UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM IMAGEM E SOM - PPGIS
JOYCE FELIPE CURY
O DOCUMENTÁRIO DE PAULO GIL SOARES NA CARAVANA FARKAS:
VOZES, PERSONAGENS E CULTURA POPULAR
SÃO CARLOS - SP
2015
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM IMAGEM E SOM - PPGIS
JOYCE FELIPE CURY
O DOCUMENTÁRIO DE PAULO GIL SOARES NA CARAVANA FARKAS:
VOZES, PERSONAGENS E CULTURA POPULAR
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação
em Imagem e Som, para a
obtenção do título de Mestre em
Imagem e Som. Linha de
pesquisa: História e Políticas
do Audiovisual.
Orientador: Prof. Dr. Samuel
José Holanda de Paiva
SÃO CARLOS - SP
2015
Àqueles que documentam as múltiplas realidades da vida.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente aos meus pais, Joana e Jamil, pelo incentivo e apoio
incondicionais desde sempre. Ao meu orientador, Samuel Paiva, que me acolheu
em 2012 e confiou no projeto de pesquisa e em mim, com quem tive a
oportunidade de aprender e estar em constante diálogo. A Gustavo Souza, que
aceitou participar da Qualificação e da Defesa, apresentando ótimas referências
ao longo do percurso. Ao professor Arthur Autran, que participou da Qualificação
e aceitou prosseguir na Defesa, cuja contribuição ampliou as possibilidades do
trabalho.
Aos professores do PPGIS da UFSCar, que colaboraram com sugestões e
bibliografias valiosas: Flávia Cesarino Costa e Suzana Reck Miranda pelos
diálogos que se estenderam para além das aulas; aos professores Luciana
Araújo, Alessandro Gamo e Josette Monzani, pela indicação de referências
importantes para a realização desta caminhada. Agradeço novamente à Flávia,
pela suplência na Qualificação e Defesa. Incluo aqui a professora Naiá Sadi
Câmara por aceitar ser suplente na Defesa, que me acompanha desde a
graduação.
Aos colegas do PPGIS, amigos para todos os momentos, pelo apoio e reflexões:
Daniel Maggi, Flávio Rocha, Sancler Ebert, Marina Campos, Mateus Nagime,
Daniela Ramos, Juily Manghirmalani, Cid Machado e Tiago Severino. Aos
integrantes do grupo Cinemídia, pela pertinência das discussões nos encontros,
muitas aproveitadas para questões que travei com meu objeto de pesquisa. Ao
Felipe Rossit, secretário do PPGIS, pela solicitude e presteza. À Roberta Assef,
que estimulou a aproximação com o PPGIS, quando era mestranda do
Programa.
Aos amigos: Isaac Mathias (que também ajudou com as traduções), Luciana
Garavello, Mariel Meira, Priscila Vitelli, Vivian Takahashi, Enéias Barros e Simei
Morais, pela força e lealdade.
À Gertrud Romanelli (Trud), da biblioteca da USP de São Carlos, que conseguiu
o empréstimo de diversos livros e teses fundamentais para a pesquisa. Às
equipes da Cinemateca Brasileira e do Arquivo Multimeios do Centro Cultural
São Paulo, que disponibilizaram para cópia os documentos sobre Paulo Gil
Soares.
Aos cineastas Sergio Muniz e Sidnei Paiva Lopes (in memoriam), integrantes da
Caravana Farkas, que se dispuseram a dar entrevistas e contar um pouco mais
sobre os filmes que realizaram há 50 anos.
À Capes, pela bolsa concedida durante os dois anos em que a pesquisa foi
desenvolvida.
“Se a escolha dependesse de mim, gostaria
de passar a vida fazendo documentários”.
Paulo Gil Soares (1935-2000)
RESUMO
Esta pesquisa lança um olhar para os oito documentários dirigidos por Paulo Gil
Soares entre 1960 e 1970 na experiência hoje conhecida como Caravana
Farkas, todos realizados no Nordeste brasileiro: Memória do cangaço (1965),
Erva Bruxa (1969-70), A morte do boi (1970), A mão do homem (1969-70),
Jaramataia (1970), O homem de couro (1969-70), Vaquejada (1970) e Frei
Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges (1970). Trata-se de curtas e
médias-metragens inseridos num projeto que tinha como intuito “revelar o Brasil
aos brasileiros” – em voga no contexto do Cinema Novo –, do qual participaram
cineastas que vivenciaram uma experiência de produção bastante singular, na
qual percebe-se um compartilhamento de ideias políticas, mas, sobretudo, de
opções estéticas e temáticas no campo do documentário. Tentando-nos afastar
da generalização acerca dessa experiência, por vezes presente na literatura
sobre cinema brasileiro, apontaremos traços distintivos dos oito filmes de Paulo
Gil Soares, sendo nosso propósito delinear características da “voz” deste
cineasta na Caravana Farkas e, desta forma, diferenciá-lo de outros realizadores
da mesma experiência. Para isso, nas análises fílmicas que se sucedem, nos
deteremos em três aspectos pertinentes às construções estéticas e discursivas
de seus documentários: as vozes acionadas, o modo como os personagens são
retratados e as apropriações da cultura popular.
Palavras-chave: Documentário brasileiro; Caravana Farkas; Paulo Gil Soares;
voz; personagem; cultura popular.
ABSTRACT
This research takes a look at the eight documentaries directed by Paulo Gil
Soares between 1960 and 1970 in the experience that became known today as
Caravana Farkas, all of them made in northeastern Brazil: Memória do cangaço
(1965), Erva Bruxa (1969-70), A morte do boi (1970), A mão do homem (196970), Jaramataia (1970), O homem de couro (1969-70), Vaquejada (1970) e Frei
Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges (1970). It´s about short and
medium-length films that were inserted in a project which had the intention to
“bring Brazil to the Brazilians” – in vogue in the context of the Cinema Novo – and
it was attended by filmmakers who experienced a very singular production, in
which it is perceived a share political views and, especially, aesthetics and
thematic options in the documentary field. By trying to step away from the
generalization about that experience, which is sometimes present the literature
on Brazilian cinema, we will point out the distinctive features of the eight Paulo
Gil Soares movies. It's our purpose to outline the features of this filmmaker's
"voice" in Caravana Farkas and thus differentiate him from other directors of the
same experience. For this purpose, in the filmic analysis that follow, we will focus
in three relevant aspects to the aesthetic and discursive constructions of his
documentaries: the activated voices, the way the characters are portrayed and
the appropriation from folk culture.
Keywords: Brazilian Documentary; Caravana Farkas; Paulo Gil Soares; voice;
character; folk culture.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 12
1. CAPÍTULO 1: NA TRILHA DOS FILMES .................................................... 27
1.1 Memória do cangaço (1965) ..................................................................... 27
1.2 Erva Bruxa (1969-70) ................................................................................. 36
1.3 A morte do boi (1970) ............................................................................... 42
1.4 A mão do homem (1969-70) ...................................................................... 46
1.5 Jaramataia (1969-70) ................................................................................. 50
1.6 O homem de couro (1970) ........................................................................ 53
1.7 Vaquejada (1970) ....................................................................................... 56
1.8 Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges (1970) ........... 59
1.9 Esboços de uma “voz” ............................................................................. 61
2. CAPÍTULO 2: APROXIMAÇÃO AO OUTRO: PENSANDO OS FILMES A
PARTIR DOS PERSONAGENS ....................................................................... 67
2.1 O embate com o outro em posição de poder .......................................... 69
2.1.1 Intelectuais à prova .................................................................................. 70
2.1.2 Ambiguidades do coronel ....................................................................... 86
2.1.3 Personagens em crise ............................................................................ 94
2.1.4 O proprietário e o sindicalista ou os “vilões do trabalhador” ................... 105
2.2 Tensões com o “outro de classe”: entre o coletivo e o individual …. 111
2.2.1 Quando o outro é heroicizado: o vaqueiro Zé Galego ............................122
3. CAPÍTULO 3: A APROPRIAÇÃO DA CULTURA POPULAR .................. 129
3.1 Diálogos com Lina Bo Bardi .................................................................. 129
3.2 A voz da cultura popular: cordel, aboios e canções ............................. 144
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 165
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................. 175
FICHA TÉCNICA DOS FILMES.......................................................................186
INTRODUÇÃO
Meu nome completo é Paulo Gil de Andrada Soares. Andrada de
criadores de bois e cabras, na zona do agreste da Bahia; Soares, de
antigos exportadores de fumo, do vale do Paraguassu, cidade colonial
do Recôncavo baiano com muita saga de gente heróica.
Nasci na Bahia, na Rua do Carro. Eu e minha mãe, apenas nós dois:
há naturalmente nisto todo o mistério da minha necessidade de olhar a
vida com muita pressa, documentando-a tôda necessariamente. O dia
foi 6 de agôsto e o ano 1935. Nesse dia, algum tempo depois, foi jogada
uma bomba atômica em Hiroshima, por isso hoje não comemoro mais
aniversário, vou ficando velho sem bôlo com velinhas (ALENCAR,
1966, p.B2).
Assim se apresentou Paulo Gil Soares (1935-2000) em uma entrevista ao
Jornal do Brasil em 1966, um ano após dirigir Memória do cangaço (1965), filme
que marcou sua carreira como documentarista. Baiano de Salvador, fez parte de
uma geração de artistas e intelectuais, que conferia ao fazer artístico um fazer
político. Sua atuação começa na década de 1950 na capital soteropolitana,
conforme aponta Antonio Risério (1995)1. Ainda adolescente, ao lado de figuras
como Glauber Rocha, Fernando Peres, Calasans Neto e Florisvaldo Mattos,
integrou o que ficou conhecida como a Geração Mapa (ou grupo
Mapa/Jogralescas), grupo marcado por duas atividades: encenações de poesias
líricas – as Jogralescas de Teatralizações Poéticas – e a revista Mapa (195758), que versava sobre teatro, cinema e literatura, como lembra João Carlos
Teixeira Gomes (1997, p.27-107).
No final da década de 1950, começou a trabalhar como jornalista em
veículos da rede dos Diários Associados na Bahia, chegando à chefia de redação
muito jovem; escrevia também poemas e publicou três livros: Velas, Glaubelena
e Vida, paixão e mortes de Corisco, o Diabo louro (1984). Este último, de caráter
documental, ainda será citado ao longo da pesquisa e é o único do qual sabemos
a data. Foi membro do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional
dos Estudantes), de Salvador, no início da década de 1960, movimento políticocultural que existiu até a deflagração do golpe militar, em 1964, atuando na área
de teatro. Neste mesmo ano, Paulo Gil Soares se mudou para o Rio de Janeiro.
1
Ver também o Capítulo 3 desta dissertação.
12
Sua atividade como cineasta iniciou-se em 1963, retomando a parceria
com Glauber: torna-se assistente de direção, co-roteirista, cenógrafo e figurinista
de Deus e o diabo na terra do sol (1963), emblemática produção dos primeiros
anos do Cinema Novo brasileiro; mais tarde colabora com ele em Terra em
transe (1967) e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), sendo o
responsável pela cenografia e figurino de ambos2. Ainda no campo da ficção,
Paulo Gil dirigiu três longas-metragens: Proezas do satanás na vila do leva-etraz (1967), Um homem e sua jaula (1969) e Procura-se uma virgem (1971)3.
Mas é como documentarista a sua atuação mais intensa e contínua.
Dirigiu oito documentários no Nordeste, entre 1964 e 1970, na experiência
conhecida como Caravana Farkas4. Em seguida, entre 1971 e 1972, tornou-se
diretor artístico e de criação do programa Globo-Shell Especial, na TV Globo,
que resultou numa série de 25 documentários patrocinados pela Shell. Em 1973,
na mesma emissora, assumiu um dos cargos de direção do Globo Repórter (no
ar até hoje), que substituiu o Globo-Shell na programação, no qual permaneceu
por dez anos. Além de dirigir alguns documentários, Paulo Gil convidou cineastas
para trabalharem nos programas – a maioria deles oriunda do Cinema Novo –,
num momento singular de experimentação de linguagem na televisão. Nomes
como Eduardo Coutinho, Walter Lima Jr., Geraldo Sarno, João Batista de
Andrade, Maurice Capovilla, Eduardo Escorel, Dib Lutfi.
De acordo com Igor Sacramento (2008), são documentários dirigidos por
Paulo Gil para o Globo-Shell Especial: O negro na cultura brasileira (1972), Arte
popular (1972), Testemunho de natal (1972), O pão nosso de cada dia (1972),
Poderíamos acrescentar a assistência de direção em A cruz na praça (Glauber Rocha, 1959),
embora o filme seja dado como perdido.
2
Em Proezas do satanás na vila do leva-e-traz (1967), baseado na literatura de cordel, uma vila
se vê transformada após a descoberta de petróleo; o longa, que ganhou prêmio no Festival de
Brasília, em 1967, conta com músicas de Caetano Veloso e os atores Jofre Soares, Isabella,
Zózimo Bulbul, entre outros. Um homem e sua jaula (1969) se chamaria Matéria de memória,
por ser uma adaptação do romance homônimo de Carlos Heitor Cony; Paulo Gil abandonou sua
direção em 1967, terminada por Fernando Coni Campos, mas ambos assinam como diretores.
Finalmente, Procura-se uma virgem (1971) é uma comédia que tem no elenco nomes como Hugo
Carvana e Wilson Grey. Fonte: Filmografia do cinema brasileiro, disponível no site da
Cinemateca Brasileira: www.cinemateca.gov.br.
3
Há ainda o curta-metragem Terra triste (1963), documentário realizado durante as filmagens de
Deus e o diabo, mas não sabemos se foi finalizado. O curta teria sido rodado na mesma locação
do filme de Glauber, na cidade de Monte Santo, na Bahia, e tratava da questão do pietismo no
Nordeste (MONZANI, 2005, p.33).
4
13
Vietnam – O preço da paz (1972). Documentários para o Globo Repórter: Os
Intocáveis (1973), Meu padim, Padre Cícero (1973), Cavalos (1973), Por que
caem os aviões? (1973), John Kennedy: o homem e o mito (1973). Credita-se
também a ele o documentário O poder do machado de Xangô (1976), contudo,
foi dirigido pelo fotógrafo e etnógrafo francês Pierre Verger e apenas traduzido
por Paulo Gil para o português. Paula Muniz (2001), filha do cineasta, revelou
que o diálogo do pai com a TV Globo começou anos antes desses programas,
em 1967, quando dirigiu Amazonas: mitos e realidades.
Nosso interesse é debater sobre a produção documental de Paulo Gil,
lançando um olhar para o conjunto de documentários que realizou entre 1960 e
1970 na Caravana Farkas, inserindo-nos também nas discussões acerca desta
experiência marcante do cinema brasileiro, explorada com mais veemência
pelos estudos acadêmicos a partir dos anos 20005. Paulo Gil Soares dirigiu oito
títulos, curtas e médias-metragens, em duas fases de produção da Caravana,
que retratam diferentes aspectos do Nordeste: Memória do cangaço (1965)
recupera personagens e fatos históricos do cangaço; Erva Bruxa (1969-70) trata
da indústria fumageira na Bahia; A morte do boi (1970) foca no abate rudimentar
de bois no Nordeste; A mão do homem (1969-70) aborda a curtição e o
artesanato de couro em cidades da Paraíba e da Bahia; Jaramataia (1970)
mostra como é o trabalho na fazenda homônima, na Paraíba; O homem de couro
(1969-70) apresenta diversos aspectos sobre o universo dos vaqueiros;
Vaquejada (1970) registra a festa que é tradição entre os vaqueiros; por fim, Frei
Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges (1970) acompanha a visita de
Frei Damião a uma cidade do interior da Paraíba, trazendo entrevistas com ele
e seus devotos.
Apontaremos particularidades destes oito documentários, a fim de
delinear traços característicos da “voz”6 de Paulo Gil na Caravana Farkas,
Também nos anos 2000, o Canal Brasil e a TV Senado compraram e exibiram vários dos
documentários. Vale mencionar que alguns filmes recentes incorporaram imagens feitas pela
Caravana Farkas, caso de Thomaz Farkas, brasileiro (Walter Lima Jr., 2003), Serras da
desordem (Andrea Tonacci, 2006), Caravana Farkas (Danielle Araújo, 2010) e Dominguinhos
(Mariana Aydar, Joaquim Castro e Eduardo Nazarian, 2014). Não temos a informação de que
títulos realizados anteriormente aproveitaram o material da Caravana.
5
O conceito de “voz” é tomado de Bill Nichols (2010), sobre o qual discorreremos mais adiante.
O termo aparecerá entre aspas toda vez que nos referirmos ao sentido conferido por esse autor.
6
14
eventualmente estabelecendo o cotejo com outros de seus realizadores, com os
quais trava diálogos estéticos e ideológicos7. Por isso, são necessárias algumas
considerações sobre a experiência da qual fazem parte.
Reconhece-se hoje como Caravana Farkas o conjunto de 39 filmes
produzidos – a maioria também financiada – entre 1964 e 1981 no Brasil pelo
fotógrafo e empresário Thomaz Farkas, herdeiro das lojas Fotoptica: 37
documentários, dos quais um é em longa-metragem e os demais curtas ou
médias-metragens; e duas ficções, sendo um média e um longa8. Iremos tratar
dos documentários, divididos pelo pesquisador Gilberto Sobrinho (2008, 2010,
2011 e 2012) em três fases, mediante os diferentes modos de produção e
realização.
A 1a fase (1964-65) é composta por quatro média-metragens que
compartilham da técnica do som direto, novidade à época no país, e trazem um
retrato crítico de temas diversos: Viramundo (Geraldo Sarno, 1965) trata da
migração nordestina na cidade de São Paulo; Memória do cangaço (Paulo Gil
Soares, 1965) é filmado na Bahia e recupera aspectos da história do cangaço;
Subterrâneos do futebol (Maurice Capovilla, 1965) é realizado em São Paulo e
aborda a carreira do jogador de futebol; finalmente, Nossa escola de samba
(Manuel Horácio Gimenez, 1965) mostra os preparativos da escola de samba
Unidos de Vila Isabel, do Rio de Janeiro, antes do desfile de carnaval. Com
exceção de Memória do cangaço, captado em 35mm, os demais foram feitos na
bitola 16mm, depois ampliados para 35mmm para compor o longa-metragem
Brasil Verdade (1968), visando a exibição em salas de cinema comerciais. O
nome indica a ideia que unia o grupo centrado em Farkas, de mostrar “a verdade”
sobre o Brasil, e também remete ao cinéma vérité (cinema verdade), estilo de
documentário associado ao francês Jean Rouch, no qual a entrevista é um
O eventual cotejo será feito com documentários de Geraldo Sarno e Sergio Muniz, por serem,
ao lado de Paulo Gil, os diretores mais atuantes da Caravana.
7
A relação dos 39 filmes está no catálogo da mostra intitulada A Caravana Farkas:
Documentários – 1964-1980; apesar do nome indicar serem documentários, constam também
as duas ficções: o média-metragem O homem descasado (Rubens Xavier, 1981) e o longa O
Picapau Amarelo (Geraldo Sarno, 1973-74). Em 2009, a Videofilmes lançou um box de sete dvds,
“Projeto Thomaz Farkas: documentários”, com quase todos os documentários restaurados e
exibidos na mostra; são essas cópias que iremos utilizar em nossa pesquisa.
8
15
recurso primordial. Porém, fica difícil estabelecer uma correspondência tão
estreita com a produção brasileira, conforme veremos no decorrer da pesquisa.
Nota-se que os filmes feitos entre 1964 e 1965 não tratam de aspectos de
uma mesma região, o que vai mudar na 2ª fase (1967-1971). Nesta, são
realizados 19 documentários em viagens que os cineastas fazem ao Nordeste
brasileiro, conhecidos em conjunto sob o nome A condição brasileira, de temas
que se complementam: as relações de trabalho do homem do campo e suas
implicações econômicas, a religião, as manifestações culturais, como a literatura
de cordel, a música improvisada pelos cantadores, o artesanato. Sete, dos oito
documentários de Paulo Gil na Caravana, foram realizados nesta fase de
produção, com exceção de Memória do cangaço, da fase anterior. Geraldo Sarno
dirige nove: A cantoria (1969-1970), Vitalino/Lampião (1969), O engenho (19691970), Padre Cícero (1971), Casa de farinha (1969-1970); Os imaginários
(1970), Jornal do sertão (1970), Viva Cariri! (1969-1970), Região: Cariri (1970).
Sergio Muniz assina a direção de Rastejador s.m. (1969) e Beste (1969); e
Eduardo Escorel realiza Visão de Juazeiro (1970), seu primeiro filme como
diretor solo9.
Já a 3ª fase (1972-1981) se distancia das anteriores, tanto pelo esquema
de produção, pois alguns são em coprodução e por meio de parcerias diversas;
pela temática dispersa – do registro da produção rural a manifestações artísticas
tipicamente urbanas –; e pelos diretores envolvidos, já que permanece Sergio
Muniz, saem Paulo Gil e Geraldo Sarno, e entram nomes como Miguel Rio
Branco, Guido Araújo e o próprio Farkas. São filmes de Sergio Muniz nesta fase:
A cuíca (1978), De raízes & rezas, entre outros (1972), Cheiro/Gosto, o provador
de café (1976), Um a um (1976), Andiamo ln´merica (1977-78), Beste (1977-78)
e O berimbau (1978). Thomaz Farkas dirige outros três: Paraíso Juarez (1971),
Todomundo (1978-80) e Hermeto, campeão (1981). Dois por Guido Araújo: A
morte das velas no Recôncavo (1970) e Feira da banana (1972-73). E há
também Trio elétrico (Miguel Rio Branco, 1978), Ensaio (Roberto Duarte, 1975)
e Certas palavras (Maurício Beru, 1979).
Anos antes, em 1966, Eduardo Escorel dirigiu, ao lado de Júlio Bressane, o documentário
Bethânia bem de perto – A propósito de um show.
9
16
Cunhada pelo cineasta Eduardo Escorel, a expressão Caravana Farkas
dá nome à mostra dos filmes organizada pelo cineasta Sergio Muniz, em 1997,
no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro:
Antes da Caravana Holiday que Carlos Diegues consagrou em Bye Bye
Brasil, houve outra que partiu de São Paulo para esquadrinhar o
Nordeste. Foi a Caravana Farkas, fruto da generosidade de Thomaz
Farkas (CCBB, 1997, p.12).
Na verdade, Escorel referia-se apenas aos 19 documentários realizados
entre 1967 e 1971 em viagens ao Nordeste, mas a expressão acabou nominando
todos os filmes produzidos por Farkas. Assim, a ideia de caravana pode ser lida
para além de um deslocamento físico (as viagens) dos cineastas; no caso dos
documentários, é também um deslocar-se em direção ao outro, ao povo. Farkas
financia a maior parte dos filmes e assina a direção e a fotografia de alguns,
conforme listamos anteriormente.
Os documentários da 1ª e 2ª fases, quando Paulo Gil participou da
experiência, são realizados no auge do regime militar no Brasil, entre 1964 e
1971, reverberando o quadro ideológico da geração de artistas e intelectuais da
década de 1960, em especial do Cinema Novo. O cineasta Carlos Diegues (apud
Bernardet e Galvão, 1983, p. 135) acredita que o pensamento dos cineastas na
década de 1960, inclusive o dele próprio, estava apoiado em três pilares:
“politização”, “onipotência absoluta” e “compromisso com o país”. Politização
porque havia uma ideia de que a cultura, no caso o cinema, poderia ser agente
transformador da sociedade e, de forma mais profunda, isso representaria uma
disputa do poder pelo povo; “onipotência absoluta” porque, pelo menos até 1968,
antes da promulgação do A.I.5, havia a sensação de que o cineasta-intelectual
“podia tudo”; e “compromisso com o país”, resultante dos dois fatores anteriores,
era um sentimento de responsabilidade social por parte do cineasta.
Não é nosso intuito mapear as diversas vertentes do pensamento e da
produção cinemanovista, mas considerar seu diálogo com a Caravana Farkas,
experiência que dá continuidade a perspectivas presentes em documentários
como Aruanda (Linduarte Noronha, 1960), Arraial do cabo (Mário Carneiro e
Paulo César Saraceni, 1960) e Maioria absoluta (Leon Hirszman, 1964), filmes
17
que colocam na tela imagens e vozes do povo, abordam de forma crítica a
realidade do país e promovem renovações estéticas no cinema nacional.
A ideia de Farkas era documentar como vivia o homem brasileiro, fazer
um mapeamento do país, de modo a “revelar o Brasil aos brasileiros”: “[...] os
filmes são apenas parte de um sonho que tentava levar o povo brasileiro a
descobrir sua própria identidade” (FARKAS, 2006, p.16). Perpassa um viés
educativo que lembra as pretensões de John Grierson para o documentarismo
inglês na primeira metade do século XX, pois sua intenção era que os filmes
fossem comprados por escolas e utilizados como apoio ao material didático em
sala de aula – proposta mais enfatizada na 2ª fase de produção –, ou veiculados
pela televisão. Ambas intenções não ocorreram como se planejava, devido ao
momento político do país, mas os filmes circularam em cineclubes,
universidades, sindicatos e festivais, tendo repercussão considerável na crítica
da época. Do documentário inglês empresta-se também a tradição de uma voz
over pedagógica que ajuda a organizar o discurso, presente em vários dos
títulos, misturada a outras práticas, oriundas do cinéma vérité e do direct cinema
(cinema direto).
Para colocar em prática seu projeto, Farkas se aliou a pessoas que
compartilhavam suas ideias, sobretudo políticas:
O que nos unia era um pensamento muito parecido porque todos nós
pensávamos politicamente da mesma maneira. Se tivesse um que
tivesse uma outra, vamos dizer, ideologia, não entrava. Nós éramos
jovens, tínhamos ideais. O nosso ideal era transformar o Brasil, não
pela fotografia ou pelos filmes, mas esperar uma transformação
(FARKAS, 2003, 8’40’’)10.
Entre as pessoas que colaboraram com a produção, estavam o argentino
Fernando Birri, fundador da Escuela Documental de Santa Fe, que participou
apenas das discussões iniciais, em 1963, para a realização dos primeiros filmes;
e os também argentinos Edgardo Pallero e Manuel Horácio Gimenez. Estes dois,
que prosseguiram com Farkas, tinham colaborado com Birri em dois filmes que
abordam problemas sociais da Argentina, produções que também reverberam a
Depoimento de Thomaz Farkas ao diretor Walter Lima Jr., no documentário Thomaz Farkas,
brasileiro, de 2003.
10
18
proposta desses cineastas, com claro intuito educativo, de promover uma
tomada de consciência do subdesenvolvimento de seu país por meio do cinema:
o documentário Tiré Dié (Fernando Birri, 1958-60) e a ficção Los inundados
(Fernando Birri, 1961).
Destacam-se ainda no grupo o cineasta Sergio Muniz, que substituiu
Vladimir Herzog na produção de Viramundo e continuou com Farkas até as
últimas realizações da Caravana, exercendo diversas funções; Maurice
Capovilla, paulista que tinha estudado em Santa Fé; o fotógrafo Affonso Beato,
que trazia experiência em produções do Cinema Novo e colabora em mais da
metade dos títulos; Sidnei Paiva Lopes, responsável pelo som direto da maioria
dos filmes da 2ª e 3ª fases; e dois baianos, estreantes em direção, que não
moravam mais na Bahia quando dirigem os documentários na 1ª e 2ª fases da
Caravana: Geraldo Sarno, que havia estagiado por um ano no ICAIC (Instituto
Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos) e Paulo Gil Soares, diretor sobre
o qual esta pesquisa vai se deter. Cabe ainda mencionar o apoio acadêmico da
USP (Universidade de São Paulo), por meio do IEB (Instituto de Estudos
Brasileiros), onde são feitas pesquisas de temas para a realização dos filmes da
2ª fase11.
Constatamos que algumas tentativas de classificação geral dessa
produção foram feitas por críticos e pesquisadores, sem que houvesse um
consenso. Fernão Ramos (2004 e 2008), por exemplo, fala em um “estilo
verdade” (RAMOS, 2004, p. 91-92) das primeiras produções e em outro
momento as inclui como representantes do “direto” no que ele chama de
“documentário novo brasileiro” (RAMOS, 2008, p.376-406), admitindo que
procedimentos do documentário clássico griersoniano, como a utilização da voz
over pedagógica, se aliavam às tomadas em som direto e às imagens feitas no
“corpo a corpo” entre cineasta e mundo representado. Já Marcius Freire (2009,
p.4-5), ao observar a 2ª fase de produção da Caravana, considera os
O IEB chegou a aceitar, em 1966, o projeto “Pesquisa e documentários sobre cultura popular
do Nordeste” (que se tornou a 2ª fase de produção da Caravana e receberia o nome de A
Condição Brasileira), encaminhado pela produtora de Geraldo Sarno, Saruê Filmes Ltda., e pela
produtora de Thomaz Farkas, Thomaz J. Farkas, com proposta de coprodução de
documentários, o que não se realizou naquele momento. A colaboração da instituição se deu por
meio da socióloga e professora da Universidade, Maria Isaura Pereira de Queiroz, que escreveu
textos para acompanhar os documentários da 2ª fase de produção, para fins de sua
comercialização como material didático.
11
19
documentários como “etnográficos” e os incompatibiliza à tradição documental
norte-americana ou francesa, aproximando-os do documentário clássico inglês.
O crítico e cineasta David Neves (1966, s/p), à época das primeiras produções,
as intitularia como pertencentes ao cinema direto brasileiro, ponderando que
aqui tínhamos “ecos” do que se produzia internacionalmente. Já o crítico e
historiador de cinema Paulo Emílio Salles Gomes (1965), no artigo “Novembro
em Brasília”, sobre o Festival de Brasília e o filme O desafio (Paulo Cesar
Saraceni, 1965), sugere que o filme de Saraceni, assim como as primeiras
produções de Farkas, seriam “filmes-conversa”, referindo-se ao peso da fala em
tais filmes. Outra denominação vem do cineasta Orlando Senna, que em
entrevista para um especial sobre a Caravana realizado pela TV Senado em
2003, disse serem produções exemplo de “documentário social”.
Concordamos com Gilberto Sobrinho (2012), ao resumir que os
documentários da Caravana podem ser lidos a partir de três linhas de força:
1) a formação de uma geração de importantes realizadores cuja
envergadura singulariza o moderno documentário brasileiro, a saber:
Geraldo Sarno, Paulo Gil Soares, Maurice Capovilla, Eduardo Escorel,
Sérgio Muniz e outros; 2) as experiências de linguagem em filmes que
asseguram um lugar de autonomia na apropriação das novas técnicas
de gravação em imagem e som, sendo os filmes da Caravana algo que
marca o singular do cinema direto/verdade brasileiro; 3) o conteúdo
narrativo dos filmes é marcado pelo registro de formas de manifestação
da cultura brasileira em setores como trabalho, religião, artesanato,
literatura etc., consideradas suas inter-relações e todo o espectro com
que compõem um museu vivo de extratos de uma realidade em
transformação, em face do processo de modernização do país
(SOBRINHO, 2011, p.315).
Nossa pesquisa entra neste debate, propondo um olhar não generalizante
da produção, mas a partir das particularidades dos documentários de cada
realizador, no caso, Paulo Gil Soares. Seguimos um caminho já iniciado por
Sobrinho (2008, 2011, 2012 e 2013), que se voltou com mais ênfase para os
filmes de Geraldo Sarno e Sergio Muniz, traçando suas características
estilísticas e temáticas. Clara Leonel Ramos (2007) também salienta tal aspecto
no próprio título de sua dissertação de mestrado, As múltiplas vozes da
Caravana Farkas e a “crise” do modelo sociológico, afirmando tratar-se de uma
produção heterogênea, em que são notáveis singularidades no conjunto de
filmes de cada realizador.
20
Desta forma, aproveitando o mesmo termo utilizado pela autora,
pretendemos traçar características da “voz” de Paulo Gil Soares na Caravana
Farkas. O conceito de “voz” é tomado de Bill Nichols (2010):
O fato de os documentários não serem uma reprodução da realidade
dá a eles uma voz própria. Eles são uma representação do mundo, e
essa representação significa uma visão singular do mundo. A voz do
documentário é, portanto, o meio pelo qual esse ponto de vista ou essa
perspectiva singular se dá a conhecer (NICHOLS, 2010, p.73) [grifo
original].
Nichols confere à “voz” uma noção ampla e intangível, não restrita ao
sentido literal do termo, ao que é dito verbalmente por um locutor ou pelos
personagens em um documentário. Ela atesta, por exemplo, o “caráter”
(relacionado à ética) de um documentarista e também sua “visão criativa”
(relacionada ao estilo): “A voz do documentário transmite qual é o ponto de vista
social do cineasta e como se manifesta esse ponto de vista no ato de criar o
filme” (Ibid., p.76). Trata-se de uma “voz” que fala por meio de todos os códigos
visuais e sonoros do filme, por sua vez dependentes das escolhas do
documentarista tanto no momento do registro quanto da montagem: composição
dos planos, aproximação ou distanciamento dos elementos filmados, quando e
o quê cortar, gravação de comentário em voz over, depoimentos tomados em
som direto, inserção de fotografias de arquivo, adição de músicas, organização
cronológica dos materiais, enfim, são inúmeras as possibilidades. Ou seja, tratar
da “voz” de Paulo Gil é compreender seu “envolvimento no mundo histórico”
(Ibid., p.74) a partir de como ele organiza esses códigos.
Embora Nichols (1997 e 2010) não explicite, esboça-se em sua
abordagem a questão da autoria no documentário12. Por exemplo, ele sugere
que documentaristas como Frederick Wiseman, Chris Marker, Esther Shub e
Marina Goldovskaya seriam donos de uma “voz própria” (Ibid., p.135), aventando
a possibilidade da “voz” atestar a individualidade do realizador. Significativo – e
inspirador para nossa pesquisa – neste sentido é o artigo “Fred Wiseman´s
documentaries: theory and structure”, no qual aponta características da “voz”
Alguns pesquisadores têm se debruçado sobre a questão da autoria no documentário,
propondo paradigmas teóricos a partir de diferentes objetos. Ver: COELHO (2012), FREIRE
(2011), SERAFIM (2009) e SOUZA (2012).
12
21
desse documentarista, antes mesmo de apresentar o conceito13. A partir da
observação das estratégias de montagem, funções desempenhadas pelos
personagens, entre outros aspectos apreendidos do texto fílmico, Nichols efetua
uma leitura que revela como determinadas escolhas de Wiseman, no nível da
linguagem, implicam em questões éticas, políticas e ideológicas com relação ao
“mundo histórico representado”, no caso, instituições públicas norte-americanas.
Em vez de uma “teoria do autor”, Nichols (1997 e 2010) fala em uma
“teoria do gênero”, identificando seis “modos de representação” documental, que
agrupam as diferentes “convenções” adotadas pelos documentaristas em
épocas diversas: poético, expositivo, observativo, participativo (ou interativo),
reflexivo e performático14. Cabe uma breve explicação sobre eles, já que ao
longo da pesquisa alguns serão mencionados.
