruência de informações para aferir se o Brasil desenvolve um sistema informatizado, com a possibilidade de cruzamento de dados, em cumprimento às metas estabelecidas no II e III Plano Nacional de Enfretamento ao Tráfico de Pessoas, considerando que se utilizou o recorte temporal de dados extraídos entre os anos de 2014 a 2019, período que engloba ambos os Planos mencionados. A seleção dos órgãos cujos dados serão analisados deu-se por serem partícipes da rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas, bem como por possuírem um caráter nacional, e não apenas regional, o que dificultaria a mensuração dos dados. A referida pesquisa está estruturada em três capítulos: o primeiro visa contextualizar o avanço brasileiro na luta contra o tráfico humano, analisando a consonância de dispositivos legais nacionais com o Protocolo de Palermo – principal documento internacional sobre o tema –, bem como a implementação da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e de seus Planos Nacionais, destacando-se as metas para a criação de dados sistematizados e articulados. Posteriormente, na segunda parte do trabalho, serão computados dados oficiais que tratam sobre essa temática, com o intuito de analisar se há congruência entre si, possibilitando-se a verificação da amplitude desse crime, além da constatação se o Brasil está gerando informações estruturadas e adequadas, em observância às metas dos Planos Nacionais até então estabelecidos. No terceiro capítulo, serão analisadas fontes secundárias e ações judiciais cuja temática envolva dados do desaparecimento civil, considerando que há uma parcela significativa de pessoas traficadas que foram dadas como desaparecidas. Assim, revela-se a importância da verificação de informações sobre o primeiro contato formal com o governo para que seja dada a notícia do desaparecimento (boletim de desaparecimento), visando estabelecer se há o cruzamento de dados entre os órgãos que atuam nessa temática e, consequentemente, também exercem participação na luta contra o tráfico de pessoas. Objetiva-se demonstrar a hipótese que norteia este trabalho, qual seja, que o Estado brasileiro não está sendo capaz de produzir e sistematizar dados sobre o tráfico humano, em descumprimento ao II e III Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, utilizando-se, para tanto, o método indutivo de análise. 1 PERSPECTIVAS GERAIS SOBRE O TRÁFICO DE PESSOAS E ANÁLISE DE SUA EVOLUÇÃO LEGISLATIVA NO BRASIL O tráfico de pessoas não é um fenômeno recente na história da humanidade. Pelo contrário, está enraizado em práticas seculares, por meio dos deslocamentos humanos alinhados com regimes de submissão e dependência dos mais fortes perante os mais vulneráveis socioeconomicamente. No entanto, mesmo após as profundas evoluções tecnológicas, científicas e legislativas, o fenômeno da “coisificação” do ser humano permanece, de modo que, na busca insaciável pelo lucro, as pessoas são tratadas como meras cifras comerciais, em um processo violento de redução da “humanidade de outra pessoa”, responsável por ceifar sonhos, liberdades e suas próprias vidas.1 A Organização das Nações Unidas (ONU) declara que o tráfico de pessoas é uma forma de “escravidão moderna” 2 (tradução livre)3. Em grande parte dos casos, as vítimas perdem suas liberdades individuais, a escolha de ir e vir e o direito de livre disposição sobre suas vidas e seus corpos, em razão de falsas promessas, na busca de melhores condições de vida e igualdade. Em outras palavras, “o tráfico de pessoas é causa e consequência das violações dos direitos humanos”4 . Para além disso, este crime é catalogado como a terceira maior fonte ilegal de lucro do mundo, movimentando cerca de US$ 32.000.000.000,00 (trinta e dois bilhões de dólares americanos) por ano, número inferior, apenas, à rentabilidade do tráfico de armas e de drogas.5 Trata-se de um crime complexo, violento e, também, silencioso, diante do qual as pessoas em situação de tráfico clamam pela efetivação de seus direitos, por meio de políticas públicas que possam protege-las e enxerga-las como pessoas, e não como comércio. Diante deste cenário repleto de violações a direitos fundamentais e após a intensificação das discussões sobre o tema em âmbito internacional, restou claro que era necessária a articulação de diversos setores da sociedade para a implementação de políticas públicas nas agendas governamentais, na tentativa de coibir a expansão do tráfico de pessoas, bem como preveni-lo. 1. 2. 3. 4. 5. MORRA, Maria Helena. Tráfico de Pessoas: gente vendendo gente. Um desafio para os direitos humanos. Tráfico de pessoas: quanto vale o ser humano na balança comercial do lucro? A escravidão no Século XXI – São Paulo: Ideias & Letras, 2013, p. 40. UNODC. Global Report on Trafficking in Persons. New York: United Nations, 2014. 1 p. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//Topics_TIP/Publicacoes/ GLOTIP_2014_full_report.pdf Acesso em: 18 ago. 2019 “We have seen that governments and people everywhere are approaching human trafficking with greater urgency. This year, we marked the first ever United Nations World Day against Trafficking in Persons on 30 July, which provided a much-needed opportunity to further raise awareness of modern slavery.” BRASIL. Ministério da Justiça. Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília: SNJ, 2008. 5 p. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/ publicacoes/anexos/i-plano-nacional-de-etp.pdf. Acesso em: 2 set. 2019. UNODC. Global Report on Trafficking in Persons. New York: United Nations, 2012. 68 p. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/glotip/Trafficking_ in_Persons_2012_web.pdf Acesso em: 18 ago. 2019. Um dos resultados dessa aliança foi a criação de um marco histórico legal sobre o tema - Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas em Especial Mulheres e Crianças (Protocolo de Palermo), adotado em Nova York em 15 de novembro de 2000. O Protocolo de Palermo trouxe inovações importantes a respeito dessa temática. Uma das significativas mudanças foi o rompimento da antiga conceituação do tráfico de pessoas, que nos documentos internacionais anteriores visava proteger quase que exclusivamente as mulheres – principalmente brancas - e crianças. Em seu art. 3º, alínea “a”, o referido instrumento legal internacional transpôs tal barreira, conceituando esse crime como: o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos. Além de diversas outras modificações à perspectiva até então existente sobre o tráfico de seres humanos, o Protocolo de Palermo impôs aos Estados signatários a obrigatoriedade de implementarem políticas, se apresentando como um “instrumento destinado a combater e prevenir o tráfico de pessoas e, ao mesmo tempo, a proteger os direitos fundamentais das vítimas”6, tornando-se o documento mais importante e inovador sobre o tema. Nesse diapasão, o art. 10 do diploma legal supramencionado dedicouse sobre o intercâmbio de informações entre as autoridades competentes e a formação de seus agentes, determinando que deveria haver cooperação entre os órgãos, mediante a troca de informações, visando definir dados sobre características, meios e incidência desse crime. No Brasil, contudo, apesar de ter sido assinado no ano de 2000, esse instrumento internacional somente foi promulgado em 12 de março de 2004 (Decreto n.º 5.017/2004), tendo em vista que a preocupação em incluir tal 6. PISCITELLI, Adriana G.; VASCONCELOS, Márcia. Apresentação do Dossiê Gênero no Tráfico de Pessoas. Campinas: Cadernos Pagu, 2008. 13 p. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cpa/ n31/n31a02.pdf Acesso em: 15 set. 2019. assunto como um problema de governo no país ocorreu efetivamente após denúncias realizadas por organizações da sociedade civil, pela ONU e pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Tais denúncias deram origem à pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil (Pestraf), publicada em 2002, a qual revelou a problemática do tráfico de pessoas no Brasil, além de mostrar a fragilidade dos dados colacionados pelos órgãos nacionais.7 Além de outras ações visando o enfrentamento desse crime, a Pestraf propôs a criação de uma rede de informações que permitisse identificar e controlar as ações da rede, bem como a estruturação e reforço nas instituições atuantes, nas redes de notificação e no armazenamento de dados, e a preparação, em si, de um banco de dados, buscando o tratamento global do fenômeno. O arcabouço legislativo nacional, visando alinhar-se aos desafios apresentados, intentou incorporar o assunto à agenda brasileira por meio de respostas articuladas, instituindo, para tanto, a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Decreto nº 5.948/2006), sob a coordenação da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça (SMJ), da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) e da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres (SPM). A Política Nacional estabeleceu princípios, diretrizes e ações norteadoras de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas e de atenção às vítimas, além de instituir a finalidade de elaboração do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP). No tocante à gestão de informações, revelou-se a necessidade de incentivar e realizar pesquisas, considerando as diversidades regionais, organização e o compartilhamento de dados (art. 4º, VIII, Decreto nº 5.948/2006), além da integração de dados existentes na área de enfrentamento ao tráfico de pessoas (art. 8º, I, “m”, Decreto nº 5.948/2006). Desse modo, percebe-se que ao aprovar a Política Nacional, o Brasil reconheceu a importância do enfrentamento ao tráfico de pessoas, deixando-o de ser tratado apenas em ações pontuais, para se tornar, efetivamente, uma política multissetorial de Estado, por meio do 7. BRASIL. Ministério da Justiça. Pestraf: pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil, 2002. Disponível em: https://www.justica. gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos-pesquisas/2003pestraf.pdf/ view Acesso em: 10 out. 2019. fortalecimento do pacto federativo e da atuação conjunta e articulada de esferas e órgãos governamentais e da sociedade civil.8 Em 2008 desenvolveu-se o I PNETP (Decreto nº 6.3472008), o qual tinha três grandes eixos estratégicos – prevenção ao tráfico de pessoas, atenção às vítimas e repressão e responsabilização de seus atores -, trazendo para cada um desses assuntos, objetivos, ações, atividades, metas, órgãos responsáveis, além de parceiros e prazos de execução. No tocante ao eixo de prevenção, realça-se a prioridade de levantar, sistematizar, elaborar e divulgar estudos, pesquisas, informações e experiências sobre o tráfico de pessoas, envolvendo mais de vinte e três metas para tanto. Já em relação ao eixo de repressão ao tráfico de pessoas e responsabilização de seus atores, também se nota o objetivo de melhorar as redes de dados, visando fomentar o intercâmbio de informações entre os órgãos de segurança pública em matéria de investigação. Esse primeiro ciclo de políticas públicas encerrou-se em 2010, ano em que foi elaborado o Relatório do Plano Nacional, o qual concluiu que foram alcançados resultados positivos no I PNETP, inclusive, a respeito de novos estudos e pesquisas sobre a temática, considerando que até o ano de 2006 só existia a Pestraf como pesquisa sobre esse fenômeno em âmbito nacional.9 No intervalo entre os anos de 2010 a 2012, não esteve vigente nenhum Plano Nacional, tendo em vista que o II PNETP foi somente implementado em 2013, por meio da aprovação da Portaria Interministerial nº 634/2013, a qual instituiu também o Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação do II PNETP, com o intuito de analisa-lo e monitorá-lo periodicamente. Ademais, visando garantir a eficácia do II PNETP, instituiu-se o Decreto nº 7.901/2013, que criou o Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CONATRAP), no âmbito do Ministério da Justiça (MJ) e a Coordenação Tripartite da Política Nacional de Enfrentamento 8. 9. CAMPOS, Bárbara Pincowsca Cardoso; OLIVEIRA, Mariana Siqueira de Carvalho; GAMA, Ivens Moreira. O que o Brasil tem feito para combater o tráfico de pessoas? Notas sobre a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. In: SOUSA, Nair Heloísa Bicalho de; MIRANDA, Adriana Andrade; GORENSTEIN, Fabiana (Orgs). Desafios e perspectivas para o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Brasília: Ministério da Justiça - Coordenação de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, 2011. p. 238-240. Disponível em: https://www.justica. gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/desafiosperspectivasl.pdf Acesso em: 10 set. 2019 BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Final de Execução do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília: SNJ, 2010. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/ trafico-de-pessoas/politica-brasileira/anexos/2010relatoriopnet.pdf Acesso em: 3 set. 2019. ao Tráfico de Pessoas, composta pelo MJ, pela SPM e SDH, objetivando coordenar a gestão estratégica e integrada da Política Nacional e de seus Planos. O II PNETP estabeleceu que até o ano de 2016 deveriam ser executadas cinco linhas operativas, estando, dentre elas, a produção, gestão e disseminação de informação por meio da criação de um sistema de dados, informatizado, integrado e multidisciplinar, atualizado permanentemente pelos atores envolvidos para subsidiar a coordenação de ações e intercambiar informações entre as diferentes organizações.10 Para tanto, foram definidas quatro metas, sendo elas: (i) mecanismo de integração das informações dos bancos de dados; (ii) sistema de informações utilizado pelos Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas; (iii) matriz de indicadores comuns sobre o tráfico de pessoas; e (iv) relatório público do sistema de informações sobre o tráfico de seres humanos com publicação anual. Com efeito, os membros do Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação do II PNETP realizaram diversas reuniões para acompanhar o progresso do cumprimento das metas contidas no Plano. Na última delas, ocorrida em maio de 2016, elaborou-se o 8º Relatório do PNETP, apresentou-se então uma análise final sobre o assunto.11 Nesse relatório, concluiu-se que das quatro metas acima mencionadas, apenas a criação da base integrada de dados não havia sido alcançada, inclusive, sem a apresentação de nenhum avanço desde a 6º Reunião do Grupo, datada de dezembro de 2014. Ainda durante a execução do II PNETP, foi sancionada a Lei nº 13.344/2016, que promoveu a tipificação do tráfico de pessoas (149-A, Código Penal), no âmbito dos crimes contra a liberdade pessoal, ampliando as hipóteses de configuração do crime, anteriormente disciplinado nos artigos. 231 e 231-A do Código Penal (incluídos pela Lei 11.106/2005), que restringiam sua finalidade à exploração sexual, o que contrariava sobremaneira o texto do Protocolo de Palermo. Em que pese tenham surgido severas críticas à Lei nº 13.344/2016, observa-se que tal diploma trouxe outras modificações até então inexistes, como a autorização expressa para que o poder público crie sistema de 10. BRASIL. Ministério da Justiça. II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília: SNJ, 2013. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil/ noticias/2013/04/2013-04-08_Folder_IIPNETP_Final.pdf. Acesso em: 2 set. 2019. 11. BRASIL, Ministério da Justiça. 8º Relatório de Monitoramento: II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília: SNJ, 2016.Disponível em https://legado.justica.gov.br/suaprotecao/trafico-de-pessoas/politica-brasileira/anexos-gi-ii/8-orelatorio-de-monitoramentodo-ii-pnetp.pdf. Acesso em: 3 set 2019. informações visando à coleta de dados que orientem o enfrentamento do crime (art. 10), bem como disponibilização de meios técnicos adequados para localização de vítimas ou suspeitos do delito em curso, mediamente requisição direta feita por membros do Ministério Público ou delegados de polícia às empresas prestadoras de serviços de comunicação ou telemática (art. 11). Após as mudanças elencadas na lei supramencionada, foi publicado o Decreto nº 9.440/2018, que aprovou o III PNETP, dividindo-o em seis eixos temáticos, de maneira que um deles dedica-se exclusivamente à gestão de informação, com o intuito de desenvolver e implementar sistema integrado de informações sobre o tráfico de pessoas e seu enfrentamento. Para tanto, definiu-se nove metas estratégicas, com propósitos específicos, destacando-se dentre elas, o diagnóstico do cenário nacional sobre o tráfico de pessoas; desenvolvimento e difusão do banco de dados de instituições e programas de enfrentamento; além da implementação da estratégia de gestão de informação em conjunto com órgãos do Poder Judiciário e de segurança pública. Em constância com a sistemática de monitoramento do II PNETP, o Decreto nº 9.796/2019 instituiu o Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação do III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do III PNETP, responsável por analisar e produzir relatórios de suas atividades até o ano de 2022, correspondente à data de vigência desse Plano Nacional. De acordo com o Ministério da Justiça12, o III PNETP será monitorado por meio da plataforma “Monitora 8.7”, gerenciada por uma cooperação internacional entre o Ministério Público do Trabalho e a Organização Internacional do Trabalho, em prol da erradicação do Trabalho Forçado, da Escravidão Contemporânea, do Tráfico de Pessoas e do Trabalho Infantil (Agenda 2030). A plataforma tornará público os dados de todas as etapas do monitoramento do III PNETP, com o intuito de fomentar a participação civil na luta para a erradicação do tráfico de seres humanos. Até o presente momento, nenhum resultado foi registrado no sistema.13 12. BRASIL. Decreto nº 9.440, de 03 de julho de 2018. Aprova o III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília, DF, Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/ trafico-de-pessoas/politica-brasileira/dec-9440-18-iii-plano.pdf Acesso em: 6 set. 2018. 13. SMART LAB (Brasil). Ministério Público do Trabalho (Org.). Monitora 8.7: plataforma de monitoramento de planos da meta 8.7 dos objetivos do desenvolvimento sustentável. Disponível em: https://monitora87.mpt.mp.br/status/ Acesso em: 6 nov. 2019. Desse modo, após a análise do avanço legislativo sobre a temática, passa-se, no tópico subsequente, ao exame dos dados disponibilizados pelos órgãos integrantes da rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas. 2 ANÁLISE DA INTEGRAÇÃO DE DADOS OFICIAIS SOBRE O FENÔMENO DO TRÁFICO DE PESSOAS Antes de adentrar à análise sobre critérios qualificativos dos dados de órgãos públicos sobre o tráfico de pessoas, é imprescindível tecer considerações sobre a concepção de políticas públicas. Maria Paula Dallari Bucci define políticas públicas como: (...) programas de ação destinados a realizar, sejam os direitos a prestações, diretamente, sejam a organização, normas e procedimentos necessários para tanto. As políticas públicas não são, portanto, categoria definida e instituída pelo direito, mas arranjos complexos, típicos da atividade político-administrativa.1415 Nesse sentido, a autora leciona que a categoria de políticas públicas pressupõe a noção de compreensão do Poder Público de maneira conjunta, contemplando, necessariamente, a coordenação, que deve ser tida como uma preocupação indelével para a atuação do ente estatal.16 Considerando a necessidade de coordenação, entende-se que para a consecução dos objetivos definidos em uma política pública, há de se estabelecer a interação com diversos órgãos, entidades ou seguimentos da administração pública que, de certa maneira, possam influenciar no resultado a ser alcançado: Pensar estrategicamente ou pensar as políticas públicas implica pensar toda a organização ou todo o arranjo estatal em relação aos seus pontos de incidência, tomados como sistemas complexos e caóticos, inseridos em um contexto moldado por um conjunto de relações que transcendem os limites desse sistema de atores (organizacionais ou sociais), para alcançar a interação com outros órgãos, entidades ou segmentos que configuram o espaço de interação da administração pública. É preciso pensar a estratégia ou a política pública como resultante da interação dos 14. BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. Políticas Públicas: Reflexões sobre o Conceito Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. 31 p. Disponível em: https:// edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4182322/mod_resource/content/1/BUCCI_Maria_ Paula_Dallari._O_conceito_de_politica_publica_em_direito.pdf Acesso em: 19 out. 2019. 15. Em que pese tenhamos citado Maria Paula Dallari Bucci, não faremos análise das políticas públicas conforme o quadro de referência proposto pela autora, posto não ser esse o escopo do presente trabalho. 16. Ibid., p. 44. diferentes organismos, áreas, segmentos e atores sociais; níveis, interesses, tensões e perspectivas de análise.17 Passando-se tal análise para a perspectiva do tráfico de pessoas, revelase imperioso a articulação e coordenação de todos os atores envolvidos nesse assunto, para a efetiva formação da rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas.18 Posto isso, conclui-se que a concretização das políticas públicas para a sistematização de uma rede de dados sobre o tráfico humano requer, necessariamente, o intercâmbio de informações e a atuação conjunta de todos os órgãos envolvidos na rede anti-tráfico do país. Tendo isso como pressuposto, torna-se fundamental a análise dos dados de diversos órgãos, no intuito de verificar se há compatibilidade e congruência entre si e, consequentemente, aferir se o Brasil está desenvolvendo políticas para a implementação de uma rede integrada de informações sobre o tráfico humano de maneira eficaz. Para que a pesquisa pudesse ser factível, definiu-se o recorte temporal de dados extraídos entre os anos de 2014 a 2019, os quais permeiam as metas definidas no II e III PNETP, considerando que nesse intervalo desenvolveram-se mais documentos e pesquisas sobre o assunto, tornandose mais apurada a coleta das informações para o desenvolvimento da pesquisa. A partir de pesquisas sobre a temática, foram selecionados alguns organismos integrantes da rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas para que seus dados fossem analisados, sendo eles: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Ministério de Justiça, Polícia Federal, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Ministério das Relações Exteriores, Departamento Penitenciário Nacional e Conselho Nacional de Justiça. Considerando que a rede de enfrentamento ao tráfico humano também engloba atores da sociedade civil, os primeiros documentos a serem 17. BERGUE, Sandro Trescastro. Gestão estratégica e políticas públicas: aproximações conceituais possíveis e distanciamentos necessários. Contabilidade, Gestão e Governança, v. 16, n. 2, mai./ago. 2013. p. 88-89. Disponível em: https://www.revistacgg.org/contabil/article/view/496/pdf Acesso em: 6 nov. 2019 18. “Para enfrentamento do tráfico de pessoas, torna-se fundamental o processo de articulação, descentralização e participação de dos diferentes segmentos da sociedade, de forma a estabelecer um pacto federativo entre os distintos poderes e níveis de governo, em parceria com a sociedade civil organizada, institutos de pesquisa e organismos internacionais. A esse conjunto instituições e atores envolvidos no processo de denomina-se, de forma genérica, Rede de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.” BRASIL. Governo Federal. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Rede de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Disponível em: https:// www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-de-enfrentamento Acesso em: 6 set. 2019. estudados são os Anuários Brasileiros de Segurança Pública, os quais são produzidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, organização sem fins lucrativos que atua no debate sobre articulação e cooperação técnica para a segurança pública do Brasil. As fontes dos Anuários baseiam-se em informações fornecidas pelas secretarias de segurança pública estaduais, pelo Tesouro Nacional, pelas polícias civis, militares e federal, entre outras fontes oficiais da segurança pública, com o objetivo de obter dados sobre as ocorrências criminais violentas no país. Da análise dos Anuários que refletiam o período estabelecido nessa pesquisa, observou-se que a única informação sobre o crime em tela deu-se no 9º Anuário (dados de 2014), mencionando, apenas, que os números de crimes contra a dignidade sexual tentados ou consumidos, englobavam o tráfico internacional e interno de pessoa para fim de exploração sexual.19 Revela-se, portanto, que não há nenhum filtro dos dados, impossibilitando a definição de quais seriam as referências específicas sobre o tráfico de seres humanos. Passando-se à segunda análise, verifica-se que o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões teve origem a partir do reconhecimento do “estado de coisas inconstitucional” do sistema carcerário brasileiro pelo Supremo Tribunal Federal, que, por meio do julgamento do Recurso Extraordinário nº 641.320/RS determinou a necessidade de providências administrativas para criação de um sistema exato de cadastro nacional de presos.20 O referido sistema é de competência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com a finalidade de registrar informações sobre pessoas submetidas ao sistema carcerário brasileiro e sobre as ordens de prisão decretadas pelas autoridades judiciárias do país no biênio de 2016 a 2018. Todavia, em que pese esse sistema tenha sido um grande avanço no cômputo dos qualificativos sobre a situação prisional nacional, não há sequer informações sobre o tráfico de pessoas, nem ao menos quantos seriam os presos por tal modalidade criminosa. 19. PÚBLICA, Fórum Brasileiro de Segurança (Org.). Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 9. ed. São Paulo, 2015. 78 p. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/storage/9_ anuario_2015.retificado_.pdf Acesso em: 10 set. 2019. 20. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Banco Nacional de Monitoramento de Prisões – BNMP 2.0: Cadastro Nacional de Presos, 2018. 9 p. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/2019/08/bnmp.pdf Acesso em: 8 out. 2019. Por outro lado, o “Justiça em Números”21, programa também do CNJ, traz estatísticas anuais do Poder Judiciário, com indicadores sobre sua organização, gastos despendidos para sua manutenção e informações processuais, englobando-se o número de processos recebidos, de acordo com o grau de jurisdição em que se encontram, sem qualquer informação sobre os réus e vítimas. A partir de sua análise, constatou-se que há informações sobre o crime aqui estudado, separando-o entre: (i) tráfico interno de pessoas para fins de exploração sexual; (ii) tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual; (iii) tráfico internacional de pessoas e; (iv) tráfico interno de pessoas. No entanto, considerando que serão analisados dados a partir de 2014, observa-se que há uma falha metodológica na divisão de tais espécies, considerando que antes da promulgação da Lei nº 13.344/16, o Código Penal tipificava o crime somente em dois tipos, sendo eles: (i) tráfico interno para fins de exploração sexual (art. 231-A); e (ii) tráfico internacional para fins de exploração sexual (art. 231). Dessa forma, não existia o crime de “tráfico” sem a vinculação com a exploração sexual. Além disso, mesmo após a vigência da lei supramencionada, também não há tipificação penal para “tráfico interno” e “tráfico internacional”, pois, segundo o art. 149-A, §1º, IV, Código Penal, caso a vítima de tráfico seja retirada do país, a pena poderá ser aumentada, sem que haja uma tipificação específica que distinga o crime de maneira interna ou internacional. Assim, para efeitos dessa pesquisa, não serão utilizados os dados de “tráfico interno” e “tráfico internacional” do sistema. Importante registrar, também, que esse programa de dados informa números de processos em trâmite perante os Juizados Especiais e Turmas Recursais. No entanto, considerando que os crimes não são de menor potencial ofensivo, não haveria tal possibilidade, de modo que tais informações também não serão consideradas para o presente estudo. Em 2014, foi mencionada a ocorrência de 109 processos de tráfico internacional para fins de exploração sexual e 125 para tráfico interno para fins de exploração sexual, totalizando 234 casos, levando-se em conta tanto as justiças Federal e Estadual, assim como os dados do primeiro e segundo grau de jurisdição e, também, do Superior Tribunal de Justiça. 21. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números: Força de Trabalho, 2018. Disponível em: https://paineis.cnj.jus.br. Acesso em: 6 nov. 2019. Na mesma linha de pesquisa, em 2015, o número se manteve parecido, somando-se 213 processos. No ano seguinte, o cálculo despencou para 60 casos, mantendo-se a metodologia de análise. Já em 2017, na contramão, o número subiu para 1.294 processos de tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual, e 1.284 para tráfico interno, atingindo o montante de 2.578 casos. Por fim, as últimas informações obtidas por esse sistema referem-se ao ano de 2018, sendo que o cômputo reduziu mais uma vez, agora para o total de 133 processos. Analisou-se também o “Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas – Perfil de País América do Sul” produzido pelo Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime, com dados que variam de 2014 a 2017.22 Constatou-se que no Brasil foram detectadas 1.228 vítimas do tráfico de pessoas em 2015, 1.054 em 2016 e 133 no período de janeiro a junho de 201723, em evidente contraponto ao aumento desproporcional de processos no ano de 2017 apresentado pelo sistema “Justiça em Números Digitais”, conforme mencionado acima. Além disso, foram registrados 78, 60 e 39 casos de tráfico de seres humanos, entre 2014, 2015 e 2016, respectivamente. Já o total de pessoas que entraram em contato formal com a polícia e/ou o sistema de justiça penal por terem sido suspeitas, detidas ou advertidas por tráfico de pessoas atingiu na mesma divisão temporal supra realizada 110, 82 e 43 pessoas.24 Passando-se ao exame das informações advindas da Polícia Federal, será analisado o relatório sobre a “Atuação da Polícia Federal no combate aos crimes violadores dos direitos humanos”, obtido pelo sistema e-Sic, com respaldo na Lei nº 12.527/2011 (“Lei de Aceso à Informação”)25 . De acordo com o documento, os dados estatísticos extraídos são relativos aos crimes violadores dos direitos humanos combatidos pela Polícia Federal no Brasil, tendo como unidade de referência os métodos investigatórios conceitualmente definidos como procedimentos, podendo ou não ter havido o indiciamento pela autoridade policial. A pesquisa abrange dois sistemas de informação: o Sistema Nacional de Procedimentos (SISCART), com dados sobre os procedimentos instaurados e o Sistema Nacional de Informações Criminais (SINIC), relacionado apenas aos indiciamentos realizados. 22. UNODC. Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas: América do Sul, 2018. Disponível em: https:// www.unodc.org/documents/lpo-brazil//Topics_TIP/Publicacoes/2018_GloTiP_South_ America.pdf Acesso em: 8 out. 2019. 23. Ibid., p. 11. 24. Ibid., p. 10. 25. Anexo I. Há, ainda, a ressalva de que os dados dos anos mais recentes poderiam estar incompletos, em razão do acúmulo de documentos a serem inseridos manualmente nos sistemas pelas unidades da Polícia Federal e órgãos conveniados O relatório traz um levantamento das informações no período de 2008 a 2017, de modo que no recorte temporal ora proposto, foram contabilizados 16 indiciamentos por meio do SINIC e 88 procedimentos pelo SISCART, sendo 18 no ano de 2014, 23 em 2015, 24 em 2016 e 23 em 2017, relacionados especificamente ao tráfico internacional de crianças e adolescentes, previsto no art. 239 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).26 Além disso, foi traçado um perfil de pessoas indiciadas pelo crime acima mencionado, o qual refletiu o percentual de 41,43% de homens e 58,57% de mulheres. No entanto, importante mencionar que esse valor reflete o período integral do relatório (2008 a 2017), contabilizando, portanto, um lapso de tempo maior que o destinado a essa pesquisa. O documento da Polícia Federal também revela dados do crime tipificado no próprio Código Penal, além da daquele previsto do ECA, conforme já delineado. No entanto, em razão da alteração da tipificação penal com o advento da Lei nº 13.344/16, o relatório revela informações somente com base no novo art. 149-A, Código Penal, restringindo sua análise, portanto, ao ano de 2017. Dessa maneira, foram computados 54 procedimentos e apenas 5 (cinco) indiciamentos, estabelecendo-se também a frequência dos casos em cada Unidade da Federação. Além disso, há informações sobre a ocorrência desse crime concomitantemente à outros, o que não será contabilizado nessa análise.27 O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos também disponibilizou, por meio do sistema e-Sic, arquivo com os números de registros de denúncias, faixa etária, raça e sexo das vítimas e dos suspeitos do crime de tráfico de pessoas.28 Foram apurados os seguintes números de registros: 140 (2014), 351 (2015), 317 (2016), 209 (2017), 144 (2018) e 28 (até agosto/2019), totalizando 1.889 casos. Contudo, não há informações sobre quais foram os métodos utilizados para a apuração desses números entre os anos de 2014 a 2016. As únicas referências trazidas são de que no período de 26. Anexo I, p. 146. 27. Anexo I, p. 32. 28. Anexo II. 01/01/2017 a 31/10/2018, os dados foram extraídos do Sistema Integrado de Atendimento à Mulher e, no intervalo de 01/11/2018 a 30/06/2018, do Sistema de Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. No tocante às informações das vítimas, estimou-se que o perfil é majoritariamente mulher, considerando que foram relatados 753 casos de mulheres, 74 de homens e 362 pessoas não tiveram seu gênero informado. Apurou-se, ainda, que a faixa etária das vítimas com o maior fluxo de ocorrências acontecia entre 15 a 24 anos. Quanto aos suspeitos, o cenário mostrou-se diferente, tendo em vista que a maior faixa etária dos suspeitos flutua entre 36 a 45 anos, evidenciando maior senioridade em relação às vítimas. E, no tocante ao sexo, foram apurados 506 casos envolvendo homens, 269 mulheres e 414 sem gênero conhecido, estimando-se, portanto, que os suspeitos são, em sua maioria, homens. O Ministério das Relações Exteriores (MRE), com base nos dados do Núcleo de Assistência a Brasileiros, encaminhou também pelo sistema e-Sic, planilha indicando o número de vítimas, seus sexos, bem como o país onde ocorreu o crime e para qual foi a finalidade.29 Foram apuradas 111 vítimas – em alguns casos o número constou como indeterminado -, em 26 países, sendo 50 mulheres e 61 homens. Identificou-se casos de tráfico para fins de exploração sexual, trabalho forçado, imigração, adoção e casamento servil, sendo que a grande maioria dos homens traficados eram destinados ao trabalho forçado, e as mulheres, à exploração sexual. Em relação aos relatórios sob organização do Ministério da Justiça, passa-se a analisar os Levantamentos Nacionais de Informações Penitenciárias de 2014 a 2017, bem como o Relatório Nacional sobre o Tráfico de Pessoas, com dados de 2014 a 2016. Quanto aos primeiros relatórios, os diagnósticos foram elaborados pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), órgão executivo subordinado ao Ministério da Justiça, cujo principal objetivo é acompanhar e controlar a aplicação das diretrizes da Política Penitenciária Nacional e da Lei de Execução Penal.30 Sua metodologia de coleta dos dados advém de informações armazenadas no INFOPEN, sistema do Ministério da Justiça criado em 29. Anexo III. 30. BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias. Brasília: Ministério da Justiça, 2017. 5 p. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatoriossinteticos/infopen-jun-2017-rev-12072019-0721.pdf Acesso em: 10 set. 2019. 2004 que fornece dados/estatísticas do sistema prisional brasileiro, a partir de relatórios preenchidos pelos gestores dos estabelecimentos prisionais do país.31 No tocante ao tráfico de pessoas, os relatórios de dezembro de 2014 e dezembro de 2015 não trazem nenhuma informação, permanecendo omissos quanto ao tema. Já no relatório de dezembro de 2016, o tema foi inserido em seu diagnóstico, relatando que o número de pessoas privadas de liberdade que foram condenadas ou aguardam julgamento pelo crime de tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual (antigo art. 231, Código Penal), perfazia o total de 43 homens e 2 (duas) mulheres e, pela tipificação de tráfico interno de pessoas para fins de exploração sexual (antigo art. 231-A, Código Penal), atingia a montante de 37 indivíduos, sendo homens em sua totalidade.32 O relatório seguinte - Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de junho de 2017-, permaneceu com a coleta das mesmas informações do ano anterior, sem menção à alteração da tipificação penal do crime oriunda da Lei nº 13.344/16, relatando que 9 (nove) homens e 4 (quatro) mulheres tiveram sua liberdade privada com base no art. art. 231, e, em virtude do antigo art. 231-A, o número total era de 4 (quatro) homens.33 Após o referido relatório, não houve nenhuma atualização dos dados até o presente momento, sem qualquer informação sobre os anos de 2018 e 2019. Passando-se ao Relatório de Dados sobre o Tráfico de Pessoas: Dados de 2014 a 2016, importante mencionar que foi elaborado com o intuito de sistematizar os dados de enfrentamento do tráfico de pessoas, por meio da análise de dados secundários de diversas instituições nacionais.34 O documento traz um estudo de dados envolvendo as principais características das vítimas, autores e do crime. Dentre elas, destaca-se a questão da nacionalidade da vítima, de modo que o relatório conclui que essa informação é quase inexistente nos dados levantados, evidenciando que não há uma preocupação em registrá-la. É relatado que com as diversas 31. Ibid., p. 5 32. BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias. Brasília: Ministério da Justiça, 2016. 46 p. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatoriossinteticos/infopen-dez-2016-rev-12072019-0802.pdf Acesso em: 10 set. 2019. 33. Brasil, Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2017, op. cit. p. 44 34. BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Nacional sobre o Tráfico de Pessoas: dados 2014 a 2016. 11 p. Brasília, SNJ, 2017. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-depessoas/publicacoes/relatorio-de-dados.pdf>. Acesso em: 10 set. 2019. crises humanitárias e o precário desenvolvimento de países vizinhos, o número de estrangeiros vítimas desse crime no Brasil sobe cada vez mais.35 Além disso, avaliou-se referências sobre o sexo da vítima, por meio do qual a Secretaria Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres (SPM) revela um número expressivo de mulheres vítimas de tráfico de pessoas, para fins de exploração sexual e trabalho escravo, contabilizando entre os anos de 2014 a 2016, 317 mulheres vítimas de tráfico de pessoas (interno e internacional) para fins de exploração sexual e somente 5 (cinco) homens.36 Os dados do Ministério da Saúde, considerados um dos mais confiáveis pelo relatório, também revelaram que a maior parte das vítimas é mulher, haja vista que foram identificados 301 vítimas mulheres e 107 homens.37 As informações do Ministério do Desenvolvimento Social, no entanto, apuraram que a grande maioria das vítimas de tráfico atendidas pelo Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos nos Centros de Referência Especializada de Assistência Social era homem.38 Não obstante, revelou-se que o gênero pode estar atrelado à forma de exploração, de modo que o número de homens traficados para fins de trabalho escravo era mais alto do que o número de homens traficados para exploração sexual. No entanto, os números expressivos de pessoas traficadas permaneciam como maioria do sexo feminino.39 Em relação ao perfil dos autores, o relatório apura que os dados da Polícia Federal revelaram que há mais mulheres indiciadas pelo crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Em contraponto, as informações do DEPEN demonstraram que há uma quantidade muito superior de homens presos pelo crime do que de mulheres, em consonância com o Relatório Global da UNODC de 2014.40 Quanto ao tipo de tráfico mais presente no país, o relatório revela que documentos internacionais, nacionais e outras pesquisas realizadas informam que a forma de exploração mais identificada é a sexual.41 É relatado que essa predominância foi confirmada no Brasil pela Divisão de Assistência Consular do MRE e pela SPM. Já dados da Polícia Federal revelaram números muito mais significativos de casos de redução 35. 36. 37. 38. 39. 40. 41. Ibid., p. 37. Ibid., p. 34. Ibid., p. 35. Ibid., p. 35. Ibid., p. 34-35. Ibid., p. 42-43. Ibid., p. 39. a condição análoga à de escravo do que tráfico para fins de exploração sexual.42 Até a mudança do tipo penal que ampliou as hipóteses de ocorrência do crime, não havia previsão legal de tráfico para fins laborais, de modo que os agentes eram condenados a outros crimes, como o da condição análoga à de escravo, conforme citado acima. Contudo, o relatório pondera que não é possível afirmar que sempre haveria uma situação de tráfico nos casos de exploração do trabalho, de modo que não é válido somar todos os números e enquadrá-los como tráfico, devendo tais interpretações serem relativizadas.43 Ademais, o relatório teceu considerações sobre a coleta de dados, constatando pela manualidade do registro em determinadas instituições; ausência de variáveis importantes em alguns sistemas, como sexo ou idade da vítima; incongruências nos conceitos em diferentes sistemas de informações; diferença nos períodos de coleta dos dados; forma inadequada de apresentação dos dados; ausência de periodicidade no levantamento das informações; e inconsistência dos dados.44 Concluiu-se que no país há diversas instituições que trabalham no enfrentamento ao tráfico humano, algumas registrando os casos manualmente e poucas analisando-os, sendo diferentes os tipos de coleta de informações utilizados e sem nenhuma interlocução, dificultando e quiçá impossibilitando a comparação ou análise integrada de dados.45 Por fim, foram recomendadas diversas iniciativas ao desenvolvimento de metodologia integrada de dados, como, por exemplo; elaboração de relatórios bianuais do tráfico de pessoas, com indicação um relator nacional, com alto grau de expertise, que coletasse, a cada biênio, em paralelo com os relatórios; criação de indicadores instrumentais mais adequados; realização de capacitação para o novo marco legal que alterou a definição do tráfico de pessoas, ampliando as formas de exploração, dentre outros.46 Vale mencionar que não houve a atualização das informações em novo relatório referente aos anos de 2017, 2018 e 2019. Diante das informações até então traçadas, revela-se a importância da coleta atualizada de dados sobre o crime para a mobilização do debate 42. 43. 44. 45. 46. Ibid., p. 39. Ibid., p. 39. Ibid., p. 48-49. Ibid., p. 28. Ibid., p-50-51. e avanço das políticas públicas visando seu enfrentamento, conforme bem explica Renato Sérgio de Lima: A disponibilidade e o papel das informações sobre crimes e criminosos configuram-se como centrais neste debate e, assim mobilizam diferentes atores em torno da definição de atribuições, categorias, conteúdos, regras e procedimentos envolvidos nesse processo, na medida em que irão determinar rumos e sentidos de políticas públicas de pacificação social.47 Em 2013, Flávia Piovesan e Akemi Kaminura entendiam que era necessário aperfeiçoar o sistema de coleta e produção de dados e estatísticas sobre o tráfico humano, com o intuito de elaboração de estratégias para sua prevenção e enfrentamento: Os dados referentes ao fenômeno no Brasil são pouco conhecidos em razão da carência de estudos especializados sobre o tema e deficiente coleta e produção de dados e estatísticas relacionadas ao tráfico de pessoas. (...) Para a efetiva prevenção do tráfico é preciso aperfeiçoar o sistema de coleta e produção de dados e estatísticas sobre tráfico de seres humanos, a fim de prover informações fidedignas para elaboração e implementação de estratégias de prevenção e enfrentamento ao tráfico. Também faz-se necessário desenvolver instrumentos para o monitoramento e a avaliação da eficácia da prevenção, inclusive quanto às consequências negativas não intencionais que impactam os direitos humanos, especialmente das pessoas traficadas.48 Em que pese tenham se passado quase cinco anos desde essa constatação, verifica-se que o cenário não mudou. Grande parte das instituições oficiais continua em estágios básicos de coleta de informações sobre esse crime, prejudicando a verificação de sua atual situação no país. Com os dados trazidos, pode-se observar que não há uma sistematização metodológica, de modo que cada órgão informa o dado que acredita ser suficiente para a análise do crime, o que reflete em variáveis completamente distintas e desconectadas, considerando que há dados 47. LIMA, Renato Sérgio de. A Produção da Opacidade: Estatísticas criminais e segurança pública no Brasil. Novos Estudos Cebrap. mar/2008.65 p. Disponível em: https://pesquisa-eaesp.fgv. br/sites/gvpesquisa.fgv.br/files/arquivos/renato_s_de_lima_a_producao_da_opacidade.pdf Acesso em: 20 out. 2019. 48. KAMIMURA, Akemi; PIOVESAN, Flávia. Tráfico de Pessoas sob a Perspectiva de Direitos Humanos: Prevenção, Combate, Proteção às Vítimas e Cooperação Internacional. In: BRASIL. Ministério da Justiça. Tráfico de Pessoas: Uma abordagem para os Direitos Humanos. 1ª ed. Brasília: Ministério da Justiça, 2013. p. 108-121. Disponível em: https://www.justica.gov. br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/cartilha_traficodepessoas_uma_ abordadem_direitos_humanos.pdf Acesso em: 10 set. 2019. diametralmente opostos em relação a, por exemplo, sexo predominante das vítimas e dos criminosos ou a espécie de tráfico de maior incidência no país. Desse modo, em plena era da informação, verifica-se a importância da sistematização dos dados sobre o tráfico humano, para que possamos conhece-lo verdadeiramente e, só assim, incorporarmos políticas públicas que sejam eficazes ao seu enfrentamento. Não obstante, vale mencionar que muito já se tem feito desde a implementação da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico, principalmente em relação à evolução legislativa sobre o tema. Contudo, faz-se imprescindível que haja a coordenação entre os atores para colocar em prática aquilo que já está estabelecido em lei. 3 INTERFACE DE GOVERNAMENTAIS DESAPARECIMENTOS INFORMAÇÕES ENTRE SOBRE A NOTÍCIA ENTES DOS Além dos dados disponibilizados sobre a ocorrência do crime ora estudado, também é importante analisar a interface de informações sobre o próprio desaparecimento de seres humanos, tendo em vista que o tráfico de pessoas situa-se como um dos motivos frequentes de desaparecimentos civis49, além de ser a primeira fonte de dados obtida pelos órgãos responsáveis a partir da notícia do desaparecimento, o que impacta diretamente no desenvolvimento da investigação estatal na busca dos indivíduos traficados e das redes criminosas. Dessa maneira, embora não se saiba a exatidão do número de pessoas traficadas que foram dadas como desaparecidas, observa-se uma relação importante entre esses fenômenos para que possa ser analisado o cenário do crime do tráfico humano de uma maneira mais ampla e completa, tecendo considerações desde o momento que a pessoa não é localizada por seus parentes ou conhecidos. Para tanto, serão feitas considerações a partir da análise de fontes secundárias que tratam do desaparecimento civil e revelam informações sobre a integração de dados entre órgãos que atuam nessa temática, utilizando-se o mesmo recorte temporal de dados do capítulo anterior (2014 a 2019). A magnitude desse fenômeno no território nacional foi somente compreendida em 2017, ano que foi publicada a 11ª Edição do Anuário 49. OLIVEIRA, Dijaci David de. Desaparecidos civis: conflitos familiares, institucionais e segurança pública. 2007. 317 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade de Brasília, Brasília, 2007. 28 p. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/1217 Acesso em: 18 out. 2019. Brasileiro de Segurança Pública, em estudo encomendado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha e produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontando para 94.101 casos registrados em 2014, 86.169 em 2015 e 71.796 no ano seguinte, os quais foram obtidos pelas seguintes fontes - Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Secretarias Estaduais de Justiça e/ou Cidadania; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; Cruz Vermelha e Fórum Brasileiro de Segurança Pública.50 A edição no ano seguinte atualizou o número de casos de desaparecimentos em 2016 para 81.176, e indicou o total de 82.684 registros em 2017, utilizando, para tanto, informações dos órgãos supramencionados, bem como do Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos do Ministério Público do Estado de São Paulo.51 Neste ano foi publicado o “Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019”, o qual informou que tiveram 83.701 registros de desaparecimentos em 2017 e 82.094 em 2018, sendo cerca de 25.000 casos somente no Estado de São Paulo. Desses números absolutos totais, foram localizadas 55.923 e 52.328 pessoas, respectivamente.52 O documento menciona que os números foram provenientes das Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Secretarias Estaduais de Justiça e/ou Cidadania; PLID/MP - Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos do Ministério Público do Estado de São Paulo; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; e Fórum Brasileiro de Segurança Pública.53 No entanto, há a ressalva de que não se pôde verificar como o registro de pessoas localizadas foi realizado, como por exemplo; qual o documento de base utilizado; se diz respeito a pessoas localizadas vivas ou mortas; se o encontro está ou não vinculado a eventos de desaparecimento previamente reportados; a que ano a pessoa foi dada como desaparecida, de modo que os números não correspondem necessariamente aos casos de pessoas desaparecidas registrados no mesmo ano.54 50. PÚBLICA, Fórum Brasileiro de Segurança (Org.). Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 11ª ed. São Paulo, 2017.p. 39-40. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/ uploads/2019/01/ANUARIO_11_2017.pdf Acesso em: 10 set. 2019. 51. PÚBLICA, Fórum Brasileiro de Segurança (Org.). Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 12ª. ed. São Paulo, 2018. 30 p. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br. Acesso em: 10 set. 2019 52. PÚBLICA, Fórum Brasileiro de Segurança (Org.). Anuário brasileiro de segurança pública. 13ª. ed. São Paulo, 2019. 69 p. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/ uploads/2019/10/Anuario-2019-FINAL_21.10.19.pdf Acesso em: 18 out. 2019. 53. Ibid., p. 69. 54. Ibid., p. 69. Da análise desses dados, observa-se que se apurou um número extremamente elevado de pessoas desaparecidas no território nacional no decorrer desses anos, principalmente no Estado de São Paulo, sem que fosse possível aferir efetivamente quantas foram localizadas no mesmo ano do desaparecimento e tampouco por qual motivo ficaram desaparecidas. Ainda, importante mencionar que os documentos trazem números absolutos de casos efetivamente registrados, que se dá pelo reconhecimento formal de desaparecimento civil perante o Estado por meio da realização de um boletim de ocorrência, possibilitando o início da investigação.55 Revela-se a importância, portanto, do registro formal do desaparecimento. No entanto, de acordo com Anelise Buzzi Serpi, o desaparecimento civil carece de dados concretos oficiais, dado ao fenômeno das subnotificações, que ocorre tanto pelo desconhecimento das famílias da possibilidade do registro de ocorrência policial, bem como pela cultura inverídica de que seria necessário esperar de 24-48 horas para informar às autoridades sobre o desaparecimento.56 Além disso, é identificado um outro problema ante a insuficiência de relatórios ou publicações oficiais sobre o tema, uma vez que em alguns Estados sequer há sistemas integrados de informação.57 Dijaci David de Oliveira relata que dos poucos dados produzidos no país, há pouca preocupação com a periodicidade e com a elaboração de variáveis elementares que possibilitem uma reflexão mais aprofundada do tema, sendo extremamente significativo o fato de não existir um registro sistemático sobre esse fenômeno, revelando, inclusive, que em alguns distritos policiais sequer são feitos registros dos casos denunciados.58 O autor menciona sobre a precariedade dos dados produzidos e das distintas orientações para o processo de sistematização do fenômeno: Não foram poucas as barreiras encontradas durante todo o percurso da pesquisa. Entre elas pode-se destacar a precariedade dos dados produzidos no Brasil; as distintas orientações para o seu processo de sistematização; a falta de uma definição conceitual clara sobre como abordar o 55. SERPI, Anelise Buzzi. Desaparecidos do estado democrático de direito: políticas públicas e subjetividade. Dissertação. (Mestrado em Psicologia). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015. 37 p. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/handle/handle/17084 Acesso em: 15 out. 2019. 56. Ibid., p. 41-42. 57. Ibid., p. 41-42. 58. OLIVEIRA, Dijaci David de. Desaparecidos civis: conflitos familiares, institucionais e segurança pública. 2007. 317 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade de Brasília, Brasília, 2007. p. 32-33. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/1217 Acesso em: 18 out. 2019. tema; os conflitos na orientação jurídico-estatal sobre os desaparecidos; a ausência de uma política de formação policial para o tratamento do tema (o que vem sendo implementado muito recentemente); e, por fim, a ausência de publicitação dos dados produzidos pelas delegacias em municípios e estados.59 Somado a isso, verificou-se que entendem haver deficiência no cruzamento de dados do desaparecimento com o de falecimento do indivíduo, diante da precária estrutura que o Estado alocou para essa temática. Não há a interface de informações entre a polícia, órgãos de assistência social e de saúde, impedindo que o mesmo homem seja identificado em sua integralidade, ora como um corpo sem identificação – desconhecido, ora como um nome sem corpo – desaparecido.60 Em face desse cenário, o Ministério Público do Estado de São Paulo ajuizou ao menos duas ações civis públicas (ACP) retratando as descobertas de seu Programa de Identificação de Desaparecidos (PLID/MPSP), o qual concluiu que após a necropsia no Instituto Médico Legal (IML) ou no Serviço de Verificação de Óbito da Capital (SVOC), os cadáveres de indivíduos identificados, mas cuja família não tinha conhecimento de seu paradeiro, eram inumados em terreno público como indigentes, embora tivessem sido reclamados nominalmente via B.O de desaparecimento junto à Polícia Civil do Estado de São Paulo, ocasionando o fenômeno do “redesaparecimento61” A primeira ACP ajuizada (nº 1019375-15.2017.8.26.0053), foi distribuída em 11/05/2017 e tramita perante a 13ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central de São Paulo, estando, até o presente momento, em fase de conclusão para sentença.62 Seu pedido consiste na condenação da Fazendo Pública do Estado ao cumprimento da obrigação de fazer, com o intuito de que seja criado um Banco de Dados de Pessoas Desaparecidas, visando a sistematização das informações.63 59. Ibid., p. 40. 60. SERPI, op. cit., p. 126. 61. Terminologia empregada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo na Apelação nº 1027564-45.2018.8.26.0053. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação nº 1027564-45.2018.8.26.0053 Relator: Des. Fernão Borba Franco, 7ª Câmara de Direito Público. Julgado em: 11 jun. 2019. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br. Acesso em: 5 nov 2019. 62. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Ação Civil Pública nº 101937515.2017.8.26.0053. Juíza: Luiza Barros Rozas Verotti, 13ª Vara da Fazenda Pública. Distribuição: 11 de maio de 2017. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br. 63. Ibid., p. 27. Nos termos de sua peça exordial, sustenta-se que o IML opera em mais de 70 unidades em todo o Estado de São Paulo, sem, contudo, possuir registro unificado dos corpos, “de modo que os familiares de desaparecidos são obrigados a peregrinar por todas as unidades a fim de consultar eventual passagem da pessoa desaparecida64”. Além disso, contatou-se que não haveria uma base de danos unificada no Estado de São Paulo apta a integrar informações entre os diversos entes públicos envolvidos na temática do desaparecimento de pessoas, englobando Polícia Civil, IML, SVO, hospitais, albergues etc.65 Nesse contexto, foi promulgada a Lei nº 15.292/2014, que definiu diretrizes para a Política Estadual de Busca de Pessoas Desaparecidas, e criou o Banco de Dados de Pessoas Desaparecidas, com o objetivo de implementar e dar suporte à referida política. O Ministério Público sustenta que, não obstante o lapso temporal decorrido da promulgação da citada lei, ainda não havia se concretizado sequer o esboço do projeto de banco de dados, dando-se causa ao ajuizamento da ação, em atenção ao princípio da dignidade humana, considerando que pela omissão do Estado, diversos familiares perderam o direito de enlutar-se e de garantir os funerais aos seus parentes.66 A outra ACP ora analisada (nº 1027564-45.2018.8.26.0053) distribuída em 08/06/2018, com origem na 7ª Câmara de Direito Público de São Paulo, objetiva o reconhecimento da responsabilidade civil do Estado de São Paulo, diante da alegada omissão dos órgãos públicos na gerência de dados sobre o desaparecimento de pessoas e, consequentemente, na perpetuação do enterro de pessoas dadas como oficialmente desaparecidas, como se indigentes fossem.67 Sustenta-se, ainda, que além da impessoalidade e precariedade do local onde são enterrados os indivíduos, dali só podem ser exumados após três anos, se adulto, ou dois anos, se criança até seis anos, salvo por determinação judicial, conforme dispõe o art. 551, Decreto Estadual nº 16.017/80, evidenciando a necessidade do ressarcimento civil.68 É aduzido, também, que a mera existência formal de uma normatização ou da criação de um órgão especializado – como a Delegacia 64. 65. 66. 67. Ibid., p. 5-6. Ibid., p. 7. Ibid., p. 11. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação nº 1027564-45.2018.8.26.0053 Relator: Des. Fernão Borba Franco, 7ª Câmara de Direito Público. Julgado em: 11 jun. 2019. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br. Acesso em: 5 nov 2019. 68. Ibid., p. 8-9. Especializada de Pessoas Desaparecidas –, não impede que falhas sejam cometidas, podendo-se identificar, ainda assim, a omissão do Estado na identificação dos corpos procurados.69 O processo foi julgado procedente em primeiro grau, condenando o Estado ao pagamento de R$ 250.000,00 a título de dano moral. Em face da sentença, foi interposta Apelação pela Fazenda Pública do Estado, a qual conseguiu revertê-la, sob a fundamentação de que há evidente aparato estatal voltado à apuração do paradeiro de pessoas desaparecidas, tendo sido considerado pelo Colegiado de que não restaram esclarecidas as evidências de ineficácia das políticas públicas já existentes a justificar a ingerência judicial ao caso. Atualmente a ação encontra-se em fase de Recurso Especial. Diante desse contexto, embora não se tenha feito uma análise detalhada do fenômeno do desaparecimento civil, percebe-se que há que se depositar um esforço maior dos entes públicos na notícia do desaparecimento e no intercâmbio desses dados com diversos órgãos públicos, além da imprescindibilidade de se coletar de informações mais aprofundadas sobre o fenômeno, incluindo sua interface com o tráfico de pessoas. Nesse sentido, lecionam Eliana Vendramini e Anália Ribeiro: Diante do desafio de gerar informações fidedignas acerca de quantidade, motivos e locais preponderantes do desaparecimento de pessoas no país e, particularmente, quantas delas por tráfico e qual a sua espécie, é premente a criação de um sistema integrado de dados, no mínimo, públicos. Essa tarefa, diante das alegadas dificuldades de investimento, demonstra-se pronta a contar, via convênio, com o interesse e a experiência as universidades; sem olvidar a presença dos mais variados atores, que trabalham com desaparecimento de pessoas, para a construção da ferramenta.70 Observa-se, portanto, que ainda permanece a carência de dados sobre o desaparecimento civil no país, de modo que não há informações suficientes quanto às causas dos desaparecimentos para que seja possível verificar a incidência do tráfico humano nesse fenômeno, prejudicando a construção de políticas públicas integradas destinadas ao combate do tráfico de pessoas. 69. Ibid., p. 1230. 70. CARNEIRO, Eliana F. V.; PINTO, Anália B. R. Tecendo redes de enfrentamento: pessoas traficadas e desaparecidas, direitos e outras legitimidades. In: SOUZA, João Arthur de. Et al. Inovação em Segurança Pública. Capivari de Baixo: FUCAP, 2018. Disponível em: http://sicti.ufsc. br/livro/ 2 set. 2019. 177 p. Insta mencionar que, na busca pela melhoria das precárias informações e tímidas estatísticas, foi instituída, por meio da Lei nº 13.812/2019 a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, prevendo a necessidade do desenvolvimento do sistema de informações, transferência de dados e comunicação entre os diversos atores envolvidos no fenômeno CONSIDERAÇÕES FINAIS Nos últimos anos, muito se avançou na esfera normativa nacional sobre o tráfico de pessoas. Tal fato se verifica diante da ratificação do Protocolo de Palermo, inserindo o tema como pauta da agenda de políticas públicas internas. Além disso, a Lei nº 13.344/2016, imprimiu o conceito do crime previsto no instrumento internacional, modificando a tipificação obsoleta até então existente, a qual limitava a ocorrência de tráfico de seres humanos apenas para os fins destinados à exploração sexual. Nessa baila, foi implementada a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas estabelecendo direcionamentos importantes para o auxílio ao combate desse crime, dando origem a três Planos Nacionais. Tais Planos, respeitadas suas particularidades, foram e continuam sendo importantes papéis para o desenvolvimento de metas para induzir o Estado a atuar de maneira incisiva e eficaz na luta contra esse fenômeno. Além disso, nesta última década, foram produzidos consideráveis estudos abrangendo essa temática, indicando que os entes governamentais e a sociedade civil estão mais engajados nesse assunto, o que favorece a discussão e, consequentemente, abre espaço para a construção de políticas mais eficientes. Entretanto, diante da análise dos dados pesquisados, observou-se que o Brasil não tem conseguido sistematizar as informações produzidas sobre a incidência e características do tráfico humano no país. Não há coordenação e cruzamento dos dados e nem sequer foi implementada uma mesma metodologia de pesquisa entre os órgãos que atuam na rede de enfrentamento desse crime. Observa-se que cada órgão coleta a informação que acredita ser necessária, sendo que, em muitos, há somente o número de casos relacionados ao crime, sem a indicação de qualquer outra característica que pudesse servir para uma análise mais pormenorizada. Nesse cenário, as inconsistências das informações revelam que ainda não se conhece, de fato, a dimensão desse fenômeno em nosso país, de modo que não conseguimos estabelecer todo o arranjo estatal que seria necessário para a definição de políticas públicas estratégicas e eficientes. Para que seja estabelecida uma rede estruturada de enfrentamento, é imprescindível a integração e articulação dos dados produzidos por esses órgãos. Somente assim será possível criar mecanismos que sejam capazes de monitorar o sistema de combate e prevenção, bem como garantir que as vítimas tenham assegurados seus direitos fundamentais, os quais foram suprimidos diante da comercialização de suas próprias vidas. A questão do desaparecimento civil revela a drástica consequência que a omissão estatal pode ocasionar aos indivíduos, considerando que pela ausência de cruzamento de dados entre entidades governamentais, as famílias que buscavam formalmente seus parentes, vieram a descobrir que muitos haviam sido enterrados como indigentes, ocasionando o dramático fenômeno do “redesaparecimento”. Desse modo, conclui-se que não há como combater de maneira eficaz algo que ainda não é conhecido em sua totalidade, principalmente e sobretudo em razão da ausência de implementação de uma metodologia integrada de coleta e tratamento de dados referente à modalidade criminosa ora sob análise. Assim, há muitos desafios a serem enfrentados para a implementação das metas estabelecidas no III PNETP no tocante à sistematização de dados, sendo indispensável que o Estado brasileiro invista recursos, agentes e, principalmente se dedique efetivamente ao cumprimento sistematizado dessas importantes políticas públicas incorporadas à agenda brasileira. REFERÊNCIAS BERGUE, Sandro Trescastro. Gestão estratégica e políticas públicas: aproximações conceituais possíveis e distanciamentos necessários. Contabilidade, Gestão e Governança, v. 16, n. 2, mai./ago. 2013. Disponível em: https://www.revistacgg.org/contabil/article/ view/496/pdf Acesso em: 06 nov. 2019. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números: Força de Trabalho, 2018. Disponível em: https://paineis.cnj.jus.br. Acesso em: 06 nov. 2019. ______. Decreto n° 5.017, de 12 de março de 2004. 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Pesquisadora voluntária do Grupo de Pesquisa “Pessoas Invisíveis: prevenção e combate ao tráfico interno e internacional de seres humanos”. MONIQUE PEIXOTO DE SOUZA Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisadora voluntária do Grupo de Pesquisa “Pessoas Invisíveis: prevenção e combate ao tráfico interno e internacional de seres humanos”. INTRODUÇÃO O crescimento populacional e o amplo avanço das cidades exigem um maior planejamento urbano para abranger as necessidades da sociedade; entretanto, com o desenvolvimento da tecnologia e da Inteligência Artificial (IA), torna-se mais fácil atender tais necessidades de forma sustentável e tecnológica. Partindo da união de toda esta nova tecnologia para a solução dos problemas destes espaços e para o alcance de melhorias, criou-se o conceito de Smart Cities, em que sistemas inteligentes de monitoramento e coleta de dados tornam-se cada vez mais habituais, propagados como forma de garantir direitos, facilitar a vida dos cidadãos e aumentar a segurança e o combate a diversos crimes. Apesar do caráter benéfico desta implementação tecnológica, é de extrema importância que haja a discussão sobre a forma como é realizada a transformação da cidade em si para uma cidade fundada sob tecnologia, e de que modo deve ocorrer para que não se torne um novo fator negativo, potencializando a exclusão já existente em razão das grandes disparidades socioeconômicas presentes em alguns centros urbanos, e colaborando para crimes que se aproveitam destes indivíduos excluídos, como é o caso do Tráfico de Seres Humanos. O Tráfico de Seres Humanos, um dos crimes mais antigos e graves contra os direitos humanos, tem seus parâmetros internacionais delineados no Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças (Protocolo de Palermo), e recebe aqui especial atenção uma vez que se efetiva através das fraquezas socioeconômicas de suas vítimas. Apesar das atenções das autoridades e pesquisadores só terem se voltado ao referido crime a partir do início do século XX, é possível encontrar relatos de casos ocorridos em razão do tráfico negreiro ainda no século XV1, tendo posteriormente se aprimorado e desenvolvido novas modalidades, como para a exploração sexual de mulheres e crianças, para trabalhos forçados ou em condições análogas à escravidão, mendicâncias, para remoção de órgão e tecidos ou, ainda, para adoções ilegais. O artigo 3º, alínea b, do Protocolo de Palermo traz que qualquer consentimento da vítima será considerado irrelevante, quando forem empregados os meios descritos na alínea a deste mesmo artigo, e isso se dá, pois, tal crime se efetiva diante das vulnerabilidades socioeconômicas de suas vítimas e causa grandes violações aos direitos humanos. Desta forma, este artigo visa compreender a formação e o desenvolvimento das Smart Cities, bem como analisar o crime de Tráfico de Seres Humanos, focando em traçar os possíveis impactos, positivos e/ ou negativos, deste desenvolvimento tecnológico diante das disparidades socioeconômicas existentes e, principalmente, do crime de Tráfico de Seres Humanos. 1. NOVAIS, Fernando Antonio. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777- 1808). 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2001. 1 O TRÁFICO DE SERES HUMANOS: EVOLUÇÃO, CONCEITOS E ASPECTOS SOCIOECONÔMICOS O Tráfico de Seres Humanos surgiu ainda no século XV com o tráfico negreiro existente à época em razão da colonização europeia pelo mundo2, e se estendeu por alguns séculos nesta mesma modalidade. Algum tempo mais tarde, no século XIX, aprimorou-se e desenvolveu uma nova modalidade, conhecida até hoje como “Tráfico de Escravas Brancas”, na qual as vítimas passaram a ser meninas e mulheres europeias, que eram traficadas para que fossem exploradas sexualmente, fosse para satisfazer tropas militares ao redor do mundo, ou para que trabalhassem em casas de prostituição3. Com o passar do tempo as organizações criminosas se especializaram, aprimorando e sofisticando ainda mais as formas de atuação e os processos envolvidos neste tipo de crime. Hoje, com o desenvolvimento do crime e o aprimoramento das técnicas utilizadas pelos aliciadores, o Tráfico de Seres Humanos se apresenta com diversas facetas e, graças ao grande trabalho de pesquisa sobre o tema e à elaboração de legislações nacionais e internacionais, desenvolvidos através das últimas décadas, conseguimos identificar e melhor compreender diversas delas, apesar de o número de vítimas parecer só aumentar, como as já conhecidas modalidades para exploração sexual e trabalho forçado e, ainda, para remoção de órgãos e tecidos, mendicância, adoção ilegal e até combate armado, dentre outras. De acordo com o Global Report on Trafficking in Persons, relatório divulgado em 2018 pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), nos últimos anos o crime atingiu patamares ainda mais preocupantes, fazendo mais de 25.000 vítimas identificadas pelo UNODC em 2016, de forma a superar consideravelmente todos os anos anteriores4, dentre as quais as mulheres representam 49%, seguidas por meninas que representam 23%, homens com 21% e meninos com 7%5. Ainda de acordo com o relatório, a principal forma de tráfico é com o intuito de exploração sexual, representando 59% do total, sendo seguida pelo tráfico para trabalho forçado com 34%, e pelas demais categorias com os 7% restantes6. 2. 3. 4. 5. 6. NOVAIS, Fernando Antonio. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777- 1808). 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2001. NOTTINGHAM, Priscila; FROTA, Helena. O Brasil na Rota do Tráfico de Escravas Brancas: Entre a Prostituição Voluntária e a Exploração de Mulheres na Belle Époque. In: SINAIS Revista Eletrônica. Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição n.11, v.1, Junho. 2012. UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIMES. Global Report on Trafficking in Persons 2018. New York: United Nations, 2018. p. 7. Ibid. p. 10. UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIMES. Global Report on Trafficking in O conceito mais utilizado internacionalmente para definir o tráfico de Seres Humanos, que servirá de plano de fundo para todas as modalidades, é o previsto no artigo 3º do Protocolo de Palermo: […] o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2000, artigo 3 º). Ao se aprofundar neste já conhecido conceito e no estudo do crime, é possível compreender que os aliciadores agem por meio de vulnerabilidades da sociedade, como mazelas sociais, econômicas e culturais, identificando e explorando-as, com o fim de ludibriar as vítimas que, almejando um futuro melhor, acabam se tornando presas fáceis. Ademais, cabe ressaltar o alto grau de crueldade que envolve o tráfico de pessoas, que causa danos profundos às suas vítimas, não apenas físicos, mas principalmente emocionais e psicológicos. Como principais fatores de vulnerabilidade, podemos apontar as condições econômicas — que facilitam a atuação dos aliciadores que, muitas vezes, chegam com a promessa de um emprego e condições de vida melhores em outros países —, a questão de gênero e a falta de oportunidade para determinados gêneros — muitas mulheres se submetem ao tráfico, mesmo cientes das condições que encontrarão em seu destino final, por viverem em condições extremamente precárias em seus países ou, ainda, em relacionamentos abusivos, seja com parceiros ou familiares — e, em grande crescimento nos últimos anos, a condição dos refugiados ao redor do mundo — muitas vezes estes refugiados são obrigados a migrarem de forma ilegal para se manterem vivos, e ao chegarem aos seus destinos, não encontram outra alternativa do que confiarem e se entregarem aos aliciadores7. Embora as atenções e os estudos sobre o tema tenham crescido nos últimos anos, e diversos normativos tenham sido criados, ainda há grande 7. Persons 2018. New York: United Nations, 2018. p. 29. ARRUDA, Eloísa de Sousa; D’URSO, Clarice Maria de Jesus; KODAMA, Teresa Cristina Della Monica; ARMEDE, Juliana Felicidade. Cartilha de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas. São Paulo: Ordem dos Advogados do Brasil Seção São Paulo, 2013. p. 19. falta de preparo para o combate efetivo ao Tráfico de Seres Humanos, por parte das autoridades e da sociedade. É necessária a conscientização de toda a sociedade e o preparo dos envolvidos neste processo de prevenção e combate ao crime, para que tenham condições de identificar e lidar com os aliciadores de forma eficiente. Ademais, em razão dos grandes danos aos direitos humanos e de sua característica de atuação nas brechas sociais, é imprescindível o desenvolvimento de políticas públicas, que sejam atualizadas de acordo com o rápido desenvolvimento da atuação criminosa, e sejam eficazes não só no combate ao crime, mas na prevenção dos fatores que o possibilitam. Pensando nisso, é necessário que nos voltemos ao processo de desenvolvimento das Smart Cities e do uso de inteligência artificial para uma nova configuração das cidades, e até aos impactos que isso pode gerar às classes mais baixas da sociedade, e ao combate ao Tráfico de Seres Humanos. 2 CIDADES INTELIGENTES: UM NOVO MUNDO A urbanização é um fenômeno que vem tomando proporções maiores a cada ano, e a previsão é que tal fenômeno se consolide e cresça cada vez mais, fazendo com que o século XXI seja conhecido como o “século das cidades”8. Em 2007 a população urbana alcançou, pela primeira vez, um nível maior do que a população rural e, já em 2015, atingiu 54% do total. A previsão é de que, em 2050, 64% do mundo seja urbano, restando apenas 34% de áreas rurais, o oposto de 1950, um século antes.9 Com toda essa urbanização é comum o surgimento de novas questões problemáticas, bem como o agravamento daquelas já existentes, e a tecnologia pode ser uma forte aliada no combate e solução destes problemas. Quando se trata de conceitos, ainda há muito em discussão, entretanto, podemos compreender que “[...] cidade inteligente é aquela que supera os desafios do passado e conquista o futuro, utilizando a tecnologia como um meio para prestar de forma mais eficiente os serviços urbanos e melhorar a qualidade de vida dos cidadãos” (CUNHA, 2016, p. 10), ou seja, para a existência de uma Smart City, é imprescindível que a mesma se utilize da tecnologia para resolução e prevenção de problemas, bem como para a prestação de um serviço público mais eficiente, corroborando para a qualidade de vida de seus cidadãos. 8. 9. CUNHA, Maria Alexandra et al. Smart Cities: Transformação digital de cidades. São Paulo: Programa Gestão Pública e Cidadania - PGPC, 2016. Disponível em: <https://bibliotecadigital. fgv.br/dspace/handle/10438/18386>. Acesso em: 13 nov. 2019. p.10 Ibid. p. 20. A Smart City deve abranger diversos âmbitos da sociedade, dentre eles o meio ambiente (Smart enviroment), a mobilidade (Smart mobility), a segurança, saúde e sanidade (Smart living), educação (Smart people), economia (Smart economy) e o governo (Smart governance)10, e dentre as inúmeras iniciativas para essa transformação, encontramos medidas das mais simples, como a disponibilização de bicicletas públicas, estrutura para carros elétricos e a implementação de espaços de coworking, às mais complexas, como o uso de Big Data e de dados de celulares para políticas públicas, requalificação de áreas urbanas, implementação de Centros de Controle de Operações, monitoramento ambiental.11 Com a implementação destas medidas e o desenvolvimento deste novo modelo de cidade, há a esperança de efetivamente combater e diminuir grandes problemas que permeiam as cidades brasileiras, como a falta de saneamento básico, de segurança e de saúde adequada, e a latente desigualdade social, mas para isso é necessária a implementação de um plano de ação de longo prazo, alterações legislativas que favoreçam as mudanças e, ainda, o comprometimento dos governantes da cidade que se predispor a tal evolução, dentre outras medidas de cruzamento das tecnologias a serem empregadas neste novo modelo.12 Apesar de grandes cidades já se utilizarem da tecnologia e estarem implementando o conceito de Smart City e de uma parte da população já ter conhecimento sobre o assunto, a maior parte dos cidadãos brasileiros ainda não está familiarizada com o tema. Contudo, quando consultados a respeito do tema, grande parte associa o termo com o uso da tecnologia para a construção de uma cidade melhor, e apesar de a grande maioria entender que suas cidades estão muito longe de alcançarem tal patamar, declaram sua esperança de que tais cidade inteligentes contribuam para uma melhora nos serviços oferecidos para a população e para sua qualidade de vida, além de “minimizar o impacto negativo sobre o meio ambiente e aumentar a transparência da gestão municipal”13. Ademais, demonstram que os principais pontos críticos, que devem prevalecer neste processo de melhorias, são a segurança, saúde e educação, de forma que a segurança é o mais importante dele e o que menos satisfaz os cidadãos.14 10. CUNHA, Maria Alexandra et al. Smart Cities: Transformação digital de cidades. São Paulo: Programa Gestão Pública e Cidadania - PGPC, 2016. Disponível em: <https://bibliotecadigital. fgv.br/dspace/handle/10438/18386>. Acesso em: 13 nov. 2019. p. 30. 11. Ibid. p.10. 12. Ibid. p. 14-15. 13. Ibid., p. 10. 14. CUNHA, Maria Alexandra et al. Smart Cities: Transformação digital de cidades. São Paulo: Programa Gestão Pública e Cidadania - PGPC, 2016. Disponível em: <https://bibliotecadigital. fgv.br/dspace/handle/10438/18386>. Acesso em: 13 nov. 2019. p. 10. 3 IMPACTOS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E DE CIDADES INTELIGENTES NA SEGREGAÇÃO DE VULNERÁVEIS Compreendida antigamente como uma revolução, a tecnologia sofre transformações constantemente acarretando mudanças na vida da população, no poder político, na organização socioeconômica de uma cidade, podendo impactar toda a sociedade com a simples alteração de um algoritmo. Desde os primórdios, as pessoas buscam o aperfeiçoamento do seu modo de vida e com o avanço tecnológico e o aumento populacional surge a necessidade de que o desenvolvimento siga a compreensão de agregar pessoas e proporcionar condições mais igualitárias. O Relatório do Desenvolvimento Humano de 2018 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)15 afirma que em que pese vivamos em um mundo complexo, este se torna cada vez mais conectado. Contudo, em conjunto com o progresso tecnológico também ocorre o desenvolvimento de desigualdades. Apenas no Brasil, de uma população formada por aproximadamente 207,6 milhões com renda per capita em R$1.268,00, ainda resta 7,4% da população na extrema pobreza, ainda que existam políticas públicas e cidades desenvolvidas de forma mais sustentável e envolta com tecnologia. Claramente, como prenunciado, cada vez mais, com o crescimento populacional, passarão a surgir cidades que necessitem atender as diferenciadas demandas da sociedade com a utilização da tecnologia, vez que a mesma, desde sua criação, é anunciada como a responsável por transformar o mundo e pelo smart everything, que representa o empoderamento de pessoas, empresas e organizações com a utilização de mídias sociais, inteligência artificial e o uso analítico de dados. Contudo, o que poderia compreender em uma resposta mais rápida e integrada de demandas e problemas sociais pode compreender em exclusão daqueles que não possuem acesso ou as ferramentas necessárias para integrar esta nova sociedade. Essa prometida (r)evolução permite a utilização de dados para compartilhamento e uma melhor compreensão de quem são os indivíduos que fazem parte da sociedade e suas necessidades, contudo, em uma civilização com diversas pessoas marginalizadas, não inseridas em qualquer classe ou base de informações e sem acesso a tecnologias, a obtenção de tais dados é um grande desafio, tornando extremamente complexo mensurar 15. UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME. Human Development Indices and Indicators – 2018 Statistical Update. New York: United Nations, 2018. quem faz parte deste grupo e de que forma é possível criar uma cidade que inclua estas pessoas. Com a problemática das imigrações, com cerca de 774,2 mil recepcionados apenas no Brasil dos anos de 2010 a 201816, um crescente número de indivíduos é exposto a vulnerabilidades e exclusões sociais. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em pesquisa publicada em 201617, há uma estimativa de que aproximadamente 101 mil pessoas estejam em situação de rua, sendo que a maior parte se encontra nas grandes metrópoles. Com o surgimento destas cidades globais ou smart cities e o pensamento de conexão entre nações, mas sem a resolução de problemas sociais, o desenvolvimento macro impõe uma constante de reprodução de desigualdades, a busca pelo poderio econômico se apresenta de forma nítida em meio a lógica natural de hostilidade daqueles que não se encontram em uma posição social que a maioria dos cidadãos, fazendo com que a própria cidade impulse pessoas a um estado de vulnerabilidade que as torna próximas de situações que poderiam fazer com que se tornassem vítimas, como do Tráfico de Seres Humanos. A complexidade deste crime que vislumbra na vulnerabilidade de suas vítimas a oportunidade para seduzi-las com possibilidades, configurase como um dos crimes mais rentáveis e irrastreáveis do mundo. Referida vulnerabilidade dos indivíduos pode ser relativa à condição social e/ou financeira, a um sonho de viajar, ter uma vida melhor, sobreviver, fugir de um problema familiar, ou, simplesmente, em um momento de distração, sofrer um sequestro. Muitas situações podem resultar na prática do crime de tráfico, não apenas a socioeconômica, podendo o crime ocorrer em qualquer localidade do globo. A mencionada complexidade encontra-se envolta da grande dificuldade em obter dados concretos e confiáveis quanto a sua existência e a sua influência no mundo, visando uma melhor forma de combatê-lo e preveni-lo, o Protocolo de Palermo busca imputar aos Estados a necessidade do câmbio de informações. 16. CAVALCANTI, L; OLIVEIRA, T; MACÊDO, M; PEREDA, L. – Resumo Executivo. Imigração e Refúgio no Brasil. A inserção do imigrante, solicitante de refúgio e refugiado no mercado de trabalho formal. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública / Conselho Nacional de Imigração e Coordenação Geral de Imigração Laboral. Brasília, DF: OBMigra 2019. 17. IPEA. Texto para discussão - Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. Brasília, outubro de 2016. Disponível em: http:// www.ipea.gov.br Por ser um crime denominado “invisível” e não ser tão explícito quanto qualquer outro, qualquer indivíduo pode estar sujeito a esta determinada situação, e uma nação, tenha ela smart cities ou não, deve ter uma infraestrutura para intentar combater e lidar com pessoas vulneráveis. A dialética quanto a utilização de tecnologia para a segurança e desenvolvimento pode compreender na exclusão de minorias já excluídas atualmente da sociedade por qualquer fator, seja social, racial ou de gênero, ao não ser utilizada com o ensejo de melhorias sociais. Em razão da extensão territorial de muitos países, os governos podem não ter acesso à diversas minorias, assim como elas podem não ter acesso à tecnologia necessária para se viver na cidade ou planeta do futuro. Segundo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo 22, diz que toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país. A sociedade em si corresponde, em determinados casos, ao que o seu governo emprega para melhorias para sua população, e um país que não consiga fornecer o suporte necessário a resgatar os seus indivíduos marginalizados empregaria erroneamente a utilização de dados, violando os seus direitos mais fundamentais, como o direito à liberdade e privacidade. A ausência de regulamentação jurídica e de debates de especialistas e governo gera insegurança jurídica ao não se vislumbrar a urgência e imprescindibilidade de conferir segurança aos seus cidadãos de como desenvolver uma cidade do futuro. Países como o Brasil elaboraram recentemente leis de proteção de dados, em que pese a utilização de dados remontar o século passado, de forma a demonstrar internacionalmente o intento em ser do futuro. Contudo, a não especificidade de normas e princípios torna o futuro extremamente mais nebuloso do que integrante de um desenho futurístico em que todas as soluções podem ser encontradas com um simples toque em um celular ou computador. 4 AVANÇOS TECNOLÓGICOS NO EMBATE AO TRÁFICO DE SERES HUMANOS Além das questões sociais negativas ligadas ao desenvolvimento das Smart Cities, como a segregação de vulneráveis e a diminuição da privacidade dos cidadãos, ainda existem outros pontos de dificuldade a serem analisados quanto à implementação destas tecnologias, como a dificuldade de lidar com todos os dados gerados pelos mais diversos dispositivos utilizados ao redor das cidades, excluindo aqueles irrelevantes, e estruturando e combinando os relevantes de forma inteligente. Para o efetivo uso desses dados, entende-se que seria de extrema importância a união do Estado com entes particulares que também detém dispositivos de controle em seus estabelecimentos, como shoppings centers e supermercados, que poderiam colaborar com o fornecimento de suas imagens, e o desenvolvimento de um sistema mais sofisticado capaz de cruzar tais dados e lê-los de forma rápida e eficaz para o auxílio na segurança pública.18 Na busca deste equilíbrio e do alcance de um sistema inteligente eficaz, já é possível vislumbrar novas ferramentas que podem auxiliar na construção de uma cidade mais inteligente, como é o caso da chamada “Internet das Coisas”, do Big Data, e da inteligência artificial.19 Michael Batty20 afirma que Big Data é “qualquer dado que não caiba em uma planilha do Excel”21, desta forma conseguimos compreender a dimensão destes dados uma vez que uma planilha do Excel é um instrumento com milhares de campos para dados, na prática teríamos o Big Data através dos milhares de dados coletados a todo instante através dos diversos meios tecnológicos espalhados pela cidade. Já a Internet das Coisas nos remete à “um futuro muito próximo onde os objetos do dia a dia estarão equipados com microcontroladores e transmissores permitindo que haja comunicação entre eles, entre os usuários, e tornando-se parte integral da Internet”22, tal conceito quando empregado na dinâmica da segurança pública poderia integrar diversos dispositivos utilizados para a coleta de dados, como câmeras dos mais diversos estabelecimentos e rotas, radares e até gps, para o cruzamento e união de diferentes dados.23 18. HAMADA, Hélio Hiroshi; NASSIF, Lilian Noronha. Perspectivas da Segurança Pública no Contexto de Smart Cities: desafios e oportunidades para as organizações policiais. Perspectivas em Políticas Públicas. Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p.155-179, jul/dez 2018. Disponível em: <http://revista.uemg.br/index.php/revistappp/article/viewFile/3467/1994>. Acesso em: 13 nov. 2019. p. 199-200 19. Ibid. p. 199-200. 20. BATTY, Michael. Big data, smart cities and city planning. Dialogues In Human Geography, [s.l.], v. 3, n. 3, ,p.274-279, nov. 2013. Disponível em: <https://journals.sagepub.com/doi/ pdf/10.1177/2043820613513390>. Acesso em: 13 nov. 2019. p. 274. 21. No original: “any data that cannot fit into na Excel spreadsheet”. 22. HAMADA, Hélio Hiroshi; NASSIF, Lilian Noronha., op. cit., p. 199-200. 23. HAMADA, Hélio Hiroshi; NASSIF, Lilian Noronha. Perspectivas da Segurança Pública no Contexto de Smart Cities: desafios e oportunidades para as organizações policiais. Perspectivas em Políticas Públicas, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p.155-179, jul/dez 2018. Disponível em: <http://revista. Para que todas essas ferramentas funcionem de forma efetiva, é preciso que haja um direcionamento especifico para cada tipo crime dentre eles o foco desta pesquisa, o Tráfico de Seres Humanos -, de forma a simplificar a formação de filtros específicos para cada um dos crimes, facilitando assim a criação de projetos e operações para sua identificação24. Com relação à criação de projetos que tenham esforços para o combate do Tráfico de Seres Humanos, Akhgar Babak25 referencia o ePoolice Project, projeto financiado pela Comissão Europeia que envolve um consórcio de agências policiais europeias e que busca desenvolver processos aprimorados para verificação ambiental visando identificar futuros padrões de crimes. Tal mecanismo funciona por meio de um radar inteligente de varredura ambiental, que identificará sinais de atuação de crime organizado, incluindo o tráfico de seres humanos, o cultivo de maconha e cibercrimes. Além das ações diretas de combate ao Tráfico de Seres Humanos proporcionadas aos agentes públicos pela tecnologia, há também a possibilidade de outros projetos para a conscientização da população quanto aos diversos fatores do crime, como o Traffuture, aplicativo desenvolvido pela GalaxyWare, que busca conscientizar seus usuários sobre o crime, agindo como um aliciador, fazendo perguntas disfarçadas com o viés de entrevista, que no final dirão se o entrevistado seria facilmente aliciado ou não, e, após o resultado, dando diversas informações sobre o tema.26 Desta forma, apesar dos diversos obstáculos a serem enfrentados pelos entes públicos ligados à segurança pública, fica claro o importante papel da tecnologia e das Smart Cities no combate ao crime, principalmente àqueles complexos e de grandes impactos aos direitos humanos, como é o caso do Tráfico de Seres Humanos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Um crime invisível como o Tráfico de Seres Humanos gera a indispensabilidade de uma contínua renovação de métodos de prevenção e combate para acompanhar as reinvenções diárias de recrutadores. O surgimento de smart cities acompanhando o crescimento populacional uemg.br/index.php/revistappp/article/viewFile/3467/1994>. Acesso em: 13 nov. 2019. p. 199-200 24. Ibid. p. 2001. 25. AKHGAR, Babak. Big Data and Public Security: Analytics on the world stage. Disponível em: <https://www.sas.com/en_za/insights/articles/risk-fraud/big-data-public-security_msm_ moved.html>. Acesso em: 22 nov. 2019. 26. GALAXY WARE. Traffuture. 2018. Disponível em: <https://github.com/MaiaraM/ GalaxyWare-onu>. Acesso em: 26 jun. 2019. desenfreado em conjunto com a crise migratória, torna primordial o desenvolvimento de cidades acompanhado da proteção aos direitos humanos e sociais dos indivíduos. Projetos de iniciativa pública e privada, como o Polaris Project que administra a Linha Direta Nacional de Tráfico de Seres Humanos dos Estados Unidos, buscam empreender um trabalho em conjunto para embater tal crime complexo. O Tráfico de Seres Humanos não opera com fronteiras e evolui a cada dia e sem a criação de uma rede global de segurança qualquer busca por solução se torna ineficaz. O grande intento e ensejo da criação de uma smart city além de ser uma cidade inteligente e sustentável, é superar ou buscar desenvolver soluções de forma rápida e personalizada para cada área da sociedade, desde saúde pública à segurança. A necessidade da criação de uma infraestrutura tecnológica e que busque solucionar desigualdades desenvolve um ambiente inovador para aqueles considerados como participantes da sociedade. Com o avanço tecnológico prolifera-se uma sensação de maior embate ao crime de tráfico de seres humanos, a qual vislumbra-se o desenvolvimento de ferramentas cada vez mais aprimoradas e utilização de dados privados para proteção de vítimas e para identificação de possíveis casos de forma legítima e legalizada. Entretanto, com o emprego da tecnologia como forma de solução de problemas, a não regulamentação dos seus métodos de uso transformam a sensação de segurança, com a utilização de câmeras e drones para a área de segurança, em insegurança jurídica. A imprescindibilidade de monitoramento de dados pela premissa de defesa torna-se como principal argumento para o uso indiscriminado de dados, contudo diversos países, como o Brasil27, criaram recentemente, ou ainda não elaboraram, leis de controle e proteção de dados, deixando a sociedade e os seus direitos fundamentais a liberdade e privacidade à mercê de qualquer um que possa conseguir obter dados. A tecnologia como mecanismo de recrutamento e venda no tráfico é compreendido como uma das formas mais significantes de acesso à vulneráveis28, em que pese diversas pessoas ainda não tenham telefones ou acesso à internet29, criando a necessidade da existência de mecanismos de defesa online. 27. BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). 28. THORN – Digital Defenders of Chldren. A Report on the use of Technology to Recruit, Groom and Sell Domestic Minor Sex Trafficking Victims. Jan. 2015 29. INTERNATIONAL TELECOMMUNICATION UNION. Measuring digital development: Todavia, a ausência de regulamentação direta e princípios claros e específicos de como utilizar dados, fundar smart cities, transforma em caótica a intenção de mudar o mundo pela tecnologia e deixa de compreender o tratamento isonômico que deve ser direcionado a cada pessoa. A transformação e a revolução tecnológica, por mais rápida que seja, se não bem planejada não consegue acompanhar a inconstância do tráfico de seres humanos. O tráfico de pessoas é um crime que sempre se altera, não na questão de seu conceito em si, mas na forma de aliciamento, métodos e formas, assim como as necessidades das minorias, que se ausentes de tratamentos e constantes em políticas públicas tornam-se ainda mais vulneráveis, sendo suscetíveis de serem vítimas de tal crime, e a sociedade civil em conjunto com o Estado precisam encontrar uma forma de acompanhar essas transformações. Na atual conjuntura político-social, cada vez mais próxima e aberta ao fascismo, a intolerância, não confere imunidade a ninguém, ainda que seja empregado diversos meios tecnológicos para combater. O tráfico ocorre em todo lugar, e um crime tão antigo muda de nome, se renova, se transforma, mas não é erradicado, ocorrendo ser o segundo crime mais rentável do mundo, segundo a UNODC. Enquanto não for pensada a criação de políticas públicas e desenvolvimento da sociedade em conjunto, a perpetuação das mazelas sociais não acabará e sempre se modificará. REFERÊNCIAS AKHGAR, Babak. Big Data and Public Security: Analytics on the world stage. Disponível em: <https://www.sas.com/en_za/insights/articles/risk-fraud/big-datapublic-security_msm_moved.html>. Acesso em: 22 nov. 2019. ARRUDA, Eloísa de Sousa; D’URSO, Clarice Maria de Jesus; KODAMA, Teresa Cristina Della Monica; ARMEDE, Juliana Felicidade. Cartilha de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas. São Paulo: Ordem dos Advogados do Brasil Seção São Paulo, 2013. BATTY, Michael. Big data, smart cities and city planning. Dialogues In Human Geography, [s.l.], v. 3, n. 3, p.274-279, nov. 2013. Disponível em: Facts and Figures 2019. Geneva: United Nations, 2019. <https://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/2043820613513390>. Acesso em: 13 nov. 2019 BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. 