Marx na Europa
do século XX
Marx in 20th Century Europe
Raquel Varela*
Roberto della Santa Barros**
Resumo – Com muita frequência é possível encontrar análises sobre a
história europeia do séc. XX que não passam de justificações ideológicas
do tempo presente, seja a partir de pressupostos a orbitar Washington ou
premissas irradiadas desde Moscou, isso para não mencionar as teses
pós-modernas ou neoconservadoras. Argumentamos nesse artigo que,
para retomar a iniciativa e a luta pela autodeterminação dos trabalhadores
e povos europeus, é preciso, também, uma nova escrita da história europeia recente. Nada disso é possível sem levar em conta a tradição intelectual e o movimento político que tem lugar a partir do legado de Karl
Marx.
Palavras-chave: Marx; Europa; história social; autodeterminação.
Abstract – It is often possible to find analyses of 20th-century European
history that are no more than ideological justifications of the present,
whether asserting assumptions from Washington or premises from
Moscow, not to mention postmodern or neoconservative theses. We argue
in this article that in order to resume the initiative and struggle for the selfdetermination of European workers and peoples, a new writing of recent
European history is also required. None of this is possible without taking
into account the intellectual tradition and the political movement that
emerged from the legacy of Karl Marx.
Keywords: Marx; Europe; social history; self-determination.
..............................................................................
* Starting Grant da Fundação para a Ciência e Tecnologia na Universidade Nova de Lisboa. IHC e Fellow do International Institute for Social History (Amsterdam). Professora-visitante internacional da Universidade Federal
Fluminense (UFF). Correspondência: Rua Cândido dos Reis nº 2, 1º esquerdo. Paço de Arcos – Portugal. CP:
2770-025. Email: <raquel_cardeira_varela@yahoo.co.uk>.
** Bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado CAPES/PNPD/MEC-Brasil. Professor em Teoria Social na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e
Desenvolvimento Regional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Estágio de Pós-Doutoramento em História
Global do Trabalho na Universidade Nova de Lisboa (UNL). Correspondência: Praça Doutor Nilo Peçanha, Nº 3,
304 – Edifício Jardim – Bairro do Ingá, Niterói – RJ. CEP 24210-260. Email: <betto.dellasanta@ufrj.br>.
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Fraco rei faz fraca a forte gente
(Luís de Camões)
A história não faz nada, “não possui uma riqueza imensa”, “não dá combates”, é o
homem, o homem real e vivo, quem faz tudo isso e realiza os combates, estejamos
seguros de que não é a história que se serve do homem como de um meio para atingir – como se ela fosse um personagem em particular – a seus próprios fins; ela não
é mais que a atividade do homem que persegue seus objetivos.
(Friedrich Engels)
O “fim” do “fim da história”
Os anos 1990 foram especialmente duros quando decretou-se “
quase sem adversários intelectuais “ que o que tivera fim em 1989 não fora
a ditadura estalinista mas, sobretudo, o próprio socialismo. O fim da Guerra
Fria propiciou uma oportunidade para que o capitalismo se pronunciasse
em nome próprio “ o neoliberalismo. Uma ideologia que anunciava a chegada do ponto final ao devir social, construído sobre as premissas do mercado
livre, para além do qual seria impossível imaginar melhorias substanciais.
Francis Fukuyama (1999) deu a expressão teórica mais ampla e ambiciosa,
chamando-lhe “o fim da história”, enquanto que noutras expressões – mais
vagas e populares – também se difundiu a mesma mensagem: o capitalismo
é o destino histórico e universal, permanente e inevitável, do gênero humano.
Fora deste “destino pleno” não existiria alternativa.
A morte das ideologias – e o chamado “fim da história” – é de fato
a consagração pública da ideologia teleológica de que o homem não é
protagonista da sua própria história. Uma natureza a-histórica, um destino
assegurado; o futuro seria, então, ineludível. Para fazer vingar esta ideologia
tem sido construída uma memória do passado europeu que não passa pelo
laboratório da história. História não é memória.