O modo poético (exemplos são filmes de Joris Ivens e Chris Marker)
salienta aspectos formais – visuais, sonoros ou da montagem –, aproximandose da experimentação: “[...] enfatiza mais o estado de ânimo, o tom e o afeto do
que as demonstrações de conhecimento ou ações persuasivas” (Ibid., p.138). O
modo expositivo (John Grierson, Robert Flaherty) apoia-se no verbal para expor
um argumento, seja por meio de legendas ou pelo comentário em voz over, numa
intenção didática, dirigindo-se diretamente ao espectador. O modo observativo
(Frederick Wiseman, Robert Drew, irmãos Maysles) transmite a sensação de
menor interferência do cineasta ao real possível, uma ideia de transparência;
evita-se a inserção de voz over, músicas extra-diegéticas, entrevistas, enfim,
aquilo que não foi captado no instante da tomada. O modo participativo ou
interativo (Jean Rouch, Eduardo Coutinho) assume o encontro do cineasta
(mesmo que sua imagem não apareça) com situações/personagens do “mundo
histórico”; normalmente caracterizado pela entrevista. Já o modo reflexivo (Dziga
Vertov) encaminha o espectador a refletir sobre o fazer documental. Por fim, o
“Fred Wiseman´s documentaries: theory and structure” foi publicado originalmente em 1978
na revista Film Quarterly e depois como capítulo do livro Ideology and image: social
representation in the cinema and other media, em 1981. O primeiro artigo no qual Nichols
defende seu conceito de “voz”, “The voice of documentary”, foi publicado apenas em 1983, no
mesmo periódico.
13
Em La representación de la realidad – tradução em espanhol do livro Representing reality,
publicado em 1991 –, o autor fala em quatro modos, que posteriormente se desdobraram nos
seis mencionados: expositivo, de observação, interativo (participativo) e reflexivo.
14
22
modo performático (Jonas Mekas, Marlon Riggs) enfatiza a subjetividade do
próprio cineasta.
A maneira como Nichols (2010) apresenta os modos, tomando exemplos
que seguem uma ordem cronológica, pode nos levar, precipitadamente, a uma
história do documentário, mas o autor alerta para que não os encaremos assim,
nem a partir da superação de um modo por outro, pois eles aparecem em filmes
de várias épocas e simultaneamente. Pensando nesta simultaneidade sugerida
por Nichols e julgando ser pouco produtivo tentar encaixar nosso objeto em
modos ou outras tipificações, trabalhamos com a ideia de que um documentário
pode apresentar níveis de modos de representação.
Inspiramo-nos em um raciocínio de Roger Odin (2012, p.27), quando fala
em “escala documentária” e “níveis de documentaridade”, referindo-se à
possibilidade de alguns documentários serem mais documentários do que
outros, dependendo das “instruções documentarizantes” inscritas no texto fílmico
e do quanto o espectador filia o que está vendo a um Enunciador real. Por
exemplo, os créditos podem sugerir que se trata de um documentário ao informar
quem produziu o filme, assim como figuras estilísticas, como a locução
explicativa, a utilização de entrevistas, imagens feitas com a câmera na mão,
etc. Segundo o autor, tais instruções podem se dar em maior ou menor nível em
um mesmo filme, o que permitiria falar em “escala” e “níveis”. De forma análoga,
consideramos que pode haver, em um mesmo documentário, momentos mais
participativos, mais expositivos, mais reflexivos, etc., dependendo das
“instruções de leitura” que oferecem as sequências escolhidas para serem
analisadas: são os níveis de modos de representação.
Outro autor central para a pesquisa é Jean-Claude Bernardet, sobretudo
suas reflexões no livro Cineastas e imagens do povo. Bernardet (2003) analisa
alguns documentários brasileiros realizados entre as décadas de 1960 e 1980,
precisamente curtas e médias-metragens, começando justamente por duas
produções da 1ª fase da Caravana Farkas: Viramundo (Geraldo Sarno, 1965) e
Subterrâneos do futebol (Maurice Capovilla, 1965), configurando-os como
representantes do que ele denominou de “modelo sociológico” de documentário.
Levando em conta as diversas vozes que falam nos filmes, o autor sugere que
tal modelo é pautado, resumidamente, por uma relação hierárquica sujeitoobjeto, na qual o sujeito é o cineasta, dono da “voz do saber” e, portanto, do
23
discurso; e o objeto são os entrevistados, representantes da “voz da
experiência”, da vivência individual.
Em outras palavras, aqueles que dão os depoimentos, notadamente o
“outro de classe”15 em relação ao cineasta, são dissolvidos de sua condição de
sujeitos, tornam-se objetos de estudo e falam para reforçar uma tese construída
pelo cineasta, normalmente alicerçada por um saber científico, generalizante e
de fora da experiência, daí o termo sociológico. Interessa-nos perceber em que
medida os documentários de Paulo Gil se afastam ou se aproximam dessa
postura sociológica, a fim de não promover uma leitura generalista, mas
percebendo-o como um parâmetro que diz respeito ao seu engajamento no
“mundo histórico representado”.
Esse tipo de filme seria sintomático de um pensamento que permeou a
intelectualidade brasileira na década de 1960, em grupos político-culturais como
o Cinema Novo, já mencionado, o ISEB (Instituto Superior de Estudos
Brasileiros) e o CPC (do qual Paulo Gil fez parte), de que caberia ao intelectual
o papel de ser o “porta-voz” do povo, o responsável por promover sua
“desalienação” e a transformação da sociedade. No caso, por meio da produção
cultural, em que as noções de povo e nação ganham relevo. Conforme coloca
Renato Ortiz (1994), havia a necessidade de uma identidade nacional a ser
forjada para o povo, que estaria “[...] profundamente ligada a uma reinterpretação
do popular pelos grupos sociais e à própria construção do Estado brasileiro”
(ORTIZ, 1994, p.8). São questões que ecoam em nosso objeto e serão debatidas
ao longo da pesquisa.
A partir de nosso reiterado confronto com os oito documentários que Paulo
Gil realizou na Caravana Farkas, consideramos pertinente discorrer sobre três
aspectos, decorrentes de construções discursivas e estéticas, que nos ajudam a
traçar características de sua “voz”:
as vozes diversas dos filmes, as
configurações dos personagens e as apropriações que fazem da cultura popular.
Aspectos que se desdobram nos capítulos deste trabalho.
O camponês e o proletário em Viramundo; o jogador de futebol em Subterrâneos do futebol e,
no caso dos documentários de Paulo Gil, sobretudo o vaqueiro, seriam o “outro de classe”, pois
não pertencem à “classe” do cineasta e do público em potencial desses filmes. Em oposição, um
documentário como A opinião pública (1965), de Arnaldo Jabor, composto por depoimentos de
pessoas da classe média, mostraria o “mesmo de classe”.
15
24
Desta forma, no capítulo 1, Na trilha dos filmes, apresentamos os oito
documentários do diretor, apontando suas temáticas, quais vozes são
convocadas, atributos das imagens e algumas informações de produção. Um
capítulo mais descritivo, mas necessário para introduzir o leitor nas
problemáticas seguintes que serão debatidas.
No capítulo 2, Aproximação ao outro: pensando os filmes de Paulo Gil
Soares a partir dos personagens, centramo-nos na observação de vários “atores
sociais” (NICHOLS, 1996 e 2010) ou personagens do conjunto de
documentários. Muito pela influência das leituras de Bernardet, optamos por
separá-los em duas categorias: personagens em posição de poder e
personagens que são “outro de classe”, por sua vez fracionados de acordo com
traços em comum que apresentam. Algumas perguntas norteiam o capítulo:
quais personagens esses filmes constroem? Como as pessoas filmadas se
comportam diante da câmera? Qual a relação existente entre os personagens e
a enunciação dos filmes? O que está implicado na relação do cineasta-intelectual
com o outro filmado? É o capítulo mais extenso, sendo uma perspectiva que
ainda pouco se debate em torno da Caravana Farkas.
No capítulo 3, A apropriação da cultura popular, desdobramos a discussão
em duas perspectivas. Primeiro, apontamos convergências entre as ideias e
práticas de Paulo Gil e da Caravana e o pensamento da arquiteta Lina Bo Bardi
– que morou em Salvador e integra a geração de artistas e intelectuais
mencionada no início deste texto. Depois, observamos como são incorporados
materiais da cultura popular, especialmente a literatura de cordel manifestada
pela voz da locução ou da música, em três documentários do diretor: Memória
do cangaço, Vaquejada e O homem de couro, percebendo como esse elemento
coloca em xeque a filiação dos filmes ao “modelo sociológico”, caráter
comumente associado aos documentários realizados na década de 1960 no
Brasil. Escolhemos os três títulos porque neles a cultura popular, notadamente
a poesia de cordel, aparece de forma mais intensa do que nos demais filmes que
Paulo Gil dirigiu na Caravana. Trata-se de um elemento que potencializa o
discurso desses filmes e deixa em relevo conflitos entre o saber do cineasta e o
saber popular.
Para dar conta do percurso, predomina como método a análise fílmica
com pesquisa de instrumentos documentais (AUMONT e MARIE, 2004), em um
25
movimento que parte do texto fílmico para levantar questões de cunho teórico e
histórico. Neste sentido, recorremos a uma ampla bibliografia, que contempla
desde olhares de outros pesquisadores sobre a Caravana Farkas e discussões
teóricas e históricas no campo do documentário, às relações do cinema com
outras artes – música e literatura – e abordagens sociológicas em torno do
popular.
Além disso, também nos valemos de materiais da fortuna crítica sobre
Paulo Gil Soares – sem fazer disto uma análise sistemática da recepção dos
filmes, mas utilizando-os pontualmente na dissertação –; de documentos
depositados na Cinemateca Brasileira, onde há textos escritos pelo diretor e pela
socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz com a finalidade de apresentar o
conteúdo dos filmes para possível comercialização, sobretudo em escolas; e do
catálogo elaborado para a mostra organizada por Sergio Muniz no Centro
Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro em 1997, que traz, além da relação e
da ficha técnica dos filmes da Caravana Farkas, depoimentos de críticos e dos
diretores que participaram da experiência.
Uma das justificativas para este trabalho é o fato de Paulo Gil Soares ter
despertado pouco interesse dos pesquisadores de audiovisual até então, mesmo
com uma produção e história significativas na televisão e no cinema brasileiros.
Embora alguns estudos tenham se dedicado à Caravana Farkas, ao Globo Shell
e ao Globo Repórter, ainda é escassa a abordagem específica dos
documentários do diretor. Sobre suas ficções, a bibliografia revisada menciona
um ou outro título, que mereceriam observação mais criteriosa. Num outro
sentido, nossa pesquisa justifica-se por intentar colaborar em discussões mais
amplas no campo do documentário, particularmente o brasileiro, como o estudo
de diferentes vozes, dos personagens e da música, que suscitam reflexões
estéticas e éticas inerentes ao fazer documental. Longe de pretender esgotar as
questões provocadas pelos documentários de Paulo Gil, aqui lançaremos um
olhar, entre os vários possíveis.
26
CAPÍTULO 1 – NA TRILHA DOS FILMES
[...] e lá fomos nós realizar um ciclo fantástico de filmes que retratava
a cultura da região, num esforço de produção que nunca mais se
repetiu e acredito ser difícil voltar a acontecer (CCBB, 1997, p.9)16.
Neste capítulo iniciaremos a aproximação com os documentários em curta
e média-metragem dirigidos por Paulo Gil Soares entre 1964 e 1970, na
experiência conhecida como Caravana Farkas, todos feitos no Nordeste
brasileiro: Memória do cangaço (1965), Erva Bruxa (1969-70), A morte do boi
(1970), A mão do homem (1969-70), Jaramataia (1970), O homem de couro
(1969-70), Vaquejada (1970) e Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos
hereges (1970).
Observaremos algumas estratégias imagéticas e sonoras na articulação
do discurso desses oito títulos, detendo-nos na descrição dos filmes e
configurações de suas vozes, pontuando aspectos de produção quando
pertinentes. Nosso objetivo ao final do capítulo é elencar algumas características
da “voz” de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas, que serão pontos de partida
para as questões debatidas nos capítulos seguintes.
1.1 – Memória do cangaço (1965)
Entre os oito documentários que Paulo Gil Soares dirigiu na Caravana
Farkas, o média-metragem (29’) Memória do cangaço é o que se diferencia em
termos de produção e também o mais premiado em festivais17. Ao contrário dos
demais, sua concepção começa antes do contato do diretor com o produtor e
financiador dos filmes, Thomaz Farkas, e há um esquema de coprodução com o
Setor de Cinema da Divisão de Difusão Cultural do Itamaraty e o DPHAN
A frase de Paulo Gil Soares refere-se aos filmes realizados na 2ª fase da Caravana Farkas e
está em seu depoimento para o catálogo da mostra A Caravana Farkas: Documentários – 1964
– 1980, organizada por Sergio Muniz em 1997 no Rio de Janeiro.
16
Prêmios: Gaivota de Ouro, no Festival Internacional do Filme (Rio de Janeiro, 1965); Prêmio
Governador do Estado (São Paulo, 1965); Prêmio Dziga Vertov, da União Mundial de
Cinematecas (Brasília, 1965); Primeiro Prêmio no Festival dei Popoli VII Rassegna Internazionale
del Film Etnografico e Sociologico de Florença (Itália, 1966); Prêmio da Crítica Internacional na
XI Jornada Internacional do Filme de Curta Metragem, em Tours (França, 1966). Outros festivais
em que o filme foi exibido: Festival de Cinema de Berlim (Alemanha, 1966) e V Festival de
Cinema de Viña Del Mar (Chile, 1967).
17
27
(Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), cuja maior
contribuição parece ter sido o equipamento de filmagem, sendo seu único
documentário da Caravana Farkas captado em 35 mm e preto e branco, feito
com uma câmera Arriflex, mais leve e menor do que as câmeras utilizadas até
meados da década de 1950. Os depoimentos foram gravados em som direto
com um gravador portátil Nagra III, que ainda era novidade no Brasil18, mas já
utilizado em países da Europa, nos Estados Unidos e no Canadá.
Há também diferenças quanto à composição da equipe, em relação aos
outros documentários do diretor. Pessoas que colaboraram com Memória do
cangaço e que permanecem nos demais filmes: o argentino Edgardo Pallero
(produção executiva), o fotógrafo Affonso Beato, a esposa de Paulo Gil,
Terezinha Muniz (assistência de direção), e o próprio Farkas (financiador,
produtor e eventualmente diretor de fotografia)19.
O documentário é um dos quatro médias-metragens financiados e
produzidos por Farkas entre 1964 e 1965, 1ª fase de produção da Caravana,
reunidos em 1968 para compor o longa-metragem Brasil Verdade, conforme
explicamos na Introdução deste trabalho. Em depoimento para o catálogo da
mostra Caravana Farkas: Documentários 1964-1980, Paulo Gil conta que
apresentou o roteiro de seu filme para Farkas após se encontrarem, em 1964,
em um bar na avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, onde o fotógrafo convidou
pessoas do Cinema Novo para conversar sobre a produção de documentários:
Ouvi o Farkas falar e isso foi a melhor coisa que podia acontecer na
minha vida, naquele dia e naquele ano. Mas o melhor foi que ele
acreditou em mim e menos de uma semana depois ele aprovava o
roteiro de Memória do Cangaço, meu primeiro filme pessoal e que
terminou iniciando minha vida de cineasta e de carioca [...] (CCBB,
1997, p.9)
Os demais documentários da Caravana foram feitos em 16 mm, também com gravadores de
som Nagra. No artigo “A descoberta da espontaneidade: breve histórico do cinema-direto no
Brasil”, David Neves (1966) explica sobre a chegada desses novos equipamentos ao Brasil, que
eram mais leves e menores do que os utilizados até então, e cita a importância do curso oferecido
em 1962, por meio da parceria entre UNESCO e Itamaraty, no qual o documentarista sueco Arne
Sucksdorff apresentou e ensinou jovens cineastas a manusear as novidades tecnológicas. Sobre
a introdução do som direto no cinema documentário brasileiro dos anos 1960, ver: GUIMARÃES
(2008).
18
19
Ver ficha técnica dos filmes no final deste trabalho.
28
Havia um desejo seu de investigar – e desmistificar – alguns aspectos da
história do cangaço. É importante mencionar que o diretor já estava em contato
direto com a temática, pois havia trabalhado com o conterrâneo Glauber Rocha
em Deus e o diabo na terra do sol (1964), filme emblemático do Cinema Novo,
no qual exerceu várias funções: co-roteirista, assistente de direção, cenógrafo,
figurinista. Paulo Gil também emprega como recurso estilístico o uso da canção
como locução auxiliar, conforme veremos mais adiante, e que está presente
também no filme de Glauber. Outra aproximação entre os dois é que o
personagem Antônio das Mortes de Deus e o diabo foi inspirado na figura do
coronel José Rufino, como o próprio Glauber Rocha afirmou:
O major Rufino que vemos em Memória do cangaço de Paulo Gil
Soares, e que me inspirou o personagem de Antônio das Mortes,
contou-me três vezes de maneira diferente como ele matou Corisco. E
no filme de Paulo Gil, ele conta de uma quarta maneira (ROCHA, 2004,
p.114).
No livro Vida, paixão e mortes de Corisco, o Diabo louro, Paulo Gil Soares
revela que ouvia, desde criança, uma empregada da família cantar versos que
narravam o duelo ocorrido em 1940 entre o coronel José Rufino e o cangaceiro
Corisco, fato que culminou na morte deste e no ferimento de sua esposa, Dadá.
“Teria sido mesmo, de real, vera narrativa, o duelo como era contado? Eu
sempre duvidei. E quis saber mais ouvindo os próprios personagens do narrado
acontecido” (SOARES, 1984, p.12).
Em dezembro de 1964, nos dias que precederam o Natal, deu-se seu
encontro com o coronel Rufino, em uma fazenda na cidade de Jeremoabo, na
Bahia, que resultou na principal entrevista do documentário Memória do
cangaço. Ele conta como foi o contato com o coronel:
Foi difícil a aproximação. Ele me estudava, tentava entender as nossas
máquinas de filmar, perguntava mais que respondia. Terminou
descobrindo que havia conhecido meu avô, Mano Dias de Andrade, em
Itaberaba, Bahia. Foi discreto a respeito desse conhecimento. E
ganhamos um pouco de confiança. Só se revelou mesmo após ter
ouvido, no gravador, tudo que havíamos gravado em segredo.
Foi então que ele se deslumbrou com aquela máquina: um Nagra III,
gravador desenhado pelo suíço Eugene Kudelski. E começou nosso
papo, longo, quieto, horas inteiras de gravação no meio da caatinga
para que não houvesse ruídos de Jeremoabo. E sua memória aflorou
nos caminhos antigos (ibidem, p.20).
29
Naquele mesmo mês Paulo Gil encontra pela primeira vez Sérgia Ribeiro
da Silva, a Dadá, na casa onde estava hospedada, em Santana de Ipanema, nas
Alagoas, e tenta se aproximar dela. No entanto, a mulher de Corisco (Cristino
Gomes da Silva) não concedeu entrevista e foi bastante arisca com a equipe:
[...] pedi a Afonso Beato, fotógrafo, que fosse filmando tudo mesmo
sem permissão; e ao assustado Edgardo Pallero, que carregava o
gravador, eu assegurei que tudo daria certo e era preciso que ele
gravasse tudo. E foi terrível. Dadá avançou contra a câmera, fez
ameaças, tentou me atingir com a muleta, exaltou-se e retornou aos
seus velhos tempos de valentia; avançando e derrubando a câmara
[...]20 (ibidem, p.24).
No filme há um breve registro da situação acima descrita pelo diretor,
quando Dadá é vista reagindo à presença da equipe e derrubando a câmera. A
sequência está nos momentos finais do documentário (aos 26’40’’), após a
explicação do coronel Zé Rufino sobre como ele matou Corisco, e dialoga com
dois modos de representação documental propostos por Bill Nichols (1997 e
2010). O primeiro e mais evidente é o participativo, já que a existência da
sequência no filme deve-se ao encontro entre cineasta e entrevistado, ou seja,
assume-se essa condição. Tal postura, nesta sequência, se aproxima da que
encontramos em documentários do cinéma vérité (cinema verdade), que têm na
figura de Jean Rouch – diretor de Crônicas de um verão (1960) – o maior
catalisador: “[...] o cineasta do cinéma vérité de Rouch era frequentemente um
participante confesso da ação. [...] era parte provocadora da ação”21
(BARNOUW, 1996, p.223).
A segunda possibilidade é que ao revelar, no próprio texto fílmico, a
dificuldade de abordagem com Dadá e o enfrentamento dela com a equipe, o
próprio fazer documentário é posto em questão, ou seja, há um nível do que
O diretor se encontrará com ela novamente em 1980, catorze anos depois, já em Salvador
(BA). Diferente do primeiro contato, desta vez a conversa e a filmagem acontecem. Paulo Gil
conta no livro como foi esse encontro e as revelações de Dadá. A entrevista foi filmada pelo
fotógrafo Dib Lutfi, com captação de som de Antonio Gomes e colaboração da repórter Tita Luz
que, segundo as palavras do diretor, ajudou a “amaciar” Dadá antes da filmagem (SOARES,
1984, p.13). Não temos informações se o filme foi finalizado.
20
Tradução nossa para: “[...] el artista del cinéma vérité de Rouch era a menudo un participante
declarado de la acción. [...] el artista del cinéma vérité hacía la parte de un provocador de la
acción” (BARNOUW, 1996, p.223).
21
30
Nichols (1997 e 2010) denomina como “representação reflexiva”: “[...] o texto
[fílmico] desloca seu foco de atenção do âmbito de referência histórica para o
das propriedades do próprio texto”22 (NICHOLS, 1997, p.93). Em nosso caso, a
referida sequência pode suscitar uma discussão que envolve a ética do
documentarista diante dos personagens que filma, aspecto que será melhor
debatido no capítulo 2.
Utilizamos aqui o raciocínio que Roger Odin (2012) faz a respeito dos
níveis de leitura de um filme e propomos que pode haver, em um mesmo
documentário, momentos mais participativos, mais expositivos, mais reflexivos,
etc., do que em outros: “níveis de modos de representação”. Bill Nichols (2010)
também sugere algo semelhante com outras palavras, ao ponderar que esses
“modos de representação” podem ser percebidos misturados em um mesmo
documentário e em épocas distintas23.
Além de Zé Rufino e da tentativa frustrada com Dadá, em Memória do
cangaço há uma entrevista com um catedrático, o professor Estácio de Lima,
especialista em medicina legal da Universidade Federal da Bahia, à época diretor
do Museu de Antropologia da instituição. Temos ainda depoimentos dos excangaceiros Saracura (Benício Alves dos Santos) e Labareda (Ângelo Roque da
Costa), e de Otília, mulher do também cangaceiro Mariano, morto em combate
com a polícia.
O filme expõe a intenção de ser uma monografia fílmica – sua estrutura
se dará com a apresentação do tema, desenvolvimento e conclusão – já nos
créditos iniciais:
Um filme pesquisa, apresentando trechos do documentário sôbre
cangaceiros feito em 1936 pelo mascate Abraão Benjamin24,
Tradução nossa para: “[…] el texto desplaza su foco de atención del ámbito de la referencia
histórica a las propriedades del propio texto” (NICHOLS, 1997, p.93).
22
23
Na p.24 da Introdução há a explicação de como chegamos a esse raciocínio.
Na verdade, o nome do mascate turco era Benjamin Abraão e o filme, que tinha imagens do
cotidiano de Lampião e seu grupo, foi montado em 1937, mas apreendido pelo órgão de censura
do governo de Getúlio Vargas. Esquecido durante anos, em 1955 teve parte recuperada por
Alexandre Wulfes e reeditada por Al Ghiu. Acrescentou-se uma locução e foi lançado nos
cinemas como Lampeão (o rei do cangaço), com duração de 10 minutos. Informações extraídas
do vídeo – uma restauração do filme de 1955, acrescida de 4 minutos inéditos – que acompanha
o livro Iconografia do cangaço, organizado por Ricardo Albuquerque, editora Terceiro Nome.
Vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=O33Flqcp5B4
24
31
fotografias e versos de Virgulino Ferreira da Silva, Lampião, e gravuras
populares da literatura de Cordel”.
Além desses materiais e das entrevistas, destaca-se a trilha musical, com
canções em verso e música instrumental interpretadas pelos violeiros João
Santana Sobrinho e José Canário, e o dobrado “Dois irmãos”, executado pela
banda da Polícia Militar do Estado da Bahia.
Após as cartelas que apresentam o filme e a equipe de produção, todas
com reproduções de xilogravuras de folhetos de cordel, vemos um plano geral
de uma feira popular em tomada aérea, enquanto ouvimos a locução do diretor,
como uma “voz de Deus” (BRUZZI, 2006), explicar como se formaram os
primeiros grupos de cangaceiros no Nordeste do Brasil.
Diferentemente de outros realizadores da Caravana, Paulo Gil Soares é
um “diretor-locutor” em todos os documentários que dirigiu, sendo esta uma
informação extra fílmica. As imagens em seguida mostram pessoas mais de
perto e são feitas já dentro da feira. Um trecho da locução merece ser destacado,
pois nele há indicações da ideologia presente no documentário, que fará
oposição à visão proferida pelo catedrático Estácio de Lima sobre as origens do
cangaço, a qual comentaremos a seguir. Paulo Gil Soares (em over):
Além das rebeliões de caráter religioso, com o fim do século passado
surgiram no interior os primeiros grupos de cangaceiros, que viriam
construir no Nordeste gestos de heroísmo e bondade, enfrentando as
organizações agrárias e sua aliada mais constante: a volante policial.
Vivendo nos agrestes, utilizavam a tática da guerrilha e lutavam apenas
por dois objetivos: vingar crimes passados e conseguir munição de rifle
e boca. Vestidos com roupagens vistosas, usavam chapéus em forma
de meia-lua, enfeitados com moedas de ouro e prata. Corre a lenda
que roubavam dos ricos para dar aos pobres.
A locução termina com uma questão dirigida ao professor Estácio de Lima:
“Mas, qual a origem dos cangaceiros?”. Em seu depoimento, o catedrático
sustenta que as glândulas e o tipo físico do homem sertanejo fariam com que ele
agisse com violência e entrasse para o cangaço. Paralelamente à fala do
professor, vemos planos de vaqueiros – representando o homem sertanejo –
descontraídos, que não correspondem à argumentação de Estácio de Lima.
A explicação do professor é questionada em seguida pelo “diretor-locutor”:
“Mas, estará o professor Estácio de Lima com a razão? Ouçamos um desses
homens”. O discurso cientificista é então relativizado com o depoimento do
32
vaqueiro Gregório, entrevistado por Paulo Gil, que aparece enquadrado com o
personagem e ao lado do operador de áudio. O diretor pergunta, por exemplo,
se tem escola, se tem remédio ou hospital onde ele vive. Pelo comportamento
tímido e as respostas do homem, deduz-se sua condição de vítima e de inércia,
sendo novamente desmentida a fala do catedrático Estácio de Lima sobre o
homem sertanejo.
Há uma crítica, ainda que não seja mencionada em nenhum momento a
palavra “governo”, a duas áreas de responsabilidade governamental – Educação
e Saúde –, lembrando que o filme é de 1964, ano em que o então presidente do
Brasil João Goulart foi deposto pelo golpe militar e instaurou-se o governo
ditatorial no país, que durou 21 anos. Embora o filme seja sobre o cangaço, um
movimento que se deu no Nordeste entre fins do século XIX e início do XX, são
colocadas discussões atualizadas no tempo histórico do documentário (década
de 1960).
Após a entrevista com Gregório, vemos planos gerais de uma fazenda e
o comentário em voz over de Paulo Gil Soares que interpreta o conteúdo da
entrevista, trazendo-o para a discussão sobre o cangaço:
Inteiramente só, o sertanejo é um homem abandonado à sua própria
sorte. Nada lhe resta, senão a desesperança ou a rebeldia, que é um
simples efeito de causas profundas, da ausência de justiça,
analfabetismo, precariedade de comunicações, baixos salários, débil
capitalismo e um lentíssimo desenvolvimento das forças produtivas
[grifos nossos].
Na sequência evidencia-se um embate entre o cineasta, dono do que
Jean-Claude Bernardet (2003) denomina “voz do saber”, e o professor Estácio
de Lima, o acadêmico que, embora seja o “mesmo de classe” em relação ao
cineasta, tem seu discurso desmentido pela articulação de diversas vozes na
montagem – Fernão Ramos (2008), ampliando essa denominação, diz que
Estácio de Lima seria um “mesmo que não sou eu” (RAMOS, 2008, p.397), o
que para nós seria “o mesmo de classe com o qual eu não concordo”. Mais
importante do que a nomenclatura, é perceber que não é necessário o
comentário em voz over para que a “voz do saber” se sobressaia.
Se nos primeiros minutos do filme é incorporado um discurso expositivo,
conforme trechos que destacamos anteriormente, tal estratégia é deslocada
33
constantemente, havendo outros momentos mais interativos e até reflexivos no
média-metragem. Fernão Ramos considera: “A voz, no entanto, não precisa ser
acionada para explicitar a contraposição entre a fala [de Estácio de Lima] e a
ideologia do média-metragem” (RAMOS, 2004, p.92). O recurso da montagem
paralela, que coloca em contraposição vozes e imagens – a fala de Estácio de
Lima se contrapõe à locução em over, às imagens dos vaqueiros e à entrevista
com Gregório – é um dos procedimentos estilísticos que se repetirá em outros
documentários de Paulo Gil na Caravana Farkas.
Ainda acompanhando as reflexões de Bernardet (2003), o vaqueiro
Gregório representaria a “voz da experiência”. Ele serve, assim como os
operários de Viramundo (Geraldo Sarno, 1965) – um dos filmes analisados pelo
autor para perceber as relações que se estabelecem entre as vozes do
documentário –, como exemplo do “homem abandonado à sua própria sorte”,
referido pelo “diretor-locutor”. É um momento em que há a superioridade da “voz
do saber” sobre a “voz da experiência”, o que aproximaria Memória do cangaço
do “modelo sociológico” de documentário proposto por Bernardet. No entanto,
conforme veremos ao longo da pesquisa, há várias rupturas de uma postura
sociológica no filme, como a “não-entrevista” com Dadá, o fato de Paulo Gil
Soares tomar corpo ao lado do vaqueiro e não ser uma voz que está sempre fora
do mundo histórico representado, entre outras situações.
De toda forma, o saber acadêmico é desmentido pelo média-metragem,
diferentemente dos documentários mais educativos feitos até então, justamente
apoiados nesse saber:
Em Memória do Cangaço é ironizado sutilmente o discurso didáticocientificista que tanto marcou o documentarismo brasileiro realizado,
nos anos de 1930 e 1940, a partir da tradição do Ince [Instituto Nacional
de Cinema Educativo] (RAMOS, 2004, p.92).
Informações sobre o combate entre Zé Rufino e Corisco, fato que o diretor
afirmou tê-lo motivado a fazer o documentário, só vão aparecer depois dessa
longa introdução ao tema do cangaço, que dura quase nove minutos. O filme
passa então a intercalar trechos da entrevista do coronel com os depoimentos
de ex-cangaceiros, versos de Lampião recitados pela locução e as imagens
feitas pelo mascate Benjamin Abraão na década de 1930.
34
A presença da voz over permanece, mas ela oscila entre a “voz de Deus”,
didática e assertiva, e uma “voz lírica”, que recita versos da poesia popular,
recurso explorado em outros documentários de Paulo Gil Soares na Caravana
Farkas – Vaquejada e O homem de couro –, sobre o qual trataremos com mais
ênfase no capítulo 3. Merece ainda destaque o papel da canção com versos
populares como “locutor auxiliar”, que em Memória do cangaço apresenta Zé
Rufino e faz comentários sobre o personagem. Tal recurso será explorado
também nos dois filmes citados acima.
Há um tom de denúncia e investigação que perpassa o documentário,
percebido, por exemplo, quando o “diretor-locutor” corrige e contraria a versão –
consequentemente, a memória – de Zé Rufino sobre a morte de Corisco. Tratase de uma voz ríspida e de autoridade que aparece em dois momentos, nos
últimos minutos do média-metragem, fornecendo a “verdade” sobre o fato.
Falaremos mais sobre o encontro com o coronel no capítulo 2, quando
elencarmos características dos personagens nos filmes de Paulo Gil Soares.
Zé Rufino também conta, com orgulho, como os cangaceiros eram mortos
e que mandava os policiais de sua volante cortarem as cabeças deles para
depois serem fotografadas. Três desses policiais são vistos durante a entrevista
ao lado do coronel, que os apresenta, explicando a função de cada um nos
combates: os rastejadores Bentevi e Leonídio, e o cabo Antônio Isidoro. Leonídio
dá um breve depoimento sobre a degola das cabeças, explicando que cumpria
ordens de um outro superior, o sargento Odilon Flor; sua fala é coberta com
imagens dessas cabeças, expostas no mesmo Museu de Antropologia – dirigido
por Estácio de Lima – como espécie de “troféus” ganhos na luta contra o
banditismo25.
Nos minutos finais do filme, Paulo Gil pergunta o que o coronel fez depois
da campanha contra o cangaço e Zé Rufino conta que comprou algumas
fazendas e cria gado, se tornou um proprietário rural. Reiterando o que sugere
O fato das cabeças permanecerem tanto tempo no museu (desde 1938) gerou polêmica. Uma
reportagem, da edição de 6 de junho de 1959 da revista O Cruzeiro, por exemplo, colocou o
debate em questão: são entrevistados um primo de Lampião, o advogado Dr. Antônio Ferreira
Magalhães, e a filha de Lampião e Maria Bonita, Expedita Ferreira Messias, que pediam a
retirada das cabeças do Museu; argumentando do lado oposto, o professor e diretor do Museu,
Estácio de Lima, que defendia a permanência delas no local, alegando que deveriam ser vistas
como “peças científicas”. MARTINS, João. “Justiça para Lampião”. In: O Cruzeiro, Rio de Janeiro:
06 jun. 1959. Disponível em http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/.
25
35
Meize Lucas (2012, p.210), consideramos que há uma recolocação da questão
agrária apresentada no início do filme tanto pela locução quanto pela entrevista
com o vaqueiro, e que no final é retomada pela informação de Rufino, como se
a situação tivesse permanecido a mesma desde os tempos do cangaço.
A última imagem de Memória do cangaço é um plano conjunto do coronel
de costas e caminhando em direção a uma plantação de sua fazenda, como se
estivesse “saindo de cena”. Enquanto o vemos, a canção popular novamente
cumpre a função de “locutor auxiliar”, comentando sobre a vida atual do coronel.
Em seguida, um letreiro com trechos modificados de uma poesia de cordel é
inserido sobre a imagem, cujos versos fazem menção à ideia de memória e
sugerem uma reflexão sobre o fazer documental, reflexões que faremos no
capítulo 3, quando observarmos como os materiais da cultura popular são
apropriados pelo discurso documentário de Paulo Gil Soares.
Memória do cangaço inaugura algumas estratégias que se repetirão em
outros filmes de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas, conforme veremos a
seguir. Em nossa leitura, é seu documentário mais emblemático. Por isso, há um
espaço maior às discussões em torno dele neste trabalho.
1.2 – Erva Bruxa (1969-70)
Filmado em diversas cidades do Recôncavo Baiano, já em cores e
captado em 16 mm, Erva Bruxa (1969-70) faz parte da 2ª fase de produção da
Caravana Farkas, como os próximos títulos do diretor a serem abordados. O
média-metragem (22’) mostra as etapas da produção e comercialização do
tabaco: o momento da colheita, sua classificação no armazém e a venda. O filme
denuncia os riscos à saúde que o manuseio do fumo traz ao operário e a indústria
clandestina de charuto nas decadentes cidades baianas de Cachoeira e São
Félix. Ainda questiona as relações de trabalho da indústria fumageira, tratando
da mecanização que acarreta o desemprego e da relação desigual que é
estabelecida entre produtor, comerciante e o mercado externo. Há depoimentos
de lavradores, de supervisores de armazéns de fumo, de um sindicalista, de um
empresário da indústria fumageira e de um médico sanitarista.
