Falando de crime: direito e violência em canções de rap1
Thiago Cazarim2
cazarim.t@gmail.com
Mas triste é ver que, enquanto o mundo desaba sobre mim
Hienas ri achando que isso foi pouco pra mim
Mal sabem que eu já nasci com a marca do vilão,
programado pra matar e morrer na missão
Eu sou amante do proibido, do perigo, da contramão
Mato e morro se for preciso, mas também choro de emoção 3,4
**********
1. “Representa”
Boa tarde. Coloco-me na presença de vocês, hoje, não como professor
ministrando uma aula, mas como pesquisador que tem tentado elaborar reflexões sobre
uma questão que, creio, mesmo guiando várias pesquisas sobre o movimento hip-hop e o
rap enquanto gênero musical, ainda não recebeu um tratamento sistemático, seja pelos
estudos culturais, seja pela musicologia ou mesmo pelas ciências humanas. Trago aqui,
mais que saberes já estabelecidos, inquietações e interrogações que tenho feito nos
últimos três anos durante meu doutoramento no curso de Performances Culturais da
Universidade Federal de Goiás. Todo o léxico que trago de início – meus ouvintes já
devem estar suspeitando – remete a um filosofar. Ao falar em “reflexões”, “questão”,
“inquietações e interrogações”, já me situo enquanto sujeito que se depara com um
problema filosófico presente na cultura hip-hop e manifesto recorrentemente, ainda que
de forma implícita, em práticas, discursos, polêmicas e na estética do rap.
A problemática filosófica que tentarei introduzir surgiu tardiamente em meu
atual percurso de pesquisa. Durante mais de dois anos, minha tese foi se desenvolvendo
como tentativa de conciliar discussões sobre a política e a estética do rap, especialmente
a partir de tensões práticas e teóricas em torno da ideia de “representação”. Este termo,
mais que comum entre rappers, é bastante significativo de como músicos e audiências
entendem um aspecto crucial da definição simultânea do rap como gênero musical e
1
Minicurso realizado no IV Seminário do NUPEFIL/III Encontro de Filosofia do IFG, em 06 de novembro
de 2018, às 16:30h, no Auditório Julieta Passos do Instituto Federal de Goiás (Campus Goiânia).
2
Professor do Instituto Federal de Goiás. Bacharel em Música, Mestre em Filosofia e doutorando em
Performances Culturais pela Universidade Federal de Goiás.
3
A286. Minha filosofia. 2017. 3’50”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ZlzVWehKK4&feature=youtu.be>. Acesso em: 13 dez. 2018.
4
No dia da apresentação, optei por tocar os trechos cujas letras transcrevo aqui. Dessa forma, minha fala
era emoldurada e entremeada pelas “falas do crime” dos rappers, e as deles pela minha.
1
instrumento político. Quando dizem que uma canção ou artista “representa”, têm em
mente não apenas o sentido descritivo-denotativo de uma narrativa que permite uma
conexão entre formas e conteúdos ficcionais, de um lado, e correlatos reais, de outro. Se
uma canção ou rapper “representa”, isso significa também que há uma relação de
substituição ou permuta, ou seja, uma relação pela qual um sujeito assume em si, por meio
de seu trabalho artístico, os clamores e expectativas de um número considerável de outros
sujeitos. Assim, quando o rap “representa”, ele está fazendo no mínimo duas coisas:
mostrando uma realidade e estabelecendo uma profunda identificação entre o real e uma
ficção; realizando uma troca de posições pela qual as vozes de diversos sujeitos-anônimos
são recolhidas na voz de um sujeito-artista – uma permuta que, pelo deslocamento das
múltiplas vozes para um sujeito que só possui a sua voz, realiza como que um milagre,
que é o reconhecimento político do Múltiplo no Um.
Tal poder de representar é, em parte, incontornável. Um mínimo de familiaridade
com o universo do rap já seria suficiente para não descartar todo índice de “representação”
como estruturante do ponto de vista de suas convenções estéticas tanto quanto das
dinâmicas sociais e intersubjetivas (políticas, comerciais, éticas) relativas ao rap. Por
outro lado, se o rap pode representar, se ele faz algo tal como uma dupla representação,
esse poder de fazer encerra, em si, uma problemática muito mais complexa que a lógica
da representação deixa entrever. Se o rap faz algo, isso quer dizer que tal fazer seja apenas
o da representação? E, independentemente do que o rap faça ou deixe de fazer, como é
que esse fazer se constitui? O que esse agir musical produz, quais seus efeitos, seus
impactos, suas consequências? É este conjunto de questões que tentarei desenvolver na
sequência.
Para tanto, orientarei minhas análises a partir de conceitos emprestados de
Roland Barthes e John Langshaw Austin. Ao definir os tipos de atos de fala e suas
diferentes dimensões ou efeitos, penso que Austin abre espaço para interrogarmos a
constituição de algo como um poder de fazer musical, ou, como chamarei doravante, a
performatividade do rap. Em seguida, partirei da ideia de fala do crime da antropóloga
Teresa Pires do Rio Caldeira para pensar a complexidade da performatividade do rap
quando este tematiza crimes e violência. Por fim, analisando casos concretos de canções
e eventos envolvendo rappers, tentarei pensar que tipos de agir e que efeitos
performativos uma música tal como o rap é capaz de produzir.
Antes de tudo, porém, situarei no campo do próprio rap uma questão inicial
relativa à ideia de que uma canção age. Se um agir musical produz efeitos, não deveríamos
2
pensar em efeitos ruins, indesejáveis, adversos ou questionáveis de determinadas
canções? Essa questão parece extremamente importante quando levamos em conta o tipo
de atenção que o rap muitas vezes recebe pelo senso comum. Por exemplo, se o rap
estabelece uma conexão profunda de uma ficção com uma realidade, e se o rap é uma
forma de agir no mundo, o que impede que o tipo de conexão que o rap estabeleça venha
a ser a de uma má ação derivada de uma canção? Se o rap representa algo existente no
mundo e conecta intensamente o real com o musical, este último também não poderia
parecer demasiadamente real, confundir-se com o real ao ponto de fazer os ouvintes
sentirem que podem agir realmente conforme aquilo que escutam nas canções? Em
síntese: um gênero musical que tantas vezes tematiza a violência de forma realista não
pode induzir a agir violentamente no cotidiano? As ficções do rap não são demasiado
semelhantes ao real para que consigam evitar se tornar reais?
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Enche os caneco que os bandido mau quer brindar
Licor no cálice, meu decreto é violar
O bangue é dos loko e aqui o partido tem conceito
De Minas ao DF: aqui é só os bandoleiro
Polícia, sai do pé; sai da reta, seu gambé!
Não respondo mais por mim se tu amassar meu boné
VDM, minha quebra; aguerrido, meu vulgo,
Som bélico versátil que viola seu mundo
É rato cinza à vista que age na lei oculta
Tem boy impetuloso raspando o rabo com a unha
Tem engravatado, tanga atolada com dólar na cueca
Tem CTS, 3 Um Só, na cautela sem balela
Cria do cão quer fazer cortejo no meu enterro
Sem chance porque vocês vão morrer primeiro!
Foda-se seu quartel, seu código penal
Sou clandestino até a morte, gângsta, bandido mau
Violo a lei que fala que desacato dá cana
Violo a lei que fala que bater em polícia dá tranca
Violo a lei que fala que rap apológico dá cadeia
Violo a lei do juiz que tá na vida alheia
Nocivos, carrascos, hostis, farrapos
Incrédulos, subalternos, políticos, soldados
Que impõem o terror de MG a Planaltina
CTS e 3 Um Só violando as leis da vida5
TV Rap. Violando as leis – CTS & 3 Um Só (2011). 2015. 4’52”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=HyCjJtl4H0I>. Acesso em: 13 dez. 2018.