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UNITED NATIONS OFFICE AND DRUGS AND CRIMES. Global Report on Trafficking in Persons 2016. New York: United Nations, 2016. PARTE III TRÁFICO DE MULHERES E CRIANÇAS: OBJETIFICAÇÃO, CONSENTIMENTO E DESAPARECIMENTO CAPÍTULO 12 PESSOAS E PREÇOS: AS DISTORÇÕES NARRATIVAS QUE MERCANTILIZAM OS SERES HUMANOS NO CONTEXTO DO TRÁFICO INTERNACIONAL MARIA EDUARDA SOARES DE ALVARENGA Aluna do curso de Graduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e membro do Grupo de Pesquisa “Pessoas Invisíveis”. INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo, por meio da revisão da bibliografia indicada e da análise jurisprudencial, investigar os processos e as violações que acarretam na mercantilização das vítimas do tráfico internacional de pessoas. A partir da submissão de casos ao Judiciário, vê-se como a complexa estrutura desse tipo penal é sintomática, principalmente, em relação ao patriarcado no contexto neoliberal. A metodologia da pesquisa contou com a busca de julgados no Superior Tribunal de Justiça (STJ) na forma “tráfico internacional de pessoas não drogas não entorpecentes”, da qual foram encontrados 26 (vinte e seis) acórdãos, sendo 02 (dois) destes, por se tratarem de tráfico de drogas, descartados. Após a leitura dos 24 (vinte e quatro) acórdãos, foi realizada uma análise aprofundada de 06 (seis) das decisões colegiadas, dentre as quais duas foram usadas para limitar o objeto de estudo, bem como para exemplificar a base teórica estudada por meio de transcrições. Importante contextualizar que o tráfico de pessoas, especificamente de mulheres, é um dos maiores exemplos de mercantilização do ser humano, associado, majoritariamente, com as lógicas capitalistas e patriarcais. O lucro gerado desse mercado perpassa tanto os aliciadores quanto os locais de destinos dessas mulheres, financiando as máfias locais. No artigo 3º do Protocolo de Palermo1, define-se o tráfico de pessoas como o “(...) recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre outra pessoa, para o propósito de exploração (...)” A complexa tipificação da conduta nos norteia ao se olhar para a história humana e perceber como o tráfico de pessoas esteve presente em diversos momentos. Seja na comercialização de pessoas na Idade Média ou com a colonização do continente americano, vislumbra-se como a objetificação das pessoas foi usada em prol de dominação de territórios, por meio de violência e tortura, a fim de garantir lucro rápido ao menor custo possível. Além disso, a definição estabelecida pelo Protocolo de Palermo sinaliza características próprias do tráfico de pessoas, o que é necessário, principalmente, para distingui-lo da migração ilegal, a qual é constituída pela entrada em território estrangeiro sem anuência do Estado, não havendo exploração do indivíduo após seu ingresso. A transformação de pessoas em mercadorias impacta a produção cultural na sociedade e, pelo fetichismo desse mercado, observa-se os preceitos sociais e históricos produzidos pelo capitalismo. Desse modo, faz-se necessário entender como tal fluxo de exploração de pessoas e de capital, no contexto da globalização, é reflexo da mercantilização das relações sociais. O método de pesquisa utilizado para o alcance das principais conclusões será o qualitativo, pelo qual se tentará compreender o comportamento dos sujeitos envolvidos nas redes do tráfico internacional de pessoas, bem como sua recepção pelo Poder Judiciário brasileiro, à luz das dinâmicas neoliberais. 1. REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Decreto no 5.017. Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, Brasília, p. aa – a, 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ _Ato2004-2006/2004/Decreto/ D5017.htm. Acesso em: 04/12/2019. 1 DESTERRITORIALIZAÇÃO E O “CIDADÃO DO MUNDO” UMA CONSTRUÇÃO HISTÓRICA O desenvolvimento de sistemas de transporte e a articulação de tecnologias comunicacionais, dentre tantos outros, são exemplos de estruturas com potencialidade de alterar núcleos econômicos, sociais, culturais e políticos a nível mundial, rompendo fronteiras e traduzindo as lógicas de troca. Nesse cenário, a livre circulação de bens, serviços e pessoas se desvincula, cada vez mais, da administração estatal e, ao falarmos do tráfico internacional de pessoas, resulta-se numa política de mercantilização do cotidiano por meio do consumo, visto que os investimentos implementados em determinados centros de poder do “Norte Global”, potencializaram a assimetria de oportunidades e exploraram, ainda mais, as vulnerabilidades dos países constantemente colonizados. O conceito de cidadão do mundo expõe o teor das relações sociais do mundo globalizado, como também oculta a precarização das relações de trabalho e a baixa qualidade de vida, perpetuando formas de exploração que influenciam e potencializam violações nas relações de classe, raça e gênero. A partir da década de 1990, a migração feminina de países do Sul para o Norte global cresceu e fundamentou-se na maior colaboração para o aumento da mão-de-obra no setor de serviços, em especial no trabalho reprodutivo e doméstico. Além disso, a rearticulação do mercado internacional ampliou o mercado de bebês via sistema de adoções institucionalizado o tráfico de crianças - como também pelas “fazendas de bebês”, voltadas especificamente para exportação e que empregam mulher do “Terceiro Mundo”, imigrantes ou não, como mães de aluguel2. Cita-se ainda, como mais um exemplo, o tráfico de “noivas por correspondência”, dinâmica global, mas originária nos Estados Unidos a partir da década de 1980, em que homens se casam com mulheres - jovens e provenientes de regiões pobres da América do Sul ou Sudeste Asiático escolhidas em catálogos3. Há, nesse contexto, a exploração da situação de miséria dessas mulheres, como também a reprodução de estruturas sexistas, racistas e coloniais de homens no Norte global à procura de uma esposa controlável por sua dependência em permanecerem nos países para onde emigraram4. 2. 3. 4. FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019, p 153-157. Idem. Idem. A globalização, assim, passou a criar as “(...) condições para um processo de civilização em que todo o planeta está participando e mudando as regras sob as quais o discurso colonial impôs a ideia hegemônica de uma civilização universal, criando ao mesmo tempo a ideia de regiões subalternas e as condições para discriminação de línguas e culturas do saber. “5 Dessa maneira, a nova divisão internacional do trabalho (NDIT) surge no contexto de reestruturação internacional da produção de commodities na década de 1970, e do qual se vincula a formação de zonas de livre comércio, ou seja, áreas isentas de qualquer regulação trabalhista e que produzem para a exportação. As mulheres empregadas em tais áreas ficavam submetidas a longas horas de trabalho em más condições de segurança, inclusive contendo revistas corporais diárias para evitar furtos e sendo obrigadas a tomar pílulas anticoncepcionais para garantir que não ficassem grávidas.6 FEDERICI7 expõe que o projeto político que potencializa a exploração das mulheres é estruturado pelas dinâmicas da nova divisão internacional do trabalho, a qual produz novas formas de trabalho forçado existentes desde os impérios coloniais. Assim, legitimar tais a banalização dessas práticas está intimamente ligado com a sociedade classista, e, consequentemente, racista, em que vivemos, pois as mulheres pobres são facilmente identificadas como perdidas, vulneráveis e instrumentalizáveis, em comparação com as “sinhazinhas” para as quais trabalham, como indica o julgado Recurso em HC nº 87.894 – RN:8 Não há dúvidas a respeito da situação de vulnerabilidade das mulheres arregimentadas. Tinham todas um grau de instrução baixo e se encontravam em situação de pobreza no Brasil. A vontade de cada uma era mitigada pela necessidade e por causa dessa necessidade aceitaram ter seu corpo objeto de exploração sexual. O intuito da lei e do Protocolo Internacional foi proteger aqueles que não tem como optar pela proteção (destaques acrescentados). Se em algum momento tivemos um Estado Democrático de Direito, caracterizado pela existência de limites aos poderes estatais, assegurando 5. 6. 7. 8. MIGNOLO apud VALENTE, Júlia Leite. UPPs: governo militarizado e a ideia de pacificação. Rio de Janeiro: Revan, 2016, p. 25. FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019, p. 140-141; 143-144. Idem, p. 157. STJ, Min. Rel. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Sexta Turma, julgamento em 03/10/2017. direitos e garantias fundamentais próprias do constitucionalismo após a Segunda Guerra Mundial, temos agora um Estado Pós-Democrático de Direito, no qual os limites desaparecem em favor da gestão neoliberal da vida. Aproximam-se, assim, os instrumentos de controle e o titular do poder econômico exerce, ao mesmo tempo, poder político9. Em tais circunstâncias, o mercado passa a ser o estruturador de todas as ações, sendo o responsável por preservar as liberdades econômicas e políticas, cenário em que as pessoas e o próprio ordenamento jurídico são colocados em condição de mercadoria, sendo instrumentalizados a partir de seu valor de uso e valor de troca. Portanto, é notório que todo o processo de desumanização – que é pressuposto no tráfico de pessoas – está submetido à lógica do capital10. 2 A COLONIZAÇÃO DAS VÍTIMAS O tráfico de pessoas está necessariamente vinculado com o alargamento das relações capitalistas e da subsequente corrosão de direitos humanos. As constantes rearticulações do projeto capitalista não envolvem somente o trabalho, mas também uma construção subjetiva e cultural. A demanda mercantil existente no tráfico internacional de pessoal existente é íntima ao colonialismo que, mediante o capital globalizado, é transformado em uma mercadoria desejável, a fim de extrair lucro. Dessa forma, os países do Norte e Sul global ainda representam as narrativas de dominador e dominado, aqui se referindo especificamente da mulher dominada. Nas colônias, os corpos femininos eram (e ainda são) vistos como mecanismos sexuais e as mulheres, como sujeitos reprodutivos, chamadas de “ventres do império”11. A objetificação das mulheres não brancas exige o esvaziamento e anulação da condição humana, bem como a construção narrativa de selvagens e hipersexualizadas, ensejando no uso de seus corpos em espetáculos, por exemplo, a fim de saciar a curiosidade dos homens europeus quanto ao seu exotismo. 9. CASARA, Rubens. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 21-22. 10. Idem, p. 39-40. 11. WHITLOCK apud CAVAS, C. S. T.; JARDIM, G. de S. REFLEXÕES SOBRE O PÓS COLONIALISMO E O FEMINISMO DECOLONIAL. In: ANAIS ELETRÔNICOS, 2017, Florianópolis. Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress. Florianópolis, 2017. p. 1. Disponível em: <http://www.en.wwc2017.eventos.dype. com.br/resources/anais/1495923430_ARQUIVO_ Pos-ColonialismoeFeminismoDecolonial [TrabalhoCompletoFazendoGenero2017].pdf>. Acesso em: 28/11/2019. Nesse sentido, GONÇALVES12 expõe que a cultura machista, servil e patriarcal é imposta às mulheres traficadas, visto que estas são submetidas a condições degradantes e sub-humanas, enquadradas numa lógica violenta para com as expressões de gênero e de sexualidade. Ademais das violações de direitos, as vítimas possuem sua possibilidade de desejar esvaziada, ao ponto que são preenchidas pela função de objeto de desejo. 2.1 A FEMINIZAÇÃO DA POBREZA Dentre os sujeitos passivos do tráfico internacional de pessoas, as mulheres estão expostas às conjunturas com maior vulnerabilidade, tendo em vista serem, em grande parte, as únicas responsáveis por seu sustento ou até mesmo pelo sustento familiar, além de cumularem as tarefas de cuidado dos filhos. Desse modo, apresentam um perfil de jovens com baixa escolaridade, pertencentes a extratos sociais desfavorecidos economicamente e exercerem atividades de trabalho informal, o qual é extremamente precarizado e onde ocupam posições subalternas. A mulher, antes mesmo de ser vítima do tráfico de pessoas, é vítima da violência institucional plurifacetada do sistema, que expressa na violência das relações sociais capitalistas e das relações sociais patriarcais. Além disso, as mulheres latino-americanas, em especial, as mulheres negras e nãobrancas são ainda mais exploradas, em decorrência da histórica violência dos processos de colonização, não usufruindo de espaços públicos de forma reconhecida e legitimada, como também tendo sua participação política anulada e sendo desconsideradas como sujeitas de direitos1314. Assim, resulta-se um contexto de feminização da pobreza e da sobrevivência, tendo em vista que tais circunstâncias geram trabalhadoras flexíveis, com capacidade de adaptação a distintos horários e tarefas, que são substituíveis por outras que aceitarem a mesmas condições de superexploração. Dessa forma, o tráfico de pessoas – muitas vezes intermediado pelo tráfico de drogas – é sintoma da saída forçada para a sobrevivências de mulheres.15 12. GONÇALVES, Tamara A. Tráfico de Meninas e Mulheres para fins de exploração sexual: uma problemática que extrapola divisas nacionais. In: BRASIL. Secretaria Nacional de Justiça. Tráfico de pessoas: uma abordagem para os direitos humanos. Brasília: Ministério da Justiça, 2013, p. 254. 13. Cf. ANDRADE, Vera Regina P. de. Pelas mãos da criminologia: O controle penal para além da (des)ilusão. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil: Revan, 2012. 414 p. 14. Cf. SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. 1 ed. Brasil: Expressão Popular, 2015. 158 p. 15. CHERNICHARO, Luciana Peluzio. Uma análise sobre a participação feminina no crime de tráfico de drogas e o processo de feminização da pobreza. Comunicações do ISER, Rio de Janeiro, 2.2 O ABUSO DAS SITUAÇÕES DE VULNERABILIDADE Mesmo que parte das vítimas aceite o transporte, ao se executarem (ou, ao menos, tentarem) dinâmicas de exploração dessas pessoas, é irrelevante discutir sobre a concessão de consentimento, pois se entende que a manifestação de vontade da vítima está viciada e induzida a erro, gerando a ela direitos à proteção16. O abuso dos aliciadores quanto a situação de vulnerabilidade das vítimas é um ponto central de discussão, visto que é necessário averiguar o domínio destas acerca da situação, o que possui menor facilidade probatória nos processos judiciais do que nos casos em que há explícita coação e engano por parte dos autores. Nesse sentido, o Escritório das Nações Unidas (UNODC):1718 O abuso de uma situação de vulnerabilidade não existe por estar relacionado mais com determinada finalidade de exploração do que outra. Localizar o elemento de abuso de uma situação de vulnerabilidade depende unicamente das prerrogativas concedidas que demonstrem a existência de uma situação de vulnerabilidade da vítima e um abuso dessa situação por parte traficante, o qual ter por intenção explorar a vítima (destaques acrescentados). O UNODC sinaliza como o uso distorcido do conceito de abuso de situação de vulnerabilidade pode comprometer que as vítimas sejam reconhecidas como tais. Assim, para identificar tal situação, estipula-se a análise da situação pessoal (por exemplo, inimputabilidade), geográfica (por exemplo, casos de migração ilegal ou de isolamento linguístico) e circunstancial (por exemplo, miséria e desemprego). Insta sinalizar que esse cenário somente se concretizará com o abuso, ou seja, quando a vítima acredita inexistir uma alternativa real ou aceitável diversa da apresentada pelo aliciador. Por essas condições, permite-se mais facilmente a identificação de uma potencial vítima. v. 35, n. 70, p. 168-181., anual. 2016. Disponível em: <http://201.23.85.222/biblioteca/>. Acesso em: 28 jan. 2020. 16. TERESI, Verônica Maria; HEALY, Claire (2012). Guia de referência para a rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça. 17. No original (tradução livre): El abuso de una situación de vulnerabilidad no tiene por qué estar relacionado con unos fines de explotación más que con otros. Hallar el elemento de abuso de una situación de vulnerabilidad depende únicamente de las pruebas fidedignas que demustren la existencia de una situación de vulnerabilidad de la víctima y un abuso de esa situación por el traficante con el fin de explotar a la víctima. 18. UNODC apud SOUZA, L. L. de. In: As consequências do discurso punitivo contra as mulheres “mulas” do tráfico internacional de drogas: ideias para a reformulação da política de enfrentamento às drogas no Brasil. São Paulo, 2013, p. 15. Disponível em: <http://ittc.org.br/wp-content/ uploads/2014/ 07/Mulas.pdf>. Acesso em: 24/11/2019. Um exemplo prático ocorre no tráfico de pessoas para fins sexuais, nos quais, apesar de saberem a finalidade de migrarem é a prostituição, as vítimas não sabem que terão seus passaportes confiscados, que cumprirão uma “carga horária” extensa e que, para suportá-la, serão induzidas ao uso de drogas, como o álcool e a cocaína. Em um dos julgados analisados, pelo menos uma das aliciadas afirmou em juízo que não teve ciência, antes de chegar a Itália, das condições de trabalho relativas a carga horária e remuneração. Dito isso, o julgado Recurso em HC nº 87.894 - RN19 revela que: A presença do consentimento prévio das mesmas antes da viagem não é causa suficiente para excluir a responsabilidade dos exploradores, pois ainda que tenham consciência das atividades que serão exercidas, as mulheres não têm idéia das condições em que a exercerão e, menos ainda, do valor da dívida que contraem antes de chegar ao destino (destaques acrescentados). Consentir a etapa de transporte do Estado de origem para o território estrangeiro não acarreta em consentimento a exploração sofrida posteriormente, conforme estabelece o Protocolo de Palermo, o qual considera que figurará na posição de vítima o indivíduo que não está plenamente informado sobre alguma das condutas do núcleo do tipo penal. Entretanto, as balizas interpretativas acabam por serem flexibilizadas e ficam sob poder das autoridades policiais, do Ministério Público, bem como do Poder Judiciário, os quais transitam entre reconhecer a pessoa enquanto vítima do tráfico de pessoas ou como migrante ilegal. 3 NARRATIVAS APRESENTADAS AO JUDICIÁRIO BRASILEIRO Transcreve-se no presente trabalho partes de 02 (dois) dos casos submetidos ao Judiciário brasileiro. A contextualização narrativa existente nos acórdãos emitidos pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) é norteadora do processo investigativo de mercantilização das vítimas. Dessa forma, o uso de um dos julgados, o Recurso em HC nº 87.894 - RN20 servirá como ponto inicial de arguição. A partir da leitura dos julgados se observam procedimentos desempenhados pela rede do tráfico21: (i) As ações são planejadas pelos 19. STJ, Min. Rel. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Sexta Turma, julgamento em 03/10/2017. 20. Idem. 21. ARY, T. C.; MAIA, A. C. Tráfico de seres humanos na sociedade internacional contemporânea. Globalização, políticas migratórias e esforços multilaterais de combate. REMHU – Revista Interdisciplinar da mobilidade humana, n 31, p. 495-503, 2008. SCHAUER & WHEATON apud FERNANDES, V. L. S. Tráfico de seres humanos: uma perspectiva geral sobre a exploração sexual de “organizadores”, o qual obterão os subsídios para a execução do tráfico. Inicia-se a captação da vítima em seu território de origem, seja pela coação, pelo abuso de sua situação de vulnerabilidade ou pela indução a erro por meio de artifícios enganosos acerca do modo e da finalidade da viagem; (ii) tanto o recrutamento, o transporte e a venda são realizados pelos “intermediários”. O transporte da vítima para o território estrangeiro pode ocorrer por rotas altamente mutáveis, o que demonstra o nível de logística dos aliciadores. Nesse ponto, é importante explicitar que, muitas vezes, funcionários estatais – até mesmo as autoridades desses países, como se mostrará adiante – estão associadas com tais dinâmicas, facilitando a adequação do tráfico de pessoas ao controle migratório local, sendo chamados de “auxiliares”; e (iii) o ingresso no país de destino e contínua submissão à situação exploratória, o que já pode ter ocorrido na fase de transporte. Normalmente, para garantir o cumprimento dos serviços desempenhados pelas vítimas, estas são mantidas em cárcere privado, tendo seus documentos e passaportes confiscados e sofrem com ameaças de deportação, como também de represálias para com seus familiares, o que será comandado pelos “operadores”. Vê-se, portanto, que os mecanismos do tráfico internacional de pessoas são constituídos por diversos elementos e sujeitos que, hierarquicamente postos, possuem funções distintas. Dadas as devidas proporcionalidades, o funcionamento do sistema é dependente de uma articulada teia entres os países autores e receptores, mediante as vias de transportes e a facilitação (e omissão) das autoridades competentes. No julgado, as mulheres eram recrutadas pelos réus no território nacional para trabalhar em casas noturnas italianas. As brasileiras iam à Itália para “fazer consumação”, prática esta que as próprias depoentes descrevem como “sentar”, “conversar”, “divertir”, “brincar”, “servir”, “consumir bebida” ou participar de shows de dança. Do depoimento, também se salienta que, apesar de suas funções principais fossem as “consumações” - vista como entretenimento aos clientes e incentivo ao consumo de bebida exercida pelo “figurante di sala” - essas mulheres não tinham fluência no idioma italiano, bem como não eram selecionadas por esse critério. Essas mulheres eram recrutadas apenas com base em suas aparências, o que foi comprovado nos autos por meio de interceptações telefônicas, pois a seleção era baseada em fotos, especialmente fotos das mulheres mulheres, p. 60. 2015–2016. Dissertação (Psiquiatria social e cultural - Faculdade de Medicina) — Universidade de Coimbra. Disponível em: <https://eg.uc.pt>. Acesso em: 12/12/2019. usando biquínis. Ademais, embora fossem contratadas como dançarinas, não há nenhum registro de experiência prévia das candidatas nessa função. No caso descrito, temos a prostituição explicitando para além da troca de sexo por dinheiro, mas também como uma prática que garante aos homens o acesso ao corpo feminino, via normas e regras conhecidas internacionalmente, desde a localização desses lugares e a determinação do preço pelo “serviço”. Ademais, tal rede é esquematizada desde sua origem, visto que todas as mulheres se encontravam em clara situação de vulnerabilidade no Brasil, sendo oriundas de camadas pobres da população, e embora tivessem ciência que teriam uma dívida com os aliciadores oriunda das passagens e outras despesas, a maior parte delas só soube do valor da dívida ao chegar a Itália, criando um laço de dependência. Apesar da complexa rede que sustenta o tráfico de pessoas, é necessário apontar a responsabilidade a cultura do consumo ao que tange os ideais estéticos por ela exigidos. O padrão de beleza imposto está sujeitado às necessidades de produção e consumo do capitalismo, onde a mercadoria é o corpo. Por definição, a mercadoria “[...] é um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz as necessidades humanas de qualquer espécie”22. O valor de uso da mercadoria é estabelecido por sua utilidade, e o valor de troca é determinado pela proporção de valores de uso de uma espécie em relação a outra, o que está, constantemente, sujeito a mudanças no tempo e espaço23. À medida que as relações de troca se articulam, os mercados se estabelecem e fixam preços, cristalizando a mercadoria pelo dinheiro, o que irá representá-la24. Nesse cenário, tal lógica atinge as esferas de lazer, de cuidado com o corpo, da arte e da cultura e, como consequência, a objetificação humana rege as relações sociais25. No caso do tráfico de pessoas, para além dessas dinâmicas, não se trata do consumo do corpo, mas também do simbolismo que tal corpo acarreta, sendo não um corpo real e sim um corpo ideal - visto como meio de alcance da felicidade, prestígio e bem-estar - motor de escolha das vítimas do aliciamento. 22. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 157. 23. Cf. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. Capítulo 1: a mercadoria. 24. HARVEY, D. Para entender o capital: livro 1. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 336. 25. NETTO, J. P. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006. No tráfico internacional para fins sexuais, o valor agregado à mercadoria pode sofrer variações de acordo com as demandas de consumo de determinadas localidades e/ou períodos históricos, o que é interseccionado por elementos étnicos e etários, por exemplo. Na prática, vemos o caso em que um aliciador aumentava o preço das mulheres traficadas caso a escolhida mantivesse relações sexuais com o comprador sem o uso de preservativos. Trata-se do HC nº 295.458/SP26, no qual o Réu, denunciado pelos tipos penais de favorecimento de prostituição (art. 228, CP27), tráfico internacional de pessoas (art. 231, CP28), entre outros, era, à época, casado com a filha do irmão do Presidente da Angola, país destino do tráfico. Sobre o acusado, transcreve-se: É também o principal destinatário final da exploração sexual das mulheres brasileiras traficadas, sendo certo que estas o são para satisfação de sua lascívia sexual e de alguns conterrâneos conhecidos seus, pagando B certa de US$ 10.000,00 por cada uma das mulheres traficadas para exploração sexual, além de cerca de US$ 100.000,00 pela mulher escolhida para manter relações sexuais com ele sem o uso de preservativos, valores que são repartidos entre os membros da organização criminosa e as mulheres exploradas sexualmente, na forma já exposta anteriormente (destaques acrescentados). Tal exemplificação é indício da rentabilidade do mercado de compra e venda de pessoas, tendo em vista que, enquanto as armas e as drogas representam a prestação de um único serviço, sendo bens de consumo não duráveis, a exploração sexual ocorre constantemente ao longo da prática delitiva, ocorrendo a revenda das vítimas várias vezes. Complementarmente a esses julgados, importante pontuar que o Supremo Tribunal Federal, no Inquérito n. 3412/AL (STF, Min. Rel. MARCO AURÉLIO MELLO, Plenário, julgamento em 29/03/2012), considera como “escravidão moderna” os casos em que ocorre privação de liberdade e de dignidade, tratando a pessoa como coisa, mediante coação e/ou privação de direitos básicos, exatamente como ocorre nos casos de tráfico de pessoas. Dadas às condições da “escravidão moderna”, o contínuo abuso sofrido pelas vítimas é associado a estratégias de controle estabelecidas pelos operadores, ao ponto de incutirem nestas a culpa pelas violações sofridas, 26. STJ, Min. Rel. REYNALDO SOARES DA FONSECA, Quinta Turma, julgamento em 29/08/2016. 27. Art. 228. Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitála, impedir ou dificultar que alguém a abandone. 28. Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro. Revogado pela Lei nº 13.344, de 2016. o que se vincula com os sentimentos de vergonha e baixa autoestima, bem como se soma, pelo desgaste físico e psicológico sofrido, a apatia, descrença e dissociação, diminuindo a possibilidade de escaparem. Insta ressaltar que o isolamento também sofrido pelas vítimas é sintoma do impedimento de contato exterior e da permanente vigilância de movimentos, gerando a baixa capacidade linguística e potencializando os contrastes culturais, o que impede a possibilidade de estabelecer relações com a comunidade e aumenta a dependência em relação aos traficantes, até mesmo pelo fato de desconhecerem quaisquer serviços e programas de auxílio, como também seus direitos enquanto componentes daquela localidade. Por fim, contemplar-se-iam quatros possibilidades de saída das vítimas da rede do tráfico internacional de pessoas29: (i) Sendo pouco rentáveis ao mercado por conta de rupturas emocionais resultantes das violações psicológicas sofridas; (ii) Sendo pouco rentáveis ao mercado por conta de uma gravidez avançada, quando não se consegue realizar o aborto; (iii) Sendo “auxiliadas”30 por algum cliente; (iv) Morrendo. CONSIDERAÇÕES FINAIS A globalização possui parcela de responsabilidade enquanto potencializadora das desigualdades internacionais e erosão de direitos civis, tendo em vista que tal fenômeno é distorcido e instrumentalizado à lógica do capital. Assim, permite-se a transcendência do direito interno, superando-se as fronteiras e deparando-se com a necessidade de se recorrer a cooperação e a regulamentação internacional de problemáticas que passam, então, a serem globais. As situações de pobreza, associadas, principalmente, a ausência de oportunidades dignas e discriminação de gênero, impulsionam as vítimas para a extensa malha do tráfico de pessoas, o que se beneficia do baixo risco e alto lucro. Os baixos riscos de responsabilização penal se pautam pela estruturada rede secreta e mutável de rotas, nas quais os aliciadores estão vinculados com entes do governo dos territórios, o que flexibiliza a fiscalização da atividade. Os altos lucros derivam da ampla demanda do 29. HUGHES & DENISOVA apud FERNANDES, V. L. S. Tráfico de seres humanos: uma perspectiva geral sobre a exploração sexual de mulheres, p. 69. 2015–2016. Dissertação (Psiquiatria social e cultural - Faculdade de Medicina) — Universidade de Coimbra. Disponível em: https://eg.uc. pt. Acesso em: 12/12/2019. 30. Questionam-se as intenções que norteiam esses auxílios, tendo em vista que os clientes são também parte da rede do tráfico internacional de pessoas. Os altos preços dados às pessoas enquanto mercadorias a serem vendidas e exploradas derivam da alta demanda no mercado, ou seja, são resultantes do alto número de clientes em nível global. mercado, seja para fins sexuais e laborais, tendo em vista que essa mão de obra barata e explorada é mais rentável aos consumidores, gerando maiores preços. Por meio dos julgados, os apontamentos teóricos expostos durante o artigo se mostram aplicados nas práticas desempenhadas pelas redes do tráfico internacional de pessoas. O Poder Judiciário brasileiro, em especial o STJ, órgão que expediu os acórdãos citados, enquanto estrutura de controle também imersa na lógica neoliberal, choca-se com as complexas dinâmicas de poder que cercam os sujeitos julgados. Enquanto que a estrutura investigativa constante nos julgados é limitada aos fatos e circunstâncias apresentadas aos autos, buscou-se no presente artigo, compreender que cada um desses julgamentos reflete processos globais para além de uma conduta criminosa, bem como relacionar a forma com que as regulações mercantis e coloniais ainda existem e são determinantes no modo com parcelas populacionais vulneráveis serão tratadas. REFERÊNCIAS ANDRADE, Vera Regina P. de. Pelas mãos da criminologia: O controle penal para além da (des)ilusão. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil: Revan, 2012. 414 p. ARY, T. C.; MAIA, A. C. Tráfico de seres humanos na sociedade internacional contemporânea. Globalização, políticas migratórias e esforços multilaterais de combate. 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O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013. MIGNOLO apud VALENTE, Júlia Leite. UPPs: governo militarizado e a ideia de pacificação. Rio de Janeiro: Revan, 2016. NETTO, J. P. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006. REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Decreto no 5.017. Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, Brasília, p. aa – a, 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/ Decreto/D5017.htm. Acesso em: 04/12/2019. SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. 1 ed. Brasil: Expressão Popular, 2015. 158 p. SCHAUER & WHEATON apud FERNANDES, V. L. S. Tráfico de seres humanos: uma perspectiva geral sobre a exploração sexual de mulheres, p. 60. 2015–2016. 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Disponível em: <http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/ resources/anais/1495923430_ARQUIVO_Pos-ColonialismoeFeminism oDecolonial[TrabalhoCompletoFazendoGenero2017].pdf>. Acesso em: 28/11/2019. CAPÍTULO 13 ENTRE DISSENSOS E CONSENSOS: TRÁFICO DE PESSOAS E SITUAÇÕES DE VULNERABILIDADE ALLINE PEDRA JORGE BIROL Advogada, Pós Doutora em Direito (UFSC), Doutora em Criminologia (Université de Lausanne, Suiça), Consultora de Organizações Internacionais (ICMPD, UNODC, PNUD, IOM, UNICEF). THAMARA DUARTE CUNHA MEDEIROS Advogada, Doutora em Política Criminal e Direito Penal (Granada-ES), Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. INTRODUÇÃO Tráfico de Pessoas é uma das mais antigas formas de violação de direitos humanos. Trata-se de uma realidade perversa que fragiliza e desumaniza milhares de pessoas por meio da exploração de um ser humano por outro. Registros históricos demonstram que desde a colonização das Américas até a abolição da escravatura, negros africanos eram transportados de seus países e forçados a trabalhar em vários lugares no território brasileiro. No entanto, nessa época, tanto o transporte como a exploração destes seres humanos era permitido por lei. Com a globalização e a intensificação da mobilidade humana, tem-se observado o ressurgimento do transporte de pessoas para fins de exploração, sendo codinome da expressão “tráfico de pessoas” a expressão “escravidão dos tempos modernos” e fazendo relembrar que esta é uma das formas de violação de direitos humanos que nunca deixou de existir1. 1. A expressão “escravidão dos tempos modernos” é inclusive o slogan do Freedom Project, Observa-se, no entanto, que o tráfico de pessoas está inserido no contexto de vulnerabilidade associada à violação de Direitos Humanos, em especial à violação de direitos econômicos, sociais e culturais. São múltiplos os fatores que contribuem para materializar a situação de vulnerabilidade, entre os quais destacamos: insegurança econômica e social; desigualdades e discriminação contra as mulheres e negros; desemprego, serviços de saúde e de educação precários, péssimas condições de moradia e alimentação, migrações, entre outros. Apesar da hediondez, o tráfico de pessoas é crime pouco notificado. O medo, a vergonha, o desconhecimento da condição de vítima fazem com que pessoas traficadas tenham uma dificuldade muito grande de denunciar essa forma de violência para as autoridades ou de buscar apoio em organizações de assistência às vítimas. E a ausência de conhecimento sobre os elementos ou os indicadores que compõem o tráfico de pessoas faz com que as autoridades não percebam as situações de vitimização. Este artigo tem o objetivo de trazer algumas reflexões essenciais sobre a questão do consentimento da vítima no âmbito do tráfico de pessoas, sem a pretensão de esgotar o debate sobre tema, mas com o propósito de contribuir para a reflexão de uma das mais graves formas de violação dos direitos humanos no mundo. 1 TRÁFICO DE PESSOAS NO BRASIL: MARCO LEGAL E CONCEITUAL O Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, conhecido como Protocolo de Palermo, em 15 de novembro de 20002 é a norma primária de referência internacional no combate ao Tráfico de Pessoas. Foi ratificado por boa parte dos países membros das Nações Unidas3 e aprovado no Brasil por intermédio do Decreto nº 5.017 de 2004. Nos termos do referido Protocolo de Palermo, tráfico de pessoas é: [...]o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à 2. 3. financiado pela rede de televisão internacional CNN. Outra expressão comumente utilizada é “escravidão contemporânea.” Veja Justin Guay, The Economic Foundations of Contemporary Slavery. O Protocolo de Palermo foi adotado pela Assémbleia Geral das Nações Unidas, Resolução 55/25, e entrou em vigor em 25 de dezembro de 2003. Na data de 08 de novembro de 2013, 158 países membros das Nações Unidas eram estadosparte do Protocolo. ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos. Inspirado nos termos do Protocolo de Palermo, o governo brasileiro, em 2006, por meio do Decreto nº 5.948 aprovou a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas que institui os princípios, diretrizes e ações que devem nortear a atuação do poder público no combate ao tráfico de pessoas e incorpora o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas na agenda pública a partir de três eixos estratégicos: a)Prevenção: b) Repressão ao tráfico e responsabilização de seus atores e c) a atenção às vítimas. Já nos termos da legislação penal brasileira, após a alteração legislativa promovida pela Lei no 13.444/2016, observa-se que art. 149-A do Código Penal seguiu as diretrizes do Protocolo de Palermo para fins de criminalização do tráfico de pessoas e acrescentou outros três verbos ou condutas que podem também configurar o tráfico de pessoas, quer sejam agenciar, aliciar e comprar. Art. 149- A Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III - submetê-la a qualquer tipo de servidão; IV - adoção ilegal; ou V - exploração sexual. Considera o legislador a conduta mais grave ainda, aumentando a pena, se: I - cometida por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las; II - cometida contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência; III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional. Ou seja, o tráfico de crianças e adolescentes, que antes tinham previsão no Estatuto da Criança e do Adolescente, passa a ser previsto pelo próprio Código Penal. E o tráfico internacional de pessoas também está previsto neste mesmo art. 149-A, diferente da legislação anterior que estabelecia um tipo penal para o tráfico interno, e outro para o tráfico internacional. Além disso, a lei também prevê que se o agente for primário e não integrar organização criminosa, a pena será reduzida. Isto porque o mais comum é que as condutas que acabam por configurar o tráfico de pessoas sejam praticadas por agentes que integram organizações criminosas, posto que condutas plurais. São várias ações praticadas por vários sujeitos em cooperação que permitem a concretização do crime de tráfico de pessoas. Mas há casos isolados em que o agente pratica a conduta isoladamente, por exemplo, recrutando ou aliciando esporadicamente, mas sem fazer parte de organização criminosa, daí a necessidade de prever redução de pena. Finalmente, observa-se que tanto nos termos do Protocolo de Palermo, como da Política Nacional e do Código Penal, três elementos são necessários para que a conduta seja considerada como tráfico de pessoas, ou seja, a ação, o meio e a finalidade. A lei, no entanto, não exige que a FINALIDADE da exploração aconteça efetivamente para que o delito seja consumado. Será considerado consumado desde que estejam presentes os três elementos: AÇÃO, MEIO e FINALIDADE. O meio de execução do crime pode ser a grave ameaça, a violência, a coação, a fraude ou o abuso. A coação pode ser física, moral ou psicológica. A fraude acontece quando o traficante usa de artifícios fraudulentos como contratos de trabalho falsos, promessas de emprego, casamento, para obter sua concordância. O abuso ocorre quando o agente usa do seu poder (por exemplo, numa relação hierárquica) ou da posição de vulnerabilidade da pessoa a ser traficada (dificuldade financeira ou familiar) para coagi-la a aderir a sua conduta. Em sendo a vítima criança ou adolescente, o meio é irrelevante, haja vista a incapacidade legal da criança e do adolescente de fazer suas escolhas e tomar suas decisões ou sua condição de pessoa vulnerável, em sendo menor de 18 anos. Ou seja, a criança e o adolescente são sujeitos tutelados e pela doutrina da proteção integral não podem consentir. Bastam, portanto, a AÇÃO e a FINALIDADE da exploração para que criança ou adolescente encontrado em situação de tráfico seja considerada vítima de tráfico de pessoas. Finalmente, tanto o Protocolo de Palermo como a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas não são taxativos quanto às formas de exploração. O Protocolo expressamente traz que: “a exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.” Ou seja, ambos estão abertos a outras formas de exploração. Pesquisas de campo têm, inclusive, identificado outras modalidades de tráfico de pessoas, tais como o tráfico de pessoas para fins de mendicância4. Ou tráfico de pessoas com a finalidade de obrigar a vítima a praticar crimes5. Observa-se, portanto, um significativo avanço na nova legislação penal. Desde a aprovação do Protocolo de Palermo em 2004, luta-se no Brasil para a ampliação das modalidades de exploração pois, até a aprovação da Lei n. 13.344 de 06 de outubro de 2016, que alterou o Código Penal, a única modalidade de exploração prevista era a sexual. Outros tipos penais eram utilizados subsidiariamente, tais como o art. 149 do Código Penal, no caso de trabalho escravo. Não ao menos, a tipificação penal estava incompleta, sendo assim, louvável as alterações promovidas na legislação penal brasileira para o enfrentamento ao tráfico de pessoas. 2 CONSENTIMENTO DA VÍTIMA NO CRIME DE TRÁFICO DE PESSOAS E SITUAÇÕES DE VULNERABILIDADE O consentimento da vítima no âmbito do direito penal suscita diversas opiniões cujos debates provocam reflexões sobre a disponibilidade e indisponibilidade do bem jurídico tutelado. Nesse sentido, Figueiredo Dias destaca “em todos os casos em que a lei proteja a liberdade de disposição do indivíduo, o acordo do interessado faz com que não possa nem deva falar-se de violação do bem jurídico”6. No entanto, tratando-se, 4. 5. 6. Mendicância consiste em atividades diversas através das quais uma pessoa pede a um estranho dinheiro, sob a justificativa de sua pobreza ou em benefício de instituições religiosas ou de caridade. A venda de pequenos itens como flores e doces nos sinais, limpar vidros, estacionar ou vigiar carros, auxiliar com as compras em supermercado, apresentações artísticas (circenses, tocar instrumentos musicais) nas ruas podem ser também considerados como mendicância. Destacamos, todavia, que a mendicância como forma de exploração se configura quando grupo organizado ou indivíduos transportam e coagem pessoas, principalmente crianças e adolescentes, mas não só, para que fiquem nas ruas pedindo dinheiro ou comercializando pequenos produtos, restringindo sua liberdade e retendo, todo ou em parte, o fruto desta mendicância (Secretaria Nacional de Justiça, 2013). É quando a pessoa traficada é forçada ou coagida à prática de atividades criminosas, tais como o cultivo ou o transporte de drogas de um local para outro, pequenos furtos, etc. (Secretaria Nacional de Justiça, 2013). FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal: parte geral, questões fundamentais a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, tomo I, p. 473. especificamente, da vítima do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, indaga-se em que situações é possível dispor da liberdade individual/ sexual? A análise criteriosa do dissenso/consenso da vítima é fundamental para a adequação do fato à norma penal. Neste contexto, Daniel de Resende Salgado explica7: [...]importante destacar que a potencial lesão à liberdade sexual, bem jurídico tutelado pela norma prevista no artigo 149-A, V, do Código Penal, deve sempre ser aferida levandose em consideração vícios impeditivos da possibilidade de manifestação livre e consciente da real vontade da vítima. [...]Vale dizer: se o valor tutelado pela norma é disponível e exonerador da responsabilidade penal, seu titular deve ter condições de dispor do bem jurídico por meio de uma manifestação de vontade sem vícios, totalmente livre e consciente. A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas trata da irrelevância do o consentimento da vítima no artigo 2°, parágrafo 7°. O Protocolo de Palermo, em seu artigo 3º, alínea “b” determina que o consentimento dado pela vítima é irrelevante desde que o meio utilizado seja a ameaça ou o uso da força ou outras formas de coação, o rapto, a fraude, o engano, o abuso de autoridade ou da situação de vulnerabilidade ou a entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obtê-lo. A lei n° 13.344/2016, por sua vez, não faz menção ao consentimento da vítima, se relevante ou não. A conduta típica prevista no art. 149- A inclui o elemento meio - violência, grave ameaça, fraude, coação e abuso – como circunstâncias elementares do núcleo do tipo penal, assim, se o consentimento da vítima de tráfico de pessoas for considerado válido, excluirá a tipicidade. Com efeito, a compreensão da relevância ou validade do “consentimento da vítima” não é tarefa fácil. Gregori destaca que “partindo-se do pressuposto de que a estrutura da sociedade de direitos em que vivemos é constituída a partir da relação entre sujeitos muito desiguais [...], o consentimento é certamente muito mais complexo e difícil de ser determinado”8. 7. 8. SALGADO, Resende Daniel. Tráfico de seres humanos para fim de exploração sexual – o abuso e a manifestação da vontade em um contexto de vulnerabilidade. Revista do Tribunal Regional Federal da 3 Região São Paulo, edição especial, pp.220-221, julho/2019. Disponível em: https://www. trf3.jus.br/documentos/revs/DIVERSOS/REVISTA-ESPECIAL-2019_com_LINKS.pdf Acesso em: 27 janeiro de 2020. GREGORI, Maria Filomena. Prazer e Perigo: notas sobre feminismo, sex- shops e s/m. Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras. In: PISCITELLI, A. et al. (Ed.). Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras. Rio de Janeiro, Garamond, 2004, p. 53. Uma situação de tráfico de pessoas pode começar com uma simples promessa de maiores ganhos em país estrangeiro, a profissionais do sexo, que imersas em dificuldades financeiras no Brasil, consentem ou concordam com a proposta feita pelos recrutadores e se deslocam voluntariamente a outro determinado país conhecedoras da condição de trabalharem como profissionais do sexo. No entanto, são submetidas a condições de trabalho extremas e endividamento pelas despesas de viagem no país de destino, que são elementos essenciais da escravidão dos tempos modernos, ou do tráfico de pessoas. Em tais situações é necessário avaliar “se a manifestação de vontade para ingresso na prostituição foi racional e verdadeiramente livre ou se simplesmente o indivíduo realizou uma opção de sobrevivência9. Neste sentido, importante considerar, conforme explica Louise Borer que10: [...]ao inserir no tipo penal o vício de consentimento decorrente de abuso, de forma genérica, a lei nos remete inexoravelmente à necessidade de identificação da situação de vulnerabilidade do indivíduo aliciado, recrutado, agenciado, transportado, transferido, comprado, alojado ou acolhido, ou seja, da potencial vítima de tráfico de pessoas, e não apenas a identificar se a tal pessoa seria, formal e legalmente, capaz de consentir com seu recrutamento para as atividades proscritas pela norma penal Deve-se, portanto, investigar a situação econômica/psicológica/ social/familiar das vítimas do tráfico para averiguar se há uma real situação de vulnerabilidade, especialmente no sentido de identificar, “se tais vítimas já foram vitimizadas pela ausência de oportunidades, pelas esperanças desfeitas e sonhos nunca realizados e se tais fatores foram explorados pelos traficantes para revitimizá-las”11. Neste sentido, importa ainda considerar que são múltiplos os níveis de consentimento da vítima assim como há vários níveis de vitimização12 que correspondem a diferentes níveis de conhecimento e informação que são dados à vítima e que estão relacionados ao seu consentimento – válido e informado ou não. 9. SALGADO, Resende Daniel. Op. Cit., p.223 10. BORER, Filgueiras Leite Vilela, Louise. O consentimento da vítima no tipo penal do tráfico de pessoas. Revista do Tribunal Regional Federal da 3 Região São Paulo, edição especial, pp.220221, julho/2019. Disponível em: https://www.trf3.jus.br/documentos/revs/DIVERSOS/ REVISTA-ESPECIAL-2019_com_LINKS.pdf Acesso em: 27 janeiro de 2020 11. Ibidem. 12. ARONOWITZ, Alexis A. Smuggling and Trafficking in Human Beings: The phenomenon, the markets that drive it and the organisations that promote it. European Journal on Criminal Policy and Research, v. 9, p. 163195, 2001. O primeiro nível corresponde à total coerção em que as vítimas são raptadas; o consentimento neste nível é nulo. O segundo nível diz respeito às vítimas que foram enganadas com promessas de emprego. Neste caso, o consentimento da vítima foi dado com base numa fraude. O terceiro nível refere-se a um nível de engano menor, em que as vítimas sabem, por exemplo, que vão trabalhar na indústria do sexo, mas não na prostituição. Por fim, o quarto nível de vitimização diz respeito às vítimas que, antes da sua partida, sabiam que iriam trabalhar como profissionais do sexo, mas que desconheciam até que ponto seriam controladas, intimidadas, endividadas, exploradas13. O risco é, portanto, o de se obter uma definição de tráfico que estabeleça hierarquias morais informadas por valores morais, que acabem por se traduzir em barreiras legais e/ou práticas na defesa dos direitos humanos das vítimas de tráfico de pessoas14. Daí a inteligência da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas quando exclui qualquer forma de consentimento (obtido sob ameaça, violência, fraude, etc., ou não) ao se identificar uma situação de tráfico de pessoas. Isto porque consentimento obtido por meio de grave ameaça, violência, coação (física, moral ou psicológica), fraude ou abuso da posição de vulnerabilidade é viciado, e não pode ser considerado como consentimento informado ou válido. Mas o que significa vulnerabilidade15? Vulnerabilidade é situação individual ou de um grupo, preexistente ou criada, que significa fragilidade e por isso potencializa a possibilidade da pessoa de se encontrar em situações de risco ou de exploração. A vulnerabilidade pode ser pessoal, situacional ou circunstancial. Vulnerabilidade pessoal é aquela relacionada às características individuais de determinada pessoa, podendo ser, por exemplo, o próprio sexo, a identidade de gênero, a orientação sexual, a idade, a etnia, ou uma deficiência mental ou física, dentre outros. A vulnerabilidade situacional é adquirida, está relacionada às pessoas e ao momento pelo qual estejam passando. Pode exemplo, pode estar relacionada ao fato da pessoa estar indocumentada em país estrangeiro, estar socialmente ou linguisticamente isolada. E a vulnerabilidade circunstancial diz respeito a uma particularidade, 13. Ibidem. 14. ANDERSON, Bridget; DAVIDSON, Julia O’Connell. Trafficking – A Demand Led Problem. Suécia: Save The Children, 2002. Disponível em: http://lastradainternational.org/doccenter/1011/trafficking-–-a demand-led-problem-a-multi-country-pilot-study, Acesso em 26 de Janeiro de 2020 15. Conferir Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade. Disponível em: https://www.anadep.org.br/wtksite/100-Regras-de-Brasilia-versao-reduzida.pdf por exemplo, a situação econômica, o desemprego, a pobreza, a dependência de substâncias entorpecentes ou do álcool16. Importa ainda destacar, conforme destaca Daniel Resende Salgado 17 que : Essas situações de vulnerabilidade não se confundem com a definição de vulneráveis, como o são os menores, os doentes mentais ou enfermos, pessoas que se encontram em estados que as impossibilitam de oferecer resistência, em face da ausência de capacidade plena de compreensão. Estes, quando vitimados, viabilizam o reconhecimento da causa de aumento da pena prevista no artigo 149-A, § 1o, II, do Código Penal. O conteúdo da vulnerabilidade que impede a vítima de manifestar sua liberdade de forma idônea, não viciada, a permitir a incidência do tipo básico do artigo 149-A, V, do Código Penal, está, ao contrário, estreitamente imbricado à inexistência de uma isonomia material entre o traficante e a pessoa traficada, ocasionando a maior facilidade de cooptação em face da situação de precariedade e fragilidade suportada pela indigitada vítima. Em outras palavras, a situação de vulnerabilidade é identificada pela fragilidade dos vínculos sociais, laborais, familiares e/ou psicológicos. São, na realidade, situações que conjugam precariedade e instabilidade no mercado de trabalho, fragilidade dos suportes e das relações sociais, irregularidade de acesso aos serviços públicos ou outras formas de prote- ção social, podendo ser dilatadas ou reduzidas a depender de crises econômicas ou elevação do desemprego, por exemplo. [...] O “consentimento”, em tais situações, é induzido e, em decorrência disso, o hermeneuta precisa empregar uma maior intensidade valorativa na análise da manifestação de vontade. E arremata: [...]É de se destacar que a percepção da pessoa recrutada a respeito de sua própria vulnerabilidade é de somenos importância. O relevante é ter o agente criminoso a percepção de que ele se encontra em uma condição materialmente superior à da vítima em situação de vulnerabilidade. De fato, registros históricos evidenciam que o abuso de situações de vulnerabilidade propiciou relações de servidão e escravidão ao longo da história da humanidade, portanto, é necessário que a elementar normativa – abuso - prevista no art 149-A do Código Penal seja analisada de forma 16. UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME (UNODC, 2012b), Issue Paper on Abuse of a Position of Vulnerability and Other Means within the Definition of Trafficking in Persons. 2012. Disponível em: <http://www.unodc.org>. Acesso em: 20 de janeiro de 2020. 17. SALGADO, Resende Daniel. Op. Cit., pp.221-222 criteriosa a fim de evitar interpretações vagas e imprecisas que mitiguem a proteção dos direitos humanos nos casos de tráfico de pessoas. CONSIDERAÇÕES FINAIS O crime de tráfico de pessoas é uma das mais cruéis violações de direitos humanos. Representa o que há de mais perverso na conduta humana posto que consiste na exploração do homem pelo homem e na coisificação do ser humano. É ainda crime cuja dimensão e alcance não estão claros. Isto não somente no Brasil, mas em outros tantos países do mundo que ainda não adaptaram suas legislações ao Protocolo de Palermo, ou que, ainda que tenham adaptado, enfrentam dificuldades para sua compreensão, entendimento, e consequentemente para a identificação, proteção e assistência às vítimas. O tráfico de pessoas se alimenta de sonhos legítimos. O fato é que o desejo por melhores condições de vida e trabalho, por conhecer outra cultura, outro país e inclusive, o de viver relações afetivas com estrangeiros, motiva pessoas que, em regra, encontram-se em situação de vulnerabilidade, a optar por sair de seus territórios para outras cidades e países em busca de oportunidades e, com frequência, as incertezas e os riscos reais desse projeto migratório desaparecem diante do sonho. É nessa ambiência que aliciadores/traficantes escolhem suas vítimas. Neste sentido, tem-se que relevância do consentimento da vítima está na contramão da proteção dos direitos humanos eis que as situações de vulnerabilidade que motivam a maior parte das vítimas de tráfico de pessoas para situações de exploração, ainda que voluntariamente, são ignoradas. Por essa razão, em que pese a liberdade ser um dos mais nobres direitos fundamentais, a manifestação de vontade num contexto de vulnerabilidade deve ser criteriosamente analisada, não pode ser negligenciada pelo intérprete e aplicador da norma penal, pois o seu reconhecimento é essencial para a identificação do crime de tráfico de pessoas. REFERÊNCIAS AEBI, Marcelo., et al. European Sourcebook of Crime and Criminal Justice Statistics. 4. Ed. A Haia: Ministry of Justice, Research and Documentation Centre (WODC). (Onderzoek en beleidseries, n. 241, 2010. ANDERSON, Bridget; DAVIDSON, Julia O’Connell (2002). Trafficking – A Demand Led Problem. Suécia: Save The Children. Disponível em: http:// lastradainternational.org/doc-center/1011/trafficking-–-a-demand-ledproblem-a-multi-country-pilot-study Acesso em 27 e janeiro de 2020. ANTI-SLAVERY INTERNATIONAL (2002). Human Traffic, Human Rights: Redefining Victim Protection. (research report). 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Disponível em: <http://www.unodc.org>. Acesso em: 26 de janeiro de 2020. CAPÍTULO 14 CRIANÇAS-SOLDADO, DA GUERRA À FAVELA: UM TEMA DE TRÁFICO DE PESSOAS RAYANE CARDOSO DOS SANTOS ROCHA Advogada graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo/SP. Atua em Direito Criminal. Membro do Grupo de pesquisa “Pessoas Invisíveis: Prevenção e Combate ao Tráfico Interno e Internacional de Seres Humanos” e pesquisadora livre. INTRODUÇÃO Em diversos países e territórios, crianças, as quais deveriam figurar entre os primeiros a receber proteção e auxílio, são recrutadas para atuarem em meio à guerra como soldados, com o escopo de servirem aos seus líderes de forma leal e pronta ou atender às organizações criminosas ligadas ao narcotráfico. A sua inocência e a sua facilidade de manipulação em comparação a de um adulto, são utilizadas como benesses pelos seus captadores em seu treinamento belicoso. Nesse contexto, será utilizado o termo criança-soldado como referência a qualquer criança, independentemente do gênero ou origem, recrutada e utilizada em conflitos armados ou pelo crime organizado. A definição de criança é volátil a depender do contexto geográfico, social e cultural que se analisa. Entretanto, o Protocolo Facultativo sobre o envolvimento de crianças em conflitos armados da Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificado até o momento por 170 países, proíbe o recrutamento por grupos armados distintos das forças armadas, em qualquer circunstância, de menores de 18 anos para participarem de hostilidades. Com base nessa normativa, considerando que o recrutamento analisado na presente pesquisa se refere a grupos armados distintos das forças armadas, utiliza-se a palavra criança para se referir a todos os menores de 18 anos, sendo ainda o termo criança-soldado empregado para todos esses recrutados e utilizados por grupos armados em hostilidades. Nesse prisma, analisa-se o recrutamento mirim no continente africano, bem como a popularização do termo a partir da guerra civil em Serra Leoa. Em um segundo momento, analisa-se o recrutamento de jovens para o tráfico nas favelas do Brasil, bem como as semelhanças do infame método empregado por organizações criminosas brasileiras em comparação aos grupos rebeldes africanos. Ademais, a utilização de crianças como soldados em hostilidades é tratada como um problema humanitário relacionado ao tráfico de pessoas e a exploração do trabalho infantil. Conforme a Convenção nº 182 Convenção sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua Eliminação da Organização Internacional do Trabalho, é considerado uma das piores formas de trabalho infantil o recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados e a utilização, recrutamento e oferta de criança para atividades ilícitas, como para a produção e tráfico de entorpecentes. Por fim, avalia-se os principais esforços ou os mais notórios, empregados por organismos governamentais e não-governamentais, nacionais e internacionais para combater o uso de crianças-soldado em conflitos armados. 1 ANÁLISE DO TERMO “CRIANÇAS-SOLDADO” E A QUESTÃO DO CONSENTIMENTO O termo criança-soldado é usualmente denominado para se referir a crianças menores de dezoito anos recrutadas, por meio da força ou “voluntariamente”, para participarem de conflitos armados. Abarca-se por tal conceito, tanto crianças utilizadas diretamente como combatentes, como as utilizadas indiretamente como cozinheiros, carregadores, mensageiros e outras funções. O recrutamento de infantes é uma nefasta prática de grupos rebeldes, como o grupo Boko Haram na Nigéria, Frente Revolucionária Unida, na Serra Leoa e as principais facções criminosas no Brasil. Paralelamente, governos financiam grupos que também utilizam crianças no conflito para combaterem os grupos insurgentes, como é o caso da milícia nigeriana de combate ao grupo Boko Haram, “Força-Tarefa Conjunta Civil” (CJTF). No Relatório de Graça Machel, um dos mais importantes documentos sobre o tema, é narrado que o recrutamento de crianças se deve ao fato de serem “mais obedientes, não questionam ordens e são mais fáceis de manipular do que os soldados adultos”1. Ainda, é narrado que o recrutamento ocorre de forma diversa, em alguns casos “voluntário” e em outros são raptadas e forçadas a se unirem ao grupo. No que se refere a análise da participação de menores em conflitos armados, com fulcro no artigo 1º da Convenção sobre os Direitos da Criança, considera-se criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes.2 Tal prática é considerada um crime de guerra, conforme preceitua o Estatuto de Roma, recrutar ou alistar menores de 15 anos nas forças armadas nacionais ou em grupos, ou os utilizar para participar ativamente nas hostilidades3. Ademais, a Organização Internacional do Trabalho considera como uma das piores formas de trabalho infantil, o recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados4. Nessa toada, o artigo 4º do Protocolo Facultativo sobre o envolvimento de crianças em conflitos armados da Convenção sobre os Direitos da Criança5, ratificado por 170 países, proíbe o recrutamento por grupos armados distintos das forças armadas, em qualquer circunstância, de menores de 18 anos em hostilidades. Ante a todos esses instrumentos normativos, conclui-se que utilizar jovens menores de 18 anos como combatentes é uma forma de trabalho infantil, sendo que caso esse indivíduo seja menor de 15 anos, será considerado um crime de guerra. Há que se pontuar, que muitos países não possuem registro adequado de nascimento, assim, a verificação da idade é com base no desenvolvimento físico. 1. 2. 3. 4. 5. Item 34 do Relatório de Graça Machel no seguimento da Resolução 48/157 da Assembleia Geral das Nações Unidas Doc. A/51/306 de 28 de agosto de 1996. Disponível em: <https:// www.unric.org/html/portuguese/peace/Graca_Machel.htm> Acesso em: 08 nov. 2019. DECRETO Nº 99.710, DE 21 DE NOVEMBRO DE 1990. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm> Acesso em: 06 de novembro de 2019. DECRETO Nº 4.388, DE 25 DE SETEMBRO DE 2002. Artigo 8º, §2º, alínea b, inciso XXVI do Estatuto de Roma. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/ d4388.htm>Acesso em 28 nov. 2019. DECRETO Nº 3.597, DE 12 DE SETEMBRO DE 2000. Artigo 3º, a, da Convenção sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua Eliminação. Acesso em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3597.htm> Acesso em: 28 nov. 2019. DECRETO Nº 5.006, DE 8 DE MARÇO DE 2004. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5006.htm> Acesso em :28 nov. 2019. Cumpre ressaltar, que apesar do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) considerar criança a pessoa menor de 12 anos e adolescente aquela entre 12 e 18 anos, utilizar-se-á o conceito latu sensu de criança, conforme previsto no artigo 1º da Convenção sobre os Direitos da Criança, ou seja, para os menores de 18 anos. Isso porque, apesar do ECA distinguir tais termos, no Brasil só se alcança a maioridade penal e civil6, a partir dos 18 anos. No Brasil, apesar não existir uma guerra civil declarada e os menores, em regra, não serem “obrigados” por membros de grupos armados a atuarem como combatentes, há inúmeras crianças servindo como soldados no narcotráfico. Assim, no que se refere às crianças utilizadas por facções criminosas no Brasil, essas imersas em um ambiente de escassez e vulnerabilidade, são cooptadas pelo tráfico de drogas. Recrutadas para o tráfico, às crianças é imputado o dever de lealdade para com os seus padrinhos do crime e para com a comunidade. Em meio a essa guerra entre as facções e o Estado, essas crianças são expostas à violência e ao crime como meio de combate. Por mais que as situações narradas sejam análogas ao recrutamento de meninos-soldados em países em guerra, a legislação brasileira não as trata como vítimas. Conforme Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, ou seja, não podem ser punidos com as penas previstas no Código Penal. Entretanto, caso os menores cometam atos infracionais, logo, pratiquem as condutas previstas como crime ou contravenção penal, estarão sujeitos a medidas protetivas ou socioeducativas. Assim, apesar de o recrutamento de crianças para atuarem em guerras e conflitos armados e para o tráfico de pessoas serem considerados como piores trabalhos infantis, no segundo, as vítimas são penalizadas com medidas consideradas protetivas ou socioeducativas. Ante a isso, depreende-se que tanto as crianças recrutadas para o combate em países em guerra, quanto às cooptadas pelo tráfico, são utilizadas como crianças-soldado por grupos beligerantes. No que se refere ao termo criança-soldado, já em sua gênese, o mesmo é paradoxal, pois inconteste é que crianças são sujeitos de direitos, sendo destinatários de absoluta prioridade e proteção integral. Sem capacidade de fato e de direito para consentirem, em conflitos armados, guerras e 6. No que se refere a maioridade civil, há casos especiais em que se cessa a menoridade antes dos 18 anos, conforme disciplina o artigo 5º do Código Civil. similares, as crianças devem receber, em todas as circunstâncias, a primazia na proteção e no auxílio7. Apesar da nomenclatura ser utilizada por organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), uma criança não pode ser considerada em nenhuma hipótese de fato como um soldado, devendo, portanto, ser tratada como uma vítima, conforme argumenta a doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, Patrícia Nabuco Martuscelli: Sendo assim, classificar crianças soldados como vítimas significa reconhecer seus direitos de compensação, necessidade de proteção e reintegração à sociedade e não culpabilidade pelas atrocidades cometidas, ou seja, o trauma e a categoria de vítimas são ferramentas usadas para demandar justiça para esse grupo8. Resta claro, portanto, a necessidade de tratar crianças raptadas, sequestradas e coagidas a atuarem em conflitos armados, seja diretamente como combatentes ou indiretamente como carregadores, olheiros, mensageiros, cozinheiros e outros, como vítimas. Por outro lado, mesmo as crianças que se “voluntariam”, se alistam para participarem de tais hostilidades, devem ser tratadas como vítimas, pois de fato as são. Essas crianças possuem o seu consentimento maculado pela sua vulnerabilidade social e econômica. Em sua grande maioria, os que “optam” por ingressar em conflitos armados, o fazem como uma saída, escape de sua condição de miserabilidade. Na reportagem do jornal El País, Peter, nome fictício para uma criança-soldado de Yambio, no Sudão do Sul, narra o motivo que o levou a se “voluntariar” a ingressar a uma milícia rebelde: Meus pais morreram e eu fiquei sozinho com 14 anos. Toda vez que voltava da escola encontrava uns meninos que conheço e eles me falavam que com os rebeldes podia ganhar dinheiro e comer. Um dia eu fui com eles. (...) Atirei em um monte de gente, mas não quero falar sobre isso. Me sinto muito mal pelas pessoas que ataquei. Naquele momento, eu não tinha consciência, só pensava: ou mato ou me matam. A maioria das crianças tinha orgulho, porque cumpríamos nossa missão. Agora tenho pesadelos quase 7. 8. Princípio VII da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS - UNICEF. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_ universal_direitos_crianca.pdf>. Acesso em: 07 nov.2019. MARTUSCELLI, Patrícia Nabuco. Onde estão as meninas soldados? Gênero e conflito armado na Colômbia. Cad. Pagu, Campinas, n. 55, e195519, 2019. Disponível em: <http:// www.scielo.br>. Acesso em: 04 nov. 2019. Epub May 30, 2019. http://dx.doi.org/10.1590/1 8094449201900550019. todos os dias com o que eu fiz9. Da mesma forma, as crianças que “voluntariamente” participam de facções criminosas no Brasil, em sua maioria, são vulneráveis social e economicamente, além de possuírem unidades familiares instáveis10. Ademais, conforme já citado, o Protocolo Facultativo sobre o envolvimento de crianças em conflitos armados da Convenção sobre os Direitos da Criança estabeleceu como 18 anos a idade mínima para o recrutamento voluntário para grupos que não as forças armadas, enquanto o alistamento voluntário para as forças armadas nacionais pode ser antes de tal idade, desde que obedeça alguns requisitos como consentimento dos pais ou tutores11. Ante a isso, apesar de não serem soldados e sim crianças vítimas de tal exploração, o termo “crianças-soldados” é conceitualmente aceito para se referir a crianças recrutadas para participarem de tais hostilidades, sendo o consentimento das mesmas irrelevante para a configuração do crime. 2 TRÁFICO DE PESSOAS, EXPLORAÇÃO DA MÃO-DE-OBRA INFANTIL E O RECRUTAMENTO DE CRIANÇAS PARA CONFLITOS ARMADOS E O CRIME ORGANIZADO Após a Guerra Fria, e com surgimento do que se conceitua como “Novas Guerras” ou guerras da pós-modernidade, verificou-se a intensificação de conflitos entre Estados e grupos rebeldes ou insurgentes. Segundo Mary Kaldor12, as novas guerras normalmente, ocorrem em áreas onde os estados autoritários foram muito enfraquecidos como consequência da abertura para o resto do mundo. Em tais contextos, a distinção entre Estado e não-Estado, público e privado, externo e interno, econômico e político, e até guerra e paz está diminuindo. Além disso, a quebra dessas distinções binárias é uma causa e uma consequência da violência. Outro ponto que se verifica nas chamadas novas guerras, é a frequente violação de direitos humanos. Apesar de não ser um fator 9. CARRETERO, Nacho. Eu sou uma criança soldado. Disponível em:< https://brasil.elpais.com/ brasil/2018/08/10/internacional/1533901618_963321.html> 10. DOWDNEY, Luke. Crianças do Tráfico: Um Estudo de caso de Crianças em Violência armada organizada no Rio de Janeiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: 7letras, 2004. p.207. 11. Artigo 3°. 3. do Protocolo Facultativo sobre o envolvimento de crianças em conflitos armados da Convenção sobre os Direitos da Criança. 12. KALDOR, Mary. In Defence of New Wars. Stability: International Journal of Security an Development. Disponível em:<https://www.stabilityjournal.org/articles/10.5334/sta.at/> Acesso em: 07 nov. 2019. novo tais violações, o que se observa é um recrudescimento de táticas nefastas, como tráfico de pessoas para fins de combate, exploração sexual, casamentos forçados, assassinato de civis, destruição de cidades e outras hostilidades. Nesse contexto, verifica-se a utilização sistemática de crianças como instrumento de guerra. Essa grave violação aos direitos humanos, é objeto de preocupação e constante monitoramento por organizações como UNICEF, Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Humans Rights Watch, Invisible Children e outros. Ressalta-se que a utilização de combatentes mirins é uma das formas de tráfico de pessoas. Conforme preceitua o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças13, conhecido como Protocolo de Palermo, considerase tráfico de pessoas, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas para fins de exploração. Nessa toada, tais ações visando exploração são condicionadas a utilização dos meios da ameaça, uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra. Contudo, há uma ressalva no texto normativo, caso a exploração seja praticada em relação a uma criança, considerada pelo protocolo como qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos, os meios descritos acima, como coação, engano e outros, são considerados irrelevantes. De posse dessa informação, é possível afirmam que caso as citadas ações, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento, sejam praticadas para fins de exploração em relação a uma criança, pessoa menor de 18 anos, tem-se um caso de tráfico de pessoas. Ademais, ainda no referido texto, conceitua-se a exploração como a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos. Nessa toada, crianças utilizadas como soldados, são vítimas de tráfico de pessoas, uma vez que são recrutadas e, muitas vezes raptadas, para fins de exploração laboral. 13. Artigo 3ª, do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Por conseguinte, a exploração do trabalho infantil para vendas de entorpecentes é considerada uma das piores formas de trabalho infantil pela Convenção nº 182 da OIT, prevendo ainda a Recomendação 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)14, ratificada pelo Decreto nº 3.597 de 2000, aplicações para eliminação dessa exploração, vejamos: Artigo 7. 2. Todo Membro deverá adotar, levando em consideração a importância para a eliminação de trabalho infantil, medidas eficazes e em prazo determinado, com o fim de: a) impedir a ocupação de crianças nas piores formas de trabalho infantil; b) prestar a assistência direta necessária e adequada para retirar as crianças das piores formas de trabalho infantil e assegurar sua reabilitação e inserção social; (...) III Aplicação. 12. Os Membros deveriam adotar dispositivos com o fim de considerar atos delituosos as piores formas de trabalho infantil que são indicadas a seguir: (...) c) a utilização, recrutamento ou oferta de criança para a realização de atividades ilícitas, em particular para a produção e tráfico de entorpecentes, tais com definidos nos tratados internacionais pertinentes, ou para a realização de atividades que impliquem o porte ou o uso ilegal de armas de fogo ou outras armas. Sem dúvidas, o tráfico de pessoas é uma prática nefasta e digna da mais incisiva reprovação, ainda mais quando a vítima desse crime é uma criança, a qual deveria ser objeto de maior proteção por parte do Estado e da sociedade civil. A Declaração dos Direitos das Crianças, ratificada pelo Decreto nº 50.517 de 1961, preceitua o direito das crianças à moradia, saúde, escola, alimentação, lazer, dentre outros. No preâmbulo de tal documento, é afirmado que a criança é imatura física e mentalmente e, por isso, precisa de proteção e cuidados especiais, inclusive a proteção legal apropriada, antes e depois do nascimento. Nessa toada, garante que “a criança deve - em todas as circunstâncias - figurar entre os primeiros a receber proteção e auxílio”15. 14. DECRETO Nº 3.597, DE 12 DE SETEMBRO DE 2000. Artigo 3º, a, da Convenção sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua Eliminação. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3597.htm> Acesso em: 28 de novembro de 2019. 15. Princípio VII da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS - UNICEF. Disponível em:<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_ universal_direitos_crianca.pdf> Entretanto, segundo relatório produzido pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), as crianças representam 30% das vítimas de tráfico de pessoas, 23% são meninas e 7% meninos, sendo desse percentual, o tráfico para trabalho forçado a causa de 21% das explorações em meninas e 50% em meninos16. Dessa forma, crianças que por sua vulnerabilidade deveriam ser mais destinatárias de proteção, representam 30% das vítimas de tráfico de pessoas, uma das formas mais cruéis de violação da dignidade humana. 3 CRIANÇAS-SOLDADO NA ÁFRICA O continente africano, além de ser o segundo maior e o mais populoso, é o que mais possui conflitos armados. Dos 54 países que compõem o continente, aproximadamente 30 enfrentam conflitos armados17. O continente africano fora colonizado pelas potências europeias durante o século XIX e XX, as quais o partilharam em países. Não obstante, após a segunda guerra mundial, observou-se um enfraquecimento dessas até então potências e o surgimento de movimentos independistas. Com o pós-guerra, criou-se a Organização das Nações Unidas com o objetivo de colaborar com o desenvolvimento dos povos, além de uma maior atenção por parte da comunidade internacional aos direitos humanos e ao direito internacional humanitário. Nesse âmbito, as antigas colônias africanas se transformaram em país autônomos, porém, tal partilha fora realizada pelas antigas nações colonizadoras, sem considerar as diversidades étnicas da região. Diante disso, surgiram vários conflitos entre grupo étnicos rivais. Um dos conflitos que norteou a forma a se tratar o tema de criançassoldado, fora a guerra civil ocorrida na República de Serra Leoa, país da África Ocidental. Serra Leoa, antiga colônia Britânica, fora um lugar de refúgio para escravos libertos por aquele país. Local rico em minas de diamantes, passou por várias instabilidades políticas após a sua independência. Nesse contexto, do ano de 1991 a 2002, a Frente Revolucionária Unida (FRU), comandada por Foday Sankoh lutou para derrubar o governo do país. O conflito ficou mundialmente conhecido em razão do uso deliberado de crianças-soldado e pelo tráfico de diamantes de sangue, nome dado para 16. UNODC. Global Report on Trafficking in Persons 2018. 17. Disponível em: <https://www.warsintheworld.com> Acesso em 08 nov. 2019. diamantes extraídos em zona de guerra e utilizados para financiar grupos rebeldes. Para tal extração, os beneficiados valeram-se do tráfico de pessoas, utilizando pessoas forçadamente para o trabalho, em condições análogas à escravidão. A extração de diamantes de sangue na África fora tema de debate mundial em razão do filme produzido por Edward Zwick, “Diamante de Sangue”. Apesar de existirem recrutamentos “voluntários” de crianças, a tática utilizada pelo grupo insurgente era o tráfico de pessoas, em especial de crianças, para atuarem como soldados. Ademais, além de soldados, o grupo capturava crianças para trabalharem nas minas citadas acima, além da finalidade sexual. Em 1999, assinou-se o Acordo de Paz Lomé, o qual previa anistia geral a todos os combatentes, com exceção de crimes considerados contra o direito internacional como genocídios, crimes contra a humanidade e outros. Para julgar as graves violações aos direitos humanos naquele conflito, fora criado o Tribunal Especial para Serra Leoa. O livro “Muito longe de casa: memórias de um menino soldado”, escrito pelo ex-menino-soldado Ishmael Beah, retrata a extrema violência a que as crianças eram expostas durante a guerra em Serra Leoa: Meu pelotão era minha família, minha arma era meu provedor e protetor, e minha lei era matar ou ser morto. Meus pensamentos não iam muito além disso. Estávamos lutando havia mais de dois anos e a matança se tornara uma atividade diária. Eu não sentia pena de ninguém. Minha infância tinha passado sem que eu soubesse, e parecia que meu coração havia congelado. Eu sabia que noite e dia iam e vinham por causa da presença da lua e do sol, mas não tinha a menor ideia se era domingo ou sexta-feira.18. Para além do conflito na Serra Leoa, há outros grupos insurgentes no continente africano que se valem de soldados mirins. Para recrutarem os menores, eles utilizam-se da prática de rapto, já citada anteriormente. Segundo Relatório do Conselho de Segurança da ONU, em 2018, cerca de 2.493 crianças foram sequestradas no continente. Os números mais altos foram verificados na Somália (1.609), República Democrática do Congo (367) e Nigéria (180). 19 18. BEAH, Ishmael. Muito longe de casa: memórias de um menino soldado. n.p. 19. CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU. Relatório Anual do Secretário-Geral sobre Crianças e Conflitos Armados de 2019, item II, a, n. 10. Em tal Relatório, os países do continente africano observados são: República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Líbia, Mali, Somália, Sudão do Sul, Sudão e Nigéria. Desses países africanos20, todos com exceção da Somália ratificaram o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo ao envolvimento de crianças em conflitos armados. Tal documento é um importante instrumento para a criminalização da conduta. Ainda no Relatório, de todos os 20 países analisados ao redor do mundo, a Somália é o país com o maior número de casos de recrutamento de crianças no ano de 2018 (2.300), seguida pela Nigéria (1.947). Nesses conflitos, as escolas e hospitais, os quais deveriam ser considerados locais seguros, são constantemente atacadas por grupos extremistas. Na Nigéria, por exemplo, o termo Boko Haram, nome do grupo terrorista mais temido do país, refere-se à organização terrorista nigeriana “Jama’atu Ahlis Sunna Lidda’awati Wal-Jihad” ou “pessoas comprometidas com a propagação dos ensinamentos do Profeta e Jihad”. Sendo traduzido como “a educação ocidental é proibida”, denotando, assim, para a rejeição da educação ou estilo de vida ocidental é proibido ou é pecado. Sob o comando do líder Abubakar Shekau, o grupo tem como uma das práticas ataques a escolas e sequestro de crianças. Sendo um dos episódios mais terríveis e conhecidos, o sequestro de 276 crianças em uma escola na cidade de Chibok. A respeito dos ataques às escolas nas regiões de conflito ao redor do mundo, fora produzido o relatório “Education Under Attack” pela Global Coalition to Protect Education from Attack21. Guerras e conflitos armados são os principais combustíveis para a utilização de crianças-soldado no continente. A República Democrática do Congo (RDC), por exemplo, vive em conflito há mais de 20 anos, a chamada Segunda Guerra do Congo, foi o segundo conflito com mais mortes após a Segunda Guerra Mundial, cerca de 4 milhões de mortes ao longo de 5 anos. Nesse país, aproximadamente 631 de crianças foram recrutadas para conflitos armados em 2018. Dessa forma, apesar desses países já serem signatários do citado Protocolo Adicional que proíbe a utilização de menores de 18 anos em 20. A República Centro-Africana (2017), República Democrática do Congo (2001), Líbia (2004), Mali (2002), Sudão do Sul (2018), Sudão (2005) e Nigéria (2012). Rol dos países signatários do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo ao envolvimento de crianças em conflitos armados: Disponível em <https://treaties.un.org> Acesso em 10 nov. 2019. 21. Disponível em: <http://www.protectingeducation.org/sites/default/files/documents/ eua_2018_full.pdf> Acesso em: 02 de dezembro de 2019. conflitos armados, crianças ainda são utilizadas em tais países por grupos rebeldes. 4 CRIANÇAS-SOLDADO NO BRASIL Apesar de não existir uma guerra declarada no Brasil, há o que se chama popularmente de “Guerra ao tráfico”. A desigualdade social e violência, ligadas a ineficiência do Estado, criam um ambiente de maior vulnerabilidade para a cooptação de crianças para o crime. A gênese do aumento do consumo de drogas e o surgimento de Organizações Criminosas ligadas a tal atividade, advém da década 70 e 80 no Brasil. Conforme a antropóloga Alba Zaluar descreve em seu artigo “Democratização Inacabada: fracasso da segurança pública”, com o pósguerra, houve uma mudança no estilo de vida, sendo o lazer e o consumo elevados a uma posição de destaque na vida da sociedade. Entretanto, o maior valor ao consumo não é o único fator que permeia a escalada da criminalidade no Brasil, pelo contrário, a explicação é multifacetária. Fatores como a pobreza, falta de emprego e oportunidade, urbanização acelerada, dentre outros, influenciaram essa ascensão. Deve-se discutir, na perspectiva da complexidade, como a pobreza e a falta de emprego para os jovens pobres se relacionam com os mecanismos e fluxos institucionais do sistema de Justiça na sua ineficácia no combate ao crime organizado. Esse atravessa todas as classes sociais e está conectado aos negócios legais e aos governos. Além disso, a urbanização muito rápida não permite que as práticas sociais urbanas de tolerância e civilidade sejam difundidas entre os novos habitantes das cidades nem que os valores morais tradicionais sejam interiorizados do mesmo modo pelas novas gerações da cidade. Assim, muitos homens jovens e pobres se tornaram vulneráveis às atrações do crime-negócio por causa da crise em suas famílias, muitas dessas incapazes de lidar com os conflitos surgidos na vida urbana mais multifacetada e imprevisível. Vulneráveis também por causa do abismo entre adultos e jovens, por causa do sistema escolar ineficaz, além da falta de treinamento profissional, adicionado aos postos de trabalho insuficientes. E se tornaram violentos em razão da falta de socialização na civilidade e nas artes da negociação, próprias do mundo urbano cosmopolita mais diversificado e menos segmentado em grupos fechados de parentesco ou localidade22. 22. ZALUAR, Alba Maria. Democratização inacabada: fracasso da segurança pública. Estudos Avançados 21, 2007. p. 35, 36. Com a escalada da criminalidade e o surgimento das Organizações Criminosas, observou-se um recrutamento de menores para atuarem no crime. Nesse contexto, apesar de não ser usual, utiliza-se o termo criançasoldado para se referir às crianças que são cooptadas pelo tráfico de drogas no Brasil. O antropólogo Luke Dowdney defende utilização do termo em seu livro “Crianças do tráfico: um estudo de caso de crianças em violência armada organizada no Rio de Janeiro”, vejamos: Apesar de as crianças que trabalham para as facções do tráfico não estarem numa situação de “guerra”, a definição como “criança-soldado” está certamente mais próxima de sua realidade de trabalho do que a definição de “delinquente juvenil” ou “criminoso”. (...) Também se faz a comparação para enfatizar a seriedade do problema dessas crianças e adolescentes, e ressaltar o fato de que não devem ser vistos ou tratados como “delinquentes juvenis” apenas porque o Rio não está em estado de guerra, segundo as definições tradicionais23. Ainda em seu livro, Dowdney enumera pontos de contato entre as crianças-soldado nas zonas de guerra e as no tráfico de drogas. Em ambos os casos, há recrutamento “voluntário”, conforme dito anteriormente, apesar de muitas vezes ser forçadamente, muitas se juntam “voluntariamente”, nesses casos observa-se a semelhança também no perfil da vítima, crianças pobres, vivendo em lares instáveis. A faixa etária é semelhante, geralmente entre 15 e 17 anos, existindo casos até de crianças menores de 10 anos. Segundo pesquisa do Observatório de Favelas, a maioria ingressa entre 13 e 18 anos: A maioria dos entrevistados começou a trabalhar no tráfico de drogas antes dos 15 anos de idade. A maior concentração de adolescentes e jovens (90,4%) situa o seu ingresso nesta atividade entre os 13 e os 18 anos. Entretanto, em 7,8% dos casos constatamos que a entrada no tráfico se deu antes até os 12 anos, ou seja, em plena infância24. Dowdney também observa que em ambos os casos as crianças trabalham de forma hierarquicamente estruturada, existindo um sistema de ordens, regras e punições. Muitas crianças começam como olheiros e, conforme ganham confiança de seus líderes, ascendem posições, porém, caso descumpram as regras estabelecidas são castigadas e até mortos. 23. DOWDNEY, Luke. Crianças do Tráfico: Um Estudo de caso de Crianças em Violência armada Organizada no Rio de Janeiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: 7letras, 2004. p.206. 24. Organização Internacional do Trabalho; Observatório de Favelas. Rotas de fuga: trajetórias de jovens na rede social do tráfico de drogas: caminhadas. - Brasília: OIT, 2009. p. 58. O sistema de punição do tráfico pode ser exemplificado através de um relato do jornalista Celso Athayde no livro “Falcão: meninos do tráfico”25. O jornalista narra a morte de um falcão, nomenclatura para as crianças que atuavam como vigias para os criminosos, sendo responsáveis por avisar casos de invasões de outras quadrilhas ou mesmo da polícia na favela. Sabugo, como era conhecido o jovem, fora punido com a morte por ter descumprido a regra estabelecida na organização e ter dormido durante o seu “expediente”. Tal caso, serviria de punição e de exemplo para outras crianças ocupantes da mesma função. Outro ponto semelhante observado pelo antropólogo, é que em ambos os casos as crianças são remuneradas por seus serviços e quanto mais alto o posto, maior a remuneração. Além disso, esses menores estão à serviço de seus superiores 24 horas por dia, pois a todo momento há risco de invasão e de confrontos. Os que trabalham como soldados geralmente fazem plantões com revezamentos organizados de acordo com a quantidade de empregados na função. Os plantões noturnos costumam ocorrer durante toda a madrugada, envolvendo mais de 10 horas consecutivas. Há ainda os casos dos jovens que dizem ficar a disposição durante 24 horas para qualquer missão ou situação de conflito armado26. Tanto em zonas de guerra quanto no crime organizado, as crianças utilizam armas de fogo, bem como são alvos constantes de grupos rivais ou da polícia. Ante a isso, ambas vivem em uma realidade de matar ou morrer, sendo a morte parte do seu cotidiano. Por fim, Luke afirma que as crianças são utilizadas cada vez mais em conflitos armados e quanto maior o tempo de duração do conflito, maiores são as possibilidades de recrutamento de crianças27. Envolvidas em ciclos de violência e abandono estatal, muitas dessas crianças enxergam o tráfico como um meio de obtenção de dinheiro e prestígio, sendo, por isso, mais facilmente recrutadas para atuarem o tráfico. Inicialmente, desempenhando funções de auxílio como mensageiros, olheiros e outros, ganhando confiança e lealdade por parte dos criminosos e, aos poucos, ocupando posições de maior destaque dentro da organização. 25. ATHAYDE, Celso e MV Bill. Falcão: meninos do tráfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.p. 187 - 206. 26. Organização Internacional do Trabalho; Observatório de Favelas. Rotas de fuga: trajetórias de jovens na rede social do tráfico de drogas: caminhadas. - Brasília: OIT, 2009. p. 70. 27. DOWDNEY, Luke. Crianças do Tráfico: Um Estudo de caso de Crianças em Violência armada Organizada no Rio de Janeiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: 7letras, 2004. Há várias ocupações no narcotráfico, tais como vapor, responsável pela venda no varejo, geralmente não utilizam armas; soldado, fazem a defesa e ataque do grupo; olheiro, avisam quando há algum tipo de ameaça; gerente, administram o ponto de venda de drogas; embalador, responsáveis pelo empacotamento das drogas, dentre outros28. Quando maior o cargo ocupado na Organização Criminosa maior a contrapartida financeira e o poder. Segundo dados da Fundação CASA, em maio de 2019, 47,88% dos submetidos a medidas socioeducativas, respondem pelo ato infracional “Tráfico de Drogas”, sendo tal porcentagem correspondente a 3.850 adolescentes, dos quais 723 possuíam entre 12 a 15 anos, 2.302 entre 16 ou 17 anos e 825 mais de 18 anos29. Além disso, por mais que não ocorra uma guerra civil declarada no Brasil, o país enfrenta sérios problemas no que tange a violência urbana. O ano de 2017, por exemplo, foi o ano com mais mortes da história do Brasil, totalizando mais de 64 mil assassinatos. A violência do tráfico de drogas e da abordagem policial, ocasiona a morte de inúmeras crianças ligadas ao crime. O documentário “Falcão - Meninos do Tráfico”, produzido por MV Bill e Celso Athayde, entrevistou 17 crianças utilizadas no tráfico como falcões, espécie de olheiros. Desses 17 entrevistados, apenas um sobreviveu, Sérgio Cláudio de Oliveira Teixeira. Em entrevista para a Folha de S. Paulo, Sérgio narra que só sobreviveu porque foi preso, além disso conta os motivos que o levou a entrar para o tráfico: Com dez anos. Meu pai era envolvido, minha mãe tinha morrido [de câncer] e eu não ia ter oportunidade mesmo. Vi meu pai ser usuário, cheirar, fumar, ser traficante. E eu queria ser igual a ele. Troquei minha oportunidade [de estudar] por um fuzil30. Além das crianças mortas em conflitos com policiais, há as mortas por bala perdida ou por estarem “na linha de tiro”, como o caso do menino Eduardo de Jesus Ferreira, de 10 anos31. Segundo dados da plataforma 28. Organização Internacional do Trabalho; Observatório de Favelas. Rotas de fuga: trajetórias de jovens na rede social do tráfico de drogas: caminhadas. - Brasília: OIT, 2009. p. 186. 29. FUNDAÇÃO CASA: Boletim Estatístico Completo ref. 10.05.2019. Disponível em: <http:// www.fundacaocasa.sp.gov.br> Acesso em: 04 de novembro de 2019. 30. FIGUEIREDO, Talita. Meninos do Tráfico. Folha de S. Paulo, 5 de abril de 2006. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1504200618.htm> Acesso em 08 nov. 2019. 31. Apesar do Relatório Final do Inquérito Policial ter concluído que os policiais agiram em legítima defesa, pois atiraram respondendo a uma agressão de traficantes, e, lamentavelmente, fogo cruzado, até outubro de 2019, 14 crianças menores de 12 anos foram vítimas de bala perdida na região metropolitana do Rio de Janeiro, 3 delas morreram32. Recentemente, em 20 de setembro de 2019, Agatha Félix fora morta por um tiro de fuzil dentro de uma Kombi no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. O caso que gerou repercussão nacional, ainda permanece sem solução. Após esse caso, fora apresentado o Projeto de Lei n° 1370/219, chamado de “PL Ágatha”, o qual pede prioridade na tramitação de procedimentos investigatórios relativos a crimes contra a vida de crianças e adolescentes33 no âmbito da Polícia Civil, no Estado. Das vítimas dos homicídios decorrentes de intervenção policial na cidade do Rio de Janeiro, 95,5% são homens, 79% são negros e 75% são jovens34. Para investigar o assassinato de tantos jovens no Brasil, foi criada, através do Requerimento nº 115, de 2015, a Comissão Parlamentar de Inquérito do Assassinato de Jovens (CPIADJ)35. Essa Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), em seu Relatório Final, recomendou a criação de uma polícia cidadã, desmilitarização de polícia, dentre outras medidas. Ressalta-se que há vários pontos de semelhança entre as criançassoldado do continente africano, recrutadas para guerras e as do Brasil, 32. 33. 34. 35. segundo o Delegado, atingiram uma criança, o caso ainda shttps://fogocruzado.org.br/diadas-criancas-2019/egue Sem autor: Até o dia das crianças, grande rio teve 20 baleadas em 2019. Fogo Cruzado. Disponível em: <https://fogocruzado.org.br/dia-das-criancas-2019/> Acesso em 03 de dezembro de 2019. Esse projeto de lei visa a prioridade de tramitação de procedimentos investigatórios relativos à crimes contra a vida e outros crimes com resultado morte de crianças e adolescentes no âmbito da polícia civil do estado do rio de janeiro. Você matou meu filho!: homicídios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio de Janeiro/Anistia Internacional, 2015, p. 146 Disponível em https://anistia.org.br/wp-content/ uploads/2015/07/Voce-matou-meu-filho_Anistia-Internacional-2015.pdf. Acesso em 08 nov. 2019. “No Brasil, os homicídios dolosos são uma triste realidade: 56.000 pessoas são assassinadas todos os anos no País, o que equivale a 29 vítimas por 100.000 habitantes, índice considerado epidêmico pela Organização das Nações Unidas (ONU). Este patamar vergonhoso e preocupante tem se mantido inalterado ao longo de três décadas, com pequenas variações. Importante salientar que a vitimização apresenta padrões particulares: 53% das vítimas são jovens; destes, 77%, negros e 93% do sexo masculino. Os homicídios dolosos são a primeira causa de morte entre os jovens. Ademais, o risco não se distribui aleatória e equitativamente por todos os segmentos sociais e raças, ao contrário, concentra-se na camada mais pobre e na população negra, reproduzindo e aprofundando as desigualdades sociais e o racismo estrutural.” - Trecho do Relatório Final da CPI Assassinatos de Jovens. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/06/08/veja-a-integra-do-relatorioda-cpi-do-assassinato-de-jovens>. Acesso em 08 nov. 2019. recrutadas para o tráfico. Ambas estão imersas em um cenário de vulnerabilidade social, econômica e expostos a violência explícita. Dessa forma, a vulnerabilidade econômica é um dos motivos que leva tais jovens a ingressarem no mundo do crime, porém não se trata de um determinismo social, além do problema da pobreza, há outros fatores que permeiam esse cenário. A Antropóloga Alba Zaluar, em seu livro “Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas”, discorre sobre as causas do aumento da violência e afirma que há vários fatores que contribuem para o aumento da criminalidade, a hipermasculinidade e até mesmo a inflação econômica contribuem para isso. O problema da criminalidade violenta, que desapontou na mesma década nas cidades brasileiras, é um paradoxo que não pode ser reduzido a causas econômicas: pertencente a uma cadeia de causas e efeitos que se cruzam.36 Ante a isso, por mais que no Brasil não esteja em guerra, o termo criança-soldado se aplica aos menores recrutados para o tráfico de drogas, visto a semelhança entre esses e os recrutados em zona de guerra. Ademais, o termo também se aplica, pois, tais crianças são vítimas de exploração pelos narcotraficantes, sendo tal prática considerada uma das piores formas de trabalho infantil. Por outro lado, o termo atribui a importância devida ao tema. Não se trata de jovens delinquentes ou infratores juvenis e sim crianças exploradas que devem ser reabilitadas a sociedade. Não se deve tratar tal abuso com soluções punitivistas como aumentar a maioridade penal ou maior punição para esses menores. Por outro lado, analisá-los apenas como vítimas, esquecendo-se que esses soldados mirins do tráfico vivem um cenário semelhante a uma guerra, não se verifica como solução adequada para o tema. Conforme consta nos objetivos da Resolução 190 da OIT37, já mencionada anteriormente, deve-se proteger esses menores de represálias, além de garantir sua reabilitação e inserção social. 5 COMBATE AO USO DE CRIANÇAS-SOLDADO Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, observa-se um esforço dos Organismos Internacionais para garantirem o fortalecimento dos 36. ZALUAR, Alba. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: FGV. 1ª ed. 2004, p. 57. 37. DECRETO Nº 3.597, DE 12 DE SETEMBRO DE 2000. I Programa de Ação, 1.b. Acesso em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3597.htm> Acesso em 28 nov. 2019. instrumentos de direitos humanos e do direito internacional humanitário. Com isso, a utilização de crianças em zonas de conflito fora chancelada como inaceitável e considerada um Crime de Guerra pelo Estatuto de Roma. Não obstante, a utilização de crianças em combate não é uma atrocidade contemporânea, pelo contrário, há documentos históricos que apontam para a utilização de crianças em combates desde a Antiguidade. Na Lacônia, unidade regional da Grécia, localizada na região do Peloponeso, por exemplo, crianças e adolescentes recebiam um rígido treinamento militar dos sete aos vinte anos, objetivando transformá-las em soldado38. Na mesma toada, durante a segunda guerra mundial, a Alemanha utilizou a chamada “Juventude Hitlerista”, jovens entre 10 e 18 anos, como combatentes no conflito. Muitas crianças, vendo o terror da guerra e temendo a morte, tentaram fugir de tal convocação, porém caso esses desertores fossem descobertos, eram executados39. Dessa forma, para evitar tais atrocidades, no pós-guerra, foram elaboradas normas internacionais, além da criação de mecanismos de fortalecimento multilaterais. Na Convenção de Genebra, realizada no ano de 1949, promulgada pelo Decreto nº 849 de 1993, a escravidão fora considerada um Crime Contra a Humanidade, sendo o tema de tráfico de pessoas contido no conceito de escravidão40. Além disso, fora previsto que as Partes integrantes do acordo evitem recrutar menores de 15 anos para o combate. As Partes em conflito tomarão todas as medidas possíveis para que as crianças menores de quinze anos não participem 38. “Como é sobejamente conhecido, na Lacedemónia as crianças pertencem, desde que nascem, ao Estado— que eliminava as que fossem deficientes ou não apresentassem a robustez requerida (Plutarco, Licurgo 16) — e, a partir dos sete anos, passavam à posse do Estado e até à morte pertencem-lhe por inteiro. São então educadas pela pólis que lhes dava uma preparação fundamentalmente de índole física, ao ar livre, e toda ela virada para a intervenção na guerra. A educação propriamente dita dura até aos vinte anos. De cabelo cortado rente, ligeiramente vestidos, pés descalços, obrigados a dormir sobre uma esteira de canas (cf. Xenofonte, Lac. 2. 