Entre as teses dominantes – as quais hoje a ciência histórica refutou
com amplos estudos – está a do nazismo como obra de um louco, ocultando
que o regime nazi foi o corolário da explosão de todo um sistema econômicosocial, o capitalismo, na crise de 1929. Outro tema constante, que apela à
resignação social, insiste que todas as tentativas emancipatórias do século
XX redundariam em sociedades totalitárias, a começar pela própria revolução
social e política de Outubro de 1917. A ideia de que a União Europeia seria
a construtora do Estado Social europeu é outro dos mitos do senso comum
ilustrado. Finalmente, a hipótese de que os direitos sociais europeus findaram,
com o neoliberalismo, por causa da queda da URSS, em 1989-1991, é outro
mito amplamente disseminado1.
Todas estas hipóteses esbarram de frente com os fatos e com a
cronologia. Mas a cronologia é firme, o tempo tem uma força objetiva. Daí
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1
Isto é exposto, por exemplo, no artigo da celebração do centenário da Revolução Russa escrito por Jerónimo de
Sousa (2017), líder do PCP, um dos maiores partidos comunistas da Europa Ocidental.
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que as teses filosóficas pós-modernas “ que os historiadores tanto abraçaram
(EAGLETON, 1998; ANDERSON, 2005) “ substituem fatos e interpretações
por narrativas intemporais e relativistas. Temem enfrentar-se com o fardo
do tempo histórico.
O desemprego nos EUA e na Europa só foi revertido em 19381941, quando começou a militarização da sociedade e se transformaram
desempregados em soldados, no início da guerra. Não foram as medidas
keynesianas que reverteram a crise de 1929, mas a proletarização massiva
de largos setores camponeses (com a coletivização forçada na URSS ou o
colapso bancário dos pequenos camponeses nos EUA, retratados em As
vinhas da ira, de Steinbeck “ 2016) e, mais tarde, a destruição da propriedade
a uma escala inédita na história da humanidade – foi o apocalipse da II
Guerra Mundial, com os seus, os nossos, 80 milhões de mortos. Foi a maior
derrota da humanidade.
Os campos de concentração nazi eram campos de trabalho forçado. Arbeit Macht Frei (o trabalho liberta) era a inscrição nos portões dos
campos, dos quais não era possível sair (tirando fugas heróicas). O trabalho
forçado, à escada de milhões entre 1939 e 1945, em centenas de campos e
subcampos, inseridos na cadeira produtiva de algumas das maiores empresas
da indústria alemã, esteve no centro do projeto do Estado nazi. Muitas destas
indústrias reconheceram publicamente a sua cumplicidade com o nazi-fascismo, reconverteram-se no pós-1945 e são hoje parte do pujante motor
econômico alemão, ainda que reestruturadas na produção: da produção de
material de guerra, tanques e bombas, passaram para a produção de setores
químicos/agrícolas, elétricos, automotivos, entre outros. Dessas indústrias,
são exemplos Thyssen, IG Farben (AGFA, BASF, Bayer, Hoechst) e Volkswagen, só para citar as mais conhecidas entre centenas. É importante assinalar
que mesmo os bombardeamentos aliados pouparam as fábricas, enquanto
dizimaram cidades inteiras. Salvaram a maioria dos meios de produção,
enquanto infligiam uma derrota incondicional aos impérios alemão e japonês, matando milhões de civis. A leste, na Rússia, vigorava um regime de
trabalho forçado, embora sem o recurso à industrialização da morte em câmaras de gás (específica do nazismo na guerra), o Gulag (CARVERI, 1997;
BRASS, 2011)..
O Estado Social europeu nasce robusto em 1945-1947, dez anos
antes da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Ceca) (e depois Comunidade Econômica Europeia – CEE “ e da União Europeia “ UE). A UE
sedimenta-se só nos anos 1980, depois de várias crises. Quando se consolida
a UE, o Estado Social já havia começado a entrar em crise, embora paulatina.
A UE vai ter um papel determinante, através do fundo social europeu e das
diretivas comunitárias, em substituir o Estado Social (políticas universais
com base em taxação progressiva) pela Assistência Social (políticas focalizadas nos desempregados e pobres com base em transferência de renda
de trabalhadores de setores médios para trabalhadores pobres).