5
3
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2. Efeito de realidade
Podemos abordar a última problemática de ao menos duas formas. Roland
Barthes, em 1968, falava em efeito de realidade para pensar justamente a relação entre
escrita e realidade. Barthes partia do que podemos chamar, de forma ampla e pouco
rigorosa, de “realismo”, que seria encontrado na literatura de Gustave Flaubert e no texto
historiográfico de Jules Michelet. Quais são, então, as características do realismo
identificado por Barthes na literatura e na história? Trata-se de um modo singular de
conectar realidade e linguagem, de fazer com que aquilo que a linguagem diz tenha uma
contraparte, ou, como diz Barthes, um álibi que faça o que se diz figurar como realidade6.
Esta maneira de correlacionar linguagem e realidade é encontrada no modo como a
inserção de detalhes aparentemente sem significância num texto serve para produzir uma
atmosfera realista. Barthes cita, por exemplo, uma série de objetos descritos num conto
de Flaubert, Um simples coração (“um velho piano”, “um barômetro”, “caixas”), objetos
estes que, à primeira vista, pouco significado trazem para o desenvolvimento do enredo.
O recurso a essa insignificância é, segundo Barthes, o que permite que um texto produza
um efeito realista: na medida em que objetos sem importância entram sem motivo
aparente no texto, como que se convertem em presenças efetivas de um real objetivo, que
não demanda maiores explicações. Que dispensa, pois, significação, quer dizer, um
desdobramento que torne visível o caráter escritural da entrada do real no literário. Ao
introduzir esses detalhes, essas banalidades, o autor realista produz um efeito de realidade,
isto é, a impressão de que os objetos presentes no texto não são frutos de uma escritura,
de um vir-a-ser-significado, e sim de uma relação ou, como Barthes chama, ilusão
referencial7 segundo as quais a linguagem seria mero espelhamento de um real objetivo,
dado de antemão e posto de uma vez por todas.
Se considerarmos a canção que ouvimos há pouco, a ideia de efeito de realidade
deveria, no mínimo, causar espanto. A linguagem crua de versos como “Enche os caneco
que os bandido mau quer brindar/ Licor no cálice, meu decreto é violar” parece transportar
“the aesthetic goal of Flaubertian description is thoroughly mixed with ‘realistic’ imperatives, as if the
referent’s exactitude, superior or indifferent to any other function, governed and alone justified its
description, or – in the case of descriptions reduced to a single word – its denotation: here aesthetic
constraints are steeped – at least as an alibi – in referential constraints: it is likely that, if one came to
Rouen in a diligence, the view one would have coming down the slope leading to the town would no be
‘objectively’ different from the panorama Flaubert describes”. BARTHES, R. The rustle of language, p.
145.
7
Id., ibid., p. 148.
6
4
diretamente o ouvinte para a presença de gângsteres ao inserir informações aparentemente
pouco informativas como as que desenham uma cena de confraternização entre os
“bandido[s] mau[s]”. Ao mesmo tempo, o recurso à autocitação dos nomes “CTS” e “3
Um Só” aumenta ainda mais a impressão de que uma narrativa em primeira pessoa é, na
verdade, um relato biográfico. Em termos concretos, é este último aspecto que mais
preocupa no efeito de realidade do rap gângsta: a sensação de que uma canção nada mais
seria que uma confissão, algo que ocorre em função dos procedimentos tipicamente
aplicados para a produção do efeito de realidade. Mas Barthes descreve a estrutura do
efeito de realidade como espécie de acordo sub-reptício entre linguagem e realidade de
modo que a diferença entre elas fosse apagada em detrimento de uma ilusão referencial:
“Semioticamente, o ‘detalhe concreto’ é constituído pela colusão direta de um referente
e um significante; o significado é expulso do signo, e com ele, é claro, a possibilidade de
desenvolver uma forma do significado, isto é, a própria estrutura narrativa”8. Nesse
contexto, falar em efeito de realidade significa aceitar padecer de uma traição originária,
de uma concertación e confusão fundamental entre linguagem e realidade sem as quais
aquele que fala algo não pode ser idêntico àquilo de que se fala.
Tal (auto)engano, por um lado, é o que permite a rappers reclamarem a si
mesmos e a suas canções como expressões do real, como portadores da realidade das ruas.
Por outro lado, é a ilusão referencial, e pelos mesmos motivos de seus reclames
autobiográficos, que também é mobilizada para dizer que rappers estão confessando
intenções de praticar crimes realmente, ou ainda infringindo dispositivos do código penal
como o da apologia do crime ou incitação ao crime9. Afinal, quando se apaga a diferença
entre o que Barthes chama de forma do significado e os referentes reais a partir dos quais
ela se desenvolve, como distinguir uma ficção da realidade? Como impedir que uma fala
ficcional se torne estritamente biográfica? Como evitar que uma canção sobre crimes e
violência se torne uma canção-crime ou canção-violência? Talvez seja o caso de repensar
o estatuto realista das canções de rap, ou melhor, repensar como rigorosamente estético o
“Semiotically, the ‘concrete detail’ is constituted by the direct collusion of a referent and a signifier; the
signified is expelled from the sign, and with it, of course, the possibility of developing a form of the signified,
i.e., narrative structure itself”. Barthes, id., ib., p. 147.
9
Cf. FERRELL, J.. Culture, crime, and cultural criminology. Journal of criminal justice and popular
culture,
v.
3,
nº
2,
p.
25-42.
[s.l.],
1995.
Disponível
em:
<https://www.albany.edu/scj/jcjpc/vol3is2/culture.html>. Acesso em: 01 abr. 2018; FISCHOFF, S. P.
Fischoff. Gangsta’ rap and a murder in Bakersfield. Journal of Applied Social Psychology, v. 29, n. 4, p.
795-805. [s.l.], 1999; SCHWARTZBERGER, L. Rap lyrics are being used to incriminate young people.
Vice, [s.l.], 15 maio 2014. Disponível em: <https://www.vice.com/en_ca/article/8gd58z/hip-hop-is-ontrial-in-america>. Acesso em: 13 dez. 2018.
8
5
realismo de que elas se compõem – o que exigiria análises bastante específicas que
fugiriam ao escopo da presente exposição.
**********
30 homem-bomba na aeronave
pedindo um isqueiro pra acender aquele salve
5 dinamite pra explodir talvez mais tarde
Seu corpo divido em 12 partes... Horla e AUT
30 homem-bomba na aeronave
pedindo um isqueiro pra acender aquele salve
5 dinamite pra explodir talvez mais tarde
Seu corpo divido em 12 vezes Mastercard então
Quando eu jogo limpo, seu espírito encarde
Cuzão: que Deus lhe guarde num caixão!
Trazer lazer pra quê? Não sou do CVC
Nossa missão é fazer descer a CBC
O cristão que mata por religião
achando que resolve tudo com a ressurreição
Nunca, nem se fosse macumba
Daqui da nossa sala só tem escala pra sua tumba 10
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3. Ilusão referencial vs. ficção performativa
Não creio ser necessário vetar de antemão qualquer vínculo entre realidade e
ficção – e penso que, ao menos no caso do rap, isso sequer seria desejável. Para uma arte
que pretende e mesmo precisa se afirmar como instrumento de ação social, que precisa
servir em parte à reconfiguração de relações entre sujeitos biográficos, bem como entre
sujeitos e instituições políticas, é vital que haja a possibilidade de produzir vinculações
concretas entre ficção e realidade. Da discussão de Barthes sobre o efeito de realidade,
talvez, possamos reter ao menos a compreensão das dificuldades teóricas e políticas dos
efeitos indesejáveis advindos da produção de ilusões referenciais.
