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A CABEÇA ERGUIDA DE LIMA BARRETO Keli Cristina Pacheco RESUMO: A condição de exílio abrange uma categoria muito maior que a da experiên- cia migratória, ou seja, é possível sentir-se exilado na própria terra. Esse sentimento de "não-pertencimento", presente em alguns romances de Lima Barreto, parece também estar representado em algumas fotografias do escritor, engendrando uma espécie de desejo de desterritorialização. PALAVRAS -CHAVE: Exílio. Lima Barreto. Desterritorialização. ABSTRACT: The condition of exile includes a category much broader than that of the migratory experience, that is, it is possible to feel exiled within one's own land. This feeling of "not-belonging", present in some novels by Lima Barreto, seems represented in some pictures of the writer, generating some sort of desire for deterritorialization. KEYWORDS: Exile. Lima Barreto. Deterritorialization. 83 Num dado momento do ensaio Franz Kafka - a propósito do décimo aniversário de sua morte, Walter Benjamin nos descreve uma fotografia de criança. No centro desta imaginamos os olhos fixos de Kafka, negros, enormes. Ao fundo surge a paisagem falsa fabricada por outros olhos que não os do Kafka infantil, que não os nossos. A paisagem tropical, com palmeiras, fazia fundo à figura do menino que nasceu na Tchecoslováquia, de origem judaica e que escrevia em alemão.' O escritor que figura como uma espécie de 'rei dos exilados' 2 não poderia ser fotografado de outra forma. Concordamos com Benjamin, "seus olhos incomensuravelmente tristes dominam a paisagem feita sob medida para eles" (BENJAMIN, 1996, p. 144). Numa outra fotografia, esta diante de nós, vemos um homem negro sentado numa cadeira também ante uma paisagem tropical, porém esta é aparentemente real. Nela, coincidentemente, uma palmeira também desponta ao fundo. Este homem, bem vestido num terno risca de giz, camisa de manga longa e com um colete muito apertado, cruza as pernas. No bolso uma das mãos; a outra empunha o charuto. Olha para a objetiva com a cabeça erguida e o olhar endurecido. O calor que a paisagem tropical evoca certamente não condiz com seus trajes. Assim, nos apropriamos de Benjamin e nos desviamos do imaginado olhar triste do menino Kafka para os olhos incomensuravelmente distantes de Lima Barreto, que não dominam a paisagem, parecendo mais se afastarem dela, num salto, como se aquela paisagem ao fundo se fizesse ficção, assemelhando-se a uma simples montagem. ' Kafka escrevia em alemão de Praga, muito diferente do alemão de Goethe, por exemplo. Segundo Deleuze e Guattari, "Wagenbach, nas belas páginas onde analisa o alemão de Praga, cita como características: o uso incorreto de proposições; o abuso pronominal; [...] a distribuição das consoantes e das vogais como discordância interna. Wagenbach insiste no seguinte: todos esses traços de pobreza de uma língua encontram-se em Kafka, mas tomados em um uso criador... a serviço de uma nova flexibilidade, de uma nova intensidade". [DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka - por uma literatura menor. Trad. Júlio Castafion Guimarães. RJ: [mago, 1977, p. 35-36.] Além do aspecto biográfico, denominamos o escritor deste modo porque em muitos pontos de sua obra o insulamento das personagens é constante, seja porque se tornaram insetos (A metamorfose), ou porque vivem ao pé do castelo (O Castelo), ou porque se constrangem ante o Estado (O processo, Diante da Lei). A personagem "desliza fora dele [do castelo, do 'tribunal', etc.] e lhe é hostil", escreve Benjamin. "Pode ocorrer que o homem acorde um dia e verifique que se transformou num inseto. O país do exílio - o seu exílio - apoderou-se dele". [BENJAMIN, Walter. "Franz Kafka - a propósito do décimo aniversário de sua morte". In: Magia e Técnica, Arte e Política -Obras escolhidas Vol. I. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 10'ed. SP: Brasiliense, 1996, p. 151-152.] FIG. 1 - Lima Barreto, 1909. [Reprodução de BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1961.] 