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As grandes tentativas emancipatórias do século XX na Europa, a
Revolução Russa, a Revolução Espanhola, a resistência ao nazismo, a Revolta
Húngara, o Maio de 1968 ou a Primavera de Praga e a Revolução dos Cravos,
para citar apenas alguns dos momentos em que o espectro da revolução,
uma e outra vez, assombrou o velho continente, foram esmagadas por contrarrevoluções brutais, ou derrotadas por amplas concessões, por via de reformas, que os Estados e as classes dirigentes foram forçados a concretizar.
As contrarrevoluções não implicaram só a cooptação e apoio de
dirigentes sindicais e políticos dos trabalhadores, de jornalistas e intelectuais
que “mudaram de lado”. Entretanto, também envolveram métodos de guerra
civil contra grande parte dos dirigentes destes processos, perseguindo-os e
assassinando-os de forma desumana no final dos anos 1920 na Rússia, na
Espanha republicana, na Alemanha nazi, em Viena, em Budapeste, na resistência grega depois da guerra, sob os tanques soviéticos de novo na Hungria, em 1956, ou na Checoslováquia, em 1968.
A hipótese de que os movimentos de emancipação caminhariam
inelutavelmente para o totalitarismo esconde a morte de milhares de dirigentes que lutaram coerentemente por essa emancipação contra o totalitarismo e que por ela morreram. A eles devemos, em primeiro lugar, o melhor que o continente europeu nos deixou. Se, como disse Camões, “um
fraco rei faz fraca a forte gente”, é preciso dizer que esses dirigentes fortes
com projetos de liberdade e igualdade souberam elevar e organizar as grandes revoltas sociais europeias, impondo limites claros ao caos competitivo
do modo de produção capitalista, conquistando o pleno emprego, saúde
protegida, educação assegurada, velhice cuidada, independentemente da
origem social. Em outras palavras, é a ideia socialista originária.
Seria simplista dizer que o projeto moderno da civilização foi imposto apenas pelo mundo do trabalho. Isso ignora os passos em frente dados pelo
próprio desenvolvimento do capitalismo. Mas não o é afirmar que a política da
emancipação – e estamos no bicentenário do nascimento de Karl Marx (18181883) – foi forjada por essa tradição histórica que moldou os dirigentes que dedicaram as suas vidas a encurtar o caminho que separa quem governa de quem é
governado, quem sabe e quem faz, quem pensa e quem executa, quem escreve
e quem lê (ou não lê). Muitos foram mestres sem discípulos, mas portadores
de um romantismo revolucionário que im-pulsionou a humanidade para melhor.
É um erro historiográfico “ embora comum “ comparar conjunturas
que não são comparáveis. O reformismo político da Alemanha de Weimar
deu-se na pujança de acumulação pós-1919 – os “loucos anos 1920”. O reformismo político francês de 1936 apoiou-se na existência de colônias e
nos mercados privilegiados que estas proporcionavam. As reformas do Estado
Social do pós-1945 foram erguidas estando os trabalhadores europeus armados (milhões de soldados e partisans) e com uma economia de guerra,
seguida dos lucros maciços permitidos pelas taxas de crescimento da reconstrução do pós-guerra.
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O Estado Social foi abraçado pela social-democracia e pelo movimento comunista fiel à URSS no Ocidente, mas não nasceu de um consenso. Nasceu do apocalipse da II Guerra. A essência deste pacto foi a
segurança no emprego, por outras palavras, a possibilidade de os trabalhadores assim regularem o preço da força de trabalho – associada a esta
vem o Estado Providência e seus direitos conexos.
O fim do pacto social europeu (1984-1987)
O pacto social europeu terminou entre 1984 e 1987, antes da
Queda do Muro de Berlim. As negociações para o fim do pacto social (nas
relações de trabalho da Europa) deram-se com a anuência das grandes centrais sindicais europeias e dos partidos de esquerda, social-democratas e
comunistas, antes de 1989. Acossados pela deslocalização, tendo como
alternativa uma luta férrea que iria desestabilizar a ordem europeia e os
compromissos que estes tinham de paz social com as classes dirigentes
europeias, preferiram então manter os direitos para os que vinham do pacto,
aceitando para os seus filhos a precariedade.