No entanto, talvez seja preciso questionar o parâmetro da referencialidade, não
para aboli-lo, e sim para situá-lo como um dentre vários efeitos possíveis da relação entre
linguagem e realidade. Dizer que há ilusão referencial e efeito de realidade não é, afinal,
o mesmo que dizer que entre linguagem e realidade só existe um tipo de vinculação
possível – especialmente aquela que subordina a linguagem ao real tal como nos é dado,
VGM Oficial. Patrick Horla - 30 homens bomba na aeronave. 2016. 2’29”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=yqM_AVMcMEs>. Acesso em: 13 dez. 2018.
10
6
como se à linguagem competisse apenas descrever as coisas tal como se apresentam a nós
num momento específico.
Chegamos então à segunda forma de abordar o realismo rapper. Se o efeito de
realidade é apenas um dentre vários efeitos, se a linguagem não precisa ser posta numa
relação hierarquicamente inferior ao real que ela diz, é lícito pensar que entre linguagem
e realidade pode haver outro tipo de “acordo” que não o da subordinação da primeira à
segunda. E se a linguagem pode fazer mais que representar algo real, o que pode, então,
efetivamente fazer além disso?
Esta pergunta não possui resposta única, e, muito provavelmente, sequer possa
ser respondida de forma definitiva pela enumeração de todos os “fazeres”, “poderes” e
efeitos da linguagem. Isso se dá porque ela não é uma coisa irreal oposta a algo existente.
A linguagem existe – e isso vale mesmo quando se trata de linguagens ficcionais: se há
ficção, é porque a linguagem existe ficcionalmente. O que é preciso entender, uma vez
que a linguagem faz algo, que ela pode produzir efeitos e efetivamente existe, é como a
linguagem ficcional faz o que faz e produz os efeitos que produz, bem como aquilo que
caracteriza o modo de sua existência.
O filósofo John Langshaw Austin elaborou uma teoria da linguagem que poderia
ser descrita, grosso modo, como aquela em que a linguagem é um tipo de ação que não
se esgota no jogo referencial. Esquematicamente, podemos identificar dois momentos nas
séries de conferências proferidas por Austin que resultaram na publicação de How to do
things with words11 – traduzida em português literalmente por Como fazer coisas com
palavras, mas também por Quando dizer é fazer. A primeira observação notável de Austin
sobre a linguagem é que existem sentenças que não podem ser entendidas como
descrições de coisas ou estados de coisas existentes no mundo. Austin gosta de usar
exemplos como o caso do sacerdote que, ao dizer “Eu vos declaro casados” numa
cerimônia de casamento, não faz uso da linguagem para descrever a mudança de um
estado civil para outro, mas para efetuar tal mudança. No caso desse tipo de sentença,
Austin diz, não temos um uso “constatativo”, mas aquilo que o filósofo denomina uso
performativo da linguagem. Assim, a linguagem, em muitos casos, não se enquadra num
paradigma referencial, isto é, como conexão entre coisas ou estados de coisas, de um lado,
e a materialização da representação destes últimos12. Rigorosamente falando, Austin se
dá conta de que a linguagem em seu uso performativo não se refere propriamente, não se
11
12
AUSTIN, J. L. How to do things with words. Cambridge: Harvard University Press, 1975.
“Performance” tem, para Austin, o sentido de execução, não de representação teatral.
7
presta ao jogo da referência a coisas existentes. A dimensão performativa dos atos de fala,
ao contrário, institui coisas ativa e prospectivamente em vez de constatá-las de forma
retrospectiva e descritiva.
O segundo aspecto que gostaria de destacar é a “geologia” dessa dimensão
performativa. Austin identifica três “estratos”, aspectos ou efeitos dos atos de fala que
fazem coisas no mundo:
a) Aspecto locucionário: diz respeito à ação de efetuar um ato de fala, ou seja, a
locução de uma sentença. Como sinônimos possíveis, poderíamos falar em dicção
ou enunciação;
b) Aspecto ilocucionário: termo que designa aquilo que um ato de fala faz ao efetuarse. Se a locução está ligada à ideia de enunciação, a ilocução tem a ver com o tipo
de coisa que essa locução produz ao lado da enunciação. Por exemplo: ser um juiz
e dizer “Declaro culpado o réu” não é apenas o ato de dizer palavras, mas de fazer
com que estas palavras tenham um efeito preciso – no caso, a produção de uma
condenação. A ilocução é o aspecto que faz com que a execução linguística de
uma sentença não se comporte como uma descrição, e sim como uma ação que
tem nas palavras seu modo de se efetuar;
c) Aspecto perlocucionário: no caso anterior, do juiz que condena um réu, diversas
reações podem ser desencadeadas pela ilocução condenatória. O réu pode aceitar
a condenação ou tentar fugir da execução da pena; se se tratar de uma sessão aberta
ao público, pode haver festa ou comemoração; ainda, ao dizer “Declaro culpado
o réu”, o juiz já conta com uma ação subsequente de forças policiais que tomarão
o réu sob custódia do Estado. Todas as ações desencadeadas ou padecidas por
terceiros a partir de um ato de fala entram num campo que Austin denomina como
perlocucionário.
Se me detive tão longamente em teorias sobre a linguagem antes de tocar nos
temas que propus abordar hoje, foi para chegar no seguinte ponto:
I) quando tomamos ao pé da letra os dois sentidos da afirmação “o rap representa a
realidade”, deparamos com o problema da ilusão referencial que consiste em
apagar a linguagem como evento e advento do significado por um trabalho de
significação. Neste caso, o real é produzido pela linguagem como um referente
dado no mundo que serve de álibi e parâmetro objetivo estabelecido a priori e
diante do qual a linguagem pode apenas se curvar descritivamente;
8
II) por outro lado, é típico da ilusão referencial fazer a linguagem se fundir com
aquilo de que ela fala. Este tipo de fusão não é, em si mesmo, condenável – é o
que ocorre com os atos de fala performativos, nos quais não há propriamente
diferença entre dizer e fazer. O problema da fusão específica que a ilusão
referencial promove está ligado ao fato de que ela desfigura a ficcionalidade de
obras artísticas, impedindo uma compreensão do tipo de fazer que caracteriza o
trabalho estético. Em vez de servir para evidenciar a ficcionalidade como uma
forma relevante de agir no mundo, a ilusão referencial criticada por Barthes apaga
a singularidade do trabalho ficcional tornando-o indiscernível de qualquer outro
tipo de linguagem existente;
III) se o problema não está em reconhecer que a linguagem ficcional pode ser uma
forma real de ação, a questão se desloca então para uma compreensão da forma
da produção e da constituição de tal agir, bem como dos tipos de efeitos que
podem derivar dele. Como disse anteriormente, me parece impossível enumerar
todos os efeitos de um ato de fala; assim, proponho que tomemos um caso concreto
de ato “de fala” ficcional e acompanhemos sua constituição e os efeitos imputados
a ele para então tirarmos algumas conclusões mais amplas sobre atos de fala
ficcionais em geral.
Antes, porém, cabe observar que a ideia de ato de fala ficcional teria parecido
um contrassenso a Austin. Como analisado por Maximilian De Gaynesford13, em diversos
momentos Austin tenta classificar a linguagem ficcional como linguagem desprovida de
“seriedade”, tomando-a como incapaz de estabelecer compromissos efetivos com o real.