85 Benjamin, neste trecho, refere-se ao romancista, não ao escritor, contudo, utilizamos aqui essa identificação entre romancista e escritor porque o romance é considerado por muitos estudiosos como o principal gênero literário. Segundo Bakhtin, "o romance tornou-se o principal personagem do drama da evolução literária na era moderna precisamente porque, melhor que todos, é ele que expressa as tendências evolutivas do novo mundo, ele é, por isso, o único gênero nascido naquele mundo e em tudo semelhante a ele. O romance antecipou muito, e ainda antecipa, a futura evolução de toda a literatura". [BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. Trad. Aurora Fornoni Bernardini (et al.). SP: Hucitec, 1988, p. 400]. Segundo Maurice Blanchot, a condição poética também é de exílio. "O poeta está em cabo, está exilado da cidade, exilado das ocupações regulamentadas e das obrigações limitadas, do que é resultado, realidade apreensível, poder". [BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Trad. Alvaro Cabral, RJ: Rocco, 1987, p. 238.] Porém, com algumas particularidades, no caso da fotografia infantil de Kafka temos uma paisagem tão deslocada que o exilado "sente-se em casa", a afirmação do sentimento se dá por via negativa. Afinal, os olhos de um exilado nunca irão "dominar a paisagem", a única possível é somente aquela paisagem estranha, também ali exilada, que os olhos infantis de Kafka parecem reconhecer, conforme indica Benjamin. Em Lima Barreto, a paisagem transforma-se num outro, o que é real aparenta ficção e, nesse jogo, a figura central parece deslocada. Pensamos no poema de Drummond: "Paisagens, país / feito de pensamento da paisagem. / na criativa distância espacitempo. / à margem de gravuras. documentos. / quando as coisas existem com violência / mais do que existimos: nos povoam / e nos olham. nos fixam. Contemplados. / submissos. delas somos pasto. / somos a paisagem da paisagem". [ANDRADE, Carlos Drummond de. "Paisagem: como se faz". In: As Impurezas do Branco. RJ: Record, 1990, p. 47.] Conforme Beatriz Sarlo, a paisagem é produto do olhar: "Raymond Williams afirma, creo que correctamente, que el paisaje es un producto de la mirada. Podría asegurarse que el paisaje es una construccíon de la experiencia distanciada, que responde a un régimen anti-utilitarios. En un sentido, el paisage es una producción opuesta al trabajo, que organiza la naturaleza con objetivos distintos de los del traba- 86 Para tratar do tema do exílio nada mais sugestivo do que fotografias de escritores, visto que estas imagens estabelecem uma espécie de duplo segregamento. Segundo Benjamin, "o romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar e exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. [...]. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites" (BENJAMIN, 1996, p. 201).3 O modelo da fotografia também se segrega diante de um aparelho, tal qual o ator de cinema, "sente-se um exilado [...] de si mesmo. Com um obscuro mal-estar, ele sente o vazio inexplicável resultante do fato de que seu corpo perde a substância, volatiliza-se, é privado de sua realidade, de sua vida, de sua voz, e até dos ruídos que ele produz ao deslocar-se, para transformar-se numa imagem muda [...]" (BENJAMIN, 1996, p. 179-180). Com a diferença de que a imagem do ator de cinema é efêmera, "passa-pela-tela-sem-deixarmarca" (SUSSEKIND, 1987, p. 8), desaparece em fotografias quadro a quadro, porém é fotografia. Deste modo, fotografar um escritor é exilar o já exilado, ou seja, é sobejar uma condição. Além desse aspecto, que podemos chamar de extrínseco à imagem, a leitura de Benjamin da figura de Kafka infantil e a descrição da fotografia de Lima Barreto também evocam o sentimento de exílio através da força da imagem do deslocamento entre corpo e paisagem. 