A respeito da equipe que colaborou com o filme, destaca-se Sergio Muniz
como produtor executivo (ao lado de Edgardo Pallero), Affonso Beato como
36
fotógrafo, Sidnei Paiva Lopes na captação do som direto, Geraldo Veloso como
montador, João Trevisan como assistente de produção, figuras que se repetirão
nos demais documentários de Paulo Gil na 2ª fase de produção da Caravana
Farkas.
A primeira parte do documentário (aproximadamente até os 11´) começa
antes mesmo das cartelas que apresentam os créditos do média-metragem,
quando a locução em voz over de Paulo Gil descreve, utilizando termos
específicos da Botânica, as partes que compõe a planta do tabaco. A forma
pedagógica da narração faz com que tenhamos a impressão de ouvirmos a
leitura de um livro de Biologia ou de um verbete da coleção Brasiliana26. Junto à
locução, trecho de “A Primavera” (da série de concertos “As quatro estações”),
de Vivaldi, que reforça a erudição das palavras. Só então teremos as cartelas
que apresentam a equipe do documentário, feitas pelo artista plástico Lênio
Braga27, outra figura que colaborará em mais filmes.
Ainda mantendo o tom educativo, o “diretor-locutor” dá informações (a
partir de 2’15’’) sobre o cultivo do tabaco e o regime de trabalho normalmente
praticado na lavoura, enquanto planos conjuntos mostram lavradores, dentre
eles várias crianças, em uma plantação familiar do fumo tipo Bahia-Brasil. A
locução sugere que, embora este seja um produto destinado à exportação, não
traz benefícios econômicos para o trabalhador: “[...] sua produção é vendida por
preço
mínimo,
sendo
classificado
para
exportação
pelos
armazéns
compradores, únicos beneficiados pela diferença de preço”. Esta é a primeira
“defesa” do trabalhador feita pela voz over (neste caso do lavrador, depois será
do operário do armazém) e faz com que o tom do documentário comece a mudar,
como veremos adiante. O depoimento de um dos camponeses, cujo nome
desconhecemos, confirma o que diz a voz over, afirmando que o ganho com a
lavoura do fumo mal dá para as despesas.
A coleção Brasiliana foi uma série de livros editados pela Companhia Editora Nacional entre
1931 e 1995, que abrigava diversas áreas do conhecimento a respeito do Brasil: de Geografia e
História à Botânica. O próprio Farkas manifesta em algumas entrevistas sua intenção dos
documentários serem como essa coleção de livros.
26
Lênio Braga foi um artista plástico que viveu na Bahia nas décadas de 1950 e 1960, também
politicamente de esquerda. Ver: PEREIRA (2012).
27
37
Em seguida, o supervisor de um armazém (também não sabemos seu
nome), onde são separadas as folhas do tabaco, explica a classificação do fumo
da Bahia. Cobrindo sua fala, homens e mulheres são mostrados em planos
conjuntos feitos com a câmera na mão, executando o trabalho no armazém sem
proteção nas mãos ou nos pés. A situação se repetirá nas imagens seguintes,
em que homens rodam uma espécie de pilão gigante que comprime as folhas,
auxiliado pelos pés descalços dos trabalhadores. São diversos planos – de
conjunto, detalhe – que descrevem o trabalho no armazém, onde a separação e
o empacotamento do fumo são manuais. No plano sonoro, a voz over discorre
em tom mais denunciativo sobre a forma rudimentar desse trabalho, acarretando
em doenças profissionais aos trabalhadores, além de ser uma ocupação
temporária. A saúde e a mudança na relação de trabalho na indústria do fumo
são os dois aspectos que conduzirão as próximas entrevistas, amalgamando
com as imagens e a locução mais uma “defesa” do trabalhador. Quando não há
a locução, cantos de orixás acompanham as imagens dos operários nos
armazéns.
Temos então o depoimento de um médico (também não nominado), que
confirma os problemas de saúde dos operários, ocasionados pelo manuseio do
fumo sem proteção. Trata-se de um catedrático que colabora com uma das
denúncias feitas pelo filme, ao contrário do que ocorre com Estácio de Lima em
Memória do cangaço. Ainda voltaremos a falar dele no capítulo 2. Durante a fala
do médico de Erva Bruxa, novos planos de um armazém, desta vez só de
mulheres separando as folhas de fumo em esteiras. Após seu depoimento,
novamente os cantos de orixás são inseridos no plano sonoro associados às
imagens das operárias.
Um breve silêncio antecede a entrevista seguinte com o presidente do
sindicato dos trabalhadores na indústria de fumo da cidade de Cruz das AlmasBA, Saturnino Ferreira Conceição (único personagem do filme que sabemos o
nome). O questionamento ao sindicalista é outro, sobre a demissão em massa
de trabalhadores, informação que Paulo Gil Soares quer confirmar com ele;
ouvimos as perguntas do diretor no instante da tomada, o que não ocorre com o
médico sanitarista citado anteriormente. O recurso de montagem paralela é
acionado: Saturnino nega ter havido demissões e, seguidamente, o depoimento
38
de um supervisor de armazém confirma a denúncia de Paulo Gil, desmentido o
representante dos operários.
Não há a necessidade de intermediação da voz over para explicitar a
“defesa” que o filme faz do trabalhador, pois, como sugere Nichols (2010): “A voz
do cineasta emerge da tecedura das vozes participantes e do material que
trazem para sustentar o que dizem” (NICHOLS, 2010, p.160).
A segunda parte de Erva Bruxa (a partir de 11’) detém-se nas questões
relacionadas ao fumo cultivado na Bahia que é destinado à exportação. Mostra
como é plantado um tipo de fumo com esta finalidade, o capeiro, destinado à
fabricação de charutos e cigarrilhas, cujo cultivo na Bahia teve de ser adaptado.
Os depoimentos do supervisor de uma lavoura, planos gerais de mulheres
colhendo a planta e a voz over do “diretor-locutor” são bastante educativos,
descrevem e explicam o plantio desse tipo de fumo e para qual mercado se
destina. No entanto, assim como ocorre na primeira parte do documentário, o
tom muda após a fala de um empresário da indústria fumageira, que ressalta a
previsão de lucros altos com a exportação do fumo baiano no ano de 1969. Daí
por diante, é apresentado o “outro lado” da história do fumo na Bahia: o aspecto
didático dá lugar à investigação.
Trata-se da indústria de fumo clandestina em Cachoeira e São Félix, duas
cidades baianas às margens do rio Paraguaçu, antes “rainhas da lavoura
fumageira”, conforme pontua a locução, que entraram em decadência após a
Segunda Guerra Mundial. As imagens – que não sabemos de qual das duas
cidades são – mostram prédios em ruínas e casarões abandonados, resquícios
dos tempos econômicos áureos, cuja herança é um sistema doméstico e
clandestino de fabricação de charutos. Enquanto acompanhamos a fabricação
artesanal feita por uma “charuteira” em sua casa, a voz over nos informa que o
produto abastece tanto o mercado local quanto algumas fábricas, que baixam
seus custos de produção ao comprarem o charuto artesanal. Não há
depoimentos de quem fabrica, nem de quem consome o produto. Aliás, os
operários dos armazéns também não dão depoimento; apenas lavradores e o
sindicalista representam o “outro de classe” no filme.
O documentário termina com uma locução explicativa esclarecendo onde,
por quem e como o tabaco – que só agora somos informados ter o “apelido” de
erva bruxa – começou a ser consumido. As imagens finais são primeiros planos
39
de pessoas comercializando e fumando charutos; algumas percebem a presença
da câmera e olham para o fotógrafo (e para o espectador). O último fotograma é
a imagem de uma senhora, ilustrando o que diz a locução: alvejando os dentes
com a ponta de um charuto.
Em Erva Bruxa, há a alternância constante de um tom educativo/didático
para um tom denunciativo, relacionada a como se manifestam as diversas vozes
no filme e que também percebemos em outros títulos do diretor. Por um lado, há
uma locução em over explicativa e imagens que mostram cada etapa do
processo de cultivo e comercialização do tabaco; por outro, é essa mesma
locução que se encarrega de denunciar as más condições de vida e de trabalho,
reforçada pelas entrevistas sucessivamente colocadas pela montagem paralela,
em que um personagem parece “responder” a outro, em um movimento de
argumentação e contra argumentação.
Temos um hibridismo de procedimentos: a voz over educativa que remete
ao documentário griersoniano de caráter expositivo convive com as entrevistas
que atestam a participação do cineasta, premissa do cinéma vérité. Fernão
Ramos (2008) traduz certo espírito do “documentário novo” brasileiro, ao tratar
de filmes realizados entre 1961 e 1965, que também está presente em Erva
Bruxa e em outros títulos de Paulo Gil Soares, realizados em 1969-1970,
momento de maior repressão política do país, após a promulgação do AI-5:
O direto brasileiro mergulha no estilo que a nova técnica abre, mas dá
um passo atrás, e mantém um ouvido atento às cobranças éticas do
documentário clássico (educar, conscientizar).
[...] A tensão entre uma nova sensibilidade estética que emerge (a nova
sensibilidade para a miséria, o abandono e a fragilidade do outro
popular) e os mecanismos sociais de censura e coerção que
impossibilitam sua expressão provoca comoção no artista.
[...] Para o novo cineasta, não é suficiente apenas mostrar a miséria na
posição de recuo do direto, ou nela interferir na forma de entrevistas
ou depoimentos. A evidência da miséria é tão grande, sua revolta tão
comovente, a indignação tão intensa, e a absoluta urgência da
transformação tão premente, que não se consegue conter a voz
didática em over amplificando as mazelas do país, a alienação do povo
e a estupidez da classe média (RAMOS, 2008, p.341). [grifos originais]
Em Erva Bruxa, a descrição dos processos produtivos aparece como
prenúncio
de
questões
mais
profundas,
em
que
pesa
a
relação
explorador/explorado. A “defesa” do explorado – o “povo” – pelo cineasta retoma
a discussão sobre o papel do intelectual, em voga no contexto do Cinema Novo
40
e dos Centros Populares de Cultura da UNE no início da década de 1960, de
cores marxistas, no qual o intelectual teria o papel de “desalienar” o “povo”.
A ideia de o cineasta ser analista da realidade apreendida pela câmera se
alinha à proposta de documentário que Thomaz Farkas (1972) defende em sua
tese de doutorado, intitulada Cinema documentário: um método de trabalho,
baseada na experiência com os documentários realizados na 1ª e 2ª fases de
produção da Caravana. Para ele, é insuficiente para um documentário a “simples
documentação” de fatos. Caberia ao cineasta fazer o aprofundamento dos
assuntos registrados, o que resultaria em um “documentário dramatizado”, termo
que aparece também nos escritos de John Grierson, catalisador do
documentário educativo inglês da primeira metade do século XX.
Vemos portanto que há vários conceitos para ‘Documentação’. Para o
nosso estudo, consideramos dois: Um como o registro de
acontecimentos, simples coleção justaposta e catalogada de acordo
com um critério arbitrário, que em momento oportuno serão utilizados.
Do seu conjunto surgirá uma informação cronológica, geográfica,
histórica e a carga de significados resultantes dependerá do critério a
ser adotado. O outro, como uma modalidade de documentação que,
possuindo as características já descritas (dados coletados e
catalogados) fará destes dados uma tecelagem ou melhor, uma trama.
Há um tema. É o documentário dramatizado onde os fatos sofrem
interpretação com intenção específica; já ultrapassa o nível de simples
coleta de dados para impregná-los de uma visão ou ideia. Parte de
fatos reais, mas oferece um ponto de vista subjetivado do seu autor; é
mais aberto no sentido de colocar a discussão: é o fato somado à sua
interpretação (FARKAS, 1972, p.11-12) [grifo original].
Podemos dizer que os dois conceitos acima estão nos filmes de Paulo Gil
Soares, pois eles oscilam entre o caráter educativo, que estaria relacionado mais
à descrição dos assuntos, ao primeiro conceito de documentação considerado
por Farkas; e o caráter de denúncia, que já seria a interpretação dos fatos feita
pelo cineasta, o segundo conceito para documentação. A propósito, o tom mais
denunciativo é uma das características que diferenciam a “voz” de Paulo Gil
Soares em relação a outros diretores da Caravana Farkas. Podemos comparar
Erva Bruxa com outro documentário sobre “Atividades Sócio-Econômicas
Primitivas”28 feito à mesma época, como Casa de farinha (1970), de Geraldo
Sarno. Tomando como exemplo a locução, no filme de Sarno ela é também
O termo foi utilizado para agrupar em temáticas os filmes, em texto de divulgação publicado
na Revista Fotoptica.
28
41
bastante educativa, descreve todo o processo artesanal de fabricação da farinha
de mandioca e explica como se dá a relação entre proprietário e lavrador. No
entanto, é sutil e não coloca os problemas explicitamente – por exemplo, o baixo
valor de venda do produto nas feiras e o alto valor dos impostos. Estes são
subentendidos no depoimento de um camponês que abre e encerra o
documentário, e não são interpretados pelo locutor29. Para o pesquisador
Gilberto Sobrinho (2010), nos filmes de Paulo Gil há um peso maior da fala –
seja a manifestada pela voz over, depoimentos ou canções – para fazer
denúncias. Já nos filmes de Geraldo Sarno, que também fazem análise social,
haveria “[...] uma poética da fruição através de uma linguagem mais elaborada”
(SOBRINHO, 2010, p.36).
1.3 – A morte do boi (1970)
A morte do boi é um dos cinco documentários de Paulo Gil na Caravana
Farkas sobre atividades econômicas ligadas ao ciclo do gado e que exploram a
figura do vaqueiro. O curta-metragem (11’) informa sobre a criação e
comercialização do boi nas feiras do interior do Nordeste – utilizando imagens
captadas no interior da Paraíba30 – e mostra o processo de abate em um
matadouro primitivo em Feira de Santana, na Bahia, onde o animal é morto
rudimentarmente, na faca, sem qualquer controle sanitário e cujas sobras de
carne são disputadas por homens e mulheres, inclusive uma criança.
O filme não tem entrevistas, o que exclui a manifestação da “voz da
experiência”, aspecto que o diferencia dos demais títulos de Paulo Gil na
Caravana Farkas. É também o mais expositivo do conjunto, sendo que a locução
do diretor preserva o tom didático-denunciativo, do tipo “voz de Deus”.
No
entanto,
outras
características
são
recorrentes,
conforme
destacaremos adiante. Nas cartelas que apresentam a equipe do filme, assim
como em Memória do cangaço, temos desenhos inspirados nas xilogravuras de
cordel. Na trilha musical, há a música instrumental da Banda de Pífanos do Crato
que, em tese, se relacionaria ao universo representado no curta. Repetindo a
Outra diferença é que a locução não é de Geraldo Sarno, mas de Tite de Lemos.
O filme não informa que as imagens da fazenda foram captadas no interior da Paraíba.
Deduzimos serem de Taperoá, pois em outros títulos do diretor filmados neste município há
planos que mostram os mesmos vaqueiros que aparecem em A morte do boi.
29
30
42
estrutura dos demais documentários, a voz over apresenta o tema sobre planos
gerais da fazenda, nos quais vemos vaqueiros conduzindo os animais no pasto:
A zona do agreste é a que mais contribui para o abastecimento de
carne das capitais nordestinas. Seus rebanhos criados em pastos
pobres, em regiões de baixo índice chuvoso e de alimentação
deficiente são também os menos rentáveis deste mercado. Embora
sendo uma atividade de baixa produtividade econômica, aparece com
frequência, nesta região, em vista dos mínimos investimentos
requeridos.
Depois de quatro a seis anos de engorda, os bois atingem peso e são
levados a pé para as feiras de gado onde serão negociados. As
maiores boiadas geralmente chegam no verão e vêm extenuadas com
as longas caminhadas.
É possível ouvir alguns vaqueiros aboiando31 o gado quando a locução
cessa, em momento de mais observação do que interferência do cineasta. Em
seguida, são mostradas imagens de uma feira de animais, cuja lógica de
funcionamento é explicada pela locução também de forma bastante didática. Ao
lado da feira vemos o matadouro onde são mortos brutalmente os animais
escolhidos pelos compradores que, pontua a locução, já são maltratados desde
o curral. O documentário não informa se o matadouro das imagens já é o de
Feira de Santana-BA porque a cidade é mencionada depois que o processo foi
mostrado. Contudo, de acordo com a sinopse de A morte do boi, que consta no
catálogo da mostra realizada em 1997, o abate é na cidade do interior da Bahia.
A partir de 3’30’’, inicia-se o “passo a passo” do abate: não são poupados
planos detalhes de sangue e tripas à mostra. Mais do que educar, o filme
denuncia uma condição precária e subdesenvolvida do interior do Nordeste: são
imagens do subdesenvolvimento. Dentro do matadouro, quem mata os animais
o faz no facão e entra em contato direto com suas entranhas, sem proteção nas
mãos ou nos pés. Muitos homens são vistos descalços pisando em poças de
sangue ou em partes do boi já morto, em cenas que revelam um trabalho
rudimentar, primitivo e sem qualquer fiscalização sanitária. A locução descreve
cada etapa do processo e são resguardados comentários mais assertivos, pois
as fortes imagens “falam” por si.
O aboio é o canto entoado pelo vaqueiro para conduzir o gado nos trabalhos de campo,
imitando o som dos animais: “[...] geralmente livre de forma estrófica, destituído de palavras as
mais das vezes, simples vocalizações, interceptadas quando senão quando por palavras
interjectivas, ‘boi’, ‘êh boi’, ‘boiato’, etc.” (ANDRADE, 1989, p.1-2)
31
43
A miséria mostrada na tela é de uma violência premente e nos remete ao
que escreveu Glauber Rocha no manifesto Eztetyka da fome, em 1965, sobre o
“miserabilismo” do Cinema Novo brasileiro. Segundo ele, ao cineasta caberia o
papel de promover uma conscientização sobre a condição subdesenvolvida do
país, comprometendo-se a levar para a tela a “verdade” – a fome e a miséria:
[...] De Aruanda a Vidas secas, o cinema novo narrou, descreveu,
poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens
comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando
para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo
para comer; personagens sujas, feias, descarnadas, morando em
casas sujas, feias, escuras [...] (ROCHA, 2004, p.65).
Os filmes da Caravana Farkas inserem-se nessas discussões acerca do
intelectual (do cineasta), como já citamos anteriormente, e tinham justamente a
proposta de “revelar o Brasil aos brasileiros” e colocar na tela a fala e os gestos
do povo brasileiro, o que é feito de forma crítica, analítica. Não por acaso, os
quatro primeiros filmes dessa experiência foram agrupados com o nome de
Brasil Verdade; já os 19 documentários da 2ª fase de produção, que vai de 1967
a 1971, na qual A morte do boi e outros seis filmes de Paulo Gil Soares se
inserem, ficaram conhecidos conjuntamente como A condição brasileira. Nos
documentários do diretor, a condição de subdesenvolvimento é colocada
diretamente pelas imagens e pela fala.
Voltando ao filme em questão, na sequência seguinte à do abate (aos
6’20’’) vemos várias pessoas – inclusive uma criança – disputando pedaços de
bois desprezados pelo matadouro de Feira de Santana, expostos do lado de fora
do galpão para servirem de alimento a urubus. São planos conjuntos que
mostram as pessoas carregando nos ombros as partes dos animais; a criança,
que caminha em direção à câmera, sai de quadro com o rosto manchado de
sangue e encoberto com o pedaço que lhe compete. Há closes de cabeças de
boi ensanguentadas e homens arrancam miolos a machadadas. A voz over
complementa a denúncia das imagens:
Uma produção marginalizada acompanha o processo de abate de bois.
Sob a mais incrível ausência de controle sanitário, são aproveitados
subprodutos para a venda nos açougues e feiras.
44
Uma mulher é observada retirando os excrementos do estômago e do
intestino grosso de um animal, sobre os quais ela pisa descalça e que servirão
para fazer dobradinha. Atrás dela, a câmera mostra, rapidamente, um urubu à
espreita. Em seguida, acompanhamos mulheres limpando as patas dos bois (o
mocotó) sob a “vigilância” de urubus e cães, a quem restam as centenas de
ossos espalhados pelo chão. As mesmas mulheres também limpam as demais
partes dos animais que, a locução informa, se transformarão em subprodutos
como as farinhas de carne, de ossos e de sangue, a bílis, as crinas, os cascos,
os chifres. Essa sequência é comentada por Alfredo D´Almeida (2003) que
constata o que percebemos em outros títulos: “A dramaticidade construída no
processo de montagem sobrepõe-se ao discurso e à imagem registradas32”
(D´ALMEIDA, 2003, p.135).
Sobre o aproveitamento das partes do boi, o curta ainda mostra um
curtume primitivo mantido por uma criança às margens do rio Taperoá, na
Paraíba, em mais uma sequência que revela o subdesenvolvimento. A locução
explica como é feito o tratamento do couro e seu uso para a fabricação artesanal
de chapéus, selas, sandálias e outros objetos a serem comercializados em feiras
populares. Um artesão é visto confeccionando algumas peças e aparecerá
novamente em A mão do homem, outro filme sobre o ciclo do gado, sobre o qual
trataremos a seguir33.
As imagens de A morte do boi carregam “indícios de pobreza”34: pessoas
que disputam pedaços de carne deixadas ao ar livre; a criança que, sozinha,
toma conta de um curtume primitivo; a técnica rudimentar empregada para o
abate do boi; a falta de higiene dentro dos matadouros. Essa impregnação se
dará também em imagens de outros títulos: elas apontam para a condição de
vida precária, primitiva, miserável que o cinema (o cineasta) precisaria revelar.
32
Entendemos que o autor está considerando como discurso a enunciação feita pela voz over.
Imagens gerais de feiras, de gado no pasto, do abate do boi serão utilizadas mais de uma vez
nos filmes de Paulo Gil Soares sobre o ciclo do gado.
33
O termo seria um antônimo para “indícios de riqueza”, utilizado por Eduardo Morettin (2005)
ao descrever as imagens de filmes documentais do período silencioso brasileiro feitos sob
encomenda de proprietários de fazendas, comerciantes ou autoridades políticas. A recorrência
de imagens de casarões, automóveis e inúmeros funcionários nos filmes serviriam como espécie
de atestado de poder.
34
45
O minuto final do documentário lembra seu início. Há bois no pasto e uma
conclusão é feita pela locução, que antecede os aboios dos vaqueiros: “E no
campo novas boiadas são engordadas para novos abates. Ciclo econômico que
mantém a grande maioria das fazendas nordestinas”. Há a estrutura de
apresentação do tema, desenvolvimento e conclusão.
A voz over é mais descritiva do que assertiva – a exceção é a sequência
em Feira de Santana –, mas fornece informações que engrossam o caráter de
denúncia e investigação do filme. Esse caráter se sobressai, mais uma vez, ao
sentido didático que o curta teria. Se sua fala não diz (ou não pode dizer)
diretamente sobre o que o filme trata – muito além de uma descrição do abate
do boi, é a pobreza encontrada nesses lugares que o filme escancara –, as
imagens encarregam-se de fazê-lo.
1.4 – A mão do homem (1969-70)
O artesanato popular de peças em couro é o tema do média-metragem
(19’) A mão do homem, que mostra desde o abate do gado e como a pele do
animal é retirada, tratada e curtida, utilizando o material filmado em Taperoá –
parte dele está em A morte do boi –, até o trabalho e a vida de artesãos do couro
da cidade de Umburana, interior da Bahia. Uma informação a destacar é que o
filme é dedicado à arquiteta italiana Lina Bo Bardi, cujas ideias acerca da cultura
popular estão presentes nos títulos dirigidos por Paulo Gil Soares na Caravana
Farkas, aspecto que será debatido no capítulo 3.
Além do tema, o popular em A mão do homem está referenciado pela
música instrumental da Banda de Pífanos de Caruaru e do cancioneiro popular
(este não identificado no filme) que pontuam a narrativa. Em seu trabalho como
diretor (alguns documentários já comentamos, outros ainda trataremos), essa
incorporação se dá desde Memória do cangaço: a locução que recita versos
populares, as cartelas de apresentação com desenhos de xilogravuras de cordel,
a canção popular que apresenta o personagem Zé Rufino.
A exemplo de outros filmes do diretor, o média-metragem começa com
uma apresentação geral do tema. Planos gerais mostram o gado no curral,
enquanto a locução em over didática traz informações históricas a respeito da
46
“civilização de couro”, cujos primórdios se deram no início da colonização do
Brasil, quando o país chegava a exportar 200 mil peles por ano para Portugal:
A carne do boi não era aproveitada por falta de condições de conserva.
A coroa portuguesa mantinha o monopólio do sal e, como não o cedia
aos abatedores, da criação de bovinos começada em 1530,
aproveitava-se apenas as peles.
Em seguida, um boi é puxado por um homem para dentro do matadouro
e passamos a acompanhar como é o abate primitivo. As tomadas são feitas no
mesmo local de A morte do boi. Diferentemente deste, o som diegético é
preservado em algumas cenas, há silêncio naquelas em que é desferido o golpe
de facão no animal e foca-se no processo de retirada da pele, que é explicado
pela voz over. Novamente, a pobreza está indiciada nas imagens: a técnica
rudimentar empregada, o contato direto das pessoas com as partes do boi ainda
ensanguentadas, a presença de crianças que auxiliam no trabalho.
Vemos as peles secando ao sol e a locução enfatiza que o curtimento do
couro, assim como o abate, é feito de forma primitiva. Um curtidor informa o valor
de compra da pele e por quanto vende o couro já tratado; outros são vistos
carregando as peles na cabeça e a voz over não só explica, mas comenta: “Aqui
no curtume, tanto o trabalho dos curtidores como dos proprietários é um trabalho
temporário. Uns trabalham apenas 15 dias em cada período de três meses e sob
as mais primitivas condições”. As imagens seguintes, planos em conjunto dos
curtidores limpando com facões as peles dentro de um rio, ilustram a fala da
locução: “Na natureza vão buscar os elementos que permitem o trabalho e, em
muitos casos, as ferramentas são funcionais, mas nunca tecnicamente
adequadas”.
Acompanhamos o restante do procedimento – no qual os homens
amassam o couro com os pés – sem a interferência da voz over e ouvimos a
música da Banda de Pífanos de Caruaru, que ajuda a dar ritmo às imagens. Um
dos curtidores carrega nas costas as peles já limpas e começa a sair do rio,
quando a música cessa. No silêncio que dura poucos segundos, vemos o homem
de costas, com as nádegas à mostra. A voz over denuncia e explicita a ironia
que marca a condição daquelas pessoas: “Alguns não têm mesmo roupa para
vestir enquanto trabalham”. A música continua, mas agora é uma canção
47
(interpretada por duas vozes que o filme não identifica), que também aparece na
abertura do filme, cujo refrão é: “Foi lá pegaram / Mataram meu gavião / Meu
senhor”. Nessa sequência, a articulação entre voz over, silêncio/música e as
imagens desloca o filme do didatismo para um viés mais denunciativo.
Um curtidor (não nominado) que dá depoimento descreve com mais
detalhes como são o trabalho e a venda do couro aos comerciantes quem
segundo ele, são os únicos que levam vantagem no negócio. Sua fala também
aparece em off sobre imagens que mostram a destinação das peles já limpas,
também pontuadas em alguns momentos pela trilha musical da Banda de
Pífanos ou ainda acompanhadas por breve complementação feita pela voz over.
O personagem será melhor observado no capítulo 2.
Da descrição das atividades no curtume, o documentário passa a mostrar
o artesão, que é equiparado ao curtidor: ambos não lucram com seu ofício, vivem
em condição de vida precária e dependem do negociante. Vemos planos gerais
e panorâmicos da então vila de Umburanas, no estado da Bahia (a partir de 9’),
em que homens e mulheres são observados costurando o couro em frente suas
casas, enquanto a voz over acusa:
Não há luz, água encanada, esgotos ou escolas. Sua economia está
diretamente ligada ao artesanato de couro. O trabalho é familiar e,
aliado às pequenas plantações de cereais, fornece a subsistência aos
moradores.
Em seguida, mais tomadas descritivas mostram a confecção de objetos
em couro. Um primeiro artesão se apresenta (aos 10’17’’), dizendo o nome –
Natanael Felismino Barreto, “vulgo Natal” – e começa seu depoimento dizendo
que trabalha muito e que não é fácil, mas prossegue com uma explicação bem
didática sobre a fabricação artesanal de uma sela de cavalo, com o “passo a
passo” ilustrado pelas imagens. Ainda um outro artesão dá depoimento (aos
15’30’’), Moisés Alves de Oliveira, colaborando mais para a denúncia da pobreza
feita pelo filme. Ele explica sobre o feitio do chapéu de couro, mas o que
predomina em sua fala é, como no caso do curtidor, o pouco ganho com o ofício
e a consciência sobre quem leva vantagem com seu trabalho. Também
falaremos mais sobre ele no próximo capítulo.
48
Diferentemente de Erva Bruxa ou Memória do cangaço, o documentário
não traz a montagem paralela de entrevistas que coloca a argumentação e
contra argumentação entre dois personagens porque não há a contra
argumentação, já que não é personificado no filme o “explorador”, o negociante,
que seria o outro extremo do “ciclo do couro”. Tanto o artesão quanto o curtidor
são aqueles que levam desvantagem no capitalismo e a voz over cumpre o papel
de reiterar essa condição e tirar conclusões.
Sobre imagens de outros moradores da vila de Umburanas, todos
trabalhando com o couro, a locução interpreta:
Um artesanato ditado pelo útil e necessário, constituindo o valor da
produção. Uma poética não criada pela mera fantasia. Uma produção
para qual o próprio artesão não está preparado, pois não tem
condições de consumi-la, como o chapeleiro que usa chapéu de palhas
ou o fazedor de sandálias que compra o produto industrial por ser mais
barato35.
A penúltima sequência traz tomadas de uma feira popular (onde seriam
comercializados os produtos dos artesãos), em que vemos alguns comerciantes,
e sobre as quais ouvimos, em off, novamente o depoimento do curtidor de couro
explicando que quem leva vantagem é sempre o negociante, pois este tem carro,
enquanto o curtidor, mesmo que trabalhe por 40 anos, não consegue ter um meio
de transporte nem para seu ofício nem para passeio. O documentário encerra
mostrando um vaqueiro a cavalo em uma fazenda e vestindo a roupa feita inteira
em couro, que aproxima da câmera e sai de quadro. A voz over conclui: “E o
ciclo se cumpre. Encourado, o homem parte para o campo e vai cuidar do gado
que um dia cederá a sua pele para novamente vesti-lo”.
Em A mão do homem, o embate “explorador/explorado” permanece. Em
consonância com os outros filmes, há sempre a denúncia da condição de vida
precária das pessoas feita de forma bastante direta, reiterada tanto pelas
imagens e pela voz over, quanto pelos depoimentos dos personagens – nós não
ouvimos o que o entrevistador pergunta no filme, mas deduzimos pelas
respostas que há um direcionamento seu para que esses problemas sejam
explicitados. As imagens mais observativas descrevem os processos com a
Este é um trecho da locução que retoma ideias – e palavras – de Lina Bo Bardi, a quem o filme
homenageia. A relação entre os documentários de Paulo Gil Soares e as reflexões da arquiteta
será tratada no capítulo 3.
35
49
pobreza implícita – no abate do boi, no curtimento da pele, na fabricação
artesanal dos objetos de couro –, no entanto, não estão livres da interferência da
locução ou da música. Os entrevistados, ou a “voz da experiência”, são
conscientes de seu pouco ganho, colaborando para a construção da “voz”
denunciativa de Paulo Gil Soares.
1.5 – Jaramataia (1970)
Os vinte minutos do média-metragem Jaramataia mostram as atividades
rotineiras da fazenda que dá nome ao filme, também na cidade de Taperoá, na
Paraíba, e onde moram treze famílias: a criação do gado, a retirada do leite e a
fabricação rudimentar de seus derivados, a produção de milho e algodão, o ritual
de trabalho do vaqueiro, sua relação com os animais e com o dono da terra.
Além da locução em over, há entrevistas com o proprietário e trabalhadores,
além da fala de uma mulher que explica a fabricação do queijo, ouvida em off. A
trilha musical, repetindo outros títulos, inclui a música instrumental da Banda de
Pífanos de Caruaru, os aboios dos vaqueiros recolhidos pela região e as canções
com versos da poesia popular interpretadas por Cego Birrão, que concorrem com
outros sons do filme.
Em sua primeira cena, antes mesmo das cartelas de apresentação,
vemos um plano conjunto de um rezador que benze outro homem. Trata-se de
uma prática comum àquelas pessoas, que é repetida a pedido do cineasta: a
câmera, fixa, está bem posicionada. No entanto, há uma impressão de
espontaneidade; não há interferência da voz over ou da trilha musical. O mesmo
acontece após as cartelas, em que outro rezador, funcionário da fazenda
Jaramataia, espera passar um homem com duas cabeças de gado pela câmera
para então começar a benzer a terra, em uma espécie de ritual de trabalho. Em
seguida, a locução didática, repetindo outros títulos, dá informações sobre o tipo
de gado criado na fazenda, estabelecendo uma relação entre passado feudal e
o presente ali representado:
Os rezadores fazem parte do mundo ligado ao ciclo do gado nas
distantes fazendas onde não chegavam as técnicas veterinárias. São
herança de um mundo rural primitivo, de uma economia
consubstanciada em longos pastos de engorda. Lembranças de
antigas civilizações feudais, dos bois primitivos de Garcia D´Ávila que
50
alargaram as fronteiras do Brasil buscando pastos cada vez mais
virgens. Jaramataia é o símbolo de muitas fazendas de gado dos
sertões nordestinos. Gado de sertão, gado crioulo. Produto
acomodado dos bois iniciais vindos da ilha de Cabo Verde, importados
por Martim Afonso de Souza para a capitania de São Vicente. Um gado
que foi obrigado a reduzir o seu porte. Reduzir a sua capacidade
digestiva para satisfazer-se com pouco alimento nas épocas de seca.
Um gado que ficou com as pernas longas em relação ao corpo para
melhor suportar as longas caminhadas em busca de alimento e água.
Enquanto planos gerais e de conjunto mostram um pouco do trabalho do
vaqueiro na fazenda, a locução enfatiza a baixa produtividade de leite daquele
gado sertanejo (140 litros por dia) devido à sua alimentação insuficiente e à
divisão dos lucros com sua venda que o vaqueiro tem a fazer com o proprietário
das terras, assunto que o filme ainda vai retomar. A próxima sequência dura
quase seis minutos e destaca a “primitiva indústria de queijo” da fazenda, que
existe porque a maior parte do leite produzido não é vendida, mas destinada à
subsistência dos moradores. Temos as várias etapas da fabricação artesanal do
queijo, da coalhada e da manteiga de garrafa, feita pelas esposas dos vaqueiros.