Mesmo levando em conta que o surgimento do rap se deu vários anos após a morte de
Austin, a ideia de uma arte engajada não era novidade nenhuma nem no campo da arte,
nem no campo da filosofia. Para tomarmos apenas um exemplo não muito distante de
Austin, podemos mencionar a produção literária e filosófica de Jean-Paul Sartre,
contemporâneo do filósofo de Oxford. Sem entrar na discussão sobre littérature engagée,
o que Austin, ele mesmo, parece não ter levado a sério é que toda forma artística performa
algo no mundo. Não importa que aquilo que uma arte execute não seja um compromisso
com ações do cotidiano ou que só possa se firmar como espécie de ação à distância: se os
atos “de fala” ficcionais não se comprometem com o mundo da mesma forma que um
13
GAYNESFORD, M. How not to do things with words: J. L. Austin on poetry. British Journal of
Aesthetics, v. 51, n. 1, 2011, p. 31 – 49.
9
compromisso é estabelecido quando dizemos “eu prometo”, talvez aquilo que as ficções
façam seja exatamente subverter compromissos estabelecidos, estados de coisas,
consensos e expectativas. Talvez o agir ficcional seja mesmo aquele que mais põe em
questão os limites do mundo como campo referencial dado e acabado a priori. Talvez
possamos admitir que seja ele um tipo de ato “de fala” performativo incapaz de instituir
coisas no real; mas, longe de indicar uma falha performativa, defendo que isto significa
que as ficções podem ser destituintes perante a realidade tal como ela se mostra a nós
num dado momento. Ou, para me permitir um jogo de palavras, talvez fosse o caso de
admitirmos, a despeito de Austin, que aquilo que uma ficção institui no mundo é a
destituição do mundo como referência objetiva que apenas nos competiria descrever. A
arte, curiosamente, promete nos livrar da ilusão referencial por meio das ficções realistas
de que se compõe.
************
Entre idas e vindas, arrependimentos
Em cada escolha uma perda, mil sofrimentos
Hoje entendo que meu sonho era escravidão
Que igualdade não é justiça, que liberdade é ilusão
Que livre escolha sem opção não é democracia, é condenação
É conspiração, é contradição
Não sabe o que eu sou, o que eu penso, onde tô
A dor que gerou o monstro e o homem que sou
De amores, valores, impopular
Mais rarefeito que o ar, pode apostar
Salvei mil favelados e, salvaria outros mil
se soubessem o que são, onde tão
Infelizmente as coisas são aquilo que parecem ser
E não o que de fato são e deveriam ser
Um pouco é muito pra quem não tem nada
Como esperar vinho da onde nem sai água
Não dá pra amar aquele que só fere,
espalha ódio e mentiras como febre
Nunca sofreu injustiça em sua única chance
Nunca viu a morte num semblante
Mas continua matando até o que eu não sou
E tudo acaba onde começou
Eu sou amante do proibido, do perigo, da contramão
Mato e morro se for preciso, mas também choro de emoção
Só acredito no que duvido, mas também mudo de opinião
Essa é minha filosofia, muito além da compreensão 14
**********
14
A286. Minha filosofia.
10
4. Falar o crime, escrever o direito
Teresa Pires do Rio Caldeira emprega a expressão “fala do crime” para descrever
“[a]s narrativas cotidianas, comentários, conversas e até mesmo brincadeiras e piadas que
têm o crime como tema”15. Para a autora, tais narrativas reorganizariam simbolicamente
os abalos produzidos pelo padecimento direto de eventos criminais.
Ao contrário da experiência do crime, que rompe o significado e desorganiza
o mundo, [...] as histórias de crime tentam recriar um mapa estável para um
mundo que foi abalado. Essas narrativas e práticas impõem separações,
constroem muros, delineiam e encerram espaços, estabelecem distâncias,
segregam, diferenciam, impõem proibições, multiplicam regras de exclusão e
de evitação, e restringem movimentos. Em resumo, elas simplificam e
encerram o mundo[.]16
Um traço distintivo da categoria “fala do crime” diz respeito à ambiguidade de
seus efeitos. Isso porque, enquanto opera uma organização do mundo (inter)rompido
abruptamente pelo crime e pela violência, tal fala ajuda a disseminar imagens, percepções,
concepções e afetos extremamente simplificados acerca dos motivos pelos quais o crime
e a violência ocorrem. Nesse sentido, uma fala do crime e da violência quase sem exceção
dispara uma série de falas que tematizarão tendencialmente o crime e a violência em
termos bastante esquemáticos. A conclusão de Caldeira a esse respeito é que, sendo de
organizar uma experiência traumática por parte daqueles que vivenciaram diretamente
eventos violentos, as falas do crime reforçam estereótipos e o senso comum criados em
torno da criminalidade.
Começo esta seção pela ideia de fala do crime para situar provisoriamente o rap
como elo principal numa cadeia de atos “de fala” que estão produzindo efeitos
determinados. Para tanto, quando levamos em conta que os discursos criminais se
distribuem em uma pletora de disciplinas e saberes17 e admitimos que a ideia de crime se
produz em diversas instâncias além daquelas que Caldeira descreve18, faz sentido pensar
também em outros discursos – midiáticos, judiciários e as próprias canções de rap – como
15
CALDEIRA, T. P. do R. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo:
Edusp, 2011. p. 9.
16
Id., ibid., p. 28.
17
BERGALLI, R.; RAMÍREZ, J. B. O pensamento criminológico: uma análise crítica. Rio de Janeiro:
Revan, 2015. v. 1; CASTRO, L. A.; CODINO, R. Manual de criminologia sociopolítica. Rio de Janeiro:
Revan, 2017; FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 41ª ed. Petrópolis: Vozes,
2013.
18
Ferrell (1995).
11
pertencentes ao domínio das falas do crime. A expansão do alcance da categoria de
Caldeira não se justifica apenas pela semelhança que canções, reportagens e discursos
estatais possuem com os temas e efeitos de outras falas do crime. Como apontado por
Charles Briggs19, os discursos midiáticos sobre o crime informam e se mesclam a outros
discursos sobre crime e violência, uns retroalimentando a formação e reelaboração dos
demais. Daí a importância de considerar um campo mais amplo de falas do crime do que
aquele das narrativas em carne e osso, em primeira pessoa, postulado pela metodologia
etnográfica empregada por Caldeira.
**********
No ano de 1994, no Vale do Anhangabaú (região central da cidade de São Paulo),
dois confrontos envolvendo rappers e forças policiais ganharam notoriedade. No dia 15
de outubro desse ano, o rapper Big Richard foi preso durante o Rap/Reggae Festival20.
Sua prisão deveu-se à reação da PM paulista diante da performance da canção Homens
da lei. Em reportagem à Folha de São Paulo cerca de um mês após o incidente, Edson
Franco21 relata que “policiais se ofenderam com o trecho da letra [de Big Richard] que
diz: ‘Que polícia é essa que diz que quer nos proteger e vira grupo de extermínio assim
que escurecer?’.”. Vale apontar que os grupos Racionais MC’s e RMN também foram
detidos durante shows realizados no dia 26.11.1994 ao apresentarem canções críticas à
forma de atuação injusta e violenta das forças policiais. A detenção dos integrantes do
Racionais MC’s, por exemplo, se deu durante a performance de O homem na estrada,
mais precisamente no momento em que o grupo cantava o verso “Eu não acredito na
polícia, raça do caralho”22.