4 Sobre isto, Jean-Luc Nancy, no ensaio Paysage avec dépaysemant (NANCY, 2003, p. 58-61), ao realizar a declinação da palavra pays, paysan e paysage nos mostra que a paisagem é o caso da representação do país (dado como o caso da situação). Como sabemos, presente na tradição da literatura brasileira, a paisagem foi muitas vezes construída com o propósito de se fixar uma identidade nacional. Lembremos, como exemplo recorrente, "da paisagem da paisagem" de José de Alencar (criada pelo olhar europeizado). Dessa forma, a paisagem pode ser entendida como uma cena natural, mediada pela cultura (o olhar).6 Por conseqüência, quando apontamos para o deslocamento entre a paisagem e o corpo de Lima Barreto, além de sugerirmos uma dissonância entre as idéias deste com relação àquela paisagem já formada pela tradição a que nos referimos rapidamente, propomos um alargamento da definição usual de exílio. Visto que o sentimento presente nas imagens que evocamos no início deste ensaio nos fazem experienciar um outro tipo de exílio que não só aquele dos econômica e politicamente deslocados, ou seja, o exílio físico do imigrante, do expatriado, do estrangeiro. Com o auxílio de Benjamin, discernimos que a condição de exilado abrange uma categoria muito maior que a da experiência migratória, "o exilado atravessa fronteira, rompe barreiras do pensamento e da experiência" (SAID, 2003, p. 58). Isto significa que o exílio não é somente "afirmado a partir da existência da terra natal, do amor por ela e de uma ligação real com ela; a verdade universal do exílio não é que se tenha perdido esse lar, esse amor, mas que inerente a cada um, existe uma perda inesperada e indesejada" (SAID, 1999, p. 411). Em vista disso, "sentir-se desterrado em sua própria terra" 7 passa a ser de fato uma experiência possível. Ou seja, conforme indica Sérgio Cardoso, não só a viagem (deslocamento), mas também o modo de olhar desencadeia a experiência do exílio. "Como se, em ocasiões privilegiadas, os olhos arrebatassem todo o corpo na sua empresa de exploração da alteridade, no seu intuito de investigar e compreender, no seu desejo de 'olhar bem'". Freqüentemente a experiência do exílio é atribuída à simples estranheza do entorno que localiza o viajante, o que indicaria a necessidade de deslocamento (dépaysament) físico. Porém, as viagens, "na verdade, nunca transladam o viajante a um meio completamente estranho, nunca o atiram em plena e adversa exterioridade; mas, marcadas pela interioridade do tempo, alteram e diferenciam seu próprio mundo, tornam-no estranho para si mesmo". Desta forma, o estranhamento da viagem passa a ser relativo ao próprio viajante, o que nos faz compreender mais profundamente que o 'outro' só é alcançado em nós mesmos, "que o 'estranho' está prefigurado no sentido aberto do nosso próprio mundo [...]. Compreendemos [...] que o 'estrangeiro' está sempre delineado — latente e invisível — nas brechas de nossa identidade [...]. Não podemos apanhálo fora, só o tocamos dentro" (CARDOSO, 1988, p. 359-360). Deste modo, para que sintamos a experiência do exílio é necessário, antes de tudo, provocar o distanciamento de nós para nós mesmos, tendo como princípio a desterritorialidade, 8 seja esta do corpo ou do olhar. Aliás, a experiência do estranhamento é considerada por muitos como sendo um sentimento comum dos tempos modernos. Conforme Stuart Hall, "esta é a sensação familiar e profundamente moderna de deslocamento, a qual — parece cada vez mais — não precisamos viajar muito longe para experimentar. Talvez todos nós sejamos, nos tempos modernos — após a Queda, digamos — o que o filósofo Heidegger chamou de unheimlicheit - literalmente, 'não estamos em casa'" (HALL, 2003, p. 27). De fato, o sentimento de exílio, em matize por vezes mais viva ou mais delicada, é elemento permanente na história humana. Não só nos tempos atuais, mas "desde Adão e Eva até Maomé, passando por Noé, jo. El paisaje pertence al mundo de convenciones de la estética". [SARLO, Beatriz. Una modernidad periférica: Buenos Aires, 1920 y 1930. Buenos Aires: Ediciones Nueva Vision, 1988, p. 34.1 7 Referência