A hipótese de que a Queda do Muro de Berlim em 1989 e o fim
da URSS em 1991 teriam aberto as portas à flexibilização laboral e à crise
do Estado Social vem culpabilizar mais uma vez a Rússia pelos destinos da
Europa. Desta vez, paradoxalmente, segundo esta tese, a responsabilidade
da URSS é ter deixado de existir. É uma tese falsa porque desresponsabiliza
o papel dos partidos e sindicatos de esquerda na Europa e confunde, mais
uma vez, as cronologias na tentativa de sustentá-la.
É também uma tese, vamos dizê-lo eufemisticamente, indelicada
para com o passado. Na verdade, a Europa Ocidental desenvolvida tem
uma dívida, ainda por restituir, para com a Rússia atrasada de 1917 – eles
ousaram fazer aí a primeira revolução num país. E, imediatamente, os ecos
desta revolução chegaram à burguesia europeia que, por temor da repetição
de novos outubros e sob pressão da vaga de entusiasmo que a revolução
dos sovietes tinha suscitado em toda a Europa e no mundo, aceitou elevar as
condições de dignidade mínimas do mundo dos trabalhadores.
É depois da Revolução Russa que pela primeira vez o horário de
trabalho (junto com a intensificação laboral na Europa) diminui no século
XX de forma constante e significativa (BASSO, 2003). Sem a Revolução Russa
não se compreende a rápida extensão do sufrágio universal em grande parte
dos países europeus. Os primeiros programas sociais na Europa devem-se à
Revolução de Outubro. Os europeus maravilharam-se com as vanguardas
artísticas representadas por um Maiakóvski ou um Eisenstein – a revolução
tinha dado o melhor à humanidade naqueles dias. Foi também a Rússia que
pagou o preço mais elevado do Estado Social Europeu – 20 a 30 milhões de
mortos na II Guerra Mundial.
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A social-democracia alemã – historicamente tão crítica do estalinismo “ recusou-se a assumir a sua participação na criação deste monstro,
a burocracia soviética. Rejeitou apoiar, em 1919, 1923 e na década de 1930,
a Revolução Russa, deixando-a isolada, atrasada, sem meios para fazer face à
dramática escassez. Portanto, foi inviabilizada a construção de uma sociedade
socialista que não poderia ser feita sem a abundância baseada na qualificação
da força de trabalho, em avanços científicos e técnicos significativos. O preço
a pagar pelo temor da revolução na Alemanha foi o quase extermínio do Partido
Social Democrata da Alemanha (SPD), nos anos 1930, com a ascensão do nazismo.
A crise atual – que é econômica, política e cultural, além de profunda “ deve-se, entre outros fatores, ao colapso moral da social-democracia,
com a “terceira via” e o abraço das políticas neoliberais, iniciado na segunda
metade dos anos 1980. Isso porque, ao mesmo tempo que Margaret Thatcher
mandava a polícia avançar com violência sobre os mineiros, as grandes
centrais sindicais dos principais países europeus, dirigidas por partidos socialdemocratas e comunistas, negociavam a reestruturação produtiva, sem luta.
A tentativa de fazer face à queda tendencial da taxa de lucro a
seguir à crise de 1981-1984 levou a social-democracia a abdicar de si própria,
just in time, qual retorno dos anos 1930. Desse modo, criou-se um mercado de
trabalho europeu hipercompetitivo, inseguro e incerto, no qual os lucros estariam mais seguros ou, pelo menos, não tão à mercê do humor das crises cíclicas.
Os partidos comunistas, por sua vez, carpem a queda de um
mundo que nunca existiu – a URSS não era um Estado dos trabalhadores, já
que se havia tornado uma nova forma de Estado contra os trabalhadores. A
ideologia do assistencialismo, das pré-reformas, do colchão social focalizado
e da desistência da luta pelo direito ao trabalho por meio da redução da jornada laboral sem redução salarial nasceu antes da Queda do Muro, pela
aceitação da chantagem da deslocalização. Trocaram, como programa político, o direito ao trabalho pelo direito ao subsídio de desemprego.
Os anos 1990 adensaram um caminho que tinha sido traçado no
meio da década de 1980, em sede de Concertação Social, em praticamente
todos os países europeus, com exceção – e mesmo assim só parcialmente –
da França, onde foi mais tardio (justamente pelo impacto que o Maio de
1968 teve na constituição de sindicatos e partidos radicais, retardando a
aplicação das medidas neoliberais e assistenciais, mantendo um forte Estado
Social e emprego protegido).