3-4; Plutarco, Lic. 16), sujeitos a uma vida parca e austera, os jovens espartanos, proibidos de se dedicarem a trabalhos manuais, viviam em comum, divididos em grupos, segundo as idades, dirigidos pelo mais avisado de cada um desses corpos, e aprendiam a obedecer e a suportar a fadiga e a dor (cf. Platão, Leis 1, 633b-c), a falar de forma concisa e sentenciosa, ou seja a serem lacónicos”. FERREIRA, José Ribeiro. Educação em Esparta e Atenas: dois métodos e dois paradigmas. Coletânea Cidadania e Paideia na Grécia Antiga. 2º edição, 2010. 39. MONTEIRO, Gustavo Feital. Juventude Hitlerista: Propaganda, Ideologia e Antissemitismo. Brasília, 2013. p. 27. 40. DECRETO Nº 849, DE 25 DE JUNHO DE 1993.Convenção de Genebra, artigo 7, item 1, alínea “c” e item 2, alínea.”c”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto/1990-1994/D0849.htm> Acesso em 06 nov. 2019. diretamente nas hostilidades, especialmente abstendo-se de recrutá-las para as suas Forças Armadas. Ao recrutar pessoas de mais de quinze anos, porém menores de dezoito anos, as Partes em conflito esforça-se-ão para dar prioridade aos de maior idade41. De forma semelhante, a Declaração Universal dos Direitos das Crianças, de 1959, por mais que não tratasse do tema abertamente, estabeleceu princípios norteadores no que se refere a políticas de proteção às crianças. Em tal documento, são previstos inúmeros direitos como de saúde, moradia, lazer, educação, além de proteção contra a exploração no trabalho. Posteriormente, em 1977, foram adotados os Protocolos Adicionais I e II da Convenção de Genebra42, os quais proíbem a participação de menores de 15 anos nos conflitos. Em 1989, a Convenção sobre os Direitos das Crianças43 reafirmou a proibição de participação de menores em conflitos armados, além disso, destacou a importância da recuperação física, psicológica e a reintegração das crianças utilizadas em conflitos armados. Em 1993, foram adotados os princípios relativos ao estatuto das instituições nacionais de direitos humanos (Princípios de Paris). Posteriormente, em 1995, a 26ª Conferência Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho recomendou que os Estados adotassem medidas para garantir que crianças menores de 18 anos não participem de hostilidades. Assim, diferente do Protocolo Adicional I e II citado acima, a idade limítrofe seria elevada de 15 anos para 18 anos. Contudo, apesar disso, no ano de 1998 o Estatuto de Roma, estrado para a criação do Tribunal Penal Internacional, manteve tal faixa etária em 15 anos, bem como elencou tal prática como Crime de Guerra, conforme seu artigo 8º, VII: “Recrutar ou alistar menores de 15 anos nas forças armadas nacionais ou em grupos, ou utilizá-los para participar ativamente nas hostilidades”. 41. DECRETO Nº 849, DE 25 DE JUNHO DE 1993.Convenção de Genebra, artigo 77, 2. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0849.htm> Acesso em 06 de novembro de 2019. 42. DECRETO Nº 849, DE 25 DE JUNHO DE 1993. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0849.htm> Acesso em 06 nov. 2019. 43. “Os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas para estimular a recuperação física e psicológica e a reintegração social de toda criança vítima de qualquer forma de abandono, exploração ou abuso; tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; ou conflitos armados. Essa recuperação e reintegração serão efetuadas em ambiente que estimule a saúde, o respeito próprio e a dignidade da criança.” DECRETO Nº 99.710, DE 21 DE NOVEMBRO DE 1990. Artigo 39 da Convenção sobre os Direitos das Crianças. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/ D99710.htm> Acesso em 06 nov. 2019. Nesse mesmo ano, fora fundada uma Coalizão Pelo Fim do Uso de Crianças-Soldados (CFCS). Em 1999, a Convenção nº 182 da Organização Internacional do Trabalho sobre a Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua Eliminação, proibiu o recrutamento forçado e compulsório de crianças para a sua utilização em conflitos armados. No ano de 2000, fora adotado o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo ao envolvimento de crianças em conflitos armados. Em seu preâmbulo, é descrito que o aumento da idade para o possível recrutamento de pessoas pelas forças armadas contribuirá para a observância dos interesses das crianças. Em tal documento, o recrutamento de menores de 18 anos fora proibido, com exceção do recrutamento voluntário para atuação nas forças armadas dos Estados. Importante destacar, que o Relatório Machel, publicado no ano de 1996, é considerado uma das mais importantes referências ao tema. O relatório além de denunciar todos os problemas decorrentes da utilização de crianças-soldado, propõe ações acabar com a prática ou a minimizar. Ressalta-se que a prevenção da violência contra crianças em conflitos armados é um elemento crucial na construção e manutenção da paz. Além disso, os Estados-Membros têm um papel central no fornecimento de programas de reintegração a longo prazo e sustentáveis, incluindo o financiamento previsível para esses programas. Esse apoio é crucial para garantir o bem-estar das crianças e manter a paz e a segurança. Os programas de reintegração devem incluir saúde mental e apoio psicossocial, educação e treinamento vocacional, bem como intervenções comunitárias e acesso a um registro civil e à justiça, levando em consideração as necessidades específicas de meninas e meninos, incluindo crianças com deficiência, para permitir que todas as crianças afetadas por conflitos armados retornem às suas comunidades e recuperem a infância. O papel dos Estados Membros é agora apoiado pela criação da Coalizão Global para a Reintegração de Ex-Crianças Soldadas, que foi estabelecida e é co-liderada pelo Representante Especial do Secretário-Geral da Infância e pela Associação das Crianças das Nações Unidas (UNICEF) e tem como objetivo explorar e abordar ainda mais as lacunas e necessidades existentes para a reintegração de todas as crianças afetadas por conflitos. A Organização das Nações Unidas elaborou a “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, documento esse que estabelece objetivos e metas para os próximos 15 anos em áreas consideradas de importância crucial para a humanidade e para o planeta. O item 7 do objetivo 8 de tal agenda, tem como uma das metas acabar com a utilização de criançassoldados, vejamos: 8.7 Tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças-soldado, e até 2025 acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas44. Outrossim, a Assembleia Geral da ONU45 declarou 2021 como o “Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil”. Em 2017, foram estabelecidos os chamados “Princípios de Vancouver”, documento já endossado por 89 países46, os quais objetivam a manutenção da paz e prevenção do recrutamento e uso de crianças-soldado. Segundo o Relatório Anual do Secretário-Geral sobre Crianças e Conflitos Armados de 201947, cerca de 13.600 crianças recrutadas foram beneficiadas com a liberação e reintegração em todo o mundo. Apesar disso, o número de crianças utilizadas em conflitos armados é elevado. Ainda nesse Relatório, o secretário geral das Nações Unidas, António Guterres, escreveu estar assustado com o elevado número de violações cometidas contra crianças. Ademais, crianças acusadas de associação com grupos terroristas, foram privadas de liberdade, com cuidados parentais limitados ou inexistentes, na Nigéria, por exemplo, o Relatório cita que 418 crianças detidas por suspeita de associação com o Boko Haram e 375 crianças na Somália por suposta associação com Al-Shabaab48. Em relação aos esforços nacionais para combater o trabalho infantil, fora elaborado o “III Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador”, “o qual possuía 44. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/10/agenda2030-ptbr.pdf> Acesso em 02 de dezembro de 2019. 45. Nações Unidas Brasil. OIT: 2021 é declarado ano internacional para eliminação do trabalho infantil. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/oit-2021-e-declarado-ano-internacionalpara-eliminacao-do-trabalho-infantil/>. Acesso em 02 de dezembro de 2019. 46. “VANCOUVER PRINCIPLES ON PEACEKEEPING AND THE PREVENTION OF THE RECRUITMENT AND USE OF CHILD SOLDIERS” Disponível em: <https:// www.vancouverprinciples.com/wp-content/uploads/2017/11/17-204-Vancouver-PrinciplesDoc-EN-v3.pdf> e Lista dos países que endossaram o documento, disponível em: <https:// www.vancouverprinciples.com/endorsers/>, ambos com acesso em 02 dez.2019. 47. CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU. Relatório Anual do Secretário-Geral sobre Crianças e Conflitos Armados de 2019, item II, a, n. 7. Disponível em: https://www.un.org. Acesso em 02 dez. 2019. 48. CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU. Relatório Anual do Secretário-Geral sobre Crianças e Conflitos Armados de 2019, item II, b, n. 13. como objetivo atender o compromisso assumido pelo Brasil de eliminar todas as formas de trabalho infantil até 2025”.49 Todavia, o governo atual do presidente Jair Messias Bolsonaro, enfrenta críticas com relação às medidas adotadas na área de combate ao trabalho infantil, dentre elas a extinção de CONAETI50 e o esvaziamento do CONANDA.51 Por outro lado, organizações não governamentais realizam importantes trabalhos de pesquisa e combate à desigualdade social, como Observatório das Favelas52, Gerando Falcões53, Central Única das Favelas. CONSIDERAÇÕES FINAIS O consentimento não é uma defesa válida para o recrutamento e uso de crianças menores de 18 anos em hostilidades, crimes e tráfico. As crianças recrutadas pelas forças armadas e grupos armados, sejam as sequestradas e obrigadas a participar dos conflitos ou as que “voluntariamente” se alistam, devem ser tratadas como vítimas. Essas crianças, as quais já se encontravam anteriormente em um estado de vulnerabilidade pela guerra ou pela violência urbana, foram expostas aos mais altos graus de violência e exploração, deixando um impacto severo no seu bem-estar físico e mental. Por isso, é determinante que os interesses da criança sejam considerados primordialmente. Tanto as crianças-soldado recrutadas em zonas de guerra, quanto as utilizadas pelo tráfico de drogas, são vítimas de tráfico de pessoas para a exploração do trabalho infantil, sendo essa uma das piores formas de trabalho infantil. 49. Ministério dos Direitos Humanos. III PLANO NACIONAL DE PREVENÇÃO E ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL E PROTEÇÃO AO ADOLESCENTE TRABALHADOR (2019-2022). p. 4. Disponível em: <https://www.mdh.gov.br/todasas-noticias/2018/novembro/lancado-3o-plano-nacional-de-prevencao-e-erradicacao-dotrabalho-infantil/copy_of_PlanoNacionalversosite.pdf > Acesso em 02 dez. 2019. 50. Através da Portaria nº 952 de 2003 do Ministério do Trabalho, fora instituído o CONAETI (Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil), sendo posteriormente revogado pela Portaria SEPRT Nº 972 DE 21/08/2019. 51. RIBEIRO. Bruna. Trabalho infantil: especialistas analisam oito meses de governo Bolsonaro. Rede Peteca: chega de trabalho infantil. Disponível em: <https://www.chegadetrabalhoinfantil. org.br/noticias/materias/trabalho-infantil-especialistas-analisam-oito-meses-de-governobolsonaro/> Acesso em: 02 dez.2019. 52. Apresentação e Missão da ONG disponível em <https://of.org.br/apresentacao/>. Acesso em 02 dez. 2019. 53. Disponível em: https://gerandofalcoes.com/conheca. Acesso em: 02 dez.2019. Ademais, conforme dito, observa-se um esforço de internacional para erradicação dessa atrocidade, porém, apesar disso, o número de crianças recrutadas em zonas de conflito ou para o narcotráfico, ainda é elevado. Por fim, inconteste que a reintegração e reinserção na sociedade de todas as crianças afetadas por conflitos armados ou narcotráfico deve ser priorizada por meio de uma abordagem abrangente, coordenada e baseada nos direitos da criança, que visam a sua proteção integral e irrestrita. REFERÊNCIAS DECRETO Nº 99.710, DE 21 DE NOVEMBRO DE 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710. htm> Acesso em 06 de novembro de 2019. DECRETO Nº 849, DE 25 DE JUNHO DE 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0849.htm> Acesso em 06 de novembro de 2019. Decreto nº 3.597, de 12 de setembro de 2000 – Convenção sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua Eliminação. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3597. htm>. Acesso em: 11 de outubro de 2019. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002 – Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm>. Acesso em: 11 de outubro de 2019. DECRETO Nº 5.006, DE 8 DE MARÇO DE 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/ D5006.htm>. Acesso em 28 de novembro de 2019. Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004 – Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5017.htm>. Acesso em: 11 de outubro de 2019. ATHAYDE, Celso e MV Bill. Falcão: meninos do tráfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006 CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU. Relatório Anual do Secretário-Geral sobre Crianças e Conflitos Armados de 2019. Disponível em: <https://www.un.org>. Acesso em: 11 de outubro de 2019. DOWDNEY, Luke. 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Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Pessoas Invisíveis da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. INTRODUÇÃO A representar tão somente 0,5% do quantum total das finalidades atribuídas ao tráfico humano1, a exploração de crianças e adolescentes com o fim de praticar delitos em caráter transnacional, a priori, não aparenta prática de envergadura a demandar efetiva atenção. Com efeito, a majoritária parcela daqueles que se utilizam dessa ‘mão-de-obra’ infantil são sequer concebidos por praticantes da conduta tipificada como tráfico de pessoas, sendo-lhes reservado unicamente o status de corruptor de menor, desclassificando a ação típica efetivamente levada a termo nos limites fronteiriços. Deveras, há razoável dificuldade em se compreender tal fenômeno como modalidade de tráfico de jovens, dado aos caracteres particulares dos quais dispõe a prática. De fato, envolve variáveis específicas, tais quais 1. United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). Global Report on Trafficking in Persons 2018. United Nations Publication, Ed. 19.IV.2. vítimas incapazes de consentir em sua plenitude, finalidade desvirtuada da comumente atribuída ao tráfico humano, e meios mais simplistas na cooptação dos infantes, em virtude da sua especial vulnerabilidade. Entretanto, não obstante compor irrisório montante das motivações que permeiam o human trafficking e ser, via de regra, abnegado como modalidade de tráfico de pessoas, é certo que o recrutamento de crianças e adolescentes com o intento de praticarem condutas típicas nas divisas nacionais trata-se de questão eminente, porquanto dotada de peculiaridades imanentes e paulatinamente corrosivas. Essa modalidade de tráfico humano, decerto, ter por ratio essendi a conjugação de diversas vulnerabilidades, cernes do êxito no recrutamento, e perpassa por complexas perquirições acerca de proteção integral de infantes e jovens, consentimento, ausência de acolhimento legislativo e políticas públicas efetivas. No contexto brasileiro, em específico, essa modalidade de tráfico infanto-juvenil passa a deter especial relevo, tendo em conta as dimensões continentais das quais dispõe o Estado-nação e, por consequência, a magnitude de seus limites fronteiriços para com quase todos os países da América Latina, enquanto bordas secas, e o potencial em transporte marítimo para a traficância intercontinental, em relação às fronteiras marítimas. Empreende-se assim, no presente trabalho, um paralelo didático para com a fantasia de Pinóquio: os infantes aliciados representam o ingênuo boneco; os traficantes, de seu turno, presentam-se como o vilão Stromboli. Tal qual o conto infantil, crianças e jovens, aos quais se conferem a proteção integral na esfera teórica, são cooptados para a prática de condutas que, ao cabo, conduzem-nas à imersão no universo da criminalidade transnacional, e se veem absortas no ciclo vicioso do tráfico humano. Nos bastidores, Stromboli mostra sua verdadeira personalidade. Ele é abusivo e grosseiro, e não dá um centavo do que ganhou para Pinóquio, mesmo ele sendo a estrela do show. Quando Pinóquio diz que voltará para seu pai, Stromboli grita com ele e, em uma das primeiras cenas mais pesadas do filme, o prende em uma gaiola e diz que fará milhões em cima do garoto, e ele nunca irá voltar para casa novamente. Mas o pior ainda está por vir — Stromboli ameaça Pinóquio, dizendo que quando ele estiver velho demais, será usado como lenha.2 O objetivo deste artigo, portanto, é avaliar o alcance potencial da traficância humana de crianças e adolescentes, cuja finalidade volte-se à 2. SERPA, Miguel. Pinóquio (1940). Disponível em: <https://medium.com>. Acesso em: 22 jun. 2019. exploração da prática de delitos, nas fronteiras brasileiras, sob análise crítica de todo o contexto normativo, político e socioeconômico que circunda a problemática do tráfico de pessoas. 1 TRÁFICO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES: MAPEANDO CONTEXTOS E VULNERABILIDADE Consequência de um sistema capitalista globalizado cuja base é a desigualdade socioeconômica, a traficância humana se apresenta como a mais atual expressão da escalada da transnacionalidade delitiva, e, diuturnamente, atualiza suas relações de poder e reinventa-se enquanto dinâmica exploratória de vítimas vulneráveis. É certo que o fenômeno não é apenas contemporâneo, e há muito tem campo na sociedade global. Soma-se a isso o fato de que o tráfico de pessoas não se volta à exploração para finalidades estanques e, dado ao dinamismo a ele intrínseco, inova com rapidez em relação aos fins visados pelos aliciadores. Assim, dado à sua natureza volúvel, adaptável ao desenvolvimento econômico-cultural em espectro internacional, a prática sofreu, tanto por necessidade quanto por opções político-criminais, diversas atualizações conceituais no decorrer da história normativa internacional. Inicialmente compreendido tão só como prática com o fim de exploração do trabalho escravo migratório, o conceito então atribuído à traficância humana guardava estreita relação menos com o viés humanitário do que com o projeto econômico visado à época (VENSON e PEDRO, 2013, p. 61). Posteriormente, o tráfico humano fora remodelado a fim de abarcar a submissão sexual de mulheres e crianças brancas, sendo essa a pioneira forma a ser conferida ampla proteção às vítimas no plano internacional. À preocupação inicial com o tráfico de negros da África, para exploração laboral, agregou-se a do tráfico de mulheres brancas, para prostituição. Em 1904, é firmado em Paris o Acordo para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, no ano seguinte convolado em Convenção. Durante as três décadas seguintes foram assinados: a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas (Paris, 1910), a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças (Genebra, 1921), a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores (Genebra, 1933), o Protocolo de Emenda à Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças e à Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores (1947), e, por último, a Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio (Lake Success, 1949). (CASTILHO apud SANTARÉM, 2017, p. 36). Em um segundo momento, portanto, rompeu-se com o paradigma econômico do conceito, e o que se compreendia por tráfico de pessoas passou a ser dotado de elevada carga moralizante e racista. De fato, o intento precípuo não era tanto salvaguardar mulheres e crianças da exploração sexual, mas, em verdade, por a salvo a moral e os costumes das vítimas – exclusivamente brancas – e seus próximos. Nesta senda, somente após a Convenção sobre Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura – ordinariamente referida por Convenção de Genebra –, em 1956, é que se passou a contemplar outras formas de exploração como modalidades possíveis de tráfico de pessoas. Tal instrumento estabelece conceitos acerca do que vem a constituir um estado de escravidão, e inova ao contemplar também práticas análogas, equiparando as pessoas nessas condições a “pessoas de condição servil”. Expressa, ainda, no que consiste o tráfico de escravos, sendo esta a forma incipiente do que, contemporaneamente, se concebe por tráfico de pessoas. Contudo, é tão somente a partir do final do século XX que a comunidade internacional compreende a natureza transversal e intercontinental desse fenômeno, o qual transpõe qualquer limite fronteiriço traçado em mapas geopolíticos, e assimila que a prática é de maior profundidade e complexidade do que se ordinariamente atribui, ultrapassando as balizas da escravidão servil. Passa-se a notar, portanto, que o tráfico humano não se resume ao tráfico de escravos, nem tampouco a pessoas em condição servil. Com efeito, é fenômeno que extrapola os fins tidos por visados, em virtude da sua volatilidade e adaptabilidade ao progresso econômico e cultural. Demandase, assim, uma proteção normativa específica3. Exsurge então a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional (2000), ao qual se adiciona, logo após, o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de 3. Imperioso ressalvar que, não obstante a menção no artigo 7.2, alínea “c”, do Estatuto do Tribunal Penal Internacional (Estatuto de Roma, 1998) à expressão “tráfico de pessoas”, não há, em seu teor, ou em qualquer instrumento internacional de força cogente à época, a conceituação do que vem a ser dita prática. O conceito aplicável, de fato, somente advém com o Protocolo de Palermo, em 2003. Pessoas, em especial Mulheres e Crianças (2003), convencionalmente referido por Protocolo de Palermo. O sobredito Protocolo passa a contemplar expressamente o que a comunidade internacional há de entender como modalidade de traficância humana. Desse modo, o tráfico de pessoas não mais se restringe àquela baliza anteriormente imposta na esfera dogmática, pela qual somente se conferia o status de tráfico humano às práticas de exploração sexual em face de mulheres e crianças brancas ou, ainda, de submissão a condições análogas à escravatura. Atualmente, conceitua-se o tráfico humano enquanto O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos. (BRASIL, 2004). Isto é, interatuando em uma relação dinâmica e transdimensional, o tráfico de seres humanos contempla um agir – os verbos nucleares que compõem o conceito dogmático –, um meio pelo qual se obtém o consentimento viciado da vítima, e um fim precípuo de exploração. Fala-se, pois, em uma atuação de tríplice front, face a um agir finalístico a partir de um meio para obtenção de consentimento. Contudo, tendo em vista a transversalidade do fenômeno e sua constante renovação, acertou-se pela via doutrinária que o rol de finalidades para as quais se volta o tráfico humano é não exauriente e, desse modo, outras inovadoras modalidades exploratórias, surgidas com o perpassar dos anos e das tecnologias supervenientes, são também abarcadas nos termos gerais expostos pelo instrumento normativo internacional. Aduz Vivian Netto Santarém4 que Embora possamos elencar modalidades principais, o fenômeno do tráfico de pessoas é complexo, dinâmico e multidimensional, de forma que outras situações de exploração da vulnerabilidade humana para fins comerciais podem configurar tráfico de pessoas, tais como mendicância forçada, casamento servil, adoção ilegal de crianças, exploração de adolescentes no futebol e na 4. SANTARÉM, Vivian Netto Machado. Tráfico de Pessoas: uma análise da Lei 13.344/2016 sob a perspectiva dos direitos humanos. Revista da Defensoria Pública da União, Brasília, n. 11, p. 1-398, jan./dez. 2018. p. 40. prática de delitos, entre outras. Nesse sentido, contempla o conceito exposto variantes que não somente aquelas expressas no Protocolo, de modo que se admite inferir finalidades outras para as quais se volta o tráfico humano. Nessa possibilidade de ampliação do rol, permite-se alocar a traficância para exploração na prática de condutas criminalizadas, objeto do presente estudo. No entanto, ressalva importante acomete o transporte integral do normativo internacional para o âmbito doméstico brasileiro. Ratificado pouco depois de sua elaboração, o texto de Palermo baseou a alteração legislativa pela qual perpassou a ordem jurídico-penal brasileira, sendo seu teor integralmente incorporado para fins de retificação do tipo penal correspondente na seara doméstica. Anteriormente consubstanciado ao artigo 231, do Código Penal brasileiro, o delito de tráfico de pessoas voltava-se tão somente ao espectro de exploração sexual, haja vista resguardar apenas vítimas de traficância para fins de prostituição5. Após a ratificação do Protocolo, contudo, houve a revogação do dispositivo, com a inserção de novel tipo penal, a fim de harmonizar o ordenamento pátrio à normativa internacional sobre o tema, em patente evolução dogmática. Porém, não obstante a acertada convalidação integral do referido Protocolo no plano interno, ao nele se pautar o exercício legislativo pelo qual se formulou o contemporâneo tipo penal acerca do crime de tráfico de pessoas, agora expresso ao artigo 149-A, do Código Penal, incorreu-se em verdadeira problemática punitiva com relação à natureza dinâmica da traficância humana. Isto porque, ao transportar o conceito não exaustivo do instrumento internacional para caracterizá-lo como crime na esfera interna, os termos gerais do Protocolo passam a ser restritos, porquanto necessária a observância dos princípios da estrita legalidade e da taxatividade no plano penal interno. Deveras, em atenção aos referidos princípios, impossível extrapolar os limites da norma penal a fim de alcançar condutas não descritas no tipo, de modo que o tráfico de pessoas, em termos domésticos, corresponde unicamente ao inscrito no artigo 149-A, do Código Penal brasileiro. Artigo 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante 5. “Artigo 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro” (BRASIL, Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal, Brasília, DF, dez. 1940. Redação dada pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009). grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III - submetê-la a qualquer tipo de servidão; IV - adoção ilegal; ou V - exploração sexual. Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. (BRASIL, Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal, Brasília, DF, dez. 1940. Redação dada pela Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016). Em análise acurada do tipo, é possível depreender que, não bastante o equívoco em relação ao transplante integral do texto normativo internacional para o doméstico, incorreu o legislador no deslize de elencar as hipóteses expressas no Protocolo – que, repita-se, não são exaustivas para os fins do instrumento internacional – como incisos, de modo a manifestar que, efetivamente, apenas as finalidades ali expostas são consideradas tráfico de pessoas para fins penais domésticos. Neste ponto, importa ressalvar a posição doutrinária que compreende a possibilidade de interpretação extensiva do tipo penal em comento, com o fito de fazê-lo abarcar condutas não expressamente descritas na norma. Assim, estar-se-ia permitindo um maior alcance do texto penal, tolhendo a lacuna legislativa mencionada. Destarte, tal posição defende ser possível, com base no decreto que internalizou o Protocolo, extrapolar analogicamente os preceitos do artigo 149-A do Código Penal. Isto porque, uma vez ratificado e internalizado com força de lei o instrumento, os conceitos nele trazidos seriam aplicáveis ao ordenamento jurídico brasileiro em sua totalidade. Isto é, ao mencionar o tráfico de pessoas, o tipo penal que o criminaliza já traria consigo o conceito expresso no Protocolo, conceito este que, consoante asseverado, elenca hipóteses de traficância humana de forma não exaustiva. Nesse sentido, utilizando-se de interpretação analógica, o aplicador do Direito poderia subsumir conduta não taxada nos incisos do artigo 149-A à norma penal, posto que, não obstante ausência de previsão legal no Códex punitivo, há previsão conceitual em decreto legislativo que internalizou o Protocolo de Palermo. No entanto, nos parece desacertada tal posição. Embora defensável do ponto de vista de eficácia normativa, não se mostra apurada dogmaticamente; trata-se de, mediante argumento de punir o tráfico humano, sobrepujar direitos e garantias do cidadão face ao ius puniendi, a duras penas conquistadas no decorrer histórico. A fim de demonstrar o equívoco no posicionamento refutado, inicialmente cabem ponderações acerca de analogia versus interpretação analógica no Direito Penal, apontando, ao cabo, que o trespasse dos limites da lei nada mais configura senão violação à legalidade estrita. Sobre a temática leciona Polaino Navarrete6: Por interpretação analógica deve-se entender a interpretação de um preceito por outro que prevê caso análogo, quando no último aparece claro o sentido que no primeiro está obscuro: com este entendimento, se a considera como uma espécie de interpretação sistemática. Distinta da interpretação analógica é a aplicação da lei por analogia, que consiste em fazer aplicável a norma a um caso semelhante, mas não compreendido na letra nem no pensamento da lei. Nesta senda, a analogia consiste em expandir a interpretação da norma para abarcar em seu conteúdo algo que não se fez presente na lei, mas que guarda similitude com a situação nela abarcada. Isto é, mais do que exegética, a analogia é um meio de integração do sistema normativo. Para fins penais, porém, é vedada se em desfavor do réu, sob qualquer pretexto – ainda que visando dar maior eficácia à norma sancionadora. Com efeito, a interpretação analógica no Direito Penal somente é admitida em havendo expressa previsão para tanto (v.g., quando o tipo taxativamente aduz ser aplicável a hipóteses semelhantes), ou se não extrapolar os elementos normativos da lei incriminadora, o que não ocorre no tipo penal sob análise. A analogia, de seu turno, é integralmente vedada, se in malam partem. É nesse sentido, portanto, que o entendimento ressalvado acima não tem lugar na sistemática penal brasileira. Ainda que se proponha analisar o tipo penal do artigo 149-A à luz do Protocolo, é preciso se atentar ao imperativo da impossibilidade de analogia em desfavor do réu; desse modo, não há meios de se ampliar as hipóteses de traficância humana para além daquelas estipuladas pelo legislador na norma incriminadora, ainda que se considere ter ele agido erroneamente quando da redação legal. Com efeito, preceitua Cezar Roberto Bitencourt7: Os Estados Democráticos de Direito não podem conviver com diplomas legais que, de alguma forma, violem o princípio da reserva legal. Assim, é inadmissível que dela resulte a definição de novos crimes ou de novas penas ou, de qualquer modo, se agrave a situação do indivíduo. Dessa forma, as normas penais incriminadoras, que não são alcançadas pelo princípio nullum crimen nulla poena sine lege, podem perfeitamente ter suas lacunas integradas ou complementadas pela analogia, desde que, em hipótese 6. 7. NAVARRETE apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. vol. 1. São Paulo: Ed. Saraiva, 2016. p. 199. Idem, ibidem. p. 200-201. alguma, agravem a situação do infrator. O Superior Tribunal de Justiça brasileiro, cuja missão institucional é de garantir uma uniformização da jurisprudência nacional em temáticas que envolvam leis federais e interpretação de tratados, proferiu recente decisão a corroborar tal posicionamento, demonstrando ser essa a vertente mais acertada na exegese dos instrumentos internacionais8. No caso examinado, discutia-se a possibilidade de se utilizar tratado internacional, já devidamente internalizado, para fins de tipificação de conduta não expressamente criminalizada no ordenamento jurídico-penal doméstico. Nessa oportunidade, preceituou o Tribunal que, não obstante constar determinado conceito criminalizante em convenção ratificada e internalizada, este somente poderá ser utilizado para fins repressivo-penais no Brasil acaso exista estrita tipificação da conduta, via lei aprovada em trâmite regular, sob pena de violação ao princípio regente da legalidade, insculpido ao artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal9. Assim, depreende-se que, a despeito de contido no Protocolo de Palermo, instrumento internalizado no país, o conceito do tráfico humano não pode ser objeto de uso por parte dos operadores do Direito na seara criminal, tendo em vista que o tipo penal em âmbito doméstico não comporta tal analogia. Nesse sentido, pode-se afirmar que, ao transportar diretamente o texto do instrumento internacional para a seara doméstica, e diante da impossibilidade de analogia in malam partem, fora ocasionada uma lacuna legislativa com projeções perigosas em termos materiais. Decerto, o tipo penal em comento, dado à sua rigidez material, não acompanha o dinamismo e a transversalidade que, em verdade, são a essência do êxito na traficância de pessoas. 8. 9. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.798.903/RJ. Relator: Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Informativo de Jurisprudência n. 0659, 22 nov. 2019. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br>. Acesso em: 05 dez. 2019. O caso sub judice versava sobre o histórico atentado do Riocentro, e dispôs acerca da impossibilidade de se utilizar o Estatuto de Roma para fins de imputação do crime de lesahumanidade, dado à inexistência de tipo penal doméstico análogo. O Superior Tribunal de Justiça, portanto, decidiu pela vedação à expansão analógica, ainda que expressa a criminalização da conduta em tratado internalizado, posto que viola os baluartes da legalidade e da tipicidade. Assim restou concluído o feito: “A admissão da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade como jus cogens não pode violar princípios constitucionais, devendo, portanto, se harmonizar com o regramento pátrio. Referida conclusão não revela desatenção aos Direitos Humanos, mas antes observância às normas máximas do nosso ordenamento jurídico, consagradas como princípios constitucionais, que visam igualmente resguardar a dignidade da pessoa humana, finalidade principal dos Direitos Humanos. Nesse contexto, em observância aos princípios constitucionais penais, não é possível tipificar uma conduta praticada no Brasil como crime contra humanidade, sem prévia lei que o defina, nem é possível retirar a eficácia das normas que disciplinam a prescrição, sob pena de se violar os princípios da legalidade e da irretroatividade, tão caros ao direito penal”. O que se verifica na práxis, portanto, é tão somente uma eventual responsabilização penal dos agentes aliciadores como incursos em delitos tais quais a corrupção de menores, tipificado ao artigo 244-B do Estatuto da Criança e do Adolescente. Superando a problemática do quantum de pena – a qual é significativamente menor nesta cominação em relação àquela do artigo 149A, do Código Penal –, é simbolicamente relevante a imputação do tráfico de pessoas aos que dirigem seu agir para a finalidade de exploração humana mediante consentimento viciado. Com efeito, conferir a nomenclatura correta às condutas perpetradas é de suma relevância na busca pela superação da prática, em termos de repressão e prevenção. A incongruência material, assim, reflete na impossibilidade de se contemplar, no plano interno, a variante de tráfico de crianças e adolescentes para fins de exploração na prática de delitos, e, portanto, expõe a projeção potencial desta modalidade de traficância humana no contexto brasileiro. Ab initio, necessário ponderar acerca das motivações pelas quais se analisa no presente artigo, especificamente, a traficância de crianças e adolescentes. Assim se optou porquanto trata-se de grupo mais vulnerável, por razões múltiplas, e, em consequência, de maior alcance em vítimas, no tangente à exploração para cometimento de delitos. Segundo dados oriundos do United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC), 0,5% do numerário total de pessoas traficadas tem por finalidade a exploração para fins da prática de atividades criminosas. Tal grupo, em sua majoritária parcela, compõe-se de crianças e adolescentes, dado à sua especial vulnerabilidade para aliciamento em práticas diversas das modalidades ‘clássicas’ do delito, bem como do trato em geral mais benevolente para com os impúberes. É patente o elevado grau de exposição dessa fração etária às explorações operadas na prática de traficância humana; não à toa, compõem o maior percentual global de vítimas do delito. Com efeito, a prioridade na exploração de crianças e adolescentes guarda estreita relação com especiais vulnerabilidades de idade, cognição e consciência, de imputabilidade no direito doméstico, além de econômicosociais. Decerto, a prevalência de opção por crianças e adolescentes se inicia na problemática do consentimento desse grupo, agente de confluência para o êxito dos aliciadores e de sua predileção primária pelos juvenis. Isto porque, segundo obtempera o Protocolo de Palermo em seu artigo 3, “c”, “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados “tráfico de pessoas” mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos da alínea a) do presente Artigo”. Entende o Protocolo, portanto, pelo consentimento plenamente e ostensivamente viciado da criança ou adolescente, independentemente do emprego de qualquer dos meios referidos no conceito abstrato do instrumento, de modo que se tem por completo o tráfico humano se houver meramente a exploração da criança mediante as ações constantes do tipo, sendo irrelevante os meios pelos quais se atingiu a ação-fim. Desse modo, consoante reconhecido na dogmática internacional, o consentimento de crianças e adolescentes é falível, mormente em se tratando de seres humanos em desenvolvimento, nos termos do artigo 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente, e incapazes de consentir em sua plenitude. Valendo-se dessa especial condição, os aliciadores induzem os infantes na prática de delitos, explorando-os como Pinóquios da vida fática. Soma-se a isso, ainda, a questão concernente à inimputabilidade penal de crianças e jovens em âmbito brasileiro e latino-americano, bem como a proteção especialmente conferida a jovens transgressores da lei em normativos globais. A inimputabilidade, pela qual se afere a possibilidade e o grau de responsabilização penal daquele sob jurisdição, é firmada, atualmente, aos 18 anos, em todos os países da América Latina, segundo dados da United Nations Children’s Fund (UNICEF)10. Dessa forma, acaso uma criança ou um adolescente venha a ser detido por eventuais delitos ao redor de todo o continente latino-americano, somente será responsabilizado nos termos dos estatutos juvenis, circunstância que orienta maior atratividade aos aliciadores no uso de jovens para a traficância. Ademais, outro fator relevante – senão primordial – que eleva os índices de preferência por crianças e adolescentes é o abandono institucional e do Estado. Dados obtidos pela UNICEF11 dão conta que 61% das crianças brasileiras vivem em situação de pobreza, sendo esta considerada, para fins da pesquisa desenvolvida pelo instituto, a ausência de renda bastante e/ou a privação de um ou mais direitos. Neste ponto, ressalta-se a importante 10. United Nations Children’s Fund (UNICEF). Mapa-múndi da maioridade penal. Publicado em: <http://www.crianca.mppr.mp.br>. Acesso em: 04 out. 2019. 11. Idem. Relatório Pobreza na Infância e na Adolescência. Disponível em: <https://www.unicef.org/ brazil/media/156/file/Pobreza_na_Infancia_e_na_Adolescencia.pdf>. Acesso em: 04 out. 2019. p. 5. contribuição feita pela UNICEF ao levantar dados não apenas financeiros, mas relativos à moral e dignidade dos jovens, enquanto faces da pobreza e marginalização que os acometem. Incluir a “privação de direitos” como uma das faces da pobreza não é comum nas análises tradicionais sobre o tema, mas é essencial para dar destaque a problemas graves que afetam meninas e meninos e colocam em risco seu bem-estar. Educação, informação, proteção contra o trabalho infantil, moradia, água e saneamento foram as dimensões consideradas pelo UNICEF para esta análise, realizada com base na Pnad 2015. A ausência de um ou mais desses direitos coloca meninas e meninos em situação de “priva- ção múltipla”, uma vez que os direitos de crianças e adolescentes são indivisíveis. No Brasil, quase 27 milhões de crianças e adolescentes (49,7% do total) têm um ou mais direitos negados. (UNICEF, p. 5). Com efeito, a pobreza de recursos monetários, institucionais e de direitos são eminentemente deletérios ao escorreito desenvolvimento dos jovens brasileiros, e direcionam o agir dos traficantes na opção destas crianças necessitadas. Ao cabo, tal vulnerabilidade acentuada deriva de um conjugado de esforços por parte do Estado em não prover assistência educacional, econômica, social e acolhimento institucional para com os infantes, relegando-os às margens, nas quais se encontram os recrutadores. No contexto brasileiro, pesquisas desenvolvidas junto à Secretaria Nacional de Justiça (SNJ)12 demonstram que as crianças e os adolescentes efetivamente constituem o conjunto mais vulnerável ao recrutamento dessa variante do tráfico. Consoante o relatório ENAFRON (2012), é possível verificar a proliferação dessa prática nas zonas limítrofes do país, tendo por vitimados majoritários os jovens. Em Roraima, no Pará, no Amapá, no Mato Grosso do Sul, no Rio Grande do Sul e no Paraná houve o relato de que pessoas, possíveis vítimas de tráfico, estavam sendo utilizadas para fins da prática de atividades criminosas, principalmente adolescentes. À evidência, o alargado espaço fronteiriço brasileiro, tanto em relação às bordas secas quanto às marítimas, é propício à expansão do fenômeno do tráfico internacional. Adiciona-se a isso, ainda, a necessidade de aporte de entorpecentes entre os países vizinhos às bordas nacionais, sendo as crianças utilizadas como “mulas” do tráfico de entorpecentes entre nações, 12. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Justiça (SNJ). Pesquisa ENAFRON: Diagnóstico sobre Tráfico de Pessoas nas Áreas de Fronteira, 2012. p. 155. bem como a corriqueira prática de contrabando nos limites fronteiriços para com a América Latina. Nota-se a modalidade objeto de estudo, portanto, como de elevado potencial no cenário brasileiro, mormente em função de suas vastas fronteiras com diversos países da América do Sul. O uso de crianças traficadas para trespasse das bordas nacionais no intento de induzi-las às práticas delituosas mostra-se prática passível de exponencial crescimento no país, em virtude das características físico-geográficas e socioeconômicas do Estado brasileiro. Somado às circunstâncias fáticas, tem-se, ainda, a celeuma legislativa que circunda a traficância para exploração na prática de condutas criminalizadas. Com efeito, a lacuna na lei penal é fator de ignição ao fenômeno, posto que não se fala em traficância humana na hipótese, sendo os aliciadores responsabilizados criminalmente por corrupção de jovens, nos termos do artigo 244-B, do Estatuto da Criança e do Adolescente, cuja sanção é quantitativamente reduzida, e a simbologia do tráfico de pessoas é nula. Revela-se premente, diante desse cenário, o uso da máquina pública para obstar a potencialidade expansiva do fenômeno. De fato, senão o Estado, pouco compete aos particulares agirem em relação à situação que se apresenta. Destarte, trata-se de circunstância oriunda da omissão estatal perante condições atentatórias à dignidade dessas crianças e adolescentes, os quais, privados dos seus mais basilares direitos – consoante a UNICEF, pobres em amplo espectro –, buscam soluções das mais diversas para ter o mínimo que lhes é negado. Desse modo, cabe ao Estado brasileiro agir no sentido de assegurar aos infantes meios de subsistência que invalidem a legitimidade no agir dos recrutadores. Para tanto, é certa a demanda por políticas públicas eficazes, com vistas a resguardar o mínimo existencial a estas crianças e adolescentes privadas de dignidade. Deve o Estado implementar políticas diversificadas, que perpassem pelo auxílio econômico-financeiro e acolhimento institucional, no sentido de impedir uma busca por meios outros de obter subsistência e a eficácia de direitos mínimos. Conjugado a isso, patente a necessidade de se suprir a lacuna legislativa outrora suscitada, de modo a contemplar finalidades outras que não apenas aquelas inclusas no rol. O atual tipo incriminador do tráfico de pessoas logo estará obsoleto, dado à rigidez de sua redação, o que prejudica sobremaneira a simbólica apuração destes delitos. Importa ressalvar, porém, que em se tratando de norma penal material, demanda-se observância à legalidade estrita e à ofensividade, sob pena de se incorrer em drásticas e aberrantes violações a direitos conquistados a duras penas. Nesse sentido, conferir demasiada discricionariedade ao intérprete do Direito é essencialmente prejudicial à escorreita aplicação do normativo. Enquanto isso, contudo, permanece o risco iminente no crescimento de crianças-pinóquios e traficantes-Strombolis: elas, submetidas e reduzidas à insignificância de objetos de exploração; eles, abastados com o dispêndio alheio, fogem pela tangente de um sistema que marginaliza as crianças e jovens e assiste, diuturnamente, a infância ser retraída num mundo de receios. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo buscou expor as mazelas de uma sistemática normativo-jurídica e institucional-política dotadas de inúmeros equívocos, os quais, somados, são capazes de orientar uma elevada potencialidade de expansão do tráfico de infantes para prática delituosa nas fronteiras nacionais. Assim, foi possível verificar que, não obstante a existência de norma penal incriminadora específica do tráfico humano, tal normativo não contempla o dinamismo com o qual se desenvolve essa prática, e, ao cabo, sua higidez impossibilita uma efetiva ação estatal na repressão e prevenção deste delito transnacional. Ademais, apurou-se os motivos pelos quais as crianças e adolescentes, mormente em função das múltiplas vulnerabilidades que os acometem, são alvos preferenciais dos aliciadores; tratam-se de Pinóquios, dotados de sonhos, cuja promessa do Stromboli lhes parece satisfatória diante de um Estado que constantemente lhes nega a mais basilar dignidade humana. Por derradeiro, concluiu-se pela expansão potencial da traficância de infanto-juvenis para fins de exploração na prática de delitos nos limites fronteiriços brasileiros. Isto porque, consoante expressado, os caracteres físicos, políticos e socioeconômicos do Brasil são amplamente favoráveis à disseminação da prática, a qual não atrai a devida atenção dos órgãos governamentais em virtude dos baixos índices – que vêm à tona – de casos semelhantes. Desse modo, fala-se na necessidade de implementação de políticas públicas voltadas às crianças e aos adolescentes à margem, cuja captação pelos aliciadores é facilitada. Demanda-se uma efetividade na proteção dos direitos destes infantes, visando assegurar-lhes, e às suas famílias, meios de subsistência econômica e acolhimento sócio-institucional. Somado a isso, imperiosa a reforma do tipo penal que trata do tráfico de pessoas, a fim de abarcar um rol não exaustivo – porém tampouco discricionário – das finalidades pelas quais uma pessoa é traficada, nos moldes do Protocolo de Palermo, resguardando, assim, uma segurança jurídica tanto ao acusado quanto à vítima da exploração. REFERÊNCIAS BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. vol. 1. São Paulo: Ed. Saraiva, 2016. BRASIL, Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal, Brasília, DF, dez. 1940. Redação dada pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009). BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.798.903/RJ. Relator: Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Informativo de Jurisprudência n. 0659, 22 nov. 2019. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Secretaria Nacional de Justiça (SNJ). Pesquisa ENAFRON: Diagnóstico sobre Tráfico de Pessoas nas Áreas de Fronteira, 2012. p. 155. SERPA, Miguel. Pinóquio (1940). Disponível em: <https://medium.com>. Acesso em: 22 jun. 2019. SANTARÉM, Vivian Netto Machado. Tráfico de Pessoas: uma análise da Lei 13.344/2016 sob a perspectiva dos direitos humanos. Revista da Defensoria Pública da União, Brasília, n. 11, p. 1-398, jan./dez. 2018. UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Global Report on Trafficking in Persons 2018. United Nations Publication, Ed. 19.IV.2. UNITED NATIONS CHILDREN’S FUND. Mapa-múndi da maioridade penal. Publicado em: <http://www.crianca.mppr.mp.br>. Acesso em: 04 out. 2019. ______________________. Relatório Pobreza na Infância e na Adolescência. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/ media/156/file/Pobreza_na_Infancia_e_na_Adolescencia.pdf>. Acesso em: 04 out. 2019. CAPÍTULO 16 INFÂNCIAS ROUBADAS E TRÁFICO RECEPCIONADO: UMA ANÁLISE DO TRABALHO DOMÉSTICO INFANTIL NO BRASIL SOB A PERSPECTIVA DO TRÁFICO INTERNO DE PESSOAS GABRIEL FERREIRA DA SILVA Graduando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Discente pesquisador do projeto de pesquisa “Pessoas Invisíveis”. Tudo em vorta é só beleza Sol de Abril e a mata em frô Mas Assum Preto, cego dos óio Num vendo a luz, ai, canta de dor Mas Assum Preto, cego dos óio Num vendo a luz, ai, canta de dor Tarvez por ignorança Ou mardade das pió Furaro os óio do Assum Preto Pra ele assim, ai, cantá mió (Luiz de Gonzaga) INTRODUÇÃO O trecho da música de Luiz de Gonzaga em epígrafe foi selecionado cuidadosamente para nos servirmos de uma ilustração sensível e, ao mesmo tempo, poética daquilo que é um dano irreparável. Quantas infâncias, assim como a visão de um Assum Preto foram retiradas de maneira abrupta e cruel de meninas e meninos brasileiros? Quantas cegueiras impetradas? Quantas brincadeiras e sonhos roubados? Quantas flores deixaram de ser apreciadas? Quantos alvoreceres de abril ofuscados? Os motivos são tantos, desde da ignorância blindada por um dilema moral e alimentada por um cenário econômico, até à pura maldade da pior. Todas essas violações cruéis e irreparáveis podem ter seu propósito ligado diretamente com o trabalho doméstico infantil. O trabalho doméstico brasileiro possui suas raízes enxertadas na escravidão, que no passado não se estendia apenas aos adultos, mas também aos filhos de escravos. Quem adquiria uma mão de obra escrava não estava apenas tomando posse de sua liberdade, mas de tudo aquilo que dizia respeito e estava à volta do outro, isso incluía os filhos e filhas de escravos. Mesmo após as medidas abolicionistas, o país ainda enfrentou uma realidade de servidão e senhoril intensa, haja vista que a fumaça daquilo que era a escravidão afeta o contexto sociocultural do país até a atualidade. Maria Zuíla Lima Dutra ao escrever a respeito da inviolabilidade do lar e o trabalho doméstico infantil1 utilizou-se da obra de Gilberto Freyre para demonstrar o contexto histórico de escravidão e servidão que influenciou a problemática que estamos abordando, chegando as seguintes contribuições: Em Casa-Grande, Freyre revela a clara distinção existente entre as duas classes sociais existentes à época: a dos senhores e a dos escravos. Entre os escravos encontravamse as trabalhadoras domésticas que preparavam os alimentos, lavavam e passavam roupa, limpavam a CasaGrande e os quintais, amamentavam e cuidavam dos filhos dos seus senhores. Essas criaturas não recebiam qualquer pagamento pelos serviços que executavam, além do que eram vistas como seres inferiores que moravam nas senzalas. Essa situação era perpetuada nas suas filhas, que, desde a infância, também eram exploradas em idênticas tarefas. Sendo assim, o trabalho infantil não é um fenômeno novo, também não é uma prática exclusivamente brasileira, está enraizada na sociedade2. O que é ainda mais assustador é que o fato acaba modernizando-se e adequandose a uma nova sociedade, a uma nova realidade, mas permanecendo covardemente cruel e ameaçador à infância e o desenvolvimento adequado do ser humano. 1. 2. DUTRA, Maria Zuíla Lima. A inviolabilidade do lar e o trabalho infantil doméstico. In: Revista TST, Brasília, vol. 81, jan/mar 2015, p.150 . SILVA, Sofia Vilela de Moraes e Silva. Trabalho Infantil: Aspectos sociais e legais. Maceió: In: Olhares Plurais, Vol. 1, 2009. p.26. 1 O TRABALHO INFANTIL NO BRASIL As formas e modalidades com que o trabalho infantil se mostra na sociedade acaba por engendrar dois principais efeitos, um deles é a invisibilidade e o outro a normalização. Invisibilidade quando a sociedade entende que aquilo é prejudicial e degradante à criança, mas o cotidiano e outros fatores externos acabam trazendo uma “cortina de fumaça”, impossibilitando a análise daquele problema social. A normalização ocorre quando a prática é tão comum e rotineira que acaba sendo observada, mas não é absorvida como um problema social, um ilícito civil ou criminal. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) o Brasil chegou a marca de 2,3 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos exercendo algum tipo de atividade laboral3. Por sua vez, o Observatório Digital do Trabalho Escravo, em cooperação com o Ministério Público do Trabalho e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) obtiveram dados do resgate de quase 1000 crianças que estavam de alguma forma exercendo trabalho em condições análogas à escravidão, entre os anos de 2003 e 20184. É importante destacar que o trabalho infantil se dissipa em diversas faces e modalidades, atinge ambos os gêneros e assume as mais diversas formas. É importante salientar que a busca pelo direito e garantias do trabalhador foi um dos primeiros textos a mencionar de alguma forma a proteção da criança e do adolescente, mesmo antes da Declaração dos Direitos das Crianças de 1959, ou até mesmo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, as convenções da Organização Internacional do Trabalho em 1919 começavam a pautar proteções mínimas em relação a crianças e exposição ao trabalho precoce5. Percebe-se com isso, o quão importante é a blindagem da criança a uma exposição temporal e tipicamente inapropriada ao trabalho. Diante deste cenário o Tribunal Superior do Trabalho classifica as espécies de Trabalho Infantil em cinco classes6, sendo elas o trabalho doméstico, do campo, nas ruas, sexual e o perigoso. Em todos os estados da federação é possível enxergar casos de trabalho doméstico infantil, uns 3. 4. 5. 6. Disponível em: https://www.ibge.gov.br. Acesso em 13 de nov. 2019. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2019-06/mprecebe-43-mil-denuncias-de-trabalho-infantil-por-ano. Acesso em 15 de nov. 2019 ROSSATO, Luciano Alves; LEPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da criança e do adolescente comentado: Lei 8.069/90 comentada artigo por artigo. 10º edição. São Paulo: Editora Saraiva. 2018. Disponível em: http://www.tst.jus.br/web/combatetrabalhoinfantil/trabalho-infantildomestico. Acesso em 09 de nov. 2019 com mais intensidade que outros, na maioria dos casos impedindo que a criança frequente a escola, desenvolva brincadeiras importantes para o seu desenvolvimento psicológico e motor. Entretanto, o quadro da violação se agrava ainda mais quando a criança é retirada do seio do seu lar e da tutela de sua família natural, aliciada por um terceiro com a finalidade de ser explorada no labor de um atividade que viola seus direitos e garantias fundamentais. Essa retirada pode ser não autorizada, quando temos, por exemplo, a figura de um sequestrador, ou pode ser autorizada por meio de uma adoção ilegal motivada por inúmeros fatores: a gravidez indesejada, a condição econômica de risco, entre outros. O que não é translúcido é a delimitação dessa prática, quem são as figuras que participam do ato e qual é a função e grau de responsabilidade de cada uma delas durante todo o processo, sejam os progenitores, tutores ou responsáveis. 2 O TRÁFICO DE CRIANÇAS E SUAS PECULIARIDADES COM TEMA ABORDADO O objetivo do presente artigo é analisar o trabalho doméstico infantil por meio de uma ótica voltada ao tráfico de pessoas. O trabalho infantil se dissipa em diversas faces e modalidades, atinge ambos os gêneros e assume as mais diversas formas. O decreto n.º 5.017 de março de 2004 promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças define a expressão “tráfico de pessoas” como sendo os seguintes atos: A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos; Os cenários destacados neste ensaio são protagonizados em sua maioria por crianças de origem humilde e em estado de vulnerabilidade econômica e social, uma realidade enraizada na cultura brasileira e ao mesmo tempo ignorada. A adoção ilegal é o ponto original deste panorama aqui abordado. Para exemplificar quais são os aspectos da adoção irregular que estamos abordando, será de grande valia recordarmos a obra de Rachel de Queiros, “O Quinze”, que retrata uma dessas adoções7. A necessidade de sobrevivência, a caridade tomando espaço em meio a falta de assistência social. No trecho do clássico nordestino Rachel nos leva a uma cena em que Cordulina expõe ao marido a proposta da madrinha de um de seus filhos de “pegar para criar” o afilhado Duquinha (Manoel), é possível contextualizar o leitor a respeito de qual cenário de adoção precisamos vislumbrar, um cenário motivado por alguma circunstância externa que leva a uma adoção. No romance de Rachel de Queiroz o combustível que movimenta a ideia da adoção de “Duquinha” é a fome, a mortalidade infantil e o medo: [...] Mais tarde, já deitados, Cordulina lhe falou, meio hesitante: — Chico, a comadre Concencição, hoje, cansou de me pedir o Duquinha. Anda com um destino de criar uma criança. E se é de ficar com qualquer um, arranjado por aí, mais vale ficar com este, que é afilhado... — E o que é que você disse? — Que por mim não tinha dúvida. Dependia do pai... —E tu não tem pena de dar teus filhos, que nem gato ou cachorro? A mulher se justificou amargamente: — Que é que se é de fazer? O menino cada dia é mais doente... A madrinha quer carregar pra tratar, botar ele bom, fazer dele gente... Se nós pegamos nesta besteira de não dar o mais que se arranja é ver morrer, como o outro... O cenário de adoção do livro “O quinze” demonstra muito bem uma realidade em especial nordestina ao retratar a seca do ano de 1915. O “dar o filho” que é relatado no livro é o que vamos chamar de dilema Joquebediano8, quando o estado de extrema necessidade faz com que a decisão de ficar com o filho seja mais ariscada do que entrega-lo. Todo o cenário de extrema necessidade revela o seguinte questionamento: A promessa de um futuro melhor, de educação, vestimenta, alimentação, ou simplesmente viver, afasta totalmente dos responsáveis pela criança a responsabilidade civil e criminal? 7. 8. QUEIROS, Rachel. O quinze. Ed. 105. São Paulo: Editora José Olympio. 2016. Termo inspirado em Joquebede e a entrega de Moises nas águas do rio Nilo a fim de salvar o menino do decreto de morte do Faraó, conforme texto bíblico disponível no livro de Êxodo 2:3. Vale ressaltar que o simples fato de entregar o filho para adoção não é tipificado como crime, desde que o processo seja acompanhado por autoridade competente que ficará responsável pelos tramites da adoção: A Lei 13.509/2017 introduziu o artigo 19-A no ECA, o qual determina que as gestantes ou mães que demonstrem interesse em entregar seu filho para adoção deverão ser encaminhadas para a Justiça da Infância e Juventude, órgão que deverá realizar o processo para busca de família extensa (termo utilizado pela Justiça para designar parentes ou familiares próximos). Se não for encontrado parente apto a receber a guarda, a autoridade judiciária competente determinará sua colocação sob guarda provisória de quem estiver apto a adotá-la ou em entidade que desenvolva programa de acolhimento familiar ou institucional.9 A adoção é um instituto jurídico tratado em nossa legislação com extremada cautela e rigidez, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) dispõe e regula o tema. Durante a exposição da norma reguladora é possível notar que o legislador se ateve a posicionar limites, requisitos e critérios balizadores para se adotar no brasil. O ECA define que a adoção deve ser um ato irrevogável, personalíssimo e excepcional, além de só ser constituído por meio de uma decisão judicial que pois fim a fase cognitiva processual, ou seja, uma sentença, que implica em devido processo de adoção. Retirar a criança de forma ilegal do seio de seu lar já fere um dos princípios fundamentais da adoção, o artigo 19 do ECA traz a ideia de que a retirada da criança do lar natural deve ser excepcional, a ideia da família substituta a partir de 2016 com a redação dada pela Lei nº 13.257/2016 (Marco Legal da Primeira Infância), reforça ainda mais esse princípio, impossibilitando a retirada injustificada de crianças que convivam com dependentes químicos. Separar a criança do seio do seu lar, com a autorização dos seus progenitores, tutores ou responsáveis, com o a finalidade de adquirir mão de obra, além de crueldade sem tamanho, pode nos levar ao questionamento sobre a existência de uma modalidade de tráfico interno de pessoas, qual é o grau de participação e responsabilidade da família natural, dos aliciadores, da “família substituta” e etc. O conceito de tráfico de pessoas definido pela Organização das Nações Unidas (ONU) é dado através do Protocolo de Palermo (2003)10. Tráfico 9. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/ direito-facil/edicao-semanal/entrega-voluntaria-de-adocao. Acesso em 05 de dez. 2019 10. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/assuntos-fundiarios-trabalhoescravo-e-trafico-de-pessoas/trafico-de-pessoas/. Acesso em: 05 de dez. 2019 de pessoas nesta corrente é conceituado como sendo “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo-se à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração”. O Código Penal ao tratar sobre tráfico de pessoas prevê em seu artigo 149-A, pena de 4 a 8 anos de reclusão, e multa para aquele que agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: Remoção de orgão, tecidos ou partes do corpo, submissão a trabalho em condições análogas à escravidão, submissão a servidão, adoção ilegal ou exploração ilegal. O inciso II do parágrafo 1º do mesmo artigo majora a pena em um terço quando a prática é cometida contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência. É importante frisar que a existência da Lei n. 13.344/16 que enquadrou no rol dos crimes de tráfico de pessoas a prática da adoção ilegal. O projeto de lei foi iniciado em 2012 fruto de uma CPI que investigava uma denúncia de adoção de um grupo de irmãos composto por cinco crianças de uma família baiana do município de Monte Santo (54. 884 habitantes). A denúncia relatava que as crianças haviam sido retiradas dos seus pais de maneira ilegal e enviadas para São Paulo. Na ocasião, o promotor de Justiça Luciano Taques Ghignone preponderou o seguinte: O promotor de Justiça da Bahia Luciano Taques Ghignone disse que o ECA já considera crime a adoção feita à margem da lei. Quem subtrai criança do poder dos pais para destinálo à adoção está sujeito a pena de dois a seis anos de prisão. Já quem promete ou entrega o filho para outra pessoa mediante recompensa, financeira ou não, pode ficar de um a quatro anos preso. O promotor esclareceu ainda que o problema não é só a relação comercial que se estabelece em torno da criança. “O que é recriminável é a coisificação da vida humana, é fazer com que crianças sejam tratadas como objeto e que a dignidade do núcleo familiar seja abalada”, protestou.11 Podemos observar que havia neste contexto, antes de 2016, uma necessidade da inclusão da adoção ilegal no rol dos crimes considerados como tráfico de pessoas. A lei alterou o artigo 149-A, acrescentando o 11. Disponível em: https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/adocao/realidadebrasileira-sobre-adocao/adocao-ilegal-pode-ser-forma-de-trafico-de-pessoas.aspx. Acesso em: nov. 2019 inciso IV “Adoção Ilegal”. Hoje não restam dúvidas, adoção ilegal é crime. O aliciamento visando uma finalidade laboral análoga à escravidão, por sua vez, tem sua prática definida no inciso II do artigo 149-A do Código Penal. Acerca do artigo 239 do ECA, cabe acrescentar Se a finalidade que move o agente é a remoção de orgão, tecidos ou partes do corpo do menor, submete-lo a trabalho em condições análogas à de escravo, submete-lo a qualquer tipo de servidão, adoção ilegal ou exploração sexual, configura crime do art. 149-A do Código Penal (Tráfico de seres humanos), punido com reclusão, de 4 a 8 anos, pena esta majorada de 1/3 até ½ em face da transnacional idade do delito12. Vale advertir que tráfico, principalmente quando associado as modalidades mais conhecidas pela sociedade, drogas e armas, remete em uma análise primeira a uma movimentação, repetição, modal, modus operandi, frequência, alojamento, esconderijo, hierarquia, organização e entre outras ilustrações já cristalizadas pela sociedade. Entretanto, estamos falando de uma espécie de tráfico de pessoas que pode não apresentar o conceito de tráfico em sua literalidade e aparência integral, ou seja, não necessariamente a adoção ilegal de uma criança com o intuito de desenvolver uma relação de servidão vai apresentar o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força, da coação, do rapto, da fraude, do engano, do abuso de autoridade ou a situação de vulnerabilidade. Muito bem estipulou o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas ao deixar claro em seu artigo 3º que mesmo sem a existência de força, ameaça, coação, abuso de autoridade e outros meios já citados acima, o simples recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados tráfico de pessoas. O protocolo foi recepcionado pelo ordenamento brasileiro com o Decreto n.º 5.017 de 12 de março de 2004. O protocolo recepcionado em 2004 vai de acordo com as novas diretrizes e pilares protetivos básicos estipulados após a Constituição de 1988. Também conhecida como Constituição Cidadã, a nova Carta Magna inovou e reinventou o modo de pensar a criança e o adolescente, a criança que era considerada um objeto e quando em vulnerabilidade social tratada como problema, era referida com o termo “menor em situação irregular”, 12. ROSSATO, Luciano Alves; LEPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da criança e do adolescente comentado: Lei 8.069/90 comentada artigo por artigo. 10º edição. São Paulo: Editora Saraiva. 2018. este termo foi substituído por “sujeito de direito em desenvolvimento” após a promulgação do novo texto constitucional. 13 O artigo 227 da Constituição Federal inaugura no Brasil uma nova corrente, a doutrina da proteção integral, esse novo raciocínio estipula um paradigma de proteção da criança em tudo que lhe diz respeito, em todas as suas nuances. Ao descrever que a proteção da criança é um dever da família mas também da sociedade e do Estado, o legislador constituinte fomentou outro princípio, a solidariedade existente na proteção da criança e do adolescente, uma espécie de dever de cooperação da sociedade.14 Justamente por esses paradigmas recepcionados pela Constituição, é totalmente inconcebível falar de um mal menor necessário, utilizar a adoção ilegal de uma criança e a sua mão de obra doméstica sob o argumento de diminuir sua vulnerabilidade perante o estado quo mais deficitário é incompatível com o princípio da proteção integral cabe a todos da sociedade de modo solidário e cooperativo intervir neste contexto. 3 O SENTIMENTO DE LEGALIDADE, CARIDADE E SOLIDARIEDADE PERMEANDO UM CRIME. O BERÇO DA BANALIDADE DO MAL A existência de normas reguladoras, tratados, convenções e protocolos a respeito do tema, em uma análise primária pode dar a entender que o assunto abordado é pacificado na sociedade, entretanto, a adoção ilegal e a própria mão de obra infantil pode não ser considerada como sendo atributos de um crime, atributos de um fato ilícito, passível de punição e de necessária reestruturação. O que vamos abordar a diante é o silencio da sociedade em meio ao mal banalizado, um crime utilizando-se da solidariedade e da vulnerabilidade para se intitular misericórdia. A estrutura maquiada daquilo que de outra forma talvez traria o colapso social. Toda via, feita essa considerações, podemos dizer que não existe em nosso recorte temático, de maneira clara, o crime previsto no artigo 239 do ECA, “Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de 13. ANDREUCCI, Ana Claudia P. Torezan; PINTO, Felipe Chiarello de Souza; JUNQUEIRA, Michelle Asato; PINTO. O papel inspirador da Declaração Universal dos Direitos Humanos na construção histórica dos direitos de crianças e adolescentes. In ARRUDA; Eloisa de Souza; PEREIRA, Flávio de Leão. 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. São Paulo: Imprensa Oficial do Governo do Estado de São Paulo, 2018, p. 159. 14. SMANIO, Gianpaolo Poggio. A concretização da doutrina da proteção integral das crianças e dos adolescentes por meio de políticas públicas. In CARACIOLA, Andrea Boari; ANDREUCCI, Ana Claudia Pompeu Torezan; FREITAS, Aline da Silva. Estatuto da Criança e do Adolescente, 20 anos. São Paulo: LTr, 2010, p. 61 criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro”, note que a conduta que o código propõe punição é o verbo promover15 e auxiliar a efetivação de ato destinado a enviar criança ou adolescente para o exterior sem as formalidades legais necessárias previstas no ECA ou com o intuito de obter lucro.16 Nosso recorte é local, trazendo à tona um problema que acontece em território brasileiro, nasce, se desenvolve e morre em território nacional, muitas das vezes silenciado e normalizado pela sociedade. Uma espécie de tráfico interno, mas que ainda continua albergado pelo código penal no que diz respeito a adoção ilegal e submissão a trabalho análogo a escravidão. Enfrentar um problema que nasce, se desenvolve e morre em um mesmo território, aparentemente pode parecer de mais fácil resolução do que outras demandas que tomam proporções internacionais. Entretanto, enfrentar a prática de adoções ilegais com o objetivo de usufruir da mão de obra de crianças e adolescentes brasileiras, mesmo que dentro das nossas fronteiras, nos parece ser uma tarefa desafiadora tanto quanto as questões de tráfico internacional. Um dilema moral frequente e perigoso, que aumenta as barreiras para a formação de uma sociedade blindada à esse tipo de abuso ao adolescente e a criança é a prática da irregularidade da adoção, ou até mesmo do fato criminoso serem recepcionado pela sociedade como normal. O fenômeno da normalização que citamos acima é um movimento perigoso, principalmente para o direito, o que fazer em uma dogmática formada pelo fato, valor e norma17 se o fato criminoso está sendo absorvido pela sociedade como normal, ou no mínimo como melhor alternativa possível naquele momento para aquela criança? Hannah Arendt em seu profundo estudo a respeito do julgamento de Otto Adolf Eichmann18 construiu um conceito que pode ser utilizado para explicar a normalização do problema na sociedade, equilibrando as proporções e adequando-se ao recorte abordado, o fenômeno definido por Hannah Arendt como “banalidade do mal” pode ser um dos motores para essa invisibilização de tantas crianças subordinadas a esse tipo de prática. 15. ROSSATO, Luciano Alves; LEPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da criança e do adolescente comentado: Lei 8.069/90 comentada artigo por artigo. 10º edição. São Paulo: Editora Saraiva. 2018. p. 617 16. A existência das formalidades legais previstas nos artigos 165 a 170 do Estatuto da Criança e do Adolescente durante o tramite do envio de criança ao exterior não afasta a tipicidade do crime caso haja a finalidade da obtenção de lucro. 17. REALE, Miguel. Teoria Tridimensional Do Direito. 5 ª ed. São Paulo: Saraiva. 1998, p. 67 18. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. Companhia da Letras. 2018 Arendt chocou-se ao encontrar em um homem acusado de crimes terríveis uma mediocridade assustadora, Eichmann era um homem comum, em busca de um sucesso profissional, nem que para isso tivesse que absorver como moral aquilo que até então era amoral. A autora vê a banalidade do mal sendo construída através da dissipação do pensar, da apropriação daquilo que o ser humano tem de mais importante, a sua capacidade de julgamento moral. Discursos como: “É melhor estar trabalhando no farol do que roubando.”, “É melhor estar naquela casa trabalhado do que passando fome”, “Pelo menos aprende desde cedo o valor do trabalho”, e entre outras declarações que em nada ajudam a fomentar uma sociedade mais preparada para proteger e promover crianças e adolescentes acabam criando obstáculos para a interrupção da prática do ato ilícito. Outro resultado prejudicial dessas repetições é que elas muita das vezes acabam se permeando no contexto social, ao ponto de trazer uma ideia distinta da realidade da figura do aliciador traficante que mantém uma criança ou um adolescente nessas condições de “filho criado” como um herói bem feitor. Maria Zuíla Lima Dutra muito bem esclarece que a exploração não pode de maneira alguma ser confundida com solidariedade, veja: Na visão de muitas pessoas com as quais temos abordado o assunto, o trabalho doméstico de crianças e adolescentes, na casa de terceiros, é um grande exemplo de solidariedade. Na verdade, trata-se de um ato de absoluta exploração e de afronta aos direitos humanos, pois as pequenas criaturas submetidas a esse tipo de trabalho dificilmente recebem condições para se desenvolverem plenamente (física, moral, intelectual e emocionalmente), por serem privadas de acesso à escola ou por não terem tempo para frequentála com regularidade e, mais grave ainda, por ficarem longe do ambiente familiar. [...] Na linha da autora, a exploração de uma criança no labor de uma atividade doméstica jamais poderia ser confundida com solidariedade ou caridade. Criar uma criança com o intuito de apenas desenvolve-la para estar apta ao trabalho desde a mais tenra idade pode expô-la a riscos presentes e futuros, mentais e físicos. No mesmo raciocínio adverte a autora: Estudo efetivado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), demonstrou que além dos riscos a que estão submetidas, essas trabalhadoras também são vítimas de maus tratos psicológicos e físicos, alimentação inferior à da família para quem prestam serviços, além da possibilidade de convivência em meio ambiente que favorece os acidentes de trabalho (manuseio de facas, fogão, ferro elétrico, substâncias insalubres ou perigosas, etc.). Os danos causados à criança transcendem aquilo que pode ser reparado financeiramente, a normalização da prática acaba por viabilizar o tráfico e escravidão de crianças e adolescentes, na maioria dos cenários punindo-os com um futuro incerto, sem educação básica, com desgastes físicos e poucos laços de afeto. Danos que são levados até a vida adulta e que poderiam ser dirimidos pelo simples ato de enxergar na prática um crime, de encontrar na figura do aliciador um traficante, de vislumbrar em uma relação de trabalho e exploração o abuso e a tipicidade tão denunciados pelos protocolos e convenções. O tráfico de crianças com a finalidade de trabalho em serviços domésticos toma uma proporção ao nosso ver preocupante. Não cega apenas os olhos do Assum Preto, não rouba apenas a infância do pequeno ser, mas também espalha uma cegueira moral na sociedade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Levando em consideração todos os contextos e aspectos analisados, vislumbramos um fato na sociedade brasileira que se estende pela história de nosso país, o tráfico de pessoas, uma prática tão antiga e enxertada nas raízes mais profundas da história da humanidade, em alguns tempos e lugares considerada crime, em outros um incomodo ou apenas um ato rotineiro. O poder de modernização do tráfico vai além das técnicas de comunicação, transporte, recrutamento e transferência, a modernização que citamos é uma camuflagem muito bem disfarçada dentro da contemporaneidade, trazendo a manutenção da escravidão sem a senzala, o tráfico de pessoas sem um navio clandestino ou traficantes extremamente temidos, crianças sendo expostas ao trabalho de maneira prematura e irresponsável, mesmo com as chaminés das grandes fabricas desligadas. O trabalho doméstico de crianças reproduz cenários de pobreza, o sentimento de “mal menor necessário” acaba por criar uma escudo que faz com que o aliciador não seja rotulado como o traficante, a blindagem não só gera a impunidade, mas também leva ao esquecimento, leva um grande debate aos níveis pormenores e traz a um grupo a invisibilidade. Descortinamos uma doença moral silenciosa, a normalização e a banalização do mal a respeito de um tráfico que não carrega consigo todos os estereótipos, mas permanece firme e letal. A adoção sendo objeto de disfarce de um crime que permanece na penumbra, o palco sendo construído para apresentar um aliciador fantasiado de herói, o próprio traficante com figurino de mocinho. REFERÊNCIAS ANDREUCCI, Ana Claudia P. Torezan; PINTO, Felipe Chiarello de Souza; JUNQUEIRA, Michelle Asato; PINTO. O papel inspirador da Declaração Universal dos Direitos Humanos na construção histórica dos direitos de crianças e adolescentes. In ARRUDA; Eloisa de Souza; PEREIRA, Flávio de Leão. 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. São Paulo: Imprensa Oficial do Governo do Estado de São Paulo. 2018. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. Companhia da Letras. DUTRA, Maria Zuíla Lima. A inviolabilidade do lar e o trabalho infantil doméstico. In Revista TST, Brasília, vol. 81, jan/mar. 2015. QUEIROZ, Rachel. O quinze. Ed. 105. São Paulo: Editora José Olympio. 2016. REALE, Miguel. Teoria Tridimensional Do Direito. 5 ª ed. São Paulo: Saraiva. 1998. ROSSATO, Luciano Alves; LEPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da criança e do adolescente comentado: Lei 8.069/90 comentada artigo por artigo. 10º edição. São Paulo: Editora Saraiva. 2018. SILVA, Sofia Vilela de Moraes e Silva. Trabalho Infantil: Aspectos sociais e legais. Maceió: in Olhares Plurais. Vol. 1. 2009. CAPÍTULO 17 QUEM TEM MEDO DO LOBO MAU? A EXPLORAÇÃO DA VULNERABILIDADE DE RELAÇÕES FAMILIARES E O PROCESSO DE ADOÇÃO NO BRASIL COMO MARGEM PARA O TRÁFICO DE CRIANÇAS ALICIA BAPTISTA RODRIGUES Graduanda em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro do Grupo “Pessoas Invisíveis...” da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. INTRODUÇÃO O que une a vítima e o criminoso, em termos de tráfico de pessoas? A invisibilidade. O elo é formado de tal maneira que se tornam ocultas estas três peças chave para a consumação e prolongação deste crime. Por mais que permeie como temática em filmes, telenovelas, seriados, o tráfico de pessoas parece tão cinematográfico e irreal aos olhos, que se torna praticamente fictício, que não poderia acontecer na vida real. Mas acontece, todos os dias. Sob uma perspectiva global, apenas no ano de 2016 mais de 24.000 pessoas foram detectadas em situações de tráfico, pelo Relatório Global de Tráfico de Pessoas elaborado pela UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes) em 20181, demonstrando que as mulheres configuram 49% deste índice, sendo o mais alto, seguido de meninas (crianças do sexo feminino), em 23% e que, na América Latina, o índice 1. UNODC. Global Report on Trafficking in Persons 2018. Disponível em: <https://www.unodc. org/documents/data-and-analysis/glotip/2018/GLOTiP_2018_BOOK_web_small.pdf>. Acesso em: 03 jul. 2019. de mulheres vítimas de tráfico configura 51%, seguido pelo segundo maior índice de 31%, que são de meninas, mais uma vez. Ainda analisando este relatório, se torna lógico que os dados supramencionados exteriorizam a amplitude deste sistema criminoso, que envolve todos os continentes do globo em números exorbitantes e que busca, majoritariamente vítimas do sexo feminino. A vulnerabilidade das vítimas, que pode decorrer muitas vezes de conflitos armados em seus países, ou de uma classe social desprovida de recursos, principalmente voltados ao acesso à informação, por exemplo; no que tange às crianças essa vulnerabilidade, está diretamente ligada à sua idade e formação de personalidade ainda inconclusa. Desta forma, tais vulnerabilidades abusadas, combinadas à persuasão do criminoso e a negligência do Estado frente à esta calamidade, perpetuam a ocorrência do crime, tornando-o recorrente e praticamente impossível de se punir. 1 PANORAMA DO TRÁFICO DE PESSOAS: A RELAÇÃO ENTRE TRÁFICO DE CRIANÇAS E A ADOÇÃO Quando se inicia um estudo sobre tráfico de pessoas, no geral, é importante saber que este se perpetua em esfera internacional, nacional e estadual e será destinado a finalidades específicas e, quanto a estas finalidades, mesmo configurando uma pequena parcela, cerca de 7% das destinações diversas à crianças que são vítimas de tráfico, fugindo do “padrão convencional esperado”, segundo o Relatório Global supramencionado. Este fato social se faz extremamente relevante, ao passo que pelo senso comum, tráfico de pessoas estaria ligado exclusivamente à exploração sexual e trabalho escravo, não sendo uma associação feita de maneira intuitiva, entre adoção por meios ilegais e o tráfico de pessoas. Desta forma, faz-se um recorte a respeito das diferentes modalidades do tráfico, juntamente ao esquema persuasivo utilizado pela rede, em paralelo com o descrito em lei para combater tal organização criminosa. 1.1 O ESQUEMA PERSUASIVO DO TRÁFICO: AS DIFERENTES MODALIDADES E O “MODUS OPERANDI2” Reitera-se que, o tráfico de pessoas se dá mediante diferentes finalidades, sendo as mais comuns para exploração sexual assim como pornografia infantil e prostituição, trabalho escravo, servidão doméstica, 2. Modo de operar, de proceder. TRUBILHANO, Fabio. HENRIQUES, Antônio. Linguagem Jurídica e Argumentação: Teoria e Prática. São Paulo: Atlas, 2017. tráfico de órgãos e adoção ilegal. Pode-se dizer também que o perfil da vítima pode estar completamente ligado à finalidade buscada pelo traficante, isso se faz relevante para um aspecto primário ao passo que se justifica o mapeamento acerca da vítima, da finalidade e do crime, para criação e manutenção das redes de combate. O agir do criminoso pode ocorrer de várias formas, quando violentas, as mais comuns se dão por meio de sequestros, subtração e, se tratando principalmente de bebês, o rapto, atividade extremamente comum no Brasil; mesmo aparentando ocorrer apenas em telenovelas, sites de notícias publicam corriqueiramente sobre novos casos de bebês raptados no Brasil3. Contudo, o caráter aliciador presente nos criminosos pode ser o “modus operandi” mais intrigante e interessante para compreensão do funcionamento do crime em suas fases executórias, o aliciador pode desde convencer uma mãe a doar seu filho, convencendo-a de que com ela não teria um futuro economicamente viável, até convencer pais desesperados a adotarem crianças por meios “mais fáceis”. O trâmite se demonstra ainda mais chocante quando se percebe que, na maioria dos casos, os aliciadores fazem parte de seu convívio social4 de alguma maneira e que pode persuadilo perversamente por meio da utilização de um laço afetivo previamente estabelecido, mesmo que singelo. Ainda, os aliciadores não se enquadram em fenótipos ou classes sociais específicas, são praticamente indetectáveis, invisíveis; afinal quem desconfiaria de um conhecido tão solícito e generoso? Ora, quando se trata de um crime tão violento, é praticamente automática a associação à uma necessária coerção e violência, porém este estudo pretende abordar outro aspecto ainda mais invisível acerca do tema. O engano, a fraude, o abuso de vulnerabilidade, todos estes “atributos” utilizados pelos aliciadores disfarçados de altruísmo, servem de instrumento persuasivo perante os dois pontos da cadeia, o remetente – a criança ou os pais/familiares aliciados para iniciar o tráfico e o destinatário – o que receberá a criança traficada. 3. 4. SILVESTRE, Edney. RAMIRO, Silvana. Quase 500 casos de sequestro de crianças estão registrados no Brasil. Bom Dia Brasil – G1, Rio de Janeiro, 10 jul. 2012. <http://g1.globo.com/bom-diabrasil/noticia/2012/07/quase-500-casos-de-sequestro-de-criancas-estao-registrados-nobrasil.html>. Acesso em: 17 set. 2019. Informações fornecidas pelo Conselho Nacional de Justiça ao pautar sobre Tráfico de Pessoas. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/assuntos-fundiarios-trabalhoescravo-e-trafico-de-pessoas/trafico-de-pessoas/>. Acesso em: 15 jun. 2019. 1.2 ANÁLISE DAS LEGISLAÇÕES E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O COMBATE AO TRÁFICO DE PESSOAS NO BRASIL E A ADOÇÃO ILEGAL O Protocolo de Palermo (Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças), aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) no ano de 2000, se faz a principal ferramenta voltada ao combate ao tráfico de pessoas no que se diz respeito a aspectos globais, que aborda um enfoque principalmente voltado às mulheres e crianças, e o Brasil por sua vez, como Estado-membro da ONU, ratificou a Convenção apenas 4 anos depois, em 12 de Março de 20045, por meio do Decreto 5.017/20046 que institucionalizou o tráfico de pessoas, tendo assim peso de norma supralegal dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Logo em 2006, foi instaurado o Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006, mais conhecido como Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas7, o qual estabelece em seu artigo 2º: Art. 2º Para os efeitos desta Política, adota-se a expressão “tráfico de pessoas” conforme o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, que a define como o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão 5. 6. 7. VIEIRA, Vera. CHARF, Clara. Percepção da Sociedade sobre o Tráfico de Mulheres. São Paulo. 2016. P. 111. Disponível em: <http://www.mulherespaz.org.br/wp-content/uploads/LIVROCOMPLETO.pdf> Acesso em: 07 out. 2019. BRASIL. Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004. Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5017.htm>. Acesso em: 03 jul. 2019. BRASIL. Decreto de nº 5.948 de 26 de outubro de 2006. Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e institui Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar proposta do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - PNETP. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5948.htm>. Acesso em: 03 jul. 2019. ou a remoção de órgãos. (grifos nossos) Fica claro que nos pontos destacados fora reconhecido o cunho pluridimensional pertencente ao tráfico de pessoas, assim como seus aspectos, para a elaboração desta Política Pública na tentativa de implementá-la de maneira eficaz e realista. Porém, não fora tipificado junto ao rol a configuração do tráfico para fins de adoção, por mais que acordado em caráter global que o tráfico se dá para além destas finalidades descritas, além disso, no ano de 1998 criou-se um Decreto de nº 2.740, mais conhecido como a Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores8 que já versava sobre o tráfico em paralelo à adoção ilegal. Somente então, no ano de 2016, foi “inserida” a adoção ilegal ao rol das finalidades do tráfico de pessoas, por meio da edição da Lei 13.344/16 onde inseriu a seguinte redação ao Código Penal: Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: [...] IV - adoção ilegal; [...] Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. De forma geral, após a elaboração de 3 Planos nacionais voltados ao enfrentamento de tráfico de pessoas no Brasil, assim como a criação de canais de assistência como o Disque 100 e o Disque 180, tais políticas ainda não se mostram tão eficazes frente aos embates cotidianos. Vejamos, tais projetos muitas vezes passam por uma falta de divulgação visto que a informação não chega à grande parcela da população, sendo que esta, coincidentemente ou não, será a parcela mais afetada pelo tráfico. Dá-se o exemplo: suponha que um aliciador tente ludibriar uma mãe de classe social baixa - desprovida de recurso e que não tenha acesso à informação - a doar a sua filha na crença de que assim terá um futuro melhor e que, o aliciador diga que levará a criança para fora do país, ora, se esta mãe não tem conhecimento legal algum, poderá acreditar que está entregando sua filha legalmente, porém, de acordo com o artigo 19-A do Estatuto da Criança e do Adolescente9, a mãe interessada em recorrer à entrega de seu filho 8. 9. BRASIL. Decreto nº 2.740, de 20 de agosto de 1998. Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores, assinada na Cidade do México em 18 de março de 1994. Art. 18 em específico. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2740.htm> Acesso em: 03 jul. 2019. BRASIL. Lei de nº 8.069 de 13 de Julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Especificamente Artigo 19-A. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ l8069.htm>. Acesso em: 04 jul. 2019. para adoção, deverá ser encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude, pode-se concluir também, que não só as Políticas Públicas são falhas em disseminar a informação, mas o próprio texto da lei não se faz acessível. Não obstante, faltam coletas de estatísticas a respeito do tráfico de pessoas, os dados utilizados pelo Brasil em sua maioria advém de projetos internacionais, perpetuando certa corroboração para manter a invisibilidade do tema, além de que, quando se tem dados, estes não se comunicam entre si, o Instituto Médico Legal (IML) não possui comunicação com os Ministérios Públicos, que consequentemente não possuem comunicação com as delegacias, ao ponto que as informações vão se dissipando até se tornarem pó, dimensão esta que o próprio plano sugere, mas que ainda permanecesse inexistente: Anexo. Metas. 2.1. Desenvolver e implementar sistema integrado de informações sobre o tráfico de pessoas e o seu enfrentamento, com base nos sistemas específicos gerenciados por órgãos que registram informações relativas à temática.10 Fazendo uma comparação breve a âmbitos internacionais, nos Estados Unidos, foi criado um sistema denominado de AMBER Alert11, onde, por meio da interação com a lei, mídia e tecnologia, este sistema integrado busca resgatar com segurança crianças desaparecidas, em sua maioria vítimas de tráfico. Um alerta é ativado por meio de televisões, rádios, celulares, ao passo que se avista uma situação de perigo frente à alguma criança, causando uma mobilização comunitária de informações a fim de resgatá-la, segundo dados oficiais desde maio deste ano mais de 957 crianças foram resgatadas em segurança, ou seja, em meio a uma calamidade, foi criada uma força tarefa a fim de combater o crime por meio dos recursos que possuíam em mãos. A negligência do Estado brasileiro frente à solução dos casos de tráfico de pessoas no Brasil, pode ser tranquilamente justificada ao passo que, em suma maioria, os casos de tráfico e/ou desaparecimento de pessoas são solucionados por ONGs, Associações e ou Institutos relativamente independentes da gestão governamental12, e que, em muitos casos, não recebem ajuda alguma vinda do Estado. Entretanto, por mais que de certa forma bem elaboradas em teoria, na prática tais Políticas Públicas se fazem insatisfatórias, visto que as 10. BRASIL. Decreto nº 9.940 de 03 de Julho de 2018. III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/ Decreto/D9440.htm>. Acesso em: 03 jul. 2019. 11. Disponível em: <https://www.amberadvocate.org/about/>. Acesso em: 02 dez. 2019. 12. ONGS como SMM, ONU, Miseror e Arca Nova, Cordaid, AIN criam rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Disponível em: <https://www.dw.com>. Acesso em: 28 nov. 2019. estatísticas não diminuíram ao longo dos anos, além de não associarem em seus textos ou estruturas, os casos não solucionados com hipóteses de desaparecimento13 ou possível morte das vítimas, e ainda há falta de recursos para localizar as redes criminosas. Ainda, em termos de adoção ilegal, se fazem inegavelmente precárias, na medida em que estas são pouco abordadas e divulgadas. 2 PERSPECTIVAS DA LEI DA ADOÇÃO E REGULAÇÃO NO BRASIL A adoção no Brasil está regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente14 entre seus artigos 39 a 52-D, estabelecendo o processo de adoção vigente em solo pátrio. Importante destacar que, na atualidade o desenvolvimento processual da temática está a cargo do ECA, não mais na esfera do Código Civil. Ao analisar o texto da lei, verifica-se que o Princípio do Melhor Interesse da Criança, bem como o Princípio da Proteção Integral, historicamente originários de instrumentos internacionais e inseridos ao texto Constitucional de 1988 (SILVA, 2015), estão intrínsecos a toda esfera adotiva e que, por sua vez, serão resguardados em todas as etapas do processo. Assim, irão nortear o Estatuto por inteiro, combinados com demais princípios que protegem e garantem direitos às crianças e aos adolescentes. O princípio da proteção integral, que norteia a aplicação das normas relativas à criança e adolescente, autoriza, de qualquer modo, a manutenção da situação fática atual, em respeito ao interesse da criança. (TJRS, Agravo de Instrumento nº 70010250868, 8ª Câmara Cível, Rel. Des. Rui Portanova, DJ 17.03.2005 apud JR., A., 2017, p. 48) Contudo, a Lei nº 12.010 de 2009 que trouxe mudanças ao cenário da adoção e da convivência familiar, traz, por exemplo em seu artigo 163 que: “O prazo máximo para conclusão do procedimento será de 120 (cento e vinte) dias.” Não se pode dizer que, este artigo garante redução, por exemplo, da morosidade dos processos de adoção no Brasil, visto que, assim como determinado em lei, a criança só estará apta para sua adoção após destituída de seu poder familiar, esgotadas todas possibilidades de reinserção com a 13. BARROS, Ana Claudia, Com 40 mil crianças desaparecidas por ano, Brasil abandona ferramenta de localização. Portal R7, 25 mai. 2015. Disponível em: <https://noticias.r7.com/cidades/com-40mil-criancas-desaparecidas-por-ano-brasil-abandona-ferramenta-de-localizacao-25052015>. Acesso em: 20 Set, 2019. 14. BRASIL. Lei de nº 8.069 de 13 de Julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Especificamente Subseção IV. Artigos 39 a 52-D. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 04 Jul. 2019. família biológica15, e apenas este procedimento já apresenta uma morosidade imensurável. Partindo do pressuposto de que, concluída a primeira etapa, as crianças estando aptas legalmente para serem adotadas, em paralelo movimenta-se o processo de cadastramento dos casais ou pessoas interessadas na adoção, que consequentemente passarão por mais procedimentos para garantir que suas condições, sejam estas financeiras ou psicológicas, sustentem receber uma criança, competência esta direcionada ao Poder Judiciário por lei16. Finalizados ambos os trâmites, inicia-se o cruzamento de informações entre adotantes e possíveis adotados, visto que, no nosso sistema, os pretendentes cadastrados podem demonstrar suas “preferências” frente aos seus futuros filhos, análise esta a ser abordada posteriormente. Esta morosidade, além de causar diversas consequências a ambos os lados, o tempo se faz praticamente inimigo do adotado, visto que, existe uma resistência comprovada de pretendes que não querem adotar crianças maiores de 5 anos de idade,17 podendo levar até a desistência da adoção, ou destinar casais aos meios ilegítimos e “mais rápidos”. 2.1 LEVANTAMENTO DE DADOS NACIONAIS: ESTATÍSTICAS E O PROCESSO DE ADOÇÃO Para esta análise será utilizado o Relatório de Dados Estatísticos do Cadastro Nacional de Adoção realizado pelo Conselho Nacional de Justiça18. Assim, foram gerados relatórios no dia 02 de dezembro de 2019, a fim de entregar estatísticas mais recentes, desta forma, os relatórios se dividem em: a) Relatório de Pretendentes (contendo seus respectivos dados gerais, unidade da federação a qual pertencem, quais as situações dos pretendentes, se têm doenças e ou deficiência, estejam estes disponíveis ou vinculados, em âmbito nacional); b) Relatório de Pretendentes (contendo seus respectivos dados gerais, unidade da Federação a qual pertencem, quais as situações dos pretendentes, se têm doenças e ou deficiência, estejam estes disponíveis ou vinculados, em âmbito internacional); e c) Relatório de Crianças (contendo dados gerais, sexo, faixa etária, se é gêmeo, a unidade de federação da qual pertence, se possui doenças e deficiências, quais as situações das crianças, sejam disponíveis ou vinculadas). 15. Art. 39, §1º do ECA. 16. Art. 50 do ECA. 17. Relatórios de Dados Estatisticos gerados no Cadastro Nacional de Justiça. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf>. Acesso em: 02 dez. 2019. 