à célebre sentença "somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra", de Sérgio Buarque de Holanda, presente na primeira página de Raízes do Brasil. [HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26' ed., SP: Cia. das Letras, 2003, p. 31.1 Uso o conceito de desterritorialização formulado por Gilles Deleuze e Félix Guattari. "A função da desterritorialização: D é o movimento pelo qual se abandona o território. É a operação da linha de fuga. [...I O próprio território é inseparável de vetores de desterritorialidade que o agitam por dentro: seja porque a territorialidade é flexível e 'marginal', isto é, itinerante, seja porque o próprio agenciamento territorial se abre para outros tipos de agenciamentos que o arrastam". [DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. In: Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia. Coord. da Trad. Ana Lúcia de Oliveira. SP: Editora 34, 1996, p. 224 -225, Vol. 5.1 87 9 "Castigo pelas faltas praticadas - por aqueles que traíram a aliança divina, preterindo-a por conluios políticos e mancomunações inconfessáveis (Is., 8,6, Is; Ez., 17, 19s), por quantos recorreram à violência e à fraude (Is., 1,23; 5,8; 10,1); pelas faltas de todos - a imoralidade e a idolatria (Jr., 5,19; Ez., 22), responsáveis pela transformação de Jerusalém em cidade depravada". [QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência, ou a literatura do exílio. RJ: Topbooks, 1998, p. 22.] Na mitologia grega o mito da migração também se associa a pena e castigo (por ex., o mito de lo). " "Caim, exilado, funda a primeira cidade que se tem notícia, à qual deu o nome de seu filho, Henoc. Aos setenta e cinco anos de idade, Abraão abandona Ur, sua terra natal, para ir à procura do desconhecido e refazer a vida ao lado de sua gente. E é essa mesma fortaleza de ânimo que move Moisés nos quarenta anos da travessia no deserto". [QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência, ou a literatura do exílio. RJ: Topbooks, 1998, p. 29.] Assim, o exílio - "teofania negativa - eleva-se a revelação da vigilância divina, dos malefícios do pecado e da severa condenação do Mal. É prova fecunda da omnipresença, da omnisciência e da omnipotência, de Deus. O homem é peregrino no mundo. O seu domicílio na terra é transitório, é tenda (o tabernaculum latino)". [QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência, ou a literatura do exílio. RJ: Topbooks, 1998, p. 23.] " A isso, em Homero, se liga o tema da memória (mnemesis), sem a qual não há identidade. 88 Abrãao, Moisés e Jesus, o tema do exílio está presente". Nos livros sagrados, o exílio está ligado à idéia de castigo (QUEIROZ, 1998, p. 29).9 No entanto, dele também deriva um bem maior: o perdão, a remissão do pecado e a renovação da aliança com Deus. Sobreleva observar que o exílio, nos textos sagrados, não implica somente uma experiência de ruptura, de rejeição e de renúncia; implica também sutura, reconstrução, criação." Na literatura, já com Homero, o 'mal da ausência' é tema constante. Em Ilíada e Odisséia acompanhamos o exílio de Ulisses e seu retorno, sendo que este não se dá de maneira simples. Ao regressar, Ulisses não é reconhecido pelos seus (somente pelo seu cão Argos) e para retomar seu lugar "o herói deve fazer-se valer: pela força do braço, pela autoridade e pelo direito. [...] Donde se infere que a identidade se atesta com atos" (QUEIROZ, 1998, p. 42). Como nos textos bíblicos, na Grécia de Homero o exílio era visto como um castigo por excelência. Ser excluído da comunidade é ter raízes no ar, os an-hestios equivalem aos nossos 'fora-da-lei'. A idéia de pátria era então vinculada a conceitos consagrados de heroísmo. "Exige-se do herói mais do que a estima da família e o respeito dos concidadãos; ele deve ser digno dos antepassados, dos guerreiros que antes dele se bateram pelos deuses e pela pátria e de quantos o precederam na defesa dos princípios que regem a moral e os costumes na polis". Com Ulisses, Homero procura