Trotsky recusou ser Estaline
Todas as investigações realizadas nas últimas duas décadas a partir
de arquivos russos – sublinhamos, todas “ comprovam um corte no regime
soviético em 1927/1928. É nesse ano que se dá a coletivização forçada; a
introdução massiva do trabalho forçado a uma escala de centenas de milhares
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até depois da guerra; e o início da militarização da sociedade. Além disso,
é nesse período que, nas fábricas, a comissão de trabalhadores deixa de ser
o órgão mais importante, papel que passa a ser desempenhado pelo chefe
da polícia política; já as mulheres, que deram, com a Revolução Russa, o
maior salto de sempre no que se refere à emancipação, passam a ser de
novo escravas do lar e da fábrica, com medidas como a reintrodução da
proibição do aborto e o encerramento de creches para controlar a escassez
de força de trabalho existente e previsível.
Ademais, Lenine (2015) é o homem que deixa explícito no seu
testamento que Estaline não deveria suceder-lhe, por ser bruto, desleal e não
saber o que fazer com demasiado “poder concentrado” em si. Entretanto, o
partido de Lenine e Trotsky foi fuzilado “na brutal expressão de Victor Serge
(1975).
A URSS tinha, no final dos anos 1920, uma produção efetiva inferior à de 1914. Estava arrasada pela I Guerra, pela guerra civil e pelo isolamento. Não havia nem domínio científico, nem quadros formados, nem
tecnologia e nem máquinas para produzir muito para todos. A solução seria,
pois, uma revolução na Alemanha e nos países onde havia desenvolvimento
para produzir em abundância, ou uma ditadura de uma minoria – a burocracia do Partido. A burocracia passou a controlar os recursos, vivendo
com privilégios (magistralmente caricaturados por George Orwell em O
triunfo dos porcos), embora a maioria do povo continuasse a viver com
escassez de bens essenciais (PELIKÁN, 1972; TICKTIN, 1973).
Estava-se, portanto, muito longe da miséria da servitude czarista,
mas cada vez mais distante do socialismo. Isso porque, para que uma casta
se apropriasse dos recursos limitados, impôs uma férrea ditadura:
o [...] revisionismo não pode ser encarado como uma mera ‘moda académica’, sendo antes fruto de um contexto sócio histórico determinado.
Conforme aponta Jim Wolfreys, não é coincidência que alguns dos
intelectuais que mais produziram contributos teóricos para a empreitada
revisionista (os novos filósofos) sejam caracterizados pela decepção da
geração de Maio de 68 com o potencial transformador da política. (MONTEIRO, 2015, p. 25).
A visão da Revolução Russa “totalitária” confunde governos, regimes e Estados – é um erro crasso. Ela é subsidiária da filosofia de Ana
Arendt (2006) e de muitas interpretações simplificadas da sua obra. Assumem
(corretamente) que entre Estaline e Hitler há uma grande semelhança nos
regimes (ditadura), mas ocultam que entre Hitler e as democracias liberais
há uma identidade do Estado (capitalista). (DEMIER, 2013).
As sementes da ditadura estalinista estavam tão presentes como
as sementes da emancipação no bolchevismo. A rigor, na história, há sementes em todo o lado e de todo o tipo – germinam onde há solos férteis, e
só aí passam de pequenos grãos a um dominante modelo social.
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Trotsky não foi Estaline porque recusou sê-lo (DEUTSHCER, 2005).
Recusou dirigir o “seu” Exército Vermelho contra a burocracia emergente,
porque não esteve disponível para dirigir um processo que estava fracassado
internamente; sem leite não há socialismo, e, na URSS, não havia leite
(TROTSKY, 1976, p. 343). O socialismo é a abundância, mas a URSS era a
escassez. A chegada ao poder de Estaline não é resultado da revolução,
mas da sua derrota.