As imagens são acompanhadas ora pela locução em off de uma delas explicando
os processos, ora pela música de pífanos, ora pela locução que informa sobre
os valores de venda dos produtos. Algumas, em plano detalhe, evidenciam as
várias moscas nas mãos das mulheres e os objetos rudimentares empregados:
mais “indícios de pobreza”.
Aos 10’30’’, ainda acompanhando a fabricação do queijo, o “diretorlocutor” antecipa a defesa que o filme fará do vaqueiro: “Com esta indústria, o
vaqueiro complementa o seu salário e o trabalho familiar chega a produzir 200
quilos por mês, cujos lucros são divididos com o proprietário”. O que temos em
seguida é a montagem paralela entre duas entrevistas que, a exemplo de Erva
Bruxa, coloca a fala do proprietário de terras lado a lado com o depoimento de
um vaqueiro. Novamente, é denunciada a má condição de vida do trabalhador,
aspecto que marca os filmes de Paulo Gil Soares, porque o dono da terra diz
que dá condições boas de trabalho ao lavrador, que desmente a informação.
Não é apenas na fala que se dá a contraposição e emerge a denúncia da
condição precária daquelas pessoas. As imagens também são discrepantes: o
proprietário traja camisa e calça social, se apoia em sua caminhonete e fala
seguro olhando para a câmera, ainda é visto em um plano conjunto fiscalizando
os trabalhadores, como se tivesse lhes dando ordens; a imagem do trabalhador
51
é o oposto, pois este veste roupas sujas e rasgadas, mal consegue se expressar
e encarar a câmera. É a contraposição entre os “indícios de riqueza” e os
“indícios de pobreza”.
Voltamos a acompanhar (a partir dos 12’) um pouco mais do trabalho do
vaqueiro na fazenda, personagem valorizado nos filmes do diretor, às vezes com
tratamento romântico que lembra os folhetos de cordel, como nessa enunciação
da voz over, enquanto o vaqueiro laça e se aproxima de um dos animais:
Entre o vaqueiro e a madrinha da manada há não somente uma relação
profissional. Há quase uma relação de amorosa amizade. Em grande
parte dessa amizade depende o trabalho do vaqueiro, pois só assim
ela atenderá o chamado do seu aboio, soltará o leite na hora da
ordenha e conduzirá ao campo o gado que segue os sons do seu
chocalho.
Temos quase três minutos (de 13’ a 15’50’’) de planos sem a interferência
do narrador, nos quais são observadas a marcação dos bois com ferrete quente
e a castração de um bezerro, ambas feitas pelos vaqueiros. Alguns planos
detalhes que mostram as duas situações lembram a sequência do abate primitivo
de A morte do boi, mas sem o mesmo nível de crueldade. A insistência do
cineasta em mostrar essas imagens que causam estranhamento reitera as
oposições que os filmes colocam em discussão: arcaico x moderno, rural x
urbano, explorador x explorado. As práticas do mundo rural são mostradas nos
filmes de Paulo Gil Soares como seguindo a mesma lógica do capitalismo
industrial das cidades, aspecto que é reforçado pelos números e cifras que a
locução e a fala dos personagens contabilizam.
Além da criação de gado e da atividade do vaqueiro, o documentário
aborda a situação dos lavradores que plantam alguns produtos na fazenda,
salientando que o trabalho é familiar e feito em regime de meia36, ou seja, metade
da colheita é dividida com o proprietário das terras. A informação fornecida pela
locução de que a fazenda está localizada na maior região produtora de milho e
algodão do Estado da Paraíba, tendo como principais compradoras duas
grandes indústrias da época, é contrastada com o depoimento de dois
No regime de meia, assim como no de terça ou de quarta, não há vínculo trabalhista. Em troca
do uso da terra, o lavrador, que mora na propriedade, entrega parte (metade, um terço ou um
quarto) da produção ao proprietário.
36
52
moradores que dizem mal conseguirem viver com os ganhos da terra.
Novamente, são mesclados o tom pedagógico com a denúncia da condição de
vida do trabalhador no campo, com a atitude política do cineasta.
Os últimos minutos de Jaramataia continuam a mostrar o gado nos pastos
da fazenda e a locução fornece quantas cabeças são criadas, do que os animais
se alimentam. Como ocorre em outros filmes, o “diretor-locutor” conclui o tema.
Sobre os planos gerais do gado que caminha em direção à câmera, ouvimos sua
interferência final: “Fim do dia. As vacas e seus bezerros voltam para o curral
onde passarão a noite e, pela manhã, com a ordenha, recomeçará outra vez o
ciclo de trabalho na Jaramataia”. O documentário termina com as imagens do
gado sendo recolhido pelos vaqueiros, acompanhadas pelos versos populares
cantados por Cego Birrão: “Alegria do vaqueiro / É montar em cavalo bom /
Quando chega na porteira / Dizendo qual é o dom / É meu cavalo tem arreado /
E meu chocalho de dois tom”.
1.6 – O homem de couro (1969-70)
Em O homem de couro (21’) é retratado o universo dos vaqueiros.
Também foi filmado em Taperoá, Paraíba, na mesma fazenda Jaramataia.
Passamos a conhecer a serventia das peças de suas roupas de couro, suas
rotinas de trabalho, os diferentes tipos de aboios que entoam junto ao gado, as
dificuldades que enfrentam para sobreviver. Um deles, Zé Galego, é
acompanhado de forma mais exaustiva, servindo como personagem central, do
qual conhecemos a esposa e os filhos; outros também darão depoimentos e
fazem uma performance de seu canto para o cineasta. Não há entrevista com o
proprietário da fazenda. Há um recuo da voz over assertiva e generalizante que
dá lugar à “voz lírica”, que recita versos da literatura de cordel combinada com a
letra da canção com versos populares. As palavras oriundas do imaginário
popular nordestino, fragmentadas ao longo do filme, é que se transformam em
locução.
Sobre Memória do cangaço comentamos que a letra da canção
interpretada pela dupla de cantadores apresenta o personagem coronel José
Rufino e que o narrador recita trechos de versos da literatura de cordel sobre
Lampião ou poesias escritas por ele. Em O homem de couro, este recurso está
53
potencializado. A canção, por exemplo, conduz a narrativa em diversos
momentos, tornando-se “locutor auxiliar”, termo que Jean-Claude Bernardet
utiliza para se referir à função que o empresário entrevistado em Viramundo,
filme de Geraldo Sarno, exerce na narrativa:
[...] De modo geral, os locutores auxiliares estão numa posição de
poder, quer pelo saber, quer pelo cargo que ocupam, bem como pela
função que desempenham no sistema de informação dos filmes. Estão
assim mais próximos dos locutores que dos entrevistados. E tudo isso
não ocorre sem contradições (BERNARDET, 2003, p.25-26). [grifos
nossos]
No entanto, a canção de O homem de couro é um “locutor auxiliar” que
tem outras características. Se é uma escolha do cineasta, ou seja, é ele quem
tem o poder de incluí-la na montagem, ao mesmo tempo traz um saber que não
é o dele, que representa a “voz da experiência” ou do “povo”. Diferentemente da
canção de Viramundo, a letra da canção não foi encomendada para o filme, já
que provém da literatura popular. Do mesmo modo se configuram os versos
populares recitados pelo narrador, pois as palavras narradas não são escritas
pelo cineasta e também provêm de um universo sobre o qual tem conhecimento,
mas que não é o dele.
Enquanto as cartelas com desenhos inspirados nas xilogravuras de
folhetos de cordel apresentam a equipe técnica, ouvimos a voz do cantador Cego
Birrão entoar a canção “Despedida do vaqueiro”, na qual um vaqueiro se
despede do patrão, de seu cavalo e de seu ofício. Em seguida, vemos o vaqueiro
Zé Galego (José Francisco Filho) se vestir com a roupa feita inteira em couro
para a câmera, repetindo uma prática de seu cotidiano. A voz over pedagógica
vai aparecer apenas nesse momento (de 1’a 3’10’’), descrevendo e explicando
a função de cada parte da roupa do vaqueiro nos trabalhos no campo e, mesmo
assim, se intercala com a canção. Nos momentos posteriores, a voz over ainda
aparece, mas declama versos da literatura popular, fazendo o “diretor-locutor”
mimetizar o poeta.
O vaqueiro Zé Galego é o personagem principal do filme e será analisado
no capítulo 2. Depois de mostrar sua roupa, monta em seu cavalo e apresentase para a câmera – e para o espectador –, dizendo o nome, quanto ganha por
mês e que trabalha doze horas por dia no campo. Ele e outros homens são vistos
54
trabalhando, enquanto ouvimos aboios diversos – não necessariamente dos
mesmos vaqueiros que aparecem no filme – introduzidos na trilha musical, a
canção interpretada por Cego Birrão ou os versos recitados pela narração que
exaltam o trabalho do vaqueiro.
O documentário também aborda as dificuldades do trabalho de vaqueiro
por meio do depoimento de um deles, mais velho que os demais personagens,
dizendo que vai largar a profissão porque ganha pouco e se machucou muito no
trabalho na fazenda. Novamente utilizando o recurso de montagem paralela, a
fala dele fará contraposição não à fala do proprietário, mas a depoimentos de
vários vaqueiros que falam com orgulho da profissão, em especial Zé Galego.
Eles comentam sobre aspectos afáveis: os melhores tipos de cavalo para se
montar, os vaqueiros mais famosos do Sertão, o touro mais valente, a amizade
com os animais.
Nos outros filmes de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas – Jaramataia,
por exemplo – a situação desvantajosa na qual vive o trabalhador é reforçada
pelos comentários da locução. Em O homem de couro, tal condição está
colocada no depoimento do vaqueiro mais velho e na letra das canções
interpretadas por Cego Birrão. Nesse sentido, a “voz do saber” entra em conflito
com um outro saber, relacionado à “voz da experiência”, representada não
apenas pelos depoimentos, mas pela poesia popular. Este aspecto será melhor
debatido no capítulo 3.
A poesia popular apropriada como elemento estético-discursivo em
alguns documentários de Paulo Gil Soares exemplifica reflexões feitas pelo
diretor décadas após ter participado da Caravana Farkas:
As preocupações de então orientaram grande parte dos filmes feitos
nas décadas seguintes e continuam hoje como pontos centrais do
documentário brasileiro: organizar poeticamente os documentos, de
modo a estimular uma participação do espectador pela razão e pelo
sentimento, e tomar, à parte, aquele pedaço do País filmado, como um
meio de revelar o todo, a condição brasileira. E ainda hoje é assim,
como retrato vivo do País e como um modelo de cinema documentário,
que esses filmes são vistos (SOARES apud D´ALMEIDA, 2003, p.7374).
Não estamos afirmando que o cineasta se exime quando materiais
populares são incorporados ao filme; estão implicadas as escolhas do cineasta
que têm uma intenção: “revelar o todo, a condição brasileira”, como ele próprio
55
afirma. Entendemos, porém, que O homem de couro é um filme no qual as
perspectivas sobre o tema não estão colocadas unilateralmente pela “voz do
saber”, pois surgem a partir da combinação de narrativas preexistentes ao filme
e do universo poético da “voz da experiência”.
O documentário ainda dá espaço para o depoimento da esposa do
vaqueiro Zé Galego (aos 15’); vemos seus filhos brincando com o gado no quintal
da casa deles que, afirmam os pais, querem seguir na profissão de vaqueiro,
darão continuidade ao “ciclo”. Mostrar a família de algum personagem é uma
situação rara nos filmes do diretor e da Caravana Farkas de modo geral, fato que
será reiterado no próximo capítulo.
Outro momento interessante e específico deste filme (de 15’55’’ a 17’05’’)
é quando vemos quatro vaqueiros aboiando para a câmera. É uma situação mais
lúdica em que cada um, enquadrado em plano médio com seu cavalo, exibe seu
“estilo” de aboio, alguns combinando versos populares. É também uma das
poucas situações em que a música não é extra-diegética; aboios aparecerão
novamente, mas acompanhando outras imagens, inclusive algumas da
sequência final do documentário.
Repetindo outros títulos, O homem de couro termina com imagens de
vaqueiros recolhendo o gado, finalizando mais um dia de trabalho na fazenda.
Ao invés da voz over fazer uma conclusão, são os versos da canção “A morte do
vaqueiro”, cantada por Cego Birrão, que encerram o filme, deixando em aberto
sua interpretação.
1.7 – Vaquejada (1970)
O curta-metragem (11’) Vaquejada foi filmado na mesma fazenda
Jaramataia, na cidade paraibana de Taperoá, informação que sabemos pelo
depoimento que nos deu Sidnei Paiva Lopes, responsável pelo som direto deste
e dos demais títulos de Paulo Gil realizados na 2ª fase de produção. Como o
nome sugere, o filme documenta a festa popular entre os vaqueiros que, de
acordo com Cascudo (1984), está relacionada à “apartação” do gado, um de
seus trabalhos de campo, consistindo na derrubada de um boi (puxando seu
rabo ou com uma vara de ferrão) por um vaqueiro montado em seu cavalo. O
documentário aproxima-se de O homem de couro tanto no eixo temático quanto
56
estilístico, pois também incorpora na linguagem a poesia popular que interpreta
o universo do vaqueiro.
Do mesmo modo, há um recuo da voz over pedagógica, que só aparece
em dois momentos e não comenta diretamente a condição de vida das pessoas.
É um filme que se dedica a mostrar um momento lúdico na vida de quem trabalha
no campo, ao contrário dos outros títulos. Novamente, os versos da letra da
canção e da narração conduzem a narrativa; há uma entrevista com o escritor
Ariano Suassuna, também estudioso das manifestações culturais nordestinas,
que interpreta a festa, e o depoimento de um dos vaqueiros, em off, que explica
as “regras” de uma vaquejada.
As primeiras imagens, antes mesmo das cartelas – estas novamente
trazendo desenhos inspirados nas xilogravuras dos folhetos de cordel –, são
acompanhadas pela canção “Vaquejada do Mulungu”, do cordelista e cantador
repentista João Lucas Evangelista, interpretada por Cego Birrão, que substitui a
narração em voz over, tornando-se locutor auxiliar, descrevendo o que vemos:
centenas de vaqueiros montados em seus cavalos correndo pela fazenda. Os
versos enaltecem o vaqueiro e os planos gerais mostram os homens chegando
para a festa. Há uma intervenção feita pela voz over de forma mais tradicional,
logo no início do curta (aos 1’28’’): “A vaquejada, além da feira livre, é um dos
poucos momentos lúdicos da vida dos vaqueiros. Vários deles vêm das mais
distantes fazendas mostrar sua destreza e bravura”. Este tipo de narração
aparecerá apenas outra vez, para explicar como os bois são trazidos para a
vaquejada. Nos demais momentos em que é acionada, a voz over é a “voz lírica”
que recita os versos da literatura de cordel, narrando as perseguições dos
vaqueiros aos animais.
A análise sobre o tema é feita pelo entrevistado, Ariano Suassuna, visto
em plano médio, sentado em uma cadeira e manuseando um livro. Sua
entrevista aparece fragmentada ao longo do filme. Ele compara o papel da
vaquejada no Nordeste à da tourada na Espanha, explica sua origem e avalia
(2’25’’): “É muito mais um espetáculo artístico do que uma necessidade de cada
dia”. Ainda diz que a vaquejada é um evento de fraternidade, onde participam
vaqueiros, filhos de fazendeiros e pequenos proprietários; a posição social não
é determinante na participação da festa (ao contrário dos trabalhos de campo),
mas a “destreza pessoal e coragem”. Suassuna interpreta e dá explicações
57
sobre o tema, o que em outros filmes é feito pelo próprio locutor: torna-se um
“locutor auxiliar”.
Nesse sentido, Suassuna seria, em relação ao cineasta, um “mesmo de
classe” que teria uma perspectiva sobre a festa coincidente à dele. Essa
coincidência se dá em meio a ambiguidades. A entrevista, nos conta o próprio
Ariano Suassuna37, não foi realizada por Paulo Gil Soares (de fato, as perguntas
à Suassuna estão em over), mas por Thomaz Farkas, na Bahia, confirmando o
caráter coletivo da produção e o diálogo que o diretor estabelecia com o restante
do grupo. Outra peculiaridade é que Vaquejada não estava “programado” para
ser feito. Sidnei Paiva Lopes contou que o dono da fazenda Jaramataia
promoveu a festa em um domingo de manhã como uma “despedida” para a
equipe de cineastas: “Nenhuma oportunidade era perdida. Os diretores tinham a
liberdade de propor coisas na hora”38.
Repetindo o que ocorre em O homem de couro, os versos recitados pela
locução não julgam; eles são provenientes de três poesias populares, de autores
diferentes, e narram histórias de perseguição entre vaqueiros e touros que são
descritas pelas imagens. Nessa apropriação do popular, de uma narrativa que
preexiste ao filme, novamente há um conflito entre o saber do cineasta e o saber
popular, que também conduz a narrativa. Há várias vozes que falam, sem que o
filme sugira um consenso sobre o tema: de um lado temos a fala de Suassuna,
que representa o intelectual e problematiza a relação do vaqueiro com a
vaquejada; de outro, as letras da canção e da poesia recitada em verso pela
locução, que oferecem a visão lúdica da festa. Reiteramos que Ariano Suassuna
será melhor debatido com mais profundidade no capítulo 2 sobre personagens
e a questão da cultura popular no capítulo 3.
Ariano Suassuna comentou sobre a entrevista que deu para o filme em depoimento
intermediado por sua assessoria de imprensa, em 07 de agosto de 2013. Disse que jamais
conheceu Paulo Gil Soares e nem assistiu ao filme, e que o encontro teria se dado com Thomaz
Farkas e Glauber Rocha.
37
38
Depoimento dado à autora em 05 de dezembro de 2013.
58
1.8 – Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges (1970)
Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges é um médiametragem (20’) também feito “por acaso”. O diretor de produção, Sergio Muniz,
contou em depoimento que a equipe estava em Taperoá – filmando os outros
títulos que já comentamos – e soube que Frei Damião, famoso frade capuchino
tido como santo pelo “povo”, se encontrava em uma missão na cidade. Como o
Frei era amigo do prefeito e a equipe ficou hospedada na casa de um também
amigo do político, foi possível a aproximação: “[...] ele estava sempre na
retranca, mas deu entrevista” (SOBRINHO, 2012, p.249), comentou Muniz. É o
único dos documentários de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas que trata de
religião.
O filme traz uma longa entrevista com Frei Damião, que aparece
fragmentada e articulada com imagens de observação de uma missa e de
peregrinação, e com depoimentos de outros personagens, que falam sobre
milagres atribuídos a ele. Além do próprio Frei, há bastante espaço para a fala
de uma beata de óculos (a trataremos assim porque ela não é nominada no filme)
que, de acordo com Sidnei Paiva Lopes, procurou a equipe na cidade querendo
dar um depoimento e convocou outros beatos para testemunharem, funcionando
no filme como entrevistadora. Coberta por uma roupa preta e com óculos de
armação grossa, a mulher aparece antes mesmo das cartelas de apresentação
da equipe, numa espécie de prólogo, cantando o trecho de uma música sacra.
A voz over assertiva fará intervenção uma única vez e em tom irônico, no
início do documentário, enquanto são mostrados planos gerais da cidade e do
“corpo a corpo” de Frei Damião com os devotos nas ruas:
Taperoá, Paraíba, 1969. Um aviso mágico corre pelas estradas e ruas,
atinge cada casa. Frei Damião chegará trazendo a paz para os bons,
consolo para os aflitos e o fogo eterno para os impuros.
O capuchino é visto caminhando pela rua, acompanhado por centenas de
fiéis, e a locução compara sua figura à de Antônio Conselheiro (1830-1897) e
Padre Cícero (1844-1934), ambos religiosos que viveram no Nordeste, com
grande devoção popular e relações estreitas com a política de seu tempo. A
locução explica rapidamente a trajetória do Frei e prossegue em tom irônico,
59
sobre as imagens de fiéis que se amontoam para chegar perto do frade: “Um
novo messias para o povo. A trombeta dos aflitos, o martelo dos hereges”.
Semelhante à estratégia utilizada em Memória do cangaço, a voz over do
“diretor-locutor” faz uma pergunta inicial que o filme deverá responder: “Mas,
quem é Frei Damião?”. Vemos novamente a beata de óculos e um proprietário
de terras – o mesmo entrevistado ao lado da caminhonete em Jaramataia – e
ambos reforçam que o Frei é um santo. A beata aparecerá ainda mais vezes, ora
falando de maneira geral sobre a fé em Frei Damião, ora ao lado de outras
pessoas que dão depoimentos de milagres atribuídos ao padre.
Aos 4’10’’, a beata conta que um sobrinho seu tinha verrugas que sumiram
após colocar no rosto uma água benzida por Frei Damião. Sobre a voz dela em
off, a montagem traz a imagem de Frei Damião esboçando um sorriso, como se
estivesse rindo do que a beata diz. A articulação do filme se dará sempre nessa
chave irônica, em que a figura do Frei é constantemente colocada em xeque.
Em seguida, há uma missa de Frei Damião, na qual observamos os rostos
e reações dos participantes, a maioria homens, enquanto o religioso fala que
sexo é pecado e orienta os fiéis a viverem na castidade. O frade cita como
pecaminosas as revistas e livros que provocariam o desejo sexual e os métodos
contraceptivos que seriam, em suas palavras finais de pregação: “[...] contra a
lei de nosso Senhor”.
A entrevista com o Frei começa após a missa. Como em outros filmes do
diretor, as perguntas de Paulo Gil Soares são diretas, feitas na tomada e deixam
o frade em uma posição desconfortável, pois reiteram sempre a mesma questão,
sobre o fanatismo do povo ser estimulado pela igreja, o que é constantemente
negado pelo religioso – daí a percepção de Sergio Muniz sobre a “retranca” do
personagem. O recurso de montagem paralela nesse filme, a exemplo de outros
já comentados, contrapõe o que Frei Damião diz ao diretor com depoimentos
dos devotos, mas também com seu próprio comportamento diante deles, em
consonância com o fanatismo, construindo uma figura – lembremos que a
locução lança a pergunta “Quem é Frei Damião?” no início do filme – passível de
dúvidas, trabalhando sempre na chave da ironia.
Clara Leonel Ramos (2003) considera Frei Damião: trombeta dos aflitos,
martelo dos hereges um filme de “transição”, pensando no “modelo sociológico”
elaborado por Bernardet (2003):
60
Há, de um lado, a tese de fundo, altamente crítica à religião e coerente
com uma posição que prevalece unânime nos documentários da
Caravana. No entanto, o documentário não se resume ao que poderia
ser classificado como filme de tese. ‘Frei Damião’ traz algumas
novidades em relação ao dito ‘modelo sociológico’, como a presença da
‘religião subjetiva’ através de vivências religiosas pessoais – embora o
registro do rito coletivo ainda exista, e a associação entre religião e
forças socioeconômicas dominantes seja constantemente sugerida –, a
retração do comentário e a forte participação de entrevistas, que na
década de 70 se tornariam mais populares (RAMOS, 2003, p.81).
Não é possível afirmar que há nesse filme uma transferência do discurso
da “voz do saber” para a “voz da experiência”, mas há a valorização de
subjetividades dos personagens que o afastariam do “modelo sociológico”. Ainda
retomaremos esta questão no capítulo 2, quando tratarmos das configurações
dos personagens nos filmes de Paulo Gil Soares.
Os momentos finais do documentário, mesmo já sem a entrevista,
reforçam uma associação entre religião e alienação. A partir dos 16’45’’, Frei
Damião é observado pregando ao ar livre. Ele está de pé em cima da mureta de
uma casa e suas palavras causam comoção nas pessoas; várias aparecem
chorando e ao final da pregação aplaudem o padre, em apoteose. Durante a
pregação ouvimos a voz dele e a música instrumental da Banda de Pífanos, que
aumenta de volume após os aplausos. As pessoas passam a conduzi-lo pelas
ruas da cidade até o carro que o levará embora e tocam nele. Vemos o carro
saindo e os fiéis o seguem, enquanto na trilha sonora é colocada em off o trecho
de uma de suas pregações, que é proferida junto com a voz das pessoas: “Dai
ao povo brasileiro paz constante e prosperidade completa [...]”. Paralelamente
vemos uma mulher chorando a partida do Frei e as pessoas começam a se
dispersar pelas ruas. Há um corte brusco para a beata de óculos, que diz:
“Senhor Deus, misericórdia” e em seguida sua fala é silenciada; vemos apenas
a boca da mulher articulando as palavras, possivelmente em exaltação ao Frei,
com a música de pífanos ao fundo, e o documentário termina.
1.9 – Esboços de uma “voz”
Retomando os pontos levantados neste capítulo, apontaremos aqui
características da “voz” de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas, perceptíveis
61
pela descrição e leitura inicial dos oito documentários. Em termos temáticos, há
o interesse em retratar como vive o homem sertanejo nordestino, notadamente
enfocando suas relações de trabalho, o que se aproxima das preocupações de
outros diretores da Caravana. No entanto, diferente dos demais, há uma atenção
à figura do vaqueiro, presente em seis dos oito títulos.
Para esse retrato não bastam as explicações mais didáticas sobre os
trabalhos no campo, o artesanato de couro, o abate do boi. É preciso analisar a
realidade apreendida, investigar e denunciar as más condições de vida das
pessoas. Em Jaramataia, por exemplo, o “passo-a-passo” da fabricação do leite
de fazenda, em uma sequência que dura mais de 7 minutos, revela, também, a
denúncia sobre o pouco ganho do vaqueiro e a situação precária daquelas
pessoas. Já em A morte do boi, mostra-se em detalhes o processo de abatimento
do gado, mas isso é mais um pretexto para que a pobreza da região venha à
tona. Tais situações fazem com que o tom dos filmes seja constantemente
deslocado do caráter educativo para o da denúncia: antes de mais nada, tratase de uma “voz” política, que reflete a postura do realizador, em consonância
com o pensamento da intelectualidade de esquerda brasileira da época.
Em 1966, um ano após ter realizado Memória do cangaço, Paulo Gil deu
um depoimento ao jornal carioca Correio da Manhã, no qual defendeu o tipo de
documentário que estava propondo:
No momento em que o cinema brasileiro atravessa uma crise de
público, êsse mesmo público que acusa os filmes brasileiros de
pecarem por sua incomunicabilidade; quando os críticos afirmam que
o cinema se distancia do público, o cinema direto, ou cinema-verdade
como é chamado na França, preenche essa lacuna, porque a sua
característica principal é a comunicação direta e desalienante (PAULO
GIL, 1966, p.7).
Longe de sugerir um estilo propriamente – notadamente, ele se refere a
“cinema direto” e “cinema verdade” como sendo a mesma coisa –, o que fica
evidente é a urgência de uma nova postura do cineasta brasileiro, que deveria
tentar a “comunicação direta e desalienante” com o público. Em seus filmes, essa
“desalienação” se daria pela denúncia da má condição de vida das pessoas,
associada normalmente às relações desvantajosas que se estabelecem, por
exemplo, entre o proprietário de terras e o camponês; entre o negociante e o
artesão ou o curtidor de couro; em suma, entre o “explorador” e o “explorado”.
62
No caso de Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges, a alienação
está associada ao fanatismo religioso, que é problematizado pelo filme.
Cabe lembrar que a ideia do financiador e produtor dos filmes, Thomaz
Farkas, tratava-se de um projeto político: vender os documentários para escolas
e exibi-los na televisão, o que acabou não ocorrendo. Conforme ele afirmou: “Eu
achava que dando essa consciência [por meio dos filmes] seria tão
revolucionário quanto uma revolução” (FARKAS, 2003, 12’47’’)39. É preciso
balizar as palavras de Farkas, deslocadas quase 40 anos da época de realização
dos filmes, já que a ideia de revolução parece não condizer com as intenções
comerciais e o esquema de produção empreendidos por ele à época40. Pode-se
compreender a “revolução” de que fala como sendo uma conscientização do
espectador, muito mais numa chave educativa do que de luta revolucionária.
A postura ativa, participante e crítica diante da realidade não era uma
discussão do Brasil e se integra a um movimento mais amplo de debates dos
cineastas na América Latina entre as décadas de 1960 e 1970, conhecido como
“Nuevo Cine Latinoamericano” (NCL), no qual se inclui a experiência do Cinema
Novo brasileiro, contexto no qual a produção da Caravana Farkas se insere.
Contudo, é preciso ver com cautela essa aproximação, pois, ao contrário das
produções realizadas, por exemplo, na Argentina, Chile ou Cuba, a
cinematografia brasileira não estava engajada politicamente na perspectiva de
uma luta revolucionária41.
Sergio Muniz, em 1967, publicou um texto na revista Mirante das artes no
qual traça características do que ele denomina como sendo o “cinema direto
brasileiro”, resumindo vários dos aspectos em pauta para os cineastas naquele
momento. A partir da observação dos quatro primeiros médias-metragens
financiados por Farkas, entre 1964 e 1965 (depois reunidos no longa Brasil
Trecho do depoimento de Thomaz Farkas no documentário Thomaz Farkas, brasileiro (Walter
Lima Jr., 2003).
39
Já explicamos que a intenção de Farkas era comercializar os filmes, vendendo-os para escolas
e para a televisão. Os documentários tinham o selo Thomaz Farkas Filmes Culturais e eram
vendidos na Fotoptica, loja da qual o produtor era dono. Em entrevista a nós, o cineasta Sergio
Muniz chegou a comentar que algumas instituições de ensino adquiriram os filmes, mas que o
número não foi significativo. Também em entrevista, Sidnei Paiva Lopes comentou que o
esquema de realização foi bastante profissional: todos da equipe recebiam salário e folgas
semanais.
40
41
Sobre o Nuevo Cine Latinoamericano (NCL), ver NUÑES (2009).
63
Verdade e hoje considerada a 1ª fase de produção da Caravana Farkas), Muniz
afirma:
Idealmente o cineasta que faz cinema direto ‘vê’ e ‘escuta’ tudo.
Ainda que isso seja um conceito um tanto geral, é realmente um ponto
de partida que possibilita constatar que o cinema direto verifica como,
na realidade, as pessoas agem, pensam e falam.
Mas, diferenciando-se dos cineastas que utilizam a técnica do ‘direto’
(freqüentemente chamado, ainda que erroneamente, de cinema
verdade) nos Estados Unidos, no Canadá e na França, o cineasta
brasileiro ao fazer o cinema direto não se satisfaz nem concorda em só
documentar tal ou qual realidade, dela ser simples espectador ou
esperar que dita realidade se explique sozinha.
Para o cineasta brasileiro que utiliza a técnica do ‘direto’, há que existir
uma visão crítica dos conflitos e contradições que estão na realidade
que seu filme apresenta.
Seja qual for o nível em que a realidade for surpreendida, documentada
pelo cineasta brasileiro que faz cinema direto, ela será desintegrada,
examinada e posteriormente reintegrada pelo autor do filme ou pelo
seu público.
[...] Com a acuidade da visão crítica, associada à acuidade de ‘ver’ e
‘escutar’ tudo – seletivamente – estaremos pondo a descoberto a
realidade geral que nos cerca ao mesmo tempo que tentamos tornar
transparentes e claras as sutilezas e contradições do ser humano em
conflito com o meio e consigo mesmo, e, o que é que mais nos
interessa, estaremos conhecendo o homem brasileiro (MUNIZ, 1967,
p.44).
O nome “cinema direto brasileiro” se relacionaria, portanto, a uma postura
política do cineasta e aos meios técnicos para colocá-la em prática. Observando
os filmes de Paulo Gil Soares, fica mesmo difícil estabelecer correspondência
com o direct cinema norte-americano dos irmãos Maysles, de Richard Leacock
ou de Robert Drew, por exemplo. Ao contrário da experiência brasileira, esses
documentaristas adotavam a postura da “mosca-na-parede”, o que implicava em
não intervir no momento da tomada; seus filmes queriam romper com o
documentário educativo da escola inglesa de John Grierson, negando
procedimentos que lhe eram caros, como a utilização da voz over ou a inserção
de
músicas
na
montagem,
procedimentos
também
explorados
nos
documentários de Paulo Gil. Erik Barnouw (1996) resume:
O documentarista do cinema direto colocava sua câmera diante de
uma situação de tensão e aguardava uma crise [...] o artista do cinema
direto queria ser invisível [...] era como um espectador que não
interferia na ação42 (BARNOUW, 1996, p.223).
Tradução nossa para: “El documentalista del cine directo llevaba sú cámara ante una situación
de tensión y aguardaba a que si produjera una crisis [...] El artista del cine directo aspiraba a ser
invisible [...] era um circunstante que no intervenía en la acción” (BARNOUW, 1996, p.223).
42
64
O que há em alguns momentos dos filmes de Paulo Gil Soares, como já
apontamos, é uma observação mais distanciada em tomadas mais descritivas.
Sidnei Paiva Lopes, responsável pelo som direto em sete dos oito documentários
aqui comentados, contou que a equipe tentava passar ao máximo despercebida
nas feiras, por exemplo, e que às vezes a câmera era colocada até escondida
no meio dos produtos:
Para filmar lá [no Nordeste], eu cortei a barba. Porque o gravador, com
um microfone desse tamanho, um fone de ouvido, já chama atenção o
suficiente. [...] A gente tentava não usar roupas extravagantes, quer
dizer, tentar sumir no meio da multidão. A gente tentava desaparecer43.
Entendemos que os documentários do diretor apresentam um caráter
híbrido44, no sentido de combinarem figuras estilísticas de modos distintos de
representação documental para articularem o discurso: convivem “voz de Deus”
assertiva ou explicativa, “voz lírica” que recita versos da poesia popular,
entrevistas que atestam a presença do realizador na tomada, imagens mais
observativas trazendo “indícios de pobreza”.
Na impossibilidade de tipificações preexistentes, preferimos dizer que
nesse subconjunto há “níveis de modos de representação documental” diversos,
aqui cruzando as ideias de Bill Nichols (2010) com o raciocínio de Odin (2012),
conforme mencionamos no início deste capítulo. Por exemplo, A morte do boi é
mais expositivo que Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges.
Este, por sua vez, é mais participativo, pois há um embate entre o diretor (mesmo
que não o vejamos) e Frei Damião no instante da entrevista. No entanto, são
filmes que também trazem momentos de observação, até de reflexividade, como
comentamos em uma passagem de Memória do cangaço.
São documentários que pretendem revelar e denunciar a “condição
brasileira” e, para isso, dependem do verbal, da fala: da voz over, dos
depoimentos das pessoas entrevistadas, das letras das canções populares.
Neste sentido, aciona-se frequentemente o recurso de montagem paralela em
43
Depoimento à autora em 05 de dezembro de 2013.
Não confundir com “filmes híbridos”, tidos por Odin (2012) como aqueles que acionam duas
ou mais instruções de leitura, que ficam “[...] na interseção de dois (ou mais) conjuntos
cinematográficos [...]” (ODIN, 2012, p.27).
44
65
que há a contraposição de ideias, quando se coloca a fala de dois entrevistados
seguidamente (como em Erva Bruxa ou Jaramataia); ainda quando há
contraposição entre depoimentos e imagens (em Memória do cangaço ou Frei
Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges, por exemplo).
Em relação à voz over, ela é sempre do próprio diretor, que é um “diretorlocutor”, diferentemente dos filmes de Geraldo Sarno e Sergio Muniz na
Caravana Farkas, que optam pela contratação de locutores profissionais. Há
também um peso maior às denúncias nos documentários de Paulo Gil Soares
em comparação aos demais realizadores, dando a impressão de que o caráter
educativo é mais um pretexto para que outras questões sejam reveladas.