Passadas cerca de duas décadas dos eventos em São Paulo, o Estado de Minas
Gerais tornou-se palco de novos processos de criminalização de rappers, suas canções e
performances. Em 13 de dezembro de 2012, o rapper Emicida foi detido pela PM mineira
ao manifestar apoio ao movimento de luta por moradia Eliana Silva, ocupação urbana da
19
BRIGGS, C. Mediating infanticide: theorizing relations between narrative and violence. Cultural
Anthropology, v. 22, nº 3, 2007, p. 315-356.
20
FELTRIN, R. Rapper é preso devido à música sobre PMs. Folha de São Paulo, 17 out. 1994. Disponível
em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/10/17/cotidiano/7.html>. Acesso em: 29 mai. 2018
21
FRANCO, E. Outros rappers já foram presos. Folha de São Paulo, 28 nov. 1994. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/11/28/brasil/25.html>. Acesso em: 01 jun. 2018.
22
FOLHA DE S. PAULO. Polícia prende grupos de rap durante show. 20 nov. 1994. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/11/28/brasil/23.html>. Acesso em: 29 mai. 2018.
12
época que se localizava na mesma região em que ocorria seu show. Segundo reportagem
de Felipe Rousselet para a revista Fórum23, o discurso de apoio de Emicida foi o seguinte:
“Antes de mais nada, somos todos Eliana Silva, certo? Levanta o seu dedo do
meio para a polícia que desocupa as famílias mais humildes, levanta o seu dedo
do meio para os políticos que não respeitam a população e vem com ‘nois’
nessa aqui, ó. Mandando todos eles se f..., certo, BH? A rua é ‘nois’”[.]
Três anos depois, o CTS Kamika-Z, da cidade de Uberaba, também enfrentou um duro
processo de criminalização (que, inclusive, ainda corre na justiça). Para sintetizar o caso,
cito trecho da reportagem de Eduardo Ribeiro24 à Noisey – Vice Brasil:
Formada em 2002, a banda CTS Kamika-Z tem um histórico de rusgas com a
polícia local, já que sempre se colocou como representante do gangsta rap na
região, apresentando-se com máscaras e letras críticas à conduta dos policiais
da cidade. Segundo o Noisey apurou junto a fontes próximas ao grupo [...], os
caras já teriam sido intimidados diversas vezes por policiais nos últimos seis
anos, desde o lançamento do clipe “Poesia de Ladrão”.
Dessa vez, porém, a questão ficou mais acirrada com o lançamento do segundo
álbum, Tá Lost, e a repercussão da música “Se Essa Rua Fosse Minha”. [...] O
refrão da letra diz: “Se essa rua, se essa rua fosse minha, não tinha pra G-Par25
[sic]. Se essa rua fosse minha, não tinha pra militar. Se essa rua fosse minha,
eu comandava, eu comandava o ra-tá-tá”, enquanto uma das cenas mostra os
integrantes diante de uma mesa repleta de drogas, armas, celulares e maços de
dinheiro, com as mãos para trás, emulando um enquadro.
O que todos esses quatro casos possuem em comum são as acusações de
incitação à violência. Como consta no Ofício nº 701.15.027.557-9/SRCN da 1ª Vara
Criminal de Uberaba e que integra os autos do processo movido contra o CTS Kamik-Z,
o tipo de performance efetuada por estes grupos se transforma em parte da “difícil luta
contra o crime organizado”, sendo que
a ordem pública necessita de socorro imediato, sobretudo levando-se em conta
[a] sensação de impunidade que, de um lado, aflige a sociedade, ofendendo à
ordem, como de outro, estimula a ação de possíveis delinquentes [...]26
Em outros termos, as forças do Estado tratam as canções e performances dos rappers
como espécies – perigosas – de falas do crime que teriam o potencial de desencadear um
aumento da violência.
23
ROUSSELET, F. Frase que resultou na prisão do rapper Emicida é diferente da registrada no B.O. Fórum,
15 maio 2012. Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/frase-que-resultou-na-prisao-do-rapperemicida-e-diferente-da-registrada-no-b-o/>. Acesso em: 30 mai. 2018.
24
RIBEIRO, E. Como a PM mineira conseguiu proibir um clipe dos rappers do CTS Kamika-Z. Noisey –
Vice Brasil, [s.l.], 11 dez. 2015. Disponível em: <https://noisey.vice.com/pt_br/article/6xdjyd/a-treta-dapm-de-minas-com-os-rappers-do-cts-kamika-z>. Acesso em: 01 jun. 2018.
25
“GEPAR” é a sigla para “Grupo Especializado de Policiamento em Áreas de Risco” da PMMG.
26
UBERABA. Secretaria da Primeira Vara Criminal da Comarca de Uberaba – Minas Gerais. Ofício nº
701.027.557-9/SRCN. Determinação Judicial – prazo 90 dias. Uberaba, 11 de agosto de 2015. Poder
Judiciário do Estado de Minas Gerais – Justiça de Primeiro Grau. 2015.
13
Existem inúmeros problemas com o enquadramento criminal do rap, mas
gostaria de apontar apenas dois aqui. A categoria de fala do crime de Caldeira de certa
forma reforça o imaginário de retroalimentação direta entre discursos estereotipados
sobre crimes e o aumento da sensação de insegurança. Sem discordar dessa interpretação,
resta ver como as forças policiais têm se valido dela. Na prática, os discursos judiciários
têm tratado os estereótipos criminais e outros símbolos de transgressão da ordem para
difundir a ideia de que a fala do crime dos rappers pode ser inserida numa estatística de
aumento da violência e da criminalidade. Essa inserção tem como correlatos diversos
procedimentos de controle estatal sobre discursos tratados como criminosos. Mas, como
argumentam Bergalli e Ramírez27,
resultam duvidosos os alertas sobre o “aumento da criminalidade”, pois com
frequência não implicam senão [...] uma maior visibilidade da criminalidade
[...] [A]s variações [estatísticas] se produzem mais na onda do controle do que
na criminalidade: porque é o controle (por variações em seus diferentes fatores)
que se altera e provoca a aparência de aumento ou de diminuição da
criminalidade[.]
Ou seja, em termos práticos, não são as falas do crime dos rappers que aumentam por si
mesmas a sensação de insegurança, mas o agenciamento que o aparato estatal faz delas
enquanto objetos de controle.
O segundo problema que levanto aqui, por sua vez, está intimamente ligado com
o do controle. Os dispositivos criminalizantes mobilizados pelo poder judiciário têm
como inconveniente dissimular o caráter de escrita das canções e performances de rap.
Entendo este termo no sentido de que as transgressões, violências e crimes encenados por
rappers são formas de escrever e reescrever as noções de crime, violência, direito e justiça.
Mais precisamente, o que se coloca em jogo é a reversão da autoridade e da legitimidade
das estruturas do poder estatal, além de uma reconfiguração do paradigma retributivo da
justiça e do direito. Aquilo que Ervin I. Kelly28 teoriza sobre o gansta rap norteamericano vale em parte para o rap brasileiro:
A atitude de pagamento ouvida no gangsta rap soa como um chamado à
retribuição. Como 50 Cent coloca: “Preto, você apronta/ Eu retribuo/ É assim
que são as coisas”. A justiça como retribuição ecoa o sentimento de que a
vingança é doce, redimindo aqueles que sofreram a humilhação de ser
prejudicados[.]29
27
Bergalli e Ramírez (2015, p. 38).
KELLY, E. Mentalidade orientada para o crime e a justiça: retribuição, castigo e autoridade. In: DARBY,
D.; SHELBY, T. (org.). Hip hop e a filosofia: da rima à razão. São Paulo: Madras, 2006, p. 181 – 189.