Trotsky preferiu, mesmo exilado num “planeta sem passaporte” “
na expressão de André Breton (1985), já que todas as democracias-liberais
europeias recusaram o direito de exílio a ele, expulso da URSS “, assumir a
direção da Oposição de Esquerda. Durante 20 anos foi perseguido, até ser
assassinado no México, em 1940, data em que a maioria dos dirigentes
bolcheviques e altos quadros do Exército Vermelho tinham sido também
mortos ou presos. Aliás, foi assassinado depois de todos os outros, não por
acaso, mas porque até aí ele era o bode expiatório dos processos de Moscovo,
cuja acusação primordial era, imagine-se, o crime de trotskismo. Dedicou a
sua vida a tentar fora da Rússia a revolução mundial. Falhou.
A forma absurda, quase risível, com que muitos dirigentes do Partido Bolchevique caminharam para as execuções em confissões falsas de
crimes que jamais cometeram, tudo para “salvar o partido” (DEUTSCHER,
2005), foi descrita de modo magistral pelo escritor Leonardo Padura (2017)
em O homem que gostava de cães, e pelo clássico romance sobre os processos de Moscovo, O zero e o infinito, de Artur Koestler (1979).
Para Victor Serge (2015), as hipóteses de vencer a ditadura burocrática depois dos anos 1930 eram pequenas, mas sem a luta da Oposição
de Esquerda “a derrota da revolução teria sido cem vezes mais desastrosa”.
Teria? Não sabemos. Sabemos que foi preciso derrotar – e aniquilar fisicamente “ a Oposição de Esquerda para erguer a ditadura soviética depois de
1928.
Nos países mais atrasados, onde a modernização capitalista é mais
tardia e já há um peso de um forte movimento operário, a tendência é de
que esta modernização seja realizada com o recurso a ditaduras – Rússia,
Itália, Alemanha, Portugal e Espanha. A Inglaterra, na sua glorious revolution
de 1688, e a França de 1789 abriram caminho à modernização dos seus
países, através das clássicas revoluções burguesas, quando o operariado
não era uma ameaça numérica (DEMIER, 2016, 2013). A partir de 1848 e
da Comuna de Paris, de 1871, os operários passaram a não poder ser usados
como tropa de choque das revoluções democráticas e burguesas porque,
ao colocarem-se em marcha, colocavam em marcha a sua própria revolução
social.
Essa é a tese da “revolução permanente” (MENDONÇA, 2014),
ou seja, da transformação da revolução democrática em social, da burguesa
em proletária, da política em social, da nacional em internacional, da econômica em cultural. Ela tem as suas origens primeiras em Marx e nas revoEM PAUTA, Rio de Janeiro _ 1o Semestre de 2018 - n. 41, v. 16, p. 93 - 106
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luções de 1848 (LOWY, 2010). Sintetizou-a assim o historiador Franz Mehring
(1974, 1976): Marx, a partir de 1848, fez notar que a burguesia aprendeu
que nunca mais se apoiaria no proletariado para resolver as suas contendas
com a aristocracia. Tinha mais temor do operariado (agora que a Revolução
Industrial era imparável) do que da aristocracia, de tal forma que preferiram
em muitos países deixar a revolução democrático-burguesa “inacabada”,
por assim dizer, mantendo por exemplo formas de regimes monárquicos
em grande parte dos países da Europa, que ainda hoje existem, acompanhados de formas de renda parasitária na grande propriedade. Tudo para
evitar revoluções sociais.
1917 veio confirmar que o medo não era um delírio. A época das
revoluções estava aberta, bem como a das mais mortíferas guerras de sempre
para travar as revoluções.
A União Europeia e a Europa
Os que não se “suicidaram” como classe em Wall Street, em 1929,
fizeram-no 16 anos depois, entre 1939-1945, do outro lado do Atlântico,
em Berlim. Os países mais poderosos do mundo não conseguiram evitar a
guerra. A rigor, não houve vencedores da II Guerra, porque depois de 80
milhões de mortos não há vencedores – há a barbárie.
O fim da guerra foi, porém, a construção de uma excentricidade
histórica no capitalismo: o pleno emprego e o Estado Social, erguidos em
troca de os trabalhadores transformados em soldados – terem entregue as
armas em 1945. A estrutura de direitos sociais na Europa nasce antes da
criação de qualquer mecanismo de unificação europeu ocidental, como a
Ceca e a CEE. Nasce do fato de a propriedade estar destruída, de a resistência
ter por composição social trabalhadores armados e das greves do pós-guerra.