Conforme pontuamos ao longo de todo o capítulo, para continuar a
perceber singularidades da “voz” de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas,
nossa próxima discussão, no capítulo 2, será em torno das configurações dos
personagens. Já no capítulo 3, trataremos da apropriação de materiais da cultura
popular em alguns documentários.
66
CAPÍTULO 2 – APROXIMAÇÃO AO OUTRO: PENSANDO OS FILMES
DE PAULO GIL SOARES A PARTIR DOS PERSONAGENS
No capítulo anterior, esboçamos algumas características dos oito
documentários realizados por Paulo Gil Soares na experiência da Caravana
Farkas, procurando marcar algumas recorrências temáticas e formais do
conjunto pela articulação de suas vozes. Baseando-nos na constatação de que
esses filmes se apoiam, em grande medida, no registro da fala e dos gestos das
pessoas, nosso objetivo agora será observar alguns dos personagens neles
retratados, nomeados também “atores sociais”, e compreendidos a partir das
reflexões de Bill Nichols (1997 e 2010):
Eu utilizo o termo ‘ator social’ para enfatizar o grau que os indivíduos
representam-se a si mesmos diante dos outros; isto pode ser tomado
por uma interpretação. Este termo também nos lembra que os atores
sociais, as pessoas, conservam a capacidade de atuar dentro do
contexto histórico no qual se desenvolvem. Já não prevalece a
sensação de distanciamento estético entre um mundo imaginário [da
ficção] em que os atores realizam sua interpretação e o mundo
histórico em que as pessoas vivem. A interpretação dos atores sociais,
contudo, é similar à dos personagens de ficção em muitos aspectos.
Os indivíduos apresentam uma psicologia mais ou menos complexa e
voltam nossa atenção para seu desenvolvimento ou destino
(NICHOLS, 1997, p.76)45.
Como já explicamos no capítulo 1, convivem nos filmes modos diversos
de representação: do mais expositivo apoiado em uma voz over didática e
assertiva ao mais interativo/participativo, no qual se enfatiza o encontro do
realizador com o outro. Decorrente disso, os personagens ora são entrevistados
diretamente pelo realizador, ora dão depoimentos em que não é assumida a
situação de entrevista, ora são observados realizando alguma ação. Essas
modulações são importantes e precisam ser balizadas.
Tradução nossa para: “Yo utilizo el término ‘actor social’ para hacer hincapié en el grado en
que los individuos se representan a sí mismos frente a otros; esto se puede tomar por una
interpretación. Este término también debe recordarnos que los actores sociales, las personas,
conservan la capacidad de actuar dentro del contexto histórico en el que se desenvuelven. Ya
no prevalece la sensación de distanciamiento estético entre un mundo imaginario en el que los
actores realizan su interpretación y el mundo histórico en el que vive la gente. La interpretación
de los actores sociales, no obstante, es similar a la de los personajes de ficción en muchos
aspectos. Los individuos presentan una psicología más o menos compleja y dirigimos nuestra
atención hacia su desarrollo o destino” (NICHOLS, 1997, p.76).
45
67
Perceberemos em vários momentos analisados a manifestação daquilo
que Mariana Baltar (2010) chama de “tradição intervencionista” do documentário
brasileiro, que pressupõe “[...] marcas mais explícitas da performance da
persona do realizador ao longo do filme como instância que provoca, entrevista,
confronta os agentes/sujeitos do filme” (BALTAR, 2010, p.1) [grifo nosso]. As
reflexões da autora partem das ideias acerca do conceito de “dramaturgia de
intervenção”, elaborado por Jean-Claude Bernardet (2003 e 2005), a propósito
da prática adotada por João Batista de Andrade em filmes como Liberdade de
imprensa (1967) e Migrantes (1973), nos quais o documentarista filma uma
realidade gerada por ele, sendo sua presença não só explícita como necessária
para criar as situações dos filmes. Bernardet (2005) chega a utilizar a expressão
“documentário de intervenção” quando debate sobre esses títulos, resumindo o
que acarretava tal “dramaturgia”:
Era a negação do discurso sociológico como fonte de verdade, a
recusa da posição de superioridade que consiste em mostrar fatos e
pessoas e falar a respeito, ex-câmara, era assumir não o papel de um
pretenso observador neutro, mas uma posição ativa que assume a
responsabilidade de criar situações nas quais as contradições sociais
se expressam. É isto, me parece, que leva Batista ao conceito de
dramaturgia de intervenção (BERNARDET, 2005, p.304).
Os documentários de Paulo Gil Soares não podem ser considerados “de
intervenção” porque, diferentemente dos dois títulos de João Batista de Andrade,
cuja “dramaturgia” se dá praticamente em todas as situações dos filmes, neles
há momentos de intervenção assumida do realizador, no sentido de provocador,
como sugere Mariana Baltar (2010). Sobre a instância do personagem, a autora
acrescenta que ao longo dessa “tradição intervencionista”, essa figura, tão cara
ao documentário brasileiro, “[...] aparece e reina em ampla tensão mais ou
menos conflituosa com o outro personagem, o próprio realizador” (BALTAR,
2010, p.1). Tais tensões nos interessam aqui. Quando isso ocorre, percebe-se o
que Baltar (2010) chamou de “performance da persona do realizador”, mas ainda
retomaremos a discussão. Cabe ponderar que nos documentários aqui
estudados, Paulo Gil Soares não é assumidamente um personagem, mas a
entonação de sua voz e as perguntas que faz aos demais personagens atestam
sua postura política e sua persona.
68
Algumas questões tangenciarão nosso percurso. Quais personagens
esses filmes constroem? Como os personagens se comportam diante da
câmera? Qual relação é estabelecida entre os personagens e a enunciação dos
documentários? O que está implicado na relação entre o cineasta-intelectual e o
outro? Lembrando que os documentários da Caravana Farkas, nas palavras de
Thomaz Farkas, têm como preocupação central “[...] o homem, sua relação com
outros homens, seus problemas com o emprego e o trabalho, com a terra que
lavra, com a máquina que utiliza” (FARKAS, 1972, p.40).
Iremos analisar personagens dos oito filmes de Paulo Gil Soares
observando com profundidade maior aqueles que, em nossa leitura, têm mais
relevância para o discurso fílmico e para as discussões que faremos, admitindo
ser subjetiva qualquer seleção. Desta forma, dividimos o capítulo em duas
grandes partes, resultando em dois agrupamentos de personagens. Na primeira
parte, trataremos dos sujeitos filmados que ocupam posições de poder: o
intelectual, o coronel, o proprietário da fazenda, o sacerdote religioso. Já na
segunda, nos ateremos àqueles referidos por Jean-Claude Bernardet (2003)
como o “outro de classe”: o ex-cangaceiro, o vaqueiro, o lavrador, o artesão, o
curtidor de couro e o beato nordestinos.
Cabe ressaltar que os filmes efetuam tratamentos diferentes para
personagens pertencentes ao mesmo grupo. Veremos, por exemplo, que Frei
Damião e Ariano Suassuna são “personagens com poder”, mas a relação que
os dois documentários – Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges
e Vaquejada – estabelecem com eles é distintiva, quase oposta. Isso se deve,
em grande medida, ao contexto histórico desta produção, no caso, às afinidades
ideológicas entre realizador e o outro filmado.
2.1 – O embate com o outro em posição de poder
Quando
observamos
nos
documentários
de
Paulo
Gil
Soares
personagens que detêm algum poder, uma característica a sublinhar é a
sensação de conflito com essas pessoas, suscitada pelo movimento dos filmes
de autorizar / desautorizar seus discursos, que ocorre ora no instante da tomada,
quando ouvimos as perguntas e colocações do diretor-entrevistador; ora pela
articulação da montagem, em que às vezes é acionada sua voz, mas já gravada
69
em estúdio. É um aspecto que diferencia o conjunto de filmes do diretor dos
demais realizadores da Caravana Farkas, como Geraldo Sarno ou Sergio Muniz,
em que também há enfrentamentos com diferentes poderes, mas não
diretamente com personagens que os detêm, como faz Paulo Gil Soares.
2.1.1 – Intelectuais à prova
Os personagens tidos como intelectuais ou catedráticos aparecem
apenas nos documentários de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas, não sendo
convocados pelos demais realizadores que participaram da 1ª e 2ª fases de
produção. A respeito deles, podemos dizer que, por um lado, temos colocado em
dúvida o saber acadêmico, quando, por exemplo, a explicação sobre as origens
do cangaceirismo feita pelo professor Estácio de Lima, em Memória do cangaço,
é questionada, sendo uma postura que ia na contramão do documentário
brasileiro realizado até então, justamente respaldado pelo conhecimento
científico. Por outro lado, uma figura como a do escritor Ariano Suassuna, único
depoente de Vaquejada, “reina” sozinha, atuando mais como locutor do que o
próprio Paulo Gil Soares.
Falemos primeiro de Estácio de Lima, de Memória do cangaço, à época
diretor do Museu de Antropologia da Universidade Federal da Bahia e professor
na Faculdade de Medicina da mesma instituição, a quem o documentário faz um
agradecimento, logo na cartela inicial de apresentação, o que não deixa de ser
curioso, já que em seguida o saber do catedrático será colocado sob suspeita.
Ele é o primeiro entrevistado do filme. A locução o apresenta, citando sua função
e cargo na universidade, e coloca a questão sobre qual seria a origem dos
cangaceiros. Em nenhum momento ouvimos Paulo Gil Soares conversar com
ele ou fazer perguntas no momento da entrevista; sua intervenção é feita a
posteriori. Esta é uma informação relevante e depois será retomada.
Quando o professor começa a responder à pergunta feita pela locução,
não o vemos de imediato, sendo seu depoimento em off coberto por planos
gerais em travelling46 da arquitetura imponente da universidade, dos corredores,
Thomaz Farkas (1972) comenta que esses planos foram feitos de forma improvisada, com o
fotógrafo Affonso Beato sendo empurrado pelo diretor Paulo Gil Soares em um carrinho que era
46
70
estátuas e pessoas que ali transitavam, situando-nos no ambiente do
catedrático. Após a contextualização do espaço, há um corte para Estácio de
Lima, visto em primeiro plano em sua sala na universidade, imprensado contra
uma parede e sentado, o que não lhe dá mobilidade dentro do quadro. Dirigindose diretamente à câmera, sua fala é pausada e segura, sem hesitações,
obedecendo às normas cultas da língua e assemelhando-se à leitura de um livro
científico – ele até faz citação de um psiquiatra alemão.
Rapidamente, o documentário abandona a imagem dele para se ater nos
planos de alguns vaqueiros em momentos de aparente descontração, enquanto
o discurso do catedrático continua a ser ouvido, em off. De acordo com ele, a
entrada de um homem no cangaço estaria relacionada ao ambiente em que vive,
a fatores geográficos e sociais, mas também a um determinado tipo físico magro
do sertanejo e a glândulas existentes em seu corpo que o conduziriam a “reações
típicas”, à violência. Em nada sua descrição se parece com as imagens dos
homens e crianças com seus cavalos, bastante descontraídos, que o
documentário apresenta em montagem paralela. Fernão Ramos (2008, p.397)
pontua que o discurso de Estácio de Lima estava deslocado em pelo menos meio
século, correspondendo a um pensamento racista que era dominante no Brasil
no primeiro quarto do século XX.
O conflito com o professor é feito então fora da tomada, por meio do
contraponto que as imagens dos vaqueiros estabelecem com sua fala, sem a
necessidade de acionar a locução de imediato. O recurso será utilizado em
seguida, após o término do depoimento do catedrático, para enfatizar a dúvida
quanto à plausibilidade dele: “Mas, estará o professor Estácio de Lima com a
razão? Ouçamos um desses homens”. Dá-se início a outro momento em que o
discurso de Lima é deslegitimado, quando temos a entrevista com o vaqueiro
Gregório47, que também não aparenta ser passível de violência ou suscetível a
“reações típicas”, como afirmara o professor, mas alguém oprimido pelas
condições desfavoráveis de vida.
utilizado para transportar corpos à sala de autopsia do Instituto Médico Legal da Faculdade de
Medicina da Universidade Federal da Bahia.
Ainda retornaremos à entrevista do vaqueiro, quando tratarmos do “outro de classe” nos filmes
de Paulo Gil Soares.
47
71
Ainda que Estácio de Lima fosse especialista no assunto48 e ocupasse
uma cadeira na universidade, o documentário não dá aval às suas
considerações, ao seu saber acadêmico, preferindo relativizá-lo com outros
relatos e saberes: do vaqueiro, dos ex-cangaceiros, da poesia popular49 e, até
certo ponto, do coronel Zé Rufino, como veremos mais adiante. Em nossa
interpretação, colocar em dúvida e até ridicularizar o que diz o professor é,
consequentemente, por em xeque a superioridade de um intelectual que,
diferentemente do cineasta, não era de esquerda e, portanto, não se alinha
ideologicamente a ele. Essa postura relaciona-se às discussões que ganham
força após o golpe militar de 1964 com a instauração da ditadura – que em
âmbito cultural interrompeu, por exemplo, a produção dos CPCs (Centros
Populares de Cultura) –, justamente pautadas na ideia do intelectual como
“porta-voz” do povo e responsável por promover sua desalienação por meio da
cultura.
Neste sentido, é notável que durante a entrevista com Estácio de Lima, o
entrevistador e também diretor Paulo Gil Soares intervenha fora do mundo
histórico representado – para citar uma expressão de Bill Nichols (1997 e 2010)
–, e que na entrevista com o vaqueiro Gregório (representante do povo) não
apenas ouvimos as perguntas do diretor como o vemos ao lado do personagem
segurando um microfone, colocando-se na tela, em outro procedimento raro para
o documentário realizado à época no país. Ou seja, é o realizador ao lado do
povo, literalmente, o que pode ser tomado como uma tentativa de se aproximar
dele, um dos anseios dos cineastas à época.
São escolhas perceptíveis no nível da linguagem que revelam um aspecto
ideológico pertinente e para além da película: as diferentes posturas do cineastaintelectual diante de um outro intelectual, cujo discurso não se alinha ao dele; e
diante do outro povo. Retomamos os ensinamentos de Nichols (1997), quando
diz: “[...] cada escolha de configuração espaço-temporal entre realizador e
entrevistado tem implicações e uma potencial carga política, uma valência
No mesmo ano em que foi finalizado o documentário Memória do cangaço, em 1965, Estácio
de Lima publicou o livro O mundo estranho dos cangaceiros (ensaio bio-sociológico).
48
49
A utilização de materiais da cultura popular no filme será melhor debatida no capítulo 3.
72
ideológica, por assim dizer, que merece nossa atenção” (NICHOLS, 1997,
p.87)50.
Na entrevista com Estácio de Lima, o que temos é a imagem/fala do
personagem e o apagamento das perguntas ou intervenções do entrevistadordiretor, que se manifesta depois, por meio de uma voz over que põe em dúvida
o depoimento do acadêmico. Trata-se de uma escolha e não uma necessidade
técnica51, já que com outros entrevistados do mesmo filme, como Dadá e o
vaqueiro, Paulo Gil Soares se manifesta no instante da tomada. Escolha que
marca também o lugar privilegiado do realizador, da “voz do saber” exercendo
seu controle sobre o discurso fílmico.
O status de autoridade de Estácio de Lima é desarmado pela montagem:
somos levados a comparar o que ele diz com o que o restante do filme apresenta
(imagens, depoimentos, narração em over), tornando sua fala pouco crível. Sua
própria fala ajuda nesse sentido, pois chega a provocar riso quando ele compara
características de homens gordos e magros – estes seriam mais propensos a
entrar no cangaço –, afirmando que os primeiros seriam “homens que amam a
vida, que vivem numa extroversão contínua, que esquecem com facilidade as
mágoas”, enquanto os magros “guardam muito mais as ofensas recebidas”.
Em nosso entendimento, a montagem e a performance do catedrático
diante da câmera ajudam a construí-lo como um personagem antipático no filme.
Diante desta constatação, parece-nos pertinente trazer para o debate uma
primeira discussão, encaminhada por David Mac Dougall (1998, p.29), sobre a
instância do personagem no cinema documentário (notadamente o etnográfico).
De acordo com o autor, o personagem teria uma “múltipla identidade”: é uma
pessoa que existe anteriormente e fora do filme; é alguém construído através da
interação com o realizador; e, finalmente, passaria por uma última construção
feita pelo público que assiste ao filme. Nosso interesse volta-se para os dois
primeiros momentos, levando-se em conta que o terceiro presumiria um estudo
Tradução nossa para “[…] cada elección de la configuración espaciotemporal entre realizador
y entrevistado tiene implicaciones y una carga política potencial, una valencia ideológica, como
si dijéramos, que merece nuestra atención” (NICHOLS, 1997, p.87).
50
Tal possibilidade poderia ocorrer, levando-se em conta que na época de realização do filme a
gravação em som direto ainda era uma novidade a ser explorada.
51
73
de recepção, que está além de nossos objetivos, embora admitamos nosso lugar
também enquanto espectadores.
Mac Dougall (1998, p.34) afirma que as escolhas feitas pelo cineasta
durante o processo de montagem do filme – ou seja, se ele adiciona, remove ou
troca de lugar o material filmado – fazem com que o personagem se modifique
gradualmente, o que complementa o apontamento de Nichols (1997) citado
anteriormente:
Olhar através do visor de uma câmera e manipular o material de
alguém filmado são ambos atos de inspeção intensa e íntima. O
primeiro é vívido e lançado a um alto nível de expectativa. O futuro é
desconhecido: o cineasta e os personagens estão unidos em um
presente comum, esperando cada novo rumo de acontecimentos. A
montagem do filme, por contraste, é solitária e deliberada. Ela envolve
constantes e frequentes repetições tediosas durante longos períodos.
Gradualmente o cineasta passa a conhecer o material filmado em
todos os seus detalhes. Cada palavra e gesto das pessoas filmadas
assume um peso adicional, no conhecimento do que elas se tornarão,
mas também em sua perfeita retidão. Nos planos vistos várias vezes,
as pessoas se comportam incrivelmente como deveriam – como
estavam destinadas a se comportar (MAC DOUGALL, 1998, p. 34)52.
Voltemos a Estácio de Lima. Desdobrando as considerações de Mac
Dougall (1998), notemos que o acesso que Memória do cangaço nos dá ao
professor limita-se a trechos de sua entrevista, que dura pouco mais de 3
minutos, sendo boa parte ouvida em off. Podemos comparar Estácio de Lima ao
empresário em Viramundo que, de acordo com Bernardet (2003), funciona como
um “locutor auxiliar” na narrativa. Ambos têm uma prosódia que se assemelha à
locução em voz over, falam de forma homogênea e de fora da “experiência”,
utilizam a norma culta da gramática, ocupam posições de poder. No entanto, há
uma diferença fundamental. Se no filme de Geraldo Sarno o que o empresário
diz complementa a fala do locutor sobre o migrante nordestino, em Memória do
cangaço o discurso de Estácio de Lima é deslegitimado, posto em xeque e se
Tradução nossa para: “Looking through the viewfinder of a camera and handling the footage
of those one has filmed are both acts of intense and intimate inspection. The first is vivid and
pitched at high level of expectation. The future is unknown: the filmmaker and subjects are bound
together in a common present, awaiting each fresh turn of events. Film editing, by contrast, is
solitary and deliberate. It involves constant and often wearisome repetitions over extended
periods of time. Gradually the filmmaker comes to know the footage in all its details. Every word
and gesture of the people filmed assumes an added weight, in the knowledge of what will become
of them, but also in its quintessential rightness. In shots seen over and over again, people behave
uncannily as they must – as they were destined to behave” (MAC DOUGALL, 1998, p.34).
52
74
opõe à visão proferida pela locução, consequentemente pelo filme. Bernardet
(2007) comenta que o documentário de Paulo Gil Soares compartilha com filmes
como Maioria absoluta (Leon Hirszman, 1964) a atitude de colocar em oposição
uma determinada realidade e suas teses oficiais (no caso do filme de Hirszman,
o analfabetismo e a visão da burguesia sobre o problema), “[...] a fim de sugerir
que estas são obsoletas, não evoluíram com a realidade e precisam atualizarse” (BERNARDET, 2007, p.66).
É preciso mencionar, também, que Memória do cangaço opera um jogo
entre passado e presente, do qual Estácio de Lima não escapa. Quando o
professor fala sobre os fatores que teriam propiciado a entrada do homem
sertanejo no cangaço, refere-se a um passado, a um movimento ocorrido no
nordeste brasileiro entre fim do século XIX e início do XX. No entanto, as
imagens que passamos a acompanhar são de homens no tempo presente do
filme, década de 1960, e não há indicação dessa distância temporal; inclusive,
assumimos uma espécie de atemporalidade, em que o discurso de Estácio de
Lima é facilmente transportado para o presente, mecanismo que o filme adotará
em outros momentos.
Afirmamos que, além do encaminhamento feito pela montagem, a
performance do professor diante da câmera também o colocaria em uma chave
de antipatia. Antes de mais nada, é preciso demarcar o que estamos tomando
como performance de um personagem no documentário. De maneira sucinta,
poderíamos assumir a performance como a atuação do sujeito filmado, noção
que trabalhos como os de Mariana Baltar (2007 e 2008) e Clara Leonel Ramos
(2013) ajudam a elucidar, ainda que o corpus analisado por elas seja composto
por documentários contemporâneos, em que a instância do personagem
frequentemente é o elemento que organiza a narrativa53. Ambas as autoras
partem do conceito de performance de Erving Goffman54: “[...] toda atividade de
Mariana Baltar analisa Ônibus 174 (José Padilha, 2002), Um passaporte húngaro (Sandra
Kogut, 2003), Peões (Eduardo Coutinho, 2004), A pessoa é para o que nasce (Roberto Berliner,
2004), Estamira (Marcos Prado, 2004) e Edifício Master (Eduardo Coutinho, 2002). Já Clara
Leonel Ramos escolhe quatro títulos: Entreatos (João Moreira Salles, 2004), Juízo (Maria
Augusta Ramos, 2007), Serras da desordem (Andréa Tonacci, 2006) e Jogo de cena (Eduardo
Coutinho, 2007).
53
Na tradução para o português que encontramos do livro de Erving Goffman, The presentation
of self in everyday life (A representação do eu na vida cotidiana), de 1975, o termo performance
está substituído ora por desempenho, ora por representação. No entanto, manteremos
performance quando nos referirmos às conceituações que ele sugeriu.
54
75
um determinado participante, em dada ocasião, que sirva para influenciar, de
algum modo, qualquer um dos outros participantes” (GOFFMAN, 1975, p.23).
Outra passagem da introdução do livro de Goffman (1975) parece
interessante para pensarmos na ideia geral de atuação, que pode ser deslocada
para um filme documentário: “[...] quando uma pessoa chega à presença de
outras, existe, em geral, alguma razão que a leva a atuar de forma a transmitir a
elas a impressão que lhe interessa transmitir” (GOFFMAN, 1975, p.13-14).
Pensando na pessoa enquanto um personagem do filme e nas “outras” como a
equipe de realização (no caso de nosso corpus, formada pelo diretor, pelo
fotógrafo e por quem capta o som), podemos dizer que a atuação de Estácio de
Lima está ligada à sua participação em um documentário, mediada por uma
negociação – a qual não temos acesso – entre o realizador e ele.
Mariana Baltar (2008) segue raciocínio semelhante, defendendo o uso do
conceito de performance no documentário por sua “dimensão de negociação e
projeção de imagens”:
Ele permite abordar o jogo de negociações que parece presente entre
os personagens de um documentário e o diretor/equipe como um jogo
entre performances; sem, no entanto, invalidar o elemento principal do
que legitima o documentário como representação da realidade: o fato
de seus atores sociais serem ‘pessoas’ da vida real. ‘Pessoas’ da vida
real que representam, performam, para as câmeras do documentário,
os papéis sociais de si, sua autoimagem (BALTAR, 2008, p.171).
Neste sentido, a performance do catedrático de Memória do cangaço
parece dialogar com uma das situações apontadas por Goffman (1975, p.15)55,
quando atuando intencionalmente e de maneira consciente diante dos outros, a
pessoa se comporta de uma determinada forma que condiz com o grupo social
do qual faz parte. Estácio de Lima, filmado no ambiente que o caracteriza, a
universidade, olha para a câmera como se estivesse dando uma aula, tem
O autor cita vários tipos de situações: “Às vezes [a pessoa] agirá de maneira completamente
calculada, expressando-se de determinada forma somente para dar aos outros o tipo de
impressão que irá provavelmente levá-los a uma resposta específica que lhes interessa obter.
Outras vezes, o indivíduo estará agindo calculadamente, mas terá, em termos relativos, pouca
consciência de estar procedendo assim. Ocasionalmente, expressar-se-á intencional e
conscientemente de determinada forma, mas, principalmente, porque a tradição de seu grupo ou
posição social requer este tipo de expressão, e não por causa de qualquer resposta particular
(que não a de vaga aceitação ou aprovação), que provavelmente seja despertada naqueles que
foram impressionados pela expressão” (GOFFMAN, 1975, p.15).
55
76
postura professoral, o que também se manifesta pelo modo como fala, formal e
eloquente, e o que fala, uma tentativa de expor uma tese sobre o cangaço, na
qual utiliza vários termos científicos. Ele performa seu papel social para a câmera
e seu comportamento condiz com seu ambiente cotidiano, ou seja, o meio
acadêmico, a universidade, a sala de aula. De todo modo, essa performance
colabora para sua antipatia, quando comparamos Estácio de Lima a outros
personagens que, de alguma maneira, tornam-se mais próximos do espectador,
esforço que o catedrático parece não fazer.
Se a autoridade intelectual é colocada em dúvida em Memória do
cangaço, diferente é o que ocorre em Vaquejada com o escritor e catedrático em
cultura popular, Ariano Suassuna. A locução também apresenta o personagem
e a ele lança uma questão, de maneira semelhante como faz com Estácio de
Lima, e novamente há o apagamento do entrevistador; não vemos nem ouvimos
Paulo Gil Soares no momento da entrevista56.
Uma única questão é feita a Ariano Suassuna pelo “diretor-locutor” e
aparece aos 2 minutos de filme, acompanhada da imagem do escritor, após
termos visto vaqueiros chegando e se reunindo para o local onde seria realizada
a festa de vaquejada, em uma fazenda no interior da Paraíba57: “[...] você que
usa em sua literatura temas populares, o que você tem a dizer sobre a
vaquejada?”. Suassuna aparece enquadrado em plano americano, sentado em
uma cadeira de balanço e segurando um livro na mão, o qual frequentemente
olha enquanto explica as possíveis origens da festa.
Há menos rigidez em Suassuna do que em Estácio de Lima:
frequentemente ele olha para baixo, faz algumas hesitações na fala, não olha
diretamente para a câmera, mas para o lado direito (onde possivelmente estava
alguém da equipe que o entrevistava) e se movimenta um pouco na cadeira;
parece estar mais à vontade do que o catedrático de Memória do cangaço.
Apesar disso, temos a representação esperada de um intelectual: trata-se de
alguém que fala de modo formal sobre uma experiência – a vaquejada – sem
Há uma diferença de produção que deve ser considerada neste caso porque, como já
comentamos, a entrevista com Ariano Suassuna não foi feita pelo diretor, mas gravada em local
e tempo diferentes do restante do documentário.
56
57
Para mais informações contextuais, ver capítulo 1, item 1.7.
77
participar dela, que analisa aspectos sociais implicados na festa, que está
apartado do povo, mas reflete sobre e por ele.
Se a postura de Suassuna é mais amigável do que a de Estácio de Lima,
o modo como o documentário lida com seu discurso também é. Em Vaquejada,
também pouco vemos o personagem, mas ouvimos bastante seu depoimento
em off, coberto por imagens diversas da festa, cumprindo uma função que
comumente é do locutor, a de fornecer informações mais gerais sobre o tema e
fazer uma interpretação acerca dele58. O escritor é, por isso, um “locutor auxiliar”,
para lembrar a denominação de Bernardet (2003), mas seu peso no filme é maior
do que o empresário de Viramundo ou os técnicos de Subterrâneos do futebol
(Maurice Capovilla, 1965), já que no filme de Paulo Gil, Suassuna é quem de
fato analisa o tema, tarefa que a locução não faz.
Além do escritor, o filme tem o depoimento em off de outro homem
(possivelmente um vaqueiro) que explica, a partir da “experiência”, aspectos
técnicos da vaquejada, as regras, qual o espaço demarcado para a derrubada
do boi e como é a premiação. No entanto, nunca o vemos, nem somos a ele
apresentados ou sabemos seu nome, apenas ouvimos sua voz. Sua fala
descreve algumas imagens, porém, não o consideramos como “locutor auxiliar”,
pois tal função está filiada a uma autoridade dentro do discurso fílmico e a uma
semelhança que haveria, em termos de prosódia e visão de mundo, com o
“diretor-locutor”, o que não é o caso do depoente em questão.
Voltando a Ariano Suassuna, sua entrevista aparece fragmentada no
decorrer do documentário. Ela começa com a contextualização histórica da
vaquejada, passando por comentários sobre a vestimenta especial para a
ocasião, e termina com uma interpretação do escritor sobre as implicações da
festa para a vida do vaqueiro. É pertinente para nossa discussão citarmos a
passagem em que se dá esta última. No minuto final do documentário, passamos
a ver planos gerais de vaqueiros derrubando bois seguidamente – proeza sobre
a qual ouvimos falar ao longo do curta-metragem, mas só é mesmo concretizada
nesses planos finais –, enquanto ouvimos a análise da festa feita por Suassuna:
É importante marcar que neste documentário há raras inserções de uma locução mais
tradicional, ficando a cargo desta algumas informações no início do curta-metragem e a recitação
de versos da literatura de cordel, aspecto que será melhor observado no capítulo 3.
58
78
A vaquejada é o momento em que o vaqueiro pode exercitar o seu
orgulho. A vaquejada tem, como todo espetáculo... Da mesma maneira
que o grande momento do ator é o momento em que ele sobe ao palco
pra representar, o grande momento da vida do vaqueiro é aquele no
qual ele participa de uma vaquejada, e se torna mais importante como
personagem do que é como pessoa.
A imagem que cobre a frase final do entrevistado é um plano geral de
vaqueiros correndo com seus cavalos em direção à câmera. Em seguida, no
plano sonoro, um aboio toma o lugar da fala e o curta-metragem termina. Deste
modo, o depoimento de Suassuna conclui o filme, é a interpretação sobre a festa
do ponto de vista de um intelectual, tarefa que o “diretor-locutor” não faz, como
ocorre em outros documentários. Em Vaquejada, há uma única intervenção mais
analítica da locução em voz over, logo no início do curta, que introduz a
argumentação feita por Suassuna posteriormente, afirmando que a feira livre e
a vaquejada seriam os poucos momentos lúdicos na vida de um vaqueiro; não
há outros comentários ou o aprofundamento do assunto feito pela locução ao
longo do documentário. Cabe pontuar que no filme há ainda um outro discurso,
o das poesias populares recitadas pela voz de Paulo Gil Soares ou musicadas
pelo cantador Cego Birrão, que apresentam, por meio de um eu-lírico que ora é
um boi, ora um vaqueiro, uma visão mais romântica da vaquejada, os feitos para
a derrubada dos animais e o orgulho da profissão.
Podemos, assim, estabelecer um contraponto entre Estácio de Lima e
Ariano Suassuna quanto à autorização de seus discursos nos filmes, além das
já comentadas distintas performances que os dois realizam diante da câmera.
Em Vaquejada, o discurso do escritor é autorizado e endossado, sem
questionamentos, o que é bem diferente do catedrático de Memória do cangaço,
colocado em dúvida. Suassuna participa do documentário do começo ao fim,
cumprindo uma função de locutor e representante da “voz do saber”; já Estácio
de Lima, além de ter seu discurso ironizado e desmentido, é “abandonado” após
sua entrevista para dar lugar a outros personagens. Nossas considerações vão
ao encontro do que observa Meize Lucas (2012):
A coincidência de pontos de vista entre realizador e Ariano Suassuna
dispensa a voz do primeiro. Sua presença [do cineasta] se faz pela
maneira como constrói o filme e, nessa construção, como utiliza a fala
autorizada do intelectual (LUCAS, 2012, p.282).
79
A autora destaca que Paulo Gil Soares não entrevista “qualquer
intelectual” em Vaquejada, já que Suassuna era um pesquisador, artista,
incentivador da cultura popular, além de nordestino:
Há o reconhecimento de um determinado saber que não é somente
acadêmico, visto que Ariano era também um produtor cultural, um
artista. E, mais ainda, alguém que promovia a chamada cultura popular
e a defendia como uma questão política (LUCAS, 2012, p.282).
É coerente a autorização do discurso de Suassuna, considerando também
a relação do escritor com a cultura popular, alinhando-se não somente aos
interesses de Paulo Gil Soares e dos demais realizadores da Caravana Farkas,
como da geração de cineastas do Cinema Novo de maneira mais ampla.
Conforme afirmam Jean-Claude Bernardet e Maria Rita Galvão (1983) sobre a
questão:
No Cinema Novo, uma preocupação marcante seria a utilização de
elementos da cultura popular como ponte para atingir o povo: a idéia é
que se faça um cinema popular (que se dirija ao povo) com matériaprima popular (que vem do povo). Visando o estabelecimento de uma
comunicação mais íntima e direta com o povo, os autores procuraram
inspirar-se (senão apoiar-se diretamente) na cultura popular,
incorporando elementos que provêm dela [...] (BERNARDET E
GALVÃO, 1983, p.139-140)59.
Cabe citar um outro catedrático, o médico de Erva Bruxa, que colabora
para uma das denúncias do filme, sobre os diversos problemas de saúde que
acometem os trabalhadores da indústria fumageira. Ele confirma, com
explicação científica, o que a locução em voz over sugere sobre os riscos para
a saúde do operário que trabalha manualmente com o fumo. De modo
semelhante aos demais documentários, a locução lança uma questão, que será
respondida pelo médico (aos 8’20’’): “Mas, quais são essas doenças?”. Enquanto
vemos pessoas manuseando, sem proteção, as folhas da planta e trabalhando
descalças, o médico nomeia várias doenças e diz que algumas ocorrem porque
não há fiscalização na admissão dos operários. Visto em um consultório,
enquadrado em primeiro plano, conclui sua avaliação: “Se eu fosse um médico
sanitarista e tivesse autoridade para tal, provocaria a aposentadoria de 50% dos
No capítulo 3, aprofundaremos a questão da cultura popular, observando como é incorporada
nos documentários de Paulo Gil.
59
80
trabalhadores da indústria fumageira”. Trata-se de um catedrático que, embora
não conduza a argumentação, como faz Ariano Suassuna, torna-se mais um
colaborador para as denúncias do filme, com o embasamento de uma autoridade
científica.
O mesmo realizador que duvida da autoridade acadêmica de Estácio de
Lima em Memória do cangaço é quem autoriza sem restrições Ariano Suassuna
a proferir a visão social sobre a festa em Vaquejada e quem convoca o médico
de Erva Bruxa para “ajudar” na denúncia das más condições de trabalho. A
diferença de tratamento deve-se, neste caso, a uma afinidade político-ideológica
com o outro filmado. Seria equivocado pensar no tratamento dos personagens
nos documentários de Paulo Gil Soares em termos evolutivos, pois há
características que são recorrentes tanto no filme realizado em 1965 quanto nos
demais do final da década de 1960. É possível, neste sentido, afirmar que a
figura do intelectual aparece de forma contraditória nos filmes.