nos convencer da necessidade de fazer parte de um grupo, de pertencer a um clã, a uma cidade. "A consciência cabal da posse de um rosto, de uma fisionomia, de um caráter e de uma identidade circunscrevem-se aos limites da terra onde somos conhecidos e reconhecidos" (QUEIROZ, 1998, p. 43)." Em Édipo em Colono, de Sófocles, o exílio também aparece como desgraça irrevogável. Destituído de poder, cego, dependente das filhas, Ed ipo só desperta comiseração. É 'o estrangeiro'. Tal como reproduz Sófocles em Édipo Rei e Édipo em Colono, a vida de Édipo se passa sob o signo do autodegredo, da exclusão. Para escapar à previsão funesta, opta pelo primeiro exilio, porém a fuga, ao invés de libertá-lo, o aprisiona, ou seja, o oráculo se cumpre. Isto realizado, Édipo inventa o próprio castigo, contudo a autopunição não o leva à catarse, e desta maneira o herói trágico parte em busca do esquecimento do crime no desterro. Porém, na sua morte, "como pensar no exílio a que Édipo se impôs como castigo? Se a própria filha o vê em repouso à sombra para a eternidade". Se considerarmos esta última sentença, de certo modo já vimos no âmbito da representação em Sófocles - diferentemente de Homero, em que a perspectiva do exílio como castigo ainda é forte - o exílio não só como perda, mas como uma espécie de salvação, possibilitando uma abertura para novas/outras perspectivas. Sófocles, de certo modo, nos faz ver que "o exílio nem sempre aniquila. Nas rupturas a que obriga, entre o cotidiano, o sentimento, a razão e a imaginação criadora, a ausência age como acic u.e.: o espírito prevalece" (QUEIROZ, 1998, p. 15-16). Segundo Maurice Blanchot, o exilado é aquele que habita a região do 'exterior eterno', "muito bem evocado pela imagem das trevas exteriores nas quais o homem é posto à prova daquilo que o verdadeiro deve negar para converter-se na possibilidade e no caminho" (BLANCHOT, 1987, p. 238). Não é mero acaso que desde a Grécia de Homero, a Roma de Virgílio, até os poetas e romancistas contemporâneos serviram-se e servem-se da perspectiva daquele que 'salta fora', ex salire12. Segundo Said, "nas obras de Eliot, Conrad, Mann, Proust, Woolf, Pound, Lawrence, Joyce, Forster, a alteridade e a diferença são sistematicamente associadas a estrangeiros que, quer sejam mulheres, nativos ou excêntricos sexuais, irrompem diante da visão para oferecer contestação e resistir a histórias metropolitanas, formas e modos de pensamento estabelecidos" (SAID, 2003, p. 133). Não só a ficção, mas também a teoria utiliza-se da perspectiva do que `está fora'. Um exemplo clássico é Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Nele, diversas teses são construídas basicamente a partir da perspectiva do olhar do 'estranho'. Holanda desenvolve boa parte de sua argumentação com base em trechos de cartas e livros de estudiosos estrangeiros que, de alguma forma, se voltaram para a problemática brasileira. Apontando, por vezes de forma direta, justamente para o poder que engloba o 'olhar do estranho', aliás, olhar que, segundo o autor, nos é comum." Porém, uma vez que, como nos ensinou Cardoso, o olhar de 'estranhamento' acaba sendo relativo ao exilado, nem todo exílio acaba desencadeando a vantajosa conversão do homem "na possibilidade e no caminho", a que se referiu Blanchot". Como o exílio é sentido/interpretado usualmente como insatisfação, ou perda, é o estar 'sempre fora de si mesmo', ao pertencer " [...] ao estrangeiro, ao que é exterior sem intimidade e sem limite", o exilado pode tornar-se aquele que erra. '2 A palavra 'exílio' vem do latim exilim (de exsilium, ii, deriv. de exsilire - ex salire, saltar fora), desterro, degredo. [QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência, ou a literatura do exílio. RJ: Topbooks, 1998, p. 21.] '2 A metáfora do exílio é bastante usada, "Sérgio Buarque não inovou com esta célebre frase (ver nota 48). Em 'Os Sertões'(1902), Euclides da Cunha já empregara a idéia de exílio, seja como imagem metafórica do