Entretanto, a destruição do rival dos EUA, da França e da GrãBretanha ergueu uma nova relação internacional de Estados – a supremacia
norte-americana e o início da Guerra Fria. O Plano Marshall rapidamente
evolui para um plano de mútua ajuda, a resistência francesa ao rearmamento
alemão foi ultrapassada pela integração da Alemanha Federal na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Nato) e a ideia dos Estados Unidos
da Europa, na Declaração de Schumann, foi abandonada pela construção
de uma Europa com crescente integração econômica. Hoje, sem compreendermos esta subordinação da Europa aos EUA não entendemos a evolução
da União Europeia e também das suas contradições internas.
As últimas cinco décadas da história da Europa foram marcadas
também pelo inusitado crescimento do papel do Estado na economia, e
não pela ausência de intervenção do Estado na economia, como tantos argumentam. Houve mutações – profundas “ na intervenção estatal. Hoje há
muito mais e não menos Estado do que antes da II Guerra Mundial, seja
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através dos mecanismos de Concertação Social, seja através das políticas
sociais focalizadas, da Assistência Social, que cobrem o crescente desemprego e/ou baixos salários, seja através das alterações do quadro legal que
regulamenta a precarização laboral (a flexibilidade laboral é marcada por
formas de regulamentação estatal que a promovem, e não por ausência de
regulamentação do Estado), da dívida pública, da coleta de impostos, dos
subsídios às empresas privadas e da extensão do papel deste na formação e
manutenção da força de trabalho.
A crise dos regimes políticos europeus atuais expressa, entre outros
fatores, o quase constante aumento da abstenção eleitoral; por sua vez, a
crise do bipartidarismo, agravada em múltiplos aspectos depois de 2008,
não é uma crise de Estado. Pelo contrário, este se fortaleceu no curto prazo,
ganhando uma enorme influência sobre o tecido econômico, com a salvação
das instituições bancárias e financeiras. Mas a crise não pode ser compreendida fora do âmbito do crescimento do aumento de impostos concomitante à perda de serviços e da sua qualidade – o fim do “modelo social
europeu”. A médio prazo, este “fim do modelo social” vai transformar-se
numa crise do próprio Estado.
Uma e outra vez os intelectuais são por isso chamados a ir ao pretérito da sua função, como defende o filósofo Terry Eagleton (1991, p. 116)
ao falar acerca destes, da crítica e da esfera pública: “A crítica moderna
nasceu de uma luta contra o Estado absolutista; a menos que no seu futuro
se defina agora como uma luta contra o Estado burguês, é possível que não
lhe esteja reservado futuro algum”.
É difícil afirmar que a União Europeia, com uma brutal e crescente
desigualdade, não tenha criado também uma identidade forte, “de baixo
para cima”, nestas décadas de paz. O que os europeus farão com isso no futuro permanece uma incógnita. A Europa será socialista ou não será: a premissa da III Internacional não se verificou – a Europa foi e é capitalista,
além de estar, embora de uma forma híbrida, nova e em parte unida. Mas a
Europa será sem socialismo no futuro? Isto é, resistirá à competição dos
seus Estados e das empresas destes Estados num próximo choque cíclico,
numa próxima crise brutal? É altamente improvável que tudo permaneça
como está. E é preciso construir desde já a alternativa.
Falando ao Conselho Econômico Industrial do Ministério de Planejamento, na URSS, Trotsky (2010) afirmou em 1926:
Eu falei dos Estados Unidos Socialistas da Europa e do autogoverno dos
trabalhadores. Eu tinha em mente que a Europa, presa num beco sem saída,
não sobreviveria a velhas divisões internas. [...] Dissemos que, sob as
atuais divisões e fronteiras, a situação da Europa não tem esperanças
[...] A burguesia europeia sonha, timidamente, com a unificação, não por
quaisquer motivos disruptivos, mas simplesmente para sobreviver; não
para entrar em boa forma, mas para se manter viva. Esta é a ‘psicologia’
dos atuais governos europeus. E eu não vou ser otimista por eles.
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Do ponto de vista histórico, tem o mesmo valor – nulo – dizer que
a “barbárie é inevitável” ou o “socialismo é inevitável”. Ambos precisam
abdicar da história e viver num eterno presente. Ambos recusam-se a olhar
o passado. Ambos não se veem como projetos a disputar, no terreno social,
a consciência da população, mas como premissas garantidas num mundo
natural, sem homens, sem história. Ambos conduzem à inação.