Em alguns momentos, como quando ele questiona o catedrático ou
desmente o coronel Zé Rufino em Memória do cangaço (situação sobre a qual
falaremos no próximo item), sua intervenção feita após as entrevistas, com uma
voz já gravada em estúdio, evidencia sua posição de poder enquanto realizador
diante dos sujeitos filmados, lembrando aqui a construção de personagens
possível de ser feita pela montagem, conforme sugere Mac Dougall (1998) e
sobre a qual já comentamos. Já na tentativa frustrada de entrevistar Dadá – para
citar um exemplo do mesmo filme –, o enfrentamento com o outro, que se recusa
a falar e até derruba a câmera, põe à prova o cineasta-intelectual, circunstância
não prevista e não favorável à elaboração de uma possível “tese”, e mesmo
assim o plano é mantido no filme. Ainda retomaremos as situações com Zé
Rufino e Dadá em outros itens neste capítulo.
Por agora, seria interessante observar como é oposta a postura do
cineasta quando entrevista Frei Damião em Frei Damião: trombeta dos aflitos,
martelo dos hereges, se comparada ao recuo de sua presença em Vaquejada.
São filmes realizados à mesma época que apontam para distintas atitudes do
cineasta-intelectual em relação ao outro, sendo a afinidade político-ideológica
com os personagens fator determinante para tal.
Na situação de entrevista com o Frei, o realizador tanta fazer com que ele
admita existir o fanatismo religioso do povo e que tal comportamento seria
81
também responsabilidade da própria Igreja. Ouvimos Paulo Gil Soares,
extraquadro, ou seja, como uma “inteligência incorpórea”60, fazendo questões
reiterativas a Frei Damião: “O povo de Taperoá diz que o senhor é santo. O
senhor aceita isso, Frei Damião?”; “Quais os caminhos para se alcançar a
santidade?”; “O povo diz que o senhor já realizou vários milagres. O senhor fez
alguma cura que possa ser considerado um milagre?”; “O que é que o senhor
acha do Padre Cícero?”; “A que o senhor atribui o fanatismo do povo?”; “E quem
é culpado por essa religião mal entendida?”; “Mas não seria o medo do inferno
que faz o povo se fanatizar e seguir atrás dos padres em quem ele acredita?”;
“Mas o comportamento do povo em vários momentos é de fanatismo?”; “Isso é
bom ou mal para a Igreja, Frei Damião?”.
As questões estão na ordem apresentada pelo documentário; a
montagem, no entanto, deixa indícios de que trechos de algumas respostas do
entrevistado foram deslocados para fazer relação com outros materiais, como
depoimentos de devotos ou situações que mostram o contato do Frei com fiéis
na rua. Como nosso interesse no momento é perceber de que maneira as
intervenções de Paulo Gil nesse filme durante a entrevista podem ser
contrastadas com um posicionamento mais recuado do cineasta-intelectual em
outros títulos, as considerações em torno da montagem, da performance do Frei
e dos demais personagens do filme, serão deixadas para um item posterior.
Observando as perguntas feitas ao entrevistado central do documentário,
é possível identificar aspectos da “performance da persona do realizador”,
emprestando aqui a expressão de Baltar (2010). No caso, sua performance
durante o confronto direto com o outro: há uma atitude provocativa, ele atua
como um repórter investigativo que coloca em xeque o entrevistado a fim de
revelar uma determinada situação; perpassa também um certo tom irônico,
evidenciado por frases do tipo “[...] não seria o medo do inferno que faz o povo
se fanatizar [...]”, mas também por sua impostação de voz que se mantém afável,
embora não seja leve o conteúdo de suas perguntas ao Frei. Mesmo quando o
diretor intervém verbalmente fora do mundo histórico, no caso, quando é sua
Bill Nichols (1997, p.130) diz que o realizador torna-se uma “inteligencia incorpórea” quando
ouvimos sua interação com o personagem no instante de uma entrevista ou em outras formas
de encontro com o outro, mas não o vemos enquadrado.
60
82
locução em voz over que questiona o outro externamente ao encontro – caso
das situações com Estácio de Lima e Ariano Suassuna –, também podemos falar
em uma performance do realizador.
Partimos do pressuposto de que é identificável no conjunto de filmes do
diretor, notadamente por meio do som, uma coincidência de sujeitos: Paulo Gil
Soares é quem empresta sua voz à locução, quem atua como entrevistador
(ausente ou presente na tomada) e quem, em algumas ocasiões, mimetiza um
poeta popular ao recitar versos de cordel61. Trata-se de uma característica que
se diferencia do conjunto de outros realizadores da Caravana Farkas (Geraldo
Sarno, Sergio Muniz) que optam por narradores profissionais (o ator Othon
Bastos, o poeta Ferreira Gullar, Tite de Lemos, entre outros) e, especialmente,
pouco se expõem mesmo no momento de encontro com o outro62.
Em nossa percepção, Paulo Gil Soares mostra-se mais como sujeito nos
filmes do que os demais realizadores e, por isso, falamos em sua performance,
reverberando as considerações de Baltar (2010)63. Cabe relativizar este
conceito, citado anteriormente segundo Goffman (1975). Para o autor, a
performance é considerada o desempenho, a atividade de alguém que participa
de uma situação a fim de influenciar os demais participantes. Apoiando-se nesta
ideia, podemos dizer que o realizador exerce uma performance dentro da
Nos dados técnicos dos documentários não há essa informação. A afirmação pode ser feita
baseada em materiais extra fílmicos: textos que discorrem sobre os filmes, fotografias de making
of e entrevistas com integrantes da Caravana Farkas.
61
Para exemplificar a diferença quanto à manifestação de Paulo Gil Soares como sujeito nos
filmes, em contraste com outros realizadores, podemos citar dois documentários dos outros dois
diretores mencionados. Em Rastejador s.m. (1969), de Sergio Muniz, é a locução de Othon
Bastos que faz as questões aos personagens rastejadores, não havendo uma presença
declarada do realizador nesse encontro com o outro filmado. Em Jornal do Sertão (1970), de
Geraldo Sarno, também não há a explicitação do realizador; temos a narração expositiva de Tite
de Lemos, intercalada com momentos mais observativos, a maioria performances musicais de
cantadores populares do Nordeste.
62
É preciso tomar cuidado para não encaixar os filmes no modo de representação performático,
conforme as modalidades documentais sugeridas por Bill Nichols (2010). Mesmo que neles seja
possível perceber “marcas mais explícitas da performance do realizador” (BALTAR, 2010, p.1),
não há a recusa de uma representação realista, nem ênfase dada à experiência do próprio
realizador, algumas premissas de documentários performáticos. Apenas a título de exemplo, 33
(Kiko Goifman, 2002) e Um passaporte húngaro (Sandra Kogut, 2003) são tidos como
documentários performáticos, nomeados por Bernardet (2005, p.142-156) como “documentários
de busca”, pois ambos estão pautados na busca pessoal dos realizadores: a procura da mãe
biológica, no caso de Goifman, e a tentativa de obter cidadania e passaporte húngaros, no caso
de Kogut.
63
83
situação que é o próprio filme. Por um lado, no momento da entrevista, ela
serviria para influenciar o entrevistado, quem participa do filme dando
depoimentos. Lembrando a entrevista com Frei Damião, não há um tom
agressivo nas perguntas do diretor, que pouco a pouco tenta “pressionar” o
personagem para obter as respostas que deseja. Por outro lado, sua
performance influencia também aquele que participa do filme indiretamente, que
vai refletir sobre o que viu e ouviu, ou seja, o espectador.
Nossas observações trazem alguns aspectos referentes à “tradição
intervencionista” do documentário brasileiro que, em contexto mais amplo, se
relaciona à ideia de “intervenção ativa” de Jean Rouch e Edgar Morin, pensada
a propósito de Crônica de um verão (1961):
O ato, afinal, é a palavra; o ato se traduz através dos diálogos, das
discussões, conversas, etc. O que me interessa não é o documentário
que mostra as aparências, é uma intervenção ativa para ir além das
aparências e extrair delas a verdade escondida ou adormecida
(ROUCH e MORIN, apud DA-RIN, 2004, p.152). [grifos nossos]
A “intervenção ativa” seria, desta maneira, a premissa do documentário
interativo/participativo, pensando nos modos de representação sugeridos por Bill
Nichols (1997 e 2010). Silvio Da-Rin (2004) afirma que nesse tipo de filme “[...]
a presença do realizador é potencializada, ao invés de dissimulada” (DA-RIN,
2004, p.152) e considera, sobre Crônica de um verão, que Rouch e Morin, ao
adotarem tal postura de intervenção, tornavam-se personagens de seu próprio
documentário, “[...] interagindo com os demais atores sociais, procurando extrair
revelações e ‘verdades ocultas’” (DA-RIN, 2004, p.153).
Voltando aos documentários de Paulo Gil Soares, não há neles uma
permanente “intervenção ativa”, tal qual ocorre no filme de Rouch e Morin, mas
alguns momentos em que tal caráter é evidenciado, potencializando a presença
do realizador. Um depoimento de Paulo Gil, de 1966, no contexto de Memória
do cangaço, em alguma medida retoma o que afirmaram os realizadores
franceses, sobretudo quanto à importância da fala do outro:
Como linguagem o cinema direto [captado em som direto], indo buscar
no jornalismo e na pesquisa de campo as ciências sociais, renova tôda
a linguagem cinematográfica, modificando assim a estrutura tradicional
do filme, pois enquanto ‘os planos’ têm um tempo predeterminado de
84
montagem, no cinema-verdade, a importância do plano está naquilo
em que o homem tem a dizer. (PAULO GIL, 1966, p.7) [grifos nossos]
Observando os documentários do diretor, essa importância se confirma;
a fala, conforme já apontamos no capítulo 1, é elemento determinante em suas
narrativas, em grande parte proferida pelos personagens. Como já observamos
com base em Mac Dougall (1998), é notório que aquilo que as pessoas têm a
dizer sofre a mediação do cineasta no momento da montagem.
Citamos Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges para
exemplificar como o cineasta-intelectual adota uma postura inquiridora diante do
outro; no entanto, em contraste, há filmes em que sua atitude é diferente, caso
mesmo de Vaquejada, no qual o diretor recua e é Ariano Suassuna quem profere
a análise social sobre a festa. Poderíamos ainda mencionar O homem de couro,
documentário em que os versos da literatura de cordel e os depoimentos dos
personagens se encarregam de contrapor visões sobre a profissão de vaqueiro,
sem a explicitação do realizador nas entrevistas, nem sua análise na locução,
sugerindo uma não univocidade de sua “voz do saber”, abrindo espaço para a
manifestação de outras vozes neste filme, aspecto que ainda retomaremos no
capítulo 3.
No conjunto de filmes do diretor, há, dessa forma, a intervenção do
cineasta em diferentes níveis, inclusive com o mesmo personagem, caso de Zé
Rufino em Memória do cangaço, sobre o qual falaremos no próximo item, em
que ora há uma situação de diálogo no instante da entrevista, ora uma negação
de sua fala depois do momento do encontro, eliminando qualquer “defesa” do
entrevistado. Paulo Gil Soares duvida de Estácio de Lima; se isenta com Ariano
Suassuna; põe em xeque Frei Damião; trata ambiguamente Zé Rufino; é
enfrentado por Dadá e mantém sua “não-entrevista” no filme.
Ainda teremos a oportunidade de analisar estas e outras situações neste
e no próximo capítulo, em que as relações entre a “voz do saber”, do cineastaintelectual, aparece tensionada com as demais vozes do filme, notadamente com
a “voz da experiência”. Passaremos agora à observação de outra figura, que
também detém poder, mas em âmbito diferente: o coronel.
85
2.1.2 – Ambiguidades do coronel
Quando observamos Estácio de Lima e Ariano Suassuna, comentamos
que suas performances correspondem à expectativa que temos em relação a um
intelectual, ou seja, alguém que domina um determinado assunto, fala com
clareza e segurança, utiliza as normas cultas da língua, etc. Não temos essa
expectativa somente quando assistimos a um filme, mas em nossa vida
cotidiana, segundo Goffman (1975, p.11-24), ao afirmar que isso se deve ao fato
de já dispomos de informações prévias sobre o indivíduo – no caso mencionado,
sobre um determinado grupo, o dos intelectuais –, o que nos levaria, inicialmente,
a uma visão estereotipada sobre ele. Pensando que este indivíduo seja um
coronel, é esperado que tenha uma postura rígida, altiva, entre outras
características que poderíamos elencar, partindo de uma visão que não deixa de
ser subjetiva em relação à essa figura ou a qualquer outra. A depender do
comportamento do indivíduo ou de outras informações que passemos a ter sobre
ele, características diversas de sua persona podem vir à tona e atenuar o
estereótipo.
Neste sentido, e voltando à questão do coronel, observaremos de que
maneira José Rufino se configura como uma figura ambígua em Memória do
cangaço, tanto pelo fato do documentário mostrar um personagem que vai além
da tipificação de um coronel, quanto pelo modo como lida com seu discurso. Ele
é o principal personagem do média-metragem que, conforme vimos no capítulo
anterior64, foi realizado porque Paulo Gil Soares pretendia saber se o que ouvia
sobre o duelo entre Zé Rufino e o cangaceiro Corisco tinha acontecido da forma
como lhe contavam desde criança. Por isso, procurou quem tinha participado do
episódio – o coronel e Dadá, a viúva de Corisco – para que recobrassem a
memória daqueles tempos e narrassem suas versões.
A entrevista com o coronel é a mais extensa do filme; além dos momentos
em que responde às perguntas do diretor (extraquadro), também o vemos
caminhando em sua fazenda em Jeremoabo, na Bahia, local do encontro; o
documentário utiliza ainda como recurso fotografias fixas do personagem que,
segundo o produtor e fotógrafo Thomaz Farkas (1972), ajudariam a enfatizar o
64
Ver item 1.1, que apresenta a estrutura e aspectos da produção de Memória do cangaço.
86
que se pretende dizer no filme. É preciso salientar que, mesmo Zé Rufino sendo
colocado em xeque em algum momento, veremos que o tratamento dado a ele
é muito diferente daquele de Estácio de Lima, personagem do mesmo
documentário, que também detém poder e sobre o qual já comentamos.
Aos 9 minutos do média-metragem, vemos pela primeira vez o coronel,
caminhando em direção à câmera, com o rosto em primeiro plano; é a canção
improvisada pelos cantadores populares que acompanha a imagem e o
“apresenta”. Em seguida, um plano conjunto o localiza no meio de uma plantação
em sua fazenda e a câmera o segue até a varanda de uma casa, onde
cumprimenta algumas pessoas e finalmente senta-se para dar início à entrevista.
Zé Rufino, de pernas cruzadas e agora visto em plano americano, tem um olhar
por vezes desconfiado e direcionado para o lado esquerdo, onde estava o diretor
Paulo Gil Soares65 – diferente do professor Estácio de Lima, que olha
diretamente para a câmera e demonstra maior confiança nela e na equipe, como
vimos anteriormente. Ainda que haja uma perceptível dificuldade do coronel em
recobrar a memória para relatar os fatos do passado, sua fala expressa
segurança, como quando conta com orgulho como os cangaceiros eram mortos
ou quando lembra que mandava os policiais de sua volante cortarem as cabeças
para depois serem fotografadas.
O coronel é um exemplo do que Aida Vallejo66 (2008, p.75) caracteriza
como personagem com “personalidade única”, que despertaria o interesse em
quem realiza documentários por ser uma figura que possibilitaria a exploração
de sua singularidade. Tal tipo de pessoa, segundo a autora, se oporia a um outro,
também de interesse dos documentaristas, que seria alguém cuja história
individual representa ou é paradigmática dentro de um discurso mais universal –
Paulo Gil Soares não aparece no documentário durante a entrevista com o coronel; sabemos
que ele estava à esquerda do personagem porque tivemos acesso a uma fotografia still. Ao
contrário do que ocorre na entrevista com o professor Estácio de Lima, as perguntas de Paulo
Gil Soares ao coronel são ouvidas no momento da conversa.
65
As considerações de Aida Vallejo são muito pertinentes e eficazes para o que pretendemos,
tanto que as acionaremos em outros momentos. No entanto, convém notar que a autora parece
entrar em contradição. Vallejo rejeita o uso do termo personagem para tratar das pessoas
filmadas em documentários, preferindo o termo “ator social” de Bill Nichols por considerar o
primeiro mais correto para se referir ao sujeito que interpreta ações escritas por uma outra
pessoa. No entanto, suas análises baseiam-se justamente na possibilidade do “ator social” no
documentário ser construído de maneira análoga ao personagem do filme de ficção.
66
87
um exemplo poderia ser o vaqueiro Gregório, também de Memória do cangaço,
e outros trabalhadores abordados nos filmes de Paulo Gil Soares, sobre os quais
falaremos em outro item deste capítulo.
Zé Rufino é uma figura considerada histórica, citada pelos livros que
tratam do cangaço67 e sobre a qual a literatura popular de cordel também dedicou
inúmeros versos. Alguém que, tendo um caráter singular, gradualmente é
construído pelas falas e gestos que o filme nos dá a conhecer. Comentaremos
uma primeira passagem.
À altura dos 11 minutos, Zé Rufino acaba de nominar os cangaceiros que
já tinha matado ou assistido em suas mortes. Em seguida, passamos a ouvi-lo,
em off, sobre imagens de Lampião e seu bando captadas por Benjamin Abraão
na década de 1930. Ele conta sobre as três vezes em que o referido cangaceiro
o convidou para fazer parte de seu bando e das negativas que lhe deu. Paulo Gil
Soares pergunta por que o coronel não quis acompanhar Lampião e ele
responde: “Eu nunca tive vontade de andar pegado em arma assim, derramando
sangue [...]. Eu nunca quis ser soldado e, muito pior, bandido”.
Ao coronel pergunta-se então sobre suas qualidades de sanfoneiro. Ao
invés das imagens filmadas por Abraão, vemos alguns planos da própria fazenda
de Rufino, detalhes de suas pernas, animais que andam por ali, planos fechados
de pessoas da fazenda. Zé Rufino conta que aprendeu a tocar sanfona com
outros sanfoneiros: “Eu me dediquei melhor, mais um pouco do que eles. Com
quem eu aprendi ficou tocando muito menos do que eu. A minha vida era tocar
nas festas”, diz o coronel, vaidoso, lembrando que às vezes tocava por cinco ou
seis noites seguidas.
Do relato sobre a época em que era sanfoneiro, há um corte em seu
depoimento, um salto para quando foi sargento. Sem fornecer mais explicações
sobre como isso teria acontecido (na declaração anterior ele afirmava não ter
desejo de entrar para a polícia), diz apenas “Deus me ajudou e eu fui sargento”,
mencionando que em poucos dias matou muitos bandidos e subiu na carreira,
tornando-se aspirante a oficial. A próxima pergunta, que ouvimos agora na
No livro Os cangaceiros, de Maria Isaura Pereira de Queiroz, não apenas o coronel Zé Rufino
é citado, como a autora reproduz trechos da entrevista realizada por Paulo Gil Soares para
Memória do cangaço, inclusive alguns que acabaram não indo para o filme. Ver: QUEIROZ
(1977).
67
88
presença do coronel – o que permite perceber sua reação –, atesta a
ambiguidade que comentamos anteriormente. Paulo Gil Soares: “O que é que o
senhor sentia quando atirava num cangaceiro?”. Rufino responde de forma
serena e orgulhosa: “Na hora eu sentia satisfação porque tinha encontrado o que
eu procurava na caatinga”. Paulo Gil novamente: “O senhor teve medo alguma
vez?”. Rufino, seguro: “Não, senhor”. Mais adiante, Zé Rufino ainda contará que
autorizava policiais de sua volante a arrancar as cabeças dos cangaceiros à faca,
deixando-as sangrar, para depois fotografá-las.
Há uma abertura dada pelo documentário para acessarmos a um Zé
Rufino menos tipificado, não somente aquele que comandou a volante policial
que matou mais de vinte cangaceiros no início do século XX, mas um homem
que tocava sanfona em festas, que não tinha o desejo de entrar na polícia nem
de ser cangaceiro porque não queria “pegar em armas”. Seu depoimento é
atravessado por questões de cunho histórico (do cangaço, do Brasil) e de sua
vida pessoal. O coronel é apresentado como um sujeito ambíguo: o sanfoneiro
desinteressado em armas tornou-se um homem do alto escalão da polícia que
se sentia bem ao matar bandidos. Lembrando que, quando a entrevista foi
realizada, no final de 1964, o coronel já havia se aposentado e era fazendeiro –
outra posição de poder –, informação que está em seu último depoimento no
documentário.
As contradições do personagem ultrapassam os limites temáticos da
película ou a comprovação de uma tese de fundo, sendo interessante para
refletirmos sobre como alguns documentários da década de 1960 já adotam
posturas não tão próximas do que Bernardet (2003) denominou “modelo
sociológico” de documentário. De acordo com o autor, nesse modelo o
tratamento dado à “voz da experiência” – que podemos aproximar da voz de Zé
Rufino –, ou seja, aquele que fala sobre sua vivência individual, o reduziria a um
tipo sociológico. Quer dizer, o sujeito filmado seria uma amostragem, um objeto
de estudo sobre o qual não acessaríamos traços mais subjetivos. Ainda que
estratégias mais radicais para emergir a subjetividade do outro tenham sido
adotadas nas décadas seguintes pelos documentaristas, nos parece pertinente
que um documentário como Memória do cangaço, realizado na mesma época e
dentro da mesma experiência de produção que Viramundo e Subterrâneos do
futebol, ambos filmes analisados por Bernardet como representantes do modelo
89
sociológico, permita uma leitura menos unívoca quanto ao seu principal
personagem, Zé Rufino.
Além das escolhas feitas pelo cineasta na montagem, que ajudam a
delinear os traços do personagem em um documentário, não ignoramos a
colaboração da performance do sujeito diante da câmera nesse processo,
conforme afirmamos anteriormente. Se o filme tenta dar abertura à construção
de Zé Rufino como um personagem “singular” e não generalizante, é porque
suas falas e gestos também permitem que esse encaminhamento seja possível.
As ideias de Sergio Santeiro (1978) são úteis para essa compreensão. Embora
admita que o material registrado pelo filme seja passível de manipulação e
reordenação, Santeiro (1978) acredita que o registro do som direto, a fala em
sincronia com a imagem das pessoas permitiria uma “autonomia própria” das
situações registradas pelo filme.
Santeiro (1978) trata o personagem de um documentário como alguém
dotado de prévias significações, que atua no filme para performar seu próprio
papel social, tornando-se um “ator natural” que, “[...] primeiro, foi sujeito de uma
experiência vivida, e é agora sujeito de uma experiência re-vivida, passível de
seleção e crítica que a faça digna do papel que o sujeito atribui a si mesmo”
(SANTEIRO, p.81) [grifo original]. Cabe destacar o reconhecimento do autor
quanto à consciência que o personagem no documentário teria de seu papel,
atuando para legitimá-lo. No caso de Zé Rufino, essa consciência está sutilmente
evidenciada na maneira desconfiada com que olha para o entrevistador; há uma
inquietação sua quanto ao que estaria sendo gravado. O fato do coronel pedir
para ouvir o gravador de som antes de prosseguir com a entrevista, conforme
mencionado no capítulo 1 (item 1.1) a partir do livro de Paulo Gil Soares, apoia
também essa afirmação.
Ainda acompanhando as ideias de Sergio Santeiro (1978), haveria, para
ele, uma proximidade entre o “ator natural” do documentário e o ator da ficção,
pois ambos encenam para a câmera e garantem uma dimensão dramática ao
filme, com a diferença de que o primeiro seria pautado em um “modelo social” –
ou seja, em sua própria experiência, em seu papel social – e o segundo em um
“modelo estético”.
O autor dá o nome de “dramaturgia natural” à encenação do “ator natural”,
exemplificando elementos que podem compô-la:
90
A maneira do entrevistado dizer o seu texto, a reação às perguntas,
pequenas entonações de voz, a postura ou a expressão facial críticas
do entrevistado ou de outra pessoa que esteja a seu lado, a relação do
local em que a entrevista é feita com as interferências que possam
ocorrer, o contraponto de entrevistador e entrevistado, tudo são
elementos dotados de significação e que compõem um quadro de
comportamento cênico a que podemos chamar de dramaturgia natural
(SANTEIRO, 1978, p.81).
Embora as considerações do autor refiram-se apenas a “performances de
entrevista” – ele não usa em momento algum o termo performance, mas é
possível a analogia68 – e ele não tenha aprofundado suas ideias em análises
posteriores a esse texto, elas introduzem um caminho profícuo para
investigação69.
Podemos
elencar
alguns
elementos
que
compõem
a
“dramaturgia natural” de Zé Rufino percebidos até então: o olhar desconfiado em
direção ao entrevistador, o orgulho e a serenidade ao contar sobre os
cangaceiros que matou, o tom vaidoso de seu relato de quando tocava sanfona,
a postura destemida. São marcas deixadas por sua fala e gestos, pelas quais o
conhecemos no filme.
Se o depoimento do coronel traz informações antagônicas sobre sua vida,
é também ambivalente a forma com que o filme lida com o discurso dele. Até os
25 minutos de Memória do cangaço, a fala de Zé Rufino chega a conduzir a
narrativa em diversos momentos: apresenta três policiais que compunham sua
volante (os vemos ao seu lado em um plano conjunto) e explica suas funções;
fala sobre Otília, viúva do cangaceiro Mariano, que em seguida é entrevistada
no filme; comenta sobre a valentia de dois ex-cangaceiros, Saracura e Labareda,
Acompanhando um raciocínio de Clara Leonel Ramos (2013), podemos traçar um paralelo
entre as ideias de Goffman (1975) de performance, as de Santeiro sobre o “ator natural” (sua
“dramaturgia natural” e a noção de “autorrepresentação”) e o que Nichols (1997 e 2010) chamou
de “ator social”.
68
Fazemos referência ao artigo “Conceito de dramaturgia natural”, no qual Sergio Santeiro
analisa situações de entrevista em Viva Cariri! (Geraldo Sarno, 1970) e Visão de Juazeiro
(Eduardo Escorel, 1970), ambos documentários da Caravana Farkas, cujas reflexões serão
citadas mais vezes neste capítulo. Ainda que o autor tenha se limitado às duas produções, em
diálogo com nosso corpus de estudo, é possível utilizar suas ideias mesmo em documentários
contemporâneos, como sugere Clara Leonel Ramos (2013) em sua tese de doutorado intitulada
A construção do personagem no documentário brasileiro contemporâneo: autorrepresentação,
performance e estratégias narrativas.
69
91
sendo seu depoimento em off que apresenta essas figuras antes de suas
respectivas entrevistas.
A fala do personagem poupa a locução em over de interligar essas
entrevistas. Ela é acionada para fazer uma contextualização histórica sobre a
morte de Lampião, dar informações sobre Maria Bonita (inclusive repreendendo
o coronel por ter esquecido de mencioná-la) ou recitar versos do cangaceiro e
da literatura de cordel. A fala de Zé Rufino permanece autorizada, sem ser
contestada, até os últimos minutos do filme, quando a locução em voz over
interfere de forma veemente sobre duas respostas do coronel, contrariando o
que ele diz a respeito da morte de Corisco e, com isso, repete um procedimento
que observamos na entrevista de Estácio de Lima. Na primeira situação, Paulo
Gil Soares (25’ 40’’) pergunta: “E o último cangaceiro que o senhor matou?”.
Rufino: “Corisco”. Paulo Gil: “Em que dia, coronel?”. Zé Rufino, ainda
enquadrado em plano americano e com as pernas cruzadas, já não aparenta
tanta confiança no que vai dizer. Hesita, olha para a diagonal como que
recobrando a memória e afirma: “No dia 25 de maio de 39”. A voz de Paulo Gil
Soares o corrige, agora fora da tomada, sobre a fotografia fixa do entrevistado:
“Não, coronel. Foi no dia 5 de maio de 1940”.
Em seguida, Zé Rufino relata a sua versão do duelo com o cangaceiro,
em off, enquanto vemos fotografias de Corisco intercaladas com as suas,
montadas como se ambos estivessem em ação. O coronel conta que estava
perseguindo o cangaceiro e quando o encontrou pediu para se entregar, mas
Corisco teria “respondido” atirando: “[...] aí eu comecei a trocar tiro com ele e,
adiante, a mulher [Dadá] caiu baleada, com a perna quebrada. Mas, antes dele
se aprumar, eu atirei nas costas dele e ele caiu”.
A voz do diretor, em tom áspero e novamente fora do momento da
entrevista, desmente a versão de Rufino, enquanto vemos outra fotografia fixa
do coronel, em primeiro plano, na qual parece acuado, dando a impressão de
que vai levantar as mãos e desta vez olhando diretamente para a câmera: “Não,
coronel. Corisco não respondeu aos seus tiros porque estava aleijado de ambos
os braços”. Ao contrário das perguntas, feitas durante a tomada e na presença
do personagem, a voz que objeta foi colocada posteriormente, gravada em
estúdio e não se mostra amigável como quando do “corpo a corpo” com o
entrevistado.
92
A sequência comentada sugere o acionamento de Bill Nichols (1997 e
2010) e suas considerações sobre questões éticas que a entrevista no
documentário coloca:
[...] as entrevistas são uma forma de discurso hierárquico que é
resultado da distribuição desigual de poder, como ocorre com a
confissão e o interrogatório. Como se manipula a estrutura
inerentemente hierárquica desta forma? A história oral filmada (ou
história audiovisual) coloca questões éticas diferentes das que
levantam as histórias orais que vão formar um arquivo com material de
fonte primária? Que direitos ou privilégios mantém o entrevistado? [...]
(NICHOLS, 1997, p.82)70.
Zé Rufino não sabe como o realizador irá utilizar sua entrevista, não tem
controle sobre isso. O que responderia o coronel se o entrevistador o tivesse
desmentido no momento de realização da entrevista? Manteria sua serenidade
ou lembraria dos tempos de combate? Por que Paulo Gil não fez isso? Perguntas
que não conseguiremos responder.
O encaminhamento feito pelo documentário é o de endossar o discurso
do coronel até os minutos finais, quando somos surpreendidos pela condução
diferente, lembrando a atitude questionadora do “diretor-locutor” do começo,
quando temos a entrevista com Estácio de Lima. No entanto, o embate com o
professor não é articulado do mesmo modo, iniciando-se quando o locutor põe
em dúvida as explicações do professor, sem dar uma resposta imediata que a
conteste, mas deixando que o espectador tire suas conclusões a partir de outros
elementos – imagens, depoimento do vaqueiro – inseridos na montagem.
Com o coronel é diferente: a locução dirige-se à sua fotografia fixa,
simulando um diálogo com ele que, afinal, já não pode mais responder. Não se
coloca em dúvida o que ele diz, pois, o locutor desmente, declaradamente, sua
versão dos fatos. Explicita-se, assim, a superioridade da “voz do saber” do
Tradução nossa para: “[…] las entrevistas son una forma de discurso jerárquico que se deriva
de la distribución desigual del poder, como ocurre con la confesión y el interrogatorio. ¿Cómo se
manipula la estructura inherentemente jerárquica de esta forma? ¿Plantea la historia oral filmada
(o historia audiovisual) cuestiones éticas diferentes de las que plantean las historias orales que
vayan a formar parte de un archivo como material de primera mano? ¿Qué derechos o
prerrogativas conserva el entrevistado?” (NICHOLS, 1997, p.82). O autor faz essas reflexões
quando explica sobre o modo de representação documental interativo ou participativo (termo
este que usará em textos posteriores). Conforme já mencionamos no início desta dissertação,
nosso intuito não é encaixar os filmes de Paulo Gil Soares em um modo ou outro, mas aproveitar
as discussões que o autor faz nas situações que consideramos pertinentes, caso da passagem
acima descrita, de Memória do cangaço.
70
93
cineasta sobre a “voz da experiência” de Zé Rufino. O diretor, conforme
mencionamos, foi motivado a fazer o filme porque queria investigar justamente
esse episódio, a morte de Corisco, ouvindo quem dele participara. No entanto, é
sua própria voz que se encarrega de narrar a “verdade” sobre o fato,
desautorizando a “experiência” do coronel.
Zé Rufino configura-se como um personagem ambíguo pela soma de
suas singularidades que o filme nos dá acesso (um coronel que tinha prazer em
matar bandidos, mas que antes não pensava em pegar em armas e era músico
em festas) e pelo movimento feito pelo documentário de autorizar/desautorizar
seu discurso. Ou seja, não se trata de uma situação de “crise” do personagem,
que deixaria em relevo as contradições. Isto é o que ocorre com outras pessoas
com poder que aparecem nos filmes de Paulo Gil Soares, sobre as quais
falaremos no próximo tópico.
2.1.3 – Personagens em crise
Antes de passarmos à observação dos personagens que constituem este
item, é preciso esclarecer o que estamos tomando como “crise”. Baseamo-nos
em apontamentos de Sergio Santeiro (1978, p. 80-85) que, ao assumir a
existência de uma “dramaturgia natural” inerente ao “ator natural” em um
documentário, sugere como perspectiva de análise a reflexão sobre momentos
em que tal encenação falha, seja pelo despreparo do “ator” ou pela interferência
do “real na cena”, durante uma entrevista. A essa falha, Santeiro (1978) deu o
nome de “crise na representação”. A “crise” é um momento de ruptura no filme,
instaurada a partir de um personagem, que daria eminência a algo inesperado
na narrativa.
O primeiro personagem que perceberemos em “crise” é Frei Damião, de
Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges. Anteriormente,
observamos a entrevista com ele a fim de identificar as tensões entre ele e o
“cineasta-intelectual” Paulo Gil Soares, no momento do encontro, mas não
levamos em conta as reações do Frei, nem o que teria respondido, o que não
era o intuito naquela ocasião. Desta vez, nosso olhar volta-se para este
personagem, percebendo como realiza performances (ou, nos termos de
Santeiro, dramaturgias, representações) distintas diante da câmera: uma na
94
situação de entrevista para o diretor e outra quando está na presença de fiéis,
contrariando a representação de seu próprio papel. Tal perspectiva é por vezes
adotada por Clara Leonel Ramos (2007) quando analisa, comparativamente, três
documentários da Caravana Farkas que, para ela, estariam afastados do que é
compreendido como “modelo sociológico” (BERNARDET, 2009): o próprio Frei
Damião, de Paulo Gil Soares; De raízes e rezas, entre outros (1972), de Sergio
Muniz; e Viva Cariri! (1970), de Geraldo Sarno. Acionaremos a autora, a fim de
lançar mais perspectivas de leitura.
Conforme já afirmamos, há um movimento em Frei Damião para trazer à
tona o fanatismo religioso como algo maléfico para o povo e como uma situação
que a Igreja também contribuiria para existir e da qual se beneficiaria71. Além das
perguntas do realizador, a articulação feita pela montagem em torno do
personagem central auxilia nesse movimento, colocando lado a lado “dois Freis”:
um que nega o fanatismo religioso, alegando que tal comportamento seria a
interpretação errada da religião pelo povo, em suas palavras, “ignorante em
matéria de religião”; e outro que, quando do encontro com o mesmo povo, atua
de um modo que reforçaria tal fanatismo, de modo análogo ao de Antônio
Conselheiro e Padre Cícero – líderes religiosos que geraram grande devoção
nos séculos XIX e XX, respectivamente, sobretudo no Nordeste brasileiro –,
associação que fica sugerida em uma das poucas intervenções da voz over, logo
no início do documentário, ao contextualizar a figura de Frei Damião para o
espectador.