18. Ibid. A partir de uma análise primária, já se pode perceber a discrepância entre a quantidade total de pretendentes nacionais, sendo equivalente a 46.092 casais para 9.510 crianças cadastradas, ou seja, o número de pretendes para adoção, equivale a praticamente 7 vezes do total de crianças cadastradas para serem adotadas, um número surpreendentemente exorbitante, considerando que ainda, muitos casais permanecem na fila de espera por anos e o número de crianças adotadas não tende a diminuir19. Não se pode negar que o fato social previamente descrito, também ocorre da seletividade dos pretendentes ao aceitarem certos aspectos da criança, por exemplo, o total de pretendentes que aceitam crianças de raça negra, configuram 26.487, ou seja, pouco mais da metade, sendo que as crianças de raça negra configuram 16.74% do total de crianças cadastradas, isso sem entrar em outros méritos quanto à seleção. No mais, a análise se torna ainda mais profunda ao passo que, o interesse de casais para adoção internacional20 no Brasil, é de um índice baixíssimo, configurando um total de 211 casais, e que, no art. 50, § 10 do ECA, a criança deveria apenas ser destinada à adoção internacional na ausência de pretendentes residentes no país, além de que todos os procedimentos serão feitos através de Autoridade Central21, tornando o processo árduo e ainda burocrático de certa forma, demonstrando assim que o Brasil não se faz um país atrativo em termos de adoção para casais estrangeiros, mas, em contrapartida, muitas crianças brasileiras acabam por serem vítimas de tráfico internacional de pessoas, de modo a concretizar a adoção fora do país. 19. LABOISSIÈRE Paula, Brasil tem 8,7 mil crianças à espera de uma família, diz CNJ. Agência Brasil, 25 mai. 2018. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-05/brasiltem-87-mil-criancas-espera-de-uma-familia-diz-cnj>. Acesso em: 23 jul. 2019. 20. Art. 51: Considera-se adoção internacional aquela na qual o pretendente possui residência habitual em país-parte da Convenção de Haia, de 29 de maio de 1993, Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, promulgada pelo Decreto n o 3.087, de 21 junho de 1999 , e deseja adotar criança em outro país-parte da Convenção. (Redação dada pela Lei nº 13.509, de 2017). BRASIL. Lei de nº 8.069 de 13 de Julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 04 Jul. 2019. 21. De acordo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública: “A Autoridade Central é um conceito consagrado no Direito Internacional e visa a determinar um ponto unificado de contato para a tramitação dos pedidos de cooperação jurídica internacional, com vistas à efetividade e à celeridade desses pedidos.”. Disponível em: < https://www.justica.gov.br/suaprotecao/cooperacao-internacional/autoridade-central-1>. Acesso em 02 Dez, 2019. 3 RELACIONANDO TRÁFICO E ADOÇÃO: CONSEQUÊNCIAS PSICOLÓGICAS E SOCIAIS DO CRIME 3.1 EXPLORAÇÃO DOS TRAFICANTES DA VULNERABILIDADE DE CASAIS QUE SONHAM COM A PARENTALIDADE Como demonstrado pela própria letra da lei, a característica essencial para que esta rede consiga alcançar êxito é a vulnerabilidade, sem esta não se faz possível convencer alguém à tomar medidas ilegais e desesperadas, esta portanto pode derivar de diversas fontes. A “gestação adotiva” é singular, longa e sutil, por não ocorrer mudanças no corpo da mulher, não ser visível aos olhos dos outros, e por isso mais simbólica do que uma gravidez biológica, suscitando, em consequência dessas peculiaridades, mais angústias e fragilidades. Muitas vezes, o percurso dos candidatos por diferentes comarcas é uma forma de enfrentar a ansiedade da espera, que é difícil de ser compreendida pelos parentes e amigos. É importante destacar que essa gestação não tem tempo determinado para se concretizar, podendo durar de meses a anos. (REPPOLD et al., 2005, apud HUBER e SIQUEIRA, 2010). Passam por uma construção internalizada de parentalidade, não obstante a lei brasileira obriga o estágio de convivência22 não só para que a criança se adeque aos adotantes, mas também para que os adotantes se adequem a ideia de serem pais. No mais, é exigido um curso de preparação psicossocial às famílias23, de forma a garantir que a criança está sendo destinada a um lar saudável e estável. Art. 46. A adoção será precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo máximo de 90 (noventa) dias, observadas a idade da criança ou adolescente e as peculiaridades do caso. (Redação dada pela Lei nº 13.509, de 2017) [...] § 2o -A. O prazo máximo estabelecido no caput deste artigo pode ser prorrogado por até igual período, mediante decisão fundamentada da autoridade judiciária. (Incluído 22. BRASIL. Lei de nº 8.069 de 13 de Julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Especificamente Subseção IV. Artigo 46. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 04 Jul. 2019. 23. Art. 50, § 3º: A inscrição de postulantes à adoção será precedida de um período de preparação psicossocial e jurídica, orientado pela equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Ibid. pela Lei nº 13.509, de 2017) § 3o Em caso de adoção por pessoa ou casal residente ou domiciliado fora do País, o estágio de convivência será de, no mínimo, 30 (trinta) dias e, no máximo, 45 (quarenta e cinco) dias, prorrogável por até igual período, uma única vez, mediante decisão fundamentada da autoridade judiciária. (Redação dada pela Lei nº 13.509, de 2017) Não é à toa que no Brasil presenciamos o fenômeno da “adoção à brasileira”, no qual, segundo Araújo Jr. (2017, p. 37), o casal registra a criança como sua filha sem ao menos passar pelo processo de adoção legal, afastando assim o princípio da proteção integral que incide sobre as crianças. Pois bem, nestas condições, não se pode garantir sobre quais circunstâncias esta criança chegou aos seus adotantes, muitas vezes esta criança pode ter sido vítima de tráfico, tendo seus novos pais ciência do fato ou não, e mesmo vulneráveis, não se eximem de colaboração com a rede criminosa. Porém, esta vulnerabilidade latente, quando falamos de casais que almejam a parentalidade, em muitos casos, pode decorrer da infertilidade, seja do homem ou da mulher, ou de fatores sociais, que diante de um anseio precedente, passam por um processo demorado e sensível para atingir o sonho de serem pais. Este anseio e prolongação no processo de adoção, previamente discorrido, seja este nacional ou internacional, traz uma enorme brecha para manutenção do tráfico de crianças, ora, diz o professor Marcelo Neumann24 que o tráfico internacional de crianças além de uma realidade mundial (famílias norte-americanas estavam dispostas a pagar 45 mil dólares para adotar crianças haitianas)25, é um modo encontrado para abrandar o sofrimento de milhares de casais e pessoas que não podem ter filhos, assim como, uma forma perversa de manter o tráfico de órgãos. 3.2 CRIANÇAS: QUAIS AS CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS E PSICOLÓGICAS? Se tratando da natureza do tráfico, por mais que descrito no art. 2, §7º da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que o consentimento da vítima não influi na configuração do crime, parte-se do princípio de que a criança não tem condições para discernir o que está 24. NEUMANN, Marcelo Moreira. O Desaparecimento de Crianças e Adolescentes. 2010. Tese (PósGraduação em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: <https://tede.pucsp.br>. Acesso em: 20 Set, 2019. 25. CHADE, Jamil. ONU denuncia tráfico de crianças. O Estado de São Paulo, São Paulo, 23 jan. 2010. Disponível em: <https://www.estadao.com.br/noticias/geral,onu-denuncia-trafico-decriancas,500290>. Acesso em: 02 Dez, 2019. ocorrendo, ou seja, não há de se falar em consentimento de maneira alguma. Desta forma, não se pode concluir de maneira concreta os elementos utilizados pelos traficantes para ludibriar uma criança, convencendo-a a se afastar da mãe e de que forma ocorre, em casos de aliciamento por exemplo, visto que neste feito não estamos analisando casos concretos, mas sim hipóteses e estudos. Contudo se faz possível, utilizando-se de uma visão interdisciplinar entre a psicologia e o direito, compreender as possíveis consequências que permearão a vida desta criança em situação de tráfico, tenha ela sido vítima de aliciamento, violência, rapto, sequestro ou subtração. Entretanto, para compreender a perspectiva das crianças sujeitas a esta situação, se faz extremamente necessário, analisar em primeiro plano outro princípio protegido pelo ECA, o Princípio da Condição Peculiar de Pessoa em Desenvolvimento, exposto no artigo 6º26 da lei, onde demonstrado expressamente, as crianças são sujeitos de direito em desenvolvimento, assim tendem a agir de modo a imitar e gravar o que captam e vêem no meio social, à medida que, a violência e os traumas presenciados se fazem ainda mais brutais e permanentes. Não é à toa que se demonstra cada vez mais essencial a busca também pela proteção da primeira infância, promovida por exemplo pelo Marco Legal da Primeira Infância27, abrangido pelos primeiros 6 anos de vida da criança, visto que esta se faz ainda mais vulnerável perante à formação de sua personalidade e desenvolvimento enquanto ser humano: [...] Na fase da primeira infância, todavia, as relações entre estados emocionais e experiencias concomitantes ou do passado recente se põem com clareza cristalina. Segundo se assevera, é nesses estados de perturbação da primeira infância que se tornam discerníveis os protótipos de inúmeras condições patológicas dos anos posteriores.28 26. Artigo 6º: Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. BRASIL. Lei de nº 8.069 de 13 de Julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Especificamente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 04 Jul. 2019. 27. BRASIL. Lei de nº 13.257 de 8 de março de 2016. Políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, a Lei nº 11.770, de 9 de setembro de 2008, e a Lei nº 12.662, de 5 de junho de 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13257.htm>. Acesso em: 05 Jul. 2019. 28. BOWLBY, John. Separação – Volume 2 da Trilogia Apego e Perda. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1984, p. 5. Neste sentido, a psicanálise entende de maneira homogênea como extremamente fundamental para formação da personalidade da criança, sua primeira relação humana (BOWLBY, 1984). Ou seja, a quais situações e perigos emocionais essa criança, afastada desde logo de seus pais, estaria submetida? De forma a seguir a cronologia da cadeia do tráfico, em seu início paira sobre a criança o perigo eminente de separação com sua a mãe biológica, visto que a mãe, em uma visão psicanalítica29 se faz como figura principal em termos de apego frente à criança e que, esta ameaça de perda ou a ruptura abrupta do elo afetivo pode vir a gerar sintomas psicossomáticos30: Quando a criança percebe que seus pais vão se ausentar ou o afastamento realmente ocorre, manifestações somáticas de ansiedade, tais como dor abdominal, dor de cabeça, náusea e vômitos são comuns. Crianças maiores podem manifestar sintomas cardiovasculares como palpitações, tontura e sensação de desmaio. Esses sintomas prejudicam a autonomia da criança, restringem a sua vida de relação e seus interesses, ocasionando um grande estresse pessoal e familiar. Sentem-se humilhadas e medrosas, resultando em baixa autoestima e podendo evoluir para um transtorno do humor. Estudos retrospectivos sugerem que a presença de ansiedade de separação na infância é um fator de risco para o desenvolvimento de diversos transtornos de ansiedade, entre eles, o transtorno de pânico e de humor na vida adulta.31 Assim, já inserida à cadeia do tráfico, subitamente esta criança está em meio a um ciclo corrompido de laços afetivos, diante de uma instabilidade emocional, tendo passado pelo rompimento do laço com a mãe biológica, adentrando a possibilidade da criação de um laço afetivo com o traficante aliciador, mesmo que deturpado. Posteriormente, vivenciando um novo rompimento desse laço criado com o traficante, e estabelecendo uma criação de novo laço, com seus “novos pais”, arriscando passar por um novo rompimento, caso descubra que foi vítima de tráfico, por exemplo. Desta forma, diante de tantas perdas, se torna imensurável as consequências 29. BOWLBY, John. Apego – Volume 1 da Trilogia Apego e Perda. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1984, p. 192-195. 30. A Psicossomática busca um entendimento da relação mente–corpo e dos processos de adoecimento. Ela parte da observação de distúrbios físicos nos quais os processos emocionais desempenham um certo papel, ou de situações clínicas nas quais uma perturbação psicológica aumenta o risco de desenvolver ou agravar determinada doença física. CAPITÃO, Claudia Garcia; CARVALHO, Érica Bonfá. Psicossomática: duas abordagens de um mesmo problema. Revista de Psicologia da Vetor Editora: São Paulo, v. 7, nº 2, p. 21-29, jul./dez, 2006. 31. CASTILLO, Ana Regina Gl. et al. Transtornos de Ansiedade. Revista Brasileira de Psiquiatria, Porto Alegre, II, 21, 2000. psicológicas a serem enfrentadas por este indivíduo, seja enquanto criança ou enquanto adulto. Estados de angústia e depressão se manifestam na idade adulta, assim como condições psicopáticas, podem ser associadas, de maneira sistemática, segundo se afirma, a estados de angústia, desespero e desapego (como descrito por Burlingham e Freud e, subsequentemente por outros autores), que facilmente se manifestam sempre que uma criança se separa por longos períodos de sua figura materna, sempre que espera uma tal separação ou, como as vezes acontece, quando perde a mãe definitivamente. 32 Segundo Bowlby33 tais consequências se fazem muitas vezes inexplicáveis na vida adulta, visto que não há um autodiscernimento nítido à respeito da origem dos impactos psíquicos causados por vivencias do passado, podendo levar até mesmo, em certos casos, ao desenvolvimento de um Transtorno de Estresse Pós-Traumático34, por exemplo, ou até mesmo, ao suicídio. Ora, como estamos tratando de adoção, vale relembrar que, ao final da cadeia, quando já está inserida em sua “nova família”, virá a demonstrar curiosidades, visto que tal característica se faz atrelada à sua essência enquanto criança, e que, mesmo que ela esteja diante de um cenário ideal onde, seus pais não contem que esta fora adotada e por quais meios o fizeram, esta irá questioná-los. Para o psiquiatra Içami Tiba35 é natural que a criança queira saber sua origem biológica, em algum momento, a própria notícia receptada de que sua mãe não o concebeu, sempre configurará um choque, isso se tratando de uma situação adotiva genérica por vias legais, onde, quando posta frente a realidade das condições de tráfico sofridas, as inúmeras consequências, sejam estas temporárias ou permanentes, previamente discorridas, poderão vir à tona. O aumento da capacidade perceptiva da criança e da sua aptidão para compreender os acontecimentos no mundo à sua volta acarretam, porém, mudanças nas circunstâncias que o eliciam. [...].36 Assim, diante de uma descoberta tão perturbadora, entramos na esfera do que concerne ao auxílio às crianças vítimas de tráfico, descritas no rol do art. 7º do Decreto nº 5.948/06, que trazem proteção, 32. BOWLBY, John. Separação – Volume 2 da Trilogia Apego e Perda. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1984. p. 5. 33. Ibid. p. 3-25. 34. CASTILLO, Ana Regina Gl. et al. op. cit., p. 20-21. 35. TIBA, Içami. Quem ama, educa! São Paulo: Editora Gente, 2002. p. 226 e 227. 36. BOWLBY, John. Apego – Volume 1 da Trilogia Apego e Perda. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1984. p. 219. assistências diversas, acolhimento, reinserção social e familiar, atenção às suas necessidades especificas, proteção de sua identidade e intimidade, remédios estes relevantes e necessários, porém ainda não se pode negar que concomitantemente à questão de reinserção e assistência, o instrumento mais recomendado como alternativa, principalmente se tratando de crianças, é o acompanhamento terapêutico, que segundo Ritchter (1986)37 faz-se um tratamento árduo e custoso diante de uma sociedade indiferente e egoísta, que busca a exploração de jovens para o mercado da prostituição infantil já institucionalizado. CONSIDERAÇÕES FINAIS O artigo em questão trouxe uma análise conectiva entre dispositivos legais e Políticas Públicas que versam sobre o tráfico de pessoas, frente ao tema da adoção ilegal e as consequências inerentes à situação, vinculadas tanto a figura do casal que sonha com a parentalidade, quanto as crianças vítimas de tráfico para fins de adoção. O imediatismo exacerbado de casais a concretizarem seus anseios, em sua mais íntima dor e sensibilidade, podem estar suscetíveis à corroborar com a manutenção de uma organização criminosa bárbara, cegos por seu egoísmo, acabam indiretamente inibindo a criança de sua esfera protetiva, seja esta jurídica garantida por lei, ou seja esta afetiva, presente na figura de seus pais biológicos. Diante desta fragilidade, tendo a clara noção deste fato iminente, traficantes abusam deste fator como arma, a partir de seus inúmeros aliciamentos, a manter seus esquemas sorrateiramente e invisibilizados, estando os criminosos assim excepcionalmente à frente do Estado, apenas por reconhecer este fato social como verdadeiro em todos os seus aspectos. Faz-se assim associação às “promessas” contidas na lei, ao passo que em teoria essas se fazem muito bem pensadas, principalmente nos quesitos a garantir a proteção da criança em todos os seus aspectos, mas, se mantém a reflexão de que, se a proteção destas crianças ocorresse de maneira preventiva e não remediadora, se os poderes tanto Executivo, como Legislativo e Judiciário, dispusessem de uma visão realista e ponderassem a teoria com as práticas, principalmente em termos de tráfico de crianças para fim de adoção ilegal, talvez as crianças não passariam por uma primeira desproteção. É entendível que as medidas presentes na lei tendem a garantir todos os direitos inerentes à figura da criança, todavia ao passo que se 37. HERMANN, Kai. RIECK, Horst. Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída... São Paulo: Bertrand Brasil – DIFEL, 1986. p. 10. desenvolve um processo de adoção demorado e desgastante, tenhamos em mente que a garantia de certos grupos de crianças estão sendo desprovidos, estes grupos é que serão posteriormente vítimas do tráfico. REFERÊNCIAS ARAÚJO Jr., Gediel Claudino de. Prática no Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Atlas, 2017. BARROS, Ana Claudia, Com 40 mil crianças desaparecidas por ano, Brasil abandona ferramenta de localização. Portal R7, 25 mai. 2015. Disponível em: <https://noticias.r7.com/cidades/com-40-mil-criancas-desaparecidaspor-ano-brasil-abandona-ferramenta-de-localizacao-25052015>. Acesso em: 20 Set, 2019. BOLDEKE, I. Amanda. Tráfico Internacional de Crianças – mercado bilionário. 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CAPÍTULO 18 CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATUAL CENÁRIO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA MODALIDADE ADOÇÃO ILEGAL ALANA PATERNO GODOY Advogada. Pós-graduanda em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público. Membro do projeto de pesquisa financiado pelo MackPesquisa: “Pessoas Invisíveis”. INTRODUÇÃO A norma constitucional impõe ao Estado, à sociedade e a família o dever de assegurar às crianças e aos adolescentes, com prioridade absoluta, direitos básicos como, por exemplo, o acesso à educação e à convivência familiar, assim como a obrigação de colocá-los a salvo de qualquer forma de exploração e violência. E é justamente a condição de desenvolvimento da criança e do adolescente que impõe a necessidade de coordenação de diferentes sujeitos ativos para garantia plena dos direitos destes. Sendo assim, diante de sua prioridade absoluta, as ações estatais deverão dar prioridade na formulação e na execução de políticas sociais públicas preventivas e repressivas para a preservação dos direitos das crianças e dos adolescentes. Trata-se de uma responsabilidade constitucional. O Brasil iniciou o combate ao tráfico de pessoas, efetivamente, no ano de 2004, quando aderiu ao Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, conhecido como Protocolo de Palermo. Desde então, o Brasil já adotou três Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, na qual, durante a execução do segundo plano, sancionou a Lei nº 13.344/16, que teve como início a Comissão Parlamentar de Inquérito nº 03/2011, a qual, a partir de investigações, abrangeu as modalidades de tráfico de pessoas criando, inclusive, a modalidade de adoção ilegal. O Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas de 2018 do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e Crime (UNODC) aponta que o número de crianças e adolescentes representa uma parcela significativa de vítimas de tráfico de pessoas na América do Sul (37%)1. Entre as diversas modalidades de tráfico de crianças e adolescentes, existe a adoção ilegal que é a entrega direta da criança ou do adolescente à pessoa interessada em adotar, sem a intervenção e o controle do Poder Judiciário. A adoção deve satisfazer a vários requisitos formais para que seja realizada, sempre obedecendo o princípio do melhor interesse da criança e adolescente, fato que não ocorre no tráfico de crianças e adolescentes por meio da adoção ilegal, colocando em risco a integridade física e moral dos mesmos. Posto isso, verifica-se a real necessidade de que haja investimentos e implementações de políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de crianças e adolescentes, diante da vulnerabilidade das vítimas. Ainda, por se tratar de um crime de difícil apuração e de colhimento de dados, se faz cada vez mais necessário o aprimoramento das políticas públicas, a fim de combater este crime “invisível” perante a sociedade. O presente artigo objetiva apresentar e discutir modelos teóricos que auxiliem na compreensão do processo de formulação de políticas públicas, assim como identificar o atual cenário de combate e prevenção ao crime de tráfico de crianças e adolescentes, especificamente, na modalidade adoção ilegal, desde o advento da Lei nº 13.344/16. Posteriormente, serão realizadas considerações quanto ao atual cenário de políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de crianças e adolescentes por meio da adoção ilegal. 1. UNITED NATION OFFICE ON DRUGS AND CRME. Global Report on Trafficking in persons 2018. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/lpobrazil//Topics_TIP/ Publicacoes/GLOTiP_2018_BOOK_web_small.pdf. Acesso em: 09 dez. 2019. Ressalva-se que o presente artigo científico não tem pretensão de esgotar a matéria e sim propor uma reflexão sobre o tema e formas que possam viabilizar um maior combate ao crime em questão, por meio de uma análise qualitativa e dedutiva do atual cenário de políticas públicas. 1 CONCEITO DE POLÍTICAS PÚBLICAS Um período determinante na construção e desenvolvimento do conceito de políticas públicas no Brasil foi a publicação da Constituição de 1988, que construiu mecanismos de maior atuação do Estado, tornando-os mais complexos e eficientes. Os países em desenvolvimento, como o Brasil, necessitavam de um governo mais ativista no sentido de implementar ações coordenadas e planejadas, a fim de diminuir o atraso no desenvolvimento e a desigualdade social que pairava no país. Posto isto, o Estado se viu obrigado a examinar como seriam exercidos o poder político e as formas de aprimoramento da gestão pública. Havia a necessidade de se relacionar tanto o domínio técnico com a prática. Como Bucci2 afirma: Numa sociedade em desenvolvimento, a inovação governamental depende não apenas de inovações, propriamente ditas, mas, em grande medida, da conjugação dessas com melhorias incrementais, cujos resultados criem condições de legitimação social e, com isso, permanência e realimentação positiva do processo. Assim, reflete-se a necessidade de conjugação de fatores de implementação, resultando no fornecimento de meios que permitem que haja o desenvolvimento de atividades estatais. Portanto, políticas públicas3 nada mais são do que o resultado de ações coordenadas pelo Estado, a fim de planejar atividades de baixa institucionalidade em um determinado assunto. Tendo em vista a interdisciplinaridade que o estudo de políticas públicas carrega em si, sua visão de conceito poderá ser modificada de acordo com o ramo de conhecimento que a esteja estudando, dificultando que seja estabelecido um conceito único. No âmbito legislativo, políticas públicas são a designação dos sistemas legais com pretensão de vasta amplitude, os quais definem competências 2. 3. BUCCI, Maria P. Dallari, Fundamentos para um Teoria Jurídica das Políticas Públicas, 1ª Edição, São Paulo, Editora Saraiva, 2013, p. 35. Ibidem, p. 35. administrativas, estabelecem princípios, diretrizes e regras, assim como, em determinados assuntos, impõem-se também objetivos e preveem resultados específicos4. Também são conhecidas como normas gerais. No âmbito das ciências políticas, chegou-se ao consenso de que políticas públicas são os resultados de decisões governamentais, assim como restou firmado que o conceito de políticas públicas sempre se referirá às ações governamentais5. Já no âmbito das ciências jurídicas examina-se que as políticas públicas poderão ter distintos suportes legais, ou seja, desde um decreto à previsão na Constituição Federal, cujo objetivo é fomentar a máquina do governo visando a instituição de ordem pública ou, na visão estritamente jurídica, concretizar um direito6. Entende-se que as políticas públicas são meios para a efetivação de direitos de cunho prestacional pelo Estado, a fim de que sejam reconhecidos e assegurados os direitos em geral7. Diferentemente das leis, as políticas públicas possuem objetivos determinados, enquanto que, as leis caracterizam-se por serem genéricas. Posto isso, podemos entender que políticas públicas concentram a efetividade da atuação estatal em atingir determinado objetivo traçado pelo Poder Executivo. 2 MECANISMOS DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS Para que ocorra a garantia dos deveres sociais será necessário que haja a criação de leis, regulamentos e medidas públicas de promoção e fortalecimento dos direitos sociais, mediante a criação de políticas públicas. As políticas públicas estabelecerão diretrizes e a forma como ocorrerá a ação do Poder Público. A literatura sobre implementação de políticas públicas expõe dois grandes modelos de estudo de implementações de políticas públicas. O primeiro modelo enfatiza as estruturas normativas, reiterando que políticas públicas são uma sequência de etapas distintas, individualizando 4. 5. 6. 7. FONTE, Felipe M. Políticas Públicas e Direitos Fundamentais, 2ª Edição, São Paulo, Editora Saraiva, 2015, p. 38. BIRKLAND, Thomas A. An Introduction to the policy process, Editora: M.E. Sharpe, 2005, p.18 BUCCI. Maria Paula Dallari. O conceito jurídico de política pública em direito. In: BUCCI. Maria Paula Dallari. (Org.). Políticas públicas: Reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 14. FONTE, Felipe M. Políticas Públicas e Direitos Fundamentais, 2ª Edição, São Paulo, Editora Saraiva, 2015, p. 48. o papel da decisão e da operacionalização das políticas públicas. Os formuladores de regras possuem grande importância no desenvolvimento dos pilares das políticas públicas8. O segundo modelo enfatiza os atores que atuam dentro da criação de políticas públicas, assim como atrela o sucesso das ações estatais de acordo com a participação efetiva dos agentes. Seus pontos principais são: a influência dos formuladores de implementação e a existência da preocupação de definir o que são resultados, buscando sempre simplificar o modelo para que se consiga restringir e atingir metas específicas9. Ambas abordagens relacionam o sucesso da implementação de políticas públicas com as limitações materiais existentes, tendo em vista que poderão desde beneficiar a prejudicar o processo de implementação de políticas públicas como, por exemplo, as variáveis independentes que poderão ser atreladas à gestão política e, inclusive, à gestão econômica. As políticas públicas já nascem com a premissa de que há um componente de ação estratégica, isto é, a existência de uma análise prévia do atual contexto institucional para que assim seja projetado a aplicação das medidas necessárias para o desenvolvimento positivo. Outro ponto relevante na construção de políticas públicas trata-se da discricionariedade que os governos eleitos gozam, uma vez que cabem a estes definir o conteúdo e o momento de execução de uma política pública10. Uma forma de potencializar a criação de políticas públicas é a criação, por meio de normas legais, de conselhos deliberativos, descentralizando a atuação do Poder Executivo, possibilitando elevar o grau de legitimidade das políticas públicas, bem como autorizar a destinação dos recursos públicos em pontos específicos, garantindo maior eficiência na gestão11. A partir da criação de conselhos deliberativos possibilita-se uma atuação mais representativa, tendo em vista que permite que o cidadão comum possa também atuar e exprimir suas críticas quanto à atuação do governo em garantir os direitos fundamentais, assim como aproximará a norma abstrata para a realidade atual. 8. LIMA, Luciana L., D’ASCENZI, Luciano. Implementação de Políticas Públicas: Perspectivas Analíticas, Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 21, nº. 48. p. 102-103. 9. Ibidem, p. 103.104. 10. APPIO, Eduardo, Controle Judicial das Políticas Públicas no Brasil, 1ª Edição, Curitiba, Editora Juruá, p.161. 11. Ibidem, p.165 Sua percepção acaba facilitando o entendimento do atual cenário e possibilitando, com maior originalidade, a criação de novos mecanismos de aprimoramento da gestão pública. Outro fator importante para que a aplicação de uma política pública se perfaça no decorrer do tempo e produza resultados cada vez mais positivos é a necessidade de desvinculação da pessoa do governante. Maria Paula Dallari Bucci12 utiliza o termo “institucionalizar” para caracterizar a desvinculação, conforme segue trecho abaixo: Pode-se definir o termo institucionalizar, no sentido da ação governamental, como a iniciativa de estabelecer um determinado padrão de organização - permanente e impessoal, formalmente desvinculado da pessoa do governante ou gestor que desencadeia a ação -, que atua como fator de unidade de vários centros de competência em articulação, visando à composição de distintos interesses, meios e temporalidades, em função da ideiadiretriz. Institucionalizar, a partir da teoria de Santi Romano, é objetivar, isto é, construir uma instância, um feixe de ações organizadas, que se descola da pessoa que o instituiu e passa a ter vida própria. Além disso, é ordenar, organizar segundo determinada combinação de conceitos e diretrizes racionais. Verifica-se a necessidade de desvinculação da pessoa do governante ou gestor com as ações governamentais, pois é necessário que haja contínua aplicação de uma política pública para que seja realmente atingida determinada meta. Inclusive, é primordial a “institucionalização” de uma política pública quando se tratar de questões a longa data como, por exemplo, o combate ao tráfico de pessoas. 3 A IMPORTÂNCIA DA ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS A criação de políticas públicas caberá, em regra, ao Poder Executivo, dentro dos limites definidos pelo Poder Legislativo. Ocorre que, o Poder Judiciário também poderá fazer parte na criação de políticas públicas, atuando de forma imprópria, desde que não haja invasão indevida na esfera da atividade política do governo. 12. BUCCI, Maria Paula Dallari, Fundamentos para um Teoria Jurídica das Políticas Públicas, 1ª Edição, São Paulo, Editora Saraiva, 2013, p. 236. Tal atuação do Judiciário decorrerá de uma ausência de implementações de ações governamentais pelo Poder Executivo. Trata-se de um movimento, cuja finalidade é impedir procrastinação por parte do Estado13. Este movimento já é amplamente adotado no âmbito dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, onde há atuação preponderante do Poder Judiciário, principalmente do Ministério Público, em assegurar direitos constitucionalmente previstos. Maria Paula Dallari Bucci já reitera a existência de um nexo de causalidade entre a atuação do Judiciário e a existência de direitos a serem tutelados. Portanto, verifica-se um ativismo judicial no sentido de preservação de direitos, seja no caráter preventivo ou repressivo. Um marco no entendimento de políticas públicas foi a decisão do Ministro Celso de Mello na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45, em que expôs a gravidade da inércia governamental em não adotar medidas necessárias à concretização de preceitos constitucionais. Consequentemente, tal inércia estatal provoca grave ofensa aos preceitos previstos na Constituição, assim como ofensa às garantias asseguradas pela própria Constituição, devendo, nesse momento, ocorrer um ativismo Judicial para que tais garantias e direitos fundamentais sejam assegurados. Conforme o Ministro Celso de Mello14: O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exequíveis, abstendo-se, em consequência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. 13. Ibidem, p. 194.195. 14. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3401, Rel. Min. Gilmar Mendes. Julgado em 26abr.2006, Pleno, Brasília, DF, Diário de Justiça de 23 fev. 2007. O controle judicial de uma política pública não ensejará necessariamente seu sucesso, mas no momento em que se amplia o número de agentes responsáveis pela sua formulação, aplicação e fiscalização, as chances de efetividade se tornam maiores. Pode se falar até então numa ampliação no poder de fiscalização. Fábio Comparato15 já havia afirmado: “[...] A grande, senão única, tarefa estatal consiste em propiciar, sob a égide de leis gerais, constantes e uniformes, condições de segurança – física e jurídica – à vida individual.” É necessário ressaltar a atuação do Poder Judiciário e de suas instituições, a fim de promover maior segurança pública seja no âmbito nacional, estadual e municipal, em cumprimento ao princípio da democracia participativa. A principal dificuldade no âmbito das políticas públicas relaciona-se à criação de mecanismos que estabeleçam a estruturação de implementação, seja por meio de mecanismos formais ou informais de mediação16. Dessa forma, é necessário questionar se uma atuação mais ampla do Poder Judiciário não facilitaria o desenvolvimento de novos mecanismos de atuação e prevenção de determinados crimes que englobam difícil apuração como, por exemplo, o tráfico de crianças e adolescentes por meio da adoção ilegal que é temática deste artigo. Um exemplo importante é o maior controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, no sentido de viabilizar o acompanhamento e fiscalização dos atos investigatórios e a possibilidade de oferecer treinamentos técnicos específicos como, por exemplo, na atuação de combate ao crime e o fornecimento de apoio às vítimas de tráfico de pessoas. A segurança pública trata-se de um direito fundamental que também deve ser prestado sob a ótica coletiva. 4 O SISTEMA DE GARANTIAS E DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE O Estatuto da Criança e do Adolescente reitera a necessidade de proteção especial e prioritária para as crianças e adolescentes, uma vez que se tratam de sujeitos de direito em desenvolvimento. 15. COMPARATO. Fábio K. Ensaio Sobre o Juízo de Constitucionalidade de políticas públicas. p. 43. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br> Acesso em: 05 nov. 2019 16. BUCCI, Maria P. Dallari, Fundamentos para um Teoria Jurídica das Políticas Públicas, 1ª Edição, São Paulo, Editora Saraiva, 2013, p. 199 Posto isto, foi criado no Brasil o Sistema de Garantia de Direitos, cuja finalidade é assegurar a proteção que o Estatuto da Criança e do Adolescente consagra, mediante parceria entre o Poder Público e a sociedade civil17. O sistema de Garantia de Direitos é formado por três eixos. O primeiro eixo é a promoção de direitos que consiste na criação de serviços e programas de políticas públicas, a fim de zelar pelos direitos das crianças e adolescentes, mediante atuação dos ministérios do governo federal, secretarias estaduais e municipais, Organizações Não Governamentais (ONG)18. O segundo eixo trata da defesa dos direitos, na qual busca pela cessação das violações de direitos e responsabilização dos agentes responsáveis pelas infrações. Este eixo é composto por Conselhos Tutelares, Ministério Público Estadual e Federal, Judiciário, Defensorias Públicas, Órgãos da Segurança Pública etc19. O terceiro eixo é conhecido como controle social, na qual serão realizados o monitoramento e a fiscalização das ações que visam resguardar os direitos das crianças e adolescente. O controle será feito pelo Ministério Público, Poder Legislativo, Defensorias Públicas, Conselhos Tutelares e sociedade civil20. A atuação se dará, em regra, por meio dos conselhos municipais, no entanto, nada impede que haja a intervenção dos demais órgãos e autoridades, tendo em vista que todos possuem o dever de buscar a plena efetivação dos direitos infanto-juvenis. Digiácomo21 explica a necessidade da corresponsabilidade entre os órgãos, a fim de zelar pelo “Sistema de Garantias dos Direitos InfantoJuvenis”. Não existe o papel de uma “autoridade suprema”, mas uma divisão igualmente importante para todos os órgãos, pois todos devem zelar pela “proteção integral” de todas as crianças e adolescentes. Já é sabido que tanto o Poder Judiciário, bem como o Ministério público possuem a função comum de controle, ou seja, fiscalizar a atividade 17. FUNDAÇÃO ABRINQ. Caderno Legislativo da Criança e do Adolescente. Os Direitos das Crianças e dos Adolescentes no Brasil, 1ª edição, São Paulo: 2019, p. 34. Disponível em: https:// observatoriocrianca.org.br/system/library_items/files/000/000/024/original/caderno_ legislativo_2019-internet.pdf ?1558563706. Acesso em: 12 nov. 2019 18. Ibidem, p. 34. 19. Ibidem, p. 35 20. Ibidem, p. 35. 21. DIGIÁCOMO, Murillo J. O sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente e o desafio do trabalho em “rede”. Disponível em: http://www.mppr.mp.br/arquivos/File/Sistema_Garantias_ ECA_na_Escola.pdf. Acesso em: 14 nov. 2019. dos demais Poderes, a fim de que sejam zeladas as garantias e direitos previstos na Constituição22. Portanto, novamente se reforça a ideia de ampliação de atuação, de forma que haja um desempenho mais dinâmico e diligente por parte do Poder Judiciário, assim como pelo Ministério Público para que ocorra o efetivo combate aos crimes “invisíveis” perante a sociedade. 5 INSTRUMENTOS DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS Em 26 de outubro de 2006, sob a coordenação da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) e da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), foi aprovada a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, consolidando diretrizes e ações de prevenção, repressão, responsabilização criminal, assim como ações visando atendimento às vítimas23. A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas viabilizou a aprovação de três planos nacionais de enfrentamento ao tráfico de pessoas, reiterando o compromisso de combater o tráfico de pessoas. No ano de 2012 foi elaborada a Metodologia Integrada de Coleta e Análise de Dados e Informações sobre Tráfico de Pessoas, na qual consistia em um método dialogável e integrado de coleta e análise de dados sobre o tráfico de pessoas, auxiliando na avaliação e monitoramento das políticas públicas de enfrentamento que logravam na época. Referido instrumento já reiterava a imprescindibilidade da integração dos bancos de dados ou dos sistemas de informações existentes para que ocorresse a produção de diagnósticos em escala nacional, a avaliação das políticas públicas de enfrentamento, bem como a análise da legislação vigente e sua eficácia diante do tempo e espaço vigente24. Outro ponto de grande importância analisado nesse instrumento foi a diretriz nove, pois a mesma já determinava a produção e encaminhamento de relatórios por parte das instituições que compunham o grupo de trabalho, 22. APPIO, Eduardo. Controle Judicial das Políticas Públicas no Brasil, 1ª Edição, Curitiba, Editora Juruá, 2012, p. 61 23. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E DA SEGURANÇA PÚBLICA, Políticas: Políticas Brasileiras. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/politicabrasileira. Acesso em: 25 nov. 2019 24. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Metodologia Integrada de Coleta e Análise de Dados e Informações sobre Tráfico de Pessoas, 2012, p. 12/13. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/ trafico-de-pessoas/politica-brasileira/anexos_metodologia/2-metodologia-integrada-decoleta-de-dados-e-analise-de-dados-e-informacoes-sobre-trafico-de-pes.pdf. Acesso em: 24 nov. 2019. de forma anual, a fim de que fossem reunidos os dados e informações sobre o crime de tráfico de pessoas25. No decorrer da vigência do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, no ano de 2016, foi introduzida a Lei nº 13.344/1626, que estabeleceu novas modalidades de tráfico de pessoa, criminalizando condutas como, por exemplo, a adoção ilegal. Já no dia 28 de maio de 2018, foi realizada a 8ª Reunião Ordinária do Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – Conatrap27, a qual a partir da leitura da ata desta reunião verificou-se o engajamento em atuar, de forma primordial, no projeto Global Action to Prevent and Address Trafficking in Persons and the Smuggling of Migrants (GLO.ACT), cujo projeto é responsável em financiar grande parte das atividades de enfrentamento ao tráfico de pessoas. O projeto GLO.ACT consiste na parceria entre a Organização Internacional para as Migrações (OIM) com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a fim de desenvolver e implementar respostas abrangentes ao combate ao tráfico nacional e ao contrabando. O projeto atua em 13 países e, entre esses está o Brasil, adotando-se uma abordagem de prevenção, proteção, acusação e parceria, que inclui seis respostas principais vinculadas a seis objetivos do projeto28. Também foi apresentado na reunião o processo de construção do III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, na qual um dos temas mais suscitados foi a necessidade da articulação nos três níveis de Governo, especialmente atuando nas fronteiras, assim como a necessidade de fortalecimento das redes de Núcleos e Postos29. 25. Ibidem, p. 22 26. BRASIL. Lei nº 13.344, de 06 de outubro de 2016. Dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13344.htm. Acesso em: 15 nov. 2019. 27. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E DA SEGURANÇA PÚBLICA, 8ª Reunião Ordinária do CONATRAP. 28 e 29 de maio de 2018. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/politica-brasileira/anexos_ contrap/atas-conatrap/ata-8-reuniao-conatrap.pdf. Acesso em: 25 nov. 2019 28. ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME. GLO.ACT supports the elaboration and launch of the 3 rd National Action Plan against Trafficking in Persons. Disponível em: https://www.unodc.org/unodc/en/human-trafficking/glo-act/glo-act-supports-theelaboration-and-launch-of-the-3rd-national-action-plan-against-trafficking-in-persons.html. Acesso em: 22 nov. 2019. 29. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E DA SEGURANÇA PÚBLICA, 8ª Reunião Ordinária do CONATRAP. 28 e 29 de maio de 2018. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/politica-brasileira/anexos_ contrap/atas-conatrap/ata-8-reuniao-conatrap.pdf. Acesso em: 25 de nov. 2019 Durante a reunião, foi apontado o mapa da Rede Nacional dos Núcleos e Postos de Atendimento, na qual contam com dezessete núcleos instalados, em dezesseis Estados, cujo objetivo é propiciar o diálogo e a articulação em políticas locais e nacionais, integrando o combate ao tráfico de pessoas nas três esferas de poder e de governo30. Os Núcleos são responsáveis em criar políticas no âmbito estadual, assim como atuam na articulação de órgãos públicos e entidades civis que visam o enfrentamento ao tráfico de pessoas. São responsáveis também em fornecer suporte às Polícias Federal e Civil, mediante fornecimento de informações. Possuem competência para o desenvolvimento de pesquisas, bem como na formação e capacitação de agentes e órgãos contra o tráfico de pessoas31. Os Postos, por outro lado, atuam como espaços de circulação de migrantes, desde para o migrante deportado ou não admitido no país de destino até a pessoas identificadas como vítimas de tráfico ou aquelas que apresentem indícios de serem vítimas de tráfico de pessoas. Os Postos estão situados nos aeroportos, portos e rodoviárias32. No site do Ministério da Justiça e Segurança Pública do governo federal estão disponibilizados os relatórios semestrais da Rede de Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP). O relatório do Estado de São Paulo referente ao período de 01 de julho de 2018 a 31 de dezembro de 2018 descreve que não houve nenhum orçamento previsto ou executado no plano plurianual. Outro fato importante que foi encontrado no relatório trata-se da periodicidade mensal das reuniões do Comitê Estadual, sendo que não foi disponibilizada nenhuma ata sobre as reuniões e discussões do referido tema33. Ainda, informa que há monitoramento da execução das ações do Plano, porém não foi indicada a forma como a mesma é a realizada ou a instituição responsável em fiscalizar as execuções das ações do Plano34. 30. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA, Carta da Rede Nacional de Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-deenfrentamento/anexos/carta-da-rede-versao-final.pdf. Acesso em: 25 de nov. 2019. 31. TERESE, Verônica M., HEALY, Claire, Guia de referência para a rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil, Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça, 2012. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/ cartilhaguiareferencia.pdf. Acesso em: 22 de nov. 2019. 32. Ibidem 33. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. 10º Relatório da Rede, 2019. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-deenfrentamento/10o-relatorio-da-rede. Acesso em: 12 nov. 2019 34. Ibidem. A partir das informações disponibilizadas no site verifica-se a ausência de descrição das ações e fiscalizações do Plano Estadual de São Paulo, sendo que, no decreto nº 62.293/1635 estabelece que o Plano Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Estado de São Paulo deverá estimular a realização de estudos e diagnósticos, assim como viabilizar ações de inclusão do Plano nas leis orçamentárias. Maria Paula Dallari Bucci36 reitera que o alcance de uma política pública é, necessariamente, supraindividual, ou seja, alcançará uma coletividade determinada, com demandas e expectativas comuns. Outro fato importante é a existência do Relatório Anual Norte Americano Trafficking in Persons Report37, o qual disponibiliza informações sobre os esforços, recursos e deficiências nacionais quanto ao enfrentamento ao tráfico de pessoas, assim como avalia o cenário de enfrentamento ao tráfico de pessoas de diversos países como, por exemplo, o Brasil. O relatório norte americano enfatiza a necessidade de que os governos estejam engajados na causa de combate ao tráfico de pessoas, assim como estabelece diretrizes para que haja um efetivo combate. Entre as medidas de combate está a necessidade de uma equipe dedicada, com conhecimento avançados, e focada em investigar e processar casos de tráfico de pessoas, assim como a necessidade de construção de fortes parcerias anti-tráfico, tanto dentro do sistema da justiça criminal, bem como parcerias entre autoridades governamentais e não governamentais. Outra medida é o estabelecimento de programas de treinamento abrangentes, cujo treinamento será especializado em identificação, investigação e repressão de casos de tráfico, inclusive para policiais, patrulhas de fronteira, promotores, juízes, agências governamentais e assistentes sociais38. Entre a avaliação de diversos países está também ao do Brasil que foi determinado como integrante do grupo Tier 2, ou seja, são os países que não cumprem totalmente os padrões exigidos de combate ao tráfico de pessoas, mas estão engajados em esforços importantes de combate ao tráfico39. 35. BRASI. Decreto nº 62.293/16. Aprova o Plano Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Estado de S.Paulo, em consonância com o Decreto nº 54.101, de 2009, alterado pelo Decreto nº 60.047, de 2014. Disponibilizado em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/2016/ decreto-62293-06.12.2016.html. Acesso em: 26 nov. 2019. 36. BUCCI, Maria Paula Dallari. Quadro de referência de uma política pública: primeiras linhas de uma visão jurídico-institucional. In: O direito na fronteira das políticas públicas[S.l: s.n.], 2015, p. 07. 37. DEPARTMENT OF STATES: UNITED STATES OF AMERICA. Traffickin in Persons Report. June 2019. Disponível em: https://www.state.gov/wp-content/uploads/2019/06/2019Trafficking-in-Persons-Report.pdf. Acesso em: 04 dez. 2019. 38. Ibidem, p. 21. 39. Ibidem, p. 48. A partir da análise da atual gestão de combate ao tráfico de pessoas, o relatório norte americano concluiu que o Brasil precisa melhorar diversos pontos, mas principalmente no aprimoramento da cooperação e da comunicação entre a polícia federal e as entidades estaduais e municipais, assim como a ausência de financiamento, conhecimento e equipe suficientes para investigar o tráfico nas unidades de aplicação da lei em todos os níveis. Outro ponto importante abordado no relatório foi a não atuação por parte do Governo Federal do Brasil em financiar abrigos especializados ou de longo prazo para vítimas de tráfico, e os serviços e abrigos gerais para vítimas variavam em qualidade de estado para estado. 6 O ATUAL CENÁRIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES Segundo o balanço anual do Disque Direitos Humanos, a partir do início até a metade do ano de 2019 apurou-se que o tráfico interno para fins de adoção ilegal representou 7,5% de 170 casos concretos40. Justamente pelo fato de ser um crime articulado e de difícil apuração e mediação requer que sejam fornecidos meios de articulação suficientes para que haja o efetivo combate e repressão ao crime. Apesar do número de caso concretos não significar uma elevada quantidade, convém ressaltar que, na maioria dos casos, não se consegue alcançar a real proporção do número de casos de tráfico de pessoas, pois se trata de um crime “invisível”. Ressalta-se, ainda mais, a dificuldade em apuração quando se trata de modalidade de adoção ilegal, cujo crime ocorre, na maioria das vezes, no clandestino. Este foi um ponto que se sobressaiu nessa pesquisa, pois não foram encontrados dados suficientes e atualizados sobre o tráfico de crianças e adolescentes na modalidade de adoção ilegal41. 40. Dados fornecidos pelo MMFDH – Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos a partir do Disque 100, em agosto de 2019. 41. Ressalta-se que foram feitas pesquisas sobre o atual cenário de políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de crianças e adolescentes por meio da adoção ilegal a partir da leitura e interpretação de documentos e planos governamentais, disponibilizados nos endereços eletrônicos de cada órgão, assim como pela utilização da lei de transparência, concluindo-se que, apesar de inúmeras diretrizes bem desenvolvidas, há uma enorme lacuna na aplicação dos programas de políticas públicas de enfrentamento pelo gestor público. Outrossim, reafirma-se que não foram feitas pesquisas jurisprudenciais. Grande parte dos relatórios, seja de postos de atendimento ou até então o III Plano Anual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, demonstra inúmeras diretrizes capazes de combaterem o crime em questão, no entanto, não são capazes de demonstrar a aplicação concreta em conformidade com a atual gestão, seja política, administrativa ou financeira, dificultando a aplicação de fato. Outro fator importante foi a análise do Relatório Anual Norte Americano Trafficking in Persons Report que deixou mais transparente que as políticas de combate ao tráfico de pessoas no Brasil possuem diversos pontos a serem melhorados. O tráfico de crianças e adolescentes requer que exista uma ação articulada entre diferentes políticas públicas, a fim de que seja erradicado o crime. Atualmente está tramitando o projeto de lei nº 1.882/1942, de autoria do Deputado José Medeiros, cujo objetivo é modificar a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, para prever o confisco e a destinação de bens utilizados nos crimes de tráfico de criança ou adolescente ou contra a liberdade e dignidade sexual de criança ou adolescente. Entre outras mudanças, a proposta legislativa estabelece que parcela dos valores arrecadados sejam destinados a indenizar as vítimas dos respectivos crimes, bem como suas famílias, criando-se uma punição pecuniária àqueles que cometem o crime de tráfico de criança ou adolescente. Apesar do problema de enfrentamento ao tráfico de crianças e adolescentes no cenário atual consistir na imprecisão de aplicação de políticas públicas, o engajamento do Poder Legislativo fornecerá uma base mais forte para o combate ao crime, como também fortalece o canal de comunicação entre os que detêm o poder político e os governados, tornando efetiva a participação da sociedade como um todo. Outro programa de grande importância no cenário atual é o Programa Criança Feliz43 que, apesar de não haver interligação direta com o combate ao tráfico de pessoas na modalidade adoção ilegal, tem como público famílias de gestantes e crianças de até 03 anos de idade beneficiárias do Programa Bolsa Família, assim como famílias de crianças com deficiência 42. BRASIL, Projeto de Lei nº 1.882/19. Dispõe sobre o confisco e a destinação de bens utilizados nos crimes de tráfico de criança ou adolescente ou contra a liberdade e dignidade sexual de criança ou adolescente que especifica. Disponível em: https://www.camara.leg.br. Acesso em: 12 de novembro de 2019 43. MINISTÉRIO DA CIDADANIA, Manual do Pesquisador: Programa Criança Feliz, 1ª Edição, Brasília, 2018, p. 19. Disponível em: <https://aplicacoes.mds.gov.br>. Acesso em: 28 nov. 2019. de até 06 anos atendidas pelo Benefício de Prestação Continuada (BPB/ LOAS) e de crianças de até 6 anos em serviços de acolhimento institucional, focado no desenvolvimento integral da primeira infância. Este programa foi instituído pelo Decreto nº 8.869, de 05 de outubro de 2016, que posteriormente foi revogado pelo Decreto nº 9.57944, de 22 de novembro de 2018, cujas diretrizes se baseiam na formulação e a implementação de políticas públicas voltadas para a primeira infância. O Programa Criança Feliz auxilia, em regra, famílias hipossuficientes com crianças de até seis anos de idade, principais vítimas do tráfico de crianças e adolescentes na modalidade adoção ilegal. Conforme já dito, o tráfico de crianças e adolescentes na modalidade adoção ilegal atinge, na maioria das vezes, famílias de baixa renda e, consequentemente, pessoas que são mais facilmente ludibriadas ou que estão em situação de vulnerabilidade financeira. Essa característica é importante, pois é necessário avaliar que os programas de políticas públicas devem se orientar pelo ponto de partida da natureza real e intersetorial do assunto que está sendo avaliado que neste caso é, principalmente, a desigualdade social. A utilização deste programa auxiliará de forma preventiva no combate ao tráfico de crianças e adolescentes, pois o escopo deste projeto é auxiliar as camadas mais pobres, principalmente a primeira infância, fornecendo apoio de agentes públicos capacitados, com o objetivo de fortalecer os vínculos familiares, assim como disponibilizar o acesso à serviços públicos que antes eram de difícil acesso ou até inacessíveis à esta camada da sociedade. Outra diretriz desse programa trata-se da integração, ampliação e fortalecimento das ações de políticas públicas voltadas às gestantes, crianças na primeira infância e suas famílias45. Portanto, devemos perceber que ao criar uma política pública de assistência social voltada a famílias hipossuficientes e, principalmente, gestantes, estamos também combatendo o tráfico de crianças e adolescentes por meio da adoção ilegal. 44. BRASIL, Decreto nº 9.579, de 22 de novembro de 2018. Dispõe sobre a temática do lactente, da criança e do adolescente e do aprendiz, e sobre o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente e os programas federais da criança e do adolescente, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br>. Acesso em: 10 dez. 2019. 45. MINISTÉRIO DA CIDADANIA, Manual do Pesquisador: Programa Criança Feliz, 1ª Edição, Brasília, 2018, p. 19. Disponível em: <https://aplicacoes.mds.gov.br>. Acesso em: 28 nov. 2019. Importante salientar que não foi encontrado nenhum programa voltado especificamente ao combate de tráfico de crianças e adolescentes por meio da adoção ilegal. 7 CONSIDERAÇÕES SOBRE A ATUAL GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA MODALIDADE ADOÇÃO ILEGAL NO BRASIL Para que ocorra a criação de políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas é necessário que haja dados ou informações que serão base para a construção de programas específicos de prevenção, proteção e assistência às vítimas. Os dados são essenciais para a formulação de políticas públicas, tendo em vista que proporcionam uma visão mais clara dos fenômenos, permitindo, consequentemente, uma compreensão melhor sobre a realidade e os desafios que devem ser vencidos. Embora sejam crescentes os estudos sobre o tráfico de pessoas e, inclusive, na modalidade adoção ilegal, ainda precisam avançar os estudos, assim como há a necessidade de criação de maior número de instrumentos de captação de dados sobre a realidade do crime. Diante da insuficiência de dados será feita uma abordagem qualitativa e dedutiva, na qual serão considerados o cenário institucional e os atuais projetos existentes. Verifica-se que, desde a década de 1980, o Brasil já aderia a alguns dos principais tratados de proteção de direitos humanos como, por exemplo a Convenção sobre os Direitos da Criança, assim como a Declaração Universal de Direitos Humanos. Logo, no ano de 1990, foi instituído o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que passa a reconhecer as crianças e adolescentes como sujeitos de direito com prioridade absoluta no conjunto de políticas públicas. Tal fato é de suma importância, pois reitera que deve haver a destinação privilegiada de recursos para as áreas de proteção de crianças e adolescentes, conforme o artigo 4º, parágrafo único, alínea “c”, do ECA46. 46. BRASIL, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/l8069.htm. Acesso em: 04 nov. 2019. Outro marco se dá na Lei nº 13.344/16, que trouxe a tipificação de novas modalidades de tráfico de pessoas, a qual, inclusive, trouxe a modalidade adoção ilegal. Portanto, verifica-se que há instrumentos normativos suficientes no sentido de embasar os direitos das crianças e adolescentes, assim como criminalizar condutas que venham a subtrair seus direitos como, por exemplo, o tráfico de crianças e adolescentes na modalidade adoção ilegal, o qual retira o direito ao afeto da criança e do adolescente de sua família de origem. A legislação por si só não trará o efetivo combate ao tráfico de crianças e adolescentes, mas sua aplicação em conjunto com a dedicação dos gestores de políticas públicas e manutenção de recursos resultará em uma rede de combate eficaz. Quanto aos agentes que integram a rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas, há uma atuação preponderante de organizações sem fins lucrativos, assim como instituições no campo do Poder Judiciário que atuam no sentido de fiscalizar e garantir os direitos das crianças e dos adolescentes. Ainda, de suma importância, para que haja cada vez mais eficácia no combate ao tráfico de pessoas será necessário grande investimento nas redes de enfrentamento de regiões locais, pois, diante de sua atuação restrita, há maiores chances de colheita de dados, assim como uma maior participação da sociedade civil. A participação da sociedade civil é necessária, pois irá refletir maiores chances de uma política pública participativa e com indicadores mais próximos da realidade. Já é visível que o crime de tráfico de crianças e adolescentes ocorre em maior proporção nos países com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixo, pois é aonde se concentram os maiores níveis de pobreza e exclusão social47. Fatores como a desigualdade social, a extrema pobreza e a falta de oportunidades de trabalho criam condições de vulnerabilidade tornando possível que as pessoas inseridas nesse meio social possam se tornar vítimas de tráfico. Dessa forma, diante de tal assertiva, é necessário que sejam encaminhados programas de atendimento em que se concentram as famílias de baixa renda como, por exemplo, foi observado no Programa Criança Feliz. 47. ARONOWITS, Alexis A. Human Trafficking. 1. Ed. Santa Barbara, Califórnia, Denver, Colorado: Editora AB-CLIO, 2017, p. 14. O mapeamento de locais mais vulneráveis deverá dialogar com outros programas, a fim de delimitar a atuação preventiva e potencializar o seu sucesso. Um exemplo é o uso da Plataforma dos Centros Urbanos48, na qual dispõe sobre a porcentagem de mães adolescentes no Município de São Paulo. A Plataforma dos Centros Urbanos, a partir de dados quantitativos, delimitou que em Grajaú há uma maior porcentagem de mães adolescentes49, portanto, é necessário que haja maiores investimento nessa região, a fim de que sejam encaminhados agentes capacitados, assim como fornecer subsídios para que seja dado uma infraestrutura hospitalar melhor, bem como que ocorra maiores investimentos no âmbito da assistência social. A construção de Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) em tais regiões é uma forma de prevenir a ocorrência de situações de vulnerabilidade das famílias, pois atuam no sentido de fortalecer os vínculos familiares e comunitários, assim como garantem que todos tenham acesso aos direitos de cidadania50. Outra questão relevante reside na garantia que todas as maternidades ofertem o registro de nascimento, assim como o auxílio direto à gestante, a fim de evitar ao máximo ocorrências de “adoção à brasileira”. A “adoção à brasileira” ocorre quando o registro da criança ou do adolescente é feito em nome de pessoas que não seus pais biológicos, desrespeitando os trâmites legais do procedimento de adoção51. Uma das práticas mais comuns de “adoção à brasileira” trata-se de mulheres e adolescentes grávidas, das quais desprovidas de auxílio afetivo e financeiro, optam por realizar a “adoção à brasileira”52. Posto isto, é necessário o engajamento na criação de medidas de propagação de informação em locais onde estão mais expostas as possíveis 48. PREFEITURA DE SÃO PAULO, Plataforma dos Centros Urbanos: Dialógo Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, 2018. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br. Acesso em: 15 nov. 2019. 49. Ibidem 50. CIDADE DE SÃO PAULO, Centro de Referência de Assistência Social. Disponível em: https:// www.prefeitura.sp.gov.br. Acesso em: 02 dez. 2019 51. AMB – ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS – RS: Adoção passo a passo: mude um destino. Disponível em: http://www.mp.rs.gov.br/areas/infancia/arquivos/ adocaopassoapasso.pdf. Acesso em: 09 dez. 2019. 52. GODOY, Alana P. A invisibilidade do tráfico de crianças e adolescentes por meio da adoção ilegal. In: SMANIO, Gianpaolo P., PINTO, Felipe Chiarello de S., ATCHABAHIAN, Ana Cláudia Ruy Cardia, JUNQUEIRA, Michelle Asato, ANDREUCCI, Ana Cláudia P. Torezan (Orgs). MULHERES INVISÍVEIS: panorama internacional e realidade brasileira do tráfico transnacional de mulheres, Curitiba: Editora CRV, 2018, p. 94. vítimas como, por exemplo, maternidades e hospitais públicos, se utilizando de uma linguagem mais simples e menos coloquial para que alcance todos e que todos possam ser agentes de enfrentamento ao tráfico. Outra diretriz necessária é que ocorra um acréscimo nos meios de difusão de informações sobre como ocorre o crime, desde que realizados em locais estratégicos. A parceria entre a organização Childhood Brasil e a rede Atlantica Hotels trata-se de um exemplo de difusão e acesso à informação de forma eficaz e simples. A organização Childhood Brasil atua no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes, que também se trata de uma modalidade de tráfico de crianças e adolescentes. O tráfico de crianças e adolescentes por meio da exploração sexual consiste na objetificação da criança ou do adolescente em atividades sexuais remuneradas, como a exploração no comércio do sexo, a pornografia infantil e qualquer outra forma de atividade erótica que provoque proximidade físico-sexual entre a vítima e o explorador53. Por meio desta parceria, no ano de 2018, foi realizada a campanha “É legal Hospedar, É Legal Proteger”, na qual a rede hoteleira Atlantica Hotels divulgou a causa aos seus hóspedes com objetivo de torná-los agentes de proteção de crianças e adolescentes54. Tal atuação propiciou novas parcerias e projetos que fizeram com que houvesse uma maior participação de empreendimentos em causas protetivas envolvendo crianças e adolescentes. Além disso, este projeto propiciou a atuação direta da sociedade civil. Uma forma de incentivar a publicização dos locais de enfrentamento e atendimento às vítimas de tráfico de pessoas, será desde à disponibilização de panfletos em lugares públicos, assim como a disponibilização e utilização dos Mapas Estratégicos para Políticas de Cidadania (MOPS). Os Mapas Estratégicos para Políticas de Cidadania55 são um portal de acesso livre que disponibiliza informações de serviços, equipamentos públicos e programa sociais identificados em municípios, microrregiões e estados no 53. CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Exploração sexual e tráfico de mulheres e crianças: Uma violação de direitos, Brasília: 2011. Disponível em: http://www.cfess.org.br/ arquivos/cfessmanifesta2011_traficocriancas_site_revisado.pdf. Acesso em: 09 dez. 2019. 54. CHILDHOOD BRASIL. Childhood pela proteção da infância: relatório de atividades 2018. [s. l.], 9 out. 2019. Disponível em: https://www.childhood.org.br/relatorios/Childhood_RA_2018. pdf. Acesso em: 10 nov. 2019. 55. MINISTÉRIO DA CIDADANIA. Mapas Estratégicos para Políticas de Cidadania. Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/mops/. Acesso em 02 dez. 2019. país. Tal ferramenta se utiliza de uma tecnologia de georreferenciamento dos equipamentos públicos, aliada ao georreferenciamento do público do Cadastro Único para Programas Sociais. Além de auxiliar a população em localizar o serviço mais próximo de sua casa, também auxiliará os gestores de políticas públicas, pois permite o mapeamento de locais onde há atendimento à vítima e familiares, bem como locais onde ocorre a colheita de dados. Da mesma forma, o Programa Criança Feliz irá promover preponderantemente o contato de agentes capacitados com gestantes e crianças da primeira infância, facilitando o fortalecimento dos vínculos familiares. Deve haver um diálogo dinâmico entre os Conselhos Nacionais de Assistência Social, dos Direitos da Criança e do Adolescente com o Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Outrossim, também será necessário prover maior credibilidade às instituições de segurança pública e justiça criminal, uma vez que a probabilidade de uma vítima ou até mesmo um parente notificar uma situação vulnerável será maior quando a mesma depositar confiança nas instituições. Tal fato já foi comprovado nos países desenvolvidos, em que a taxa de notificação, em torno de 70%, era maior nas instituições, cuja sociedade depositava maior credibilidade, enquanto que, a taxa de notificação nos países em desenvolvimento, onde as instituições possuem menor credibilidade perante a sociedade, era em torno de 30%56. Por último, existe a necessidade do fortalecimento das redes de Núcleos e Postos, uma vez que as mesmas atuam de forma local, viabilizando um maior contato com a sociedade civil de forma contínua e permanente. O problema não é apenas aumentar o número das redes de Núcleos e Postos, mas também exercer uma fiscalização maior em seu funcionamento, pois verificou-se que sequer havia sido previsto orçamento ou executado no plano plurianual no relatório do Estado de São Paulo. As políticas públicas poderão ser cumpridas de duas maneiras. A primeira consiste na execução de trabalho, enquanto que, a segunda consiste no repasse de recursos pelo Governo Federal para outros agentes como, por exemplo, os governos municipais. 56. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Metodologia Integrada de Coleta e Análise de Dados e Informações sobre Tráfico de Pessoas, 2012, p. 10. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/traficode-pessoas/politica-brasileira/anexos_metodologia/2-metodologia-integrada-de-coleta-dedados-e-analise-de-dados-e-informacoes-sobre-trafico-de-pes.pdf. Acesso em 24 nov. 2019. De acordo com o Portal da Transparência57, no ano de 2019, a Administração Pública Municipal recebeu uma quantia superior a 100 bilhões de orçamento público, expondo que houve transferência de fundos aos Governos Municipais, apesar de não ter sido encontrado qualquer garantia que algum recurso fosse destinado aos Postos de Atendimento. Portanto, tal análise só reforça a ideia de uma maior implementação de fiscalização, principalmente no âmbito financeiro, sobre a rede de enfrentamento de tráfico de crianças e adolescentes. É necessário que haja o detalhamento sobre os recursos investidos diretamente na rede de enfrentamento ao tráfico, a fim de facilitar a divisão de tarefas que serão exercidas pelos agentes públicos organizações públicas e privadas. Para que isso ocorra, será também necessária a análise mais minuciosa das políticas públicas existentes, o que poderia ser feito por meio do quadro de referências de Maria Paula Dallari Bucci. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tanto as crianças e os adolescentes possuem direitos e garantias legalmente reconhecidas, com a finalidade de propiciar o desenvolvimento pleno de suas capacidades, assim como o direito de ter uma vida saudável. As políticas públicas serão direcionadas de forma prioritária à essa camada da sociedade, seja por meio de criação de novos programas ou a utilização dos existentes de forma continuada e permanente, sempre visando a sua potencialização em garantir os direitos previstos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. O tráfico de crianças e adolescentes na modalidade adoção ilegal configura uma das maiores atrocidades aos direitos da criança e do adolescente, pois fere o direito de estar no núcleo de sua família de origem. Apesar do cenário atual de enfrentamento ao tráfico de crianças e adolescentes na modalidade adoção ilegal não possuir projetos específicos ou dados suficientes que auxiliem na criação de políticas públicas, existem inúmeros projetos de cunho social que visam atender garantias desta camada da sociedade, principalmente da primeira infância (0-3 anos). Uma das melhores formas de deter a expansão deste crime é fortalecendo as bases familiares, assim como lhes fornecendo 57. PORTAL DA TRANSPARÊNCIA, Detalhamento de recursos transferidos por UF e Municípios. Disponível em: http://www.portaltransparencia.gov.br. Acesso em: 05 dez. 2019 subsídiossuficientes para que não permaneçam excluídos da sociedade e que tenham capacidade de ter uma vida digna. A existência de serviços básicos por si só não assegurará o acesso universal, mas a figura do gestor de políticas públicas fornecerá políticas preventivas de atuação ao crime organizado, fortalecendo a camada social pobre e lhe dando oportunidades que antes não a detinham. Posto isto, a partir da colheita de dados por meio de uma rede de enfrentamento mais fortalecida e mapeada, poderá ocorrer a atuação preventiva mais articulada, no sentido de implementar ações repressivas em locais determinados. Faz-se necessário também isolar as políticas públicas ligadas ao público infanto-juvenil do governo gestor, uma vez que, diante da prioridade absoluta, é necessário que sejam fornecidos meios permanentes e continuados de aplicação, sem que esteja atrelado às políticas de um governo ou à figura de um político específico. Para que sejam atingidas tais metas, a produção de dados sobre a realidade não pode ser serviço apenas de instâncias externas, mas deve ser um trabalho permanente dos órgãos públicos que atuam cotidianamente no enfrentamento ao tráfico de pessoas, principalmente quando envolvem crianças e adolescentes. É certo que o crime de tráfico de crianças e adolescentes na modalidade adoção ilegal é um crime complexo e que envolve organizações criminosas articuladas, mas o Estado brasileiro começa a trilhar seu papel de Estado garantidor de segurança pública, por meio das políticas públicas apresentadas. Contudo, seria necessário que fosse feito um estudo mais aprofundado e a partir do quadro de referências de Maria Paula Dallari Bucci para avaliar concretamente a eficácia e efetividade das políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de crianças e adolescentes por meio da adoção ilegal. REFERÊNCIAS AMB – ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS – RS: Adoção passo a passo: mude um destino. Disponível em: http://www. mp.rs.gov.br/areas/infancia/arquivos/adocaopassoapasso.pdf. Acesso em: 09 dez. 2019. APPIO, Eduardo, Controle Judicial das Políticas Públicas no Brasil, 1ª Edição, Curitiba, Editora Juruá, BIRKLAND, Thomas A. An Introduction to the policy process, Editora: M.E. Sharpe, 2005. BRASI. Decreto nº 62.293/16. Aprova o Plano Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Estado de S.Paulo, em consonância com o Decreto nº 54.101, de 2009, alterado pelo Decreto nº 60.047, de 2014. Disponibilizado em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/ decreto/2016/decreto-62293-06.12.2016.html. Acesso em: 26 nov. 2019 BRASIL, Decreto nº 9.579, de 22 de novembro de 2018. Dispõe sobre a temática do lactente, da criança e do adolescente e do aprendiz, e sobre o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente e os programas federais da criança e do adolescente, e dá outras providências. 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CAPÍTULO 19 AONDE ESTÁ VOCÊ AGORA? “MÃES DA SÉ” NOS ENCONTROS E DESENCONTROS POR CRIANÇAS DESAPARECIDAS: NARRATIVAS DE PROTAGONISMO, CIDADANIA E SOLIDARIEDADE ANA CLAUDIA POMPEU TOREZAN ANDREUCCI Pós-Doutora em Direitos Humanos e Trabalho pelo Centro de Estudos Avançados da Universidade Nacional de Córdoba, Argentina. PósDoutora em Novas Narrativas na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Pós Doutora em Direitos Humanos e Democracia pelo Instituto Ius Gentium, Universidade de Coimbra, Portugal. Doutora e Mestre pela PUC/SP. Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero e em Direito pela UPM. Professora do Curso de Graduação da Faculdade de Direito da UPM. Professora Convidada do Curso de Pós Graduação Lato Sensu da ECA/USP. Líder do Grupo de Pesquisa Emergente – CriaDirMack- Direitos da Criança do Adolescente no Século XXI da Faculdade de Direito da UPM. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Pessoas Invisíveis da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. MICHELLE ASATO JUNQUEIRA Doutora e Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie-UPM. Especialista em Direito Constitucional com Extensão em Didática do Ensino Superior. Vice-líder dos Grupos de Pesquisa “Políticas Públicas como Instrumento de Efetivação da Cidadania” e “Direitos das Crianças e dos Adolescentes no século XXI”. Pesquisadora do grupo de pesquisa CNPq “Estado e Economia no Brasil”. de Pesquisa “Pessoas Invisíveis: Prevenção e Combate ao Trá co Interno e Internacional de Seres Humanos”. Coordenadora de Pesquisa e TCC da Faculdade de Direito da UPM. VALÉRIA JABUR MALUF MAVUCHIAN Mestre em Direito pela Universidade Nove de Julho. Professora na Universidade Nove de Julho. Advogada. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Pessoas Invisíveis da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Como esta noite findará E o Sol então rebrilhará Estou pensando em você Onde estará o meu amor? Será que vela como eu? Será que chama como eu? Será que pergunta por mim? Onde estará o meu amor? (Maria Bethânia) INTRODUÇÃO Um ninho vazio. Um sentimento de ausência. Uma dor que não finda. Uma angústia. Um aniversário que não se comemora. Um sonho. Perda, culpa e ausência se misturam em uma explosão de sentimentos. A culpa sentida pelos próximos. A culpa apontada pela sociedade. A falta de informação. Uma busca incessante. O descaso do Estado. A solidariedade em rede. Um luto inacabado. Todos esses sentimentos, expressos em verbos e adjetivos, são insuficientes para descrever o objeto de investigação no presente artigo: a análise científica da atuação da Associação Mães da Sé na busca por crianças e adolescentes desaparecidos no Brasil. Eis o caminho: dar visibilidade a uma temática, que requer uma rede de solidariedade para atuação, em especial, trazendo a Academia para a seara dos debates, pois o presente artigo surge no âmbito do Projeto Pessoas Invisíveis da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, com foco no desaparecimento de pessoas e o tráfico humano. Importa dizer que o tráfico internacional de pessoas, prática criminosa verificada nacional e internacionalmente, se enquadra na premissa de uma sociedade pós-moderna de consumo. É, hodiernamente, a terceira maior atividade criminosa internacionalmente verificada, estando atrás apenas do tráfico de drogas e de armas. O caráter transnacional da modalidade criminosa se caracteriza justamente pelo fato de, em muitos casos, envolver redes de indivíduos e organizações de diferentes nacionalidades, sediadas em distintas localidades, mas com um fim comum. A atividade desempenhada, portanto, tem o mesmo objetivo, não mais importando as fronteiras dos Estados envolvidos. Internacionalmente, o tráfico de pessoas é regulado pela Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo), de 2000. Para dar efetividade às ações de combate foi criado o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime –UNODC, que mantém, desde março de 1999, o Programa contra o Tráfico de Seres Humanos, em colaboração com o Instituto das Nações Unidas de Pesquisa sobre Justiça e Crime Interregional (UNICRI). O programa coopera com os Estados-Membros em seus esforços de combater o tráfico de seres humanos, ressaltando o envolvimento do crime organizado nesta atividade e promovendo medidas eficazes para reprimir ações criminosas e tendo por alicerce de fundamentação legal e teórica as três convenções internacionais de controle de drogas, nas convenções contra o crime organizado transnacional e contra a corrupção e os instrumentos internacionais contra o terrorismo. (UNODOC, 2019) No Brasil, o UNODC atua no cumprimento das obrigações que assumiu ao ratificar as Convenções da ONU sobre Controle de Drogas; contra o Crime Organizado Transnacional e seus três Protocolos – contra o Tráfico de Seres Humanos, o Contrabando de Migrantes e o Tráfico de Armas; e a Convenção da ONU sobre Corrupção; além das recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional contra o combate ao terrorismo. No campo comunicacional o UNODC tem como missões institucionais: prevenção, proteção e criminalização. Para a efetividade de tais ações são recorrentes campanhas veiculadas1 em TV e rádio, distribuição de panfletos 1. À exemplo disso está a Campanha Coração Azul, lançada em 5 de março de 2009, sob o título de Blue Heart Campaign, que simboliza a tristeza das vítimas do tráfico de pessoas e sensibilizar acerca das mazelas do comércio de seres humanos. A Campanha possui como objetivos: Tornar o símbolo “Coração Azul” um ícone de reconhecimento da Campanha de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas; Promover ações promocionais e intervenções, com o objetivo de sensibilizar a sociedade, ONGs, Órgãos Governamentais, mídia e formadores de opinião para esse problema social; Despertar na população a consciência social, incentivando assim a busca pela informação e denúncia. Utilizando-se também da força das redes sociais, informativos e parcerias para a sensibilização e consciência pública sobre os temas que lhes são aderentes.(UNODOC, 2019) No Brasil, o crime encontra previsão no Código Penal, que, em seu artigo 231, que sofreu modificações em 2009, em virtude do advento da Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. O País também ratificou a Convenção de Palermo, promulgada por meio do Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004, e conta, desde 2008, com Políticas Nacionais para enfrentamento ao tráfico de pessoas. Além disso, o combate conta com o apoio institucional do Ministério da Justiça, Ministério Público Federal, Polícia Federal, Defensoria Pública da União, Advocacia-Geral da União, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e do Poder Judiciário, dentre outras organizações públicas. Organizações da sociedade civil brasileira também desempenham importante papel na divulgação dos principais aspectos relacionados ao crime ora em análise. Atualmente, o tráfico internacional de pessoas é considerado uma das atividades mais rentáveis economicamente, e grande parte do tráfico humano está ligado a crianças e adolescentes, considerados mercadorias2 para as mais diversas questões, trabalho, adoção, exploração sexual. No Brasil, cabe que ressaltar que no ano de 2010 a Campanha Coração Azul alcançou no Facebook a marca de 10.000 mil membros se destacando como um dos maiores grupos nesta mídia social. O Brasil aderiu à Campanha em maio de 2013 por meio de uma parceria entre o Ministério da Justiça e o Escritório de Ligação e Parceria do UNODC, e o primeiro slogan foi “Liberdade não se compra. Dignidade não se Vende. Denuncie o Tráfico de Pessoas”, motes para a sensibilização e mobilizações sociais. Desde então, na semana de enfrentamento ao tráfico de pessoas, repartições, prédios, entre outros, vêm sendo iluminados de azul com vistas à conscientização social. Em 2017, a campanha tem por mote “Para que o sonho não vire armadilha”, com ênfase na luta contra o trabalho escravo, exploração sexual e tráfico de órgãos. As diversas parcerias entre Ministério da Justiça e Segurança Pública, bem como os inúmeros núcleos foram responsáveis pelo estímulo de eventos nacionais de Mobilização do Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, em especial, no dia 30 de julho, declarado pela Organização das Nações Unidas como o Dia Mundial de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Uma das principais preocupações do Ministério da Justiça, que conta com o largo apoio do Ministério das Relações Exteriores, é disseminar para a população a importância dos canais de denúncia entre eles, o Disque 100 e o Ligue 180, que colaboram para garantir visibilidade ao tema. 2. Celebra-se, anualmente, no dia 25 de maio o Dia internacional da criança desaparecida, momento para reflexão, debates e mobilização social sobre as questões que envolvem estes desaparecimentos em escala transnacional. A data tem como origem o desaparecimento em Nova Iorque, EUA, de Etan Patz, um menino de 6 anos, enquanto voltava da escola, em 25 de maio de 1979. A partir desta data, familiares, amigos e comunidade passaram a se reunir para discutir e divulgar os cuidados para se evitar a ocorrência de tal crime. A criança foi morta por Pedro Hernandez e o corpo nunca foi encontrado. Entre idas e vindas do processo judicial, a sentença condenatória final aconteceu 38 anos depois, do crime, no ano de 2017. Em 1986, Ronald Regan, presidente dos EUA, à época declarou nacionalmente a data de 25 de maio como dedicada à temática das crianças desaparecidas. Mas, foi em 1988 por ocasião do evento internacional Global Missing Children’s Network – GMCN (Rede Mundial de Crianças Desaparecidas), que representantes de vários países instituíram o dia 25 de maio como Dia Internacional da Criança Desaparecida. Informações disponíveis em https://exame.abril.com. br/mundo/38-anos-depois-chega-ao-fim-caso-de-crianca-desaparecida-nos-eua/ Acesso em 30. Set. 2019. no que tange ao desaparecimento de crianças e adolescente os números são inexatos, com extrema carência de dados e intercomunicabilidade de entes e agentes estatais. Para fazer frente à situação, em 17 de dezembro de 2009, foi sancionada a Lei nº 12.127/2009 (Brasil, 2009), responsável pela criação do Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Desaparecidos. Estabeleceu-se também uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e em fevereiro de 2010 uma força tarefa entre a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República - SDH/PR, em parceria com o Ministério da Justiça – MJ, com o apoio da Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidas, para implementação do Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Desaparecidas. 1 DESAPARECIMENTO COMO NARRATIVA DE UM LUTO INACABADO São Paulo, 23 de dezembro de 1995, sábado. Época festiva. Preparativos de natal. Rituais de renovação para o ano que se aproxima. A aceleração típica dos balanços de final de ano. Para Ivanise Esperidião foi diferente. Neste dia sua vida parou. Era o começo de uma nova narrativa. Passados mais de 24 anos, 23 de dezembro de 1995, foi o dia que nunca acabou. Ele é revivido todos os dias de sua vida, em forma de dor, em forma de luta, em forma de esperança, em forma de solidariedade. Naquela tarde de sábado, sua filha, Fabiana de 13 anos, foi à casa de uma amiga desejar feliz aniversário, e nunca mais voltou. Relatos e testemunhos noticiavam que ela foi vista pela última vez a 120 metros de sua casa. Devassidão, angústia, sentimento de culpa foram os primeiros sentimentos de Ivanise. E foi neste labirinto de dor e, tomada por extrema emoção, que Ivanise saiu a procurar sua filha. Entre as pedras no caminho, encontrou falta de atenção de entes estatais, o julgamento impiedoso da sociedade, o sentimento de culpa no dever de cuidado como mãe, a solidariedade de alguns, e a dor compartilhada por outros. Delegacias, Institutos Médicos Legais, Fóruns, Hospitais, Aeroportos se tornaram rotina na busca por Fabiana. Onde havia uma informação, mesmo que desprovida de qualquer objetividade, lá estava Ivanise. Em seus relatos, muitos compartilhados na manhã de Congresso de Pessoas Invisíveis ocorrido no final de setembro de 2019, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, foram três meses de intensa procura, hiatos informacionais, descasos estatais, uma peregrinação solitária, o que a levou quase à loucura, desnutrição e a certeza, segundo suas literais palavras de que “viver o desaparecimento de uma pessoa é mil vezes pior do que a morte, é uma dor que não tem remédio, é um luto inacabado.3 Essa dor é pior que a morte porque você morre um pouco a cada dia”, diz. “Todos os dias ao acordar e todas as noites ao dormir, essa é a primeira coisa que passa pela minha cabeça.”.4 Desde a notícia até hoje, a palavras que emergem da sua incessante procura são: dor, culpa5,descaso, solidariedade e ação6. A dor intensa e solidária fez emergir o compartilhamento de uma dor coletiva, havia um chamado para a converter a dor em ação7, e assim surgiam as primeiras 3. 4. 5. 6. 7. Sobre o tema ver “Como não existem dados definitivos que demonstram a ausência completa do filho, as mães enfrentam um dilema interno entre manter a esperança do reaparecimento do familiar, acompanhada do cansaço e desgaste emocional que essa situação comporta e a culpa de não manterem as expectativas de maneira contínua. Essa ambivalência pode, inclusive, afetar a retomada da rotina, o convívio com os demais familiares, dificultando a reorganização da estrutura familiar. Contudo, algumas mães, em certa medida, conseguem retomar parte de suas vidas, sem deixar de irem atrás de notícias e informações sobre os filhos desaparecidos. Porém, observa-se que o luto passa a ser vivenciado predominantemente na esfera individual, resultando no afastamento ou redução na participação em ONGs e coletivos de mães com filhos desaparecidos, como também o descrédito atribuído às instancias governamentais responsáveis pelas buscas. A individualização do luto coloca em pauta as falhas do Estado no desempenho do seu papel de proteção e auxílio na busca pelos desaparecidos. Ao tornar o luto uma responsabilidade individual, pode haver uma banalização do desaparecimento e uma naturalização do sofrimento materno, reforçando a ideia de que as mães são as únicas responsáveis pelo processo de busca dos seus filhos. A associação entre a dinâmica individual já descrita, com as falhas do Estado, contribui para o processo de melancolização dessas mães, que se veem sem recursos para a elaboração do luto”. ROLIM, G. S., RADZEVICIUS, L. C., SALDANHA, M. F., TARDIVO, L. S. L. P. C., & SALLES, R. J. (2018). ANÁLISE DO LUTO DE MÃES DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES DESAPARECIDOS. PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 38(3), 507-521. ACESSO EM 20.JAN.2020. Disponível em https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/09/24/lutoinacabado-relatos-de-maes-que-vivem-em-busca-de-filhos-desaparecidos.htm? Acesso em 20. Dez.2019. O sentimento de culpa está atrelado à Teoria da Perda Ambígua estudada por Boss, que tem sua gênese na Teoria de Estresse na Família, atribuindo ao estresse o resultado de contextos e mudanças familiares, que podem ocorrer diante da ausência física de um ente familiar, como é o caso aqui, nas questões de desaparecimento, bem como em casos de o ente familiar estar presente fisicamente mas, psicologicamente,por questões de saúde há uma ausência na relação familiar. Tais questões geram o vazio existencial e as variações multidisciplinares que esta perda pode causar, em especial, a ressignificação da ausência e o fechamento de rituais. BOSS, P. Ambiguous loss. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1999. Segundo Marcelo Moreira Neumann “existe uma minimização do problema por parte do Estado, Este movimento refere-se à própria desresponsabilização do Estado, em relação à garantia de políticas públicas, que consequentemente leva ao desaparecimento de pessoas. (...) As instituições privadas e as organizações não governamentais estão na vanguarda do enfrentamento do problema e assumem um papel que deveria ser do Estado, pois o tema ainda não é uma política de Estado, o que fragiliza todo o sistema de garantias.” NEUMANN, Marcelo Moreira. O desaparecimento de crianças e adolescentes Tese de Doutorado. Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010. Sobre a temática do descaso estatal e a solidariedade entre mães com filhos desaparecidos é emblemático relembrar aqui o caso das Mães das Vítimas da Chacina de Acari, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1990, cabendo citar “ Em 21 de julho de 1990, 11 jovens foram passar o fim de semana em um sítio em Suruí, Magé, na Baixada Fluminense, estado do Rio de Janeiro. Passado o fim de semana, decidiram permanecer mais alguns dias no local. Segundo depoimentos, na noite do dia 26, seis homens encapuzados entraram no sítio dizendo que eram policiais. Após conversarem com três dos jovens no sítio, teriam levados todos numa Kombi e no carro de um sementes do que seria mais tarde a Associação Brasileira de Busca e Defesa à criança desaparecida, conhecida como “Mães da Sé”. 2 MÃES DA SÉ: QUANDO OS VOCÁBULOS DOR E LUTA SE TORNAM SINÔNIMOS Ivanise Esperidião da Silva e Vera Lúcia Gonçalves tinham algo em comum: partilhavam a dor de ter um filho criança desaparecido. Ambas receberam um convite, era janeiro de 1996, participar das gravações de uma novela na Rede Globo de Televisão, com a assinatura da novelista Glória Perez. Explode Coração iria ao ar em horário nobre, e como de costume nas novelas de Perez, traria ao debate temas sensíveis e invisíveis do cenário nacional, o escolhido agora era o desparecimento de pessoas. O convite fez emergir uma rede de solidariedade e empoderamento8, Ivanise e Vera conheceram o trabalho das Mães da Cinelândia do Rio de Janeiro e o Movimento Nacional em Defesa das crianças desaparecidas, do Paraná. E, assim, cônscias do sentimento do descaso Estatal, da invisibilidade da temática e da dor, essas mães em 31 de março de 1996, fundaram a Associação Brasileira de Defesa a Crianças Desaparecidas (ABCD) ou Mães da Sé, com alusão às mães de desaparecidos políticos na Argentina, as Mães da Praça de Maio. Em um primeiro momento, os objetivos e missões da Associação estavam focados prioritariamente na busca por crianças e adolescentes desaparecidos, mais nestes mais de 20 anos de atuação, ampliou-se a demanda de atendimento não havendo mais delimitação de faixa etária. Os objetivos foram expandidos em razão da função social ainda maior, dar guarida comunicacional, psicológica e jurídica às famílias com entes desaparecidos. 8. dos jovens. Há várias versões. Uma delas é que depois de torturados, foram colocados numa van que teria sido incendiada. Outra é a de que os corpos teriam sido jogados aos leões que eram mantidos no sítio de um policial civil, próximo ao sito onde se encontravam inicialmente. As Mães de Acari comparadas às Mães da Praça de Maio, da Argentina, tem apoio da Anistia Internacional. Em 1993, uma das mães mais atuantes, Edméia, foi brutalmente assassinada na saída de um presídio no Rio de Janeiro. Segundo relatos, ela acabara de receber informações que teriam sido fundamentais para o esclarecimento da chacina.SOARES, Bárbara; MOURA, Tatiana; AFONSO, Carla. (Orgs.). Auto de Resistência: relatos de familiares de vítimas da violência armada. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. Sobre o tema ver “Empoderamento é assim para Freire um processo que emerge das interações sociais em que nós, seres humanos, somos construídos e, à medida que, criticamente, problematizamos a realidade, vamos nos “conscientizando”, descobrindo brachas eideologias; tal conscientização nos dá “poder” para transformar as relações sociais de dominação, poder esse que leva a liberdade e à libertação”. GUARESCHI, P. EMPODERAMENTO (VERBETE) IN STRECK, D., REDIN, E. .J. ZITKOSKI, J. . DICIONÁRIO PAULO FREIRE. BELO HORIZONTE: AUTÊNTICA, 2010, PP.147-148. Resta claro, portanto, que o desaparecimento e os descasos das entidades Estatais fizeram brotar nestas mães a vontade de protagonizar a dor9, transformando-a em ação, em vontade de agir para ajudar milhares de pessoas que convivem com este drama no Brasil, lembrando, contudo, ser este um problema de caráter transnacional. A Associação articula ações com setores públicos e privados, denunciando situações de riscos, colaborando com um atendimento psicológico e jurídico pautado pela integridade e respeito à pessoa humana. São as principais ações da entidade: - Atendimento psicológico das mães e famílias dos desaparecidos, bem como dos encontrados, por meio de parceria com a Universidade Presbiteriana Mackenzie; - Encaminhamento para atendimento psiquiátrio, também fruto de parceria com uma profissional da área; - Assessoria jurídica com a colaboração de advogados voluntários; - Parcerias e convênios com Delegacia de Pessoas Desaparecidas, Ongs e Institutos, Ministério da Justiça,Abrigos, Conselhos Tutelares, Assistência Social, entre outros; - Ampla divulgação de fotos dos desaparecidos, nos diversos canais de comunicação. Entre uma das atividades recorrentes da Associação estão os encontros quinzenais aos domingos, nas escadarias da Catedral da Sé, localizada no Centro da capital Paulistana. Mães e familiares carregam fotos e cartazes dos entes desaparecidos. Renovação de esperança para aqueles que partilham da mesma dor. Para Ivanise “a partir do momento em que eu comecei a compartilhar a minha dor, aprendi a lidar de uma forma mais amena com esse luto inacabado” e “insistimos para que ninguém desista. Nós somos irmanadas pelo mesmo sofrimento.”10 A Associações Mães da Sé traduz pragmaticamente para a realidade social o que a filósofa Hannah Arendt denominava de “a gramática da ação”, ou seja, o transporte do mundo da teoria para a práxis social, pois a 9. Sobre empoderamento e solidariedade ver também : “ao se constituírem como mães no espaço público por meio de uma ética, novas relações de poder são produzidas, mesmo que sejam formadas a partir da reafirmação de normas e papéis sociais tradicionais. Essas mulheres, ao reforçarem seus vínculos maternos com seus filhos desaparecidos, retiram legitimidade do seu papel de cuidado na vida privada. Elas falam do lugar de mães que habitam, não para subvertê-lo, mas para reafirmá-lo como condição pressuposta para a sua luta. LEAL, Eduardo Martinelli. “Naquela época não se ouvia falar de desaparecido”: família e maternidade na militância do desaparecimento de pessoas no Brasil. Mana, Rio de Janeiro , v. 25, n. 3, p. 605634, dez. 2019 . Disponível em <http://www.scielo.br>. Acesso em 30 jan. 2020. 10. https://www.terra.com.br/noticias/transformei-a-minha-dor-na-luta-por-10-mil-pessoas,0ffe 88a79bef7d4ac7946f742fcf4f01di77RCRD.html. Acesso em 20.dez.2019. existência só se perfaz pela pró-atividade ou pelo protagonismo. Não basta estar no mundo, existir é agir. Arendt com ênfase na ação, nos remete à noção do agir para existir ao ponderar que “só assim é possível ser alguém”, atingir realidade plena. Ao expor-se não só no espaço físico do mundo, mas também na “teia de relações humanas”, a ação iniciada pelo agente ganha um dinamismo que produzirá uma história na qual o indivíduo e o sujeito, podendo atingir a imortalidade, para ingressar na história sem começo nem fim que é o livro de histórias da humanidade”. Ainda, Arendt reforça a ideia de ação coletiva, a interpessoalidade humana para a pragmática social, e é no exercício da política o locus privilegiado para tal ato que demanda criatividade e se transforma em uma expressão da mais elevada das faculdades 11. Esse agir coletivo ganha dimensões constitucionais12 posto que se funda na solidariedade não apenas como atributo de união, mas também, de protagonismo de ação a envolver família, sociedade e Estado na implementação de políticas públicas prioritárias, em especial, à criança e ao adolescente. Constitui-se como uma das facetas dos Direitos Humanos, do Estado Democrático de Direito e da fraternidade humanitária.13 11. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p.231. 12. Dotado de importância ímpar para a arquitetura do sistema, o princípio da solidariedade estrutura e dignifica as relações sociais e no entender de Willis Santiago Guerra Filho:Os direitos humanos – e os direitos fundamentais, no plano do direito posto, positivo – vêm adquirindo uma configuração cada vez mais consentânea com os ideais projetados pelas revoluções políticas da modernidade, tão bem representados pela tríade “liberdade, igualdade e fraternidade”. Atualmente, já se pode perceber com clareza a interdependência destes valores fundamentais: sem a redução de desigualdades, não há liberdade possível para o conjunto dos seres humanos, e sem fraternidade – ou melhor, “solidariedade” para sermos mais “realistas” visto que a fraternidade às vezes não existe sequer entre os verdadeiros irmãos-, sem o reconhecimento de nossa mútua dependência, não só como indivíduos, mas como nações e espécies naturais- também dependemos do ambiente natural – não atinamos para o sentido da busca de liberdade e igualdade. Pode-se dizer que o Direito, nessa conjuntura, há de assentar-se em uma ordem constitucional que, em sendo aquela própria de um Estado Democrático, impõe deveres de solidariedade aos que compõem uma comunidade política, a fim de minorar os efeitos nefastos da desigualdade entre eles em relação à sua liberdade e ao respeito à dignidade humana Proposta de Teoria Fundamental da Constituição (com uma inflexão processual) In ALMEIDA FILHO, Agassiz & MELGARÉ, Plínio. Dignidade da pessoa humana: fundamentos e critérios interpretativos. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 319-320. 13. A solidariedade das mães nasceria dessa dor partilhada e que se torna combustível para a luta política. Essa união é celebrada por todas as mães. Quero, contudo, pontuar uma questão. Efetivamente, a solidariedade aparece como pano de fundo de muitos discursos hoje. Ao apelar para valores universalizantes e humanitários esta noção consegue “amarrar” as mais diferentes coletividades. No entanto, vale ressaltar que apesar de sua perspectiva englobante, esse discurso surge historicamente a partir de grupos organizados. Se a solidariedade é vista como um sentimento universal, na prática, ela precisa ser “ativada”. Foi utilizando a categoria “mãe” e tudo que ela acarreta em termos de significados sociais, bem como utilizando um saber-fazer que lhe é próximo que essas mulheres construíram os seus discursos, que não podiam estar alheios às discussões que então se realizavam na sociedade. Por isso, elas partiram de uma conclamação às mães, não a uma humanidade indiferenciada. Ao invés da universal, a solidariedade aparece demarcando o pertencimento ou não pertencimento a um grupo (e 3 MÃES DA SÉ: DIÁLOGOS COM FONTES NORMATIVAS DE PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE O agir pragmático da Associação Mães da Sé encontra absoluta fundamentação nos instrumentos internacionais e nacionais que regem a temática da criança e do adolescente. Prioridade absoluta, proteção integral, solidariedade são vocábulos da tessitura das normativas legais, mas que muitas vezes não ecoam na pragmática social. Foi exatamente o sentimento de hiato entre normas e aplicação fática que fez com que mães como Ivanise e Vera passassem a atuar. Foi diante do descaso de não tratar a comunicação de um crime de desaparecimento de criança como prioridade que fez com elas passassem a atuar. Foi diante da não solidariedade Estatal que fez com que elas passassem a atuar. Cabe lembrar que o princípio da solidariedade está insculpido no Artigo 19 do Pacto de São José da Costa Rica ou também conhecido como Convenção Americana de Direitos Humanos, firmado a partir da Conferência Especializada Interamericana de Direitos Humanos, entre os países integrantes da Organização dos Estados Americanos, em 22 de novembro de 1969, entrando em vigor apenas em 18 de julho de 1969. Referida Convenção é o paradigma de proteção aos Direitos Humano a partir dos ideários da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, ditando que: “Toda criança terá direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte da sua família, da sociedade e do Estado”. Assim, apesar de ter sido ratificado pelo Brasil apenas no ano de 1992, através do Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992, exerceu fortes influências na produção da Constituição de 1988, em especial, na construção do art. 227 que agasalha a proteção constitucional ao Direito das Crianças e Adolescentes. O firmamento da solidariedade como valor se fará presente como inspiração legislativa, debates acadêmicos e decisões judiciais. Intervenções necessárias na família pautadas em momentos justificáveis poderão se fazer necessárias, pois superada está a noção de criança como objeto de propriedade dos pais, para a doutrina da proteção integral e proteção por todos integralmente. Estabeleceu também o ECA o princípio da solidariedade entre família, comunidade, sociedade e Estado, asseverandose que todos são corresponsáveis pelo desenvolvimento integral da criança a uma agenda de interesses específica, ainda que preocupada com o “todo social”). Ela é vista como a única forma de garantia de um futuro melhor, de uma união que se afasta dos valores mais individualistas e repousa numa visão de sociedade (e de futuro) onde os diferentes sujeitos sociais possam ser respeitados. FREITAS, Rita de Cássia Santos.Famílias e violências: reflexões sobre as Mães de Acari. Disponível em http://www.scielo.br. Acesso em 20.dez. 2019. e do adolescente. Assim, tal arquitetura principiológica nos dá conta de que as crianças deixam de ser dos pais, passam a ser sujeitos de direito a que todos devem estar atentos, são chamados a contribuir, bem como fiscalizar não apenas a família, mas também a sociedade e o Estado. A Carta de 1988, como também o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente -, em exata adstrição ao Pacto de São José da Costa Rica, Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959) e à Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989), imprimem no ordenamento jurídico brasileiro o resultado de longa e severa batalha dos movimentos sociais em prol do reconhecimento dos direitos das crianças e dos adolescentes. A fonte mais importante da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente, no direito brasileiro, é, sem dúvida, o artigo 277 da Carta Constitucional que expressamente prevê ser “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” Destaca-se que a necessidade de proteção especial se justifica em virtude da “falta de maturidade física e mental”, consoante a Declaração Universal dos Direitos da Criança. Assim, além dos direitos fundamentais comuns a toda pessoa humana, podemos identificar alguns especiais relativos à criança e ao adolescente, direitos estes albergados sob o manto principiológico e a doutrina do que se convencionou chamar “doutrina da proteção integral”. Destaca-se que a afirmação da criança e do adolescente como “pessoas em condição peculiar de desenvolvimento” e do ponto de vista da práxis social e aplicabilidade de tão princípio na realidade concreta significa dizer que crianças e adolescentes, a partir da ontologia do ser, são sujeitos de direito em desenvolvimento e este reconhecimento pressupõe um valor especial, desenhado, inclusive pelo Constituinte de 1988, como um direito social, que gerará a imperativa da produção de Políticas Públicas pelo Estado.14 E diante desta arquitetura normativa de proteção ao direito da criança e do adolescente que a Associação Mães da Sé pauta suas ações pragmáticas cobrando Políticas Públicas, transparência, celeridade e atuação Estatal. 14. ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches, Estatuto da criança e do adolescente comentado: Lei 8.69/1990: artigo por artigo. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 74. 4 MÃES DA SÉ: COMUNICAÇÃO COMO INSTRUMENTO PARA A SENSIBILIZAÇÃO NOSSA DE CADA DIA Quando falamos da sensibilização, a palavra comunicação emerge como núcleo irradiador, e que merece ser melhor explorado. É a comunicação que nos faz humanos, que propicia a criação de laços e que oportuniza a interação social. Comunicação é o instrumento chave para a solidariedade humana, e como instrumento está sujeito às modificações dos tempos. Comunicação é uma das facetas da evolução humana. Comunicação é uma forma de tornar comunitário, social e coletivo. Comunicação é um Direito Humano Fundamental. Tornar o invisível visível tem por finalidade transformar o oculto em público e, portanto, trazer o problema privado à esfera pública, à opinião pública, à sociedade, que, no âmbito da democracia representativa deve ser ativa, participativa e transformadora, e assim produzir um efeito multiplicador benéfico e irradiador de novas condutas. Em temáticas de tão profunda relevância quanto o tráfico de pessoas e, mais particularmente, o tráfico de crianças, a comunicação é instrumento de combate que não pode ser esquecido, apresentando-se com feições de políticas pública de proteção às minorias em condições de vulnerabilidade. Em última análise, o que se pretende efetivar é o direito à comunicação, o direito à voz e, como consequência – a cidadania – sustentáculo da República Federativa do Brasil, desenhada pela Constituição de 1988, na medida em que edifica a consciência do “direito a ter direitos”, transformando palavras no binômio diálogo/ação. A partir de tal ótica, o Direito à Comunicação pode ser vislumbrado com ligações intrínsecas com a cidadania e a igualdade. Contudo, em que se pese ser considerado Direito Humano Fundamental, conforme Victor van Oeyen, Paulo Lima e Graciela Selaimen: a mobilização pela defesa do direito à comunicação é mais difícil que qualquer outra mobilização por direitos humanos. A Comunicação ainda é vista como uma questão menos urgente – quando chega a ser cogitada – por governos e sociedade civil. A luta por este direito ainda é incipiente e é fundamental que todas as organizações da sociedade civil e pessoas dedicadas ao fortalecimento da cidadania – e não apenas aquelas dedicadas aos temas de mídia e comunicação – voltem sua atenção e uma parcela de seus esforços para garantir que o direito à Comunicação seja preservado.15 15. OEYEN, Victor van; LIMA, Paulo & SALAIMEN, Graciela. A Campanha CRIS. Revista do Terceiro Setor. Extraído do texto “A Cúpula Mundial de 2003: a Sociedade Informacional”. São Paulo: RITS, junho de 2002. Disponível em: www.cmsi.org.br/cris.htm . Acesso em 23 set 2019. A forma de se fazer comunicação se alterou, não deixou de existir. Em tempos Pós-Modernos se faz comunicação por redes, e assim se enfatiza o papel democrático e protagonista do ciberativismo, instrumento próprio da cidadania digital. Pertencemos, debatemos, nos solidarizamos. A rede social quando feita de forma ética, transparente e comprometida pode trazer avanços inigualáveis à sociedade. Como prova disso, está o ciberativismo de Institutos, associações, Governos, Estados, Universidades, e a sociedade civil organizada, que por meio de confluências promovidas por redes sociais, potencializam suas pautas, geram informação e propiciam resultados mais céleres. E, assim, resta clara a importância do direito à comunicação, na chamada “era da informação” ou também conhecida como “sociedade em rede”, uma era identitariamente marcada pela fluidez, pelo ritmo frenético de alterações sociais, políticas e econômicas, na qual há a necessidade de se pensar o contemporâneo, as novas narrativas institucionais e o desenvolvimento de estratégias que aproximem os diversos atores sociais com vistas à sensibilização para temas de Direitos Humanos, atuais e recorrentes. A partir das novas formas de comunicação, temas de relevância têm sido despertados trazendo maior sensibilidade aos participantes, desta nova Ágora do mundo pós-moderno, as redes sociais. A forma de comunicar e fazer com que problemas e crises sejam compartilhados invadem os espaços públicos e saem da micronarrativa para a macronarrativa. Há diversas páginas que compartilham informações, desafios e mobilizam redes colaborativas garantindo visibilidade e efetividade a debates até então cingidos apenas às categorias demarcadas. Os debates que começam nas redes sociais se bem engendrados podem ser potenciais de mobilização para parcerias público-privadas, bem como fomento para Políticas Públicas comunicacionais para inovação e educação digital para inclusão de novos participantes no processo de agremiação cibernética voltados à mobilização social de temas de Direitos Humanos. Importante destacar que o Brasil no ano de 2010 organizou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para tratar do tema de crianças e adolescentes desaparecidos e entre as proposituras destacou-se a necessidade de convocação de parcerias efetivas entre os diversos atores sociais, públicos e privados para garantir maior abrangência na efetivação de buscas. Entre as muitas propostas estavam o uso de softwares de reconhecimento facial e a utilização de redes sociais e de compartilhamento para garantir maior amplitude às buscas. Diante deste cenário, convém ressaltar que um dos núcleos de atuação para o Projeto Mães da Sé é a divulgação e salienta Ivanise Espiridião que “a divulgação é a nossa ferramenta de trabalho. Quanto maior ela for, maiores são as chances de encontrarmos [os desaparecidos]. Só como exemplo, eu cito o caso de um rapaz, com necessidades especiais, desaparecido há 11 anos. Descobrimos que ele foi parar em uma instituição. E por meio da divulgação, uma assistente social resolveu ir até o nosso site e conseguiu localizar a família dele”.16 A quem caberia o papel de ressignificar as múltiplas mudanças, fundar novos paradigmas de interação social e desenvolvimento humano? Nossa resposta sempre foi, é e será enfaticamente, a conjugação de vários atores sociais, mas em especial, as estratégias comunicacionais têm grande peso, vamos às principais atividades desenvolvidas pela Associação Mães da Sé para sensibilização e engajamento dos diversos públicos. 4.1 IMAGENS, IMPRESSÕES, CARTAZES, BOLA EM CAMPO: PARCERIAS MULTIPLICADORAS DE ENGAJAMENTO SOCIAL Múltiplas formas. Plataformas plúrimas. Ingredientes simples. União de propósitos. Comunicação criativa. Sim, todas essas fórmulas colaboram para o engajamento social na questão do desaparecimento de pessoas. As Mães da Sé sabem bem disso e a cada ano surgem novas propostas, convênios e parcerias que levam à multiplicação de atores sociais envolvidos na questão. Neste sentido, uma das suas iniciativas originárias e que permanece até hoje são as reuniões quinzenais de familiares de desaparecidos que ocorrem nas escadarias da Catedral da Sé, trazendo cartazes, fotografias. Este momento possui toda uma força imagética e de solidariedade, e se constituiu como uma das primeiras ações de sensibilização das Mães da Sé. A iniciativa ganha contornos ainda mais atuais e de multiplicação social, com o projeto Imprima para ajudar, em convênio com a FCB Brasil e a HP que convidam usuários de impressoras da HP com tecnologia ePrint, na impressão de cartazes com as imagens de desaparecidos em diversos lugares do país. Os consumidores que quiserem colaborar fazem cadastro para identificação junto à Associação Mães da Sé. A partir de sua geolocalização passam a receber em suas impressoras cartazes de pessoas que desapareceram nas regiões próximas ao seu endereço e automaticamente passam a receber em suas impressoras cartazes sobre pessoas desaparecidas nas regiões próximas ao seu endereço. Uma ação de comunicação que multiplica o raio 16. Disponível em http://www.saopaulo.sp.leg.br/blog/maes-da-se-renovam-esperancas-paraencontrar-criancas-desaparecidas/. Acesso em 12.dez.2019. de atuação e aumentam as chances reais de encontrar um desaparecido. Para os criadores do projeto se traduz como uma forma de se colocar a tecnologia a favor da esperança.17 Também existem projetos governamentais que buscam dar visibilidade ao tema, e como exemplo, podemos citar a “Exposição Mães da Sé” na Estação Largo Treze do metrô com fotos de crianças e pessoas desaparecidas na intenção de aumentar a visibilidade do Dia Internacional das Crianças Desaparecidas, que acontece no dia 25 de maio. Os cartazes expostos trazem algumas mensagens com dicas para prevenir casos de desaparecimento. A ação é realizada pela Via Mobilidade, concessionária responsável pela operação e manutenção da Linha 5-Lilás de metrô de São Paulo, em parceria com a Associação Mães da Sé.18 Sensorialmente ao se falar ou se pensar em futebol, desejos se fazem presentes. O desejo de ganhar mais um título, mais uma partida, mais um gol. A cada partida de futebol, energia que contagia, uma psicologia das multidões em seus sons, hinos e símbolos entoados a cada drible. Por que não aproveitar um momento como este para envolver e engajar? O espetáculo pode além de entreter, disseminar informações, multiplicar vozes. Pois bem, tais iniciativas já vêm acontecendo com várias demandas sociais. O palco da bola tem sido utilizado para dar visibilidade a pautas sociais. E quanto a isso, no tema do desaparecimento merecem aplausos as parcerias firmadas entre as Mães da Sé e os times Palmeiras e Santos, que em suas partidas exibiram imagens de crianças desaparecidas nos telões, na manga dos uniformes dos jogadores e no painel dos patrocinadores, além de registros do tema em tempo real da partida nas suas diversas páginas nas redes sociais. 4.2 QUANDO NARRATIVAS FICCIONAIS E REAIS SE ENCONTRAM: TELENOVELAS COMUNICANDO DISCUSSÕES SOCIAIS É diante deste cenário que narrar se destaca como um elemento do ato comunicacional de compartilhamento por excelência, na medida em que estabelece por meio de “contar uma história” um “compartilhamento deliberado do simbólico entre emissor e receptor, com aptidão para compreender as implicações dos elementos narrativos, devidamente organizados e com potencial transformarem os emissores e receptores em 17. Disponível em https://saopaulosao.com.br. Acesso em 21 dez 2019. 18. Disponível em https://saopauloparacriancas.com.br/exposicao-maes-da-se-criancasdesaparecidas-estacao-largo-treze/ Acesso em 10 dez 2019. partícipes do ambiente narrativo, construindo espaços e produzindo outras dimensões de Comunicação.19 O ato de contar uma história, para além de qualquer consideração como simples relato, está ligado a uma considerável série de fatores, das questões de estilo aos problemas de texto, dos pontos de vista narrativos às visões de mundo presentes em qualquer narrativa. Mais do que isso, o ato de contar histórias está ligado, em boa parte dos casos, a um sentido de compartilhar algo com outras pessoas; histórias são contadas para o outro; mesmo quando a narrativa é feita para si mesmo, no sentido de um solilóquio, os fatos narrados e o modo de narrar se interpelam em termos da recordação do que outros contaram. O ato narrativo, o momento de contar uma história, parece ser um momento privilegiado para se pensar e entender o ato comunicacional como uma forma de encontro com o outro.20 Em razão de sua importância e complexidade as narrativas se organizam sistemicamente como um ramo das Ciências Humanas denominado de Narratologia voltado epistemologicamente a estudar o papel dos sistemas narrativos nas sociedades, buscando compreender a construção dos fenômenos “intersubjetivamente seus significados através da apreensão, representação e expressão narrativa da realidade”.21 Motta enfatiza que por intermédio dos enunciados narrativos “somos capazes de colocar as coisas em relação umas com as outras em uma ordem e perspectiva, em um desenrolar lógico e cronológico. É assim que compreendemos a maioria das coisas do mundo”.22 Toda narrativa emerge da realidade pragmática e a partir deste locus colhe elementos para se transformar em uma história que será contada. Começa de uma forma, transmute-se, transforma-se, ganha outra dimensão, novas configurações a partir de inúmeras outras interpretações que vão se somando. Nasce um novo texto, um novo mundo, e graças ao leitor ela cria asas e adquire uma existência plena graças a novos paradigmas e intenções comunicativas.23 19. SÁ MARTINO, Luis Mauro. De um eu ao outro: narrativa, identidade e comunicação com a alteridade. Parágrafo, jan/jun.2016, v. 4, n. 1 p.44. Disponível em www.http://revistaseletronicas. fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/377/376. Acesso em 22.mar.2018. 20. Ibidem. 21. MOTTA, Luiz Gonzaga. Narratologia: análise da narrativa jornalística. Brasília: Casa das Musas, 2004, p. 83. 22. Análise crítica da Narrativa. Brasília: Editora da UnB, 2013, p.2. 23. LEAL, B.S. Quando uma notícia é parte da história: as mídias informativas e a identidade narrativa. E-compós, Brasília, v.17, n.3, 2014, p.1-17. Disponível em: <http://www.compos.org.br/seer/ index.php/e-compos/article/view/1056/793>. Acesso em: 31 jan. 2017. Quanto à importância e atemporalidade das narrativas indispensáveis são as contribuições de Roland Barthes ao assegurar que : A narrativa está presente em todos os lugares, em todas as sociedades;não há, em parte alguma, povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos tem suas narrativas, e freqüentemente estas narrativas são apreciadas por homens de cultura diferente, e mesmo oposta: a narrativa ridiculariza a boa e a má literatura: internacional, transhistórica, transcultural, a narrativa está aí, com a vida.24 A narrativa, ao ser colocada em palavras, articula elementos e expressões que dão a uma história a razão de existir.25 Dá-se, assim, a reconstrução da vida, pois é formada de “matéria instável, transitória, viva, que se recompõe sem cessar no presente do momento em que ela se anuncia”.26 Identifica-se também como um processo contínuo e de transformação permanente se configure como de rememorar e ligar instantaneamente passado, presente e future. Oportuno também destacar que a narrativa é uma forma usual de construir sentidos para as experiências isoladas, como na busca de coesão social, ao estabelecer os objetos e eventos para os quais a atenção do público é direcionada, importante para a formulação de identidades no micro e no macrocosmo levando à ressignificações e interpretações do mundo. 27 Cientistas cognitivos descobriram que transformamos nossas experiências como de outros em narrativas que nos ajudam a construir a nossa existência individual e coletiva em um processo de comunicação eficaz.28 As dimensões temporais e que unem gerações, de conhecidos e desconhecidos, de conviventes e não-conviventes, nos chegam organizadas por meio de narrativas, e a este processo constituímos os ritos e os rituais. Neste compasso à narrativa é dado o papel de protagonista a organizar o caos, unindo passado e presente, enrendando de forma sistêmica ou até mesmo entrecortada - por pausas e vírgulas - personagens, espaços, motivos, símbolos e mensagens. Assim ritos e rituais são organizados por narrativas e estas se confundem com a própria história da Humanidade.29 24. Aula. São Paulo: Cultrix, 1979, p.23. 25. VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus, 1994, p.41. 26. DELORY-MOMBERGER, Christine. Formação e socialização: os ateliês biográficos de projeto. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 359- 371, maio/ago, 2006, p.362. 27. ROBICHAUD, D.; GIROUX, H.; TAYLOR, J. R. The metaconversation: the recursive property of language as a key of organizing. Academy of Management Review, Briarcliff Manoer, v. 29, n. 4, p. 617-634, Oct. 2004, p.619. 28. DENNING, S. The Leader’s Guide to Storytelling - Mastering the Art and Discipline of Business Narrative. San Francisco: Jossey-Bass, 2005, p.32. 29. SEGALEN, Martine. Ritos e rituais contemporâneos. Rio Janeiro: FGV, 2002, p.31. Segalen enfatiza que o processo dos rituais são atos contínuos de recorrência de formas, estruturas e repetições com vistas ao seu próprio fortalecimento, mas que aos poucos vão se somando novas experiências e novas dimensões simbólicas de linguagem.30 No mesmo sentido Chanlat destaca que a interpretação do universo humano está absolutamente intrínseca à ideia de “um mundo de signos, de imagens, de metáforas, de emblemas, de símbolos, de mitos e de alegorias. Todo ser humano e toda sociedade humana produziram uma representação do mundo que lhe confere significado”31 Eis aqui uma primeira interpretação: a relação indisssociável entre narrativas, ritos e rituais. O liame pode ser traduzido como a própria história da Humanidade, ou seja, somos fruto e produto das formas primeiras de narrar. Somos sujeitos históricos protagonistas de narrativas a organizar o caos e semear os rituais presentes e que serão lançados ao futuro. 32 Deve ser ressaltado que as estórias são construídas em um pacto colaborativo e trazem diversos pontos de vista sobre os fatos narrados, é, portanto ato coletivo, compartilhamento de perspectivas, simultâneas ou não e múltiplas. E assim, a busca pelas narrativas da aproximação e do afeto são mais do que nunca absolutamente indispensáveis e assim trazemos à colação para o encerramento do presente tópico as palavras de Italo Calvino clamando pela necessidade premente do retorno às narrativas sensoriais, tendo em vida que o próximo milênio carrega consigo a pré-fabricação das imagens estamos correndo o perigo de perder uma capacidade humana fundamental: a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens.33 E é neste contexto de narrativas ritualísticas que novelas brasileiras alcançam altos índices de audiência, tanto em solo nacional, como também quando são exportadas e traduzidas para diversas línguas. As tramas que se desenvolvem por cerca de 4 a 8 meses de duração, têm grande influência na sociedade, para alguns apenas entretenimento, para outros levantam debates e questionamentos, assim tem sido desde a década de 60, e para Figueiredo: Com a entrada diária das novelas na vida do brasileiro, principalmente a partir do final dos anos 1960, o debate sobre a sua função social fica 30. Idem, p. 117. 31. CHANLAT, Jean-François (org.) O Indivíduo na Organização. Vol. I e II. São Paulo: Atlas, 1996, p. 43. 32. BRUNER, J. The Narrative Construction of Reality. Critical Inquiry, 1991, p. 21. 33. CALVINO, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 107-108. mais acirrado [...], para uns, apenas ser veiculada por um meio de massa é o bastante para que a novela deva ser considerada autoritária e, necessariamente, deva ser inserida no conceito de espetáculo, não passando de mero entretenimento, sem propor qualquer produção de conhecimento e de arte. No entanto, para outros, a televisão é um bem de consumo que tem uma função democrática, e alguns de seus produtos, como a teledramaturgia, podem, sim, além de ser um espetáculo, trazer o conhecimento e atingir uma qualidade estética.34 Para Maria Immacolata Vassallo de Lopes as telenovelas foram alçadas à categoria de narrativas nacionais, e importante recurso comunicativo para apresentar questões sociais, e que de forma pedagógica, implícita ou explicitamente, podem propor mudanças comportamentais e a partir de representações culturais, arquitetar a cidadania.35 No mesmo sentido, Valquíria John e Nilda Jacks reforçam que “ao adentrar a outras mídias, ao extrapolar o espaço do seu próprio horário de exibição, a telenovela atinge a todos, inclusive aos que não assistem (ou dizem não assistir) telenovela. Deste modo, contribuem para agendar as discussões sociais”.36 Assim, tais novelas têm sido consideradas um merchandising social, pois mobilizam debates sociais e geram opinião pública sobre questões do cotidiano nacional, podendo ser consideradas como recursos estratégicos para mudanças comportamentais37. Entre as muitas novelas com o perfil de merchandising social, cabe aqui destacarmos a novela “Explode coração” 34. FIGUEIREDO, Ana Maria C. Teledramaturgia brasileira: arte ou espetáculo. São Paulo: Paulus, 2003, p. 81. 35. LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. Telenovela como recurso comunicativo. In: MATRIZes: revista semestral do Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo, São Paulo: ECA/USP/Paulus, ano 3, nº 1. p. 21-47, 2009. 36. JOHN, Valquíria; JACKS, Nilda. Telenovela e Agendamento da Mídia: como os conteúdos das telenovelas da Rede Globo pautam o jornalismo de revista. In: 1° Congresso Mundial de Comunicação IberoAmericana. Anais. São Paulo – SP: ECA, 2011, p.3. 37. Interesante a relação entre o merchandising social à luz da denominada Teoria do Agendamento ou Agenda Setting, proposta pelo autores Maxwell McCombs e Donald Shaw na década de 1970 demonstrando que públicos-alvo passam a dar maior ênfase à notícias veiculadas pela mídia, e nesse passo, tanto poderá ocasionar debates sociais importantes, bem como poderá servir de instrumento de poder e manipulação. Sobre o tema ver “agendamento temático constitui um tema mais abrangente, partindo da hipótese comunicacional da agenda setting. No mundo contemporâneo, é senso comum que, se um fato não aparece retratado de alguma forma na mídia, ele não aconteceu. Assim sendo, os meios de comunicação de massa assumem um papel fundamental na propagação de fatos, já que se tornam principal fonte utilizada pela população para obtenção de informações. Defende-se que os temas agendados pela grande mídia são potencialmente passíveis de se tornarem objeto de discussão informal entre o público. Nesse contexto, as temáticas apresentadas como relevantes pela mídia, comumente, passaram a ser alvo da atenção e das preocupações dos receptores de mensagens midiáticas. CZIZEWSKI, Claiton César. Falando sobre a telenovela: agendamento temático a partir da narrativa de ficção. In: XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Anais. Caxias do Sul-RS: UCS, 2010, p.2. da Rede Globo de Televisão que entre os anos de 1995 e 1996 trouxe ao debate a questão do desaparecimento de criança. Narrativas ficcionais e reais foram desenhadas a partir das lentes da novelista Glória Perez38, uma das grandes especialistas brasileiras, em novelas desta natureza. Foi a partir do drama das Mães de Acari do Rio de Janeiro, que a temática chegou às telas no horário nobre. Não bastava entreteter, deveria mobilizar e foi assim, que Explode Coração, apresentou a milhões de brasileiros a temática do desaparecimento e a dor dos familiares na incessante busca. Alteridade no sentir e mobilização social eram os principais motes da telenovela. Como recurso comunicacional, ao final de cada episódio, a ficção virava realidade, com a apresentação de cartazes com imagens de pessoas desaparecidas. No dia 9 de março de 1996, um capítulo especial, a exibição da imagem de um filho procurado por sua mãe por mais de dez anos, e para surpresa e enaltecimento do poder social da novella, seis dias depois ele foi encontrado. No total, 64 filhos foram encontrados.39 Explode Coração tem ainda mais uma função social, unir em suas gravações Ivanise e Vera, principais protagonistas deste artigo científico e fazer surgir o Movimento Mães da Sé. 4.3 CIBERATIVISMO São tempos de aceleração. São tempos de revisitar velhas práticas. São tempos de hiperconexões. Tempos de algoritmos. Tempos de se repensar os 38. A atuação da autora da novela, Glória Perez, foi fundamental para a representação do desaparecimento. Glória Perez viveu o drama de ter sua filha, a atriz Daniella Perez, assassinada em 1992 pelo ator Guilherme de Pádua e sua mulher, Paula Thomaz. À época, os dois atores trabalhavam na novela De corpo e alma, que havia sido escrita por Glória Perez. Depois do contato estreito entre Glória Perez e os movimentos de mães durante a novela Explode Coração, a autora passou a ter o apoio delas e de outros movimentos em sua própria luta: a condenação de Guilherme de Pádua por homicídio qualificado,2 em julgamento ocorrido em 1997.Entre as ações de protesto contra os assassinos da filha foram organizados, antes do julgamento, uma caminhada na Avenida Atlântica, uma missa, panfletagens e outdoors. A campanha de marketing trazia o rosto de Daniela estampado e os dizeres: “e se fosse sua filha? chega de impunidade”, tendo sido coordenada pelo Centro Brasileiro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente e patrocinada por empresários. A caminhada contou com a participação das Mães da Cinelândia, das Mães de Acari, da Associação de Vítimas da Violência, do Movimento pela Vida, de fãs e atores de novelas e entidades de Direitos Humanos. LEAL, Eduardo Martinelli. “Naquela época não se ouvia falar de desaparecido”: família e maternidade na militância do desaparecimento de pessoas no Brasil. Mana, Rio de Janeiro , v. 25, n. 3, p. 605-634, dez. 2019 . Disponível em <http://www.scielo.br>. Acesso em 31 jan. 2020. 39. XAVIER, Nilson. Almanaque da telenovela brasileira. São Paulo: Panda Books, 2007, p. 198. movimentos sociais. Tempos de novas formas de sociabilidade.40 Tempos de cidadania digital. Por meio das redes sociais são compartilhadas denúncias de desaparecimento, e partir daí há uma comunhão de atores sociais, conclamados à ação, irmanados na chamada “sociedade em rede” que passa a atuar em solidariedade com órgãos policiais e judiciários. Do ponto de vista prático, as ações e comunicações são mais rápidas; do ponto de vista psicológico, o sentimento de ser acolhido e de pertencer de uma rede que comunga de valores e propósitos faz emergir novas formas de sociabilidade. Redes sociais tais como sites, grupos, Facebook e Instagram transformamse em potências de agir e geram novas formas de solidariedade. Na atualidade, a Indústria 4.0 pode ser compreendida como um sistema de automação e tecnologia informacional voltado para a garantia de maior velocidade nos processos, com transparência das comunicações e dos dados, da celeridade, da busca pela transparência informacional. A hiperconectividade associada aos dados armazenados em softwares de gestão na nuvem pode aprimorar a aceleração comunicacional, bem como o fortalecimento do Big Data com a explosão informacional trará mecanismos a partir de algoritmos responsáveis por identificação de processos diversos de maneira mais célere, sistematizada e transparente. Neste novo modelo já não mais existem obstáculos territoriais41, as interações são globais, reais e instantâneas e o ciberativismo compreendido como uma nova forma de ligar pessoas, conectar mundos e fazer comunicação, pode contribuir para uma maior coesão social, solidariedade e propagação de eixos de discussões e debates comuns. Assim, muitas das atividades comunicacionais desenvolvidas na atualidade pelas Mães da Sé vêm hiperconectadas ao mundo digital. Trazemos como exemplo o chamado desafio #10yearchallenge, que invadiu as redes sociais em janeiro de 2019, convidando pessoas a postarem fotos 40. Vale a pena frisar que “quando uma rede de computadores conecta pessoas ou organizações, ela é uma rede social. Da mesma forma que uma rede de computadores é um conjunto de máquinas conectadas por cabos, uma rede social é um conjunto de pessoas (ou organizações ou outras entidades sociais) conectadas por relações sociais, como amizades, trabalho conjunto, ou intercâmbio de informações. GARTON, L.; HARTHORNTHWAITE, C.; WELLMAN, B. Studying Online Social Networks. Journal of Computer Mediated Communication, v. 3, issue 1 (1997). Disponível em: <http://www. ascusc.org/jcmc/vol3/issue1/garton.html.> Acesso em: 06 de set. de 2019, p. 75. 41. Sobre o tema ver “Cada transformação midiática altera nossa percepção espaço temporal, chegando na contemporaneidade a vivenciarmos uma sensação de tempo real, imediato, “live”, e de abolição do espaço físico-geográfico. A sociedade da informação é marcada pela ubiqüidade e pela instantaneidade, saídas da conectividade generalizada. Entramos assim em uma sociedade WYSIWIG (o que vejo é o que tenho) “. LEMOS, André; Cunha, Paulo (orgs). Olhares sobre a Cibercultura. Sulina, Porto Alegre, 2003; p. 11-23. próprias com 10 anos de diferença. Dados demonstram que mais de 8 milhões de usuários participaram do desafio, gerando muitos debates e controvérsias sobre a sua real razão de existir, e como hipóteses levantadas: atualização espontânea de dados, monitoramento empresarial, invasão de privacidade, armazenamento de informações, entre oturos. Contudo, para o Mães da Sé o desafio se tornou uma grande oportunidade para engajamento e ciberativismo lançando assim na sua plataforma a proposta de compartilhamento de imagens a partir da hashtag, “#XXyearchallenge: o desafio que ajuda a encontrar desaparecidos.” Para Ivanise, representante da Mães da Sé, a tecnologia pode ser usada para apaziguar dor e “encontramos neste movimento uma grande oportunidade para mobilizar as pessoas em prol de uma causa tão relevante. O compartilhamento digital amplifica ainda mais o alcance da nossa mensagem, proporcionando uma chance maior para que pessoas desaparecidas possam ser encontradas por seus familiares”.42 No mesmo sentido, importante destacar a campanha “Amor Sem Distância” com o apoio da Câmara Municipal de São Paulo para divulgar nas redes sociais fotos de pessoas desaparecidas. Trata-se de uma iniciativa do Portal e da TV Câmara junto com a ONG Mães da Sé, no compartilhamento ético, transparente e protagonista na busca por informações de desaparecidos, e que pode ter ainda maior compartilhamento a partir da hashtag #amorsemdistancia. Outra parceria de extrema importância da Mães da Sé é com a Microsoft que anunciou em 2019 a criação de um aplicativo de reconhecimento facial, desenvolvido pela Mult-Connect, para contribuir de maneira potencial nas buscas por desaparecidos e se estabelece como uma das ações do programa global de responsabilidade social das empresas denominado, Microsoft AI For Humanitarian Action, que tem por finalidade o fornecimento de instrumentos, subsídios para capacitação de pessoas no engajamento com questões humanitárias. A inteligência artificial e a tecnologia de ponta serão utilizadas para a intercomunicabilidade de dados, bastando para isso que o usuário encaminhe uma fotografia da pessoa desaparecida para o aplicativo e esse irá buscar no banco de dados da ONG, eventuais compatibilidades de descrição de características físicas, entre elas, cor da pele, cabelo e olhos. Para Brad Smith, presidente da Microsoft “a parceria entre Mães da Sé e Microsoft é um poderoso exemplo de como podemos aplicar a tecnologia para ajudar a resolver grandes desafios em nossa sociedade” destacou em 42. Disponível em https://www.hypeness.com.br/2019/02/xxyearchallenge-maes-da-sepromove-desafio-para-ajudar-a-encontrar-pessoas-desaparecidas/ Acesso em 20 dez 2019. sua apresentação no evento Inteligência Artificial na Transformação Digital, no Ministério da Economia, em Brasília.43 CONSIDERAÇÕES FINAIS Dor que se transforma em luta. Solidariedade que se arquiteta. Vozes que se multiplicam. A ressignificação de uma perda faz surgir um movimento de solidariedade à procura por um desaparecido. Onde estão? A quem perguntar? Como procurar? São perguntas do cotidiano de pessoas que estão diante da realidade do desaparecimento. Realidade que vai além de quintais, bairros, cidades ou países. Uma realidade transnacional com inúmeros matizes de tráfico humano. Procura-se no presente artigo apresentar a narrativa da existência de uma Associação em São Paulo, que surge para colaborar com respostas para as perguntas acima formuladas. Luto inacabado. Dor potencializada em ação. Ao final da narrativa trazida é possível enfatizar a necessidade da criação de políticas públicas constantes que promovam a acessibilidade nos dados, a comunicabilidade entre os órgãos, o combate ao crime. É diante dos hiatos informacionais e das ausências que a prática criminosa continua. E assim, como Academia, a intenção no presente artigo é dar visibilidade e demonstrar a importância do debate e da ação no presente tema, tornando o invisível, visível. É o que tem feito as Mães da Sé. É o que devemos todos fazer. REFERÊNCIAS ALMEIDA FILHO, Agassiz & MELGARÉ, Plínio. Dignidade da pessoa humana: fundamentos e critérios interpretativos. São Paulo: Malheiros, 2010. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 43. Disponível em https://canaltech.com.br/inteligencia-artificial/microsoft-e-maes-da-selancarao-app-para-ajudar-na-busca-por-desaparecidos-139795/ Acesso em 13 out 2019. BORMANN, E. G.. Symbolic Convergence Theory: A Communication Formulation. Journal of Communication, 1985. BOSS, P. Ambiguous loss. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1999. BRUNER, J. The Narrative Construction of Reality. Critical Inquiry, 1991. CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. CZIZEWSKI, Claiton César. Falando sobre a telenovela: agendamento temático a partir da narrativa de ficção. In: XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Anais. Caxias do Sul-RS: UCS, 2010, p.2. DELORY-MOMBERGER, Christine. Formação e socialização: os ateliês biográficos de projeto. 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Já realizou estágio acadêmico na Corregedoria da Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação CASA), assim como em órgãos públicos, escritórios de advocacia e empresa, tratando predominantemente com Direito Administrativo, Tributário e Ambiental. Interessa-se por temáticas referentes à adoção no Brasil e à regulação jurídica de projetos de empreendedorismo social que tenham como escopo a promoção dos direitos das mulheres, crianças e adolescentes. Atualmente participa como voluntária em projeto voltado à divulgação e incentivo à adoção (Jornadas da Adoção, Zion Church). INTRODUÇÃO A perpetuação do tráfico humano no Brasil representa verdadeiro contrassenso para com o estágio de percepção de direitos humanos existente no “Direito Internacional dos Direitos Humanos” (DIDH) e, especificamente, no direito brasileiro. O cerne do DIDH tem como expoentes a “Declaração Universal de Direitos Humanos”1(DUDH) e, conjuntamente, o “Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos” (PIDCP) e o “Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” (PIDESC), os quais, assim como assinala Flávia Piovesan, “(...) transformaram os dispositivos da Declaração em previsões juridicamente vinculantes e obrigatórias.”2. Ainda seguindo o entendimento de Piovesan, é possível afirmar que o supracitado conjunto (“Bill of Rights”) forma um verdadeiro sistema global de proteção dos direitos humanos. A aludida juridicização pode ser constatada não somente pela ratificação de ambos os protocolos pelo Brasil3, mas também pela sua efetiva incorporação à legislação nacional. O PIDCP foi incorporado através da promulgação do Decreto Federal nº 592/19924, enquanto o PIDESC o foi através do Decreto Federal nº 591/19925. O PIDCP, especificamente, expõe em seu artigo 8º que “1. Ninguém poderá ser submetido á escravidão; a escravidão e o tráfico de escravos, em todas as suas formas, ficam proibidos. 2. Ninguém poderá ser submetido à servidão. 3. a) Ninguém poderá ser obrigado a executar trabalhos forçados ou obrigatórios”. Assim como se verá adiante, embora o PIDCP não represente o primeiro esforço brasileiro em prol do combate ao tráfico humano, seu valor para esta introdução reside na sua primariedade referente à vinculação internacional do Brasil contra o tráfico humano. Considerando a coexistência da perpetuação do tráfico humano e o caráter vinculante das supracitadas normas, este artigo, sob um ponto de vista histórico, visa à identificação da influencia de possíveis estigmas sociais na forma pela qual o Brasil se vinculou às normas internacionais que visam ao combate ao tráfico humano para fins de exploração sexual, 1. 2. 3. 4. 5. A DUDH “(..) foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de dezembro de 1948, por meio da Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral como uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações. Ela estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos.”. Acesso em https://nacoesunidas.org/ direitoshumanos/declaracao/ Acesso em 19.dez. 2019. PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br>. Acesso em 19.dez. 2019. O PIDCP foi ratificado em 24/01/1992, enquanto o PIDECS foi ratificado em 24/01/1992. DHNET. Garantir a efetividade dos direitos humanos é possível? Disponível em: <http://www.dhnet. org.br/direitos/militantes/tertuliano/garantirefeti.html>. Acesso em: 19 out. 2019. BRASIL. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação.. Decreto no 592, de 6 de Julho de 1992.. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm>. Acesso em: 19 out. 2019. BRASIL. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação.. Decreto no 591, de 6 de Julho de 1992.. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm>. Acesso em: 19 out. 2019. especialmente no que se refere ao tratamento dados às mulheres e meninas, as quais são o objeto de pesquisa neste artigo. Considerando a coexistência da perpetuação do tráfico humano e o caráter vinculante das supracitadas normas, este artigo, através da eleição de um grupo específico de vítimas potenciais de tráfico humano, visa, a partir de uma abordagem essencialmente histórica, identificar a presença de elementos de discrimação negativa que possam colaborar para uma possível não alteração dessa condição de vulnerabilidade. O grupo escolhido é representado pelo sexo feminino e, especificamente, as mulheres que estiveram/estão sob a jurisdição do Estado Brasileiro. A escolha desse grupo como objeto de pesquisa se justifica pela (i) visível situação cotidiana de vulnerabilidade à qual a mulher é submetida no Brasil, em virtude de sua condição enquanto tal, e pela (ii) maior facilidade de aliciamento em meio à cenários de vulnerabilidades sociais. Como exemplos da primeira afirmação, pontua-se que o Brasil ainda têm expressivo índice de desigualdade de gênero6; que as mulheres têm três vezes mais possibilidades de serem vítimas de agressão, se comparadas aos homens7 e que o Estado Brasileiro ainda tem a 5ª maior taxa de feminicídios do mundo8. Com base em consulta à “The Counter Trafficking Data Collaborative” (“Base Colaborativa de Dados sobre Tráfico de Pessoas”) 9 e na “Global Report on Trafficking in Persons – 2016”, realizado pela United Nations Office on Drugs and Crime ,elege-se o “tráfico humano com fim de exploração sexual” para ser a modalidade de tráfico pesquisada. De acordo com dados da plataforma10, dois terços das vitimas traficadas nas Américas experimentam exploração sexual, de modo que 6. FORUM, Worl Economic; WORLD, Commited To Improving The State Of The. The Global Gender Gap Report. 2018. Disponível em: <http://www3.weforum.org/docs/WEF_ GGGR_2018.pdf>. Acesso em: 05 dez. 2019. 7. BRASIL. IPEA. . Participação no mercado de Trabalho e Violência Doméstica contra as mulheres no Brasil. 2019. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/ td_2501.pdf>. Acesso em: 05 jul. 2019. 8. ONU BRASIL. ONU: Taxa de feminicídios no Brasil é quinta maior do mundo; diretrizes nacionais buscam solução. 2016. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/onu-feminicidio-brasilquinto-maior-mundo-diretrizes-nacionais-buscam-solucao/>. Acesso em: 09 abr. 2019. 9. Trata-se de uma plataforma colaborativa gratuita criada pela Organização Internacional do Comércio e alimentada por informações provenientes de OSC’s de credibilidade (como a Polaris e a Liberty) com vistas à compilação e atualização de amostragens de dados sobre o tráfico humano. ONU. ONU disponibiliza dados sobre tráfico de pessoas em plataforma colaborativa gratuita. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/onu-disponibiliza-dados-sobre-traficode-pessoas-em-plataforma-colaborativa-gratuita/>. Acesso em: 08 nov. 2019. 10. COLLABORATIVE, Ctda. Human Trafficking and Gender: Differences, Similarities and 80% das vítimas são mulheres e cerca de um terço são crianças. Além disso, quanto a essa exploração, o percentual de mulheres traficadas se sobressai em relação ao número de homens e, com a exceção do período compreendido entre 2009 e 2014, a exploração sexual se sobressai frente à exploração do trabalho. Segundo o documento da UNODC, a modalidade de “exploração sexual”, principalmente nas regiões mais desenvolvidas do globo (cujos países que as formam, majoritariamente, são receptores de pessoas traficadas), sobressai-se quantitativamente frente às demais formas de exploração11: Portanto, em virtude da especial vulnerabilidade da mulher ao tráfico humano e, igualmente, à exploração sexual, se procurará responder às seguintes questões: (I) Como se desenvolveu historicamente a relação do governo Brasileiro com o combate ao tráfico de mulheres? (II) Quais são os instrumentos internacionais que falam especificamente de mulheres? (III) Quais os instrumentos incorporados pelo Brasil? (IV) A incorporação no direito brasileiro tem omissões ou supressões que possam indicar quaisquer influências de estigmas morais a respeito da mulher? Desta forma, as referidas respostas serão buscadas através de análise histórica da evolução desses instrumentos internacionais e da adesão brasileira a eles, sem prejuízo de se rememorar aos contornos (contexto e motivação) existentes nas normas nacionais, cuja criação seja isenta de influência internacional. 1 VÍTIMAS DE TRÁFICO PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL E O ESTIGMA SOCIAL DA PROSTITUIÇÃO Ainda que algumas mulheres saibam previamente que vão trabalhar em shows eróticos, na lavoura, como empregadas domésticas, ou como prostitutas, somente quando chegam ao novo destino é que descobrem que também vão permanecer em isolamento, sofrer maus tratos, além de serem obrigadas a entregar, senão todo, quase todos os ganhos de seu trabalho aos seus empregadores. As vítimas de tráfico que freqüentemente ficam alojadas em lugares sem segurança, vivem na clandestinidade e trabalham ilegalmente. Longe de casa, traficantes e empregadores forçam mulheres Trends. Disponível em: <https://www.ctdatacollaborative.org/story/human-trafficking-andgender-differences-similarities-and-trends>. Acesso em: 12 nov. 2018. 11. AUSTRIA. United Nations Office On Drugs And Crime. United Nations. Global Report n Trafficking in Persons: 2016. 8. ed. Viena: United Stations, 2016. 126 p. Disponível em: <http:// www.unodc.org/documents/data-and- Acesso em 19.dez. 2019. analysis/glotip/2016_ Global_Report_on_Trafficking_in_Persons.pdf>. Acesso em: 28 out. 2018. e crianças à prostituição, ao trabalho em condições miseráveis ou outras atividades ilegais mediante estratagemas. Para matizar o panorama, os dados capturados por Joni Seager (3) são essenciais e reveladores do estado no qual se encontram as mulheres e as principais representações de sua vida social. No capítulo dedicado ao mercado mundial do sexo, a autora assinala que, nos anos 90, Brasil, Marrocos, Índia, Tailândia, Hungria, Singapura, Malásia e Filipinas eram os principais destinos de turistas sexuais, tendo como emissores em maior escala países como Canadá, Estados Unidos, França, Alemanha, China, Austrália, Suíça. No que se refere ao Brasil, os dados demonstram que as “saídas” de mulheres são especialmente direcionadas para as fronteiras com países da América do Sul, Japão e Europa Ocidental.12 O Tráfico de Pessoas é um gênero criminoso que comporta uma diversidade de modalidades às quais é inferida uma capacidade de reinvenção ante à mudança de estruturas sociais em relação às quais se desenvolvem imoral e clandestinamente. Na escravidão negra, assim como exposto por Thaís de Camargo13, havia uma espécie de rufianismo, cometido pelos senhores e senhoras em relação as suas escravas, as quais estariam submetidas ao que hoje entendese por “tráfico” tão somente se fossem vendidas por seus senhores com essa finalidade. Deste modo, o auferimento de lucro pelos mesmos, a partir da exploração sexual daquelas, constituía a sua vivência como escrava e não a sua atividade fim. Desta forma, como evento apontado como marco para o início do referido tráfico há o “Tráfico de Escravas Brancas” (“White Slade Trade”), ocorrido entre 1810-1930, período da Belle Époque. As referidas “escravas brancas” eram, em sua maioria, mulheres provenientes do leste-europeu que, a fim de fugirem dos conflitos que permeavam a região (como o Conflito dos Balcãs, a Revolução Socialista etc.) e do consequente estado de precariedade em que a deixavam, eram aliciadas, tanto conscientemente como inconscientemente, para migrarem rumo aos Estados Unidos, Argentina e Brasil, com a finalidade de prostituírem-se. No final do século XIX e, principalmente, a partir de 1880, as condições de vida dos judeus nos países do Leste da Europa levaram ao aumento do fluxo migratório em direção aos países da América. Entre a 12. CAVALCANTI, Vanessa Ribeiro Simon. Tráfico de pessoas, políticas públicas e o 4º Poder: Migrações que revelam vulnerabilidade e invisibilidade da condição feminina. 2011. 13. RODRIGUES, Thaís Camargo. Tráfico internacional de pessoas para exploração sexual, 1ª Edição.. Saraiva, 04/2013. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/ books/9788502190429/pageid/55. Acesso em 19.dez. 2019. leva de judeus que chegou à região naquela época e até a década de 1940, estavam aqueles que, originários da Europa Oriental, dedicavam-se à exploração da prostituição e de atividades relacionadas a ela, no chamado “tráfico de escravas brancas”. Brasil, Uruguai e, em especial, a Argentina, faziam parte de uma rede ampla de países onde as leis migratórias eram mais flexíveis, e as autoridades fingiam não ver o aumento da chegada de mulheres confinadas à força em bordeis. Os rufiões e as mulheres que por eles eram trazidas para a América, lugar no qual eram costumeiramente vendidas como simples mercadorias, não foram inclusos nas organizações comunitárias judaicas que estavam sendo criadas naqueles tempos.14 1.1 O TRÁFICO DE ESCRAVAS BRANCAS E A OMISSÃO ESTATAL Conforme exposto por Margareth Rago15, o Estado Brasileiro, ainda que ciente dessa problemática devido aos números cada vez maiores de prostitutas estrangeiras existentes no país, não se utilizou de suas prerrogativas para atuar contra essa prática. Nesse contexto, importa expor que os esforços internacionais materializados por meio pelo “Criminal Law Amemdment Act” e pelo “White Slave Traffic”, surtiram efeitos na adaptação do código penal brasileiro de 1830, entretanto, os mesmos foram ineficazes para a tutela do bem jurídico ao qual deveria se prestar (considerando o prejudicial elemento racial intrínseco às políticas iniciais): a preservação da dignidade de mulheres e crianças. Ainda que o tráfico de pessoas seja uma prática de dificultosa percepção, à época narrada esse delito não somente passava impune aos olhos da sociedade brasileira como, principalmente, teria, através de determinadas autoridades brasileiras, o seu meio de perpetuação. A presente afirmação decorre das práticas realizadas pela hoje extinta organização criminosa denominada “Zwi Migdal” (ou Zvi Migdal) – que originalmente era chamada de “Organização para a Ajuda Mútua de Varsóvia”. Essa organização, cujas informações apontam para uma origem leste-europeia, tinha como atividade a exploração da prostituição e o aliciamento de mulheres para fins de cooptá-las como escravas sexuais, possibilitando a migração das mesmas para países cujas barreiras migratórias seriam mais flexíveis. 14. STEINBER, Gabriel. O tráfico de mulheres e o submundo judaico no romance Maasê Betabaat , relato do anel de Ilan Sheinfeld. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/cllh/article/ download/125033/122069/>. Acesso em: 07 nov. 2018. 15. RAGO, Margareth. Prefácio à Emma Goldman. Tráfico de Mulheres. Disponível em: <http://www. scielo.br>. Acesso em: 07 nov. 2018. De origem judaica, os membros dessa organização, conhecidos como “impuros” pelas comunidades judaicas – que, em contrapartida, se autodenominavam “puros” – devido ao caráter de suas práticas, as quais eram julgadas como “imorais”, viviam segregados dessas comunidades. Deste modo, os “impuros”, ao instalarem-se em Buenos Aires, na Argentina- que seria o Centro de Controle de suas operações criminosas – criaram uma sociedade de socorro mútuo que – servindo também como uma espécie de “fachada” para suas atividades ilícitas - serviria para afirmálos positivamente, bem afamá-los, na sociedade Para fins de aliciamento, a organização cooptava, geralmente, mulheres pobres do leste-europeu (posteriormente conhecidas como “polacas” no Brasil), as quais seriam mais propícias às investidas aliciadoras da organização devido ao estado de precariedade que assolava o lesteeuropeu, que à época sofria conflitos étnicos e separatistas. Esses problemas teriam ganhado contornos de nitidez cada vez mais precisos a partir do aumento exponencial do número de prostitutas estrangeiras no país, principalmente nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, fato este que foi demonstrado por censos demográficos realizados na época: A presença marcante de estrangeiras exercendo a prostituição no Brasil é demonstrada pelos levantamentos feitos por Guido Fonseca em São Paulo. Segundo esse autor, no ano de 1914 a polícia registrou 812 prostitutas no Estado. Desse montante, 721 eram brancas, 60 pardas e 31 negras, sendo apenas 303 brasileiras. Das estrangeiras, a maior parte vinha da Rússia, Itália, Alema- nha e França. A Primeira Guerra Mundial prejudicou o incremento do número de estrangeiras. Tanto que em 1915 a polícia abriu apenas 269 novos prontuários de prostitutas, sendo 181 brasileiras e 88 estrangeiras. Em 1922, existiam 3.529 prostitutas cadastradas em São Paulo. Dessas, 1.936 eram brasileiras e 1.593 estrangeiras. As estrangeiras vinham especial mente da Rússia (468), da França (255), da Itália (245), de Portugal (155) e da Espanha (143)22. Em 1936, constavam 10.008 prostitutas cadastradas em São Paulo. A maior parte delas – 5.400 mulheres – era estrangeira. As francesas representavam quase 6% do total, com 576 mulheres. Na sequência apareciam as polonesas (439), as portuguesas (413), as alemãs (375), as argentinas (351), as italianas (330), as russas (287) e as lituanas (282). 4.608 mulheres eram brasileiras. Do total, 8.077 eram brancas.16 16. RODRIGUES, Thaís Camargo. Tráfico internacional de pessoas para exploração sexual. Essa prática criminosa ganhou maior visibilidade a partir da denúncia realizada por Raquel Liberman contra a organização. Liberman, judia polonesa traficada pela organização para prostituir-se na Argentina, denunciou aquela para as autoridades argentinas em 31/12/192917, o que causou o desmantelamento daquela. Segundo Margareth Rago18, a inércia brasileira se devia, sobretudo, a dois fatores: o conservadorismo social, que acarretava a aferição de preconceitos morais sobre as mulheres e, principalmente, sobre as prostitutas; determinada corrupção estatal, que possibilitava a proteção de rufiões e cafetões pela “Polícia dos Costumes” e consequente manutenção das explorações e dos castigos físicos sobre aquelas que eram “Consideradas biologicamente inferiores e, muitas vezes, sendo economicamente mais pobres, as prostitutas expunham-se a muitas violências emocionais ou físicas.19” Os esforços para o combate dessa prática no Brasil têm como procedência a Europa, a qual, à época, encontrava-se marcada por debates a respeito do tráfico dessas mulheres e da prostituição em si.20 Em relação ao tema, havia a divergência entre duas correntes: os regulacionistas e os abolicionistas. Para os primeiros, cuja motivação seria proveniente desde o “espírito abolicionista” da época até concepções higienistas21 era de responsabilidade do Estado em regular quaisquer atividades correlatas à prostituição, pois, esta não somente seria contrária aos “bons costumes” da época como também seria um vetor de disseminação de doenças. Os abolicionistas, por sua vez, sustentavam a impossibilidade de regulação (que incluía a realização compulsória de exames médicos pelas mesmas), pois ela feriria seus direitos civis e seria carregada de moralismos. 17. 18. 19. 20. 21. São Paulo:. Saraiva,2013. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/ books/9788502190429/pageid/55. Acesso em 19.dez. 2019. SILBER, Daniel. Raquel Liberman e as Polacas. Disponível em: <http://asa.org.br/wp/colunas/ raquel-liberman-e-as-polacas/>. Acesso em: 05 dez. 2019. RAGO, Margareth. Nos bastidores da Imigração: o Tráfico das Escravas Brancas. Disponível em: <https://www.anpuh.org>. Acesso em: 08 nov. 2018 RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos de sexualidade feminina em São Paulo. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2008. ARY, Thalita Carneiro. O Tráfico de Pessoas em três dimensões: Evolução globalização e a rota Brasil-Europa. 2009. 159 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2009. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/4359/1/2009_ ThalitaCarneiroAry.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2018. SOUSA, Tania Teixeira Laky de. Tráfico internacional de mulheres: nova face de uma velha escravidão. São Paulo: Max Limonad, 2013. 586 p. Os esforços da campanha abolicionista, encabeçada por feministas, contribuíram para a divulgação do delito de tráfico de mulheres e o consequente posicionamento do governo inglês contra essa prática. Desta forma, os primeiros esforços internacionais contra essa prática culminaram inicialmente no “Congresso Penitenciário de Paris”, ao que se seguiu o “Congresso Internacional sobre Tráfico de Escravas Brancas”, em Londres e, posteriormente, a Conferência de Paris em 190222. Embora sejam escassas as informações a respeito dos dois primeiros eventos, é sabido que o Protocolo de Paris, documento elaborado no âmbito da supracitada Conferência, foi o primeiro documento internacional assinado pelo Brasil, por meio do qual ele se comprometeu a empreender esforços contra o tráfico de pessoas, especificamente o tráfico de mulheres brancas. Em termos gerais, o “Acordo Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas”, conhecido como Protocolo de Paris, que, tendo sido elaborado no âmbito da Liga das Nações, veio a ser ratificado pelo Brasil por meio do Decreto nº 5.591 de 13 de julho de 1905, visava o combate ao tráfico de escravas brancas por meio de intensificação de investigação da atividade de prostituição de mulheres estrangeiras, assim como na fiscalização de portos, com o intuito de se encontrar indícios da prática dessa prática. Embora o mesmo, positivamente, preveja em seu artigo 3º possibilidades de assistência, pública ou privada, à vítima aliciada, ele foi alvo de críticas claramente pela desigualdade de tratamento dispensado às vítimas europeias – brancas – se comparadas às demais vítimas existentes. Art. 3º Os Governos se obrigam a mandar receber, quando assim acontecer e dentro dos limites legaes, as declarações das mulheres, virgens ou não, de nacionalidade estrangeira, que se entreguem á prostituição, no sentido de determinar sua identidade e estado civil, e indagar quem as induziu a abandonar seu paiz. As informações recolhidas, serão communicadas ás autoridades do paiz de origem das ditas mulheres, virgens ou não, para facilitar sua eventual repatriação. Os Governos se obrigam, dentro dos limites legaes e tanto quanto possivel, a confiar, a titulo provisorio, e tendo em vista a eventual repatriação, a instituições de assistencia publica ou privada ou a particulares que offereçam as necessarias garantias, ás victimas desse trafico, quando ellas se achem desprovidas de recursos. 22. ARY, Thalita Carneiro. O Tráfico de Pessoas em três dimensões: Evolução, globalização e a rota BrasilEuropa. 2009. 159 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2009, p. 61. Os Governos se obrigam igualmente, dentro dos limites legaes e na medida do possivel, a repatriar aquellas das mulheres, virgens ou não, que o solicitarem ou que vierem a ser reclamadas pelas pessoas que sobre ellas tenham autoridade. A repatriação só será effectuada após accordo quanto á identidade e nacionalidade, bem como quanto ao logar e á data da chegada á fronteira. Cada um dos paizes contractantes facilitará o respectivo transito no seu territorio. A correspondencia relativa ás repatriações far-se-ha, tanto quanto possivel, por via directa.23 Conforme bem pontuado por Ela Wiecko24, a “Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas” de 1910, posteriormente emendada pelo “Protocolo Final da Convenção para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio – 1950”25 o conceito de “tráfico” compreendia o favorecimento à prostituição, o induzimento e o descaminho, de mulher casada ou solteira menores. Se, porém, estas fossem maiores de idade (21 anos), o tipo penal só estaria completo se a prática ilícita ocorresse por meio de constrangimento ou fraude – do que se depreende que o consentimento excluiria o ilícito. Entretanto, era facultado aos Estados dispensar às mulheres casadas o mesmo tratamento dispensado às solteiras maiores. Acresce-se a isso a abertura da possibilidade de punição penal contra os agentes desse crime A “Convenção Internacional contra o Tráfico de Mulheres e Crianças”, realizada em Genebra, em 1921 e posteriormente promulgada pelo Brasil através dos Decretos nº 4.756, de 28-11-1923, e 16.572, de 278-1924, foi importante para a superação da questão racial já aqui discorrida, suprimindo o termo “escrava branca” de seu texto, e para a ampliação do rol de possíveis vítimas com a inclusão das crianças de ambos os sexos e com a fixação da maioridade das mulheres em 21 (vinte e um) anos26 completos . 23. BRASIL. Decreto Presidencial nº 5.991, de 13 de julho de 1905. Promulga a adhesão do Brazil ao Accordo concluido em Paris entre varias Potencias em 18 de maio de 1904, para a repressão do trafico de mulheres brancas. . Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto5591-13-julho-1905-549054-publicacaooriginal-64363-pe.html>. Acesso em: 07 nov. 2018. 24. 6 CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Tráfico de pessoas: da Convenção de Genebra ao Protocolo de Palermo. Disponível em: <http:// pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/trafico-de-pessoas/artigo_trafico_de_pessoas.pdf>. Acesso em: 08 nov. 2018. 25. BRASIL. Convenção Para A Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio - 1950. Nova York, Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br>. Acesso em: 07 nov. 2018. 26. ANDRADE, Francisco Eduardo Falconi de. Tráfico Internacional de Pessoas e Prostituição: paradoxos entre o Protocolo de Palermo e o Código Penal Brasileiro no tocante ao consentimento. Defensoria Pública da União. Disponível em: <http://www.dpu.def.br/images/esdpu/revista/revista9/Artigo_19. pdf>. Acesso em: 08 nov. 2018. Posteriormente, por meio da “Convenção para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores” (1933), à qual se sucedeu a “Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores” (1947), promulgada pelo Decreto n. 2.954, de 10-8-1938, no governo de Getúlio Vargas, foi alcançada uma nova conquista para fins de maior repressão do ilícito: o consentimento da vítima passou a ser indiferente para a configuração do crime. Em 1949, ocorreu a “Convenção para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio”, promulgada pelo Brasil por meio do Decreto n. 46.981, de 8-10-1959. Destacando-se inicialmente por ter sido elaborada no âmbito da ONU, essa Convenção, em detrimento das demais, é relevante por, além de ter previsto o crime de lenocínio, ter: ampliado o tipo penal de tráfico de pessoas a fim de que, quanto às vítimas, não mais fazer distinção de sexo entre as tais e, quanto aos agentes, abranger não somente os indivíduos que aliciam diretamente as vítimas, mas também os partícipes do delito: Artigo I- As Partes na presente Convenção convêm em punir tôda pessoa que, para satisfazer às paixões de outrém: 1. Aplicar, induzir ou desencaminhar para fins de prostituição, outra pessoa, ainda que com seu consentimento; 2. Explorar a prostituição de outra pessoa, ainda que com seu consentimento. Artigo II - As partes na presente Convenção convém igualmente em punir tôda pessoa que: 1. Mantiver, dirigir ou, conscientemente, financiar uma casa de prostitução ou contribuir para êsse financiamento. 2. Coscientemente, der ou tomar de aluguel, total ou parcialmente, um imóvel ou outro local, para fins de porstituição de outrem. Artigo III - Deverão ser também punidos, na medida permitida pela legislação nacional, tôda tentativa e ato preparatório efetuados com o fim de cometer as infrações de que tratam os Artigos 1 e 2. Artigo IV - Será também punível na medida permitida pela legislação nacional, a participação intencional nos atos de que tratam os Artigos 1 e 2 acima. Os atos de participação serão considerados, na medida permitida pela legislação nacional como infrações distintas, em todos os casos em que fôr necessário assim proceder para impedir a impunidade.27(...) 27. BRASIL. Decreto Presidencial nº 46.981, de 09 de outubro de 1959. Promulga, com o respectivo Protocolo Final, a Convenção para a repressão do tráfico de pessoas e do lenocínio, concluída em Lake Success Nova Entretanto, ainda conforme Ela Wiecko, destarte os pontos positivos e inéditos dessa convenção - a qual, sendo mais rigorosa e assistencialista que as demais quando, também, “lança bases para a cooperação jurídica internacional”, conforme expõe Wiecko , a mesma restou ineficaz, pois, até o ano de 1996 sucessivas convenções e conferências tiveram que retomar o tema a fim de incitarem uma postura ativa dos Estados contra esse delito. A ineficácia da Convenção de 1949 é reconhecida pela Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), ao obrigar os Estados Partes a tomar as medidas apropriadas para suprimir todas as formas de tráfico e de exploração da prostituição de mulheres. Em 1983 o Conselho Econômico e Social da ONU decide cobrar relatórios. Em 1992, a ONU lança o Programa de Ação para a Prevenção da Venda de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil. A necessidade de um processo de revisão se fortalece na Conferência Mundial dos Direitos Humanos (1993), cuja Declaração e Programa de Ação de Viena salientam a importância da “eliminação de todas as formas de assédio sexual, exploração e tráfico de mulheres”. Daí o Programa de Ação da Comissão de Direitos Humanos para a Prevenção do Tráfico de Pessoas e a Exploração da Prostituição (1996). 1.2 PROTOCOLOS DE PALERMO Por fim, elaborado, no âmbito da “Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional”, o “Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças”, conhecido como “Protocolo de Palermo”, é o último instrumento internacional que tem por objeto o tráfico de pessoas, tendo sido ratificado pelo Decreto Presidencial nº 5.017, de 12/03/2004.28 A “Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional”, também chamada de “Protocolo sobre Tráfico de Migrantes”29 ou “Convenção de Palermo”, entrou em vigor em 29.09.2013, York, em 21 de março de 1950, e assinada pelo Brasil em 5 de outubro de 1951. Brasília, Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-46981-8-outubro-1959386048-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 12 nov. 2018. 28. ATITUDE, Compromisso e. 08 2012 Protocolo de Palermo – promulgado pelo Decreto nº 5.017, de 12/03/2004. Disponível em: <http://www.compromissoeatitude.org.br/protocolo-depalermo/>. Acesso em: 13 nov. 2018. 29. AMARAL, Madson Anderson Corrêa Matos do. Protocolo contra o contrabando de migrantes por via terrestre, marítima e aérea da convenção das nações unidas contra o crime organizado transnacional. Disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_ biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_informativo/bibli_inf_2006/Cad-Dir_n.31_04. pdf>. Acesso em: 08 nov. 2018. tendo sido ratificada pelo Brasil em 28.02.2004 e posteriormente promulgada por meio do Decreto Presidencial nº 5.015/2004. A título de complementação dos motivos que ensejam a escolha da cidade de “Palermo” (Itália) como sede dessa Convenção, essa ocorreu em homenagem aos magistrados “Paolo Borsellino” e “Giovanni Falcone”30, que foram assassinados em 1992 a pedido de chefes de famílias ligadas à organização criminosa “Cosa Nostra”. Segundo dados das Nações Unidas, essa Convenção é o primeiro instrumento internacional a ser criado para fins de combate contra o crime organizado transnacional – o qual, segundo a entidade, gera um lucro aproximado de 870 bilhões de dólares por ano31 -em suas múltiplas formas. Desta forma, a fim de ter uma atuação eficaz e padronizada pelos Estados-Parte, a Convenção é ampla e minuciosa, expondo assim medidas de prevenção, repressão, adoção de tipos penais, medidas legislativas e investigativas a serem adotadas, além de ser complementada por três protocolos: i. Protocolo Relativo ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea; ii. Protocolo contra a fabricação e o tráfico ilícito de armas de fogo e iii. Protocolo Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, chamado também de “Protocolo de Palermo”, o qual possui relevante interesse dentre os demais, para fins deste artigo. O Protocolo de Palermo destaca-se dentre os demais instrumentos de proteção já citados, seja porque é o único instrumento internacional vocacionado unicamente ao tráfico de pessoas, seja também porque, baseando-se no que se julga serem ideais de proporcionalidade com foco no elemento da “vulnerabilidade”, possui o interessante e necessário foco na prevenção contra o tráfico de mulheres e crianças. Possuindo claramente uma abordagem referente à temática do crime organizado e, expondo claramente que suas disposições devem ser interpretadas em consonância com a Convenção que complementa, o Protocolo de Palermo adota a cooperação jurídica como uma de suas bases de ação, a qual possui eixos de prevenção (“prevention of the trafficking”), proteção (“the protection os the victims”) e repressão (“prosecution of traffickers”), iniciando assim as suas exposições com a conceituação cautelosa de seu objeto: 30. GOMES, Rodrigo Carneiro. O Crime Organizado na visão da Convenção de Palermo. Disponível em: <https://www.tribunapr.com.br/noticias/o-crime-organizado-na-visao-da-convencaode-palermo/>. Acesso em: 7 nov. 2018. 31. ONU. Convenção da ONU contra crime organizado transnacional comemora 10 anos. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/convencao-da-onu-contra-crime-organizado-transnacionalcomemora-10-anos/>. Acesso em: 10 nov. 2018. Por “tráfico de pessoas” entende-se o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos; O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente artigo, deverá ser considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a); O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração deverão ser considerados “tráfico de pessoas” mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos na alínea a) do presente artigo; Por “criança” entende-se qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos. (destacado) Valendo-se do chamado “tipo misto alternativo”, presente na legislação penal brasileira, inicialmente o Protocolo age com vista à eficiência ao englobar uma diversidade de ações tanto diretas de aliciamento como correlatas, alcançando assim também a figura do partícipe nas legislações estaduais, de modo que este também possa ser considerado um possível coautor do crime. A isso acrescem-se os requisitos de seu objeto, previstos na alínea “c” do supracitado artigo, quais sejam: a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos. Referentemente à exploração sexual, que é a temática a qual se dirige a presente pesquisa e, considerando-se a vocação do instrumento em prevenir, proteger e reprimir o tráfico especialmente de mulheres e crianças, é essencial que se avalie a eficiência total ou parcial desse instrumento a partir das medidas adotadas particularmente no que diz respeito a essa população específica. A partir da análise específica dos artigos de nº 02, alínea a, nº 09, alínea b, itens nº 04 e 05 e 10, item nº 02, se observa que o Protocolo de Palermo não se limita a abordar a esboçada questão de forma sugestiva e genérica, antes, ainda que o pontuando sutilmente nos dois primeiros artigos, frisa de modo firme a necessidade de que questões específicas referentes ao tratamento do TP ocorram com a consideração às necessidades individuais das vítimas. Artigo 2.º O presente Protocolo tem como objeto: a) Prevenir e combater o tráfico de pessoas, prestando uma especial atenção às mulheres e às crianças; Artigo 9.º Prevenção do tráfico de pessoas 1. Os Estados Partes deverão estabelecer políticas, programas e outras medidas abrangentes para: b) Proteger as vítimas de tráfico de pessoas, especialmente as mulheres e as crianças, de nova vitimização. 4. Os Estados Partes deverão adotar ou reforçar medidas, designadamente através da cooperação bilateral ou multilateral, para reduzir os fatores como a pobreza, o subdesenvolvimento e a desigualdade de oportunidades, que tornam as pessoas, em especial as mulheres e as crianças, vulneráveis ao tráfico. 5. Os Estados Partes deverão adotar ou reforçar as medidas legislativas ou outras, tais como medidas educativas, sociais ou culturais, designadamente através da cooperação bilateral ou multilateral, a fim de desencorajar a procura que propicie qualquer forma de exploração de pessoas, em especial de mulheres e crianças, que leve ao tráfico. 2. Os Estados Partes deverão assegurar ou reforçar a formação dos funcionários dos serviços responsáveis pela aplicação da lei, dos serviços de imigração ou de outros serviços competentes, na prevenção do tráfico de pessoas. A formação deve incidir sobre os métodos utilizados para prevenir o referido tráfico, para perseguir judicialmente os traficantes e para fazer respeitar os direitos das vítimas, nomeadamente protegendo-as dos traficantes. A formação deverá igualmente ter em conta a necessidade de abarcar os direitos humanos e as questões específicas dos homens, das mulheres e das crianças bem como encorajar a cooperação com organizações não governamentais, outras organizações relevantes e outros sectores da sociedade civil.32 (grifos nossos) Um dos impactos do referido Protocolo no Brasil se deu a partir da promulgação da Lei nº 13.344/2016, a qual, tendo por objeto o tratamento criminal quanto ao tráfico interno e internacional de pessoas33, afirma a 32. BRASIL. Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra A Criminalidade Organizada Transnacional Relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial de Mulheres e Crianças. Disponível em: <http://sinus.org.br/2014/wp-content/uploads/2013/11/OITProtocolo-de-Palermo.pdf>. Acesso em: 09 nov. 2018. 33. BRASIL. Lei nº 13.344, de 06 de outubro de 2018. Dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e base principiológica de combate ao tema, pontuando o desenvolvimento de seus eixos de ação, com especial atenção para a intensificação da repressão. Embora a ratificação do Protocolo represente um ganho em termos de proteção estatal em direitos humanos, seu tratamento prioritário pela lei que o incorpora abarca tão somente crianças e adolescentes, desconfigurando assim, em seu texto, um dos pontos centrais desse instrumento. Na esteira das supracitadas disposições, segue abaixo quadro que contém todos os instrumentos internacionais e eventos referentes a direitos humanos que, respectivamente, foram ratificados pelo Brasil e que tiveram a sua participação. 2 PRINCIPAIS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS CONTRA O TRÁFICO DE MULHERES Referente aos instrumentos internacionais, foram catalogados apenas aqueles que contêm expressamente o termo “tráfico” em seu texto, sendo listados de acordo com a data de sua elaboração e a forma de comprometimento referente ao tema. Feitas as devidas ressalvas à riqueza de detalhes e princípios que permeiam as supracitadas Convenções e Protocolos, os quais representam, com maior ou menor intensidade, marcos históricos nos avanços internacionais contra a prática de todas as formas de escravidão, serão listadas abaixo a síntese das obrigações assumidas pelo Estado Brasileiro contra a prática do Tráfico de Pessoas com particular atenção para as obrigações pertinentes às políticas adotadas em favor de mulheres. internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas; altera a Lei no 6.815, de 19 de agosto de 1980, o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e revoga dispositivos do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20152018/2016/Lei/L13344.htm>. Acesso em: 9 nov. 2018. Instrumento Síntese do conteúdo do instrumento + Meio de promulgação Síntese da obrigação assumida referente ao TP Tratamento dado à questão da mulher A Convenção Suplementar sobre Abolição da A obrigação Escravatura, do Tráfico de Escravos assumida consiste na criação de e das Instituições e impedimentos em Práticas Análogas relação a trânsito de à Escravatura, quaisquer tipos de adotada em 1956 meios de transporte no âmbito das que sirvam ao Nações Unidas, Convenção deslocamento de tem por base a Suplementar Convenção relativa pessoas traficadas. Não há dispositivos sobre Abolição Além disso, à Escravatura da Escravatura, que tratem há o enfoque (1926), tendo por do Tráfico de especificamente no exercício pontos relevantes o Escravos e das de questões da cooperação combate à formas Instituições e pertinentes à vítima internacional Práticas Análogas de comercialização mulher. contra o delito e de pessoas, à Escravatura na necessidade servidão por (1956). de prestação de dívidas e casamento informações e trabalho forçados. ao SecretárioPrevisão explícita Geral a respeito ao longo do texto. de quaisquer Promulgada mudanças pelo Decreto normativas Presidencial nº referentes ao TP. 58.563 de 1º de junho de 1966 Baseando-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, e originando o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, o pacto tem como finalidade e a reafirmação dos direitos e garantias Não há dispositivos Convenção Adoção de medidas fundamentais que tratem Americana legislativas contra do ser humano especificamente de Direitos quaisquer formas daquela declaração de questões Humanos -Pacto em âmbito regional, de Tráfico de pertinentes à vítima de San José (1969) levando em conta Pessoas. mulher. as particularidades dos países latinoamericanos . Previsão explícita no artigo 6º. Promulgada pelo Decreto Presidencial nº 678, de 06 de novembro de 1992/ EC nº 45/2004 Ainda que adotada com reservas e objeções por determinados países por razões de ordem cultural e religiosa, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas Convenção sobre de Discriminação Adoção de medidas a Eliminação de contra a Mulher (lato sensu) contra Todas as Formas visa eliminar a o Tráfico de de Discriminação discriminação Pessoas. contra a Mulher e assegurar a (1979) igualdade entre homens e mulheres. Previsão explícita no artigo 6º. Promulgada pelo Decreto Presidencial nº 4.377, de 13 de setembro de 2002. O instrumento cita ligeira e genericamente a necessidade de adoção de medidas contra o tráfico de mulheres. Declaração e Plataforma de Pequim (1990) Adoção de medidas referentes à inserção da tem ética do TP na educação forma e na conscientização Resultantes da da população, neste 4ª Conferência último caso, a fim Mundial sobre de se combater as Mulheres, também o turismo em Pequim, sexual. China, o Plano Foco na adoção e a Declaração de leis e medidas se restringem à assistencialistas análise prioritária a partir da de 12 temas em perspectiva das que mulheres e especificidades meninas tenham da mulher maiores obstáculos. enquanto tal. Desta forma, Intensificação da aqueles visam, cooperação jurídica principalmente internacional a igualdade de com vistas à gênero. melhor eficiência Participação investigativa. brasileira na Foco também aprovação dos numa assistência documentos sustentável à resultantes vítima, de modo a possibilitar também que essa possa superar situações de vulnerabilidade material. A DPP se destaca frente aos demais instrumentos pela sua perspectiva de equidade com a qual trata a questão da vítima mulher. Inicialmente, o instrumento aponta a necessidade que que sejam adotadas medidas legislativas e assistencialistas considerando-se as especificidades da mulher enquanto tal. A partir disto, numa perspectiva generalista e conglobante, o DPP discorre sobre: políticas públicas, legislação; inserção da temática do TP na educação formal com vistas à conscientização das pessoas, assim como à conscientização da população; combate ao turismo sexual; combate a práticas culturais e religiosas discriminatórias contra a mulher; alocação de recursos para a reintegração da vítima de modo a impedir a sua revitimização. Convenção sobre os Direitos da Criança Sendo a Convenção mais ratificada do mundo, a Convenção sobre os Direitos da Criança visa em seus 54 artigos expor os direitos das crianças nos mais diversos âmbitos e fixar a responsabilidade de seus responsáveis legais. Além disso, também conta com três protocolos complementares referentes à participação de crianças em conflitos armados, à prostituição infantil e à venda de crianças.1 Previsão explícita no artigo 35. Promulgada pelo Decreto Presidencial nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Foco na adoção de medidas nacionais e na cooperação jurídica com vistas ao combate ao TP. Não há dispositivos que tratem especificamente de questões pertinentes à vítima mulher. Declaração e Programa de Ação de Viena (1993) Sendo os documentos mais importantes produzidos no último século, a Declaração e Programa de Ação de Viena, resultantes da Conferência Mundial dos Direitos Humanos, visa o reforço aos direitos humanos e fundamentais a partir de sua incorporação nos planos educacionais dos Estados2. Participação brasileira na presidência do Comitê de Redação da Conferência.3 Combate aos elementos que abarcados pela violência contra a mulher, possibilitando também a vedação à perpetuação de ações culturais e religiosas que discriminem a mulher e, assim, possibilitem a violação a seus direitos. Seus elementos referentes à mulher possuem foco no combate à violência contra a mesma, assim como às práticas culturais ou religiosas discriminatórias que possam contribuir para a perpetuação de violações. Baseando-se na Convenção sobre os Direitos do Menor, a Convenção Interamericana de sobre o Tráfico Internacional de Tratar a repressão Menores é fixada penal considerando a responsabilidade a gravidade da Estatal para a conduta. Promover Não há dispositivos A Convenção apuração de a cooperação que tratem Interamericana de possíveis delitos internacional especificamente sobre o Tráfico e a adoção e aprimorar o de questões Internacional de pelos mesmos intercâmbio entre pertinentes à vítima Menores (1994) de medidas de fontes de dados mulher. prevenção e sanção estatais pertinentes desse tipo de delito. à temática do Previsão explícita tráfico de pessoas ao longo do texto. Promulgada pelo Decreto Presidencial nº 2.740, de 20 de Agosto de 1998. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará (1994) A Convenção de Belém do Pará se coloca como um importante instrumento de proteção à mulher no que diz respeito a sua integridade física ao conceituar a violência contra a mesma e expor meios práticos de combater violações a seus direitos. Previsão explícita no artigo 2º. Promulgada pelo Decreto Presidencial nº 1.973, de 1º de agosto de 1996. Proteção essencial aos direitos da mulher, com a consequente repressão de quaisquer ações em contrário. Embora não trate de forma aprofundada o tráfico de pessoas tanto na sua modalidade ampla como em relação à vítima mulher, ao conceituar o TP dentro do conceito de violência contra a mulher, aquela passa a “usufruir” das disposições protetivas outorgadas às vítimas das demais formas de violência. Protocolo Facultativo para a Convenção sobre os Direitos da Criança sobre a venda de crianças, prostituição e pornografia infantis (2000) 1 Sendo parte Assegurar integrante da que quaisquer Convenção dos finalidades de Direitos da Criança, tráfico de pessoas esse Protocolo visa sejam abrangidos a criminalização da pela legislação venda, prostituição penal. Garantir e pornografia de que a sanção penal crianças, além seja proporcional de permitir que à gravidade do crianças que Não há dispositivos delito cometido, de tiveram seus que tratem modo que a sanção direitos violados especificamente civil também seja possam denunciar de questões aplicada. Adoção seus violadores pertinentes à vítima para as autoridades de todas as medidas menina. estatais possíveis públicas de seus para o combate. países.4 Previsão Promoção da explícita nos conscientização parágrafos 3º e 7º. popular a respeito Promulgada desse crime. pelo Decreto Promoção e Presidencial nº fortalecimento 5.007, de 8 de da cooperação março de 2004 internacional. PROFUTURO. A história da ‘Convenção dos direitos da criança’. Disponível em: <https://profuturo.education/pt/2017/11/23/a-historia-da-convencaodos-direitos-da-crianca/>. Acesso em: 08 nov. 2018. 2 ONU. Declaração e Programa de Ação de Viena (1993). Disponível em: <https:// slideplayer.com.br/slide/68292/>. Acesso em: 13 nov. 2018. 3 ALVES, José Augusto Lindgren. O significado político da Conferência de Viena sobre Direitos Humanos. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/ index.php/rap/article/viewFile/8555/7293>. Acesso em: 08 nov. 2018. 4 BRASIL, Onu. ONU pede ratificação universal de convenção sobre direitos da criança. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/onu-pede-ratificacao-universalde-convencao-sobre-direitos-da-crianca/>. Acesso em: 09 nov. 2018. 3 ANÁLISE DOS DADOS EXPOSTOS 3.1 DECLARAÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER: SUAS IMPLICAÇÕES À POSTURA BRASILEIRA Da tabela supracitada se depreende que, dentre os nove instrumentos supracitados, apenas a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), a Declaração e Plataforma de Pequim (1990), a Declaração e Programa de Ação de Viena (1993) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará (1994) trazem dispositivos que versam sobre a vítima mulher e, dentre eles, apenas os dispositivos das Declarações de 1990 e 1993 o fazem de forma específica – com destaque para o primeiro, em relação ao qual importa expor uma importante análise. Entretanto, atendo-se ainda aos dados, se depreende que não somente a inserção de dispositivos específicos pertinentes à proteção da mulher se deu de forma tardia (1979), como também não se deu por meio de instrumento que trata dos direitos humanos a partir de uma perspectiva da coletividade, mas sim de um instrumento especificamente direcionado aos direitos das mulheres. A partir de uma abordagem centrada na necessidade da igualdade de direitos entre homens e mulheres e ao afastamento de quaisquer formas de discriminação contra essas últimas, acresce-se ainda a necessidade de quebra de estereótipos negativos que lhes impõe papeis sociais subalternos. Desta forma, o contexto argumentativo da Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher pontua o tráfico de mulheres como um dos frutos de discriminações sólidas historicamente construídas. Considerando que não existe qualquer óbice para que instrumentos internacionais de direitos humanos possam tratar especificamente de um público-alvo sem que ele se preste somente a isso, essa abordagem revela determinada resistência em relação ao tema por parte da comunidade internacional; resistência essa que se procurará decifrar e que vem sendo superada com menos intervalos de tempo, como se vislumbra a partir da Convenção e Protocolo de Palermo. 3.2 UM ADENDO À RESISTÊNCIA INTERNACIONAL À CEDAW Referentemente à alegada resistência, nas palavras de Flávia Piovesan, essa se confirma ou, pelo menos, se evidencia a partir da seguinte postura adotada por Bangladesh e pelo Egito cujas contra o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher: Um universo significativo de reservas concentrou-se na cláusula reativa à igualdade entre homens e mulheres na família. Tais reservas foram justificadas com base em argumentos de ordem religiosa, cultural ou mesmo legal, havendo países (como Bangladesh e Egito) que acusaram o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher de praticar “imperialismo cultural e intolerância religiosa”, ao impor-lhes a visão de igualdade entre homens e mulheres, inclusive na família.34 Em relação ao Brasil, este foi um dos países a demonstrar resistência a determinadas disposições da CEDAW, assinando-o somente em 1981 e ratificando-o tão somente em 1984, com reservas referentes ao Direito de Família35, as quais foram retiradas em 1994: As reservas aos artigos 15 e 16, retiradas em 1994, foram feitas devido à incompatibilidade entre a legislação brasileira, então pautada pela assimetria entre os direitos do homem e da mulher. A reserva do artigo 29, que não se refere a direitos substantivos, é relativa a disputas entre Estados parte quanto à interpretação da Convenção e continua vigorando. Quanto ao Protocolo Adicional à Convenção, o Brasil se tornou parte em 2002.36 Para fins de aprimoramento da discussão, seguem abaixo os citados artigos de nº 15 e 16, aos quais foram feitas as reservas: Artigo 15. Os Estados-Partes reconhecerão à mulher a igualdade com o homem perante a lei: §4. Os Estados-Partes concederão ao homem e à mulher os mesmos direitos no que respeita à legislação relativa ao direito das pessoas à liberdade de movimento e à liberdade de escolha de residência e domicílio. 34. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva - Jus, 2018. 752 p. (18). Disponível em: <https://books.google.com.br>. Acesso em: 07 nov. 2018. 35. Os direitos das mulheres no contexto internacional: a Conferência de Beijing. Disponível em: <https:// www.maxwell.vrac.puc-rio.br/10180/10180_5.PDF>. Acesso em: 10 nov. 2018. 36. MULHERES, Secretaria de Políticas Para As. Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher - CEDAW - Comentários. Disponível em: <http://www.spm.gov. br>. Acesso em: 10 nov. 2018. Artigo 16 §1. Os Estados-Partes adotarão todas as medidas adequadas para eliminar a discriminação contra a mulher em todos os assuntos relativos ao casamento e às relações familiares, em particular, com base na igualdade entre homens e mulheres, assegurarão: a) O mesmo direito de contrair matrimônio: c) Os mesmos diretos e responsabilidades durante o casamento e por ocasião de sua dissolução; g) Os mesmos direitos pessoais como marido e mulher, inclusive o direito de escolher sobrenome, profissão e ocupação; h) Os mesmos direitos a ambos os cônjuges em matéria de propriedade, aquisição, gestão, administração, gozo e disposição dos bens, tanto a título gratuito quanto a título oneroso.37 Considerando que, atualmente, o Brasil é um dos membros do Comitê CEDAW e que o mesmo se tornou parte do Protocolo Adicional à Convenção em 200238, visualiza-se a apontada e gradual superação de resistências estatais à atuação especificamente em prol da defesa da mulher. Entretanto, ainda assim, ante o exposto, se pôde vislumbrar que essas resistências podem significar obstáculos à criação e concretização, respectivamente, de instrumentos internacionais e compromissos internacionais contra práticas criminosas contra a mulher, como é o caso do tráfico de pessoas. Daí, o tratamento dessa temática de forma cada vez mais específica por instrumentos internacionais que não a tenham como único objeto pode refletir essa gradual superação dessas discriminações institucionalizadas. Referentemente à “Declaração de Pequim” (1990), nas palavras de Ana Vianna39, aquela constitui um texto sensível, pois, trata de um tema que é considerado um tabu ao defender e promover dos direitos das mulheres, mobilizando crenças individuais (pág. 44) a partir de uma forte perspectiva da igualdade de gênero. Desta forma, sendo um texto dessa espécie, possui 37. ONU. Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw1.pdf>. Acesso em: 08 nov. 2018. 38. GÊNERO, Observatório de. O Comitê CEDAW – Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Disponível em: <http://www.observatoriodegenero.gov.br/eixo/ internacional/instancias-regionais/o-comite-cedaw-2013-comite-para-a-eliminacao-de-todasas-formas-de-discriminacao-contra-a-mulher>. Acesso em: 10 nov. 2018. 39. VIANA, Ana Luiza Treichel. A Declaração de Pequim como texto sensível: Uma análise das unidades de tradução relativas à noção de gênero. 2017. 197 f. Tese (Doutorado) - Curso de Linguística Aplicada, Unisinos, São Leopoldo, 2017. Disponível em: <http://www.repositorio.jesuita.org.br>. Acesso em: 08 nov. 2018. peculiaridades a si inerentes, as quais possuem uma forte carga valorativa, ainda que essa característica seja inerente a documentos que versam sobre direitos humanos. Entretanto, ainda que a Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim configurem o maior quadro de políticas mundiais para realizar os objetivos da igualdade de gênero, do desenvolvimento e da paz40, o que, em termos, significa a proteção aos direitos fundamentais das mulheres, houve controvérsias quanto à aceitação dos seus dispositivos por parcela dos Estados-Membro. Basicamente, haveria uma dualidade representada pelos Estados ditos “progressistas”, que defendiam a universalidade dos direitos das mulheres, e os “fundamentalistas”, que, por sua vez, negavam a concepção de “universalidade” sob a alegação da dependência dos ideais de direitos fundamentais à diversidade cultural. 