Se é verdade que nas guerras destes 100 anos as burguesias nacionais chocaram-se umas com as outras, fruto da sua voragem insaciável
sobre os recursos, efetivamente, a história do século XX é também a história
das revoluções e da luta das burguesias ou classes dirigentes para impedilas e combatê-las. Este século, especialmente o último quartel, é também a
tentativa para destruir o sentido de classe dos trabalhadores, profaná-lo,
atomizá-lo.
Autodeterminação
As palavras de Leon Trotsky são, ao mesmo tempo, um dilema e
um desafio. O lugar efetivo do espectro da autodeterminação expandiu-se
notoriamente nos últimos 200 anos. O propósito do materialismo histórico
tem sido, desde então, precisamente o de fornecer a mulheres e homens os
meios efetivos através dos quais possam exercer uma autêntica autodeterminação coletiva, pela primeira vez na história, e decidir o destino de suas
próprias vidas. Não é outro o objetivo autodeclarado da revolução socialista
mundial – isto é, na linguagem clássica da clareza e da urgência da prosa
de Karl Marx – o que é “a transição do reino da necessidade para o reino da
liberdade”.
Assistimos hoje ao que a intelectual norte-americana Elen Wood
(1997) chamou o “recuo dos intelectuais”, que abdicaram de pensar livremente e de serem um contrapoder ao Estado, ao poder dominante. Renunciaram à crítica, com contundência, ao modelo econômico e social em
que vivemos, deixaram de perguntar quem produz, o que produz, para
quem e como:
Vivemos tempos curiosos. Justamente quando os intelectuais de esquerda
no Ocidente têm a rara oportunidade de fazer algo útil, se não realmente
histórico, eles – ou grande porção deles – estão em pleno recuo. Justamente quando reformadores na União Soviética e no Leste Europeu procuram no capitalismo ocidental paradigmas de sucessos económicos e
políticos, muitos de nós parecemos abdicar do papel tradicional da
esquerda ocidental como crítica do capitalismo. Justamente quando mais
do que nunca precisamos de um Karl Marx que revele o funcionamento
interno do sistema capitalista, ou de um Friedrich Engels que exponha a
feia realidade ‘no chão’, o que temos é um exército de ‘pós-marxistas’
cuja principal função é, aparentemente, afastar conceitualmente o problema do capitalismo. (WOOD, 2016).
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Temos pela frente desafios colossais como trabalhadores do
mundo, uma classe hoje tão diversa e heterogênea, entre o trabalho manual
e o intelectual, entre o centro e a periferia, atravessada por questões tão
complexas como diferenças salariais, de acesso à cultura, de gênero, de etnias, de línguas, de linguagens etc. Porém, comum neste sentido primordial
é a classe que vive-do-trabalho.
O desafio hoje é assumirmos que temos responsabilidades históricas sobre os destinos da Europa, enquanto ideia central de fraternidade
entre povos. Isso implica uma luta “indissociável“ na defesa da liberdade e
da igualdade, do socialismo. Na URSS não havia liberdade e isso causou
estagnação econômica. Entretanto, a insegurança no emprego, que hoje
domina os Estados europeus, ainda que em regimes democráticos, não trará
nada à Europa que não seja também a estagnação econômica, a queda na
produção e, no limite, ainda que cíclica, a escassez da força de trabalho.
Temos responsabilidade de exigir a liberdade efetiva, em que os
direitos sociais tenham a dignidade dos direitos políticos; em que o direito
ao emprego, como garantia de sobrevivência e direito à dignidade de viver
do trabalho, e não da assistência social, seja acarinhado com a determinação
com que é hoje protegido o direito ao voto. Igualdade real para todos, que
permita dar segurança material para que as diferenças sejam respeitadas e
floresçam a diversidade, a arte, a criação, as relações humanas densas. Acreditamos que encontramos no passado algumas respostas para estes desafios.
A história não se repete. Mas ensina-nos. Muito. Do seu desconhecimento
nada de bom pode brotar.
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Recebido em 18 de junho de 2018.
Aceito para publicação em 24 de junho de 2018.
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