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RESENHA SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Joachin Azevedo Neto * O MERCADO EDITORIAL E AS INSTÂNCIAS de produção de conhecimento acadêmico, a partir da década de 1950, podem ser considerados favoráveis em se tratando da publicação e realização de estudos biográficos sobre o escritor carioca Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922). O cronista do subúrbio de Todos os Santos figura entre as páginas de obras assinadas por críticos, historiadores e filólogos renomados enquanto um intérprete cujas opiniões críticas e polêmicas sobre a cultura e sociedade brasileiras são indispensáveis para se compreender o processo de modernização e inserção compulsória do Brasil na modernidade. É o caso, por exemplo, da pioneira e sensível reflexão feita pelo historiador Francisco de Assis Barbosa (1914-1991), que, ao publicar A vida de Lima Barreto, em 1956, pela Editora Brasiliense, partilhou, de forma bastante generosa com o público leitor, ampla documentação até então inédita sobre a vida e trajetória intelectual do autor de Clara dos Anjos (BARBOSA, 1959). Recentemente, o crítico literário Antonio Arnoni Prado organizou obra intitulada Lima Barreto: uma autobiografia literária, publicada em 2012 pela Editora 34. Trata-se de uma série de bricolagens, divididas em nove capítulos, abordando temáticas como autorretrato, concepções de Arte e Literatura, persona e personagens, por meio das quais Prado buscou fazer com que, a partir de trechos de diários, crônicas, romances, epístolas e artigos, a voz do próprio Lima Barreto – sobre aspectos de sua formação, atuação artística, militância política e a conjuntura intelectual e cultural da Primeira República – fosse evocada (PRADO, 2012). Assim, a obra Lima Barreto: triste visionário, da antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz, fornece algumas contribuições importantes, que serão melhor analisadas, sobre a trajetória biográfica deste atual escritor. * Doutor em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor Adjunto de Historiografia e História Contemporânea na Universidade de Pernambuco - UPE/Campus Petrolina. ANTARES, v. 10, nº 19, jan/abr 2018 151 A citada obra, publicada pela Companhia das Letras, chama a atenção, primeiramente, pela sua capa bem diagramada. Trata-se da reprodução de uma pintura do artista Dalton Paula, intitulada Retrato silenciado. Na imagem, temos um busto engravatado de Lima Barreto representado de forma realista. Em seu rosto e tonalidade da pele pode se perceber traços afro-brasileiros bastante marcantes. Mas, sobretudo, o que chama a atenção nessa intrigante pintura é o olhar sisudo do personagem que emerge de sua testa franzida. Tratam-se de olhos fixos, cansados e que expressam uma desconcertante melancolia. De fato, essa imagem representa um Lima Barreto que é um atento e concentrado observador e não há traços de deslumbramento nessa esfinge. É uma iconografia que marca forte oposição simbólica em relação às charges – veiculadas na imprensa carioca da época – com seus traços exagerados e que reforçam o estereótipo do Lima Barreto desleixado ou de algumas fotografias nas quais o autor de Isaías Caminha aparece branqueado. De modo que, a começar pelo exercício de visualização do livro, o leitor saberá que tem em mãos uma obra também bem acabada em termos gráficos. Na parte inicial do livro, temos uma análise sobre as origens familiares e a educação primária destinada ao biografado. Lilia Moritz trata, em certos aspectos, do contexto que diz respeito à união matrimonial de um casal de jovens negros, porém que tiveram acesso a uma educação privilegiada em se tratando da situação socialmente desfavorável a que estava relegada a grande leva humana remanescente da abolição da escravidão. Apadrinhados pela influente família Pereira de Carvalho, os pais de Lima Barreto, João Henriques e Amália Henriques – o primeiro foi formado pelo Imperial Instituto Artístico e exerceu o ofício de tipógrafo na Imprensa Nacional e a segunda, educada com grande esmero, foi diplomada professora das séries iniciais – encararam o acesso aos estudos como uma importante ferramenta de mobilidade social. Nesse sentido, a autora preocupa-se menos em perseguir fatos e curiosidades sobre os genitores do seu biografado e mais em problematizar como a trajetória desses atores históricos é “feita de muito esforço e mérito pessoal, mas igualmente de favores e protecionismos, elementos sem os quais seria difícil escapar da fronteira de cor e da origem social” (SCHWARCZ, 2017, p. 41). Sem perder o enfoque na análise do panorama histórico que diz respeito à chegada das teses sobre a eugenia racial com força total no Brasil, Lilia Moritz continua tecendo, recorrendo também aos periódicos e artigos de opinião da época, sua narrativa ANTARES, v. 10, nº 19, jan/abr 2018 152 sobre os dissabores e conquistas que fizeram parte da vida de Afonso Henriques. É interessante ressaltar aqui o distanciamento que a autora toma da tendência acadêmica de enquadrar o escritor carioca no estereótipo do pobre coitado ensandecido ou vítima de racismo (SILVA, 1981)1. Demonstrando coerência com o postulado de que “não seria justo e muito menos correto dar a Lima só o