Iremos refletir sobre a “crise” de Frei Damião a partir de: a) a comparação
entre as diferentes situações, de entrevista e do “corpo a corpo” com os fiéis,
sugerida pelo encaminhamento da montagem, que coloca em evidência o
contraste do comportamento/discurso do Frei em ambas; b) a reação do Frei no
encontro com uma de suas devotas, que destoa de seu papel enquanto religioso.
Frei Damião, durante a entrevista, é enquadrado em primeiro plano, de
modo que fica sobressalente sua expressão, com mínimas variações de
enquadramento pelo ajuste do zoom da câmera durante sua fala. Em grande
parte do tempo sua feição é risonha, aparentando ingenuidade, com um olhar
que às vezes se direciona à câmera, às vezes para baixo, quando se mostra em
71
Ver capítulo 1, item 1.8.
95
dúvida quanto ao que responder. Escolhemos para analisar o encadeamento de
situações que se inicia por volta dos 11 minutos e exemplifica a referida “crise”.
Após uma beata que sempre aparece de óculos e roupa preta – como não
sabemos seu nome, vamos identificá-la por seus traços físicos, mas ainda
falaremos em outro item deste capítulo sobre a personagem – declarar sua
grande devoção ao Frei, há um corte para ele no momento da entrevista,
afirmando que “Fanatismo é ... Fanatismo é ... É quando o povo entende mal a
religião, atribui a um padre coisas que somente Deus pode realizar”. Há outro
corte, para uma tomada observacional do filme, em que vemos, em plano
conjunto, uma senhora negra, já bastante idosa, dirigir-se ao Frei, que tem mais
pessoas à sua volta. Ela diz:
A coisa que eu quero é obedecer às voz de Frei Damião. E peça a
Deus por mim, Frei Damião. Tenha compaixão dessa alma pecadora,
penitente, desobediente. Se eu vivo à busca de Frei Damião, é porque
eu sou muito desobediente. Ele me dá os conselho e eu conheço que
eu desobedeço e venho pedir perdão a ele, é isso.
A partir da última frase, o Frei começa a rir e vira-se para o lado, como
que procurando a câmera, e aumenta o riso quando a senhora afirma que, se
ouvisse os conselhos de Frei Damião, seria uma religiosa. Em seguida, um novo
corte retorna ao momento da entrevista, em que o diretor-entrevistador assegura
diante do Frei: “Mas o comportamento do povo, em vários momentos, é de
fanatismo”, fato que Frei Damião nega: “Não, não é fanatismo não”. Há outro
retorno para a senhora de antes, que continua a falar de sua desobediência e
pede para o padre não desprezá-la. Mais uma vez, o religioso ri diante dela.
A passagem exemplifica como se manifesta no filme a “crise na
representação” de Frei Damião. Primeiro, seu discurso diante do entrevistador
nega um comportamento que ele próprio terá no contato com os fiéis, alguém
que detém o poder religioso e presencia o fanatismo do povo. Tal fanatismo será
reforçado em outros momentos observacionais do documentário: quando beijam
as mãos do Frei ou tocam sua cabeça; quando vemos pessoas chorando
copiosamente durante a pregação que faz, de forma improvisada na rua (ele
sobe na mureta de uma casa diante de uma multidão); ou, em um dos últimos
planos do filme, quando vemos um cordão humano o ajudando a andar até o
96
carro que o transportará, tamanha a quantidade de pessoas que o seguem e
querem tocá-lo.
Segundo, a “crise” percebida no próprio plano. Lembrando aqui Sergio
Santeiro (1978), no encontro do Frei com a senhora negra, há a interferência do
“real sobre a cena”: a abordagem da senhora a Frei Damião, pedindo perdão e
dizendo que é uma pecadora, não é uma situação esperada, fazendo com que
ele ria dela e trazendo à tona uma reação irônica diante da fiel, que beira a
chacota, comportamento que destoa de seu papel enquanto religioso. Soma-se
à interferência do real o “despreparo cênico” do personagem, que não sustenta
o papel de sacerdote sério desempenhado em outros momentos no filme –
quando diz ser avesso ao fanatismo, quando é visto conduzindo uma missa ou
fazendo pregações na rua. Nas palavras de Ramos (2007), ele é “flagrado”, o
que não ocorre em outras ocasiões.
Ampliamos, assim, as considerações de Santeiro (1978) sobre a “crise na
representação” de um personagem (ou “ator natural”), ao trazer a possibilidade
dela ocorrer não somente em entrevistas, como sugeriu e empreendeu o autor
em suas análises72, mas também em momentos observacionais, situações sem
a “intervenção ativa” do realizador.
Desse modo, a “crise” de Frei Damião é apreendida de forma aguda
quando comparamos atuações do personagem nas diferentes circunstâncias
que o documentário coloca, o que resulta, aproveitando as palavras de Clara
Leonel Ramos (2007, p.102 e p.150), no “desmascaramento” de sua persona
pelo filme. É preciso, no entanto, matizar algumas das considerações da autora.
Ela afirma que o Frei atualiza seu papel no momento da entrevista, o que já seria
uma “crise na representação”. Isso ocorreria porque o personagem perceberia o
insucesso de sua representação diante do realizador, com quem trava um
embate ideológico (vale lembrar que as perguntas de Paulo Gil Soares a ele são
Sergio Santeiro analisa situações de dois documentários da Caravana Farkas em seu artigo.
A primeira é o depoimento de um beato em Visão de Juazeiro (Eduardo Escorel, 1970) – há a
situação da entrevista, embora o filme só nos dê acesso ao homem falando em monólogo –, que
sem querer coloca em dúvida seu próprio discurso, sobre a profecia de um milagre, por fazer um
engano com a data em que ocorreria, logo corrigido por ele. A segunda situação é a entrevista
feita por Geraldo Sarno, em Viva Cariri! (1970), com uma beata do interior do Ceará em uma sala
de ex-votos, em que o autor aponta para o momento em que a mulher parece irritar-se diante da
equipe do documentário e é “socorrida” por outra beata, travando um diálogo inesperado.
72
97
reiterativas, em torno do fanatismo religioso, que o Frei sempre nega existir), e
passaria a empreender uma mudança de postura: da feição risonha e com ar
ingênuo, para uma mais séria e assertiva, a fim de enfrentar melhor o
entrevistador, de mostrar um “controle” da situação. Essa mudança em sua
“dramaturgia natural” manifestaria a mencionada “crise” do personagem.
Discordamos da autora quanto à ideia do Frei atualizar sua postura no
momento da entrevista, pois se trata de um material apresentado pelo filme de
forma fragmentada, ou seja, não temos certeza sobre quais tomadas foram feitas
primeiro, se as dele se mostrando mais risonho ou mais sério, sendo difícil
sustentar que o Frei tenha começado a conversar com Paulo Gil Soares de um
jeito e, percebendo uma atuação que não estava funcionando, evoluído para
outro, como dá a entender a leitura empreendida pela autora.
A “atualização” da postura do personagem – de risonho/ingênuo para
sério/assertivo – é um desenvolvimento feito pela montagem, que pode ou não
corresponder ao que aconteceu no encontro entre o realizador e Frei Damião.
Da entrevista, o filme apresenta primeiro os planos em que o Frei se mostra
risonho e olha bastante para baixo, quando Paulo Gil Soares o interroga sobre o
fanatismo religioso, parecendo não entender a pergunta ou ter dúvidas para
responder ao entrevistador. Já quase no fim do documentário, as tomadas da
entrevista são do personagem proferindo, em tom mais sério e bastante seguro,
um discurso sobre a importância da comunhão e a força do diabo.
Portanto, naquilo que o documentário nos dá a conhecer da entrevista, no
“real do filme”, não fica patente o momento em que teria se dado a “crise na
representação” de Frei Damião, quer dizer, quando o personagem teria
percebido sua má atuação diante do entrevistador e mudado de postura, como
dão a entender os apontamentos de Clara Leonel Ramos. Não estamos,
contudo, negando que o Frei representa a si mesmo de modo oposto ao longo
do documentário, revelando contradições que a montagem, como já
demonstramos, nos ajuda a perceber.
Cabe ressaltar sobre o filme a presença e importância das tomadas
observacionais. Mostrar o diálogo entre personagens, por exemplo, não era
prática comum no documentário brasileiro de então, em uma aproximação aos
procedimentos adotados pelo cinema direto norte-americano. Para Nichols
(1997), filmes que compartilham desse modo de representação propõem que o
98
espectador seja uma espécie de voyeur que observa o desenrolar das situações
como se não houvesse mediação do cineasta, uma (falsa) sensação de “acesso
transparente” ao mundo histórico. Sobre a relação entre os personagens
(chamados por Nichols de “atores sociais”), realizador e espectador em
documentários que se utilizam de estratégias observativas, o autor afirma:
A pessoa que está atrás da câmera, e do microfone, não chama a
atenção dos atores sociais nem se compromete com eles de forma
direta ou indireta. Ao invés disso, acreditamos que desfrutamos da
oportunidade de ocupar o posto de um observador ideal, deslocandonos entre pessoas e lugares para encontrar pontos de vista reveladores
(NICHOLS, 1997, p.78)73.
O “ponto de vista revelador”, pensando na situação da abordagem da
senhora negra ao religioso, mencionada em Frei Damião, corresponde à
percepção da “crise na representação” do personagem, flagrante em uma
tomada observacional, ou seja, em que não há “intervenção ativa” do cineasta.
Podemos citar, ainda, um outro tipo de movimento feito pelo documentário
e que ajuda a construir o personagem, que é o de contrapor as respostas da
entrevista do Frei, nas quais nega ter feito milagres ou desaprova o fanatismo
religioso do povo, com depoimentos de pessoas da cidade de Taperoá, na
Paraíba – colhidos em tempo diferente da entrevista e sem a presença do
religioso – que falam de milagres atribuídos a ele ou declaram grande devoção
à sua figura. Esse outro jogo também funciona para o processo de
“desmascaramento” da persona do Frei, mas nossa escolha aqui foi nos
voltarmos para a percepção de como a “crise” é instaurada diante da
confrontação do Frei com ele próprio, uma das possibilidades sugeridas pelo
encaminhamento da montagem do filme.
Em
Frei
Damião:
trombeta
dos
aflitos,
martelo
dos
hereges,
diferentemente do que ocorre em outros documentários analisados neste
capítulo, a voz do realizador não põe em dúvida ou desmente o personagem,
Tradução nossa para: “La persona que está detrás de la cámara, y del micrófono, no capta la
atención de los actores sociales ni se compromete con ellos de forma directa o indirecta. Por el
contrario confiamos en disfrutar de la oportunidad de ocupar el puesto de un observador ideal,
desplazándonos entre personas y lugares para hallar puntos de vista reveladores” (NICHOLS,
1997, p.78).
73
99
como faz com Estácio de Lima ou Zé Rufino em Memória do cangaço74. É notório
que, na entrevista com o Frei, as perguntas de Paulo Gil Soares sobre o
fanatismo religioso tentem “encurralá-lo”, deixando transparecer o conflito
ideológico entre ambos (ou entre a Igreja e o intelectual de esquerda), mas o
realizador não explicita o julgamento que faz acerca do entrevistado. Ele fica
sugerido pela contraposição dos diversos materiais do filme: as declarações do
Frei, planos observacionais e depoimentos de devotos, que apontam para a
contradição entre o que diz e como age o religioso.
Evidenciam-se pelo encadeamento do documentário a crítica ao
fanatismo religioso e a associação religião/alienação, ideia bastante presente em
filmes da mesma época75. Desta forma, constrói-se o personagem Frei Damião,
deve-se ressaltar, de maneira não favorável a ele. A resposta à pergunta feita
pela locução no início do documentário, “Mas... Quem é Frei Damião?”, fica aqui
sugerida: trata-se de um personagem em “crise”.
Se em Frei Damião comparamos o personagem central com ele mesmo
– perspectiva de análise diferente em relação às demais até então empreendidas
neste capítulo –, a observação de Dadá (Sérgia Ribeiro da Silva), de Memória
do cangaço, personagem também com um determinado poder e que gera uma
“crise” no filme, encaminha a discussão para sentido diverso. Antes de mais
nada, é necessário tomar cuidado ao equiparar Dadá, que é “outro de classe”
com relação ao cineasta, aos demais personagens com poder nos filmes de
Paulo Gil Soares. A viúva de Corisco foi alguém que participou do movimento do
cangaço e quando é abordada pelo diretor, quase trinta anos depois, já é uma
Não estamos, no entanto, desconsiderando o fato de que a montagem paralela entre o
depoimento de Estácio de Lima, as imagens de sertanejos e a entrevista com o vaqueiro em
Memória do cangaço, por exemplo, ajuda a colocar em descrença o catedrático. A diferença é
que a dúvida quanto ao seu discurso não é apenas suscitada por essa montagem, mas
explicitada pela voz over do realizador – “Mas... Estará o professor Estácio de Lima com a
razão?”. Não é o mesmo que ocorre em Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges,
em que a voz over também faz uma questão no início do filme, mas esta não coloca,
declaradamente, o personagem em xeque ou em descrédito – “Mas... quem é Frei Damião?” –,
pergunta que aos poucos tenta ser respondida pelo documentário.
74
Pensando em documentários realizados no âmbito da Caravana Farkas, poderíamos citar
Viramundo (Geraldo Sarno, 1965), Viva Cariri! (Geraldo Sarno, 1970), Padre Cícero: o patriarca
de Juazeiro (Geraldo Sarno, 1972) e Visão de Juazeiro (Eduardo Escorel, 1970), que fazem
relações entre religião, economia e política. Sobre nuances em torno da abordagem da religião
no Cinema Novo, ver subcapítulos “O Cinema Moderno e a Questão Nacional” e “A Religião do
Oprimido” – este último sobre o cinema de Glauber Rocha – em: ISMAIL, Xavier. O cinema
brasileiro moderno. Paz e Terra: São Paulo, 2001, p.18-37 e p.148-154.
75
100
senhora, com um grave defeito na perna esquerda – ela, inclusive, aparece de
muletas no filme – devido ao tiro que levou do coronel Zé Rufino no episódio da
morte de Corisco.
Ao ser abordada para dar entrevista, ela reage negativamente e com
afronta. De um lado, há a lembrança de uma valentia dos tempos de outrora, que
a própria personagem faz menção quando se contrapõe ao realizador. De outro,
e sobretudo, o enfrentamento de Dadá com a equipe de filmagem suscita
questões de alteridade e ética, das relações de poder entre realizador e
personagem. É devido a esse poder que a personagem está colocada aqui em
nossa discussão. A negativa de Dadá, mantida pelo filme, explicita uma abertura
do documentário ao “risco do real” (COMOLLI, 2007, p.169-178), ao “real da
cena” (SANTEIRO, 1978), situação pertinente para refletirmos ainda sobre
alguns momentos de Memória do cangaço que o afastariam de um documentário
do tipo “sociológico”. Ao contrário do que ocorre com outros personagens do
mesmo filme, a passagem com a viúva de Corisco é muito breve: dura menos de
30 segundos. A pouca duração, contudo, não diminui a importância que adquire
na narrativa. Descreveremos a situação para então tecermos nossas
considerações76.
Aos 26’40’’, após ser desmentida a versão do coronel Zé Rufino sobre a
morte de Corisco, vemos a fotografia fixa de Dadá, em plano médio, da tomada
que se desenrolará adiante, sobre a qual ouvimos sua voz: “O que é que há?”.
Tentando abordá-la, ouve-se o diretor, praticamente em off, já que uma ínfima
parte de seu rosto aparece do lado esquerdo do quadro: “Dona Sérgia, é o
seguinte... O professor Estácio [de Lima] mandou nós procurarmos a senhora...”.
Dadá o interrompe e começa a falar, quando passamos a vê-la já em movimento:
“Mas o doutor Estácio sabe que eu não atendo essas pessoas assim”.
Ouvimos Paulo Gil Soares tentando explicar do que se trata, enquanto
Dadá encara a câmera fazendo um sinal negativo, dirige-se em direção ao
equipamento e o derruba. De fundo, há o choro de uma criança – de fato,
movimenta-se atrás de Dadá uma moça segurando um bebê no colo e outra
criança mais à frente. A gravação da imagem é interrompida (o que vemos é a
tela preta), mas do som não, sendo possível ouvir Dadá em tom de ameaça à
Para informações contextuais do encontro entre Paulo Gil Soares e Dadá, ver capítulo 1, item
1.1.
76
101
equipe: “Não! Não! De forma nenhuma. Se está aqui com causos de gravadores,
não façam isso porque eu mato um”. Passamos a ver outra fotografia sua, desta
vez da época do cangaço e de corpo inteiro, que a câmera filma movimentandose no eixo vertical, de baixo para cima. Sobre a imagem, a continuação de sua
fala: “Eu nunca fui desordeira, mas desta vez eu vou ser. Se acompanhei
Corisco, eu era mulher dele, obediente a meu marido”.
Dadá (como Estácio de Lima e Zé Rufino) não escapa ao jogo entre
passado e presente feito em Memória do cangaço que, no trabalho da montagem
com sua fotografia fixa, insinua uma comparação entre a Dadá do tempo
presente (do filme) e a Dadá dos tempos de cangaceirismo, retomando a menção
que a personagem faz a Corisco, ou seja, ao tempo passado. A performance de
Dadá se contrapõe à dos outros remanescentes do cangaço, de aparente
pacatez. Sua recusa em participar do filme sugere que se trata de alguém que
quer apagar da memória aqueles tempos do cangaço, como também faz em seu
depoimento o ex-cangaceiro Saracura, que integrava o bando de Lampião77.
Quando introduzimos a discussão sobre Dadá, dissemos que sua
passagem no filme seria um momento de abertura ao “risco do real”, mas não
explicamos qual a acepção do termo, emprestado de Jean-Louis Comolli (2007,
p.169-178), do capítulo intitulado “Sob o risco do real”, de seu livro Ver e poder:
a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Nele, o autor faz
uma defesa de filmes documentários, por considerá-los “[...] abertos para o
mundo: eles são atravessados, furados, transportados pelo mundo” (COMOLLI,
2007, p.170). Filmes que seriam permissivos à imprevisibilidade, ao acaso,
diferentes de outras formas de narrativa – ficções de um modo geral, mas
também a própria vida – que estariam presas a roteiros e que, na perspectiva
lançada pelo autor, deveriam também se abrir para as “fissuras do real”.
Trecho do diálogo entre Paulo Gil e Saracura (ou Benício Alves dos Santos) à altura dos 18
minutos de Memória do cangaço:
77
- O senhor sente saudades daqueles tempos?
- Não.
- Nenhuma?
- Não.
- Se Lampião existisse ainda, o senhor não voltaria pra lá?
- Nada.
- Nada?
- Eu odeio quando fala naquele tempo.
102
Alguns questionamentos poderiam ser suscitados a partir dessas
considerações de Comolli. Por exemplo, existem documentários roteirizados,
que não se abrem tanto ao “risco do real” ou não revelam ao espectador as tais
“fissuras”. Interessa-nos tomar do autor os apontamentos sobre as pessoas
filmadas em documentários, que servem para refletir acerca da personagem
Dadá:
O que acontece com aqueles que filmamos, homens ou mulheres, que
se tornam, assim, personagens de filmes? Eles nos atraem e nos
retêm, antes de tudo, porque existem fora do nosso projeto de filme. É
somente a partir daquilo que farão conosco dentro desse projeto (e, às
vezes, contra nós) que se tornarão seres do cinema. Isso demonstra o
quanto estamos, de saída, sem condições de lhe dar ordens (podemos
oferecer, no máximo, indicações), de ‘avacalhar’ sua própria mise-enscène (ao contrário, trata-se de deixá-la aparecer em primeiro plano),
de interromper ou alterar o curso de suas ações (a não ser o tempo
suspenso de uma filmagem) (COMOLLI, 2007, p.175) [grifos nossos].
Tais considerações precisam ser matizadas, é verdade, já que algumas
configuram-se mais como propostas do que deveria ser o cinema documentário
do que algo que se observa nos filmes de maneira generalista78. De todo modo,
o trecho citado de Comolli lança luz às relações nem sempre harmoniosas entre
realizador – que detém poder porque possui os meios de produção – e
personagem. A passagem com Dadá traz à tona uma disputa de poderes: negarse a dar entrevista e derrubar a câmera são atos que demostram o poder que
um personagem pode exercer em um documentário, de não querer colaborar
com o cineasta e assim alterar o seu projeto de filme. O outro poder nessa
disputa é o do cineasta, que começa a filmar antes mesmo da permissão de
Dadá e continua gravando (o som) à sua revelia, expondo uma postura ética
problemática. A manutenção dessa passagem depende do poder do cineasta,
de escolher o material que entra ou sai no filme. Contudo, sua permanência não
é favorável nem ao cineasta nem à construção de uma possível “tese” no
documentário. É um momento de “crise” no filme, sintomático de uma maior
abertura aos “riscos do real” e que transgrede o que seria esperado em um
documentário “sociológico”.
Apenas para exemplificar, a ideia de Comolli (2007) sobre a pouca interferência do cineasta
na mise-en-scène dos personagens desconsidera todos os documentários em que se nota ter
havido uma direção cênica dos “atores sociais”, desde Nanook of the North (Robert
Flaherty,1922).
78
103
Para retomar os apontamentos de Jean-Claude Bernardet (2003 e 2005),
é possível perceber, no momento de “crise” com a personagem Dadá, indícios
de uma postura de realização menos sociológica, um conflito – aqui, literalmente
– entre a “voz do saber” (ou “voz do dono”, nos termos de Sergio Santeiro) do
cineasta e a “voz do outro” ou “voz da experiência” da personagem. Bernardet
elenca documentários da década de 1960 que já apontavam para essa
transformação: Liberdade de imprensa (João Batista de Andrade, 1967), LavraDor (Paulo Rufino, 1968), Indústria (Ana Carolina, 1969) e Roda & outras
histórias (Sergio Muniz, 1965) – este último no âmbito da Caravana Farkas. Tais
filmes, embora bastante diferentes, teriam as seguintes afinidades:
A primeira é que a realidade tende a não ser mais achatada por uma
compreensão unívoca. A realidade é múltipla. A multiplicidade de seus
aspectos não é excludente, nem um mais verdadeiro que o outro: os
vários níveis articulam-se entre si e todos pertencem a vivências tão
importantes e significativas umas quanto as outras. Outra afinidade não
menos essencial: a quebra do poder do documentarista que não
aborda seu objeto de estudo do alto de sua sabedoria, reduzindo o
outro à categoria sociológica. O cineasta coloca-se como um sujeito, e
não como o sujeito onisciente e onipotente; ele se recusa a constituir o
outro como objeto e trabalha sobre a distância entre ele e o outro;
institui o outro como sujeito, dialoga com o outro como sujeito. O fato
de aparecer o sujeito documentarista (e não filmando ingenuamente a
câmara filmando, mas na estrutura do filme) e a constituição do outro,
não em objeto, mas em outro sujeito, são movimentos complementares
de um mesmo processo (BERNARDET, 2005 p.308-309).
Acompanhando Bernardet, evidencia-se na tomada comentada de
Memória do cangaço a “intervenção ativa” do realizador, situação que escapa a
um sistema de argumentação fechado, pela incorporação do inesperado no
filme, da “não-entrevista”, que colabora para reflexões sobre o fazer
documentário e suas implicações éticas. Graças ao poder que Dadá exerce
enquanto personagem, coloca-se em “crise” tanto a condução da narrativa do
documentário, que apresenta um momento discrepante dos demais; quanto a
“crise” do cineasta-intelectual que, em vez de mascarar o insucesso da
abordagem com Dadá, usa seu poder como realizador para mantê-lo na
montagem e deixá-lo transparecer, dando ao espectador a possibilidade de tirar
suas próprias conclusões sobre os personagens em confronto e seus poderes.
104
2.1.4 – O proprietário e o sindicalista ou os “vilões do trabalhador”
Os últimos personagens com poder que iremos observar nos
documentários de Paulo Gil Soares são aqueles que ocupam posições de
autoridade no âmbito do trabalho: o proprietário rural, o presidente do sindicato,
o empresário. Pessoas cujos discursos são articulados pela montagem a fim de
apontar para denúncias, como a condição desfavorável para o lavrador em sua
relação com o dono da terra; a demissão massiva de operários na indústria
fumageira devido à mecanização; os altos lucros obtidos com a exportação do
fumo produzido na Bahia em contraposição à precariedade da situação do
trabalhador e ao escasso – até clandestino – mercado interno. Evidencia-se a
aspiração do cineasta na defesa do “explorado” e acusação do “explorador”.
As denúncias emergem por meio de um recurso de montagem paralela
que ora articula a entrevista do personagem sugerindo um contraponto com as
imagens e com as informações fornecidas pela locução; ora coloca em
contraposição as falas de dois personagens, como se um estivesse respondendo
ao outro, em um jogo de argumentação e contra argumentação recorrente nos
documentários do diretor. Iremos observar três dessas situações.
Na primeira, em Erva Bruxa, desmente-se a afirmação do presidente do
sindicato da indústria fumageira da Bahia, Saturnino Ferreira da Conceição, que
nega ter havido a demissão de operários. Entrevistado no sindicato, ele aparece
em plano médio atrás de uma mesa cheia de carteiras de trabalho, quase na
metade do filme, após alguns planos gerais que mostram mulheres fazendo a
separação das folhas de fumo em um armazém. Paulo Gil Soares (extraquadro)
questiona o sindicalista: “Nós temos a informação de que um armazém que está
mecanizado neste momento, ele dispensou cerca de 75% do seu pessoal. Qual
a posição do sindicato diante disso?”. Saturnino não olha diretamente para a
câmera ao responder e hesita por alguns segundos: “Não é puxando, como diz
a gíria, o saco dessa firma, mas discordo a essa notícia”. Paulo Gil Soares
insiste: “Mas houve ou não houve dispensa?”. Fazendo um sinal negativo com a
cabeça, o sindicalista: “Não. Que continua todos os operário trabalhando”.
Há o corte para o depoimento de um homem que aparenta ser o
supervisor de um armazém – possivelmente o mesmo em que houve demissões.
Centralizado no quadro, o homem aparece dentro do local em um plano mais
105
aberto, onde o vemos em enquadramento médio à frente e um segundo plano
de mulheres separando o fumo em esteiras. Seu depoimento endossa a
denúncia
suscitada
pelo
realizador:
“A
mecanização
teve
início
há
aproximadamente três meses e com isto conseguimos reduzir 70% da mão-deobra”. Novo corte retorna ao sindicalista. Desta vez, é questionado sobre a
destinação do fumo produzido na Bahia, se é comprado apenas por armazéns
brasileiros; ele responde que brasileiros são os agentes (que intermediam a
venda). O filme vai retomar a questão da exportação do produto na entrevista
com um empresário, nos últimos minutos, sendo a segunda situação que
observaremos.
Sobre a sequência descrita, novamente há Paulo Gil Soares atua como
um repórter investigativo que tenta tirar do entrevistado a informação que lhe
interessa. Esta é uma característica que o diferencia dos demais realizadores da
Caravana Farkas, reforçando as considerações de Gilberto Sobrinho (2013),
quando faz uma comparação com outro realizador, Geraldo Sarno:
Estilisticamente, as entrevistas de Paulo Gil (desde o próprio Memória
do Cangaço) são mais denunciativas que as de Geraldo Sarno e
adquirem caráter ‘investigativo’ quando utilizam-se da argumentação e
contra argumentação montados paralelamente (SOBRINHO, 2013,
p.35).
É o que percebemos na situação com o presidente do sindicato.
Acrescentando ainda que, além da fala do supervisor do armazém desmenti-lo,
o próprio plano de sua entrevista dá indícios de que a afirmação sobre as
demissões pode não ser verdadeira, devido à quantidade de carteiras de
trabalho que vemos em cima da mesa. Filmados em tempo e espaço diferentes,
os personagens “interagem” graças à montagem. Bill Nichols (1997) afirma,
sobre o papel da montagem em documentários interativos/participativos:
A montagem tem a função de manter uma continuidade lógica entre os
pontos de vista individuais, por regra geral sem a vantagem de um
comentário global, cuja lógica passa para a relação entre as afirmações
mais fragmentadas dos sujeitos das entrevistas ou o intercâmbio
conversacional entre o realizador e os agentes sociais (NICHOLS,
1997, p.79)79.
No original: “El montaje tiene la función de mantener una continuidad lógica entre los puntos
de vista individuales, por regla general sin la ventaja de un comentario global, cuya lógica pasa
79
106
Mesmo que não haja um comentário global manifesto (pela locução, por
exemplo) a respeito das afirmações que fazem os personagens, ele fica
implicitamente sugerido pelo modo como são articulados os depoimentos na
montagem. Não se trata, neste caso, de valorizar pontos de vista individuais –
tanto que o presidente do sindicato é desmentido –, mas de reforçar a denúncia
do
realizador.
Nichols
(1997,
p.80-81)
toma
alguns
documentários
interativos/participativos para mostrar que a justaposição de entrevistas com
outros materiais ou com outras entrevistas pode sugerir uma comparação entre
as diferentes afirmações apresentadas a fim de promover uma revelação em
torno do tema. É o que ocorre na sequência comentada de Erva Bruxa.
Questiona o autor sobre documentários interativos/participativos80:
Até onde pode ir a participação? Quais são os limites para além dos
quais um realizador não pode estabelecer uma negociação? Quais
táticas permitem a ‘acusação’ fora de um sistema legal formal? A
palavra ‘acusação’ faz referência ao processo de investigação social
ou histórica a que se propõe o realizador em seu diálogo com
testemunhas [de um fato, de um acontecimento] com o objetivo de
desenvolver uma argumentação. Na realidade, a relação com as
testemunhas pode ser mais próxima à de um defensor público que à
de um acusador: não é habitual que se estabeleça uma relação de
confrontação senão uma relação em que se busca informação para se
estabelecer um raciocínio (NICHOLS, 1997, p.80)81.
A ideia do realizador como um “defensor público” parece eficaz para
pensarmos no projeto da Caravana Farkas de modo mais amplo, sendo os de
maior caráter investigativo os documentários de Paulo Gil Soares, adotando
estratégias singulares para revelar denúncias. Conforme resume D´Almeida
(2003, p.89), a Caravana configura-se como um projeto político-didático baseado
a la relación entre las afirmaciones más fragmentarias de los sujetos de las entrevistas o al
intercambio conversacional entre el realizador y los agentes sociales” (NICHOLS, 1997, p.79).
80 Conforme afirmamos no capítulo 1, os documentários de Paulo Gil Soares apresentam
diferentes níveis de modos de representação documental, dependendo da sequência
examinada. No trecho citado de Erva Bruxa há estratégias de cunho interativo/participativo, ainda
que o mesmo filme tenha sequências mais expositivas.
Tradução para: “¿Hasta dónde puede ir la participación? ¿Cuáles son los límites más allá de
los que un realizador no puede establecer una negociación? ¿Qué tácticas permite la
«acusación» fuera de un sistema legal formal? La palabra «acusación» hace referencia al
proceso de investigación social o histórica en que se interna el realizador en su diálogo con
testigos con el objeto de desarrollar una argumentación. En realidad, la relación con los testigos
puede estar más cerca de la de un defensor público que de la de un acusador: no es habitual
que se establezca una relación de confrontación sino una relación en la que se busca información
para un razonamiento” (NICHOLS, 1997, p.80).
81
107
na ideia do cineasta-intelectual como um mediador, aquele que promoveria, ao
revelar criticamente a realidade brasileira, uma conscientização da sociedade,
que então perceberia as “contradições do capitalismo”82.
Uma segunda situação em Erva Bruxa aponta para esta constatação. Ela
começa com a entrevista de um empresário da indústria fumageira, que se dá
em torno dos 16 minutos. Paulo Gil retoma o questionamento feito ao sindicalista,
sobre quanto da produção de fumo da Bahia é aproveitado pela indústria local.
O empresário (não sabemos seu nome) aparece em plano médio/americano
sentado de pernas cruzadas em uma cadeira com um jardim ao fundo e
segurando um charuto, em postura altiva, com traje social e óculos escuro.
Responde que o fumo baiano é mais destinado à exportação, visando os
mercados europeu, estadunidense e argentino. Sua fala é pausada, tranquila.
Sobre os charutos mais caros, explica que só podem ser produzidos
manualmente – em montagem paralela, imagens de uma mulher enrolando um
desses charutos cobrem parte da fala do empresário – e calcula entre US$ 15 e
US$ 20 milhões os valores obtidos com a exportação do fumo baiano nos anos
1968 e 1969, respectivamente.
Em contraposição à situação de pujança referida pelo empresário,
passamos a ver duas cidades do interior da Bahia – Cachoeira e São Félix – que
a voz over do “diretor-locutor” afirma estarem em decadência, em nada
lembrando os tempos áureos das exportações do fumo produzido em suas
lavouras nem os números do empresário, abrigando uma indústria caseira e
clandestina de charutos. Planos de mulheres em suas casas enrolando o produto
assemelham-se aos anteriores, dos charutos caros citados pelo empresário,
demonstrando que o processo é o mesmo. Não há depoimentos; as
“contradições do capitalismo” ficam sugeridas quando da comparação entre as
afirmações do empresário e da locução/imagens que passamos a acompanhar.
Além dos filmes de Paulo Gil Soares, cabe lembrar que na maioria dos documentários da
Caravana Farkas realizados na 1ª e 2ª fases de produção (1965-1970) há a temática do trabalho.
Alguns: Viramundo (1965), de Geraldo Sarno, mostra as mazelas enfrentadas pelo nordestino
que migra para São Paulo em busca de trabalho na construção civil; Subterrâneos do futebol
(1965), de Maurice Capovilla, aborda o jogador de futebol enquanto um trabalhador explorado
como qualquer outro; Vitalino, Lampião (1969) e Os imaginários (1970), ambos de Geraldo
Sarno, mostram profissões ameaçadas pela industrialização; Casa de farinha (1970) e O
engenho (1970), também de Sarno, sobre a produção rudimentar da farinha de mandioca e da
rapadura, respectivamente.
82
108
As contradições são percebidas ainda na comparação da imagem do
empresário com a dos operários do armazém: em paralelo à fala do personagem
e ao longo do documentário, aparecem trabalhando descalços, com roupas
sujas, sem proteção nas mãos. Dessa comparação, manifesta-se vinculada ao
cenário
da
indústria
fumageira
da
Bahia
a
oposição
desenvolvimento/subdesenvolvimento ou riqueza/pobreza.
Tal oposição é revelada ainda de modo mais contundente quando
observamos o proprietário rural (de quem também não sabemos o nome) de
Jaramataia83, documentário que aborda as atividades rotineiras da fazenda
homônima localizada no interior da Paraíba, tratando-a como exemplar de um
modelo agrário “primitivo”, que persistiria em muitas fazendas no sertão do
Nordeste. O dono da propriedade aparece na metade do filme, em plano
americano, enquadrado ao lado de um automóvel, símbolo de seu status de
poder, no qual fica apoiado com um dos braços. Traja camisa e calça sociais
limpas, seu gestual aparenta segurança e tranquilidade, suas respostas são
feitas com olhar direto à câmera. Em alguns instantes, fica difícil entender o que
ele fala e o documentário não utiliza legendas ou outro recurso para minimizar
essa incompreensão. Ele conta que as terras são herança de família e que
começou no “trabalho de machado e de foice no pesado”, como os homens
mostrados em seguida, em plano conjunto, com o proprietário ao lado que
gesticula e lhes dá alguma ordem.