41 Diferentemente da postura adotada em 1979, no contexto da Declaração e da Plataforma de Pequim, o Brasil posicionou-se de forma progressista, o que se refletiu numa postura ativa de trabalho do Comitê Nacional de preparação da posição brasileira. Além do mais, assim como sustentado por Ana Luci Paz Lopes42, citando Haddad e Lima, a abertura democrática experimentada pelo país – que saíra recentemente do período ditatorial – possibilitou não somente o aumento do interesse nacional pela política internacional, como também o pronunciamento de novos protagonistas no âmbito do Ministério de Relações Exteriores, o qual já possui determinada autonomia em relação à política externa. Deste modo, se evidencia que o combate ao tráfico de mulheres, especificamente, tem a sua eficiência em proporcionalidade com o grau de liberdade dos indivíduos dentro de uma sociedade. Portanto, cabe acrescer também que a grande questão referente ao Tráfico de Mulheres é que a referida eficiência pode também estar intrinsecamente ligada às discriminações institucionalizadas nos Estados. CONSIDERAÇÕES FINAIS Satisfatoriamente, foram encontrados diversos instrumentos jurídicos internacionais que, se desprendendo de convicções pautadas em 40. UNRIC. Declaração e Plataforma de Acção de Beijing, quinze anos após a sua adopção. Disponível em: <https://www.unric.org/pt/actualidade/27555-declaracao-e-plataforma-de-accao-debeijing-quinze-anos-apos-a-sua-adopcao>. Acesso em: 08 nov. 2018. 41. LOPES, Ana Luci Paz. Construção da posição do governo brasileiro referente à plataforma da Ação de Pequim: primórdios e atualidade. Disponível em: <http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/ resources/anais/1499397250_ARQUIVO_artigoMMFGfinal.pdf>. Acesso em: 06 nov. 2018. 42. Ibidem preconceitos – que iam além da questão de gênero, como se observou no caso do Tráfico de Escravas Brancas – foram cruciais para uma introdução e desenvolvimento de questões ligadas à igualdade de gênero, como é exemplo a Declaração de Beijing (1995). Entretanto, a análise do conjunto desses instrumentos, os quais foram selecionados por conterem expressamente a palavra “mulher”, o que indica que os tais pudessem ter normas específicas destinadas a elas, revelou que àquela, até a referida Convenção, não costumavam ser destinados mecanismos específicos de proteção. Assim, foi constatado que apenas esforços feitos por mulheres e para mulheres puderam dar a elas o tratamento específico que necessitavam, pois, como foi discorrido ao longo da pesquisa, ao grau de sua vulnerabilidade deveriam ser proporcionais a quantidade de instrumentos jurídicos e políticas públicas com foco na proteção, assistência e prevenção daquelas com vistas à proporcionalidade. Colaborando com a presente afirmação, o Protocolo de Palermo, destinando-se especialmente às mulheres e crianças, percebe esta vulnerabilidade acentuada desses grupos. Pertinentemente à referida igualdade, pode-se vislumbrar que esta é a principal causa que representa um óbice a que todos os países, indistintamente, assumam os compromissos de atuarem incisivamente contra esse crime. Essa desigualdade se tornou nítida na análise da evolução do combate ao Tpex no Brasil, tendo assim se tornado notável que ela, aliada à discriminações sociais existentes sobre a mulher, em especial à mulher que se prostitui, se torna um essencial fator de afastamento da atuação estatal em relação à mulher e, consequentemente, à vítima de Tpex. Portanto, evidencia-se que a postura brasileira em relação à mulher traficada caracterizou-se essencialmente por omissões provenientes de estigmas sociais quanto à mulher, entretanto, percebe-se, satisfatoriamente, a abertura do Estado Brasileiro às convenções internacionais que tratam especificamente da mulher. Conforme narração pertinente à incorporação dos dispositivos do Protocolo de Palermo às normas internas em sua integralidade, não é possível afirmar que o Brasil demonstra postura isenta de discriminações negativas em relação à mulher prostituída. Entretanto, das exposições aqui realizadas, se depreende a existência de uma maior liberdade de discussão desse tema pelo país, de sua vinculação às normas internacionais que o tem por objeto e, consequentemente, da adoção de medidas contrárias à perpetuação de sua prática. REFERÊNCIAS ALVES, José Augusto Lindgren. O significado político da Conferência de Viena sobre Direitos Humanso. Disponível em: <http://bibliotecadigital. fgv.br/ojs/index.php/rap/article/viewFile/8555/7293>. Acesso em: 08 nov. 2018. AMARAL, Madson Anderson Corrêa Matos do. Protocolo contra o contrabando de migrantes por via terrestre, marítima e aérea da convenção das nações unidas contra o crime organizado transnacional. 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Interessa-se por Direito Penal e Direito da Criança e do Adolescente. INTRODUÇÃO O tráfico internacional de pessoas é atualmente o crime mais lucrativo ao redor de globo e tem como sua principal vítima mulheres e crianças em situação de vulnerabilidade. Esse crime vem crescendo gradativamente devido a diversos fatores que ainda não foram superados em nossa sociedade o que acaba tornando um grupo de pessoas mais suscetível a ser vítima desse crime, são esses fatores: conflitos armados mundiais, intensificação do fluxo de refugiados e imigrantes que fogem das guerras e da escassez econômica de seus países, crescimento dos índices de violência na esfera global, instabilidade política e econômica, o aumento da desigualdade socioeconômicas, ineficácia de leis e desinteresse dos estados e autoridades responsáveis, preconceitos relacionados ao gênero, raças e culturas. Por ser um crime altamente lucrativo, muitas vezes estão envolvidas redes internacionais de criminosos espalhados pelo mundo, o que dificulta ainda mais o combate a essa prática. Este fenômeno é complexo e inaceitável, sendo materializado em crime organizado, associado à corrupção institucional, e apesar de apresentar diversas vertentes, o presente artigo tem como objetivo analisar o tráfico pessoas no contexto de conflitos armados, sendo suas principais vítimas mulheres e crianças, em que mulheres são exploradas sexualmente, no qual será abordado as diversas faces da exploração sexual, como a escravidão sexual e o casamento forçado com relação às mulheres. A questão da violência contra mulher é tão antiga quanto a história humana e foi por um longo período de tempo ignorada pela sociedade, políticos e estudiosos. A violência contra mulher é um tema que ultrapassa barreiras do doméstico e do privado, estando presente no meio internacional e especialmente durante conflitos armados. 1 O QUE É UM CONFLITO ARMADO? Em 2016, mais países estavam passando por algum tipo de conflito violento do que em qualquer outro momento nos últimos 30 anos. As pessoas que vivem nessas áreas de conflito podem sofrer abusos, violência e exploração, incluindo o tráfico de pessoas. O risco de tráfico de pessoas também está relacionado ao alto número de refugiados. A necessidade de fugir da guerra e da perseguição pode ser aproveitada para a exploração pelos traficantes. O tráfico de pessoas no contexto de conflitos armados tem crescido relativamente, e consequentemente chamando a atenção para o problema pela comunidade internacional, isso porque as pessoas que são vítimas desses conflitos apresentam um alto grau de vulnerabilidade, estando sujeitas à diversas violações de direitos humanos. Em novembro de 2017, o Conselho de Segurança da ONU emitiu na Resolução 2388 e reiterou uma grande preocupação com o tráfico de pessoas nas áreas em que perduraram o conflito armado. O Conselho de Segurança da ONU condenou todos os atos de tráfico de pessoas praticados pelo Estado Islâmico, Boko Haram, Al-Shabaab, Exército da Resistência do Senhor que tinham como propósito a escravidão sexual, a exploração sexual e o trabalho forçado. Os conflitos armados trazem diversos elementos que podem caracterizar o tráfico, isso porque esses conflitos aumentam a vulnerabilidade social e econômica do local. Adicionando a isso, a falta de obediência às leis levando a impunidade que apenas gera um ambiente propício para que o tráfico de pessoas possa acontecer, tanto por grupos armados como por criminosos locais. Diferentes instituições que trabalham com segurança e assistência humanitária definem conflitos armados de diversas maneiras, entretanto, os autores das definições devem identificar o começo e o fim de um conflito armado, e determinar um critério para identificar quais os tipos de violências constituem um conflito armado. A definição dada pelo UCDP/PRIO Armed Conflict Dataset, publicado pelo Centre for the Study of Civil War at the Internatioal Peace Research Institute, distingue conflito armado em duas categorias, que são classificados de acordo com as taxas anuais de causalidades, no qual um conflito “menor” é definido como um conflito no qual há entre 25 a 990 mortos em uma batalha, e “guerra” é definida como um conflito em que há pelo menos 1.000 mortes relacionadas à batalhas. Com relação as mortes relacionadas à batalha, estão excluídas as mortes diretas e indiretas devido a doença e fome, criminalidade ou ataques deliberadamente direcionados apenas contra civis. Um conflito armado é uma incompatibilidade contestada que se refere ao governo e/ou território onde o uso da força armada entre duas partes, das quais pelo menos uma é o governo de um estado, que resulta em pelo menos 25 mortes relacionadas à batalha.1 (tradução livre) A principal característica da definição de conflitos armados da UCDP/PRIO é a qualificação e classificação baseada no número de mortes ocorrida durante a batalha, porém, focar em mensurar um conflito armado pelo seu número de mortes é algo complicado. O primeiro grande problema é que nem sempre é reportado o número correto de mortes que ocorre em uma batalha, isso porque, conflitos armados em estados autoritários e em países em desenvolvimento são frequentemente subnotificados, não há uma preocupação em fazer uma base de dados confiável, e muitas vezes as forças do governo e rebeldes costumam exageram na quantidade de mortes ocorridas em batalha. Além disso, diferentes métodos de contagem podem produzir estimativas bastantes diferentes dos números de mortes. O segundo problema está relacionado em focar a classificação de um conflito armado com relação as mortes ocorridas durante a batalha, isso porque, nesses casos se exclui o impacto socioeconômico relacionado ao conflito, ou seja, o impacto que ele gera indiretamente na sociedade local. Do ponto de vista de gênero, a quantificação de conflitos armados com base em mortes relacionadas é muito mais tendenciosa para os homens, em detrimento das mulheres e meninas. Enquanto mais homens tendem a 1. UCDP/PRIO. The UCDP/PRIO Armed Conflict Dataset Codebook Version 4-2006. Disponível em <https://www.prio.org/Global/upload/CSCW/Data/UCDP/2006/Codebook_v4-2006. pdf >. Acesso em: 02 de novembro de 2019. Texto original: An armed conflict is a contested incompatibility which concerns government and/or territory where the use of armed force between two parties, of which at least one is the government of a state, results in at least 25 battle- related deaths. serem mortos no campo de batalha, mulheres e crianças são frequentemente desproporcionalmente alvo de outras formas de violência letal durante o conflito, isso inclui violência sexual, no qual teremos o que chamamos de violência secundária contra sobreviventes de violência sexual e morte por gravidez ou infecção por HIV/ AIDS resultante de estupro que acabam não sendo contabilizadas nesses dados. Outro ponto que deve ser levado em consideração é o colapso do sistema de saúde e outras infraestruturas importantes que se perdem durante um conflito armado, afetando principalmente mulheres e meninas de maneiras que podem levar à morte por diferentes situações. Para fins de conceituação neste artigo, utilizaremos o conceito de “conflito armado não internacional” definido pelo Segundo Protocolo Adicional das Convenções de Genebra no qual é caracterizado pelo confronto armado prolongado entre dois ou mais Estados ou entre as forças armadas do governo e as forças armadas de um ou mais grupos armados dentro de um Estado. Segundo o Art. 1 º do II Protocolo Adicional às Convenções de Genebra (in verbis): O presente Protocolo, que desenvolve e completa o Artigo 3 comum às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, sem modificar suas condições de aplicação, atuais, se aplica a todos os conflitos armados que não estiverem cobertos pelo Artigo 1 do Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, relativo à proteção das vítimas dos conflitos armados internacionais (Protocolo I) e que ocorram no território de uma Alta Parte Contratante entre suas Forças Armadas e Forças Armadas dissidentes ou grupos armados organizados que, sob a direção de um comando responsável, exerçam sobre uma parte desse território um controle tal que lhes permita realizar operações militares contínuas e concentradas e aplicar o presente Protocolo. 2 Para que seja caracterizado um conflito armado não internacional, fazendo com que as partes devam se submeter às leis da guerra, devese observar dois critérios principais: a organização dos grupos armados, que deve ter capacidade de sustentar operações militares prolongadas sendo sustentado por um comando responsável e que controla parte do território. Além disso é preciso verificar a intensidade do conflito, no tempo e no espaço. Atos esporádicos e isolados de violência são excluídos desses 2. BRASIL. Decreto nº 849, de 25 de junho de 1993. Promulga os Protocolos I e II de 1977 adicionais às Convenções de Genebra de 1949, adotados em 10 de junho de 1977 pela Conferência Diplomática sobre a Reafirmação e o Desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário aplicável aos Conflitos Armados. Presidência da República, Brasília, 25 de junho de 1993. critérios. No direito internacional humanitário, o termo conflito armado não internacional substitui expressões como conflito interno, guerra civil, rebelião, insurgência e insurreição, que não são definidas nas leis da guerra. Com relação ao conflito armado internacional, podemos encontrar sua classificação no Art. 1º do I Protocolo Adicional às Convenções de Genebra (in verbis): As situações a que se refere o parágrafo precedente compreendem os conflitos armados nos quais os povos lutam contra a dominação colonial e a ocupação estrangeira e contra os regimes racistas, no exercício do direito de livre determinação dos povos, consagrado na Carta das Nações Unidas e na Declaração sobre os Princípios de Direito Internacional referente às Relações de Amizade e Cooperação entre os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas.3 Portanto, em contraste, o conflito armado internacional, segundo o direito internacional humanitário, é o conflito entre dois ou mais Estados, independentemente de ter havido ou não uma declaração de guerra formal, a expressão também se aplica quando há ocupação militar de parte ou de todo um território por uma força estrangeira, com ou sem resistência. 2 UM PANORAMA GLOBAL SOBRE O TRÁFICO DE MULHERES NO CONTEXTO DE CONFLITOS ARMADOS Diferentes modalidades de tráfico de pessoas surgem em diferentes partes do mundo, junto com diversas formas de exploração, embora outras formas de tráfico e exploração – que não sejam exploração sexual e trabalho forçado – possuem baixas taxas de incidência, elas apresentam algumas especificidades geográficas. Um bom exemplo é o tráfico para casamento forçado, que é mais comum ser detectado em partes do Sudeste Asiático. Para se identificar outras formas de tráfico é preciso analisar a forma em que os países optaram por criminalizar diferentes tipos de exploração. Os conflitos armados podem aumentar a vulnerabilidade ao tráfico de pessoas de diferentes maneiras, visto que há diversas motivações para se cometer o crime de violência durante conflitos armados. Podem ser de forma aleatória, como um subproduto do colapso na ordem social e moral que acompanha a guerra ou podem ser sistemáticas, realizadas por forças que lutam para o propósito explicito de desestabilizar as populações, 3. BRASIL. Decreto nº 849, de 25 de junho de 1993. Promulga os Protocolos I e II de 1977 adicionais às Convenções de Genebra de 1949, adotados em 10 de junho de 1977 pela Conferência Diplomática sobre a Reafirmação e o Desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário aplicável aos Conflitos Armados. Presidência da República, Brasília, 25 de junho de 1993. destruindo laços de comunidades e famílias, podem também servir para sufocar a resistência, inserindo o medo em comunidades ou na oposição a grupos armados. Particularmente em conflitos definidos por questões raciais, tribais, religiosas e outras, a violência pode ser usada para promover a limpeza étnica. Casos de mulheres e meninas que foram raptadas para fornecer serviços sexuais para combatentes também pode ser um meio de manifestação da violência sexual em conflitos armados. Como os conflitos armados geram áreas com um Estado de Direito precário e sem recursos para que o Estado ou a população possa enfrentar o crime cometido pelos traficantes, o local fica propício para o cometimento de crimes bárbaros. Essa situação é exacerbada por um número maior de pessoas sem acesso às necessidades básicas e por muitas vezes ocorrendo a exploração de civis por esses traficantes. É importante mencionar as formas de tráfico que acontece em áreas de conflitos armados ou por outros criminosos que se aproveitam da situação, são: tráfico de pessoas para fins de exploração sexual e todos os seus desdobramento como escravidão sexual e prostituição, recrutamento de crianças soldados, trabalho forçado e rapto de mulheres e meninas para o casamento forçado. O tráfico de pessoas para fins de exploração sexual ocorre em todas as zonas de conflitos analisadas, que inclui a África subsaariana, Norte da África, Oriente Médio, Sudeste Asiático, entre outros. Em campos de refugiados no Oriente Médio, está sendo observado que meninas e mulheres jovens tem sido casada sem consentimento e submetida à exploração sexual em países vizinhos. É relevante mencionar que os grupos armados não são os únicos atores envolvidos no tráfico de pessoas em conflitos armados. Grupos criminosos e traficantes individuais têm como alvo civis e refugiados, além de população que se deslocam internamente em campos formais ou informais. Em análise feita pela UNODC no Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas (UNOC, 2018),4 ficou constatado que o rapto de mulheres e meninas para fins de exploração sexual foi relatado em muitos conflitos na África Central e Ocidental, bem como nos conflitos do Oriente Médio. Sendo também relatado que mulheres e meninas são traficadas para o casamento forçado nas mesmas áreas. 4. UNODC, Global Report on Trafficking in Persons 2018. United Nations publication. New York: 2018. A maioria das vítimas detectadas é traficada para fins de exploração sexual, embora não podemos afirmar que acontece em todas as regiões. A principal vítima do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual são pessoas do sexo feminino, em que se verifica maior incidência de exploração sexual nas Américas, Europa, Ásia Oriental e Pacífico. Na América Central e no Caribe, mais meninas são detectadas como vítimas de tráfico para fins de exploração sexual, enquanto as mulheres são detectadas como vítima dessa forma de exploração em outras sub-regiões. Quando analisamos os tipos de exploração que ocorrem no Oriente Médio podemos afirmar que: O Estado Islâmico tem como alvo o povo Yazidi, uma minoria religiosa, para o tráfico de pessoas para a escravidão sexual e servidão doméstica (meninas e mulheres), bem como exploração em combate armado (meninos e homens). Em alguns casos, a exploração culminou com a venda das vítimas em “leilões de escravos”, seja para ser vendido de voltar para às suas famílias, para outros combatentes do Estado Islâmico ou para outros. Estima-se que em 2016, mais de 3.200 pessoas Yazidi estavam em cativeiro do Estado Islâmico. Cerca de 80% das mulheres e meninas Yazidi capturadas foram vendidas como mercadorias, enquanto os 20% restante foram distribuídos em campos militares.5 (tradução livre) Com relação ao uso da violência sexual como arma de guerra em conflitos armados, podemos mencionar o caso de Nadia Murad – que recebeu o Prêmio Nobel da Paz de 2018 por seus esforços na luta contra a exploração sexual de mulheres em conflitos armados – no qual a jovem pertencia a minoria Yazidi no Iraque, quando ela e outras centenas de outras mulheres foram sequestradas e violentadas pelo grupo extremista Estado Islâmico, sendo vendidas e estupradas coletivamente, sendo vitimas do que o Estado Islâmico chama de “jihad sexual”. Nadia Murad6 foi sequestrada em 03 de agosto de 2014, quando Estado Islâmico atacou os Yazidis em Sinjar – aldeia em que Nadia morava -, no qual homens, idosos, crianças e deficientes foram massacrados pelos 5. UNODC. Global Report on Trafficking in Persons 2018, Booklet 2: Trafficking in persons in the context of armed conflict. United Nations publication. New York: 2018. Texto original: ISIL has targeted Yazidi people, a religious minority, for trafficking for sexual slavery and domestic servitude (girls and women), as well exploitation in armed combat (boys and men). In some cases, the exploitation culminated with the sale of the victims at organized ‘slave auctions’, either back to their families, to other ISIL fighters or to others. Estimates suggest that in 2016, over 3,200 Yazidi people were in ISIL captivity. Some 80 per cent of the captured Yazidi women and girls were sold as commodities, while the remaining 20 per cent were distributed in military camps. 6. BBC Brasil. Nadia Murad, a vencedora do Prêmio Nobel da Paz que superou histórico de vítima de ‘jihad sexual’. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-45757310>. Acesso em: 16 de novembro de 2019. extremistas. Segundo Nadia, após o massacre cerca de 150 meninas foram divididas e levadas até Mosul, onde encontraram muitas jovens, mulheres e meninas, todas Yazidis que haviam sido sequestradas de outras aldeias no dia anterior. Essas jovens sequestradas eram levadas por homens do Estado Islâmico que escolhia algumas delas, que era estupradas e devolvidas como se nada tivesse acontecido. Muitos dos extremistas chegavam a manter as mulheres consigo por mais de uma semana, porém logo eram vendidas. Muitas mulheres acabavam gravidas e deram à luz no cárcere. Elas também eram levadas ao tribunal islâmico e forçadas a se converter. Nadia conseguiu fugir pois antes de ser vendida, o último homem com quem conviveu a deixou em uma casa mulçumana que não concordava com a ideologia do Estado Islâmico e, portanto, ajudaram a mesma fugir levando-a até a fronteira com um véu negro e documento de identidade islâmico. Durante o painel do Escritório de Direitos Humanos da ONU (ACNUDH) que ocorreu em 5 de julho de 2016, Nadia Murad busca viajar pelo mundo para relatar o sofrimento de seu povo e afirma que: “A maior necessidade da minha comunidade atualmente é a justiça. Não é possível reconquistar o coração das mães que perderam 6 ou 7 filhos. Só através da justiça, é possível fazer isso. Nós não precisamos de mais discursos, precisamos de justiça”.7 Após ser libertada Nadia se tornou uma ativista, rendendo a ela vários prêmios internacionais, além do Nobel da Paz. Em 2016 foi nomeada embaixadora da Boa Vontade da ONU para a Dignidade dos Sobreviventes do Tráfico Humano8. 3 A QUESTÃO DE GÊNERO E A VULNERABILIDADE A discussão sobre as mulheres, infelizmente, ainda se relaciona à figura do “sexo frágil” devido a uma construção histórica que se perpetuou durante muitos anos: a opressão da mulher pelo simples fato de ser mulher. Simone de Beauvoir exemplifica: [...] quando duas categorias humanas se acham em presença, cada uma delas quer impor a outra sua soberania; quando 7. 8. ONU BRASIL. ‘Não precisamos de mais discursos, precisamos de justiça’, diz jovem Yazidi vítima do ISIL. Disponível em <https://nacoesunidas.org/nao-precisamos-de-mais-discursos-precisamosde-justica-diz-jovem-yazidi-vitima-do-isil/>. Acesso em: 16 de novembro de 2019. BBC Brasil. Nadia Murad, a vencedora do Prêmio Nobel da Paz que superou histórico de vítima de ‘jihad sexual’. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-45757310>. Acesso em: 16 de novembro de 2019. ambas estão em estado de sustentar a reivindicação, criase entre elas, seja na hostilidade, seja na amizade, sempre na tensão, uma relação de reciprocidade. Se uma das duas privilegiada, ela domina a outra e tudo faz para mantê-la na opressão. Compreende-se, pois, que o homem tenha tido vontade de dominar a mulher. Mas que privilégio lhe permitiu satisfazer essa vontade?9 Devido a essa situação de inferioridade surgiu a oportunidade para que os homens impusessem as mulheres as mais diversas formas de opressão, incluindo o tráfico de pessoas. Sendo assim, mulheres foram vendidas, machucadas, traficadas, estupradas e mortas ao longo do tempo por uma questão estrutural que a sociedade acatou, afinal, o marido trabalhava enquanto a mulher era para procriar, cuidar dos filhos e da casa, além de sempre servi-lo - obviamente, privada de trabalhar e dependente do sustento que lhe era concedido. Inclusive, as que não eram casadas eram vistas com maus olhos, pois toda mulher deveria pensar em casar e ter uma família. Com o tempo as mulheres foram se posicionando, reivindicando seus direitos, se impondo e se livrando da figura masculina como seu dono, contudo, não quer dizer que chegou ao fim. A submissão da mulher perdura até os dias atuais, não importando classe, raça/etnia ou religião. No presente artigo, vamos focar no tráfico de mulheres com foco na exploração sexual e seus desdobramentos, como a escravidão sexual e casamento forçado em contexto de conflitos armados. O Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas, elaborado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), aponta que 71% das vítimas de tráfico humano são mulheres e meninas, que são recrutadas muito jovens.10 Assim sendo, o tráfico de pessoas, nesse caso, de mulheres, não é um problema isolado, ele (assim como o machismo) vem de questões culturais, econômicas, políticas e sociais. Logo, o tráfico de mulheres para fins sexuais deve ser entendido como mulheres sendo obrigadas a trabalhar, principalmente como prostitutas, contra a sua vontade - considerando que essas mulheres foram retiradas de suas casas, vendidas ou raptadas, e sem condições de voltar ao seu local de origem. Um desdobramento muito comum no caso de conflitos armados é que, por conta vulnerabilidade, coerção, segregação os grupos armados se utilizam desse meio para perpetuar a escravidão sexual. Diante disso, as vítimas são raptadas, ficando sob o domínio desses grupos armados, BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 2º Edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Junho de 2016. 10. UNODC, Global Report on Trafficking in Persons 2018. United Nations publication. New York: 2018. 9. sendo expostas a diversas formas de exploração sexual, incluindo a estupro coletivo e a escravidão sexual. Entende-se por exploração sexual comercial: [...] uma violência sexual que se realiza nas relações de produção e mercado (consumo, oferta e excedente) através da venda dos serviços sexuais de crianças e adolescentes pelas redes de comercialização do sexo, pelos pais ou similares, ou pela via de trabalho autônomo. Esta prática é determinada não apenas pela violência estrutural (pano de fundo) como pela violência social e interpessoal. É resultado, também, das transformações ocorridas nos sistemas de valores arbitrados nas relações sociais, especialmente o patriarcalismo, o racismo, e a apartação social, antítese da ideia de emancipação das liberdades econômicas/culturais e das sexualidades humanas.11 Com base na definição acima, é importante entendermos que exploração sexual e prostituição não são a mesma coisa. A prostituição, desde que voluntária, para mulheres maiores de idade, não é crime na maioria dos países. O que torna a exploração sexual diferente é o fato de que para a realização da atividade sexual é necessário um terceiro obrigando a mulher a realizá-lo. Dessa forma, a Winrock International Brasil, abordou: A prostituição de pessoas adultas se diferencia da exploração sexual ou prostituição forçada pelo fato de existirem, nestas últimas, características de servidão ou trabalho forçado, como privação ou cerceamento da liberdade, uso de ameaça ou força, servidão por dívida, retenção de documentos, entre outros. Já a submissão de crianças e adolescentes à prostituição é sempre considerada exploração sexual. Não é correto o uso do termo prostituição infantil.12 A outra modalidade analisada neste estudo será o tráfico de pessoas para o casamento forçado, não sendo uma das modalidades explicitamente listada como forma de exploração pelo Protocolo de Palermo, diante disso, o determinará o tráfico de pessoa nesse caso será a falta de consentimento da vítima e as diferentes formas de exploração praticada pelo parceiro. Essa modalidade de tráfico afeta principalmente mulheres e meninas, principalmente em conflitos armados ocorridos na África, no Oriente Médio e da Ásia. O cenário de guerra/conflitos armados é ideal para o tráfico, isso porque, além do medo alastrante, a prostituição já se inicia com os militares, 11. LEAL, Maria Lúcia; LEAL, Maria de Fátima P. (orgs). Pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial –PESTRAF: relatório nacional – Brasil. Brasília: CECRIA, 2002. 12. WINROCK INTERNATIONAL BRASIL. Manual de Capacitação para o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Salvador: ILADH, 2010. visto que a ideia era que as mulheres entretecem os homens enquanto eles lutavam na guerra. Sendo assim, mulheres de todos os arredores são levadas para diversificar a “mercadoria” e, consequentemente, aumentar a demanda e oferta. Mas, a situação consegue ser pior quando a guerra/conflito acaba e os militares retornam para suas casas, porque as mulheres estavam ali para lhes satisfazer. Dessa forma, ou são deixadas no local, sem emprego ou qualquer perspectiva de vida ou são novamente traficadas para atender a demanda de novos locais. Não podemos deixar de lado que, além como forma de satisfazer os militares, as mulheres são frequentemente violentadas em situações de conflito. Isso porque ou elas são uma demonstração de superioridade masculina, ou como forma de vingança, ou como humilhação para o inimigo e, ainda, ou como prêmio para os vitoriosos. Mais uma vez, a mulher sendo tratada como um objeto para satisfazer os homens e, vale lembrar, isso tudo em pleno século XXI. O casamento, como visto, representa outra alternativa para os traficantes. Assim, as meninas são retiradas de sua comunidade para se casar com um homem que sequer conhecem, que pode as escravizar sexualmente ou não, mas obrigam as vítimas a fazerem todos os tipos de trabalho domésticos. Esses capturadores se tornam donos dessas jovens (bem como as declaram como suas esposas) e, caso não aceitem a submissão imposta, são espancadas por não cuidarem da casa, das crianças, por tentarem evitar o estupro ou por tentarem fugir. Segundo a Organização Internacional do Trabalho13, a percepção da mulher como objeto sexual, e não como sujeito com direito à liberdade, favorece toda forma de violência sexual. A percepção do homem como o provedor emocional e financeiro estabelece relações de poder entre ambos os sexos e entre adultos e crianças. Nesse contexto, mulheres, tanto adultas como crianças e adolescentes, são estimuladas a desempenhar o papel social de atender aos desejos e demandas do homem ou de quem tiver alguma forma de poder hierárquico sobre elas. A justificativa do fator genético colocar a mulher em um patamar inferior ao homem, quem mais movimenta o tráfico de mulheres (na maioria das vezes, em busca do sexo pago), a torna mais exposta ao tráfico. Sendo assim, considerando o histórico de desigualdade de gênero, faz parecer que é necessário que a mulher sempre se submeta desde que o demandante seja um homem ou alguém com poder hierárquico superior ao dela. 13. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Brasília: OIT, 2006. Usualmente, o tráfico acontece de duas maneiras: através do uso de armas de fogo e/ou força ou por meio do convencimento da vítima ou de seus familiares. Grupos armados, por exemplo, têm usado o tráfico de pessoas como uma maneira de impor medo a população que está, direta ou indiretamente, exposta à um conflito armado. Além disso, traficantes que não estão no meio do conflito armado, tem aproveitado da situação de vulnerabilidade para sequestrar, ou seja, enquanto para uns é um momento amedrontador, para outros é uma oportunidade de cometer crime. Ademais, as famílias ou a própria vítima são ludibriados por uma promessa de vida melhor por alguém, ao contrário do que muitos pensam, que já estava inserido no seu ciclo de convivência, com boa aparência e que, de certa forma, lhes trazem alguma segurança. Por exemplo, uma pesquisa feita pelo UNODC mostra que refugiados do Oriente Médio são, frequentemente, enganados a dar suas filhas para homens de outros países em troca de dinheiro, promessas de uma vida melhor ou para o segurança das meninas. Se, por alguma hipótese, essas meninas conseguem voltar a sua comunidade após serem traficadas, a tendência é sofrer uma represália – muito maior que a dos homens – por ser considerado que as mesmas consentiram estar na situação em que estavam, principalmente, quando se fala de casamento. Uma vez na situação de traficada, para manter a vítima dominada, os traficantes se utilizam da coação física e moral, e, principalmente, da violência. As mais comuns são: confisco de passaporte, isolamento, ameaças das mais diversas, violência física e verbal, impedindo assim que as meninas e mulheres tenham outra opção senão se render. 4 O PERFIL SOCIOECONÔMICO DAS VÍTIMAS O tráfico de pessoas está totalmente ligado com a pobreza, desigualdades e as mulheres (que são as principais vítimas). Por isso, traçar um perfil é possível, mas delimitado, pois, não existe um perfil exato que determine quem será vítima do tráfico. Na maior parte dos casos, tanto nacional como internacional, o perfil da vítima é proveniente de uma vulnerabilidade social, ou seja, trata-se mulheres entre 13 a 22 anos, afrodescendentes, imigrantes ou refugiadas, em áreas periféricas, com baixa escolaridade e pouca informação, em um contexto de grande desigualdade social, desempregadas, baixa renda familiar, de classes pobres, com histórico de violência doméstica e sexual e sem nenhuma perspectiva de vida. Além disso, podemos perceber dois perfis: (i) a mulher que foi tirada a força do seu ambiente e não sabe o que está por vir e (ii) a mulher que procura algum emprego como doméstica, babá ou afins e vai em busca de uma qualidade de vida melhor. Ambos acabam se tornando a mesma coisa: tráfico de mulheres para fins de exploração sexual ou casamento. A partir do momento que sua liberdade é privada, independente da forma como ela chegou até lá, continua sendo uma mulher traficada. O que acaba fazendo o perfil II a aceitar ir para algo desconhecido é principalmente o fato econômico, enquanto o perfil I foi raptada e, sequer, teve poder de escolha. Nesses casos específicos de tráfico que estamos abordando no estudo, a tentativa é de “recrutar” mulheres jovens e bonitas, visto que as modalidades apresentadas são para satisfazer vontades masculinas. Assim sendo, procuram-se mulheres que estão nos padrões estéticos de belezas: jovens, magras, bonitas e altas, pois, as que são esteticamente padronizadas serão as mais caras, gerando consequentemente mais lucro. O tráfico de mulheres é uma forma explícita de violação dos direitos dessas mulheres citadas anteriormente. Afinal, estamos falando de mulheres muito jovens, sobretudo crianças, que estão na ilusão de se libertar da situação que se encontram, seja de pobreza, seja familiar seja de conflitos sociais, econômicos e/ou políticos ou seja de qualquer outra situação de vulnerabilidade. Muitas das vezes, essas jovens mulheres vão para outro país, ou até mesmo outro continente, aliciadas por uma proposta irrecusável de trabalho, que ao ter em mãos é totalmente diferente do que lhe foi ofertado. Nesse caso, é comum que seus passaportes sejam confiscados e é feita uma dívida impagável com seu “chefe” (que acaba se configurando mais como dono) e elas são obrigadas a trabalhar para suprir todos seus gastos. Contudo, para muitos, o fato de elas terem ido atrás desse emprego, significa que elas teriam consentido. Entendemos que isso ocorre por ignorarem todos os aspectos que as levaram a essa situação, voltando para os aspectos políticos, econômicos e sociais. Por fim, cabe dizer que as vítimas têm sua liberdade e dignidade ameaçada. Referente aos familiares, as vítimas do tráfico se encontram com histórico de violência intrafamiliar ou extrafamiliar e seu objetivo é sair dessa situação. Elas, assim como seus familiares, estão inseridas em um quadro socioeconômico precário o que acaba facilitando que elas sejam traficadas. Como dito anteriormente, muitas vezes são os próprios familiares que de má-fé, ou não, vendem suas filhas, sobrinhas ou netas em busca de uma qualidade de vida melhor. No caso conflitos armados, uma forma de operar é se beneficiando daqueles que tem que fugir. Os refugiados, muitas vezes, não têm uma opção melhor além de sair do seu país confiando em um suposto contrabandista, que pode levá-lo ao seu destino final prometido, mas também, usá-lo para o que bem entender. Quanto a isso o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime pontua que: (...) foi documentado, por exemplo, que grupos de tráfico que operam ao longo das rotas do leste da África atraíram jovens através de recrutadores com base na Somália. Uma vez que eles embarcam em sua jornada, no entanto, eles podem ser vendidos a traficantes ou detidos e extorquidos para resgate por grupos armados ao longo das rotas14. (tradução livre) As mulheres sempre tiveram papel secundário no caso dos conflitos armados: vítima direta ou indireta. Contudo, as mulheres guerreiras curdas da Unidade de Proteção da Mulher têm ganhado destaque na sua forma de atuação, pois, mostraram que é possível ter um papel ativo nos conflitos. Essas mulheres pertencem ao YPJ15, uma facção feminina formada para lutar pela independência do Curdistão e que faz parte do YPG16. As “mulheres curdas17”, como são chamadas, além de oferecer proteção militar aos cidadãos e lutar pela democracia, lutam contra o machismo presente no Oriente Médio, redefinindo o papel da mulher. 5 AS FORMAS DE TRÁFICO DE MULHERES RECORRENTES NO CONTEXTO DE CONFLITOS ARMADOS O UNOCD em um estudo realizado em 2016 conseguiu identificar mais vítimas de tráfico do que nos últimos 13 anos. O aumento do número de vítimas detectadas pela UNODC é resultado de uma cobertura 14. UNODC. Global Report on Trafficking in Persons 2018, Booklet 2: Trafficking in persons in the context of armed conflict. United Nations publication. New York: 2018. Texto original: It has been documented, for example, that trafficking groups operating along Eastern African routes attracted young men through recruiters based in Somalia. Once they embark on their journey, however, they may be sold to traffickers or detained and extorted for ransom by armed groups along the routes. 15. As Unidades de Proteção das Mulheres ou Unidades de Defesa das Mulheres, ou ainda Unidades de Proteção Feminina, (em curdo: Yekîneyên Parastina Jin, YPJ, pronunciado YuhPah-Juh) é uma organização militar formada apenas por mulheres curdas. 16. As Unidades de Proteção Popular (em curdo: Yekîneyên Parastina Gel), também conhecido como YPG, são uma organização armada curda da região do Curdistão sírio. O grupo foi fundado como braço armado do Partido de União Democrática sírio (PYD) e também tem ligações com o Conselho Nacional Curdo, e atualmente controla militarmente boa parte do nordeste da Síria. 17. VEJA. Quem são as mulheres curdas que combatem o Estado Islâmico. Disponível em <https://veja. abril.com.br/mundo/quem-sao-as-mulheres-curdas-que-combatem-o-estado-islamico/>. Acesso em 20 de outubro de 2019. geográfica mais ampla de coleta de dados do que a utilizada nos dois últimos Relatórios Globais. Atualmente, mais países estão dispostos a relatar seus dados nacionais sobre o tráfico de pessoas para o UNODC. Ao mesmo tempo, o número médio de vítimas detectadas por país também aumentou nos últimos anos. O aumento do número de vítimas detectadas pode indicar que está ocorrendo mais tráfico, ou que os países estão utilizando ferramentas mais eficientes para identificar as vítimas de tráfico. Embora a gravidade do crime dificulte mensurar suas vítimas, uma avaliação das respostas nacionais ao combate ao tráfico poderia ser uma luz sobre os fatores que motivam esses números crescentes, podendo esse aumento significativo estar ligado diretamente com os conflitos armados que ocorrem ao redor do globo. Diante disso, pode-se afirmar que as maiores formas de tráfico que ocorrem no contexto de conflitos armados são: tráfico para a fins de exploração sexual, escravidão sexual, casamento forçado, recrutamento de crianças para compor os grupos armados e diversas outras formas de tráfico para o trabalho forçado. Esse quadro se dá por conta do alto nível de violência e coerção que ocorre nesses ambientes, fazendo com que a situação seja propícia para o acontecimento desses crimes bárbaros. Diante da proposta deste artigo, será analisado as formas de tráfico de pessoa relacionadas as vítimas mulheres, portanto, será analisado o tráfico para fins de exploração sexual, que se divide em diversas formas de exploração, como a escravidão sexual e prostituição, e por fim o casamento forçado, visto que, as mulheres são as maiores vítimas dessas modalidades de tráfico de pessoas. É preciso, antes de adentrar as formas de tráfico, definir em linhas gerais o crime tráfico de pessoas, para isto, será utilizada a definição dada pelo Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, conhecido como Protocolo de Palermo, Convenção ratificada pelo Brasil em 2004, no qual dispõe em seu Artigo 3º (in verbis) que tráfico de pessoas é: O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos. (BRASIL, 2004)18. Diante da definição de tráfico, pode-se identificar três elementos constitutivos: a ação, os meios, e a finalidade de exploração. Esses elementos estão interligados determinando, assim, uma conduta delitiva com a finalidade de exploração. É importante destacar, que no Artigo 3º A do Protocolo de Palermo, o consentimento dado pela vítima ao tráfico é irrelevante visto que, na maior parte das vezes é obtido diante uma situação de vulnerabilidade, mediante rapto, fraude, engano e abuso de poder. Uma das situações que fazem caracterizar o crime de tráfico de pessoas no contexto de conflito armado é o alto nível de violência e coerção. É preciso apontar que os grupos armados utilizam do tráfico de pessoas como forma de dominação territorial, utilizando mulheres e meninas como “escravas sexuais” ou casamento forçado para recrutar novos homens. Em uma análise mundial sobre o tráfico de pessoas, a forma de tráfico para fins de exploração sexual é a que ocorre em maior escala. A exploração sexual é uma ampla categoria, entretanto, formas mais especificas desse tipo de exploração são identificadas no contexto de conflitos armados. O tráfico de pessoas para fins de exploração sexual também está associado a um aumento de demanda por serviços sexuais que emergem no contexto de conflitos armados. A alta demanda combinada com a falta de serviços básicos e oportunidades econômicas que afetam os civis acaba incentivando o desenvolvimento da rede de tráfico. O tráfico de pessoas para fins de exploração sexual também foi relatado como parte da violência sexual e baseada no gênero que caracteriza as áreas de conflito. Mulheres e meninas que vivem em ambientes onde o abuso e a violência sexual são abundantes correm mais risco de exploração sexual, inclusive através do tráfico.19 (tradução livre) A exploração sexual consiste na vitimização sexual de uma pessoa ligada a remuneração econômica ou a outro tipo de benefício e regalias, sendo que o corpo da pessoa explorada é utilizado para o proveito econômico do explorador e dos intermediários e para prazer ou satisfação do abusador. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT, 18. BRASIL. Decreto Nº 5.017, de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Presidência da República, Brasília, 12 de março de 2004. 19. UNODC. Global Report on Trafficking in Persons 2018, Booklet 2: Trafficking in persons in the context of armed conflict. United Nations publication. New York: 2018. Texto original: Trafficking in persons for sexual exploitation has also been reported as part of the generalized sexual and gender-based violence that characterizes conflict areas. Women and girls who live in environments where sexual abuse and violence are rife are at increased risk of sexual exploitation includ- ing through trafficking. 2012)20, as vítimas “estão expostas a diferentes tipos de violência, como pressões psicológicas, maus-tratos físicos, espancamentos, humilhações, difamações, calúnias, assédio sexual, estupro e assassinato.” Portanto, podemos afirmar que a exploração sexual: É uma das formas de exploração na qual as vítimas de tráfico de pessoas podem ser submetidas. Ela se caracteriza pelo uso da violência, física ou psíquica, para forçar alguém a realizar o ato sexual. Por isso, a exploração sexual assume características de trabalho forcado e deve sempre ser considerada uma grave violação aos direitos humanos. 21 A violência sexual relacionada a conflitos armados normalmente ocorre em residências, campos, locais de detenção e militares e campos de refugiados. Pode ocorre no auge do conflito ou durante o deslocamento da população, podendo se perpetuar após o fim do conflito. Muitas mulheres e meninas, que são as maiores vítimas de violência sexual, são sequestradas por grupos armados e mantidas em situação de exploração sexual. Quando analisamos a motivação desses crimes sexuais, podemos afirmar que: Em alguns conflitos foi usado estrategicamente para promover objetivos militares, como a remoção de uma população civil de uma área ou apoio oficiais. Em outros contextos, aparentemente ocorreu como “resultado” de uma falta de estrutura disciplinar organizacional ligada a uma quebra da lei e da ordem.22 (tradução livre) Entretanto, não se pode afirmar de que estas seriam as únicas motivações, visto que a questão é muito complexa e vários motivos podem ser identificados para seu uso em conflitos armados. A violência sexual pode ser utilizada para tortura e humilhar pessoas, e pode ainda ter como objetivo o controle sobre as vítimas ou garantir sua conformidade durante o período de detenção ou recrutamento forçado. É usada ainda para punir ou humilhar um grupo inimigo visando um amplo impacto. Esse crime, quando cometido contra as mulheres e meninas, tem como objetivo humilhar e destruir as estruturas familiares e da comunidade, 20. OIT. Cidadania, Direitos Humanos e Tráfico de Pessoas: Manual para Promotoras Legais Populares. Organização Internacional do Trabalho: Brasília, 2012. 21. Ibidem. 22. BASTICK, Megan; GRIMM, Karin; KUNZ, Rahel. Sexual Violence in Armed Conflict: Global Overview and Implications for the Security Sector. Geneva Centre for the Democratic Control of Armed Forces: Geneva, 2007. Texto original: In some conflicts it has been used strategically to advance military objectives, such as the clearing of a civilian population from an area and has occurred with varying degrees of official knowledge and support. In other contexts, it has seemingly occurred “as a result” of a lack of organizational structure and discipline or linked to a general breakdown of law and order. visto que as mulheres e meninas são “portadoras de honra” e os homens são envergonhados por não protegerem “suas” mulheres. A violência sexual visa instalar o terror em uma população e incitar a fuga de um determinado território. Em alguns lugares é utilizado como forma de ato ou tentativa de genocídio, cometido com a intenção de contribuir para a destruição de um grupo étnico ou social específico. A violência sexual, pode trazer graves implicações para a saúde, tanto física quanto psicológicas. As lesões diretas podem incluir dor crônica, infecção e infertilidade. O estupro brutal pode resultar em fístula ginecológica traumática, no qual a vagina da mulher, bexiga ou reto, ou ambos, são dilacerados. O estupro pode levar ao aborto, trazendo seus próprios riscos à saúde. Além disso, a violência sexual é frequentemente acompanhada de outras formas de violência, como ossos quebrados, mutilações ou amputações de membros, que muitas vezes pode ser fatal. Com relação as implicações psicológicas, que também são de estrema gravidade, os sobreviventes frequentemente possuem traumas e depressões, podendo levar ao suicídio. Algumas das vítimas sobreviventes podem ser infectadas com doenças sexualmente transmissíveis, incluindo o HIV. Os conflitos armados também podem ter consequências indiretas e a longo prazo em termos de violência sexual e de gênero, visto que essa violência pode se agravar e se perpetuar mesmo após o término de um conflito. É difícil determina se os níveis de violência sexual pós-conflito são mais altos durante ou antes do conflito ou se há um aumento na denúncia de tais crimes em comparação com os períodos pré-conflito e conflito. No entanto, vários países emergentes provindos de conflitos armados relatam uma incidência muito alta e/ ou crescente de violência criminal e familiar, incluindo formas sexuais e outras formas de violência contra as mulheres. A impunidade por atos de violência sexual cometidos durante o conflito pode perpetuar a tolerância de tais abusos contra mulheres e meninas, como um legado duradouro do conflito.23 (tradução livre) 23. BASTICK, Megan; GRIMM, Karin; KUNZ, Rahel. Sexual Violence in Armed Conflict: Global Overview and Implications for the Security Sector. Geneva Centre for the Democratic Control of Armed Forces: Geneva, 2007. Texto original: It is difficult to determine whether levels of post-conflict sexual violence are higher than during or before the conflict, or whether there is an increase in reporting of such crimes compared to the pre-conflict and conflict periods. However, a number of countries emerging from armed conflict report a very high and/or increasing incidence of criminal and family violence, including sexual and other forms of violence against women. Impunity for acts of sexual violence committed during the conflict might perpetuate a tolerance of such abuse against women and girls, as a long-lasting legacy of conflict. Quando analisamos uma comunidade pós-conflito, podemos observar um alto número de desemprego, pobreza e exclusão social, situações que enfraquecem o Estado de Direito, no qual acabam tornando as mulheres e meninas mais vulneráveis à exploração sexual e consequentemente aumentando as possibilidades de ocorrência do crime tráfico de pessoas. As questões de prostituição e exploração sexual foram temas centrais nas discussões em torno da definição de tráfico, visto que, as origens do Protocolo de Palermo remetem à preocupação com a crescente incidência de exploração sexual de mulheres e meninas no processo de migração envolvendo as organizações criminosas. Nesse contexto ainda, é preciso observar que tanto o tráfico para fins de exploração sexual quanto a prostituição se encontram intrinsecamente ligados, e foram configurados de forma ambígua nos diversos dispositivos legais. Por conta disso, a comunidade internacional não possui um entendimento pacífico quando falamos da criminalização da prostituição, visto que nem todos os casos de tráfico ocorrem para a prostituição: Alguns defendem que referências específicas à prostituição operariam para confirmar a oposição legal internacional a todas as modalidades de prostituição. Outros argumentaram que a inclusão de ‘prostituição’ como objetivo de tráfico sem qualificação adicional, tornaria a definição de tráfico excessivamente ampla e apresentaria dificuldades particulares para aqueles que optaram por responder de maneira diferente à prostituição.24 (tradução livre) Para sanar qualquer dúvida com relação “a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual” disposta no Protocolo, essa disposição veio acompanhada de uma nota interpretativa em que afirma que o Protocolo de Palermo aborda a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual apenas no contexto de tráfico de pessoas. Foi necessária essa compreensão, para que se diferenciase as duas modalidades, para que a prostituição não fosse criminalizada e para o combate ao crime de tráfico não se dar apenas repressivamente. Para a OIT25, a prostituição pode ser considerada exploração sexual ou prostituição forçada quando aparecerem as características de trabalho forçado, entre elas, cerceamento da liberdade, servidão por dívida, retenção de documentos, ameaças, etc. 24. UNODC. The Concept of ‘exploitation’ in the trafficking in persons protocol. United Nations publication. Vienna: 2015. Texto original: Others argued that inclusion of ‘prostitution’ as a purpose of trafficking without further qualification would make the definition of trafficking overly broad and present particular difficulties for those who had chosen to respond to prostitution differently. 25. OIT. Cidadania, Direitos Humanos e Tráfico de Pessoas: Manual para Promotoras Legais Populares. Organização Internacional do Trabalho: Brasília, 2012. Com relação ao tráfico de pessoas para a escravidão sexual, sua definição poderá se dar com a caracterização do relacionamento entre o traficante e a vítima. Para o direito internacional e segundo o artigo 1º da Convenção Relativa à Escravatura promulgada pelo Brasil em 1966, escravidão é definida como “o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade”26. Escravidão e práticas similares a de escravidão são formas de exploração listada pelo Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, que normalmente é perpetuado através da coerção, segregação e violência pelos grupos armados em diferentes tipos de conflitos ao redor do mundo. Vários estudos relacionados a violência ocorrida durante os conflitos armados demonstraram que as vítimas são raptadas e mantidas em cativeiros, sendo expostas a diferentes tipos de exploração e abuso sexual, que incluem o estupro e a escravidão sexual. Exemplo disso, é o caso de Hollie27, hoje com 36 anos, que aos 15 anos foi vendida para o tráfico sexual, após uma infância conturbada e abusiva. Em um momento de vulnerabilidade e encantada com a imagem elegante e glamorosa do homem que fora visitar, a menina foi aliciada para trabalhar no grupo de prostitutas dele. O ambiente de trabalho era algo assustador e extremamente violento, visto que o estupro era muito comum para controlar as vítimas da escravidão sexual. E, uma coisa que chama atenção no caso de Hollie é que seu “cafetão” a obrigou a fazer uma tatuagem escrito “love is loyalty” (amor é leal, em inglês) para marcá-la e assim, todos saberem que as mulheres que possuíam essa tatuagem eram dele e totalmente leais ao grupo. O caso de Hollie termina de maneira positiva: ela consegue escapar das mãos do seu dono que foi condenado a prisão. Contudo, a mesma alega que nunca se enxergou como vítima de tráfico, mas sim que tinha algum tipo de laço traumático com seus traficantes, porque apesar de a baterem muito, sentia que também cuidavam dela. Inclusive, diz que chegou a amá-lo por ter sido uma das poucas pessoas constantes em sua vida, ao mesmo tempo que ela acordava com ele o estuprando. Esse caso só nos mostra algo bem comum, a pessoa que se encontra numa relação abusiva, 26. BRASIL. Decreto nº 58.563, de 1 de junho de 1966. Convenção Relativa à Escravatura. Presidente da República, Brasília, 1 de junho de 1996. 27. BBB Brasil. Escravizadas e marcadas com tatuagens: a rede que tenta salvar vítimas do tráfico sexual nos EUA. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50549829. Acesso em: 30 nov. 2019. raramente consegue enxergar o seu dominador como alguém mau, mesmo que entenda a situação. Em diversos casos levados aos Tribunais Internacionais, as narrativas desse tipo de exploração mostram que esses crimes são tratados como atos e meios que poderiam qualificar esses crimes como tráfico de pessoas para a escravidão sexual. O Estatuto do Tribunal Penal Internacional considera os crimes de escravidão sexual e de prostituição forçada como crimes contra a humanidade e de guerra. Entre os refugiados em campos formais ou informais e no contexto urbano do Oriente Médio, algumas famílias, se sentindo sem opção, trocaram suas filhas mulheres por casamento para obter algum dinheiro para poder sustentar o resto da família. Algumas famílias viram essa opção como uma forma de proteger suas filhas da violência sexual baseada no gênero. Entretanto, muitos desses casamentos resultam em meninas e mulheres sendo coercitivamente forcadas a exploração sexual, o que, nesse caso, irá configurar o tráfico de pessoas. O casamento forçado, não sendo uma das modalidades explicitamente listada como forma de exploração pela Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, o que irá determinar o tráfico de pessoa nesse caso será a falta de consentimento da vítima e da exploração praticada pelo parceiro em diferentes formas. Esse tipo de tráfico afeta principalmente mulheres e meninas, principalmente em conflitos armados ocorridos na África, no Oriente Médio e da Ásia. Entretanto, no contexto de casamento forçado, segundo a UNODC28 configura-se com a união de duas pessoas em que uma das partes não consentiu totalmente a relação, de maneira que a pessoa que não consentiu acaba sendo explorada de diferentes maneiras, esse tipo de exploração irá determinar o tráfico de pessoas. Esse tipo de tráfico tem como principal vítima as meninas e mulheres, em que se aproveitam os papeis estereotipados de gênero, nos quais a esposa realiza tarefas domésticas enquanto sofre formas graves de violência, abuso e coerção, incluindo estupro e relações sexuais não consensuais. Em alguns contextos, essa prática acaba se tornando parte da estratégia dos grupos armados para dominação, como é o exemplo do Boko Haram, que sequestrou em torno de 200 jovens meninas da Comunidade Chibok no 28. UNODC. The Concept of Exploitation in the Trafficking in Persons Protocol. United Nations publication. Vienna: 2015. Estado de Borno com o propósito de casar esse meninas com os soldados da guerra, muitas vezes culminando em outras formas de exploração e abuso. A maior parte dessas jovens foram resgatadas e reencontraram suas famílias. Mulheres e meninas que são traficadas para o casamento forçado possuem uma perspectiva de vítima diferente de outras vítimas do tráfico para fins de exploração sexual ou escravidão, isso porque, meninas e mulheres que são forçadas a se casarem recebem um status melhor do que as outras vítimas, visto que essas esposas não são divididas com outros e acabam sendo tratadas como uma propriedade pelo soldado que as possui. O tráfico de pessoas em conexão com o casamento forçado também ocorre as margens dos conflitos armados, visto que a pobreza pode levar a algumas famílias darem ou trocarem suas filhas por casamento. Em alguns casos, assumir um compromisso conjugal precoce ou arranjado é visto como uma alternativa aceitável para frequentar a escola, especialmente porque a frequência e o transporte para a escola podem ser perigosos durante os períodos de conflitos armados. Os traficantes podem tirar proveito dessas vulnerabilidades e coagir as vítimas a situações de exploração. Pode-se entender, portanto, que o tráfico de pessoas está estreitamente unido à escravidão – isso porque, se dá pelo domínio, submissão, restrição de liberdade ou mesmo a exploração de trabalho alheio -, sendo uma violação de direitos humanos, e também uma violência de gênero, visto que está relacionado com a discriminação contra a mulher que propicia um sistema desigual, sendo uma das causas e consequências do tráfico de mulheres. Além disso, o tráfico de pessoas é um crime contra a humanidade, conforme dispõe o Artigo 7º do Estatuto de Roma da Corte Penal Internacional, que consiste em afastar uma pessoa de sua origem, com o fim de explorá-la em outro lugar de destino. CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando analisamos o tema, podemos observar que a maioria das pessoas vítimas de tráfico estiveram em uma situação, constante ou temporária, de violação de seus direitos humanos, sociais, culturais e econômicos, o que as tornam pessoas mais vulneráveis ao tráfico de pessoas. Essa série de violações de direitos podem contribuir para que as vítimas entrem em situações na qual essas violações se aprofundam e se agravam – esse ciclo pode ser denominado como abuso da situação de vulnerabilidade. Quando falamos de vítimas do tráfico de pessoas, esses ciclos de violações acabam fragilizando a própria percepção da vítima com relação a sua condição de exploração e violência, e quando analisamos especificamente o tráfico de pessoas no contexto de conflitos armados, podemos perceber que a vulnerabilidade, tanto de gênero quanto da violação de direitos que ocorre durante um conflito, acabam facilitando que este crime ocorra em grande escala, sendo que nesses casos, sua configuração fica mais complexa de ser identificada. Após uma análise bibliográfica sobre o assunto abordado e do Protocolo de Palermo, podemos observar a existência de três elementares que devem ser preenchidas para que se configure o crime de tráfico de pessoas, isto é, atos, meios e objetivos. Os atos são as ações praticadas pelo traficante – segundo o Protocolo de Palermo são atos de tráfico recrutar, transportar, transferir, alojar ou acolher. Com relação ao meio será a maneira em que o traficante convence a vítima, impelindo a acompanhá-lo, no qual poderá ser feito através de ameaça, força, coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade ou apropriação da conjuntura de vulnerabilidade. E por fim os objetivos deverão ser para fins de exploração da vítima, configurando-se através da exploração sexual, trabalho forçado, escravidão, servidão e até mesmo remoção de órgãos. Diante disso, podemos afirmar que inexistindo qualquer elementar mencionada acima, não há que se falar de tráfico de pessoas, por conta disso, é preciso cautela ao análise os crimes cometidos em contexto de conflitos armados, mas sempre com um olhar crítico e atento, pois atualmente, é um problema humanitário que a comunidade internacional está tendo que enfrentar. REFERÊNCIAS BBC Brasil. Nadia Murad, a vencedora do Prêmio Nobel da Paz que superou histórico de vítima de ‘jihad sexual’. Disponível em <https://www.bbc. com/portuguese/internacional-45757310>. Acesso em: 16 de novembro de 2019. BBB Brasil. Escravizadas e marcadas com tatuagens: a rede que tenta salvar vítimas do tráfico sexual nos EUA. Disponível em: <https://www.bbc. com/portuguese/internacional-50549829>. Acesso em: 30 de novembro de 2019. BASTICK, Megan; GRIMM, Karin; KUNZ, Rahel. Sexual Violence in Armed Conflict: Global Overview and Implications for the Security Sector. Geneva Centre for the Democratic Control of Armed Forces: Geneva, 2007. BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 2º Edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Junho de 2016. BRASIL. Decreto nº 849, de 25 de junho de 1993. Promulga os Protocolos I e II de 1977 adicionais às Convenções de Genebra de 1949, adotados em 10 de junho de 1977 pela Conferência Diplomática sobre a Reafirmação e o Desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário aplicável aos Conflitos Armados. Presidência da República, Brasília, 25 de junho de 1993. BRASIL. Decreto Nº 5.017, de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Presidência da República, Brasília, 12 de março de 2004. BRASIL. Decreto nº 58.563, de 1 de junho de 1966. Convenção Relativa à Escravatura. Presidente da República, Brasília, 1 de junho de 1996. LEAL, Maria Lúcia; LEAL, Maria de Fátima P. (orgs). Pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial –PESTRAF: relatório nacional – Brasil. Brasília: CECRIA, 2002. OIT. Cidadania, Direitos Humanos e Tráfico de Pessoas: Manual para Promotoras Legais Populares. Organização Internacional do Trabalho: Brasília, 2012. ONU BRASIL. ‘Não precisamos de mais discursos, precisamos de justiça’, diz jovem Yazidi vítima do ISIL. Disponível em <https://nacoesunidas. org/nao-precisamos-de-mais-discursos-precisamos-de-justica-diz-jovemyazidi-vitima-do-isil/>. Acesso em: 16 de novembro de 2019. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Brasília: OIT, 2006. UCDP/PRIO. The UCDP/PRIO Armed Conflict Dataset Codebook Version 4-2006. Disponível em <https://www.prio.org/Global/upload/ CSCW/Data/UCDP/2006/Codebook_v4-2006.pdf>. Acesso em: 02 de novembro de 2019. UNODC. Global Report on Trafficking in Persons 2018. United Nations publication. New York: 2018. UNODC. Global Report on Trafficking in Persons 2018, Booklet 2: Trafficking in persons in the context of armed conflict. United Nations publication. New York: 2018. UNODC. The Concept of ‘exploitation’ in the trafficking in persons protocol. United Nations publication. Vienna: 2015. VEJA. Quem são as mulheres curdas que combatem o Estado Islâmico. Disponível em <https://veja.abril.com.br/mundo/quem-sao-as-mulherescurdas-que-combatem-o-estado-islamico/>. Acesso em 20 de outubro de 2019. WINROCK INTERNATIONAL BRASIL. Manual de Capacitação para o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Salvador: ILADH, 2010. GIANPAOLO POGGIO SMANIO FELIPE CHIARELLO DE SOUZA PINTO ANA CLÁUDIA RUY CARDIA ATCHABAHIAN ANA CLAUDIA POMPEU TOREZAN ANDREUCCI MICHELLE ASATO JUNQUEIRA Organizers INVISIBLE PEOPLE PREVENTION AND COMBAT OF INTERNAL AND INTERNATIONAL HUMAN TRAFFICKING ORGANIZERS GIANPAOLO POGGIO SMANIO FELIPE CHIARELLO DE SOUZA PINTO ANA CLÁUDIA RUY CARDIA ATCHABAHIAN ANA CLAUDIA POMPEU TOREZAN ANDREUCCI MICHELLE ASATO JUNQUEIRA INVISIBLE PEOPLE PREVENTION AND COMBAT OF INTERNAL AND INTERNATIONAL HUMAN TRAFFICKING Londrina/PR 2020 © Direitos de Publicação Editora Thoth. Londrina/PR. www.editorathoth.com.br contato@editorathoth.com.br Diagramação e Capa: Editora Thoth Revisão: os autores. Editor chefe: Bruno Fuga Coordenador de Produção Editorial: Thiago Caversan Antunes Diretor de Operações de Conteúdo: Arthur Bezerra de Souza Junior Conselho Editorial Prof. Me. Anderson de Azevedo • Me. Aniele Pissinati • Prof. Dr. Antônio Pereira Gaio Júnior • Prof. Me. Arthur Bezerra de Souza Junior • Prof. Dr. Bianco Zalmora Garcia • Prof. Me. Bruno Augusto Sampaio Fuga • Prof. Dr. Carlos Alexandre Moraes • Prof. Dr. Celso Leopoldo Pagnan • Prof. Dr. Clodomiro José Bannwart Junior • Prof. Me. Daniel Colnago Rodrigues • Profª. Dr. Deise Marcelino da Silva Prof. Dr. Elve Miguel Cenci • Prof. Me. Erli Henrique Garcia • Prof. Dr. Fábio Fernandes Neves Benfatti • Prof. Dr. Fábio Ricardo R. Brasilino • Prof. Dr. Flávio Tartuce • Prof. Dr. Gonçalo De Mello Bandeira (Port.) • Prof. Me. Henrico Cesar Tamiozzo • Prof. Me. Ivan Martins Tristão Profª. Dra. Marcia Cristina Xavier de Souza • Prof. Dr. Osmar Vieira da Silva • Esp. Rafaela Ghacham Desiderato • Profª. Dr. Rita de Cássia R. Tarifa Espolador • Prof. Me. Smith Robert Barreni • Prof. Me. Thiago Caversan Antunes • Prof. Me. Thiago Moreira de Souza Sabião • Prof. Dr. Thiago Ribeiro de Carvalho • Prof. Me. Tiago Brene Oliveira • Prof. Dr. Zulmar Fachin Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Smanio, Gianpaolo Poggio. Pinto, Felipe Chiarello de Souza. Atchabahian, Ana Cláudia Ruy Cardia. Andreucci, Ana Claudia Pompeu Torezan. Junqueira, Michelle Asato. Invisible people: prevention and combat of internal and international human trafficking / Organizadores - Gianpaolo Poggio Smanio, Felipe Chiarello de Souza Pinto, Ana Cláudia Ruy Cardia Atchabahian, Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci, Michelle Asato Junqueira. – Londrina, PR: Thoth, 2020. 112 p. Inclui Bibliografia. ISBN 978-65-86300-09-3 1. Direito. 2. Direitos humanos. I. Título. CDD 323.09 Índices para catálogo sistemático 1. Direitos Humanos : 323.09 Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização. Todos os direitos desta edição reservardos pela Editora Thoth. A Editora Thoth não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta obra por seu autor. ABOUT THE ORGANIZERS ANA CLAUDIA POMPEU TOREZAN ANDREUCCI Post-Doctorate in Human Rights and Labor from the Advanced Studies Center of the National University of Córdoba, Argentina. Post-doctorate in New Narration from the School of Communications and Arts of the University of São Paulo (ECA/USP). Post-doctorate in Human Rights and Democracy from the Ius Gentium Institute, University of Coimbra, Portugal. PhD and Master’s from the PUC/SP. Graduated in Journalism from the Cásper Líbero Social Communication School and Law by UPM. Professor of the Graduate Course at the Law School of the UPM. Guest Professor of the Lato Sensu Postgraduate Course of the ECA/USP. Leader of the Emerging Research Group – CriaDirMack – Rights of the Child and of the Adolescent in the 21st Century from the UPM School of Law. Researcher at the “Invisible People: Prevention and Combat of Internal and International Human Trafficking”, financed by MackPesquisa. ANA CLÁUDIA RUY CARDIA ATCHABAHIAN PhD and Masters in Law I by the Pontical Catholic University of São Paulo. Professor at Mackenzie Presbyterian University. Member of the International Law Association – Brazilian Branch (ILA-Brazil) and Councilor of the Latin American Section of the Global Businesses and Human Rights Scholars Association. Coordinator of the Research Group “Invisible People: Prevention and Combat of Internal and International Human Trafficking”, financed by MackPesquisa. Attorney. FELIPE CHIARELLO DE SOUZA PINTO PhD of Law from the Pontical Catholic University of São Paulo (2006) and Masters of Law by the Pontical Catholic University of São Paulo (2000). He was a member of the Technical Scienti c Council, of the Higher Council and of the CAPES-MEC Law Area Committee, in which he chaired the Book Classication Commission (2010) and (2012 - 2013). Deputy Dean of Research and Postgraduate Studies at Mackenzie Presbyterian University and Professor of the Masters and Doctorate Program in Political and Economic Law, Member of the Review Committee of the Curriculum Matrix of Law Graduation in Brazil (CNE External Guest), Member of the Committee of the Area of Law in the SciELO/FAPESP Program, Member of the Editorial Board of the Magazine of the General Attorney’s Of ce of the Central Bank and Full Member of the São Paulo Academy of Legal Letters, Opinion Maker in the Law Area of CAPES- MEC, Invited Professor in the Stricto Sensu Postgraduate Program in Law - Master and Doctorate – Passo Fundo University and Deputy Secretary of the CONPEDI. Member of the Research Group “Invisible People: Prevention and Combat of Internal and International Human Trafficking”, financed by the MackPesquisa. GIANPAOLO POGGIO SMANIO PhD and Masters in Law from the Pontical Catholic University of São Paulo. He is currently an Executive Of cer of the Law School of the Mackenzie Presbyterian University and Professor of the Masters and Doctorate Program in Political and Economic Law. Leader of the CNPq Research Group “Public Policies as an Instrument for Effective Citizenship. Member of the Higher School of the Public Ministry. Attorney General of the State of São Paulo. Leader of the Research Group “Invisible People: Prevention and Combat of Internal and International Human Trafficking”, financed by MackPesquisa. MICHELLE ASATO JUNQUEIRA PhD and Master in Political and Economic Law from the Mackenzie Presbyterian University – UPM. Specialist in Constitutional Law with Extension in Higher Education Didactics. Vice-leader of the “Public Policies as an Instrument for Effective Citizenship” and “Rights of the Children and of the Adolescents in the 21st Century” Research Groups. Researcher of the CNPq research group named “State and Economy in Brazil”. Research Coordinator and TCC of the UPM Law School. Researcher at the Invisible People Research Group of the Law School of the Mackenzie Presbyterian University, financed by the MackPesquisa. PRESENTATION “And speaking of missing Where have you been? Where are your eyes going That we don’t see....” (Vinícius de Moraes and Tom Jobim) This text represents the beginning of something that puts an end to what has no end. The articles produced in this work are the result of a year of work, discussions, research, concerns and hope, much hope, of being able to contribute to the fight against human trafficking, a subject that, in many ways, showed us its complexity and transdisciplinarity. The “Invisible People: preventing and combating internal and international trafficking of human beings” project was born in continuation of the research project on “Invisible Women: international panorama and the Brazilian reality of the transnational trafficking of women”, both financed by Mackpesquisa and headquartered in the joint force research group CNPq “Public Policies as an Instrument for Effective Citizenship” and “State and Economy in Brazil”, from the Stricto Sensu Graduate Program in Political and Economic Law of the Mackenzie Presbyterian University. The first project, contingent upon the analysis of the trafficking of women, was the researchers’ first contact, in 2017, with the disturbing and worrisome theme of the crime of human trafficking, which can originate from several social, economic and cultural factors. However, there was an urgent need to expand studies, which is what happened in 2019. The second project was extended to human trafficking in the national and international scenarios. Already aware of the legislation on the matter, of the institutions for the combat of crime and support victims, of the doctrinal and jurisprudential construal of the subject, it was possible to establish an interdisciplinary dialogue between Criminal Law, International Law and International Human Rights Law and, in addition to the legal universe, promote a dialogue with other fields that influence the statistics related to international human trafficking and in the forms of modern slavery such as Sociology, Psychology, Social Service and Architecture, among others. Notwithstanding the efforts of public and private institutions to promote the debate on the issue, we started from the premise that national and international human trafficking still suffer from invisibility within Brazilian society, which hinders an efficient debate for its prevention and combat. We approached the emerging research group “CriADirMack: Rights of Children and Adolescents in the 21st Century”, to insert more carefully an analysis of the trafficking of children and adolescents, an opportunity in which issues such as illegal adoption, child labor, child soldiers and the disappearance of children gained prominence. Considering the current institutional arrangements in international society, which has a greater participation of new actors, such as transnational companies, and their involvement in the violations of Human Rights, the contributions of Human Rights and of Companies received based on the discussions of the “Mack DH&E” studies group resulted in a joint analysis of human trafficking and the submission of workers to conditions that are analogous to slavery (modern slavery) and the role of corporate exploitation of migrants. Furthermore, the analysis of the vulnerability of human beings, of gender, of migration, of the state action on promoting public policies and technology were also treated with a critical and reflective sense. They are undergraduates, postgraduates and teachers who have not got away from the challenge of giving time, voice, color and body to invisible people. Behind these academic reflections there are unfinished life stories and uncertainties, with which the law coexists and must seek to interfere, since, more than “should be”, we need to interact with the reality that “is”. If everything that is human belongs to the study of law, that humanity never escapes in the search for a better, more just and solidary world, founded on the dignity of human beings. Good reading, in the assurance that it remains as the beginning. São Paulo, summer of 2020. Gianpaolo Poggio Smanio Felipe Chiarello de Souza Pinto Ana Cláudia Ruy Cardia Atchabahian Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci Michelle Asato Junqueira SUMÁRIO ABOUT THE ORGANIZERS ......................................................................5 PRESENTATION ............................................................................................7 PART I MIGRATION AND HUMAN TRAFFICKING: CURRENT CHALLENGES...............................................................................................13 CHAPTER 1 Ana Cláudia Ruy Cardia Atchabahian Gianpaolo Poggio Smanio Felipe Chiarello de Souza Pinto THE COMPLACENCY OF THE BRAZILIAN STATE WITH MODERN SLAVERY: FROM THE DECISION IN THE “FAZENDA BRASIL VERDE VS BRAZIL” CASE TO THE DEVELOPMENTS OF THE NATIONAL LEGISLATION ON THE SUBJECT..............15 Introduction ...................................................................................................16 1 Modern slavery: international construal of human trafficking and Human Rights and Companies ...................................................................17 2 Modern slavery and Brazil on the defendants’ bench: the “Fazenda Brasil Verde vs Brazil” Case ........................................................................19 3 National legislative consequences of the “Fazenda Brasil Verde vs Brazil” Case: new rules for combating human trafficking and the exploitation of labor practiced by companies ..........................................23 Final Considerations ....................................................................................26 References ......................................................................................................27 PART II TECHNOLOGY AND HUMAN TRAFFICKING: USE OF DATA AND NETWORK FOR COMBATING THE CRIME .......................... 31 CHAPTER 2 Antonio Jonas Dias Filho NETWORK OF DATA AND INFORMATION ON HUMAN TRAFFICKING IN BRAZIL: THE CHALLENGE OF PRODUCTION, INTEGRATION AND INTER-INSTITUTIONAL SHARING......... 33 Introduction ................................................................................................... 33 1 Data and information: what we need to understand .......................... 34 2 Databases and sources of global information ...................................... 36 3 Databases and Sources of Information in Brazil ................................. 39 Final Considerations ..................................................................................... 45 References ...................................................................................................... 47 CHAPTER 3 Clarisse Laupman Marília Gagliardi THE TECHNOLOGY IN FAVOR OF HUMAN RIGHTS: COMBATING HUMAN TRAFFICKING BY MEANS OF CREATING SHARED DATABASES AND PROCESSING PERSONAL DATA IN THE INTERNATIONAL SCOPE ............................................................. 49 Introduction ................................................................................................... 49 1 The Relation between Human Trafficking, the Technology and the Protection of Data ....................................................................................... 51 1.1 The Forms for Treatment of Personal Data in the Cases of Human Trafficking .................................................................................................... 53 1.1.1 International Scope..........................................................................53 2 The Databases on Human Trafficking and the Measures Adopted for Protection of the Sources of Data ........................................................... 60 2.1.1 The International Organization for Migration............................60 2.1.2 United Nations Office on Drugs and Crime...............................63 2.1.3 IBM....................................................................................................64 Final Considerations ..................................................................................... 65 References ...................................................................................................... 67 PART III TRAFFICKING OF WOMEN AND CHILDREN: OBJECTIFICATION, CONSENT AND DISAPPEARANCE......................................................71 CHAPTER 4 Alline Pedra Jorge Birol Thamara Duarte Cunha Medeiros BETWEEN DISSENTS AND CONSENTS: HUMAN TRAFFICKING AND SITUATIONS OF VULNERABILITY ...........................................73 Introduction ...................................................................................................73 1 Human Trafficking in Brazil: Legal and Conceptual Milestone ........74 2 Consent of the victim in the crime of human trafficking and situations of vulnerability ..............................................................................................78 Final considerations ......................................................................................82 References ......................................................................................................83 CHAPTER 5 Ana Cláudia Pompeu Torezan Andreucci Michelle Asato Junqueira Valéria Jabur Maluf Mavuchian WHERE ARE YOU NOW? “MOTHERS OF THE SÉ” IN THE MEETINGS AND DISAGREEMENTS BY MISSING CHILDREN: NARRATIONS OF PROTAGONISM, CITIZENSHIP AND SOLIDARITY ..................................................................................................87 Introduction ...................................................................................................88 1 Disappearance as a narrative of unending mourning ..........................91 2 Mothers of the Sé: when the words pain and struggle become synonymous ...................................................................................................93 3 Mothers of the Sé: dialogues with normative sources of protection of the child and of the adolescent ..................................................................96 4 Mothers of the Sé: communication as an instrument for our everyday sensibility ........................................................................................................98 4.1 Images, impressions, posters, ball on the field: multiplying partnerships of social engagement ........................................................100 4.2 When fictional and real narratives meet: soap operas communicating social discussions ......................................................................................101 4.3 Cyberactivism......................................................................................106 Final considerations ....................................................................................108 References ....................................................................................................109 PART I MIGRATION AND HUMAN TRAFFICKING: CURRENT CHALLENGES CHAPTER 1 THE COMPLACENCY OF THE BRAZILIAN STATE WITH MODERN SLAVERY: FROM THE DECISION IN THE “FAZENDA BRASIL VERDE VS BRAZIL” CASE TO THE DEVELOPMENTS OF THE NATIONAL LEGISLATION ON THE SUBJECT1 ANA CLÁUDIA RUY CARDIA ATCHABAHIAN PhD and Masters in Law I by the Pontical Catholic University of São Paulo. Professor at Mackenzie Presbyterian University. Member of the International Law Association – Brazilian Branch (ILA-Brazil) and Councilor of the Latin American Section of the Global Businesses and Human Rights Scholars Association. Coordinator of the Research Group “Invisible People: Prevention and Combat of Internal and International Human Trafficking”, financed by MackPesquisa. Attorney. GIANPAOLO POGGIO SMANIO PhD and Masters in Law from the Pontical Catholic University of São Paulo. He is currently an Executive Of cer of the Law School of the Mackenzie Presbyterian University and Professor of the Masters and Doctorate Program in Political and Economic Law. Leader of the 1. Abstract presented in the IRC-WASET Congress, in October 2019, in travel financed by the Mackenzie Presbyterian Institute – MackPesquisa and published in the yearbooks of that event: CARDIA A., Ana Cláudia Ruy. SMANIO, Gianpaolo Poggio. The Complacency of the Brazilian State with Modern Slavery: From the Decision in the ‘Fazenda Brasil Verde vs Brazil’ Case to the National Legislation on the Matter. ICHTS 2019: XIII International Conference on Human Trafficking and Social Justice. Los Angeles: International Research Conference Proceedings, 2019, page 1134. CNPq Research Group “Public Policies as an Instrument for Effective Citizenship. Member of the Higher School of the Public Ministry. Attorney General of the State of São Paulo. Leader of the Research Group “Invisible People: Prevention and Combat of Internal and International Human Trafficking”, financed by MackPesquisa. FELIPE CHIARELLO DE SOUZA PINTO PhD of Law from the Pontical Catholic University of São Paulo (2006) and Masters of Law by the Pontical Catholic University of São Paulo (2000). He was a member of the Technical Scienti c Council, of the Higher Council and of the CAPES-MEC Law Area Committee, in which he chaired the Book Classication Commission (2010) and (2012 2013). Deputy Dean of Research and Postgraduate Studies at Mackenzie Presbyterian University and Professor of the Masters and Doctorate Program in Political and Economic Law, Member of the Review Committee of the Curriculum Matrix of Law Graduation in Brazil (CNE External Guest), Member of the Committee of the Area of Law in the SciELO/FAPESP Program, Member of the Editorial Board of the Magazine of the General Attorney’s Of ce of the Central Bank and Full Member of the São Paulo Academy of Legal Letters, Opinion Maker in the Law Area of CAPES- MEC, Invited Professor in the Stricto Sensu Postgraduate Program in Law - Master and Doctorate – Passo Fundo University and Deputy Secretary of the CONPEDI. Member of the Research Group “Invisible People: Prevention and Combat of Internal and International Human Trafficking”, financed by the MackPesquisa. INTRODUCTION In October 2016, the Brazilian State was convicted by the InterAmerican Court of Human Rights in the “Fazenda Brasil Verde vs Brazil” Case for having been negligent in the treatment given to the victims of human trafficking, as well as the conditions analogous to slavery on a farm in the State of Pará, configuring the so-called modern slavery. However, a few days before the publication of the mentioned international decision, Law No. 13.344 was published in Brazil, specifically aiming at establishing new measures to prevent and suppress domestic and international human trafficking, as well as to ensure greater assistance for the victims of the mentioned crime. What appeared to be a protective moment for victims of abuse committed by corporations, however, did not materialize in 2018: in the Decree that established the National Guidelines on Businesses and Human Rights (Decree No. 9.571/2018), there was no mention of the possibility of holding companies accountable for human trafficking, but only for the submission of workers to conditions analogous to slavery, the latter being valid only in the case of companies that voluntarily adhered to such rule. Considering that Brazil presents alarming data related to modern slavery, having rescued, in 2019 alone, more than nine hundred workers2, it becomes essential to study the matter in the light of both scenarios. In this sense, this article aims to show – by means of qualitative research based on documentary analysis of primary and secondary sources, with an inductive construal method deriving mainly from secondary sources, such as national and international legal literature on Human Trafficking, International Law on Human Rights and Human Rights and Companies – that the normative initiatives of the Brazilian State since 2016, if theoretically praiseworthy, represented only a part of the process of compliance with the decision of the Inter-American Court of Human Rights, given that the reforms and policies implemented are not consistent with the international standards assumed by Brazil. This work shall be divided into three parts. In the first chapter, the initial concepts of human trafficking and of modern slavery shall be brought into International Law and the International Law on Human Rights. In the second chapter, an analysis of the construal of the Inter-American Court of Human Rights in the “Fazenda Brasil Verde vs Brazil” Case in relation to both matters. In the third chapter, a critical reading of the rules established by the Brazilian State relative to human trafficking is the Human Rights and Companies theme, in the attempt to analyze whether or not there was congruence between the regulations developed on human trafficking and Human Rights and Companies in relation to the decision of the InterAmerican Court of Human Rights and the other international instruments that are applicable to the matter under analysis. 1 MODERN SLAVERY: INTERNATIONAL CONSTRUAL OF HUMAN TRAFFICKING AND HUMAN RIGHTS AND COMPANIES The definition of modern slavery by the International Labour Organization (ILO) presupposes the occurrence of traditional practices of 2. MINISTRY OF ECONOMICS. Portal of Labor Inspection. Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil. Available at: <https://sit.trabalho.gov.br/radar/>. Accessed on: Jan 30th, 2020. forced labour, such as “vestiges of slavery or slave-like practices (...), and various forms of debt bondage, as well as new forms of forced labour (...), such as human trafficking”3. The term, thus, seeks to represent the living and working conditions that are contrary to human dignity. From such definition, therefore, arises the reasoning that human trafficking, such as determined in the Additional Protocol to the United Nations Convention against International Organized Crime (Palermo Protocol)4, must be constituted as the precondition for the commitment of other crimes, be they of a labor, sexual nature, among others5. It is possible, therefore, to realize that, of the possible facets that modern slavery can present today, human trafficking and its consequent reduction to a condition analogous to slavery are an indelible sign6. From the international norm aimed at combating the mentioned crime, the Palermo Protocol mentioned above stands out, as well as – in terms of forced labor and of reduction of the individual to a condition analogous to slavery –, but not only, the Convention No. 297 and its Protocol of 20148, both of the ILO. Further in the plan of the Human Rights and Companies, special attention must be given to the Guiding 3. 4. 5. 6. 7. 8. In the original: “(...) traditional practices of forced labour, such as vestiges of slavery or slavelike practices, and various forms of debt bondage, as well as new forms of forced labour that have emerged in recent decades, such as human trafficking.” INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. What is forced labour, modern slavery and human trafficking. Available at: <https://www.ilo.org/global/topics/forced-labour/definition/lang--en/index.htm>. Accessed on: Jan 30th, 2020. BRAZIL. Decree No. 5.017, of March 12th, 2004. Available at: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm>. Accessed on: Jan 30th, 2020. CARDIA A., Ana Cláudia Ruy. PINTO, Felipe Chiarello de Souza. O tráfico internacional de pessoas sob as lentes da jurisprudência recente da Corte Interamericana de Direitos Humanos: lições para o Brasil. MENEZES, Wagner (Org.). Direito Internacional em expansão: Volume 10. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017, pages 272-292. In this sense, see also NOGUEIRA, Christiane. NOVAES, Marina, BIGNAMI, Renato and PLASSAT, Xavier. Tráfico de pessoas e trabalho escravo: além da interposição de conceitos. In NOGUEIRA, Christiane. NOVAES, Marina. BIGNAMI, Renato (Org.) Tráfico de Pessoas: Reflexões para a compreensão do trabalho escravo contemporâneo. São Paulo: 2014, pages 220-221. In the opposite sense as to the connection between human trafficking in Brazil and the term “modern slavery”, in a criticism based on class, gender and race references, see BENITEZ, Carla. SEFERIAN, Gustavo. Tráfico de Pessoas e a Lei No. 13.344/2016: leituras jurídico-críticas desde as referências de classe, gênero e raça. Tribunal Magazine of the Federal Regional Court of the 3rd Region. Special Edition. Jul 2019. São Paulo: Federal Regional Court of the 3rd Region, page 155. INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. Convention No. 29 on Forced or Mandatory Labour. Available at: <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_norm/---normes/ documents/normativeinstrument/wcms_c029_pt.htm>. Accessed on: January 30th, 2020. The mentioned convention was internalized by Brazil in Decree No. 41.721, of Jun 25th, 1957. INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. Protocol of 2014 to the Forced Labour Convention, 1930. Available at: <https://www.ilo.org>. Accessed on: January 30th, 2020. Principles relative to Companies in Human Rights9 of the United Nations (UN), the Guidelines of the OCDE for Multinational Companies10, as well as the recent UN initiative of establishing a treaty on the matter11. In the international human rights adjudicatory plan, the role of the Inter-American Court of Human Rights in combating modern slavery is noteworthy12. Coincidentally, the first contentious case decided by that Court in direct relation to the subject under analysis had Brazil as the defendant, resulting in the conviction of the country and placing it in the spotlight of international society due to the failure to comply with the assumptions established in the American Convention on Human Rights. 2 MODERN SLAVERY AND BRAZIL ON THE DEFENDANTS’ BENCH: THE “FAZENDA BRASIL VERDE VS BRAZIL” CASE The “Fazenda Brasil Verde vs Brazil” Case13 was subject-matter of analysis by the Inter-American Court of Human Rights between 2015 and 2016. Related specifically to the occurrence of human rights violations at Fazenda Brasil Verde, located in the municipality of Sapucaia, in the South of the State of Pará, the decision of the mentioned case was cast on October 20th, 2016, consolidating the understanding of that Court that human trafficking and the forms of exploitation that are analogous to slavery are modalities of what is now called “modern slavery”. The violations, which occurred and were documented from the end of the 1980s until the first years of the 21st century, were analyzed 9. 10. 11. 12. 13. UNITED NATIONS ORGANIZATION. Guiding Principles on Businesses and Human Rights: implementing the United Nations “protect, respect and remedy” framework. 2011. Available at: <https://www.ohchr.org/documents/publications/guidingprinciplesbusinesshr_en.pdf Accessed on: January 30th, 2020. ORGANIZATION FOR THE CORPORATE AND ECONOMIC DEVELOPMENT (OCDE). OECD Guidelines for Multinational Enterprises. OECD Publishing, 2011. In this sense, see CARDIA, Ana Cláudia Ruy. GIANNATTASIO, Arthur Roberto Capella. O Estado de Direito Internacional na condição pós-moderna: a força normativa dos princípios de Ruggie sob a perspectiva de uma Radicalização Institucional. BENACCHIO, Marcelo (Coord.). VAILATTI, Diogo Basílio. DOMINIQUINI, Eliete Doretto (Org.). A sustentabilidade da relação entre empresas transnacionais e direitos humanos. Curitiba: Editora CRV, 2016, pages 127-146. DEVA, Surya. BILCHITZ, David (Ed.). Building a treaty on business and human rights: context and contours. United Kingdom: Cambridge University Press, 2017. CARDIA A., Ana Cláudia Ruy. Empresas e Direitos Humanos: contribuições dos sistemas adjudicatórios de proteção. PAMPLONA, Danielle Anne. FACHIN, Melina (Coord.). BOLZANI, Giulia Fontana (Org.). Direitos Humanos e Empresas. Curitiba: Íthala, 2019. INTER-AMERICAN COURT FOR HUMAN RIGHTS. Fazenda Brasil Verde vs. Brasil Case. Series C, No. 318. Decision on October 20th, 2016. Available at: <http://www.corteidh.or.cr/ docs/casos/articulos/seriec_318_esp.pdf>. Accessed on: January 30th, 2020. internally by the Brazilian State, but did not receive the proper attention by the administrative and judicial authorities in their judgements, which is also the reason for the admission of that case by the Court. In summary, the demand is related to the practice of internal human trafficking and slavery of workers hired to work in the cutting of the juquira plant14 at the Fazenda Brasil Verde, which at the time of the facts was property of João Luiz Quagliato Neto. The workers were enticed by gatos15 – that enticed them with the assurance of good salaries and decent living conditions, with housing and food – and, often, left their family members with the expectation of assurance of better conditions in their homeland. When they arrived at the place of work – which was located away from the main urban centers, embedded in the Amazon Forest –, however, they were faced with inhuman and degrading conditions of living and work, with workdays of more than twelve hours and little time off, retention of their work and identity documents and death threats in the event of departure or escape from the Farm, in addition to the disappearance of workers that questioned their condition. Furthermore, the workers found themselves to be in debt, right from the first moment of their journey: initially with the recruiters, which asked them to pay for their travel to the workplace, in addition to expenses with food and eventual lodging and, following this, with their employers, who deducted amounts for the utensils used for their work and even lodging and the food that was served to them, whereby they were left with no kind of remuneration at the end of the period of work16. Notwithstanding the practice of trafficking, there was also configuration of labor in conditions that are analogous to slavery and the practice of servitude due to debt. Despite the complaints made by workers that managed to escape from that context, as well as the inspections carried out at different periods by representatives of the Federal Police and of the Labor Prosecutor’s Office, which culminated in judicial lawsuits and administrative procedures17, internally there was no effective punishment for the perpetrators of such violations, which is why the civil society entities submitted this claim to the Inter-American Commission on Human Rights, which subsequently led to the analysis by the Court that belongs to the same system. 