lugar de vítima”, pois “se fora obrigado a largar os estudos para cuidar do pai doente e se virara arrimo de família no início da mocidade, Lima não se acomodava na posição de ‘vencido’” (SCHWARCZ, 2017, p. 158), temos uma interessante investigação sobre as predileções literárias do autor de Isaías Caminha e o processo de cultivo de sua verve para as polêmicas em se tratando da atmosfera intelectual que remete ao Rio de Janeiro da bela época. Em outras palavras, Lima Barreto foi também protagonista de uma postura crítica em face do processo de modernização dos trópicos, atento para todas suas contradições e interesses por trás das teses sobre a eugenia racial, mas também foi um leitor e intérprete voraz dos principais expoentes do pensamento artístico, acadêmico e político de seu tempo. Por meio do catálogo da sua biblioteca pessoal, apelidada pelo escritor de Limana e divulgado pela primeira vez por Francisco de Assis Barbosa, a autora realiza a perspicaz constatação: Na Limana, os idiomas da maior parte das obras são o português e o francês. Podem ser encontrados apenas poucos livros em italiano ou espanhol. Mas fica evidente que seu proprietário dominava a língua de Rousseau. Além dele, outros clássicos franceses dividiam recinto, como Rabelais, Diderot, Voltaire, Victor Hugo, Chateaubriand, La Fontaine, Flaubert, Balzac e Anatole France, cujo modelo literário (e combativo politicamente) era, com frequência, evocado por Lima. Ali havia ainda volumes de Cervantes, Dante, Schopenhauer, Nietzsche, Camões, Shakespeare e Eça de Queirós, de quem o escritor se dizia seguidor. Seu apreço aos russos está também representado pelos livros de Dostoiévski, Tchékhov, Turguêniev e Tolstói. Essa era a “galeria íntima” de Lima, os nomes que declinava como “seus” (SCHWARCZ, 2017, p. 320). Na verdade, embora tenha feito uma detalhada incursão pelo catálogo da Limana, comprometida em refletir sobre o impacto que determinadas vertentes teóricas e literárias exerceram sobre a prosa barretiana, Lilia Moritz deixa o leitor em compasso de espera em se tratando da elaboração de um estudo mais sistemático sobre as adesões e rejeições em se tratando das preferências internacionais de leitura do autor. Cabe citar 1 Tendência essa que pode ser aqui melhor exemplificada a partir da biografia Lima Barreto: escritor maldito, do crítico e jornalista Hélcio Pereira da Silva, publicada pelas editoras Civilização Brasileira e MEC em 1981. Um dos problemas de composição dessa obra é a tendência do autor em corroborar os juízos de valores do biografado. Desse modo, a literatura de nomes como Machado de Assis, Rui Barbosa, Olavo Bilac, Sílvio Romero e outros importantes escritores aparece diminuída para que as opiniões estéticas de Lima Barreto, além da sua ideia de Arte militante, possam triunfar sobre os alvos de sua pena ferina. ANTARES, v. 10, nº 19, jan/abr 2018 153 aqui que a passagem de Anatole France – um dos principais personificadores da imagem contemporânea do escritor engajado contra as injustiças sociais e em prol dos preceitos humanistas – pela Academia Brasileira de Letras – ABL, em 1909, não passou despercebida por Lima. Assim como também é preciso compreender melhor como as escritas de Dostoiévski e Tolstói, na medida em que estão comprometidas com a valorização da condição de personagens inspirados em toda sorte de atores sociais marginalizados, tais quais assassinos, prostitutas, ladrões, mendigos ou funcionários públicos de baixa patente, por exemplo, acabaram deixando uma indelével marca nos posicionamentos estéticos e políticos barretianos (AZEVEDO NETO, 2015). Em linhas gerais, em se tratando de discutir aspectos da constituição intelectual do biografado, pode-se afirmar que a autora contribuiu para um melhor entendimento dos ecos que as teses eugenistas de nomes como G. Le Bom, Haeckel, Buckle, Topinard, Gobineau e outros, exerceram entre a intelligentsia brasileira na Primeira República. Com ênfase, lógico, nas cismas e rejeições externadas por Lima Barreto do ideário raciológico do século XIX seja em âmbito pessoal ou público. O fato é que, em uma dimensão geracional, esses autores já vinham sendo duramente criticados por diversos setores da literatura libertária e ligados ao movimento operário dessa época. Assim, embora panorâmica em alguns tópicos, a biografia sobre Lima Barreto, de Lilia Moritz Schwarcz, pode ser considerada leitura obrigatória para quem se interessa sobre o processo de formação do modernismo literário brasileiro ou pelas relações entre literatura e sociedade republicana. Referências AZEVEDO NETO, Joachin. Vida literária e desencantos: uma história da formação intelectual de Lima Barreto (1881-1922). 342 f. Tese (Doutorado em História) – Centro de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015. BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto (1881-1922). 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959. PRADO, Antonio Arnoni. Lima Barreto: autobiografia literária. São Paulo: Editora 34, 2013. ANTARES, v. 10, nº 19, jan/abr 2018 154 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. SILVA, H. Pereira da. Lima Barreto: escritor maldito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1981. ANTARES, v. 10, nº 19, jan/abr 2018 155