29
KELLY, E. id., ibid., p. 181.
28
14
O que ocorre, mais exatamente, é que a fala do crime praticada pelos rappers não é um
simples campo de organização de experiências violentas e de rompimento de uma ordem
comum da vida. Na verdade, suas músicas e performances são campos de produção das
ideias de ordem, justiça, direito e legitimidade no emprego da violência. Assim, em rigor,
os rappers não estão simplesmente falando sobre o crime quando cantam e rimam, mas
reescrevendo as próprias noções que permitem a caracterização social do crime,
disputando-o como objeto, não de controle, mas sim da conformação de novos sujeitos
autorizados a defini-lo na esfera pública.
A diferença entre fala e escrita poderia ser marcada a partir de uma observação
feita de passagem por Barthes num artigo sobre os eventos de Maio de 1968 na França.
Barthes interpreta a distinção derridiana entre voz e escrit(ur)a como aquela que se dá
entre uma concepção do discurso, por um lado, como reforço de um sistema simbólico
ou como limitado ao sentido vigente e, por outro, do discurso como aquilo que se retira,
transpõe e retrabalha a partir do estado atual de coisas30. É essa distinção que gostaria de
marcar entre as categorias de fala do crime, de Teresa Caldeira, e de escrita do direito,
que proponho como alternativa para pensar canções que têm como objetos a violência e
o crime.
Embora eu concorde com a avaliação de Caldeira de que as falas do crime
tendem a reforçar o senso comum sobre a existência de eventos violentos, penso que a
restrição metodológica da autora a discursos obtidos a partir de entrevistas passa por alto
de outros discursos que, mesmo que eventualmente tenham o efeito de reforçar sentidos
cristalizados, também resultam em inúmeros outros efeitos que reconfiguram sistemas de
significação que estruturam imaginários sociais e políticos sobre o crime. Eithne Quinn31
aponta exatamente esta ambiguidade presente no gangsta rap dos Estados Unidos, assim
“Speech is not only what is actually spoken but also what is transcribed (or rather transliterated) from
oral expression, and which can very well be printed (or mimeographed); linked to the body, to the person,
to the will-to-seize, it is the very voice ot any 'revendication,' but no necessarily of the revolution. Writing
is integrally 'what is to be invented,' the dizzying break with the old symbolic system, the mutation of a
whole range of language. Wich is to say, on the one hand, that writing [...] is not at all a bourgeois
phenomenon (what this class elaborated was, in fact, a printed speech), and, on the other, that the present
event [Maio de 1968 na França] can only furnish marginal fragments of writing, which as we saw were not
necessarily printed; we will regard as suspect any eviction of writing, any systematic primacy of speech,
because, whatever the revolutionary alibi, both tend to preserve the old symbolic system and refuse to link
its revolution to that of society.” Barthes, The rustle of language, p. 153 – 154
31
QUINN, E. Nothin but a “g” thang: the culture and commerce of gangsta rap. New York: Columbia
University Press, 2005.
30
15
como Imani Perry e Tricia Rose quando se referem ao hip-hop em geral 32. É parte capital
do rap a presença de oposições, contradições aparentes, termos conflitantes e divergentes,
razão pela qual não se deve estranhar a realização de críticas ferrenhas a diversas formas
de violência por meio do emprego de metáforas violentas e, ao menos à primeira vista,
conservadoras (misóginas, homotransfóbicas, de rechaço ao ideário democrático liberal).
É nesse contexto que Ervin Kelly falava sobre a reversão da autoridade no gangsta rap:
recusando paradigmas restaurativos ou compensatórios da justiça e do direito em favor
de uma justiça de cunho retributivo – vingativo, em uma palavra –, rappers estão borrando
toda a concepção vigente de democracia. Ou melhor, os rappers não estão borrando nossa
ideia de democracia, ao menos não sozinhos: quando defendem a vingança e o revide,
eles estão não somente mostrando que tais opções são legítimas como respostas a
violências sistêmicas que sofrem, mas, sobretudo, indicando que tais violências, elas
mesmas, já borraram toda a possibilidade de crença numa democracia efetiva. A
ambiguidade da fala do crime gangsta, portanto, se dá pela ambiguidade de uma
democracia antidemocrática, de uma justiça injusta, da legalidade de um direito cuja
aplicação não possui legitimidade. Mas essa ambiguidade é também a de uma fala que,
repetindo soluções pouco originais, tem como efeito a radicalização desses borrões
políticos que chamamos justiça, democracia e direito. Borrando completamente tais
noções, escancarando o quanto elas são fugidias e falaciosas, os rappers estão abrindo
nelas um oco, uma espécie de página tornada em branco que cumpre reescrever. A
ambiguidade do gangsta rap, então, é a ambiguidade de uma fala do crime cujo efeito é
se desdobrar em escrita – em labor de significação.
No fundo, a ambiguidade da fala do crime rapper é a mesma de qualquer outra
fala, qual seja, a ambiguidade do discurso que sempre está sujeito a desprender-se de sua
vocalização tornando-se outro tipo de discurso. Mas, se essa ambiguidade do gansta rap
é a mesma de qualquer outro discurso, o que afinal permite caracterizá-lo como discurso
singular? Como evitar recair nas armadilhas da ilusão referencial neste cenário? E como
caracterizar o rap como ficção performativa se ele é uma forma de escrever – isto é,
reescrever – nossas noções de justiça, democracia e direito, ainda mais quando tematiza
violência e crime?
32
PERRY, I. Prophets of the hood: politics and poetics in hip hop. Durham/London: Duke University Press,
2004; ROSE, T. Black noise: rap music and black culture in contemporary America. Middletown:
Wesleyan University Press, 1994, p. 128.
16
***********
Boi, boi, boi, boi da cara preta
Pega esse menino que tem medo de careta
Boi, boi, boi, boi da cara preta
Pega esse menino que tem medo de careta
Ban, ban, ban, bandido de clava preta
Pega esse playboy que tá na mira da escopeta
Ban, ban, ban, bandido de clava preta
Pega esse burguês que discrimina a raça negra
Não é a mamãe, playboy, mas vai dormir, neném
Papai tá na mira da glock e a mamãe também
Desde os tempos de Palmares que tem essa porra (“Boi da cara preta”)
A canção de ninar mudou na base da escopeta
Malfeitor chicoteou, sinhá-moça sentiu pena
Os capitões-do-mato matou Zumbi na base da ferramenta
Seguiu a saga da musiquinha de merda racista
Tá enrascado, playboy, já tô com a minha alforria
Salve bimba, pastinha. Sabe quem é? Não!
Mais um motivo pra morrer e subir que nem balão
Bandido de clava preta é tipo boi bandido
Depois que cai, nóis pisa, pisa pra terminar o serviço
Faço jus à canção, preconceituoso de bosta
Tá gostando do cativeiro? É a senzala de agora
onde o tronco é a cadeira, onde a chibata é a escopeta
onde a corrente é arame farpado ligado à cerca
Já fez um pedido pro papai do céu? Então faça!
Peça perdão por seu racismo, quem sabe ele te salva
Chama o ferreiro, traga o ferro em brasa com a logo “CTS”
Vai pro inferno marcado, tatuado com a minha tag
Oito anos molecada, essa guerra é nossa
Cansei de boi da cara preta, pra dormir era foda
Hoje os crioulos tá no comando de canção de ninar nova
Bandido de clava preta e o boy morto, ensacado no rio de bosta.