14. Native plant of the region. 15. Nomenclature usually given to employees hired to conduct the enticement of workers in this type of exploitation. 16. Details on the degrading conditions to which the workers of Fazenda Brasil Verde were subjected are found in Paragraphs 163 to 173 of the decision under comment. 17. For a detailed chronology of the judicial and administrative measures that were implemented internally, see Paragraphs 128 to 188 of the decision now under analysis. The decision, correctly concluded in relation to the crime of subjection of workers submitted to working conditions that are analogous to slavery18, brings relevant considerations on the crime of human trafficking, especially in relation to the construal given by that body for Article 6.1 of the American Convention on Human Rights. In the decision under review, an extensive and evolutionary construal of that instrument was made19, likewise in relation to the other international sources of a similar nature20, so as to understand the determination of the prohibition of trafficking, explicitly related only to the crime of trafficking of women and slaves in the American Convention, to any and all categories of persons that are in a subsequent condition of vulnerability, confirming the theory now presented that human trafficking is the main assumption for the occurrence of other forms of exploiting the individual. The evolutionary construal of the device considered not only the dialogue between the sources and the international bodies21, such as the Vienna Convention on the Law of Treaties, the Palermo Protocol, the Council of Europe Convention on the combat against human trafficking, the understanding of the Working Group on the Contemporary Forms of Slavery, but also the dialogue among the International Courts, by analyzing the precedent of the European Court of Human Rights in the “Rantsev vs. Cyprus and Russia”22 Case, which brought considerations on human trafficking and the appropriation of the workers by the employers, again corroborating the argument of the “reification” of individuals and its 18. In this regard, it is valid to observe the matter carried out by the non-governmental organization Repórter Brasil: REPÓRTER BRASIL. Eu fui escravo. Available at: <https://reporterbrasil.org. br/brasilverde/reportagem.html>. Accessed on Jan 30th, 2020. 19. Paragraphs 281 to 290 of the judgement of the Inter-American Court of Human Rights. 20. On the possibility of the American Convention being construed in accordance with other international instruments, see Paragraphs 78 and 79 of the judgement of the Inter-American Court of Human Rights. 21. In this regard, the following text defined by Paulo Borba Casella is mentioned: “An international system cannot be built with the simple superposition, more than the sum of internal systems, placed side by side. It is necessary to have a set of principles, standards and institutions also in the international order”. The analysis of international commandments in harmony with the construction of the construal by the Inter-American Court of Human Rights in the present case shows the search for the necessary harmony and dialogue also at the international level. CASELLA, Paulo Borba. Fundamentos do Direito Internacional Pós-Moderno. São Paulo: Quartier Latin, 2008, page 712. 22. Paragraphs 284 to 289 of the decision. Further, in this regard, the position of Flávia Piovesan is valid: “It is through dialogue and jurisprudential loans that each one of the regional systems develops the refinement of arguments, construals and principles aimed at affirming human dignity.” PIOVESAN, Flávia. Diálogo entre Cortes: a interamericanização do sistema europeu e a europeicização do sistema interamericano. In PIOVESAN, Flávia. SALDANHA, Jânia Maria Lopes (Coord.). Diálogos jurisdicionais e direitos humanos. Brasília, DF: Gazeta Jurídica newspaper, 2016, pages 175-196. possibility of appropriation by other persons, then mentioned and defended in the items prior to this work. The prohibition of the mentioned criminal modality was also paralleled to a commandment of jus cogens23, a norm that cannot be waived by the States, claiming also its nature of non-limitability in view of the regulation of International Law24. The transcendence of the literal meaning of Article 6.1 of the American Convention to the crime of human trafficking, bringing a more general construal to that provision, was correctly defined by the Inter-American Court of Human Rights, thus following the evolution of international society in relation to the forms of combat of crimes that establish contemporary slavery. Last but not least, the mentioned document expressly established for the second time in the history of its jurisprudence the UN Guiding Principles on Businesses and Human Rights. In addition, one of the criteria considered by that court to ensure support for the arguments of its sentence was related to the condition of socioeconomic vulnerability of individuals submitted to such exploratory modality, being also the first time that a case was decided based on a historical structural discrimination of a country25. The previous misery to which the workers were subjected was also a condition for their consent based on the false promises made by the recruiters. Once again, one stresses the verification of a reality that not only permeates the Brazilian society – with its social inequalities, often the fruit of its own slavery past –, but also other jurisdictions submitted to that Body and that have practices that are similar in contemporary times. This sentence, therefore, when presenting a new construal of Article 6.1 of the American Convention on Human Rights, according to the most recent sources of International Law, enabled the opening of an important precedent in the combat against human trafficking and the lowering of workers to conditions that are analogous to slavery, which is why its effects must be analyzed in relation to the Brazilian State, both from a normative and a practical point of view, establishing the first purpose of this work. 23. In relation to jus cogens norms, see TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. International law for humankind: towards a new jus gentium. The Hague Academy of International Law. The Netherlands: Martinus Nijhoff Publishers, 2010. 24. Paragraphs 249 to 258 of the decision of the Inter-American Court for Human Rights. 25. Paragraph 81 to 100 of the decision of the Inter-American Court for Human Rights. 3 NATIONAL LEGISLATIVE CONSEQUENCES OF THE “FAZENDA BRASIL VERDE VS BRAZIL” CASE: NEW RULES FOR COMBATING HUMAN TRAFFICKING AND THE EXPLOITATION OF LABOR PRACTICED BY COMPANIES The decision of the Inter-American Court of Human Rights was passed on October 20th, 2016. Curiously, on the 6th of that same month, Law No. 13.344/201626 was passed, which revoked Articles 231 and 231A of the Criminal Code, and as from then a more comprehensive rule relative to the crime of human trafficking became effective, i.e., Article 149-A. In addition to the Criminal Code, specific provisions for children were also established in the Statute of Children and Adolescents and, pursuant to the provisions of the Second National Plan to Combat Human Trafficking27, measures of assistance to victims of that criminal modality were established28. Thus, one perceives that at least in relation to the crime of human trafficking, the legislative change in comment was commendable, especially for the essential purpose of bringing Brazilian norms closer to the international rule existing and internalized since 2004, to wit, the Palermo Protocol. The establishment of Article 149-A and the displacement of the criminal type for crimes against personal freedom also aimed at the elimination of the gender stigmas, which, as seen, went in parallel with what was decided by the Inter-American Court of Human Rights in its dynamic and evolutionary construal of Article 6.1 of the American Convention on Human Rights. However, this rule was also subject to criticism, both in relation to the established penalty and to the causes of increase of penalty, less than those of crimes against property (corroborating the arguments of objectification of human beings in the crimes of human trafficking and the reduction to 26. BRAZIL. Law No. 13.344, of October 6th, 2016. Available at: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13344.htm>. Accessed on: Jan 30th, 2020. 27. Target “2.D.6” of the Second National Plan to Combat Human Trafficking. MINISTRY OF JUSTICE AND PUBLIC SAFETY. National Justice Office. Second National plan to combat human trafficking. National Justice Office. Brasília: Ministry of Justice, 2013. Available at: <https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/politica-brasileira/anexos_iiplano-nacional/ii-plano-nacional.pdf>. Accessed on: Jan 30th, 2020. In this same sense, see SILVA, Ronaldo Alves Marinho da. MATTOS, Fernanda Carolina Alves de. Tráfico de Pessoas: Uma análise da Lei No. 13.344/2016 à Luz dos Direitos Humanos. Direitos Humanos e Democracia Magazine. Year 7. No. 14. Jul./Dec. 2019. Editora Unijuí, pages 187-200. 28. Despite Law No. 13.344/2016 having been published temporarily at a moment prior to the publication of the decision of the Inter-American Court of Human Rights, its edition was largely due to the fear of the Brazilian State of possible conviction in the case under analysis. Thus, for purposes of this work, the edition of Law No. 13.344/2016 must also be understood as being a consequence of the international decision of a binding nature. a condition analogous to slavery29), and in relation to the social readings relative to the subject, condemning the so-called maximum criminal State and in the manner expressly determined in that Law of assistance for victims30. In the wake of the protection of human rights by companies, particularly after the visit of the UN Working Group on Business and Human Rights to Brazil in 2015 and the publication of an extensive report of that Group in 201631, Brazil sought to implement on a national scope a policy focused on the subject. The process, which initially had the participation of national bodies and civil society entities, ended up resulting in the issuance of a presidential decree, the text of which – until its publication was unknown to the public and private entities then participating in the debates32, – reproduced the UN Guiding Principles on Businesses and Human Rights. Thus, the genesis of Decree No. 9.571, of November 21st, 2018, which established the so-called National Guidelines on Businesses and Human Rights, was presented33. Although the Decree in question reflects the principles of the international soft law rule that originated it, there was no interest of the Brazilian State in tightening up the forecasts of blaming the companies in the event of potential violations of the human rights. On the contrary: the mentioned rule, which is of a voluntary adherence by the interested companies (Article 1, Paragraph Two), did not bring any mechanism for repair of damages caused to victims of violations of human rights and to 29. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Translation by Mauro Gama, Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, page 34. 30. BENITEZ, Carla. SEFERIAN, Gustavo. Tráfico de Pessoas e a Lei No. 13.344/2016: leituras jurídico-críticas desde as referências de classe, gênero e raça. Tribunal Magazine of the Federal Regional Court of the 3rd Region. Special Edition. July 2019. São Paulo: Tribunal Magazine of the Federal Regional Court of the 3rd Region, page. 156. 31. UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS COUNCIL. A/HRC/32/45/Add.1. Available at: <https://undocs.org/A/HRC/32/45/Add.1>. Accessed on: Jan 30th, 2020. One must stress at this point the fact that Brazil’s greatest involvement with the issue occurred mainly after the tragedy that took place in Mariana, in the State of Minas Gerais, after the rupture of the Fundão ore tailings dam, owned by the company named Samarco. The event under comment ended up inserting Brazil again in the list of States that violate human rights by corporations. CONECTAS DIREITOS HUMANOS. Direitos Humanos e Empresas no Brasil: Report of the UN Work Group. São Paulo: Conectas Direitos Humanos, 2017. 32. Relative to the works prior to the edition of the Decree, see HOMA – Centro de Direitos Humanos e Empresas. Reflexões sobre o Decreto 9571/2018 que estabelece Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos. Homa Research Book. Vol. 1. N.7. 2018. Available at: <http://homacdhe. com/wp-content/uploads/2019/01/Análise-do-Decreto-9571-2018.pdf>. Accessed on: Jan 30th, 2020, pages 6-7. 33. BRAZIL. Decree No. 9.571, of November 21st, 2018. Available at: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9571.htm>. Accessed on: Jan 30th, 2020. the environment practiced by corporations that operate on the national ground. In relation to the crime of human trafficking, understood throughout this article as being one of the potential assumptions for violations of the workers’ dignity, Decree No. 9.571/2018 made no explicit mention to the need for the companies to prevent such criminal practice, thus no longer dialoguing directly with Law No. 13.344/2016. In this way, the new rule not only ceased to understand the intrinsic link between the crimes and violations of human rights that are subjectmatter of this article, but it also failed to pay attention to the centrality of the suffering of victims of human trafficking and that are submitted to conditions that are analogous to slavery, with the same situation occurring with Law No. 13.344/2016. In other words, notwithstanding the fact of both of the domestic rules having been established based on the observance of international normative documents (Palermo Protocol and UN Guiding Principles on Businesses and Human Rights), as well as in the light of a binding international decision of the Inter-American Court of Human Rights and the Report of the UN Working Group on Businesses and Human Rights, their relevant wordings did not consider the characteristics that are intrinsic to the Brazilian State and typical of the Latin American context34 which differentiate it from the generic and comprehensive wording of those rules. Thus, even though recent data coming from the Ministry of Economy show an increase of the tax auditing of the companies that rely on practices that are abusive for their workers’ dignity, such as human trafficking and reduction to conditions that are analogous to slavery35, it is not possible, based only on the normative analysis subsequent to the decision of the Inter-American Court of Human Rights in the “Fazenda Brasil Verde vs Brazil” Case, to affirm that the legal advancements shall be effective and efficient for the repression and punishment of companies involved in the crimes that make up so-called modern slavery. As explained in that sentence, it is not enough to simply abstain from practices aimed at the trafficking and exploitation of individuals. Positive 34. Mainly in relation to the theme Companies and Human Rights in Latin America and its particularities, see SANTORO, Michael A. Business and Human Rights in the Latin American political context: the enduring importance of Nation States. PAMPLONA, Danielle Anne. FACHIN, Melina (Coord.). BOLZANI, Giulia Fontana (Org.). Direitos Humanos e Empresas. Curitiba: Íthala, 2019, page 250. 35. AGÊNCIA BRASIL. Brasil teve mais de mil pessoas resgatadas do trabalho escravo em 2019. Available at: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-01/brasil-teve-maisde-mil-pessoas-resgatadas-do-trabalho-escravo-em>. Accessed on: Jan 30th, 2020. measures are necessary, such as the existence of an adequate legal framework of protection, in addition to the prevention policies and practices that enable the national agents to act efficiently in view of the denouncements36. In this way, the wording of the rules presented should have considered the intrinsic link between the corporate responsibility in the combat of modern slavery and their inseparable dialogue with the crime of human trafficking. FINAL CONSIDERATIONS The purpose of this work was of analyzing, in the domestic legislative sphere, the two main developments that occurred specially after the casting by the Inter-American Court of Human Rights in 2016 of the decision of condemning the Brazilian State in the “Fazenda Brasil Verde vs Brazil” Case. This mentioned decision, which was a pioneer in the Inter-American adjudicatory system for the protection of human rights, contributed to the positioning of Brazil in the spotlights of the international society as a State that practices the so-called modern slavery. Thus, once the main contours of modern slavery were defined, both from the international norms and from the decision under analysis, it was possible to conclude that human trafficking and the lowering of the workers to conditions analogous to slavery are supplementary practices, consisting of the crime of human trafficking on the assumption for committing the crimes that are related to it. Hence, therefore, to evaluate the subject in the light of the rules aimed at combating human trafficking and that are related to the theme of Companies and Human Rights. In this way, a critical analysis was made of Law No. 13.344/2016, which established a new criminal type for the crime of human trafficking, as well as Decree No. 9.571/2018, which defined the National Guidelines on Businesses and Human Rights. Notwithstanding the potential advances found in their relevant wordings, arising mainly from the treaties that served them as inspirations, the fact remains evident that both instruments were written in an isolated manner within their contexts, there being no dialogue capable of implying a true normative structure of repression of modern slavery in Brazil. Despite the institution of the rule not constituting a unique aspect in the combat of the crimes that characterize it, it is as from this systemic construal of such principles that there is consolidation of a true protective order for the victims of human trafficking, both from the judicial point of view and from the establishment of new institutional arrangements and 36. Paragraph 320 of the decision of the Inter-American Court of Human Rights. implementation of public policies. The protective culture of the workers submitted to modern slavery can only be established when the correct elimination of their circumstances has as its cornerstone the establishment of clear and cohesive norms that are sufficient to ensure their efficacy and applicable practices. REFERENCES AGÊNCIA BRASIL. Brasil teve mais de mil pessoas resgatadas do trabalho escravo em 2019. Available at: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitoshumanos/noticia/2020-01/brasil-teve-mais-de-mil-pessoas-resgatadas-dotrabalho-escravo-em>. Accessed on: Jan 30th, 2020. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução Mauro Gama, Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. BENACCHIO, Marcelo (Coord.). VAILATTI, Diogo Basílio. DOMINIQUINI, Eliete Doretto (Org.). A sustentabilidade da relação entre empresas transnacionais e direitos humanos. Curitiba: Editora CRV, 2016. BENITEZ, Carla. SEFERIAN, Gustavo. Tráfico de Pessoas e a Lei n° 13.344/2016: leituras jurídico-críticas desde as referências de classe, gênero e raça. Revista do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Edição Especial. Julho de 2019. São Paulo: Tribunal Regional Federal da 3 ª Região BRASIL. Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004. Available at: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017. htm>. Accessed on: Jan 30th, 2020. ______. Decreto n° 9.571, de 21 de novembro de 2018. Available at: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/ D9571.htm>. Accessed on: Jan 30th, 2020. ______. Lei nº 13.344, de 06 de outubro de 2016. Available at: < http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13344.htm>. Accessed on: Jan 30th, 2020. CARDIA, Ana Cláudia Ruy. GIANNATTASIO, Arthur Roberto Capella. O Estado de Direito Internacional na condição pós-moderna: a força normativa dos princípios de Ruggie sob a perspectiva de uma Radicalização Institucional. BENACCHIO, Marcelo (Coord.). VAILATTI, Diogo Basílio. DOMINIQUINI, Eliete Doretto (Org.). A sustentabilidade da relação entre empresas transnacionais e direitos humanos. Curitiba: Editora CRV, 2016, p. 127-146. CARDIA A., Ana Cláudia Ruy. Empresas e Direitos Humanos: contribuições dos sistemas adjudicatórios de proteção. PAMPLONA, Danielle Anne. FACHIN, Melina (Coord.). BOLZANI, Giulia Fontana (Org.). Direitos Humanos e Empresas. 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Independent Commercial Researcher. Researcher of the “Invisible People” Group of the Law School of the Mackenzie Presbyterian University of São Paulo. INTRODUCTION Despite the national and international pressure and the frequent criticism of the lack of updating, the dispersion and constant disintegration of data on the movement of people – whether smuggled or trafficked – for the purposes of slave labor, illegal adoption, sexual exploitation and other types of crimes with the same origin, the State bodies responsible for the production, storage, sharing and use of the statistical data and information have not yet addressed the need for integration thereof in order to optimize the work of public and non-governmental entities that combat this type of practice involving Brazilians and foreigners entering and leaving Brazil under these conditions. The international organism, which have channels for exchanging data and information with countries that send and receive people who are trafficked and/or smuggled, demand without much success but frequently that the Federal Police, the Government Attorney’s Office, the Public Defender’s Office, the Ministry of Justice and the Ministry of Foreign Affairs share in an integrated way, both the results of their control mechanisms, as well as the measures taken and their quantification based on the public policies put into practice in the combat and prevention of this type of crime. These requests ask that there be remittance of reports, processes, numbers of arrests, international identification of traffickers and trafficked people for the proper checking with their databases and information. The objective is of sending back to Brazil cross-information showing the outcome of the actions of the criminal groups abroad. This type of sharing is of paramount importance for the monitored visualization of the Trafficking Circuit1 and its constant alterations. The affirmations above summarize a little of our experience as researcher on this theme in the course of two decades, listening to specialists, activists, authorities and victims in Brazil and abroad. In this brief article, we intend to show some aspects of this scenario, emphasizing: the location and storage of data and information available for national and international consultation; their use by the public bodies responsible for the prevention and control of human trafficking crimes and; the growing need for network integration of these agencies in the internal and international sharing of data aiming at developing a new trustworthy map of Brazil as a country that sends, intermediates and receives trafficked human beings. 1 DATA AND UNDERSTAND INFORMATION: WHAT WE NEED TO When we talk about Data and Information, the question immediately arises of whether the two are not synonymous. No. The definitions and uses of each of them show that we must pay close attention when we decide to use them to group, synthesize and report any aspect of social reality. In this sense, we follow ROSLING (2019:214) when he argues to reinforce his thesis concerning the factfulness2. Numbers, but not only numbers. The world cannot be understood without numbers and cannot be understood 1. 2. An expression that we created in 1998, to name the combination of countries to which the trafficked people are taken or directed, as well as the Brazilian states that are issuers and recipients of such target audience. The expanded or restricted use of the research sample size depends on the dimension and the need for investigation. Factfulness is to recognize that a single perspective is limited and the best attitude to analyze a social phenomenon – mainly those of a social-global nature – would be to look at the problem from facts and multiple angles and factors. only with numbers. Enjoy numerical data for what they say about real lives. The data obtained in a survey is of a quantitative nature and must be expressed in a mathematical or statistical form. Isolated and without a clear objective to be used, it has little utility and ends up being lost, becoming gradually outdated. The information is the data that has meaning and understanding for a situation that we need to understand better. It can also appear in the form of testimonies and documents that provide the research with qualitative characteristics. These definitions are fundamental to explain one of our greatest difficulties when we seek information on Human Trafficking, given that international data and information are generally well grouped and have been updated with reasonable frequency by bilateral bodies and non-profit organizations around the world, unlike Brazil which is far from following this trend. There are few public channels for searching for data on human trafficking in Brazil – whether via the Internet, on printed material or by means of the Law of Access to Information (LAI)3 – that expose and provide updated material that is easy to understand. In this sense, we identify as a problem the way the cases are grouped and made available, without following the more frequent international standards, i.e.: data/information, and placed within a network that establishes channels of work and spaces for cooperation between the public authorities and the organized civil society with a view to combating this type of crime that, together with drug trafficking are currently the most profitable international illegal activities in the world, according to the United Nations4, with sexual exploitation in first place in the beginning of 2019 with 24,000 cases in 142 countries5. In relation to these data that are present in a number of global platforms, which aim to inform and serve as a basis for research on the matter, we can say that they are abundant, however, they mostly portray worldwide scenarios and when they are directed to local realities they collide with the lack of a duly prepared network to incorporate them and add more quality to the numbers that arrive from different parts of the world. 3. 4. 5. Law No. 12.527 of May 16th, 2012 which regulates the constitutional right of access to public information. https://exame.abril.com.br/mundo/onu-zonas-de-guerra-tem-aumento-do-trafico-humanoe-da-escravidao-sexual/. Accessed on Dec 20th, 2019. United Nations Office on Drugs and Crime – UNODC. To explain the difficulty of incorporating and updating this mass of data and information on the theme that circulate around the world and arrive in Brazil, as well as the dispersion of data and local information that should use the Big Data6 globally on the matter in its favor, we will initially show the types of data available in the Databases and sources of global information and following this we will draw a scenario on the production of the database and information of the public bodies in Brazil pointing out some signs of the difficulties of integration and international and local cooperation that so hamper the work of combating Human Trafficking. 2 DATABASES AND SOURCES OF GLOBAL INFORMATION We shall use as a reference the UN.GIFT7 which, in Brazil receives the support of the UNODC (United Nations Office on Drugs and Crime), which is the guardian of the Protocol to the United Nations Convention against Transnational Organized Crime to Prevent, Suppress and Punish Trafficking in Persons, Especially Women and Children. This work has the participation of a number of UN Agencies, but we will highlight two of them as examples, due to their relevance for the study on Human Trafficking: 1. International Labour Organization (ILO): in Brazil it operates in a number of fronts, participating and influencing Plans for Combat of Slave Labor; State Commissions for Eradication of Slave Labor (CONATRAE) and Registration of Employers in the “Dirty List” of Slave Labor. This entity has updated information and data on the problem and its actions require, from the UN member states, a combat agenda. However, the cooperation collides with the immense web of bodies and offices that mainly take care of the inspections, the application of sanctions and the creation of public policies that are scattered around States and Municipalities, with thousands of pieces of data and information that would be useful and integrated with the global pact. Likewise, this global information could be incorporated to face the local problem and apply good international practices, as the trends of the Trafficking and Slave Labor change at every instant in Brazil and in the world and it is necessary to follow them. 6. 7. In an expanded definition it would be the term that describes the large volume of data, whether structured or not, that circulates around the world, overloading the institutions (companies and State) and the often uncertain destination given to them. A global initiative to mobilize around the common targets to achieve the best way to Combat Human Trafficking. PERSONS THAT ARE TIED TO SLAVE LABOR – ILO The ILO estimates that by the end of the second decade of the 21st century, around 20.9 million people will be victims of forced labor worldwide. This represents about three in every 1,000 persons of the current world population. Of these, 90% will be exploited by individuals and legal entities of the private economy, while 10% will be forced to work for the State, by rebel military groups or in prisons, in conditions that violate the fundamental ILO standards. The sexual exploitation affects 22% of all of the victims, while labor exploitation affects 68%. Trabalho Forçado 20,9 MM Mulheres 11,4 MM Forced Labor 20.9 million Women 11.4 million Estado State 2,2 MM Setor Privado 18,7 MM Exploração Sexual 4,5 MM Exploração Laboral 14,2 MM Migrantes 9,1 MM 2.2 million Private Sector 18.7 million Sexual Exploitation 4.5 million Labor Exploitation 14.2 million Migrants 9.1 million 8 The ILO estimate shows how the phenomenon affects different groups of people: 55% of all of the victims are women and girls, while 45% are men and boys. Children make up about one quarter of all of the victims. The ILO also estimated how many persons are imprisoned with forced labor as a result of internal or cross-border migration: 29% of all of the victims were submitted to forced labor after crossing international borders, with the majority being forced to become prostitutes; 15% became victims of forced labor after the migration within their country, while the remaining 56% did not leave their place of origin or of residence. The average duration of time spent in forced labor varies, depending on the form and region. The ILO estimates that the victims are exploited 8. OIT Brasília.Quantas pessoas estão presas no trabalho forçado, c2018. Página: Trabalho Forçado. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-escravo/WCMS 393068/lang-pt/index.htm. Acesso em 19 de nov. de 2018. on average for almost 18 months in conditions of forced labor, before being rescued or escaping from their exploiters. SOURCE: https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-escravo/ WCMS_393068/lang--pt/index.htm 2. United Nations Fund for Childhood (UNICEF): the year 2021 according to the UN, should be considered as the “International Year for the Elimination of Child Labor” in the world. This difficult mission will be up to the ILO and UNICEF itself, which record alarming numbers in the exploitation of labor involving children around the world. There are about 152 million of them, with ages that vary between 5 and 17 years old. Of this total, at the end of 2017, around 73 million were involved in highly hazardous work. This data led the Assembly to approve a resolution that requires the Member States to take immediate and effective measures to eradicate forced labor, modern slavery and human trafficking. With regards to children and adolescents, the Assembly centralized the focus of the resolution in the following forms of exploitation: urban and rural child labor and the recruitment and use of child soldiers, given that these are the current forms that are most incident according to UNICEF data. The figures above and the information that reinforces them indicate the direction to be followed by each of the Member States. In this sense, we understand that Brazil could incorporate this agenda by adding its data to compare with the external scenario with a view to eradicating these practices in its territory. However, the same situation verified in relation to the ILO, as we saw previously, also appears when we are faced with the immense bureaucratic and hierarchical web of public agencies in the state, municipal and federal levels that deal with the problem. What is verified in practice is the existence of dispersed and often outdated data in addition to the delay between the identification of the objective to be achieved and the implementation of the planned actions. In late 2018, for example, UNICEF estimated that 2.5 million Brazilians between 5 and 17 years of age were involved in some type of child labor. In the same period, the IBGE (Brazilian Institute of Geography and Statistics) pointed out that about 250 thousand children were in the same conditions in Greater São Paulo, i.e., 10% of the total verified in Brazil. In the first semester of 2019, the PNAD (National Household Sample Survey) assessed that there are currently 3 million children and adolescents, making up a total of 6% of the population in this age group. This variation of 500 thousand children and adolescents, in less than one year, leads us once again to question the lack of unification and standardization of data to effectively direct the intended actions and also makes clear the lack of synchrony among the public agents that produce the data and information. The example in question also shows that the information extracted from the international data is clearly distant from that presented by the IBGE, confirming our previous affirmation about the divergences in the global/local relationship. 3 DATABASES AND SOURCES OF INFORMATION IN BRAZIL When we analyzed the data and information produced in Brazil, which serve as a parameter for internal actions of combating Human Trafficking in its various faces, we find that a good part of them are used to provide general responses and often without the due crossing with the international or local sources. An example of this are the figures for the 2018-2019 period that we surveyed at the Ministry of Women, of Family and of Human Rights (MMFDH). According to its ombudsman, who responded to our request in August 2019, the annual balance of the Dial 100 (Human Rights Dial), relative to Human Trafficking in Brazil shows that 159 denouncements occurred that revealed 170 concrete cases. Of this total, we also found that the internal trafficking for purposes of sexual exploitation, for example, represented, in the same period, 16.9% of the total registered. The consolidated figures for 2018 were extracted from a very small sample size, but show a very worrying reality, especially for women and adolescents, who are at the top of the list. According to this Ministry, the internal trafficking grew to such an extent that in some of the situations it exceeds its international dimension, as is the case of sexual exploitation, which is increasing in all of the States of the Federation, having as final and preferential destination the cities of São Paulo and Rio of Janeiro. TABLE 1 - HUMAN TRAFFICKING IN FIGURES – Modalities Sexual Exploitation – Internal Trafficking Sexual Exploitation – International Trafficking Internal Trafficking for purposes of Adoption International Trafficking for purposes of Adoption Internal Trafficking for labor exploitation purposes International Trafficking for labor exploitation purposes Internal Trafficking for removal of organs International Trafficking for removal of organs Human Trafficking for other purposes 16.9% 8.15 7.5% 2.5% 6.9% 5.0% 1.8% 0.63% 57.23% Source: Ministry of Women, of Family and of Human Rights – 2019 Despite the importance of such information, what draws attention in the Table 1 is the generality of about 2/3 of the cases, i.e., 57.23% of the notifications were presented by the Ministry. We understand that the clear expression of the data and its explanation are essential for us to have a broader scenario of the problem in Brazil and in what the country collaborates for the global increase of Human Trafficking and the random grouping makes it difficult to conduct a consistent analysis on the theme. TABLE 2 - HUMAN TRAFFICKING IN FIGURES – Victims Women Men Gender Not Known Age Range from 15 to 17 years old Age Range from 0 to 3 years old Age Range from 25 to 30 years old Age Range from 12 to 14 years old Age Range from 18 to 24 years old Newborn Age Range not revealed 53.1% 11.7% 35.14% 18.9% 7.2% 6.31% 4.5% 3.6% 1.8% 54.9% Source: Ministry of Women, of Family and of Human Rights – 2019 In Table 2 it is possible to note once again the concentration of data without the proper description. Firstly, when the Ministry leaves it blank who are the 35.14% trafficked per sex/gender, when it is known by the authorities themselves that in addition to men and women, there are records of transgender people as victims of this type of crime. Secondly, with the lack of precision in relation to 54.9% of the trafficked people without it being revealed clearly and publicly what are the exact age groups relative to this total. TABLE 3 - HUMAN TRAFFICKING IN FIGURES – Suspect/ victim relationship Family relationship – Grandparents 4.2% Family relationship – Mothers Work relationship – Employer 1.8% 1.2% Relationship not informed 86.7% Source: Ministry of Women, of Family and of Human Rights – 2019 Added to these data are the figures related to the places where the contacts, the enticement and the violations were made. In most of the cases they had occurred in the actual home of the victim, i.e., in 34.1% of the records. In 20.2% of the cases, the crime began to be committed at the suspect’s home. In 5% of the cases, the home of the victim was the source of the contact with the suspect and in 3% of the registered cases the workplace appears as a reference for the offense. As we understand that the dynamics of Trafficking is very fast and multifaceted, we note that this data has not been cross-linked with the aim of producing a profile that has been closer to the problem in Brazil in the last twelve months. In addition, the totalization, in several parts of the series presented, does not reach or exceed 100% of the total cases reported by MMFDH in its answer. It is also worth stressing that this difficulty does not only affect the mass of data and the current sources of information on internal or international Human Trafficking, having Brazil as a reference. One of the most interesting documents that reveal these difficulties was produced by the Ministry of Justice about three years ago. This is the National Report on Human Trafficking: data 2014 – 20169. Its content points out a number of 9. LETTER FROM THE MINISTRY OF JUSTICE. President of the Republic, Michel Temer. Minister of State for Justice and Public Security, Torquato Lorena Jardim. National Secretary for Justice, Astério Pereira dos Santos. Executive Officer of the Department of Justice Policies, Jorge da Silva. Coordinator to Combat Human Trafficking, Renata Braz Silva. Technical Team to Combat Human Trafficking, Alyne Antunes Diogenes Bessa, Johnes dos Santos Salustiano, Maria Celva Bispo dos Reis, Maria Fernanda Jorquera Briceno, Marina Soares Lima Borges and Natasha Barbosa Mercaldo de Oliveira. UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME (UNODC), Representative of the Office of the UNODC Liaison and Partnership Office in Brazil, Rafael Franzini. Coordinator of the Rule of Law Unit, Nívio Nascimento. Program Officer, Fernanda Patricia Fuentes Munoz. UNODC Consultant, Alline Pedra Jorge Birol (PhD). UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAM (UNDP) UNDP Interim inconsistencies concerning the unification, the sharing and the disorderly production of data and information on the theme. In that context, the actions of the Brazilian Government for confrontation of Human Trafficking relied on the partnership between the Ministries (Education, Health, Social Development and Combat of Hunger and Agrarian Development); Government Agencies (Special Office for Policies for Women, Special Office for Human Rights, National Office for Justice – technical cooperation with States of Goiás, Rio de Janeiro and São Paulo, National Office for Public Security, Federal Police and Federal Highway Police) and the International Cooperation (UN and its agencies – ILO, UNICEF, UNIFEM and UNODC). The first inconsistency was ascertained by the technicians that were reviewers of the procedures, when they analyzed the sources of data and information that should provide indicators as to the Trafficking routes, the inflows and outflows of people and the modus operandi in Brazil. The bases for analysis, used to obtain these results, should be police investigations and legal proceedings, where the description of the criminal phenomenon would, in theory, be shown in great detail. However, when the Integrated Methodology created by the public agencies confronted such references in the States of Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Bahia, Pernambuco, Ceará, Maranhão, Rio Grande do Norte, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul and Goiás, the technicians were faced with a major problem: “the local police forces, at most, record the number of procedures, inquiries and defendants.” (Report of a field technician). In this way, the determination of the origin, of the forms of enticement, of the trafficking itself and of exploitation in each State – with their specificities – were compromised, making it difficult to analyze the phenomenon, as well as the future actions of prevention and combat against local, national and international networks that operate in the country. Another difficulty for the production of information was identified in the actions of the criminal justice, which are united in the CNJ database. According to the technicians, it contains only the number of proceedings, pursuant to the criminal types provided in the Criminal Code and in special legislation. This created an additional problem for the interdisciplinary teams that investigate the problem because, the quantitative data or the criminal Resident Representative in Brazil, José Eguren. Assistant Resident Representative and Program Area Coordinator, Maristela Baioni. Head of Operations for Brazil, Caroline Brito Fernandes. Head of the Peace and Governance Unit, Moema Freire. statistics available in Brazil, do not reveal information about on the routes or modus operandi of the crime of human trafficking. And even if they had revealed, they would not be representative, given that the failures of the source of origin, as we saw above, produce a series of sub-notifications. The difficulties for the production, systematization and interinstitutional sharing of such data and information are even clearer when we read the conclusions of the 2014-2016 Report. In their opinions, the technicians ponder on the two principal elements of the crime of human trafficking: the action and the purpose of its operators. According to them, the two aspects can only be properly understood if they are incorporated with the quantitative data disclosed by the CNJ, the reports of the authorities, the testimonies of the victims and of the traffickers. In this sense, the qualified sharing based on the partnerships between public agents, state agencies, universities, research centers and NGOs must be based on certain standards that combine data and information in a continual flow. Based on the conclusions of the Ministry of Justice’s technical team, we highlight and will comment below certain errors in the methodology of collection and systematization that contribute to making more complex the study and the combat against Human Trafficking in a coordinated and inter-institutional way: 1. Manuality: the validity/quality of the quantitative data on human trafficking in Brazil is questionable. The major problem here is: Who manipulates the data and how such data is manipulated. What the technicians of the Ministry, who are responsible for the 2014-2016 Report, observed was that the manuality in the record of the data in certain institutions or the manuality when generating reports present a number of methodological errors. In addition, they also point out that there have been a number of changes in the form of collecting or recording data between the periods since the beginning of the collection, making it impossible to compare properly and within the basic standards for this type of work. 2. Absence of important variables: in spite of the construction of the Integrated TP Methodology suggesting a minimum of variables, there are no information systems that are capable of recording data for dealing with human trafficking adequately, or that contemplate the characteristics that constitute the crime. In particular, the criminal justice systems are the most precarious in terms of the level of detailing. 3. Differences in the concepts: thus as noted in the National Report covering the period from 2005 to 2011, each term, according to the technicians, may have a definition that is different in each information system, making a comparison impossible. For example: the concept of human trafficking adopted by the police is the one provided in the Criminal Code, which considers human trafficking exclusively when the purpose of the exploitation is sexual. Yet the concept adopted by the institutions that assist the victims is that of the National Policy, which encompasses a number of types of exploitation. The Ministry of Labor, in turn, accounts for the cases of reduction to a condition that is analogous to slavery, which are not always the cases of human trafficking. With the prediction of the criminal type of human trafficking and at least four modalities and exploitation, on the terms of the wording of Article 149-A, given by Law No. 13.433/2016, and in accordance with the Palermo Protocol and with the National Policy, it is possible that this obstacle will be overcome, if the systems are adapted to this concept; Difference in the periods of collection: the institutions are mismatched in time. There are institutions that have not completed the processing of the data collected in 2015, so they did not publish it, while other institutions generated normally reports even of the data collected in 2016; 4. Inadequate form of presentation of the data: many institutions still provide absolute figures in their reports, when the ideal for purposes of analysis or comparability would be percentages or rates, for example, per 1,000 thousand inhabitants. This is because it is not possible to compare the number of cases of human trafficking recorded in São Paulo with the number of cases recorded in Acre, as the population difference between the two States is considerable. Obviously, there are more cases in the first State. The statistical scale is an international convention and must be followed for the proper incorporation into the global bases. 5. Margin of error: when there is analysis of the verification systems to identify if there has been any progress due to the implementation of the Integrated Methodology, the data that they record, percentages or numbers “not informed”, occupy a significant portion of the collection, reaching up to 40% of the total. For the purposes of statistical calculations, these “not informed” should be excluded from the sample at the time of the calculations, but this would imply reduction of the sample size to little over half. In other words, the margin of error for any analysis of frequency or comparison is very large, and should not be done because it can induce to a serious error in the conclusions. 6. The absence of periodicity in the assessment of the information: the most serious and fatal problem for there to be a continuous flow in the monitoring of the dynamics of Human Trafficking, pointed out by the technicians that prepare the 2014-2016 Diagnosis, was the lack of periodicity in the analysis of data by the public institutions themselves. For them, the problem is that the analysis is motivated by some type of demand. If, for example, the National Coordination to Combat Human Trafficking requests data on human trafficking for the development of this National Report, a survey is made of what is available or a collection is provided for that moment. This implies absence of analysis of quality or criticism of the data. 7. Inconsistency of data: the inconsistency of the data was also noted by the analysts. For them, it is a direct consequence of the problems we discussed in the previous items. It was observed, for example, that the total number of cases differs, in one same year, depending on the variable studied. The comparisons, then, could also lead to a serious error of construal, to the development of distorted and contradictory assumptions in relation to the reality, which leads to incorrect and inadequate inferences. FINAL CONSIDERATIONS Our analysis and criticism, directed at the way that the data and information are produced, as well as the difficulties of inter-institutional sharing, are justified because we see in these flaws the loopholes that make the itineraries10, the routes11 and the Circuit of Human Trafficking12, more invisible for the majority of eyes that seek to combat this practice. 10. The Trafficking itinerary is another term that we created in our research on the topic and constitutes the most sensitive part of this field of research because they represent the direct contact with the stories, the conditions of origin, the forms of enticement, the reasons and the personal and legal consequences for the lives of people that involve or are involved in this sample. It is through their itineraries that men, women, children and adolescents connect with the routes and, consequently, with the circuits. This part of the field of research allows the ethnography of Invisible People enabling, right from the humanitarian assistance that they often lack, up to the more effective policies for prevention of traffic and exploitation of human beings in the dimensions that are currently observed. 11. The routes are precisely the corridors through which millions of people transit, taken in a clandestine way, legally, illegally or on their own account, around the world or within Brazilian territory, preferably for the purposes of slave labor, illegal adoption, arranged marriages, child marriage, prostitution, trade of organs or as mules for drug trafficking and smuggling of various goods. There are many routes that branch into sections that change quickly to make it more difficult to fight this type of crime, as well as to meet new demands for people that can compose the market for human beings. The routes make the connection with the Circuit constituting the pillars for sustaining the Trafficking. 12. See footnote of page 2. We understand that any information must be based on an adequate collection so that it can be used in a safe form, whether it be produced by a global source or by a Brazilian source. In this sense, we believe that there is a vacuum between the local networks and their relations with the international network because the checking of the collection and the grouping of the data, in Brazil, faces, on the one hand, the lack of quality control in the “manuality”, as observed by the Ministry of Justice technicians in the 2014-2016 Report and, on the other hand, the slowness with which they are systematized, updated and made available to generate a continual flow between the institutions. The routes, the agents, the strategies and the itineraries have an impressive fluidity, which hinders a more permanent mapping of Trafficking. In addition, the changes in the managements of the institutions that deal with the combat of this crime, motivated by the changes of government, also strongly impact the establishment of a safe and accessible network for exchange of information. This being so, the demarcation of a common field that would serve as a basis for the collection and systematization of data based on indicators, could solve a good part of the problems listed above. We defend the demarcation of an inter-institutional collaborative work space that we have called “Field of Research” for some time. FIELD OF RESEARCH CIRCUIT CIRCUIT CIRCUIT CIRCUIT CIRCUIT ROUTES CIRCUIT ROUTES RARIES ROUTES CIRCUIT CIRCUIT ROUTES ITINERARIES ROUTES CIRCUIT CIRCUIT CIRCUIT ROUTES CIRCUIT CIRCUIT CIRCUIT Source: Antonio Jonas Dias Filho Corresponds to the total sample size in which persons and groups in Brazil or in the world circulate Corresponds to the map and potential routes by which and to which are taken persons or groups Origin, characteristics and forms of contact of the persons that transit through the circuit and through the routes Source: Antonio Jonas Dias Filho In this “Field”, the indicators that would be sought could be established, for the purpose of composing a database. It is worth stressing that great efforts would not be necessary to choose the data and information, given that there are problems that are common to all of the countries that deal with Human Trafficking in a more intense form. The basis for defining the Research Field could be formed by using the following basic indicators with their respective data and information: Trafficking Modalities (see Table 1); Victims (see Table 2); Suspect/ Victim Relationship (see Table 3); Origin/Destinations; Suspects/Prisons/ Proceedings/Penalties. As the experts that study and deal with this problem know, as public agents or researchers, the dynamics of Trafficking is intense and unpredictable. In this sense, the variables by regions within one same country, as well as from one country to another, could be subject-matter of Special reports that would compare the flow of data based on the proposed indicators, with exceptional cases, in the search for new standards within the Circuit. We believe that the “Research Field” could be produced as a Shared Digital Platform in a continual flow, by the municipal, state, federal and international agencies, with the objective of reducing the abyss that separates the problem from the effective ways of combating it, as well as the institutions that operate inside and outside of the Brazilian territory. REFERENCES ARY, Thalita C. O tráfico de pessoas em três dimensões: evolução, globalização e rota Brasil-Europa. Brasília: Universidade de Brasília, 2009. BORGES FILHO, Francisco B. Crime organizado transnacional: tráfico de seres humanos. Available at: www.uj.com.br/publicações/doutrinas. Accessed on Jan 2nd, 2020. CASTILHO, Ela W. A Legislação Penal Brasileira Frente aos Protocolos Adicionais à Convenção de Palermo. Brasília: 2007. DE LARA, Caroline S. Conceito e Contexto do Tráfico Internacional de Mulheres: a situação no Brasil, In Revista Direitos Fundamentais e Democracia, v. 5, 2009. ESTRELA, Tatiana S. 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Accessed on: Jan 5th, 2019. CHAPTER 3 THE TECHNOLOGY IN FAVOR OF HUMAN RIGHTS: COMBATING HUMAN TRAFFICKING BY MEANS OF CREATING SHARED DATABASES AND PROCESSING PERSONAL DATA IN THE INTERNATIONAL SCOPE CLARISSE LAUPMAN PhD from the Pontifical Catholic University of São Paulo (PUCSP) and Professor of the same institution from which she graduated. Concentration in International Law and Human Rights. A member of the Research Group named “Invisible People: Prevention and Combat of Internal and International Human Trafficking”. MARÍLIA GAGLIARDI Attorney and Researcher of the CEPI FGV. A member of the Research Group named “Invisible People: Prevention and Combat of Internal and International Traffic of Human Beings”. INTRODUCTION One of the most perceivable characteristics of the crime of human trafficking is precisely the difficulty of detecting it. It is for this reason that one of the greatest challenges for development of answers for the combat of this crime currently resides in the lack of reliable data and in a quality that enables one to analyze the rise of human trafficking, the profile of the victims and the impact and proportion of such crime. Inasmuch as it is a crime that occurs around the globe, and often, in a trafficking network that has its process distributed among several states, there is growing international concern in finding ways to eradicate it. Precisely for this reason, there was inclusion of its combat in the purposes of the United Nations (UN) Sustainable Development Goals (SDGs) and of the Global Compact for Safe, Orderly and Regular Migration (GCM). For it to be possible to achieve any one of these objectives, however, it is necessary that, in addition to the agents that aim at combating human trafficking being prepared and sufficiently informed to identify it, that there be cooperation and exchange of information among such agents. In this context, this article seeks to analyze how technology can be used to assist in combating human trafficking. Furthermore, one seeks to understand how the use of the technology must be conducted in and what the limits are that must be respected for the protection of the holders of the collected data. In other words, the aim is to understand the concern with the treatment of sensitive data, as well as the concern with the consequences of disclosure of such data, so that there is no violation of the fundamental rights of the victims. In this sense, it is also considered how Brazil adapted its domestic legal system both as to the matter of human trafficking, with Decree No. 5.017/2004; with the advent of Law No. 13.344/2016, as well as the way in which it adopted a new posture regarding the protection of personal data (Law No. 13.709/2019). Thus, this text aims at verifying how the technology can be used as a way to combat human trafficking in the context of the shared databases of the victims of this crime. For this end, one must consider the protective aspects, both from the international point of view and from the legal aspects of the Brazilian legal system in relation to both the specific rules in relation to human trafficking, and as to the rules related to the protection of personal data and sensitive data of the victims of this crime. For the purposes desired in this article we use the inductive method, built from the bibliographic research on the protection on data and cases of victims of trafficking, considering (i) the literature about it, (ii) reading reports, guidelines and recommendations in general on the matter made available by national and international organizations and (iii) analysis of the data made available satisfactorily by different institutions. 1 THE RELATION BETWEEN HUMAN TRAFFICKING, THE TECHNOLOGY AND THE PROTECTION OF DATA Prior to entering specifically into the legal aspects of the treatment of data1, it is important to understand the characteristics of the crime of human trafficking and how it relates to the technological advances. It is also essential to understand how this connection is related to the protection of personal data. Firstly, it is clarified that the crime of human trafficking is a complex and dynamic crime, which occurs in various places, in a broad variety of contexts, with different purposes. The records and reports of human trafficking denounce that this practice has the purpose of (i) sexual exploitation; (ii) trafficking of organs, blood or other body parts; (iii) slave labor; (iv) forced military service; (v) forced marriage; (vi) practice of criminal activities; (vii) other objectives and the combinations thereof. In this sense, one stresses that many aspects of the crime of human trafficking have altered due to recent technological developments. This is because the ways in which the connections between exploiters, buyers and victims of human trafficking have altered. Another aspect that also deserves attention concerns the transformations of the crime of human trafficking as regards the greater circulation of information on how to get involved in this type of criminal activity2. The application of the technology in the structure of human trafficking can be both harmful and beneficial. This can also be perceived as an important tool for the prevention, investigation, judicialization (in the national or transnational scope); mapping, as well as the protection of the victims of such crime. Such measures are even achieved through the creation of sufficiently complete databases that enable improvement of the 1. 2. For all purposes of this Article, the term “treatment” shall have the same meaning as that attributed to it by Article 5, X of Law No. 13.709/2018, which defines treatment as “any operation carried out with personal data, such as those referring to the collection, production, reception, classification, use, access, reproduction, transmission, distribution, processing, filing, storage, elimination, evaluation or control of information, modification, communication, transfer, diffusion or extraction”. Available at:<http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm>. Accessed on: Nov 10th, 2019. LATONERO M., BERHANE G., HERNANDEZ A, MOHEBI T., MOVIUS,L. Human Trafficking Online: The Role of Social Networking Sites and Online Classifieds (Technology and human trafficking, 2011). Available at: <https://technologyandtrafficking.usc.edu/ report// Accessed on: Nov 24th, 2019. E ; M. Latonero, J. Musto, Z. Boyd, E. Boyle, A. Bissel, K.Gibson, and J. Kim, The rise of mobile and the diffusion of technology-facilitated trafficking (USC Annenberg Center on Communication Leadership and Policy, 2012. Available at: <https://technologyandtrafficking.usc.edu> Accessed on: Nov 24th, 2019. policies for identification of trafficking networks and for the prevention of this crime around the world. In this way, it is emphasized that the crime of trafficking has a pattern and, consequently, a flow of information that is typical of the practice of this crime. In this sense, the crime also becomes traceable and mappable. To identify the information that is necessary to trace such routes and make the necessary mapping, however, is not a simple task. This is because it is very difficult to identify complete and reliable sources on the matter. The absence of an accurate and consistent information base makes it more difficult to identify the routes and devise ways to effectively combat this crime. And the scarcity of sources in this sense is justifiable. The development of a database is entailed to the treatment of personal information of victims of trafficking and, therefore, of information of persons who have just experienced a traumatic situation and that may still be exposed to risks3. It is noteworthy that the data collected in cases of human trafficking inevitably involves personal details and, often, intimate data. Many agencies that deal with victims of trafficking collect personal data such as (i) the place of residence, (ii) name and address, (iii) family members, (iv) medical history, possibly including their HIV status. If this personal data is not protected and properly processed prior to being included in the database, the consequences can be serious. In this sense, it is clear that (i) the witnesses and victims can be identified, located and intimidated; (ii) the victims can be publicly exposed, or worse, their lives can be put in danger; and (iii) informants can be identified and become targets for harassment. In addition, the improper use of personal data does not affect only the individual, but also jeopardizes the efficacy of the entire effort and the anti-trafficking measures. If the personal information is not protected against improper use, the victims will become even more reluctant as to 3. On this aspect, the Collateral Damage: the impact of anti-trafficking measures on human rights around the world (GAATW, 2007: 2) study states that “Many government agencies undoubtedly assume that the purpose of enforcing the law and of defending human rights, are the same. However, in the case of human trafficking it is not always so. The existing evidence suggests that especially marginalized people, such as migrants, internally displaced persons, refugees or asylum seekers, have unfairly suffered the negative consequences of antitrafficking measures, which have been counterproductive for a group that should benefit”. GLOBAL ALLIANCE AGAINST TRAFFIC IN WOMEN/GATTW. Collateral Damage. The Impact of Anti-Trafficking Measures on Human Rights Around the World. Bangkok, 2007. Available at: <https://www.iom.int/jahia/webdav/shared/shared/mainsite/microsites/IDM/ workshops/ensuring_protection_070909/collateral_damage_gaatw_2007.pdf> Accessed on: Nov 24th, 2019. sharing their experiences, and the informants and witnesses will not feel safe to assist in the investigations. In this way, it is essential that there be policies and procedures to protect the security and privacy of personal information in the event of sharing data for the purpose of combating human trafficking. 1.1 THE FORMS FOR TREATMENT OF PERSONAL DATA IN THE CASES OF HUMAN TRAFFICKING Non-personal data or properly treated and non-anonymous data are usually sufficient for the purpose of development of anti-trafficking policies. In other words, if it becomes impossible to identify the holder of the data based in the analysis of the data, one sees that the necessary protection is being given to those involved in the trafficking network. One can also infer that the access to the sensitive personal data usually does not have to be available to policy makers for prevention of this crime so that, in theory, the protection would be duly ensured. However, it is certain that, in certain scenarios, the access and exchange of sensitive personal data can be requested for legitimate reasons and operational motifs and reasons. This is an existing prediction in all of the data treatment regulations. It is noteworthy, as of now, that this access to data and exchange of personal information must be conducted within a framework of policies and procedures that protect personal data against improper use thereof. The treatment of the data of these victims, therefore, must be done in a specific way, considering also that all of the necessary protective measures are being taken. In this sense, it is important to ponder about which measures are suggested for the treatment of data on victims of human trafficking at the international level, as well as the national provisions on the matter, so that it is possible to verify how the technology can be allied with combating human trafficking. Thus, this problem will be analyzed based on the international and national plans. 1.1.1 INTERNATIONAL SCOPE The use of technology for the purpose of identifying the crime of human trafficking gives rise to significant concerns about how it can be identified without compromising the safety and the fundamental rights of the victims and of other individuals that may be affected in a collateral form. At the international scope, it is important to highlight both the work of the World Health Organization (WHO), of the United Nations Children’s Fund (UNICEF), of the “United Nations Action for Cooperation against Trafficking in Persons” (UN-ACT), and of the Red Cross, as of the organizations that establish guidelines for the treatment of data of victims of trafficking. In this sense, it is understood that in 2003 the WHO published a combination of ten guidelines on how to interview women that are victims of human trafficking4. This was a major step to ensure the respect for the rights of victims of trafficking, as well as to designate the principles on the use of the collected data. This guide is in addition to the guidelines stipulated by UNICEF in 2006 on the Protection of Child Victims of Trafficking5, in relation to the indication of the procedure to be adopted for the treatment of data deriving from crimes of human trafficking. In this sense, it is interesting to stress that UNICEF guidelines establish that, among the data that must be protected, one should not only consider data such as name, address, date of birth and nationality, but also information about personal circumstances, such as activities, finances and health status, including issues like HIV or pregnancy. Aiming to supplement the existing guidelines, the UN-ACT launched in 2008 a series of guidelines with the objective of contemplating more assumptions of human trafficking, addressing also men, communities and persons that are in a vulnerable situation. It is worth mentioning that the UN-ACT is a regional project managed by the United Nations Development Program (UNDP), which operates with a wide range of partners, including the UN and affiliated agencies, such as ILO, UNICEF, UNODC, IOM and UN Women; and organizations of the civil society such as World Vision, Save the Children or ECPAT. The UN-ACT has a guide to Ethical Standards for Research and Programming on the subject of combating human trafficking6. 4. 5. 6. WHO (2003). WHO Ethical and Safety Recommendations for Interviewing Trafficked Women. Available at: <https://www.who.int/mip/2003/other_documents/en/Ethical_Safety-GWH.pdf>. Accessed on: Nov 10th, 2019. UNICEF (2006). Guidelines on the Protection of Child Victims of Trafficking. Available at: <https:// www.unicef.org/protection/Unicef_Victims_Guidelines_en.pdf>. Accessed on: Nov 10th, 2019. UNACT. Guide to Ethics and Human Rights in Counter-Trafficking. 2008. Available at: <http://unact.org/publication/guide-ethics-human-rights-counter-trafficking/> Accessed on: Nov 10th, 2019. In all of the listed cases, the principles used specifically as to the treatment of the information obtained by victims tend to be the same, which are the following: (i) that of not generating more damage/harm for the victims; (ii) of assuring the confidentiality; and (iii) of obtaining free and informed consent of the victims. The guidelines provided herein are broad, but demonstrate, as of now, that all of the data collected from the victims of trafficking must be treated aiming at secrecy and confidentiality with regards to whose the data is, including to ensure more security for them. Furthermore, as to the recommendations on the treatment of the personal data in cases of human trafficking, the UN’s provision on the subject stands out in the document entitled “Recommended principles and guidelines on human rights and human trafficking (E/2002/68/Add.1) (United Nations High Commissioner for Human Rights) Guideline 37.” In it, one of the principles that stands out concerns the one of which the data must be protected. In this sense, the data must be protected with clear policies and procedures that break even the interests of law enforcement with the need to ensure privacy, confidentiality and safety for the holders of the data. In this document, it is highlighted once again that non-anonymous data and non-personal data tend to be sufficient for the formulation of protection policies. However, in the scenarios where these are necessary, they must be subject to strict protection controls. Lastly, the Red Cross has a structured manual on how to handle the data of people during humanitarian crises. Even if the victim of human trafficking is not always in a scenario of humanitarian crisis, this is an important paradigm for considering those who have undergone serious violations of human rights. The manual is based on existing guidelines, procedures and work practices, established in humanitarian actions for the benefit of the most vulnerable victims of humanitarian emergencies. It seeks to assist the humanitarian organizations in meeting the standards of personal data protection, raising awareness and providing specific guidance on the construal of the principles of protection of data within the context of humanitarian actions, particularly when new technologies are applied. 7. UN. Recommended Principles and Guidelines on Human Rights and Human Trafficking. 2002 Available at: <https://undocs.org/E/2002/68/Add.1>. Accessed on: Nov 24th, 2019. The Organization defines personal data as any information related to an identified or identifiable natural person. In this same sense, the holder of the data is therefore an individual that cannot be identified, directly or indirectly, in particular by reference to personal data. The Organization also stresses that certain data protection laws include the additional category of Sensitive Data within the concept of personal data. For the purposes of the Manual, “Sensitive Data” are personal data, which, if disclosed, can result in discrimination or repression of an individual. Normally, data related to health, race or ethnicity, religious/ political/armed group affiliation, genetic information and biometric data are considered to be sensitive data. The Red Cross also stresses that all of the sensitive data require more protection. In this sense, it is highlighted that the humanitarian organizations work in different scenarios, always in situations and serious violations of human rights. As these situations are very tactful, the organizations began to consider that many particular elements of the violation situations are elements that can generate discrimination, thus expanding the scope of what can be considered as sensitive data. It is evident that every situation must be analyzed case-by-case. In certain situations, for example, the absence of the anonymity of the surname of an individual can put him/ her in a situation of major risk, a situation in which the name is considered to be sensitive data. In this sense, it is understood that the Organization considers that all of the data which can put victims into a situation of greater risk should be treated as sensitive data. By analogy, in this way, it can be said that all of the data in the study of human trafficking that can identify victims or place them in situations of greater vulnerability must be considered sensitive data and thus treated with the necessary precautions. One of the necessary precautions in the case of trafficking, extracted from all of the manuals and guides listed hereunder8, is precisely that of effectively causing to be anonymous the information obtained to prevent that the holders of data be subject to greater risk. National Scope – Legal Aspects of Human Trafficking and Protection of Data in Brazil. Although there is no specific provision as to the processing of data of victims of the crime of human trafficking in Brazil, there are specific 8. The sources observed are more consistent up to the moment of the research, there are more recent ones but that are not adequate. provisions on the treatment of data and treatment of sensitive data, as well as provisions on human trafficking in the Brazilian legal system. Moreover, it is clear that the Brazilian State has committed itself in the international scope with combating human trafficking so that it is also linked to the international provisions on the matter9. In this way, it is interesting to understand how the national and international legislations are linked to this subject. The Federal Constitution shows the dignity of human beings as a fundamental right10, which is directly related to the protection of the victims of human trafficking. Additionally, according to Article 5, X, of the Federal Constitution, the right to privacy must not be violated11. It is evident, therefore, that any measure adopted to combat human trafficking must comply with these provisions. There is also specific legislation relative to the crime of human trafficking, i.e., Law No. 13.344/2016. This amended the Brazilian Criminal Code, expanding the modalities of trafficking and its penalties. This is because, prior to the enactment of this Law, only trafficking for the purposes of sexual exploitation was expressed in the Criminal Code. Thus, in addition to the sexual exploitation, there is provision for the trafficking for removal of organs or tissues, for purposes of subjecting persons to conditions that are analogous to slavery or any type of servitude, and for illegal adoption (Criminal Code, Article 149-A). Among the guidelines stipulated by the law for combating human trafficking, for purposes of study as to the data collected from such victims, the principles of “respect for the dignity of human beings”; “full attention for the direct and indirect victims, irrespective of nationality and of collaboration in investigations or legal proceedings”12 are highlighted. Brazil ratified, among other treaties: Additional Protocol to the United Nations Convention against Transnational Organized Crime to Prevent, Suppress and Punish Trafficking in Persons, Especially Women and Children, which was adopted in New York on November 15th, 2000. The Protocol was approved by the National Congress by means of Legislative Decree No. 231/2003, and determined its execution by means of Decree No. 5.017/2004. Available at: <https://www.conjur.com.br/2016-out-17/cesar-dario-brasil-cumprindo-tratados-traficopessoas>. Accessed on: Nov 12th, 2019. 10. Article 1, III of the CF “Article 1 The Federative Republic of Brazil, consisting of the indissoluble union of the States and Municipalities and the Federal District, becomes a Democratic State of Law and has a grounds: (...) III – the dignity of human beings.” 11. Article 5 of the Federal Constitution, “X – inviolable are the intimacy, the private life, the honor and the image of people, with assurance of the right to indemnity for the material or moral damage resulting from their violation.” 12. The principles provided in Article 2 of Law No. 13.344 2016 “Article 2 The combat against human trafficking shall comply with the following principles: I – respect for the dignity of human beings; II – promotion and assurance of citizenship and of human rights; III – universality, indivisibility and interdependence; IV – non-discrimination based on gender, sexual orientation, ethnic or social background, origin, nationality, professional performance, 9. It is evident, therefore, that despite a judicial investigation, the victims must always be assisted so as to ensure their safety and their dignity. The mentioned Law also provides that combating human trafficking shall comply with the guidelines for “II – articulation with national and foreign governmental and non-governmental organizations; III – incentive for the participation of the society in instances of social control of trade, or professional entities in the discussion of the policies for human trafficking; VI – incentive for international cooperation; VII – incentive for conduction of studies and research and for their sharing; VIII – preservation of the secrecy of the administrative and judicial procedures, on the terms of the law”.13 In this way, one sees that Brazilian legislation itself acknowledges the need for sharing data and for cooperation in the national and international scope. However, this law also acknowledges the need for secrecy in the procedures adopted, always aiming to protect the victims. In the mentioned law, there is no specific provision as to the exchange of data and information at the international scope for the fight against this crime. It is interesting to highlight, therefore, Decree No. 5.017 of March 2004, which cast the Additional Protocol to the United Nations Convention against Transnational Organized Crime to Prevent, Suppress and Punish Trafficking in Persons, Especially Women and Children. The abovementioned Decree, in which one of the objectives is of promoting cooperation between the States to combat the crime of trafficking, stipulates that one of the forms for this cooperation is by means of exchanging information. As this could involve sensitive information, Article 10 of that document provides that “A State Party that receives information shall respect any request of the State Party that transmitted such information, in order to restrict its use.” This measure ensures that the State that has the data of the victims of trafficking shows the purpose for which such data will be used prior to sharing it. Thus, if this sharing occurs in order to map data, they cannot be used for another purpose and shall have to be discarded if necessary. This, however, also provides that: “In the cases where it is deemed appropriate and to the race, religion, age group, migratory status or other statuses; V – transversality of the dimensions of gender, sexual orientation, ethnic or social background, origin, race and age group in public policies; VI – full attention for the direct and indirect victims, irrespective of their nationality and of their collaboration in investigations or judicial proceedings; VII – full protection of children and of adolescents.” 13. Article 3 of Law No. 13.344, of 2016. extent permitted by their internal law, each State Party shall protect the privacy and identity of the victims of human trafficking, including, among others (or inter alia), the confidentiality of the judicial procedures relative to this trafficking.” Although the Decree provides for the exchange of data in the international scope, it is understood that this regulates the exchange of information between States, and not between States and members of the civil society, so that the relationship established in the latter case is not properly protected. In this way, in order to understand the limitations as to the treatment and sharing of data, even in cases of human trafficking, one sees as necessary the analysis of the General Law for the Protection of Personal Data (LGPD). Law No. 13.709/2018 also has, as one of its fundamental principles, respect for privacy and the human rights14. For purposes of this Law, personal data is all of the information related to an identified or identifiable natural person; while sensitive data are the personal data about the racial or ethnic origin, religious conviction, political opinion, union membership or organization of a religious, philosophical or political nature, data relating to health or sexual life, genetic or biometric data, when entailed to a natural person. It is evident, therefore, that the data collected regarding human trafficking are personal data and, often, sensitive data. In this sense, it is highlighted that the LGPD provides that the processing of sensitive data may occur irrespective of the consent of the holder, if this is indispensable for the “shared treatment of the data that are necessary for the conduction, by the public administration, of public policies provided in laws or regulations”15. Thus, the processing of information to compose international databases is authorized by Brazilian law, especially if it has the purpose of treatment of data for consolidation of a public policy for combating human trafficking. For this, it is necessary to always ensure the dignity of the holder of such data, having as necessary that the data be anonymous aiming at ensuring the due protection for the victims of this crime. 14. Article 2 of Law No. 13.709/2018, items I and VII. 15. Article 11 of Law No. 13.709/2018 “The processing of sensitive personal data can only occur in the following cases: (...) II – without providing consent of the holder, in the cases where it is indispensable for: (...) b) shared treatment of data that is necessary for the enforcement by the public administration of the public policies provided in laws or regulations. 2 THE DATABASES ON HUMAN TRAFFICKING AND THE MEASURES ADOPTED FOR PROTECTION OF THE SOURCES OF DATA As set forth above, with the growing technological advances, it is possible to notice not only the creation of broader databases, but also the possibility of mapping and crossing information from all over the world. These bases, however, in addition to being scarce, also have the duty of complying with the specific provisions on the protection of the personal data of victims of trafficking, so as to ensure for them the fundamental rights as to the security, privacy and dignity, which are fundamental rights provided both in the Brazilian Constitution and in different international agreements. The obligation of adopting measures for the protection of data in these contexts is provided both in international treaties and regulations as well as in Brazilian national legislation. Therefore, it is necessary to verify how the database mechanisms, which also use information made available by members of the Brazilian civil society, have adapted to the necessary measures for the proper treatment of personal data. The relevant databases for this study, which currently enable the analysis of information on human trafficking around the world, are composed both by UN agencies and by a number of international nongovernmental organizations (NGOs) and even by private companies. Among the sources, the following stand out: (i) the International Organization for Migration (IOM); (ii) the United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC) on human trafficking; (iii) the International Business Machines Corporation (IBM). Each one of the listed databases shows both positive and negative aspects as to the mapping of information on human trafficking. It is interesting, therefore, to verify how these sources deal with the issues of protection of personal data in cases of human trafficking, considering, on the one hand, the need for exchanging data for the creation of a reliable base, as well as the sensitivity of these same data. 2.1.1 THE INTERNATIONAL MIGRATION ORGANIZATION FOR The IOM stands out for having the largest database of victims of trafficking in the world. This is due to the IOM’s programs of assistance and research as to the migratory flows. In this sense, it is correct to infer that the processing of personal data is an essential part of the operations of the International Organization for Migration (IOM), since the collection of such data derives precisely from the provision of direct assistance for victims of human trafficking. Currently the organization’s database contains more than 90,000 individual cases, with approximately 5,000 new cases added each year. The data captured includes information on (i) the victims’ backgrounds, (ii) the locations and routes of trafficking, (iii) how the persons fit into the trafficking process, (iv) associated forms of exploit and abuse, (v) sectors of exploit, (vi) means by which victims are controlled, and (vii) certain information about the perpetrators. It can be said, therefore, that the IOM deals with highly sensitive data. It is for this reason that the organization was one of the first to develop its own internal policy on data protection, the “IOM Data Protection Principles” adopted in 200916. Subsequently, the “IOM Data Protection Manual” was developed in 201017. It is precisely in the data protection manual that a specific recommendation for data processing is found when the person is a victim of human trafficking. In this sense, the IOM establishes that if the recipient was a victim of human trafficking, additional considerations must be taken into account, including safeguards as to the protection of the confidentiality and the anonymity of such beneficiary. The principle that governs this provision is the principle of not causing harm to the victims, which includes protecting the beneficiary of the media where there is a risk that the interaction could compromise their personal interests, safety or rehabilitation. In addition, adequate time should be given to enable the IOM to consider requesting and, if appropriate, identifying a suitable individual that could be willing to participate in the coverage of the media18. In view of the sensitivity of the data processed by the organization, the IOM database was not always available for the public. The main reason was due to the concern of protecting the victims, as well as to provide the due protection of data and to ensure the confidentiality of the information. 16. https://www.iom.int/data-protection Accessed on: Nov 24th, 2019. 17. https://publications.iom.int/books/iom-data-protection-manual Accessed on: Nov 24th, 2019. 18. Information available in the IOM data protection manual, available in the site of the Organization <https://publications.iom.int/books/iom-data-protection-manual> Accessed on: Nov 24th, 2019. It was only in 2017 that primary, anonymized (“de-identified”) data, at an individual level, about victims of human trafficking were made available online. The information was made available by means of the Counter Trafficking Data Collaborative (CTDC)19 data portal. This is the first global hub20 of data on human trafficking, with data coming from contributions of organizations around the world. This hub enables analyses on human trafficking from the perspectives of (i) gender; (ii) age; (iii) purpose; (iv) trafficking routes. Currently, this global combination of data enables the research about more than 55,000 records of non-identified persons that were victims of human trafficking,21 in addition to providing general information based on an analysis of nonpersonal data in more than 90,000 cases. Even though this initiative exists, it must be mentioned that the data shared, so far, serve mostly for statistical purposes. This is because, although anonymized, the sharing of personal data between organizations would continue to make it possible to re-identify the victims, which could lead to serious consequences. The UN itself has provisions that establish that the data be strictly confidential and used exclusively for statistical purposes (UN, 2013)22. This is one of the reasons why access to the data and its use in various initiatives has been limited so far. In this scenario, it is observed that, although the IOM has a large database, it is not shared in its entirety. Thus, on the one hand, the protection attributed contributes to the effective implementation of the IOM projects, ensuring the privacy and the safety of all of the persons assisted by the organization, including victims of human trafficking. On the other hand, the limitation of the information made available reduces the exchange of potentially relevant data with other bodies, and makes it difficult to identify the perpetrators of the crime of human trafficking. Further, it is known that the data has a geographical scope and limited coverage. This is because the availability of the IOM data depends on its schedule, which varies in length by country. 19. THE COUNTER TRAFFICKING DATA COLLABORATIVE. GLOBAL DATA HUB ON HUMAN TRAFFICKING. Available at: <https://www.ctdatacollaborative.org/> Accessed on: Nov 24th, 2019. 20. For the purposes of this article, the term “hub” shall be used as “concentrator” and “processor” by means of which the information is transmitted or disseminated. 21. THE COUNTER TRAFFICKING DATA COLLABORATIVE. THE GLOBAL DATASET. Available at: <https://www.ctdatacollaborative.org/> Accessed on: Nov 10th, 2019. 22. UN. 2013/21. Fundamental Principles of Official Statistics. Resolution adopted by the Economic and Social Council on 24 July 2013. Available at: <https://unstats.un.org/unsd/dnss/gp/FP-Rev2013-E. pdf>. Accessed on: Nov 24th, 2019. Finally, it is worth stressing that the IOM hub uses data collected worldwide, which also includes the data collected in Brazil23. Also, these data reveal that only 0.5% of the trafficked persons in Brazil are properly identified. 2.1.2 UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME The UNODC carried out an important work in relation to human trafficking, which involves producing periodically a global report on human trafficking. The most recent report dates back to 201824, and was developed by means of sending questionnaires with different questions to the governments in order to identify a series of standards of human trafficking. The data collected enables identifying the gender, age and type of exploit of the victims of this type of crime. In addition, the UNODC collects official information, such as police reports (available in the public domain). The UNODC database, however, is based on the collection of official information mainly from participating governments. Thus, the scope of the data varies according to the State. The laws and policies of the countries for combating trafficking, as well as their abilities to identify victims, can both facilitate and impair the collection of data25. Finally, it is noteworthy that Brazil is one of the States that collaborates with the information provided to the body, therefore it is important to understand how it deals with the data made available. 23. https://www.ctdatacollaborative.org/map 24. UNODC. Global Report on Trafficking in Persons 2018 (United Nations publication, Sales No. E.19. IV.2). Available at: <https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/glotip/2018/ GLOTiP_2018_BOOK_web_small.pdf> Accessed on: Nov 24th, 2019. 25. In this sense, it is important to highlight the excerpt extracted from the article “STATISTICS RELATED TO HUMAN TRAFFICKING: from UNODC reports in the search for a comprehensive methodology on the theme” which states that “Notwithstanding the efforts of the UNODC to improve its methodology for collection of data, one difficulty was common to all of the reports: the problem of failures that occurred in the most different jurisdictions not only in relation to the fight against the crime per se, but also in relation to the internal collection of data, often subject to difficulties that are inherent to the actual organization of the internal organs of the States, or even for the absence of a methodology capable of considering the information obtained for each of the entities that are active in the combat of traffic and in the support for the victims.” SMANIO Gianpaolo P., CHIARELLO Felipe de S. Pinto. ATCHABAHIAN, Ana Cláudia Ruy Cardia. JUNQUEIRA, Michelle Asato. ANDREUCCI, Ana Cláudia P. Torezan (Orgs.). Mulheres invisíveis: panorama internacional e realidade brasileira do tráfico transnacional de mulheres. Curitiba: CRV, 2018. 