desconhecimento dos brasileiros do litoral em relação aos brasileiros do sertão, os habitantes da terra ignota, seja como figura paradoxal das tropas oficiais como mercenárias no próprio país. Num ensaio posterior, 'Terra sem História (Amazônia)', publicado em 'À Margem da História' (1909), Euclides inclusive antecipara a fórmula: 'Naqueles lugares, o brasileiro salta: é estrangeiro: e está pisando em terras brasileiras'". [ROCHA, João. O (des) leitor de Raízes do Brasil. Folha de São Paulo, 27out. 2002.] '4 Sobre isto, Said acrescenta que, "no final das contas, o exílio não é uma questão de escolha: nascemos nele, ou ele nos acontece. Mas, desde que o exilado se recuse a ficar sentado à margem, afagando uma ferida, há coisas a aprender: ele deve cultivar uma subjetividade escrupulosa (não complacente ou intratável)". [SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio. In: Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia. SP: Cia. das Letras, 2003, p. 57.] [...] Errar, de não poder permanecer porque, onde se está, faltam as condições de um aqui decisivo; lá onde se está, o que acontece não tem a ação clara do evento a partir do qual qualquer coisa firme poderia ser feita e, por conseguinte, o que acontece, não acontece, mas tampouco passa, nunca é ultrapassado, chega, vai e volta incessantemente, é o horror e a confusão, e a incerteza de uma 89 15 "[...] o que funda a natureza da Fotografia é a pose. [...] sempre houve pose, pois a pose não é aqui uma atitude do alvo, nem mesmo uma técnica do Operador, mas o termo de uma 'intenção' de leitura: ao olhar uma foto, incluo fatalmente em meu olhar o pensamento desse instante, por mais breve que seja, no qual uma coisa real se encontrou imóvel diante do olho". [BARTHES, Roland. Câmara Clara - nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castafion Guimarães. 9' ed. RJ: Nova Fronteira, 1984, p. 117. (itálico do original)] " Esta relação binária, 'cabeça inclinada-cabeça erguida', é rapidamente trabalhada por Deleuze e Guattari, sendo que a cabeça erguida é relacionada ao som musical informe. A partir de então os autores estabelecem uma relação biunívoca entre conteúdo e expressão; respectivamente 'cabeça inclinada-retrato e cabeça erguida-sonoridade'. Para nossa leitura, aproveitamos somente um aspecto limitado desta leitura (de Deleuze e Guattari), descontextualizando-a, formando uma outra leitura simplificada que se adequa a nossa proposta. Porém, torna-se honesto dizer que, num dado momento, Deleuze e Guattari chegam à conclusão de que essas leituras que estabelecem relações binárias e/ou biunívocas são infundadas, "na medida em que não se vê por onde e em direção a que escapa o sistema, como ele se torna, e qual o elemento que vai desempenhar o papel de heterogeneidade, corpo saturador que faz o conjunto fugir, e que quebra a estrutura simbólica, não menos que a interpretação hermenêutica, não menos que a associação de idéias leiga, não menos que o arquétipo imaginário". [DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Kafka - por uma literatura menor. Trad. Júlio Castafion Guimarães. RJ: Imago, 1977, p. 13.] Por outro lado, quando se impõe um paradoxo, como o da foto e da cabeça erguida, há uma abertura através do desejo representado pelo gesto da cabeça. 90 repetição eterna [...] O errante não tem sua pátria na verdade mas no exílio, mantém-se de fora, aquém, à margem, onde reina a profundidade da dissimulação, essa obscuridade elementar que não o deixa conviver com ninguém e, por causa disso, é assustador. (BLANCHOT, 1987, p. 238-239) Deste modo, queremos com isto dizer que é possível, no mínimo, verificar duas posturas básicas naquele que sofre a condição do exílio: ou o exilado toma proveito desta perspectiva, mesmo assustadora, de estar à margem; ou a nega e faz do exílio a sua pátria, lugar "onde reina a profundidade da dissimulação". Estas atitudes podem ser resumidas pelas metáforas da 'cabeça inclinada' e da 'cabeça erguida'. Gilles Deleuze e