Ban, ban, ban, bandido de clava preta
Pega esse playboy que tá na mira da escopeta
Ban, ban, ban, bandido de clava preta
Pega esse burguês que discrimina a raça negra
Ban, ban, ban, bandido de clava preta
Pega esse playboy que tá na mira da escopeta
Ban, ban, ban, bandido de clava preta
Pega esse burguês que discrimina a raça negra 33
5. O des/fazer irônico do rap
Em 1988, o grupo estadunidense Niggas With Attitude (NWA) lançou o álbum
Straight Outta Compton, que viria a se tornar um dos mais icônicos do gangsta rap. Uma
das canções em particular, Fuck tha police, foi motivo de enorme controvérsia. O título
TV RAP. Bandido de clava preta -CTS part. Contato Gago e Paula Dias (2015). 2015. 5’34”. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=Ucmp4K05oso>. Acesso em: 13 dez. 2018.
33
17
da canção foi traduzido pelas forças policiais dos Estados Unidos como uma incitação ao
ataque a agentes de segurança.
Right about now, N.W.A. court is in full effect
Judge Dre presiding
In the case of N.W.A. versus the Police Department
Prosecuting attorneys are; MC Ren, Ice Cube
And Eazy-motherfucking-E
Order, order, order!
Ice Cube, take the motherfucking stand
Do you swear to tell the truth, the whole truth
And nothing but the truth so help your black ass?
You goddamn right!
Well, won't you tell everybody what the fuck you gotta say?
Fuck the police! Comin' straight from the underground
A young nigga got it bad ‘cause I'm brown
And not the other color, so police think
They have the authority to kill a minority
Fuck that shit, ‘cause I ain't the one
For a punk motherfucker with a badge and a gun
To be beating on, and thrown in jail
We can go toe-to-toe in the middle of a cell
Fuckin' with me ‘cause I'm a teenager
With a little bit of gold and a pager
Searchin' my car, lookin' for the product
Thinkin' every nigga is sellin' narcotics
You'd rather see me in the pen
Than me and Lorenzo rollin' in a Benz-o
Beat a police out of shape
And when I'm finished, bring the yellow tape
To tape off the scene of the slaughter
Still getting swole off bread and water
I don't know if they fags or what
Search a nigga down, and grabbing his nuts
And on the other hand, without a gun, they can't get none
But don't let it be a black and a white one
‘Cause they'll slam ya down to the street top
Black police showing out for the white cop
Ice Cube will swarm
On any motherfucker in a blue uniform
Just ‘cause I'm from the CPT
Punk police are afraid of me
Huh, a young nigga on the warpath
And when I'm finished, it's gonna be a bloodbath
Of cops, dying in L.A
Yo, Dre, I got something to say
Fuck tha police
Fuck tha police
Fuck tha police
Fuck tha police34
MATEUS HENRIQUE. NWA – FUCK THA POLICE (LEGENDADO PT). 2015. 5’47”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=U3eu3ASM0mc>. Acesso em: 13 dez. 2018.
34
18
De fato, em termos gramaticais estritos, a forma verbal “fuck” do inglês poderia
ser no mínimo compreendida de duas maneiras: como um imperativo ou como um
subjuntivo. Vertendo o título da canção em questão para nossa língua, teríamos, assim,
duas possibilidades de compreensão: “Foda-se a polícia” – um subjuntivo que demonstra
deboche e desprezo – e “Foda a polícia” – um imperativo que, além de desprezar e
debochar, ainda indicaria a manifestação do desprezo e do deboche por meio de uma ação
contra a polícia. Sem querer transformar o final deste texto numa análise gramatical,
gostaria de apontar que a tensão entre imperativo e subjuntivo, na verdade, nada mais faz
que remeter à difícil relação entre realidade e ficcionalidade que nos acompanhou até
aqui.
Quando o NWA apresenta seus integrantes performando papéis de juízes,
promotores, advogados e executores de algum tipo de justiça, o que ocorre é uma espécie
de rito de inversão no qual cenários, personagens e ações arquetípicas da segurança
pública são apropriado e ressignificados por rappers. Essa ressignificação funciona como
uma forma ficcional de desligar a justiça e o direito do Estado para cidadãos comuns. O
efeito direto desse deslocamento é a inversão de papéis sociais: cidadãos comuns ganham
legitimidade para agir em nome do sistema de justiça, inclusive violentamente, enquanto
policiais perdem o status privilegiado que possuem e se tornam sujeitos comuns que
padecem a força dos rappers.
Esse deslocamento não deixa de ter suas consequências. Vemos se desenhar um
tipo de fantasia de vingança35 que faz o próprio crime figurar como ação legitimável da
perspectiva rapper. Embora seja realmente questionável se a tática de legitimar a persona
de um criminoso cumpre o papel de enfrentamento consistente da violência policial,
existe nela algo mais sutil que caberia ponderar com cuidado. A ideia de criminalidade
pode ser vista tanto como dispositivo de controle social quanto como traço de identidade
subcultural. No primeiro caso, temos uma dinâmica política de estigmatização de grupos
sociais como alvos de um aparato de repressão policial e gestão social; no segundo caso,
temos a incorporação de um estigma como um elemento identitário positivo, um traço de
reconhecimento e mútuo pertencimento36. Porém, o que a canção do NWA e outras
A expressão é de Mark McCann. McCANN, M. “Contesting the mark of criminality: race, place, and the
prerogative of violence in N.W.A.’s Straight Outta Componton”, Critical studies in media and
communication, v. 5, n. 29, p. 367 – 386. No geral, minha apresentação do caso de Fuck tha police segue a
análise de McCann.
36
Tal é o caso da afirmação de si como “bandido” ou das mulheres do hip-hop norte-americano que se
intitulam “bitches”.
35
19
deixam entrever é que pode haver outra ideia de criminalidade em jogo, qual seja, a
criminalidade como efeito de procedimentos ficcionais ativamente mobilizados pela
escrita do direito. Enquanto que o padecimento de dispositivos de controle e o
reconhecimento identitário se caracterizam, respectivamente, como padecimento de uma
força e uma adesão parcial a um estado de coisas assentado, as ficções gangsta produzem
ativamente borramentos de nossas noções consensuais sobre justiça, direito, democracia,
violência e política. O crime, no gangsta rap, não funciona simplesmente como um tema
do cotidiano representado artisticamente. Pelo contrário: a ficcionalização da violência
pelos gangsta rappers tem como efeito uma complicação profunda de todo o sistema de
representação política ao embaralhar as posições reais daqueles que teriam ou não o
direito de se valer da violência legitimamente. Nesse sentido, o crime é um efeito desse
embaralhamento; e isso quer dizer, por sua vez, que aquilo que enxergamos como crime
na verdade é o resultado do caos intencional gerado pela mobilização ficcional da
violência. O crime não é simplesmente uma questão de ser controlado ou de pertencer a
uma comunidade; em vez disso, é uma forma de fazer com que todos os sujeitos deixem
de pertencer a uma ordem política garantida tornando-a impossível e indesejável.
O crime, nas canções do gangsta rap, não funciona como representação do real
num sentido muito preciso. Prestando testemunho de problemas gerais da realidade, o
rapper toma o real como campo do possível, do imaginável e reformulável. O real e o
cotidiano dizem: pessoas negras e moradores da periferia morrem diariamente pelo
racismo institucional das forças policiais. O gangsta rap, tecendo em parte uma ilusão
referencial e se alojando taticamente no campo das falas do crime, por outro lado, e como
que preparando um bote, aproveita o real representado numa lógica subjuntiva,
exploratória, crítica.