2.1.3 IBM The private companies also play an important role in the mapping of information for the combat of the crime of human trafficking. In this sense, it is worth highlighting the performance of IBM, a North American company focused on the information technology area that works with the NGOs to combat human trafficking26. IBM worked with Watson Speech to Tex (STT) to develop a data hub that allows different financial institutions (such as Barclays, Europol, Liberty Global, Lloyd’s Banking Group, University College London, and others) to identify the networks and the flows of human trafficking. The analysis of information coming from financial institutions is particularly relevant, considering that one of the characteristics of human trafficking is its profitability, which would make it possible to trace the amounts involved. In this sense, when monitoring the flow of money, it will also be possible to monitor the flow of human trafficking. It is also noteworthy that money laundering is a predominant part of human trafficking, thus it is possible to seek and map trafficking data, also starting with the identification of specific patterns related to money laundering. The identification of these data occurs in two different steps. Firstly, there is large-scale collection of data. Secondly, there is use of an Artificial Intelligence (AI) tool so as to enrich and refine the collected data. This AI is trained to recognize and detect terms and specific incidents of human trafficking. The AI also enables the hub to receive data with open code in a scale – including thousands of daily newsfeeds – to assist the analysts in identifying the characteristics of the incidents of human trafficking (as methods for recruitment and transportation) with greater ease. The tool uses the AI to aggregate and construe the data – transforming it into tangible information for use by governments, NGOs and financial institutions. The analyzed data does not contain specific information about entities or persons. They inform when the transaction took place, and the relationship with the cities of origin and of destination. The crossing of grouped data from various sources – NGOs, news and other financial institutions is not common. This is the information that 26. IBM. Working with NGOs, non–profits and industry partners to disrupt human trafficking by using cloud and AI technologies to identify patterns of activity to make communities safer. Human Trafficking. <https://www.ibm.org/initiatives/human-trafficking> Accessed on: Nov 24th, 2019. enables a more precise analysis of the flows of money related to the flow of trafficked persons. It also enables a greater mapping of information. This collection and treatment of data has the aim of identifying where the trafficking routes occur, which the points of transit are, and what types of trafficking prevail in different periods of time and in different locations. The strategy used by IBM consists of analyzing non-personal data related to human trafficking. Although the information comes from financial institutions, this information is not entailed to the holders of the data. This is because the hub does not keep personal or confidential information. As they are not specific data, the legislation on the treatment is not a problem. By analyzing non-personal data, IBM circumvents the problems with privacy policies and allows the sharing of results. In this way, the IBM/ STT platform facilitates a better inter-sectorial collaboration to interrupt or reduce as much as possible human trafficking. However, the information collected depends exclusively on the information provided by the institutions that use IBM and that agree to process their data with the purpose of identifying human trafficking. In this way, even though the analysis of financial data by using AI is a chance to identify cases of human trafficking, this measure is subject to the will of the controllers of such data. Once again, there is an analysis of the flows, but not the identification of the agents that work in the crime of human trafficking, due to the anonymity of the personal data. This not being enough, it is known that this collection identifies large flows, so that the isolated cases probably go unnoticed by the mapping that is carried out. Although IBM does not use, initially, data provided by entities located in the Brazilian State, it is clear that it can use anonymous data of Brazilians that have information in one of the financial institutions that provides the information to the AI. FINAL CONSIDERATIONS The technology changed the way that one should deal with human trafficking. This is because it changed not only the dynamics of trafficking, but also enhanced the forms of combating it. One of the forms of combat is just tracing the forms and the patterns contained in this type of crime, to identify the routes used, and, based on this information, to try to establish new combat and prevention policies. For this, it is necessary to analyze and use the data of the victims of human trafficking. In this sense, it is noteworthy that although there is no specific guideline in Brazil for this particular treatment, there are international guidelines and treaties, as well as internal legislation on the treatment of data and on human trafficking. All of these rules must be combined in specific cases to ensure protection for the victims, as well as for greater effectiveness in the networks for protection from and fighting of crime. Thus, it is noteworthy that various institutions that are headquartered in Brazil, or that use data made available by the Brazilian Government or, potentially, use the data of Brazilians, have found ways of assuring the protection of data and, at the same time, generate databases that can be shared internationally. This information, however, is still scarce. In this sense, even though the databases generated are not able to contemplate all of the assumptions of trafficking, they significantly assist in the identification of routes and routines of the agents that practice this crime, and consequently, assist in fighting them. It is emphasized that a measure that could help profoundly in the mapping of this data would be that all of those involved in assisting victims of human trafficking should share the data after they have been duly anonymized. Such action, in itself, would increase the information collected around the world and assist in the mapping to be carried out by various States. It should be kept in mind, however, that the use of technology for the purpose of integrating databases is not unrestricted. This is because the data related to the victims of human trafficking are personal data, often sensitive, that must be treated adequately, so as not to further expose victims to a situation of violence and greater vulnerability. In this sense, although it is necessary to expand more and more the sharing of relevant information to attempt to combat this crime, it is also necessary to pay attention to the rights to privacy and to the protection of the personal data of the holders of the data, always ensuring the dignity, the protection and the safety thereof. The sharing of the databases is essential. This is because gathering global data on a platform strengthens and empowers the local, national and international institutions to eradicate the crimes of trafficking and exploitation. This sharing, so as to be effective, requires a collective effort, both of members of the civil society, as well as of private institutions and the governments themselves. It is certain, therefore, that the effort to share the data on victims of human trafficking must be enhanced, so that the databases can be even more complete, always with due regard for the protection of the holders of the mapped data. REFERENCES BRASIL. 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Accessed on: Jan 30th, 2020 PART III TRAFFICKING OF WOMEN AND CHILDREN: OBJECTIFICATION, CONSENT AND DISAPPEARANCE CHAPTER 4 BETWEEN DISSENTS AND CONSENTS: HUMAN TRAFFICKING AND SITUATIONS OF VULNERABILITY ALLINE PEDRA JORGE BIROL Attorney, Post Doctorate in Law (UFSC), PhD in Criminology (Université de Lausanne, Switzerland), Consultant for International Organizations (ICMPD, UNODC, PNUD, IOM, UNICEF). THAMARA DUARTE CUNHA MEDEIROS Attorney, PhD in Criminal Policy and Criminal Law (Granada-ES), Professor at the Mackenzie Presbyterian University. INTRODUCTION Human Trafficking is one of the most ancient forms of violation of human rights. It concerns a perverse reality that weakens and dehumanizes thousands of people by means of the exploitation of one human being by another. Historical records show that since the colonization of the Americas and until the abolition of slavery, black Africans were transported from their countries and forced to work in various places in Brazilian territory. However, at that time, both the transportation and the exploitation of these human beings was permitted by law. With the globalization and the intensification of human mobility, there has been a resurgence in the transportation of people for the purpose of exploitation, where the codename of the expression “human trafficking” is the expression “slavery of modern times” and reminds us that this is one of the forms of violation of human rights that never ceased to exist1. It is observed, however, that human trafficking is inserted in the context of vulnerability associated with the violation of Human Rights, in particular the violation of economic, social and cultural rights. There are multiple factors that contribute to materializing the situation of vulnerability, among which we highlight: economic and social insecurity; inequalities and discrimination against women and black people; unemployment, precarious health and education services, poor housing and feeding conditions, migrations, among others. Despite the hideousness, human trafficking is a crime that is hardly ever notified. Fear, shame, ignorance of the condition of victim make it difficult for the people who are trafficked to report this form of violence to the authorities, or to seek support from organizations that provide assistance to the victims. And the absence of knowledge about the elements or indicators that make up human trafficking causes the authorities to fail to perceive the situations of victimization. This article has the purpose of bringing certain essential reflections on the issue of the consent of the victim within the scope of human trafficking, without the intention of exhausting the debate on the subject, but with the purpose of contributing to the reflection on one of the most serious forms of violation of human rights in the world. 1 HUMAN TRAFFICKING CONCEPTUAL MILESTONE IN BRAZIL: LEGAL AND The Additional Protocol to the United Nations Convention against Transnational Organized Crime to Prevent, Suppress and Punish Trafficking in Persons, Especially Women and Children, known as the Palermo Protocol, on November 15th, 20002 is the primary international reference standard in the combat of Human Trafficking It has been ratified by a large number of countries that are members of the United Nations3 and approved in Brazil through Decree No. 5.017 of 2004. 1. 2. 3. The expression “modern-day slavery” is even the slogan of the Freedom Project, financed by the international television network CNN. Another commonly used expression is “contemporary slavery.” See Justin Guay, The Economic Foundations of Contemporary Slavery. The Palermo Protocol was adopted by the General Meeting of the United Nations, Resolution 55/25, and became effective on December 23rd, 2003. As of November 8th, 2013, 158 member countries of the United Nations were party-states of the Protocol. Under the terms of the Palermo Protocol, human trafficking is: [...] the recruitment, transportation, transfer, harbouring or receipt of persons, by means of the threat or use of force or other forms of coercion, of abduction, of fraud, of deception, of the abuse of power or of a position of vulnerability or of the giving or receiving of payments or benefits to achieve the consent of a person having control over another person, for the purpose of exploitation. Exploitation shall include, at a minimum, the exploitation of the prostitution of others or other forms of sexual exploitation, forced labour or services, slavery or practices similar to slavery, servitude or the removal of organs. Inspired on the terms of the Palermo Protocol, the Brazilian government, in 2006, by means of Decree No. 5.948, approved the National Policy to Combat Human Trafficking, which institutes the principles, guidelines and actions that should guide the performance of the public power in the combat against human trafficking and incorporates the Coping with Human Trafficking in the public agenda based on three strategic axes: a) Prevention: b) Suppression of trafficking and accountability of its actors and c) the care for victims. While in terms of Brazilian criminal law, after the legislative alteration promoted by Law No. 13.444/2016, it is observed that Article 149-A of the Criminal Code followed the guidelines of the Palermo Protocol for the purpose of criminalizing human trafficking and added three other verbs or conducts that can also configure human trafficking, whether they are negotiating, enticing and purchasing. Article 149 – To negotiate, entice, recruit, transport, transfer, purchase, lodge or receive a person, by means of a serious threat, violence, coercion, fraud or abuse, with the purpose of: I – removing his/her organs, flesh or parts of the body; II – submitting him/her to work in conditions that are similar to slavery; III – submitting him/her to any type of servitude; IV – illegal adoption; or V – sexual exploitation. The legislator considers the conduct even more serious, increasing the sentence, if: I – committed by a public servant in the exercise of his/her duties or under the pretext of exercising them; II – committed against a child, an adolescent or an elderly or disabled person; III – the agent takes advantage of parent, domestic, cohabitation, hospitality, economic dependence, authority or hierarchical superiority relationship that is inherent to the exercise of a job, position or function; or IV – the victim of human trafficking is removed from national territory. In other words, the trafficking of children and adolescents, which was previously provided for in the Child and Adolescent Statute, is now provided for in the Criminal Code itself. International human trafficking is also provided for in this same Article 149-A, different from the previous legislation that established a criminal type for internal trafficking, and another for international trafficking. In addition, the law also provides that if the agent is primary and does not belong to a criminal organization, the penalty shall be reduced. This is because what is most common is that the conducts that end up configuring human trafficking are carried out by agents who are part of criminal organizations, since they are many conducts. They are several actions that are practiced by various subjects in cooperation which enable the accomplishment of the crime of human trafficking. But there are isolated cases in which the agent practices the conduct in isolation, for example, recruiting or enticing sporadically, but without being part of a criminal organization, hence the need to provide reduction in the penalty. Finally, it is observed that both on the terms of the Palermo Protocol, as well as of the National Policy and of the Criminal Code, three elements are necessary for the conduct to be considered as human trafficking, i.e., the action, the means and the purpose. The law, however, does not require the PURPOSE of the exploitation to take place effectively so that the offense can be consummated. It shall be considered consummated as long as the three elements are present: ACTION, MEANS and PURPOSE. The means of conduction of the crime can be the serious threat, the violence, the coercion, the fraud and the abuse. The coercion can be physical, moral or psychological. The fraud occurs when the trafficker uses fraudulent devices as fake employment contracts, job promises, marriage, to obtain his/her agreement. The abuse occurs when the agent uses his/her power (for example, in a hierarchical relationship) or of the position of vulnerability of the person to be trafficked (financial or family difficulty) to coerce him/her into adhering to its conduct. If the victim is a child or an adolescent, the means are irrelevant, seeing as the legal incapacity of the child or adolescent of making his/her choices and taking his/her decisions or his/her condition of a vulnerable person, when being under 18 years old. In other words, the child and adolescent are subjects that are protected and, under the doctrine of full protection, cannot consent. Therefore, the ACTION and the PURPOSE of the exploitation are enough for a child or adolescent found in a situation of trafficking to be considered a victim of human trafficking. Finally, both the Palermo Protocol and the National Policy to Combat Human Trafficking are not definitive as to the forms of exploitation. The Protocol expressly affirms that: “exploitation shall include, at a minimum, the exploitation of the prostitution of others or other forms of sexual exploitation, forced labour or services, slavery or practices similar to slavery, servitude or the removal of organs.” In other words, both are open to other forms of exploitation. Field research has even identified other types of human trafficking, such as human trafficking for the purposes of begging4. Or human trafficking for the purpose of compelling the victim to commit crimes5. There is, therefore, a significant advance in the new criminal legislation. Since the approval of the Palermo Protocol in 2004, there has been a struggle in Brazil to expand the exploration modalities because, until the approval of Law No. 13.344 of October 6th, 2016, which amended the Criminal Code, the only type of exploitation envisaged was sexual. Other criminal types were used as alternatives, such as Article 149 of the Criminal Code, in the case of slave labor. Not at least, the criminal classification was incomplete, therefore, the changes promoted in the Brazilian criminal legislation to combat human trafficking are commendable. 4. 5. Begging consists of different activities by which a person asks a stranger for money, under the justification of his/her poverty or for the benefit of religious or charitable institutions. The sale of small items such as flowers and sweets at the traffic lights, cleaning windows, parking or watching cars, assisting in the grocery shopping, artistic performances (circus, playing musical instruments) in the streets can also be considered as begging. We emphasize, however, that begging as a form of exploitation is configured when an organized group or individuals transport and coerce people, particularly children and adolescents, but not solely, so that they stay on the streets asking for money or selling small products, restricting their freedom and retaining, all or in part, the fruit of this begging (National Office of Justice, 2013). It is when the trafficked person is forced or coerced into the practice of criminal activities, such as growing or transporting drugs from one place to another, small thefts, etc. (National Office of Justice, 2013). 2 CONSENT OF THE VICTIM IN THE CRIME OF HUMAN TRAFFICKING AND SITUATIONS OF VULNERABILITY The consent of the victim within the scope of criminal law gives rise to various opinions the debates of which provoke reflections about the availability and non-availability of the protected legal property. In this sense, Figueiredo Dias highlights “in all of the cases in which the law protects the individual’s freedom of disposition, the agreement of the interested party means that he/she cannot and should not speak of a violation of the law”6. However, when dealing specifically with the victim of human trafficking for the purpose of sexual exploitation, one asks in which situations is it possible to have individual/sexual freedom? The careful analysis of the victim’s dissent/consent is essential for the adequacy of the fact to the criminal rule. In this context, Daniel de Resende Salgado explains7: [...]It is important to highlight that the potential injury to sexual freedom, the law protected by the rule provided in Article 149-A, V, of the Criminal Code, must always be assessed taking into account the vices that hinder the possibility of free and conscious manifestation of the true will of the victim. [...] This means to say: if the amount protected by the rule is available and exempt of criminal liability, its holder must have conditions to dispose of the legal asset by means of a manifestation of will without vices, totally free and conscious. The National Policy to Combat Human Trafficking addresses the irrelevance of the victim’s consent in Article 2, Paragraph Seven. The Palermo Protocol, in its Article 3, item “b”, determines that the consent granted by the victim is irrelevant as long as the means used is the threat or use of force or other forms of coercion, of abduction, of fraud, of deception, of the abuse of power or of a position of vulnerability or of the giving or receiving of payments or benefits to achieve it. Law No. 13.344/2016, in turn, makes no mention of the consent of the victim, whether relevant or not. The typical conduct provided in Article 149-A includes the element of means – violence, serious threat, fraud, coercion and abuse – as elementary circumstances of the nucleus of 6. 7. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal: parte geral, questões fundamentais a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, tomo I, page 473. SALGADO, Resende Daniel. Tráfico de seres humanos para fim de exploração sexual – o abuso e a manifestação da vontade em um contexto de vulnerabilidade. Regional Federal Court of 3rd Region in São Paulo magazine, special edition, pages 220-221, July/2019. Available at: https://www. trf3.jus.br/documentos/revs/DIVERSOS/REVISTA-ESPECIAL-2019_com_LINKS.pdf Accessed on: Jan 27th, 2020. the criminal type, thus, if the consent of the victim of human trafficking is considered valid, it will exclude the typicality. Indeed, understanding the relevance or validity of the “consent of the victim” is not an easy task. Gregori points out that “starting from the assumption that the structure of the society of rights in which we live is constituted from the relationship between very unequal subjects [...], the consent is certainly much more complex and difficult to be determined”8. The situation of human trafficking can begin with a simple promise of better earnings in a foreign country, for sex professionals, who are immersed in financial difficulties in Brazil, consenting or agreeing with the proposal made by the recruiters and voluntarily moving to another specific country aware of the condition of working as sex professionals. However, they are subjected to extreme working conditions and indebtedness for travel expenses in the country of destination, which are essential elements of modern-day slavery or human trafficking. In such situations it is necessary to assess “if the manifestation of will for entering the field of prostitution was rational and truly free or if the person made an option for survival9. In this sense, it is important to consider, as Louise Borer explains, that 10: [...]when inserting in the criminal type the vice of consent deriving from abuse, in a generic way, the law relentlessly reminds us of the need to identify the vulnerable situation of the enticed, recruited, negotiated, transported, transferred, purchased, lodged or accepted individual, i.e., of the potential victim of human trafficking, and not only to identify if such a person would be, formally and legally, able of consenting with his/her recruitment for the activities proscribed by the criminal rule Therefore, the economic/psychological/social/family situation of the victims of trafficking should be investigated in order to ascertain whether there is a real situation of vulnerability, especially in the sense of identifying, “if such victims have already been victimized by the absence of opportunities, by broken hopes and dreams never realized and if such factors were exploited by traffickers to re-victimize them”11. GREGORI, Maria Filomena. Prazer e Perigo: notas sobre feminismo, sex-shops e s/m. Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras. In: PISCITELLI, A. et al. (Ed.). Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras. Rio de Janeiro, Garamond, 2004, page 53. 9. SALGADO, Resende Daniel. Op. Cit., page 223 10. BORER, Filgueiras Leite Vilela, Louise. O consentimento da vítima no tipo penal do tráfico de pessoas. Regional Federal Court of 3rd Region in São Paulo magazine, special edition, pages 220-221, July/2019. Available at: https://www.trf3.jus.br/documentos/revs/DIVERSOS/REVISTAESPECIAL-2019_com_LINKS.pdf Accessed on: Jan 27th, 2020 11. Ditto. 8. In this sense, it is also important to consider that the victim’s levels of consent are multiple, as well as that there are various levels of victimization12 that correspond to different levels of knowledge and information that are given to the victim and that are related to his/her consent – whether valid and informed or not. The first level corresponds to the total coercion in which the victims are abducted; the consent at this level is null. The second level concerns the victims that were deceived with promises of employment. In this case, the victim’s consent was given based on a fraud. The third level refers to a lower level of deception, where the victims know, for example, that they are going to work in the sex industry, but not in prostitution. Lastly, the fourth level of victimization concerns victims that, prior to their departure, knew they would work as sex professionals, but that did not know to what the extent they would be controlled, intimidated, indebted, exploited13. Thus, the risk, is of obtaining a definition of traffic that establishes moral hierarchies informed by moral values, which ultimately translate into legal and/or practical barriers in the defense of the human rights of the victims of human trafficking14. Hence the intelligence of the National Policy to Combat Human Trafficking when it excludes any form of consent (obtained under threat, violence, fraud, etc., or not) or when there is identification of a situation of human trafficking. This is because consent obtained by means of serious threat, violence, coercion (physical, moral or psychological), fraud or abuse of the position of vulnerability is flawed, and cannot be considered as informed or valid consent. But what does vulnerability mean15? Vulnerability is an individual or group situation, preexisting or created, that means fragility and therefore enhances the possibility of the person finding him/herself in situations of risk and exploitation. The vulnerability can be personal, situational or circumstantial. Personal vulnerability is that related to the individual 12. ARONOWITZ, Alexis A. Smuggling and Trafficking in Human Beings: The phenomenon, the markets that drive it and the organisations that promote it. European Journal on Criminal Policy and Research, v. 9, pages 163195, 2001. 13. Ditto. 14. ANDERSON, Bridget; DAVIDSON, Julia O’Connell. Trafficking – A Demand Led Problem. Suécia: Save The Children, 2002. Available at: http://lastradainternational.org/doccenter/1011/trafficking-–-a demand-led-problem-a-multi-country-pilot-study, Accessed on Jan 26th, 2020 15. Check Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade. Available at: https://www.anadep.org.br/wtksite/100-Regras-de-Brasilia-versao-reduzida.pdf characteristics of a certain person, which may be, for example, their actual sex, their gender identity, their sexual orientation, their age, their ethnicity, or a mental or physical deficiency, among others. The situational vulnerability is acquired, it is related to people and to the moment that they are going through. For example, it may be related to the fact that the person is undocumented in a foreign country, is socially or linguistically isolated. And the circumstantial vulnerability concerns a particularity, for example, the economic situation, unemployment, poverty, dependence on narcotic substances or alcohol16. It is important also to highlight, as stresses Daniel Resende Salgado that17: These situations of vulnerability are not to be confused with the definition of vulnerable, which are minors, the mentally ill or the sick, persons who are in a state that makes it impossible for them to offer resistance, in view of the absence of full capacity of understanding. The latter, when victimized, make it possible to recognize the cause of the increase of the penalty provided in Article 149-A, Paragraph One, II, of the Criminal Code. The content of the vulnerability that prevents the victim from manifesting his/her freedom in a reputable, non-addictive manner, allowing the incidence of the basic type of Article 149A, V, of the Criminal Code, is, on the contrary, closely interwoven with the absence of a material isonomy between the trafficker and human trafficking, giving rise to easier coopting in the face of the precarious and fragile situation supported by the designated victim. In other words, the situation of vulnerability is identified by the fragility of the social, labor, family and/or psychological bonds. They are, in reality, situations that combine precariousness and instability in the labor market, fragility of support and of the social relations, irregularity of access to the public services or other forms of social protection, which can be extended or reduced depending on economic crises or rising unemployment, for example. [...] The “consent”, in such situations, is induced and, as a result of this, the hermeneut needs to employ a greater value intensity in the analysis of the manifestation of will. And concludes: [...] It should be noted that the perception of the recruited person in relation to his/her own vulnerability is of little importance. The relevant thing is to have the criminal agent perceive that he/she is in a materially superior condition 16. UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME (UNODC, 2012b), Issue Paper on Abuse of a Position of Vulnerability and Other Means within the Definition of Trafficking in Persons. 2012. Available at: <http://www.unodc.org>. Accessed on: Jan 20th, 2020. 17. SALGADO, Resende Daniel. Op. Cit., pages 221-222 than that of the victim in a vulnerable situation. In fact, historical records show that the abuse of situations of vulnerability gave rise to relations of servitude and slavery throughout the history of humanity, thus, it is necessary that the elementary normative – abuse – provided in Article 149-A of the Criminal Code be analyzed in a careful and discerning way in order to avoid vague and inaccurate construals that mitigate the protection of human rights in cases of human trafficking. FINAL CONSIDERATIONS The crime of human trafficking is one of the cruelest violations of human rights. It represents what is most perverse in human conduct since it consists of the exploitation of man by man and in the objectification of human beings. It is also a crime, of which the dimension and scope are not clear. This is not only in Brazil, but in so many other countries in the world that have not yet adapted their legislation to the Palermo Protocol, or that, although they have adapted, they face difficulties for its comprehension, understanding, and consequently for the identification, protection and assistance for the victims. Human trafficking is fed by legitimate dreams. The fact is that the desire for better living and working conditions, for getting to know another culture, another country and even for having affectionate relationships with foreigners, motivates people who, as a rule, find themselves in a situation of vulnerability, to choose to leave their territories and go to other cities and countries in search of opportunities and, often, the real uncertainties and risks of this migratory project disappear in view of the dream. It is in this environment that recruiters/traffickers choose their victims. In this sense, one has the relevance that the consent of the victim is going against the protection of human rights, since the situations of vulnerability that motivate most victims of human trafficking for situations of exploitation, even if voluntarily, are ignored. For this reason, in spite of freedom being one of the most noble fundamental rights, the manifestation of will in a context of vulnerability must be carefully analyzed. It cannot be neglected by the interpreter and enforcer of the criminal rule, as its recognition is essential for the identification of the crime of human trafficking. REFERENCES AEBI, Marcelo., et al. European Sourcebook of Crime and Criminal Justice Statistics. 4. Ed. A Haia: Ministry of Justice, Research and Documentation Centre (WODC). (Onderzoek en beleidseries, n. 241, 2010. ANDERSON, Bridget; DAVIDSON, Julia O’Connell (2002). Trafficking – A Demand Led Problem. Suécia: Save The Children. 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Tráfico de Seres Humanos: São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Ceará. Brasília: Ministério da Justiça, 2004. DAVIDSON, Julia O’Connell. Trafficking: Known Unknowns and Unknown Knowns. Apresentação no Dialogue Forum Research Goes Politics. Viena, junho/2013. Van DIJCK, M. Trafficking in Human Beings: a Literature Survey. Report to the 6th Framework Programme of the European Commission, 2005. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal: parte geral, questões fundamentais a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, tomo I, p. 473. GOODEY, J. Migration, crime and victimhood: responses to sex trafficking in the EU. Punishment & Society, v. 4, n.5, Thousand Oaks: Sage Publications, 2003. GREGORI, Maria Filomena. Prazer e Perigo: notas sobre feminismo, sex- shops e s/m. Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras. In: PISCITELLI, A. et al. (Ed.). Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras. Rio de Janeiro, Garamond, 2004, p. 53 HAZEU, Marcel. (Coord.). 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Graduated in Journalism from the Cásper Líbero Social Communication School and Law by UPM. Professor of the Graduate Course at the Law School of the UPM. Guest Professor of the Lato Sensu Postgraduate Course of the ECA/ USP. Leader of the Emerging Research Group – CriaDirMack – Rights of the Child and of the Adolescent in the 21st Century from the UPM School of Law. Researcher at the “Invisible People: Prevention and Combat of Internal and International Human Trafficking”, financed by MackPesquisa. MICHELLE ASATO JUNQUEIRA PhD and Master in Political and Economic Law from the Mackenzie Presbyterian University – UPM. Specialist in Constitutional Law with Extension in Higher Education Didactics. Vice-leader of the “Public Policies as an Instrument for Effective Citizenship” and “Rights of the Children and of the Adolescents in the 21st Century” Research Groups. Researcher of the CNPq research group named “State and Economy in Brazil”. Research Coordinator and TCC of the UPM Law School. Researcher at the Invisible People Research Group of the Law School of the Mackenzie Presbyterian University, financed by the MackPesquisa. VALÉRIA JABUR MALUF MAVUCHIAN Masters in Law from the Nove de Julho University. Professor at the Nove de Julho University. Attorney. Researcher of the Invisible People Research Group of the Law School of the Mackenzie Presbyterian University. How tonight will end And the sun will then shine I’m thinking about you Where would my love be? Does she care like I do? Does she call like I do? Does she ask about me? Where would my love be? (Maria Bethânia) INTRODUCTION An empty nest. A feeling of absence. A pain that never ends. An anguish. A birthday that is not celebrated. A dream. Loss, guilt and absence are mixed in an explosion of feelings. The guilt felt by others. The blame pointed out by the society. The lack of information. An endless search. The neglect of the State. The solidarity in a network. An unfinished mourning. All of these feelings, expressed in verbs and adjectives, are insufficient to describe the purpose of investigation in this article: the scientific analysis of the Mothers of the Sé Association’s performance in the search for missing children and adolescents in Brazil. This is the way: to provide visibility to a subject, which requires a network of solidarity for action, in particular, bringing the Academy into the field of debates, as the present article arises within the scope of the Invisible People Project of the Mackenzie Presbyterian University School of Law, focusing on the disappearance of people and on human trafficking. It is important to say that international human trafficking, a criminal practice that occurs nationally and internationally, fits into the premise of a postmodern consumer society. It is currently the third largest criminal activity that has occurred internationally, only behind drug and weapon trafficking. The transnational nature of the criminal modality is characterized precisely by the fact that, in many cases, it involves networks of individuals and organizations of different nationalities, based in different locations, but having a common purpose. The activity carried out thus has the same purpose, no longer worried about the borders of the States involved. Internationally, human trafficking is regulated by the United Nations Convention against Transnational Organized Crime (Palermo Convention), of 2000. So as to provide effectiveness for the actions of combat, there was creation of the United Nations Office on Drugs and Crime – UNODC which has maintained, since March 1999, the Program against Trafficking in Persons, in collaboration with the United Nations Institute for Research on Justice and Interregional Crime (UNICRI). The program cooperates with Member States in their efforts to combat human trafficking, stressing the involvement of organized crime in this activity and promoting effective measures to suppress criminal actions and based on the legal and theoretical foundation of the three international conventions for control of drugs, in the conventions against transnational organized crime and against corruption and the international instruments against terrorism. (UNODC, 2019) In Brazil, the UNODC acts in compliance with the obligations it assumed when ratifying the UN Conventions on Control of Drugs; against Transnational Organized Crime and their three Protocols – against Trafficking in Persons, Smuggling of Migrants and the Weapon Trafficking; and the UN Convention on Corruption; in addition to the recommendations of the International Group for Financial Action that combats terrorism. In the communicational field, the UNODC has the institutional missions of prevention, protection and criminalization. For the effectiveness of such actions there are recurring campaigns broadcast1 1. An example of this is the Blue Heart Campaign launched on March 5th, 2009, under the title of Blue Heart Campaign, which means the sadness of the victims of human trafficking and creates sensibility on the infamies of the commerce of human beings. The Campaign has as its purposes: To transform the “Blue Heart” symbol into an icon of acknowledgement of the Campaign against Human Trafficking; To stipulate promotional actions and interventions, with the purpose of sensitizing the society, NGOs, Government Agencies, media and opinion makers on this social problem; To promote in the population the social sensibility, encouraging the search for information and denouncement. Using also the strength of the social networks, on TV and radio, distribution of informative pamphlets and partnerships for the public sensibility and consciousness on the subjects that are related to them. (UNODC, 2019) In Brazil, the crime is provided for in the Criminal Code, which, in its Article 231, underwent changes in 2009 due to the advent of Law No. 12.015, of August 7th, 2009. The Country also ratified the Palermo Convention, promulgated by means of Decree No. 5.015, of March 12th, 2004, and since 2008 relies on the National Policies to combat human trafficking. In addition, the combat has the institutional support of the Ministry of Justice, the Federal Public Ministry, the Federal Police, the Public Defender’s Office of the Union, the Attorney-General of the Federation, and the Special Office for Policies for Women and of the Judiciary Power, among other public organizations. The Brazilian civil society also plays an important role in the dissemination of the principal aspects related to the crime under analysis. Currently, international human trafficking is considered to be one of the most economically profitable activities, and a large portion of human trafficking is related to children and adolescents, considered to be commodities2 for the most diverse issues, work, adoption, sexual it is worth stressing that in 2010 the Blue Heart Campaign reached in Facebook the milestone of 10,000 members, standing out as one of the largest groups in this social media. Brazil adhered to the Campaign in May 2013, by means of a partnership between the Ministry of Justice and the UNODC Liaison and Partnership Office, and the first slogan was “Freedom is not purchased. Dignity is not Sold. Report Human Trafficking”, the motto for the social sensibility and mobilizations. Since then, in the week of combating human trafficking, government offices, buildings, among others, have been illuminated in blue aiming at social awareness. In 2017, the campaign has the motto “So that the dream does not become a trap”, with emphasis on the combat of slave labor, sexual exploitation and trafficking of human organs. The various partnerships between the Ministry of Justice and Public Security, as well as the numerous nuclei were responsible for stimulating national events of Mobilization against Trafficking in Persons, particularly on July 30th, declared by the United Nations as being the World Day against Trafficking in Persons. One of the main concerns of the Ministry of Justice, which has broad support of the Ministry of Foreign Affairs, is of disseminating to the population the importance of the channels for denouncement among them, the Dial 100 and Connect 180, which collaborate to assure visibility for the subject. 2. On May 25th, annually, one celebrates the International Day of the Disappeared Children, a time for reflection, discussions and social mobilization on the issues that involve such disappearances on a transnational scale. The date has as its origin the disappearance in New York, USA, of Etan Patz, a 6-year-old boy, when he was returning from school, on May 25th, 1979. As from that date, family members, friends and the community began to meet in order to discuss and disseminate the care for avoiding the occurrence of such crime. The child was killed by Pedro Hernandez and the body was never found. Between the comings and goings of the judicial proceeding, the final convicting sentence occurred 38 years later, in 2017. In 1986, Ronald Reagan, President of the USA at the time, declared nationally the date of May 25th as being dedicated to the theme of missing children. However, it was in 1988, on the occasion of the international event named Global Missing Children’s Network – GMCN, that representatives of a number of countries established May 25th as being the International Day for Missing Children. Information is available at https://exame.abril.com.br/mundo/38- exploitation. In Brazil, when it concerns the disappearance of children and adolescents, the figures are inaccurate, with an extreme lack of data and inter-communicability between the entities and the state agents. In order to face the situation, on December 17th, 2009, Law No. 12.127/2009 (Brazil, 2009) was sanctioned, responsible for the creation of the National Registry of Missing Children and Adolescents. A Parliamentary Committee for Inquiry (CPI) was also established, and in February 2010 a task force between the Human Rights Office of the Presidency of the Republic – SDH/PR, in partnership with the Ministry of Justice – MJ, with the support of the National Network for Identification and Localization of Missing Children and Adolescents, to implement the National Registry of Missing Children and Adolescents. 1 DISAPPEARANCE AS A NARRATIVE OF UNENDING MOURNING São Paulo, December 23rd, 1995, Saturday. Celebratory season. Preparations for Christmas. New Year’s resolutions. The typical acceleration of year-end balance sheets. For Ivanise Esperidião it was different. On this day her life ended. It was the beginning of a new narrative. More than 24 years later, December 23rd, 1995, was the day that never ended. It is relived every day of her life, in the form of pain, in the form of struggle, in the form of hope, in the form of solidarity. On that Saturday afternoon, her 13-year-old daughter, Fabiana, went to a friend’s house to wish her a happy birthday, and never returned. Reports and testimonies reported that she was seen for the last time 120 meters away from her home. Devastation, anguish, a feeling of guilt were the first feelings of Ivanise. And it was in this labyrinth of pain and, taken by extreme emotion, that Ivanise went out looking for her daughter. Among the stones along the way, she found a lack of attention of state entities, the merciless judgement of society, the feeling of guilt in the duty of care of a mother, the solidarity of some, and the pain shared by others. Police Stations, Legal Medical Institutes, Forums, Hospitals, Airports became her routine in the search for Fabiana. Where there was information, even if it lacked any objectiveness, there was Ivanise. In her reports, many of them shared in the morning of the Invisible People Congress that took place at the end of September 2019, at the Mackenzie Presbyterian University, there were three months of intense searching, information gaps, state neglect, a solitary pilgrimage, anos-depois-chega-ao-fim-caso-de-crianca-desaparecida-nos-eua/ Accessed on Sep 30th, 2019. which almost drove her to insanity, malnutrition and the certainty, according to her literal words, that “to experience the disappearance of a person is a thousand times worse than death, it is a pain that has no medicine, it is an unending mourning.3 This pain is worse than death because you die a little each day”, she says. “Every day when waking up and every night when sleeping, this is the first thing that crosses my mind.”4 Since the news until today, the words that emerge from her incessant search are: pain, guilt5, neglect, solidarity and action6. The intense and solidary pain caused the emergence and sharing of a collective pain, there 3. 4. 5. 6. On the subject see “As there is no definitive data that show the complete absence of the child, mothers face an internal dilemma between maintaining the expectation of reappearance of the relative, together with the tiredness and emotional exhaustion that this situation entails and the guilt of not maintaining the expectations continuously. This ambivalence can even affect the resumption of the routine, the coexistence with other family members, making it difficult to reorganize the family structure. However, some mothers, to a certain extent, manage to resume part of their lives, without failure of seeking news and information on their missing children. However, it is observed noticeably that mourning starts to be experienced predominantly in the individual sphere, resulting in the removal or reduction of the participation in NGOs and groups of mothers of missing children, as also the discredit attributed to the governmental bodies that are responsible for the searches. The individualization of mourning highlights the failures of the State in the performance of its role of protection and assistance in the search for the missing. When making the act of mourning an individual responsibility, there may be trivialization of the disappearance and a naturalization of the maternal suffering, reinforcing the idea that mothers are the only ones responsible for searching for their children. The association between the individual dynamics already described, with the failures of the State, contributes to the process of sadness of such mothers, which find themselves without resources for the development of the mourning.” ROLIM, G. S., RADZEVICIUS, L. C., SALDANHA, M. F., TARDIVO, L. S. L. P. C., & SALLES, R. J. (2018). ANALYSIS OF THE MOURNING OF MOTHERS OF DISAPPEARED CHILDREN AND ADOLESCENTS. PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 38(3), 507-521. ACCESSED ON JAN 20TH, 2020. Available at https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/09/24/lutoinacabado-relatos-de-maes-que-vivem-em-busca-de-filhos-desaparecidos.htm? Accessed on Dec 20th, 2019. The feeling of guilt is entailed to the Theory of Ambiguous Loss studied by Boss, who has his genesis in the Theory of Stress in the Family, attributing to the stress the result of family contexts and changes, which can occur in view of the physical absence of a family member, which is the case here, in the matters of disappearance, as well as in the cases of the family member being present physically but, psychologically, for reasons of health there is an absence in the family relationship. Such issues generate the existential void and the multidisciplinary variances that such loss can cause, in particular the re-signification of the absence and the closing of rituals. BOSS, P. Ambiguous loss. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1999. According to Marcelo Moreira Neumann “there is a minimization of the problem on behalf of the State. This movement is related to the actual lack of responsibility of the State in relation to the assurance of public policies, which consequently leads to the disappearance of people. (...) The private institutions and the non-governmental organizations are in the vanguard of the tackling of the problem and assume a role that should be of the State, as the issue is not yet a State policy, which weakens the entire guarantee system.” NEUMANN, Marcelo Moreira. O desaparecimento de crianças e adolescentes. Doctorate Thesis. Social Service, Pontifical Catholic University of São Paulo, 2010. was a call to convert the pain into action7, and there arose the first seeds of what would later be the Brazilian Association of Search for and Defense of the missing child, known as “Mothers of the Sé”. 2 MOTHERS OF THE SÉ: WHEN THE WORDS PAIN AND STRUGGLE BECOME SYNONYMOUS Ivanise Esperidião da Silva and Vera Lúcia Gonçalves had something in common: they shared the pain of having a missing child. Both received an invitation, in January 1996, to participate in the recording of a soap opera on Rede Globo de Televisão, with the signature of novelist Glória Perez. Explode Coração went on the air during prime time, and as usual in Perez’s soap operas, would bring to the debate sensitive and invisible subjects of the national setting, the one chosen now was the disappearance of people. The invitation caused the emergence of a network of solidarity and empowerment8, Ivanise and Vera got to know the work of the Mothers of Cinelândia in Rio de Janeiro and the National Movement in Defense of Missing Children, in Paraná. And so, aware of the feeling of State neglect, of the invisibility of the subject and the pain, these mothers on March 31st, 1996 founded the Brazilian Association for the Defense of Missing Children (ABCD) or Mothers of the Sé, with reference to mothers of missing politicians in Argentina, the Mothers of Plaza de Mayo. 7. 8. In relation to the theme of state neglect and the solidarity among mothers with missing children, it is emblematic to recall here the case of the Mothers of the Victims of the Acari Slaughter, which took place in Rio de Janeiro in 1990, mentioning “On July 21st, 1990, 11 youngsters went to spend the weekend at a farm in Suruí, Magé, in the Baixada Fluminense, State of Rio de Janeiro. After the weekend, they decided to remain a few more days at the location. According to testimonies, on the evening of the 26th, six hooded men entered the site saying that they were policemen. After talking to three of the youngsters on the farm, they had taken them all in a Kombi van and in the car of one of the youngsters. There are several versions. One of them is that after being tortured, they were placed in a van that was set on fire. Another is that the bodies were thrown to the lions that were kept at the farm of a civil police officer, close to the site where they were initially found. The Mothers of Acari compared to the Mothers of Plaza de Mayo, in Argentina, are supported by the International Amnesty. In 1993, one of the most active mothers, Edméia, was brutally murdered when leaving a prison in Rio de Janeiro. According to reports, she had just received information that would have been fundamental for clarification of the slaughter. SOARES, Bárbara; MOURA, Tatiana; AFONSO, Carla. (Orgs.). Auto de Resistência: relatos de familiares de vítimas da violência armada. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. On the topic, see “Empowerment is like this for Freire in which we human beings are constructed and as we critically problematize the reality, we begin to “become aware”, discovering breaches and ideologies; such awareness gives us the “power” to transform the social relations of domination, which power leads to freedom and liberation”. Guareschi, P. Empoderamento (verbete) In STRECK, D., REDIN, E. J. Zitkoski, J. Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, pages 147-148. At a first moment, the Association’s objectives and missions were primarily focused on the search for missing children and adolescents, but in these more than 20 years of operation, the demand for care has expanded, with no further age range. The objectives were expanded due to the even greater social function, to provide communicational, psychological and legal shelter for the families with missing relatives. It remains clear, therefore, that the disappearance and the neglect of the State entities made these mothers spring the will to play the leading role of the pain9, turning it into action, the willingness of acting to assist thousands of people that live with this drama in Brazil, remembering, however, that this is a transnational problem. The Association articulates actions with public and private sectors, denouncing risk situations, collaborating with a psychological and legal service based on integrity and respect for all human beings. These are the entity’s main actions: 1) Psychological assistance for the mothers and families of the missing, as well as those found, by means of partnership with the Mackenzie Presbyterian University; 2) Referral to psychiatric care, also the result of a partnership with a professional in the field; 3) Legal advice with the collaboration of volunteer attorneys; 4) Partnerships and agreements with the Missing Persons Police Precinct, NGOs and Institutes, the Ministry of Justice, Shelters, Guardianship Councils, Social Assistance, among others; 5) Broad dissemination of photos of the missing persons, in various communication channels. Among the recurring activities of the Association are the fortnightly meetings on Sundays, on the stairways of the Catedral da Sé, located in the center of the capital of São Paulo. Mothers and family members carry photos and posters of their missing relatives. Renewal of hope for those that share the same pain. For Ivanise “from the moment I started to share my pain, I learned to deal with this unfinished mourning in a more pleasant 9. About empowerment and solidarity, see also: “when constituting themselves as mothers in the public space by means of ethics, new power relations are produced, even if they are established from the reaffirmation of traditional social norms and roles. These women, by reinforcing their maternal bindings with their missing children, remove the legitimacy of their role of care in private life. They speak in the place of mothers that live, not to subvert, but to reaffirm it as an assumed condition for their struggle. LEAL, Eduardo Martinelli. “At that time, you would never hear anything about missing people”: family and maternity in the militancy of the disappearance of people in Brazil. Mana, Rio de Janeiro, v. 25, No. 3, pages 605-634, December 2019. Available at <http://www.scielo.br>. Accessed on Jan 30th, 2020. way” and “we insist that nobody gives up. We are united by the same suffering.”10 The Mothers of the Sé Associations pragmatically translates into the social reality what philosopher Hannah Arendt called “the grammar of action”, i.e., the transportation of the world from the theory to social praxis, because existence is only perfected by proactivity or by protagonism. It is not enough to just be in the world, to exist is to act. Arendt, with an emphasis on action, leads us to the notion of acting to exist when pondering that “only in this way is it possible to be someone”, to achieve full reality. When exposing oneself not only to the physical space of the world, but also in the “web of human relationships”, the action initiated by the agent gains dynamism that will produce a story in which the individual and the subject, being able to achieve immortality, enter the story without a beginning or ending, which is the book of stories of humanity”. Further, Arendt reinforces the idea of collective action, the human inter-personality for social pragmatics, and it is in the exercise of the policy that the privileged locus for such act demands creativity and becomes an expression of the highest of faculties.11 This collective action gains constitutional dimensions12 given that it is based on solidarity not only as an attribute of unity, but also of protagonist of action to involve the family, society and the State in the implementation of priority public policies, especially for the child and the adolescent. It 10. https://www.terra.com.br/noticias/transformei-a-minha-dor-na-luta-por-10-mil-pessoas,0ffe 88a79bef7d4ac7946f742fcf4f01di77RCRD.html. Accessed on Dec, 2019. 11. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, page 231. 12. Endowed with unmatched importance for the architecture of the system, the principle of solidarity structures and dignifies the social relations and, according to Willis Santiago Guerra Filho: the human rights – and the fundamental rights, in the plan of established right, positive law – have been acquiring a configuration that is increasingly in line with the ideals projected by the political revolutions of modernity, so well represented by the triad “freedom, equality and fraternity”. Nowadays, one can perceive with clarity the interdependence of these fundamental values: without the reduction of inequalities, there is no freedom possible for the combination of human beings, and without fraternity – or rather, “solidarity” to be more “realistic” seeing as the fraternity sometimes does not even exist among the true brothers –, without the recognition of our mutual dependence, not only as individuals, but as nations and natural species – we also depend on the natural environment – we do not understand the meaning of the search for freedom and equality. It can be said that the Law, in this context, must be based on a constitutional order that, when being proper of a Democratic State, imposes duties of solidarity on those who make up the political community, so as to mitigate the harmful effects of inequality between them in relation to their freedom and to the respect for human dignity. Proposta de Teoria Fundamental da Constituição (com uma inflexão processual) In ALMEIDA FILHO, Agassiz & MELGARÉ, Plínio. Dignidade da pessoa humana: fundamentos e critérios interpretativos. São Paulo: Malheiros, 2010, pages 319-320. constitutes as one of the facets of Human Rights, of the Democratic State of Law and of humanitarian fraternity.13 3 MOTHERS OF THE SÉ: DIALOGUES WITH NORMATIVE SOURCES OF PROTECTION OF THE CHILD AND OF THE ADOLESCENT The pragmatic action of the Mothers of the Sé Association finds its absolute grounds in the international and national instruments that govern the theme of the children and adolescents. Absolute priority, full protection, solidarity are words of the weaving of legal norms, but that often do not echo in social pragmatics. This was exactly the feeling of a gap between rules and factual application that caused mothers such as Ivanise and Vera to begin to act. It was due to the neglect of not treating the communication of a crime of disappearance of a child as a priority that made them start to act. It was in the face of the State’s non-solidarity that made them start to act. It is worth remembering that the principle of solidarity is enshrined into Article 19 of the Pact of San José, Costa Rica or also known as the American Convention on Human Rights, established based on the InterAmerican Specialized Conference on Human Rights, among the countries that are members of the Organization of American States, on November 22nd, 1969, becoming effective only on July 18th, 1969. The mentioned Convention is the paradigm of protection of Human Rights based on the ideas of the Universal Declaration of Human Rights of 1948, establishing that: “Every child has the right to protection measures that their condition as minors requires from their family, from the society and from the State”. Thus, despite having been ratified by Brazil only in 1992, by means of 13. The mothers’ solidarity would be born from this shared pain that becomes fuel for the political struggle. This union is celebrated by all mothers. However, I wish to highlight one issue. Indeed, solidarity appears as the background of many speeches today. When appealing to universal and humanitarian values, this notion manages to “tie together” the most different collectives. However, it is worth stressing that despite its comprehensive perspective, this speech arises historically from organized groups. If the solidarity is seen as a universal feeling, in practice, it needs to be “activated”. It was using the “mother” category and everything that it entails in terms of social meanings, as well as using a know-how that is close to it, that these women built their speeches, which could not be unaware of the discussions that were then taking place in society. For this reason, they started with a call to the mothers, not to an undifferentiated humanity. Instead of being universal, solidarity appears by demarcating the belonging or the non- belonging to a group (and in a specific agenda of interests, even if concerned with the “social totality”). It is seen as the only way to guarantee a better future, a union that moves away from the most individualistic values and rests on a vision of society (and of the future) where different social subjects can be respected. FREITAS, Rita de Cássia Santos. Famílias e violências: reflexões sobre as Mães de Acari. Available at http://www.scielo.br. Accessed on Dec 20th, 2019. Decree No. 678, of November 6th, 1992, it had strong influences in the production of the 1988 Constitution, particularly, on the elaboration of Article 227 that accepts the constitutional protection of the Rights of Children and Adolescents. The establishment of solidarity as a value that will be present as a legislative inspiration, academic debates and judicial decisions. Necessary interventions in the family based on justifiable moments may be necessary, since the notion of the child as an object of property of the parents was replaced by the doctrine of full protection and protection by everyone integrally. The ECA also established the principle of solidarity between family, community, society and the State, ensuring that all of them are coresponsible for the full development of children and adolescents. Thus, such underlying architecture makes us realize that children are not only of their parents, but are subject to the rights of which everyone should be aware of, they are called to contribute, as well as to monitor not only the family, but also society and the State. In the 1988 Letter, as well as the ECA – Statute of the Child and Adolescent –, in strict adherence to the Pact of San José, Costa Rica, the Universal Declaration of the Rights of the Child (1959) and the International Convention on the Rights of the Child (1989), provide in the Brazilian legal system the result of a long and harsh battle of social movements in favor of the recognition of the rights of children and adolescents. The most important source of the doctrine of full protection of the child and of the adolescent, in Brazilian law, is undoubtedly Article 277 of the Constitutional Charter, which explicitly provides that it is “a duty of the family, of society and of the State to ensure for the child, for the adolescents and to the youngsters, with absolute priority, the right to life, to health, to food, to education, to leisure, to professionalization, to culture, to dignity, to respect, to freedom and to family and community coexistence, in addition to saving them from any forms of negligence, discrimination, exploit, violence, cruelty and oppression.” One stresses that the need for special protection is justified in view of the “lack of physical and mental maturity”, according to the Universal Declaration of the Rights of the Child. Thus, in addition to the fundamental rights that are common to every human being, we can identify certain special ones relative to the children and to the adolescents, which rights are housed under the principiological mantle and the doctrine of what is conventionally called “the doctrine of full protection”. One stresses that the affirmation of the child and of the adolescent as “persons in a peculiar condition of development” and from the point of view of the social praxis and the applicability of such a principle in the concrete reality means to say that children and adolescents, as from the ontology of the being, are subjects of development law and such recognition presupposes a special value, designed, even by the Constitution of 1988, as a social right, which shall generate the imperative of the production of Public Policies by the State.14 In view of this normative architecture of protection of the rights of the child and of the adolescent, is that the Mothers of the Sé Association guides its pragmatic actions by demanding Public Policies, transparency, speed and State action. 4 MOTHERS OF THE SÉ: COMMUNICATION AS AN INSTRUMENT FOR OUR EVERYDAY SENSIBILITY When we talk about awareness, the word communication emerges as a radiating nucleus, and that deserves to be better exploited. It is communication that makes us human, which promotes the creation of bonds and that makes social interaction possible. Communication is the key instrument for human solidarity and, as an instrument, it is subject to changes in times. Communication is one of the facets of human evolution. Communication is a form of becoming communitarian, social and collective. Communication is a Fundamental Human Right. To cause the invisible to become visible has the purpose of making public what is hidden and, therefore, bringing the private problem to the public sphere, to the public opinion, to society, which, within the scope of representative democracy, must be active, participative and transforming, and thus produce a multiplier effect of new conducts that spreads and is beneficial. In topics as profoundly relevant such as human trafficking and, more particularly, the trafficking of children, the communication is an instrument of combat that cannot be forgotten, presenting itself with features of public policies of protection for the minorities that are in vulnerable conditions. Ultimately, what is intended to be effective is the right to communication, the right to voice and, as a consequence – to citizenship – which is the support of the Federative Republic of Brazil, designed by the 1988 Constitution, to the extent that it builds awareness of the “right to have rights”, transforming words into the dialogue/action binomial. 14. ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches, Estatuto da criança e do adolescente comentado: Lei 8.069/1990: artigo por artigo. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, page 74. From this perspective, the Right to Communication can be seen with intrinsic links with citizenship and equality. However, in spite of being considered a Fundamental Human Right, pursuant to Victor van Oeyen, Paulo Lima and Graciela Selaimen: the mobilization for the defense of the right to communication is more difficult than any other mobilization for human rights. Communication is still seen as a less urgent issue – when it becomes considered – by governments and the civil society. The struggle for this right is still incipient and it is essential that all of the organizations of civil society and persons that are dedicated to the strengthening of citizenship – and not just those dedicated to media and communication issues – turn their attention and a portion of their efforts to ensure that the right to Communication is preserved.15 The way of communicating has altered, it has not ceased to exist. In Post-Modern times, communication is carried out through networks, and so one emphasizes the democratic and protagonist role of cyberactivism, an instrument that is typical of digital citizenship. We belong, we debate, we sympathize. The social network when done in an ethical, transparent and committed way can bring unparalleled advances to society. As proof of this, there is the cyberactivism of Institutes, Associations, Governments, States, Universities and organized civil society, which that by means of confluences promoted by social networks, enhance their agendas, generate information and provide faster results. And, thus, the importance of the right to communication remains clear, in the so-called “information age” or also known as “network society”, an era inherently marked by the fluidity, by the frenetic pace of social, political and economic changes, in which there is a need to think about the contemporary, the new institutional narratives and the development of strategies that bring together the various social actors with a view to the sensitivity for Human Rights subjects, both current and recurrent. Based on the new forms of communication, relevant issues have been raised bringing greater sensitivity to the participants of this new Ágora of the post-modern world, the social networks. The form of communicating and causing the problems and crises to be shared to invade the public spaces and move from the micro-narrative into the macro-narrative. There are various pages that share information, challenges and mobilize collaborative networks, ensuring visibility and effectiveness for debates which until then were restricted only to the demarcated categories. The debates that 15. OEYEN, Victor van; LIMA, Paulo & SALAIMEN, Graciela. A Campanha CRIS. Revista do Terceiro Setor. Extracted from the text “A Cúpula Mundial de 2003: a Sociedade Informacional”. São Paulo: RITS, June 2002. Available at: www.cmsi.org.br/cris.htm. Accessed on Sep 23rd, 2019. start in the social networks although well engineered can be a potential of mobilization for public-private partnerships, as well as promoting the Communicational Public Policies for digital innovation and education for the inclusion of new participants in the cyber partnership process aimed at the social mobilization of Human Rights themes. It is important to stress that, in 2010, Brazil organized a Parliamentary Inquiry Committee to address the issue of missing children and adolescents and among the proposals was highlighted the need to call together effective partnerships between the various social, public and private actors to ensure greater comprehensiveness in conducting the searches. Among the many proposals were the use of facial recognition software and the use of social and sharing networks to ensure a greater range of searches. In view of this scenario, it is worth stressing that one of the nuclei of action for the Mothers of the Sé Project is the dissemination and Ivanise Espiridião emphasizes that “the dissemination is our working tool. The greater it is, the greater the chances of finding [the missing]. Only as an example, I mention the case of a boy, with special needs, who disappeared 11 years ago. We found out that he ended up in an institution. And by means of dissemination, a social assistant decided to go to our website and managed to find his family”.16 Who should play the role of reframing the multiple changes, founding new paradigms of social interaction and human development? Our answer has always been, is and will be emphatically, the conjugation of a number of social actors, but particularly, the communication strategies that have major weight, we go to the main activities carried out by the Mothers of the Sé Association to raise the awareness of different audiences. 4.1 IMAGES, IMPRESSIONS, POSTERS, BALL ON THE FIELD: MULTIPLYING PARTNERSHIPS OF SOCIAL ENGAGEMENT Multiple forms. Different platforms. Simple ingredients. Union of purposes. Creative communication. Yes, all of the formulas contribute to the social engagement in the issue of missing people. The Mothers of the Sé are well aware of this and each year they appear with new proposals, agreements and partnerships that lead to the multiplication of the social actors involved in the issue. In this sense, one of their original initiatives and that remains today are the fortnightly meetings of relatives of missing persons that occur on 16. Available at http://www.saopaulo.sp.leg.br/blog/maes-da-se-renovam-esperancas-paraencontrar-criancas-desaparecidas/. Accessed on Dec 12th, 2019. the stairways of the Catedral da Sé, showing posters and photographs. This moment has a whole force of imagery and of solidarity, and became one of the first actions for raising awareness of the Mothers of the Sé. The initiative gains even more current and social multiplication outlines, with the Imprima project to assist, in an agreement with the FCB Brasil and HP that invite users of HP printers with ePrint technology, to print posters with images of the missing people in different places of the country. The consumers that wish to collaborate register for identification with the Mothers of the Sé Association. A communication action that multiplies the radius of action and increases the real chances of finding a missing person. For the creators of the project this translates into a way of putting the technology in favor of hope.17 There are also government projects that seek to give visibility to the theme and, as an example, we can mention the “Mothers of the Sé Exhibition” at the Largo Treze metro station with photos of missing children and persons, with the intention of increasing the visibility of the International Day of Missing Children, which occurs on the 25th of May. The exposed posters have some messages with tips on how to prevent cases of disappearance. The action is carried out by Via Mobilidade, the concessionaire responsible for the operation and maintenance of Line 5-Lilás of the São Paulo subway, in partnership with the Mothers of the Sé Association.18 Sensorially when speaking or thinking about soccer, wishes become present. The desire to obtain another title, another match, another goal. Upon each soccer match, there is energy that is contagious, a psychology of the crowds in their sounds, hymns and symbols sung upon each dribble. Why not take advantage of a moment like this to involve and engage? The spectacle cannot go further than entertaining, disseminating information, multiplying voices. Well, such initiatives have already been occurring with various social demands. The ball stage has been used to provide visibility for the social guidelines. And in relation to this, in the subject of disappearance, the partnerships established between the Mothers of the Sé and the Palmeiras and Santos teams deserve an applause. These, in their games, showed images of missing children on the screens, on the sleeves of the players’ uniforms and on the sponsors’ panel, in addition to records of the subject in real time of the match on their various pages on the social networks. 17. Available at https://saopaulosao.com.br. Accessed on Dec 21st, 2019. 18. Available at https://saopauloparacriancas.com.br/exposicao-maes-da-se-criancasdesaparecidas-estacao-largo-treze/ Accessed on Dec 10th, 2019. 4.2 WHEN FICTIONAL AND REAL NARRATIVES MEET: SOAP OPERAS COMMUNICATING SOCIAL DISCUSSIONS It is in this scenario that narrating stands out as an element of the communicational act of sharing by excellence, to the extent established by means of “telling a story” a “deliberate sharing of what is symbolic between the sender and receiver, with the ability to understand the implications of narrative elements, duly organized and with the potential for transforming the issuers and receivers into participants in the narrative environment, constructing spaces and producing other dimensions of Communication.19 The act of telling a story, beyond any consideration as a simple description, is linked to a considerable series of factors, of the questions of style for problems of text, of the narrative points of view of the visions of the world that are present in any narrative. More than this, the act of telling stories is linked, in most cases, to a feeling of sharing something with other persons; stories are told to each other; even when the narrative is made for itself, in the sense of a soliloquy, the facts narrated and the way of narrating are questioned in terms of remembering what others have told. The narrative act, at the moment of telling a story, seems to be the privileged moment to think and understand the communicational act as a form of meeting with the other.20 On account of their importance and complexity, the narratives are organized systematically as a branch of Human Sciences named Narratology, aimed epistemologically at studying the role of narrative systems in societies, seeking to understand the construction of the phenomena “intersubjectively their meanings through apprehension, representation and narrative expression of the reality”.21 Motta emphasizes that by means of the narrative statements “we are able to put things in relation to one another into an order and perspective, in a logical and chronological development. This is how we understand the majority of the things around the world”.22 Every narrative emerges from the pragmatic reality and, from such locus, it gathers elements to become transformed into a story that will be told. It begins in a way, transmutes, transforms, gains another dimension, 19. SÁ MARTINO, Luis Mauro. De um eu ao outro: narrativa, identidade e comunicação com a alteridade. Paragraph, Jan/Jun. 2016, v. 4, No. 1 page 44. Available at www.http://revistaseletronicas. fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/377/376. Accessed on Mar 22nd, 2018. 20. Ditto. 21. MOTTA, Luiz Gonzaga. Narratologia: análise da narrativa jornalística. Brasília: Casa das Musas, 2004, page 83. 22. Análise crítica da Narrativa. Brasília: Editora da UnB, 2013, page 2. new configurations from countless other construals that are added up. A new text is born, a new world, and thanks to the reader it creates wings and acquires full existence thanks to the new paradigms and communicative intentions.23 As for the importance and timelessness of the indispensable narratives are the contributions of Roland Barthes when assuring that: The narrative is present everywhere, in every society; there is not, anywhere, anyone who does not have a narrative; every class, every human group has their own narratives, and often these narratives are appreciated by people of a different culture, and even that are opposite: the narrative ridicules the good and bad literature: international, transhistorical, transcultural, the narrative is there, with life.24 The narrative, when put into words, articulates elements and expressions that provide for a story the reason to exist.25 Thus, the reconstruction of life takes place, as it is made up of “unstable, transitory, living matter, which constantly recomposes itself at this moment when it is announced”.26 It is also identified as a continuous process and a permanent transformation that is configured as of remembering and connecting instantly the past, present and future. It is also worth emphasizing that the narrative is a usual way of constructing meanings for the isolated experiences, such as in the search for social cohesion, when the establishment of the objects and events to which the public’s attention is directed, which is important for the formulation of identities in the micro and in the macrocosm leading to new meanings and construals of the world.27 Cognitive scientists have discovered that we transfer our experiences as well as those of others into narratives that help us build our individual and collective existence in an effective process of communication.28 The temporal dimensions and those that unite generations, of acquaintances 23. LEAL, B.S. Quando uma notícia é parte da história: as mídias informativas e a identidade narrativa. E-compós, Brasília, v.17, No. 3, 2014, pages 1-17. Available at: <http://www.compos.org.br/ seer/index.php/e-compos/article/view/1056/793>. Accessed on: Jan 31st, 2017. 24. Aula. São Paulo: Cultrix, 1979, page 23. 25. VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus, 1994, page 41. 26. DELORY-MOMBERGER, Christine. Formação e socialização: os ateliês biográficos de projeto. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, No. 2, pages 359- 371, May/Aug, 2006, page 362. 27. ROBICHAUD, D.; GIROUX, H.; TAYLOR, J. R. The metaconversation: the recursive property of language as a key of organizing. Academy of Management Review, Briarcliff Manoer, v. 29, No. 4, pages 617-634, Oct. 2004, page 619. 28. DENNING, S. The Leader’s Guide to Storytelling – Mastering the Art and Discipline of Business Narrative. San Francisco: Jossey-Bass, 2005, page 32. and strangers, of coexistence and non-coexistence, come to us organized by means of narratives, and for this process we create the rites and the rituals. In this way, to the narrative is given the role of protagonist in organizing chaos, uniting past and present, splitting in a systemic or even irregular way – by pauses and commas – characters, spaces, motifs, symbols and messages. Thus rites and rituals are organized by narratives and are confounded with the actual history of Humanity.29 Segalen emphasizes that the process of the rituals are continuous acts of recurrence of forms, structures and repetitions aiming at their actual strengthening, but that new experiences and new symbolic dimensions of language are gradually adding up.30 In the same sense, Chanlat highlights that the construal of the human universe is absolutely intrinsic to the idea of “a world of signs, images, metaphors, emblems, symbols, myths and allegories. Every human being and every human society have produced a representation of the world that confers on it a meaning”31 Here is a first construal: the inseparable relationship between narratives, rites and rituals. The relation can be translated as being Humanity’s very own history, i.e., we are the fruit and product of the first ways of narrating. We are historical subjects that are protagonists of narratives organizing chaos and fostering present rituals that will be launched in the future.32 It must be emphasized that the stories are constructed on a collaborative agreement and bring different points of view on the narrated facts, it is, therefore, a collective act, a sharing of perspectives, whether simultaneous or not and multiple. And so, the search for narratives of the closeness and affection are more than ever absolutely indispensable. And thus we bring for comparison the end of this topic the words of Italo Calvino claiming for the pressing need of return to the sensory narratives, bearing in mind that the next millennium carries with it the prefabrication of the images, we are in danger of losing a fundamental human capacity: the ability of focusing visions with closed eyes, to cause the creation of colors and forms of an alignment of black alphabetic characters over a white page, of thinking through images.33 And it is in this context of ritualistic narratives that the Brazilian soap operas reach high ratings, of audience both on national soil, as well as those 29. SEGALEN, Martine. Ritos e rituais contemporâneos. Rio Janeiro: FGV, 2002, page 31. 30. Ditto, page 117. 31. CHANLAT, Jean-François (org.) O Indivíduo na Organização. Vol. I and II. São Paulo: Atlas, 1996, page 43. 32. BRUNER, J. The Narrative Construction of Reality. Critical Inquiry, 1991, page 21. 33. CALVINO, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pages 107-108. that are exported and translated into a number of languages. The plots that develop into around 4 to 8 months of duration have major influence on society, for some only entertainment, for others they raise debates and questioning, it has been like this since the 60s, and for Figueiredo: With the daily entry of soap operas into the life of Brazilians, especially from the end of the 1960s, the debate on their social function becomes more intense [...], for some, just being broadcast by means of mass media is enough for the soap opera to be considered authoritarian and, necessarily, must be inserted in the concept of spectacle, being nothing more than entertainment, without proposing any production of knowledge and art. However, for others, television is a consumer good that has a democratic function, and some of its products, such as television drama, can indeed, in addition to being a spectacle, bring knowledge and reach an aesthetic quality.34 For Maria Immacolata Vassallo de Lopes, the soap operas were raised to the category of national narratives, and are an important communicative resource to present social issues, which, in a pedagogical way, implicitly or explicitly, can propose behavioral changes and, based on cultural representations, reshape citizenship.35 In the same sense, Valquíria John and Nilda Jacks reinforce that “by entering other media, by extrapolating the space of their own viewing time, the soap operas reached everyone, including those that do not watch (or say that they do not watch) soap operas. In this way, they contribute to the scheduling of social discussions”.36 Thus, such soap operas have been considered to be a social merchandising, as they mobilize social debates and generate a public opinion on national daily issues, and can be considered to be strategic resources for behavioral changes.37 Among the many soap operas with the profile of 34. FIGUEIREDO, Ana Maria C. Teledramaturgia brasileira: arte ou espetáculo. São Paulo: Paulus, 2003, page 81. 35. LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. Telenovela como recurso comunicativo. In: MATRIZes: sixmonthly magazine of the Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo, São Paulo: ECA/USP/Paulus, year 3, No. 1. pages 21-47, 2009. 36. JOHN, Valquíria; JACKS, Nilda. Telenovela e Agendamento da Mídia: como os conteúdos das telenovelas da Rede Globo pautam o jornalismo de revista. In: 1st World Congress on Ibero-American Communication. Annals. São Paulo – SP: ECA, 2011, page 3. 37. There is an interesting relationship between social merchandising in the light of the so-called Theory of Scheduling or Agenda Setting, proposed by authors Maxwell McCombs and Donald Shaw in the 1970s, showing that target audiences begin to put more emphasis on news broadcasted by the media, and in this way, it can both lead to important social debates, as well as serve as an instrument of power and manipulation. On the topic see “thematic scheduling constitutes a more comprehensive subject, starting from the communicational theory of the setting agenda. In the contemporary world, it is common knowledge that, if a fact does not appear portrayed in any way in the media, it did not happen. This being so, the mass communication media assumes a fundamental role in the propagation of facts, since they become a main source used by the population to obtain information. It is argued that the topics social merchandising, it is worth here mentioning the soap opera named “Explode Coração” by the Rede Globo de Televisão, which between 1995 and 1996 brought into debate the issue of disappearance of a child. Fictional and real narratives were designed based on the lenses of novelist Glória Perez38, one of the major Brazilian specialists in soap operas of this nature. It was based on the drama of the Mothers of Acari in Rio de Janeiro, that the subject reached the screens during prime time. It was not enough to entertain, it should mobilize and that is how Explode Coração presented to millions of Brazilians the topic of the disappearance and the pain of family members in the incessant search. Alterity in the feeling and social mobilization were the principal mottos of the soap opera. As a communicational resource, at the end of each episode, the fiction became reality, with the presentation of posters with images of missing persons. On March 9th, 1996, in a special episode, the showing of an image of a son sought by his mother for more than ten years, and to the surprise and exaltation of the social power of soap operas, six days later he was found. In total, 64 children were found.39 Explode Coração also has another social function, uniting the Ivanise and Vera recordings, which are the main protagonists of this scientific article, and caused the surge of the Mothers of the Sé Movement. scheduled by the major media are potentially liable to become subject-matter of an informal discussion among the public. In this context, the themes presented as being relevant by the media, commonly, became the target of the attention and of the concerns of the recipients of media messages. CZIZEWSKI, Claiton César. Falando sobre a telenovela: agendamento temático a partir da narrativa de ficção. In: XXXIII Brazilian Congress on Communication Sciences. Annals. Caxias do Sul-RS: UCS, 2010, page 2. 38. The performance of the author of the soap opera, Glória Perez, was fundamental for the representation of the disappearance. Glória Perez lived the drama of having her daughter, actress Daniella Perez, murdered in 1992 by actor Guilherme de Pádua and his wife, Paula Thomaz. At the time, the two actors worked on the soap opera De corpo e alma, which had been written by Glória Perez. After the close contact between Glória Perez and the movements of mothers during the soap opera Explode Coração, the author began to have the support of them and of other movements in her own struggle: the conviction of Guilherme de Pádua for aggravated homicide2, in a trial that took place in 1997. Among the actions of protest against the daughter’s murderers, there was organization, prior to the judgement, of a walk along Avenida Atlântica, a mass, pamphlets and outdoors. The marketing campaign had Daniela’s face shown on it and the words: “what if it were your daughter? enough impunity”, having been coordinated by the Brazilian Center for Defense of the Rights of Children and Adolescents and sponsored by businesspeople. The walk was attended by the Mothers of Cinelândia, the Mothers of Acari, the Association of Victims of Violence, the Movement for Life, the fans and actors of soap operas and Human Rights entities. LEAL, Eduardo Martinelli. “At that time, you didn’t hear about missing people”: family and maternity in the militancy of the disappearance of people in Brazil. Mana, Rio de Janeiro, v. 25, No. 3, pages 605-634, December 2019. Available at <http://www.scielo.br>. Accessed on Jan 31st, 2020. 39. XAVIER, Nilson. Almanaque da telenovela brasileira. São Paulo: Panda Books, 2007, page 198. 4.3 CYBERACTIVISM These are times of acceleration. Times to revisit old practices. Times of hyperconnections. Times of algorithms. Times to rethink the social movements. Times of new forms of sociability.40 Times of digital citizenship. By means of the social networks there is sharing of reports of disappearances, and from there, there is a communion of social actors, called for action, united in the so-called “network society” that begins to act in solidarity with police and judicial bodies. From a practical point of view, actions and communications are faster; from the psychological point of view, the feeling of being welcomed and of belonging to a network that shares values and purposes gives rise to new forms of sociability. Social networks such as websites, groups, Facebook and Instagram become powers of action and generate new forms of solidarity. Currently, the 4.0 Industry can be understood as a system of automation and information technology aimed at ensuring greater speed in the processes, with transparency of communications and of data, of celerity, of the search for information transparency. The hyperconnectivity associated with the data stored in management software in the cloud can improve the communication acceleration, as well as the strengthening of the Big Data with the information explosion, it will bring mechanisms from algorithms that are responsible for the identification of various processes in a faster, systemized and transparent way. In this new model there no longer exist any territorial obstacles41, the interactions are global, real and instantaneous and the cyberactivism is understood to be a new way of connecting people, connecting worlds and making communication, and can contribute to a greater social cohesion, solidarity and the spread of axes of common discussions and debates. 40. It is worth stressing that “when a computer network connects people or organizations, it is a social network. In the same way that a computer network is a combination of machines connected by cables, a social network is a set of people (or organizations or other social entities) connected by social relationships, such as friendships, working together, or exchanging information. GARTON, L.; HARTHORNTHWAITE, C.; WELLMAN, B. Studying Online Social Networks. Journal of Computer Mediated Communication, v. 3, issue 1 (1997). Available at: <http://www. ascusc.org/jcmc/vol3/issue1/garton.html.> Accessed on: Sep 6th, 2019, page 75. 41. On the topic, see “Each change in media alters our perception of temporal space, reaching nowadays an experience of a sense of real time, immediate, “live”, and the abolition of physicalgeographic space. The information society is marked by the ubiquity and instantaneity, coming from the widespread connectivity. Thus we enter the WYSIWYG society (What You See Is What You Get)”. LEMOS, André; Cunha, Paulo (orgs). Olhares sobre a Cibercultura. Sulina, Porto Alegre, 2003; pages 11-23. Thus, many of the communication activities conducted today by the Mothers of the Sé are hyperconnected to the digital world. We bring as an example the so-called #10yearchallenge, which invaded social networks in January 2019, inviting people to post their own photos with 10 years of difference. Data show that more than 8 million users took part in the challenge, generating many debates and controversies about its real reason for existing, and as assumptions raised: spontaneous updating of data, business monitoring, invasion of privacy, storage of information, among others. However, for the Mothers of the Sé, the challenge became a major opportunity for engagement and cyberactivism, thus launching on its platform the proposal for sharing images based on the hashtag, “#XXyearchallenge: the challenge that helps to find missing people.” For Ivanise, a representative of Mothers of the Sé, the technology can be used to alleviate pain and “we find in this movement a major opportunity to mobilize people in favor of such a relevant cause. The digital sharing further signifies the reach of our message, giving rise to a greater chance for missing people to be found by their family members”.42 In the same sense, it is important to highlight the “Amor Sem Distância” campaign with the support of the São Paulo City Council to post photos of missing people in the social networks. It concerns an initiative of the Portal and TV Câmara, together with the Mothers of the Sé NGO, in the ethical, transparent and protagonist sharing in the search for information on missing persons, and which may have even greater sharing based on the hashtag #amorsemdistancia. Another extremely important partnership of Mothers of the Sé is with Microsoft that announced in 2019 the creation of a facial recognition application, developed by Mult-Connect, to contribute in a potential way in the search for missing persons and establishes itself as one of the actions of the global corporate social responsibility program called Microsoft AI For Humanitarian Action, which aims at the supply of instruments, subsidies for training people to engage in humanitarian issues. The artificial intelligence in the state-of-the-art technology shall be used for the data intercommunication, its sufficing for this that the user forward a photograph of the missing person to the application and the latter shall seek in the NGO database any possible compatibilities of description of the physical characteristics, among them, the color of the skin, hair and eyes. For Brad Smith, president of Microsoft, “the partnership between Mothers of the Sé and Microsoft is a powerful example of how we can apply technology 42. Available at https://www.hypeness.com.br/2019/02/xxyearchallenge-maes-da-se-promovedesafio-para-ajudar-a-encontrar-pessoas-desaparecidas/ Accessed on Dec 20th, 2019. to help resolve major challenges in our society” he highlighted in his presentation at the Artificial Intelligence in Digital Transformation event, in the Ministry of Economy, in Brasília.43 FINAL CONSIDERATIONS Pain that turns into a struggle. Architectural solidarity. Voices that multiply. The re-signification of a loss causes the surging of a movement of solidarity in the search for a missing person. Where are they? Who to ask? How to search? These are everyday questions of people that are facing the reality of disappearance. A reality that goes beyond the yards, neighborhoods, cities or countries. A transnational reality with countless signs of human trafficking. The present article seeks to present the narrative of the existence of an Association in São Paulo, which appears to collaborate with answers to the questions asked above. Unfinished mourning. Potentiated pain in action. At the end of the narrative that was brought it is possible to emphasize the need to create constant public policies that promote the accessibility in the data, the communicability between bodies, the fight against crime. It is in the face of informational gaps and the absences that the criminal practice continues. And thus, as an Academy, the intention in this article is of giving visibility and demonstrating the importance of debate and of action in this theme, making the invisible become visible. It is what Mothers of the Sé has done. It is all we all should do. REFERENCES ALMEIDA FILHO, Agassiz & MELGARÉ, Plínio. Dignidade da pessoa humana: fundamentos e critérios interpretativos. São Paulo: Malheiros, 2010. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 43. Available at https://canaltech.com.br/inteligencia-artificial/microsoft-e-maes-da-se-lancaraoapp-para-ajudar-na-busca-por-desaparecidos-139795/ Accessed on Oct 13th, 2019. BORMANN, E. G. Symbolic Convergence Theory: A Communication Formulation. Journal of Communication, 1985. BOSS, P. Ambiguous loss. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1999. BRUNER, J. The Narrative Construction of Reality. 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