Félix Guattari, em Kafka - por uma literatura menor, traçam um paralelo entre estas duas posturas. Segundo eles, "esses dois elementos, o retrato ou a foto com a cabeça caída inclinada, são constantes em Kafka". A fotografia, como vimos com Benjamin, pode bem funcionar como uma metáfora do exílio, já que nela há uma privação da vida, uma falta, um vazio. Assim como no exílio, na fotografia o ser se torna estranho a si mesmo, 'seu corpo é privado de sua realidade'. Como esta condição é fato, a única possibilidade do modelo da fotografia é um erguer ou um inclinar de cabeça.' s Quando temos a 'cabeça inclinada' numa fotografia, estes dois elementos combinados "operam um bloqueio funcional, uma neutralização do desejo experimental: a foto intocável, imbeijável, interdita, enquadrada, que não pode mais usufruir a não ser de sua própria visão", representando assim o desejo de territorialização ou reterritorialização. Tal postura pode ser comparada àquela do 'exilado errante' que faz do exílio a sua pátria, como nos ensinou Blanchot. Por outro lado, a 'cabeça erguida' — que também é encontrada em toda parte na obra de Kafka, segundo Deleuze e Guattari — nos remete ao "desejo que se ergue, ou se desenfia, e se abre a novas conexões, [...] desterritorialização" (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 8-10). 16 E a esta postura, da `cabeça erguida', poderíamos associar àquele exilado que se aproveita de sua vantajosa perspectiva e se converte 'na possibilidade e no caminho', apesar da insatisfação que é comum a qualquer exílio. Isto assinala que a visão da cabeça erguida de Lima Barreto — naquela imagem que se impôs no início deste ensaio — sugere-nos justamente o desejo de desterritorialização. Imagem esta recorrente, como atesta a famosa foto do "Júri da Primavera de Sangue", publicada em jornal da época. Nela, a cabeça de Lima Barreto desponta altiva. Podemos ainda supor que esta era uma postura comum do autor, já que a cabeça erguida está presente até em caricatura. FIG. 2 - Júri da Primavera do Sangue. Lima Barreto está assinalado com um círculo. [Publicado em Careta, Rio de Janeiro, n. 120, 17 set. 1910. Reproduzido em BARRETO, Lima. Feiras e Mafuás. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1961.] FIG. 3 - Caricatura [Reprodução de BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. São Paulo: Brasiliense, 1961.1 Deleuze e Guattari, em nota de rodapé, ainda sobre Kafka, acrescentam que os retratos e as fotos podem ser vistos como fachadas enganadoras, "cujo sentido deva ser penosamente decifrado", e que as cabeças (inclinadas ou erguidas) podem significar buscas possíveis (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 13). Podemos então dizer que na imagem de Lima Barreto temos dois elementos: a fotografia, uma forma de conteúdo que impõe uma condição, aqui relacionada ao exílio; e a cabeça-erguida 91 que representa o desejo de desterritorialização, e "o desejo não é forma, mas processos, processo". A forma bloqueia o processo, ou seja, a foto procura interditar o desejo, porém "o desejo passa evidentemente por todas as posições [...], ou antes, segue todas as linhas" (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p.14). Portanto, quando se impõe um paradoxo, como o da foto e da cabeça erguida, dá-se uma abertura através do desejo representado pelo gesto da cabeça. 92 REFERÊNCIAS ANDRADE, Carlos Drummond de. As impurezas do branco. Rio de Janeiro: Record, 1990. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética (A teoria do Romance). Trad. Aurora Fornoni Bernardini (et al.). São Paulo: Hucitec, 1988. BARRETO, Lima. Prosa Seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001. BARTHES, Roland. A câmara clara. Trad. Júlio Castorion Guimarães. 9' ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 10' ed., São Paulo: Brasiliense, 1996. (Obras Escolhidas, Vol. I.) BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. 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