A realidade biográfica e social não é mandatória, então: ela pode ser reformulada
pelo tipo de escrita do direito que o rap faz. Mesmo com imagens que poderíamos
entender como esquemáticas ou até mesmo retrógradas, o gangsta rap não encontra no
crime um simples objeto temático. O crime é o efeito necessário e esperado de ficções
performativas cujo fazer é, precisa e paradoxalmente, um “desfazimento” de todos os
nossos consensos sobre violência, justiça, direito e política. Daí a importância de
defendermos fortemente o estatuto ficcional do rap a despeito de toda tentação de
confundi-lo com outros tipos de atos. O rap, assim como outras formas de arte, só tem um
compromisso: não o de representar o real, mas de fazê-lo estremecer como hipótese a ser
desenvolvida. O que o performativo ficcional gangsta faz não é nada mais que
20
desenvolver a hipótese de que o direito é um campo a ser escrito – o que significa também
colocar em questão as formas dessa escrita e, sobretudo, os sujeitos que estão autorizados
a efetuá-las.
As ficções, num certo sentido, nunca poderão ser sérias e comprometidas, mas
isso não se dá por uma falha performativa, como pensava Austin. Ao contrário: não poder
levar a sério um estado de coisas violento, não ter compromisso com um regime de
democracia seletiva, jogar a justiça e o direito no registro subjuntivo da ironia sejam,
talvez, ações realmente efetivas. A única coisa que precisaríamos considerar é que uma
ficção não age da mesma forma que uma ordem pessoal direta. Parodiando o que Hebert
Marcuse37 dizia sobre a relação entre sociedade e arte, gostaria de defender que uma
ficção como a do gangsta rap tem sua força justamente por deformar o real e torná-lo
insustentável. Se isso pode despencar no abismo niilista de uma sociedade sem forma
nenhuma, ao mesmo tempo é o caos da deformação de nossas noções sobre o direito que
faz ver que o mundo em que vivemos hoje deveria, de fato, não ser mais possível. As
figurações do crime, nesse contexto, são o epíteto necessário que o gangsta produz para
tornar inabitável um mundo que nós julgamos tolerável. O que essas ficções fazem, ao
contrário de incitar a permanecer na violência, é tornar a violência insuportável fazendoa extremamente visível. Ou seja, aquilo que a ficção gangsta faz é tornar impossível,
inadmissível, que continuemos agindo como de costume. É tornar nosso campo
referencial, aquilo que socialmente constitui nossos modos de ser e agir, tão representável
– passível de escrita – que ele já não pode mais representar a vida que desejamos viver.
A escrita do direito gangsta não faz, então, apenas uma reconfiguração do campo
do direito. Ficcionalmente, subjuntivamente, as ficções gangsta querem fazer de nossas
vidas algo inviável. Tornar inviável, impossível, inassimilável, irreconhecível: isso não
se opõe diametralmente à ideia de representação? Talvez a mensagem mais geral do
gangsta rap é que as ficções, mesmo aquelas que se valem de ilusões referenciais, no
fundo contestam o real como referência ou, ao menos, qualquer referência ao real como
ponto final de nosso agir. O efeito dessas ficções é justamente fazer-nos existir como
hipóteses de nós mesmos, hipóteses que nós desenvolveremos apenas se compreendermos
que o descompromisso com o real não é necessariamente um defeito. Foi esse
descompromisso que permitiu ao NWA bradar “fuck tha police!”. E tal descompromisso
“Art should no longer be powerless with respect to life, but should instead help give it shape – and
nonetheless remain art, i.e. semblance”. MARCUSE, H. Art and liberation. New York: Routledge, 2007,
p. 124.
37
21
foi o mesmo que, fazendo de um refrão revoltado uma metáfora sem consequências
literais, permitiu tornar impossível acatar a violência policial como fatalidade imutável.
**********
É nossa cara ganhar, partir pro tudo ou nada
O caçador com a Jericó pronto pra pegar caça
Moscar num dá, doidão o tempo passa
Se quiser prata de Bali no pescoço, desembaça!
É nossa cara ganhar, partir pro tudo ou nada
O caçador com a Jericó pronto pra pegar caça
Moscar num dá, doidão o tempo passa
Se quiser prata de Bali no pescoço, desembaça!
Ai rapaz fortão, só monstrão na pegada
Vai buscar as Tornado, os Corolla, os Mazda
Que nada, esperar cair do céu? Só cai chuva
Corre atrás, pega as arma que a pista tá uva
Invade a casa a milhão, estilão, avalanche
A família na sala comendo Mc lanche
Bota o terror, vai, deixa a playboyzada em choque
Leva o Fusion, abre o porta-mala e joga dentro o cofre
Na madrugada, a mulekada quebra vidraça no chute
Cai pra dentro leva as digital e os notebook
Madame, cê viu que 50 centavo caro?
“– Ô, tia, ô, tia, dá uma moedinha ai pra me ajudar, aí
– Não, não, moleque... Eu não tenho dinheiro, sai de perto do meu carro. Sai,
sai, sai!
– Aí, não vai dar não? Então é o seguinte: desce do carro vadia, perdeu!”
Negou uma moeda pro menor, perdeu seu carro
Cê acha que todo ladrão já nasce ladrão?
A revolta nasce dentro do peito igual um vulcão
E, se entrar em erupção, sai que sai, sai da frente
Lucifer tá de bombeta quadrada e vários pente
Preparado pra levar, esquartejar no cativeiro
Não quis pagar o resgate, encomenda outro herdeiro
Uns mata pelo dinheiro, outros vive pelo dinheiro
Dinheiro maldito que arrasta vários parceiro
A cena é foda, mete bala e sai dando risada
Desde pivete tem a mente de psicopata
É lamentável, levou de quebrada, o barato é louco
Um oitão canela seca na cena explodindo o globo
Só doido, na quina vários louco, tá sinistro
Prepara as vela que daqui a pouco um tá subindo
Morreu pela boca, falou demais
Blablablá, leva e traz, bum..! Já era: jaz
É nossa cara ganhar, partir pro tudo ou nada
O caçador com a Jericó pronto pra pegar caça
Moscar num dá, doidão o tempo passa
Se quiser prata de Bali no pescoço, desembaça!
É nossa cara ganhar, partir pro tudo ou nada
O caçador com a Jericó pronto pra pegar caça
Moscar num dá, doidão o tempo passa
Se quiser prata de Bali no pescoço, desembaça!
É só monstrão, no gueto a molecada puxa o cão
A pista tá sinistra, os terrorista na missão
22
Do cifrão, nem tenta se envolver se for panguão
Aqui no interior o bang é louco, J’ão
Sequestro, assalto, os menor no apetite, no 12 domino a quebrada
Dinheiro no bolso, rolê no pescoço, whisky, farinha e quadrada
Os plano bolado, as moto pra fuga, os moleque, capuz e a matraca
A cena de mil, a fuga de mil, a polícia nem pode tocaia
E na quebrada, só monstro
E no gueto, só monstro
E no rap, só monstro
E no crime, só monstro
Os menor, só monstro
Na cadeia, só monstro
Primo, no interior do Paraná o barato é louco.
E na quebrada, só monstro
E no gueto, só monstro
E no rap, só monstro
E no crime, só monstro
Os menor, só monstro
Na cadeia, só monstro
Primo, no interior do Paraná o barato é louco.38
RAFIZ RAP. Só monstro - Thiagão e os Kamikazes do Gueto. 2012. 4’35”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=MmBFnjZGHPc>. Acesso em: 13 dez. 2018.
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