É acionado o recurso de montagem paralela, de forma semelhante ao que
ocorre em Erva Bruxa, que coloca lado a lado as falas do proprietário e de dois
trabalhadores da fazenda, como se estivessem em diálogo. Do primeiro
trabalhador vemos somente o rosto, em primeiríssimo plano, enfatizando a
expressão do homem que, ao contrário do proprietário, é comedido, não encara
a câmera e reclama do pouco ganho com o trabalho84. Já o segundo trabalhador
aparece em plano médio (como o proprietário) segurando duas vacas, com a
roupa rasgada e suja, tendo o rosto pouco visível devido à sombra que faz o
Em Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges, o mesmo personagem dá um
depoimento sobre o religioso.
83
84
Retomaremos mais aspectos sobre os personagens que são o “outro de classe” no item 2.2.
109
chapéu. Seguem as mencionadas falas que são inseridas pelo filme
seguidamente:
Proprietário: “Fui comprando as terras nesse tempo, achei mais baratas,
e assim consegui comprar aqui nesse município 7 mil quadras85 de terra e criar
mil cabeças de gado”.
Trabalhador 1: “Eu luto aqui na fazenda, o ganho é pouco”.
Proprietário: “Meu sistema é muito seguro para o trabalhador”.
Trabalhador 1: “Faz vinte anos que nós fizemos conta. De lá pra cá não
fizemos mais. Faz hoje, faz amanhã. Não fizemos mais conta”.
Proprietário: “Eu empresto dinheiro ao morador pra ele trabalhar a ele
mesmo. Não empresto pra ele trabalhar a mim não. Empresto o dinheiro sem
juro pra ele limpar o seu roçado, trabalhando no que é dele. Agora, fiscalizo ele”.
Trabalhador 2: “Eu entrei ganhando 5 contos e agora estou ganhando 10
contos e 500. E num dá”.
Pelo contraponto que estabelecem os depoimentos, fica sugerida a
relação desigual que há entre dono da terra e trabalhador, em que este aparece
em profunda desvantagem. O contraste também é percebido na comparação das
imagens dos personagens, que expõem “indícios de riqueza” e “indícios de
pobreza”, como já esboçamos no capítulo 1. A explicitação do realizador faz-se
desnecessária para tal. Apreendemos, por meio da tensão que se estabelece
entre as vozes e imagens daquele que é dono da terra e daquele que não a
possui, uma questão mais ampla de fundo: a da reforma agrária, sugerida como
a solução para os problemas mostrados ao longo de Jaramataia86.
Às nossas considerações, podemos acrescentar o que afirma Meize
Lucas (2012) ao refletir sobre a mesma passagem:
Quadra ou braça de terra é uma antiga medida de comprimento utilizada no meio rural: 1 braça
corresponde a pouco mais de 2 metros quadrados.
85
A sugestão é colocada por outros documentários realizados no âmbito da Caravana Farkas,
como Viramundo, de Geraldo Sarno. Ao entrevistar em São Paulo um dos migrantes nordestinos,
o diretor suscita a problemática: o mesmo homem afirma que teria ficado no Nordeste, caso
tivesse conseguido comprar um pedaço de terra. O encaminhamento feito pelo documentário
sugere que está no campo a solução para os problemas na cidade apresentados pelo filme.
Sobre a questão, ver: PAIVA, Samuel e CURY, Joyce. Revendo imagens do povo pela
locomoção e politização. Revista Novos Olhares, vol. 3, no. 2, fev. 2015, p. 100-112.
86
110
A ideia de uma propriedade que se desenvolve com base numa
economia calcada em relações de proximidade e trocas pessoais –
comuns em muitas análises sociológicas e econômicas e viés presente
na literatura regionalista – é colocada em xeque a partir da fala dos
próprios entrevistados (LUCAS, 2012, p.278).
O sindicalista, o empresário e o proprietário rural são personagens
construídos pelos documentários para personificar o capitalismo. No caso, como
o lado “mau” nas relações de trabalho, os “vilões do trabalhador”. Seus
depoimentos servem para comprovar o que os filmes afirmam em outros
momentos, notadamente a situação precária do lavrador, do vaqueiro ou do
operário da indústria do fumo. Aparecem, de forma implícita, questões mais
amplas que faziam parte da pauta dos intelectuais de esquerda no Brasil dos
anos 1960: a oposição ao capitalismo, ao capital estrangeiro e ao latifúndio –
portanto, em favor da reforma agrária (NAPOLITANO, 2014; RIDENTI, 2000;
SCHWARZ, 2008).
O presidente do sindicato é a figura de comportamento mais contraditório,
pois espera-se, pelo menos em tese, alguém que seja o “porta-voz” dos
problemas dos operários, o que não acontece. Sua informação a respeito das
demissões é desmentida, fazendo com que o personagem passe a ser tomado
na chave da ironia, de maneira negativa. Cabe notar que, ao contrário dos outros
dois personagens analisados, o sindicalista é o “outro de classe” com poder,
alguém que foi operário e deveria representar essa classe trabalhadora. No filme,
contudo, quem se torna o “porta-voz” do operário é o próprio cineasta.
Quanto ao empresário e ao proprietário rural, ao terem seus discursos
sobre riqueza contrapostos a uma realidade de extrema pobreza, são também
colocados em posição antipática, seus depoimentos adquirem valoração
negativa, tornando-se clara a oposição entre “explorador” e “explorado”, em que
pesa a defesa que o documentário faz do segundo, o trabalhador. São questões
que voltarão a ser discutidas no próximo item, quando faremos considerações
sobre o “outro de classe” nos filmes de Paulo Gil Soares.
2.2 – Tensões com o “outro de classe”: entre o coletivo e o individual
Diferentemente da maioria dos personagens que detêm algum poder nos
documentários de Paulo Gil, a sensação que temos diante daqueles que não o
111
possuem, no caso, o “outro de classe”, não é de conflito ou tensão com o
realizador ou com a narrativa, no sentido de autorizar/desautorizar seu
discurso87. Se o coronel, o sacerdote religioso, o proprietário de terra, entre
outros, são colocados em xeque de alguma forma nos filmes, o mesmo não
ocorre com ex-cangaceiros, lavradores, vaqueiros, artesãos que dão entrevista
ou são mostrados em suas atividades rotineiras. Suas falas e ações não são
contestadas, mas reveladoras de sua condição; há uma “defesa” que os
documentários tentam fazer dessas pessoas. As tensões com o “outro de classe”
são de outra ordem: ora os personagens são percebidos nos filmes como
exemplares de uma categoria ou “tipo”, ou seja, construídos como “entes
coletivos” (VALLEJO, 2008, p.79); ora como indivíduos que têm nome,
subjetividades e exercem um protagonismo na narrativa.
De início, atentemos para os números relativos a esses personagens nos
oito documentários do diretor, indicativos do que afirmamos88: dos 23 que
aparecem falando – mesmo que a situação de entrevista não esteja explicitada
ou que seja um momento mais observativo –, de 8 sabemos o nome, anunciado
pelo próprio personagem ou pelo realizador (na locução ou no instante do
encontro). Memória do cangaço é o único filme do conjunto em que todos os
personagens são nominados; Jaramataia e Frei Damião: trombeta dos aflitos,
martelo dos hereges não dão acesso a nomes; e A morte do boi não tem
depoimentos, mas mostra pessoas exercendo alguma atividade cotidiana. Os
demais filmes dão a conhecer nomes de alguns.
Os personagens que fazem parte da esfera do trabalho falam sempre
sobre as mesmas coisas: descrevem a atividade que realizam, dizem quanto
ganham, reclamam dos ganhos e da vantagem financeira que leva o negociante
ou o proprietário da terra. Se isso ocorre, é porque as perguntas feitas a eles
também se repetem:
A maioria das perguntas beira a típica ‘pergunta retórica’, em que o
cineasta basicamente já sabe que tipo de resposta obterá, mas que se
faz necessário para empregar esse tipo de ‘denúncia’ mais direta que
Paulo Gil Soares costuma fazer em seus filmes, normalmente tomando
As exceções – o “outro de classe” com algum poder – são a viúva de Corisco, Dadá, de
Memória do cangaço; e o presidente do sindicato dos trabalhadores da indústria fumageira da
Bahia, Saturnino Ferreira Conceição, de Erva Bruxa, sobre os quais comentamos anteriormente.
87
88
Em oposição, personagens que detêm poder totalizam 9, dos quais 6 são nominados.
112
parte do homem comum, denunciando algum tipo de injustiça ou de
condições ruins de existência (SOBRINHO, 2010, p.16).
É o caso do curtidor de couro de A mão do homem, que aparece duas
vezes no filme. Na primeira, à altura dos 5 minutos, o vemos enquadrado em
primeiro plano, que aos poucos se abre para um plano conjunto, pelo movimento
de zoom out, mostrando o curtume onde ele está e outro trabalhador ao fundo.
Olhando para a câmera, o homem explica, passo a passo, como é feita a curtição
do couro. Sua fala completa a descrição do processo feita pela locução e pelas
imagens. Na segunda vez em que o vemos, em torno dos 8 minutos, o plano faz
movimento oposto, do mais aberto para o fechado no rosto dele, à medida em
que revela a situação de quem curte o couro e daquele que fabrica as peças
usando o material: “O curtidor nem o fabricante não contam vantagem nenhuma.
A vantagem só tá sempre no negociante”. Afirma que nem com trinta anos de
trabalho um curtidor tem condições de comprar um meio de transporte para
facilitar o trabalho ou passear.
A fala deste curtidor vai se completar, ainda, no depoimento do artesão
Moisés Alves de Oliveira, de Umburanas, na Bahia, a quem vemos
confeccionando um chapéu de couro em planos diversos, e que também explica
com detalhes as etapas do processo, em off. Os dois relatos começam a se
cruzar quando o artesão comenta que gasta bastante com o material, vendendo
o chapéu ao negociante, que o revende. Ele aponta para a diferença de preço
do produto manual, que “é 10”, e o industrial, que “é 5”, diz que acaba ganhando
pouco e que nem sempre “tem mês que dá pra se defender”.
Em torno dos 15’40’’, o homem aparece enquadrado na janela de sua
casa. O plano segue a mesma lógica do curtidor, começa mais fechado no rosto
do personagem e se abre, em zoom out, enquadrando abaixo da janela uma
mulher que trabalha na confecção de um chapéu. O artesão diz seu nome,
apresentando-se à câmera, e dá informações de caráter mais individual:
Moro na Umburana, trabalho no couro há 16 anos, mais minha família,
[que] ajuda eu a trabalhar. Quem me ensinou foi meu pai. Eu não tenho
nada. Não dá pra ganhar, dá pra viver mal, né. Quem ganha mais são
os negociante.
113
Ele
completa
falando
o
que
prefere
confeccionar,
sinalizando
positivamente com a cabeça, certamente ao entrevistador, cuja voz e corpo
estão suprimidos: “Gosto de fazer o chapéu de couro”.
Ainda que os personagens tratem das mesmas questões – a relação
desigual com o comerciante, a denúncia da condição de vida ruim –, o
depoimento do artesão tem um caráter mais subjetivo. Ao sabermos seu nome,
com quem aprendeu o ofício e sua preferência pelo chapéu, temos acesso não
ao “tipo” artesão, mas a um artesão em especial; as particularidades de sua
experiência ganham algum relevo. A “personalização da experiência” (RAMOS,
2007, p.125) ocorre também com os ex-cangaceiros e o vaqueiro entrevistados
em Memória do cangaço ou com Zé Galego de O homem de couro, sobre os
quais falaremos mais à frente.
É possível, por exemplo, traçar interseções entre o curtidor de A mão do
homem, os camponeses de Jaramataia e o lavrador de Erva Bruxa. De
Jaramataia, dois personagens já foram observados quando tratamos da
contraposição que suas falas e imagens fazem com a do proprietário de terras,
no item 2.1.4. Ambos reiteram que ganham pouco com o trabalho e um deles
denuncia a falta de acerto de contas com o dono da fazenda. Ainda dois
personagens retomam as questões no mesmo filme.
Em Jaramataia, um lavrador aparece em torno dos 17 minutos, em alguns
planos conjuntos que o mostram trabalhando em uma plantação, intercalados
com uma breve tomada de seu rosto em primeiro plano. Ele exemplifica quais
cultivos têm ali e sua destinação, sendo questionado mais adiante pelo
realizador, que ouvimos extraquadro: “Dá pra viver com o dinheiro que o senhor
ganha nessa terra?”. O homem, em off, a quem vemos trabalhando com uma
enxada: “Dá não, senhor. A gente vive a pulso”. Sua fala é concluída pelo
personagem seguinte, um jovem vaqueiro que está agachado em um pedaço de
terra: “Eu vou seguir para outro lugar porque sei que aqui não dá pra mim viver,
de maneira alguma”.
O lavrador de Erva Bruxa, por sua vez, aparece no início do documentário,
visto em plano conjunto trabalhando com sua família em uma plantação de fumo,
inclusive crianças. Novamente, há um primeiro plano no instante de seu
depoimento e a denúncia surge: “A lavoura do fumo não dá [...] Quando é no
114
tempo que a gente tá colhendo o fumo, é a conta da despesa e olha lá. E muitas
vezes a gente ainda fica devendo”.
São pessoas cujas subjetividades estão dissolvidas, configurando-se em
amostragem do sertanejo nordestino que vive em condição precária.
Recuperando o que diz Bernardet (2003, p.24) sobre o “modelo sociológico” de
documentário, a propósito dos migrantes de Viramundo, são personagens que,
tratados mais como objetos de estudo do que sujeitos, representam um “tipo
sociológico”, uma “abstração”. De cunho denunciativo, suas falas completam as
informações fornecidas pela locução ou por personagens análogos, inclusive em
filmes distintos, como apontamos. Esses trabalhadores conseguem identificar
sua situação desvantajosa na relação com o proprietário ou o comerciante, mas
não indicam um caminho para modificá-la, parecem presos àquela realidade
cíclica que a locução faz questão de enfatizar. A solução, como diz o vaqueiro
jovem de Jaramataia ou ainda um vaqueiro mais velho que dá depoimento em O
homem de couro, é sair da fazenda, mudar de profissão.
Refletindo nesse viés, há uma persistência naquilo que Brian Winston
(2011) chama de “tradição da vítima”. Segundo o autor, ela pode ser observada
desde documentários ingleses dos anos 1930, que retratavam como viviam os
trabalhadores e os problemas sociais da época, até produções do cinema direto
da década de 1960 ou em materiais televisivos dos anos 198089.
Nesta
“tradição” está implicada a escolha dos documentaristas em filmar e entrevistar
pessoas destituídas de poder – operários, agricultores, desempregados,
moradores de bairros carentes. São as “personagens pobres, sofredoras” de
Edgar Anstey90, realizador a quem Winston toma como uma das referências do
documentarismo inglês. Alguns problemas de ordem ética e moral são
suscitados pelo autor diante dessa “tradição da vítima”, aqui nos interessando o
O artigo de Brian Winston foi originalmente publicado em 1988. O autor afirma, sobre o cinema
direto, por exemplo, que este “[...] deu à tradição da vítima a tecnologia que permitiu um grau de
intrusão na vida das pessoas comuns que anteriormente não era possível” (WINSTON, 2011,
p.66).
89
Edgar Anstey foi um documentarista inglês que integrou o grupo de John Grierson na década
de 1930. Realizou, entre vários outros, o curta-metragem Housing problems (Edgar Anstey e
Arthur Elton, 1935) sobre o problema de moradia para trabalhadores da Grã-Bretanha, que
moravam em favelas. O filme foi pioneiro porque dá a palavra aos operários, que são ouvidos
em suas próprias casas e em som sincrônico às imagens.
90
115
fato dos personagens serem mostrados como seres indefesos e a falta de
dimensão e controle que têm com relação às imagens construídas pelos filmes.
No Brasil da década de 1960, quando os documentários de Paulo Gil
Soares foram realizados, a ideia de vitimização de Winston pode ser relacionada
com a já comentada pretensão do cineasta-intelectual em ser o “porta-voz” das
mazelas que afligiam o homem brasileiro, notadamente o nordestino, mostrado
como vítima de sua condição. Observando os filmes, fica patente a defesa que
fazem dessas pessoas, seja pela ênfase da locução sobre sua situação
“primitiva”, pelas imagens que endossam seus discursos ou pela montagem que
as favorece em detrimento de personagens com poder. Suas falas potencializam
as denúncias, é notório, mas situações sem depoimentos também são flagrantes
de um retrato do subdesenvolvimento.
São planos que mostram pessoas disputando pedaços de carne no chão
ao lado de um abatedouro clandestino, crianças trabalhando no abate do boi e
na curtição de sua pele em A morte do boi; imagens de beatos focalizados em
primeiro plano sentindo grande comoção diante da presença de Frei Damião ao
proferir um discurso religioso; operários descalços e com o corpo desprotegido
em contato com as folhas de fumo nos armazéns, mulheres que enrolam
charutos para abastecer um mercado clandestino, crianças que ajudam na
lavoura em Erva Bruxa; as esposas dos vaqueiros que fabricam, de maneira
artesanal e em meio a moscas, o queijo em Jaramataia; o curtidor de couro em
A mão do homem, que trabalha com ferramentas rudimentares e dentro do rio,
flagrado seminu enquanto trabalha, pois não tem dinheiro para comprar roupas.
Por um lado, perpassa nos filmes a ideia de personagem coletivo, o
sertanejo nordestino como categoria social, aproveitando aqui as considerações
de Aida Vallejo (2008) sobre a possibilidade de personagens serem construídos
como “entes coletivos” em documentários:
As conotações ideológicas desta construção implicam uma
categorização da pessoa em função de suas características comuns
com o resto das que conformam sua categoria e, portanto, uma perda
de sua especificidade e identidade pessoal (VALLEJO, 2008, p.79)91.
Tradução para: “Las connotaciones ideológicas de esta construcción implican una
categorización de la persona en función de sus características comunes con el resto de las que
conforman su categoría y, por lo tanto, una pérdida de su especificidad e identidad personal”
(VALLEJO, 2008, p.79).
91
116
Vallejo (2008), em certa medida, reverbera as reflexões de Bill Nichols
(1997 e 2010) quando ele afirma que reduzir ou não as pessoas a “[...]
estereótipos, joguetes ou vítimas [...]” (NICHOLS, 2010 p. 178) diz respeito a
questões éticas, mas também políticas e ideológicas. Concordamos sobre esta
relação, inclusive pelo que já comentamos da proposta político-didática dos
filmes que estudamos e da ideia do intelectual como responsável por denunciar
os problemas do país. Nichols (2010, p.178-208) sugere que os indivíduos no
documentário que enfatiza questões sociais são comumente construídos como
típicos, representativos ou vítimas do problema apresentado pelo filme, em que
pesa um efeito de coletividade.
Os títulos dirigidos por Paulo Gil Soares na Caravana Farkas podem ser
tidos como exemplos para as afirmações de Vallejo (2008) e Nichols (1997 e
2010), conforme situações que já apontamos com alguns trabalhadores. Por
outro lado – justamente aí residiria o que estamos tomando como tensões quanto
ao “outro de classe” nesses filmes –, ao observarmos certos personagens
percebemos a particularização da experiência do outro: uma tentativa de dar
acesso a pessoas que têm nome e subjetividades. Um esforço que, se não
significa a total quebra do paternalismo do cineasta com relação a essas
pessoas, aponta para a valorização das experiências subjetivas.
Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges apresenta essas
tensões de maneira interessante. Embora não saibamos o nome de nenhum
personagem, com exceção do próprio Frei Damião, a subjetividade aparece
manifestada nos depoimentos, já que os devotos falam sobre sua fé e milagres
atribuídos ao religioso. Mesmo que eles contribuam para reforçar a tese da
religião como forma de alienação, que perpassa ao longo do filme, em nenhum
momento são contestados e colocados em dúvida; também não são apoiados
pela montagem, como ocorre com trabalhadores em outros filmes já
mencionados. Clara Leonel Ramos (2007) afirma que justamente essa presença
da “religião subjetiva”92 é um aspecto em que Frei Damião se diferencia do
Clara Leonel Ramos (2007) fala em “religião subjetiva” e “religião objetiva” a partir das
discussões de Claudia Mesquita em sua dissertação de mestrado sobre as transformações na
abordagem da religião no documentário brasileiro do Cinema Novo à contemporaneidade,
apoiando-se nesses dois conceitos lançados por Ismail Xavier no livro Sertão-mar: Glauber
Rocha e a estética da fome. Ramos explica que a “religião objetiva” faz referência à “[...]
representação da exterioridade objetiva da religião, através do registro de rituais coletivos”
92
117
documentário de cunho sociológico, ainda que a relação religião/alienação
continue presente. Se, por um lado, é colocada a questão da fé como um rito
coletivo, ao mostrar milhares de pessoas seguindo o religioso, na rua ou em
cerimônias, tentando tocá-lo; por outro lado, há abertura para experiências
pessoais de fé.
Ao contrário do que ocorre na entrevista com Frei Damião, não ouvimos
a voz do realizador fazendo perguntas ao “outro de classe”; sua presença na
tomada nunca é explicitada, nem assumida a situação de entrevista. Há uma
beata, que usa roupa e óculos pretos, a quem podemos considerar personagem
principal entre os devotos93. Em uma espécie de prólogo do filme, ela é vista
sentada em uma calçada, em plano americano, entoando o trecho de uma
canção religiosa: “Senhor Deus, pela vossa sagrada paixão e morte,
misericórdia”. Além desse momento de performance sacro-musical, suas
declarações sobre fé e devoção ao Frei servem para introduzir depoimentos de
outros devotos convocados pelo filme, encadeados pela montagem em um bloco
nos primeiros minutos. A beata chega a atuar como entrevistadora, quando a
vemos ao lado de uma mulher pedindo para que conte a graça alcançada por
sua filha “por intercessão de Frei Damião”. Conforme já comentamos, os
testemunhos dessas pessoas servem como contraponto ao discurso do Frei, que
se diz contrário ao fanatismo religioso e nega ter operado milagres.
Duas pessoas referem-se a situações prosaicas que teriam sido
resolvidas por intermédio do religioso: um rádio quebrado e uma aliança perdida.
Outras duas falam de problemas de saúde: a mulher “entrevistada” pela beata,
cuja filha tinha uma ferida na cabeça e ficou boa depois de Frei Damião ter lhe
passado a mão; um homem que afirma “Me deitei aleijado e amanheci bom”,
após ter se confessado ao Frei, que o teria curado e dito a ele ser “doutor das
almas”. Além deles, há a senhora negra que aborda o religioso e participa de um
momento mais observativo do filme, em que ele é “flagrado” rindo dela, sobre o
qual comentamos no item 2.1.3. Essas pessoas têm dificuldade para se
expressar, alguns depoimentos soam artificiais e ensaiados.
(RAMOS, 2007, p.44). Já “religião subjetiva” compreende “[...] a representação da religião como
uma vivência individual, a expressão do sentimento religioso personalizado” (Id. Ibid.).
Conforme explicamos no capítulo 1, item 1.8, foi a beata quem procurou a equipe para
participar do documentário.
93
118
Voltando à beata principal, ela nunca fala de alguma experiência pessoal,
como os demais personagens. Faz afirmações gerais sobre o Frei, atuando
como se fosse “porta-voz” dos devotos, falando em nome deles. À altura dos 11
minutos, no mesmo local em que a vimos cantando no começo do filme, relata
com convicção sobre a fé que, acredita, todos teriam em Frei Damião:
Porque os nossos olhos quando volta pra Frei Damião, não temos força
pra dizer nada, a não ser se curvar e se entregar pra ele fazer da gente
o que ele quiser. Se disser assim, ‘eu vou lhe matar agora’, eu acredito
que nenhum cristão se revolta, se entrega como nós nos entregamos
a Deus, nosso Senhor.
A ideia de adoração ao Frei que perpassa todo o seu discurso é
comprovada quando vemos como se comporta a multidão diante do religioso, ou
seja, sua fala atualiza-se nas imagens. Trata-se de uma personagem que tem
um comportamento distinto dos demais que são “outro de classe” nos
documentários de Paulo Gil Soares, ao tomar para si o papel de “representante”
dos devotos, de uma coletividade.
Aqueles que contam sobre sua experiência religiosa individual podem ser
percebidos de maneira ambígua. Por um lado, valorizam-se suas histórias
pessoais, no sentido de que não são desmentidas – ainda que alguns casos (os
mais banais, da aliança perdida e do rádio quebrado) sejam factíveis de leitura
irônica – nem colocadas em dúvida. Por outro lado, os relatos de milagres
ajudam, inevitavelmente, na construção de um personagem coletivo, do
nordestino vítima de sua alienação, que perpassa outros filmes da Caravana
Farkas e, mais amplamente, os primeiros filmes do Cinema Novo. A leitura que
faz Clara Leonel Ramos (2007) é análoga:
Os depoentes não são vistos pelo autor como adversários ideológicos
que mereçam ser confrontados, já que seriam vítimas da sua própria
ignorância. Trata-se de um olhar paternalista em relação a estes
entrevistados. Isto não significa, contudo, que a ‘religião subjetiva’ – ou
seja, a subjetividade religiosa destes personagens – seja vista de
maneira positiva, nem apresentada como um olhar aceitável em
relação ao tema. Apesar disso, a falta de questionamento direto dos
depoimentos populares aponta para uma legitimação da fé – fundada
na falta de conhecimento e no medo da punição – como substrato da
cultura popular (RAMOS, 2007, p.94).
119
Essas tensões quanto ao “outro de classe” persistem quando observamos
personagens de outros filmes. Já comentamos sobre o artesão Moisés Alves de
Oliveira, de A mão do homem, cujo depoimento traz informações de cunho
bastante pessoal e outras que se fundem à denúncia das más condições
daqueles que trabalham com o couro de maneira geral. Além de Moisés, podem
ser tomados outros personagens que manifestam, ao mesmo tempo,
subjetividade e coletividade. Observemos Gregório, vaqueiro entrevistado em
Memória do cangaço, lembrando que esse trabalhador rural é figura recorrente
nos documentários de Paulo Gil, aparecendo em seis deles.
Sua entrevista funciona como resposta ao questionamento da locução,
que põe em dúvida a explicação científica do catedrático Estácio de Lima94 sobre
a pré-disposição do homem sertanejo ao cangaço, à violência. Gregório é visto
aos 6’39’’ montado a cavalo, em um plano conjunto que enquadra também o
diretor Paulo Gil Soares, segurando um microfone, e ao lado o operador de
áudio. Pela fala do homem, deduz-se sua condição de vítima e inércia, um
contraponto ao que Estácio de Lima sugere sobre o homem sertanejo.
Paulo Gil: Seu Gregório, há quantos anos o senhor é vaqueiro?
Seu Gregório: Eu?
Paulo Gil: Sim senhor.
Seu Gregório: Vinte anos.
Paulo Gil: Esse gado que o senhor toma conta é do senhor?
Seu Gregório: Não senhor.
Paulo Gil: E, Seu Gregório, quanto é que o senhor ganha por mês?
Seu Gregório: Eu não ganho por mês, não senhor.
Paulo Gil: O senhor ganha como?
Seu Gregório: Só se tiver sorte.
[...]
Paulo Gil: O senhor sabe ler e escrever, Seu Gregório?
Seu Gregório: Não senhor.
Paulo Gil: Tem escola por aqui por perto, não?
Seu Gregório: Tem não.
Paulo Gil: E hospital?
Seu Gregório: Tem não. Tinha uma escola aí, mas já acabou.
Paulo Gil: E hospital, tem aqui?
Seu Gregório: Não senhor.
[...]
A locução, aos 6’33’’: “Mas estará o professor Estácio de Lima com a razão? Ouçamos um
desses homens”.
94
120
As respostas do vaqueiro serão interpretadas pela locução em momento
seguinte, colaborando para que o percebamos como um sujeito oprimido, que
não tem acesso a direitos básicos, “abandonado à própria sorte”, para repetir as
palavras do locutor. Representante da “voz da experiência”, é alguém que fala
sobre a própria vivência, em particular, corroborando com generalizações feitas
pela locução. Neste sentido, para retomar as premissas do “modelo sociológico”
de documentário de Bernardet (2009), haveria uma correspondência entre esse
personagem e os operários de Viramundo ou os jogadores de Subterrâneos do
futebol.
Contudo, ao contrário destes, em Memória do cangaço há o rompimento
da exterioridade do cineasta com relação ao “mundo histórico representado” –
para usar uma expressão de Nichols (1997 e 2010) –, ou seja, há sua
personificação na tela, que se dá justamente ao lado do “outro de classe”,
coadunando com o anseio do cineasta-intelectual em “defender” o povo. Paulo
Gil Soares é o único diretor da Caravana que se personifica na tela, além de
outros momentos de explicitação na tomada, sobre os quais já comentamos95.
Dentro da discussão a respeito da tensão entre o coletivo e o individual
ao retratar personagens que são “outro de classe”, deve-se considerar o não
anonimato do vaqueiro e dos demais entrevistados no mesmo filme como
tentativa de individualizar suas experiências. Isso ocorre de forma mais vigorosa
com dois ex-cangaceiros em Memória do cangaço. Um deles é Benício Alves
dos Santos, no cangaço apelidado de Saracura e que fez parte do bando de
Lampião, funcionário do IML de Salvador, na Bahia, quando o documentário é
realizado. Ele é visto (por volta dos 16’) caminhando na rua, enquadrado em
primeiro plano durante a entrevista, a quem Paulo Gil Soares pergunta
(extraquadro) o nome, os motivos da entrada para o cangaço e como era sua
vida na caatinga, o que comia, como dormia. O homem conta que se tornou
cangaceiro porque a polícia estava perseguindo seu pai, de quem “arrancou as
barba, arrancou as unha” porque achava que fosse “coiteiro” (quem conhecia e
ajudava algum cangaceiro). Benício dos Santos diz não gostar de falar sobre
aquele tempo.
Vale lembrar que o filme não indica a presença física ou vocal do diretor, ou seja, sabemos
tratar-se de Paulo Gil Soares por uma informação extra fílmica.
95
121
Aspectos semelhantes são tomados da entrevista com Ângelo Roque da
Costa (aos 20’25’’), no cangaço nominado Labareda, chefe do grupo de
Saracura, que também afirma ter sido cangaceiro para resolver uma questão de
família: um soldado queria “carregar” sua irmã. Com bastante dificuldade para
se expressar, mostra marcas de bala no braço, explica que acabou se
entregando e foi “salvo” pelo presidente da república.
Os dois personagens são introduzidos pela fala do coronel Zé Rufino,
conforme já mencionamos, que chega a comentar sobre a qualidades dos
bandidos. Fazem contraponto à figura altiva do coronel e, ao contrário dele, não
falam com orgulho sobre o passado. Ambos ex-lavradores, são atualizados na
figura do vaqueiro Gregório. Conforme interpreta Meize Lucas (2012):
Se o cangaço acabou, o mesmo não se poderia dizer da realidade em
que ele surgiu e se desenvolveu. O homem sem terra e exposto aos
poderes locais continuava a existir (LUCAS, 2012, p.205).
Para nós, ainda que esses personagens se mostrem como vítimas do
poder (do dono da terra, da polícia), suas experiências particulares não são
desconsideradas e o filme nos dá acesso a sujeitos distintos, mesmo tendo
trajetórias de vida semelhantes. Também a presença de Dadá, conforme já
observamos no item 2.1.3, rompe com a expectativa de tipificar os excangaceiros.
Faz-se pertinente observar mais atentamente um último personagem que
é “outro de classe”, por ser representante emblemático dessa dialética entre
coletivo/individual ou impessoalidade/subjetividade. Trata-se de outro vaqueiro,
Zé Galego, personagem central de O homem de couro.
2.2.1 – Quando o outro é heroicizado: o vaqueiro Zé Galego
O vaqueiro Zé Galego é protagonista de O homem de couro. Isso porque
o documentário nos dá mais acesso a ele do que aos demais personagens do
filme: sabemos sobre seu trabalho, como é seu aboio, quem são seus filhos, sua
esposa. Aspectos diversos em torno de um mesmo sujeito, que o diferencia tanto
de outros vaqueiros no filme – é o único também de quem sabemos o nome –
122
quanto dos personagens que são “outro de classe” em outros títulos sobre os
quais já comentamos.
Ele é quem primeiro aparece no documentário. Enquadrado em planos
diversos dentro de um casebre de madeira, veste sua roupa de couro para a
câmera, uma prática de seu cotidiano que é repetida a pedido do cineasta, com
quem parece conversar. Às vezes ele encara a câmera, como se esperasse uma
aprovação para continuar se vestindo e vemos seus lábios se mexendo, mas
não o ouvimos porque o som diegético é silenciado. Enquanto veste a roupa feita
em couro, a locução descreve e explica para que serve cada parte dela no
trabalho no campo. Ao ajeitar sua sela, a locução em voz over recita versos da
poesia de cordel “História do boi mandingueiro e o cavalo misterioso”96. É como
se estivéssemos ouvindo o pensamento daquele homem: “Esta sela eu herdei /
Do finado meu avô / Que ele tinha herdado / Do velho seu trisavô”. Outros trechos
da poesia serão utilizados da mesma maneira, trabalhando o concreto das
imagens com o imaginário do cordel: o vaqueiro dos versos materializa-se em
Zé Galego.
Nos planos seguintes, já do lado de fora do casebre, planos conjuntos o
mostram montando em seu cavalo. Anda pelos arredores da fazenda até parar
de frente para a câmera, atrás da cerca que delimita a entrada da propriedade,
quando finalmente passamos a ouvi-lo. Ele se apresenta, diz seu nome: “Me
chamo José Francisco Filho, conhecido por Zé Galego. Sou vaqueiro da
Jaramataia, ganho 15 mil por semana e o leite. E o campo é de 6 às 6”. Abre a
cerca para iniciar mais um dia de trabalho na fazenda, que será acompanhado
pelo filme. Zé Galego, como os demais trabalhadores dos documentários de
Paulo Gil Soares, diz quanto ganha e trabalha, no entanto, ao contrário deles,
não reclama de sua condição97. Pelo contrário, fala com orgulho da profissão.
As duas sequências – do vaqueiro colocando sua roupa de couro e depois
se apresentando – trazem um caráter informativo/pedagógico, introduzem o
tema do documentário ao espectador; evidenciam ainda, mesmo que isso não
“História do boi mandingueiro e o cavalo misterioso” é uma poesia de cordel escrita e publicada
por João Martins de Ataíde. Em O homem de couro e nos demais filmes do diretor não estão
identificadas as poesias populares.
96
Um vaqueiro mais velho é o único no filme que reclama de sua condição e diz que vai
abandonar a profissão. Ainda falaremos sobre ele no capítulo 3, a fim de fazer relações entre
seu discurso e o de uma poesia de cordel incorporada ao documentário.
97
123
esteja explicitado no filme, que houve uma orientação do cineasta para que o
personagem se posicionasse e se apresentasse de tal maneira. São situações
de seu cotidiano que Zé Galego repete para a câmera em performances,
acrescentando aqui mais uma perspectiva para o conceito, a partir de Richard
Schechner (2003):
Performances afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e
adornam corpos, contam histórias. Performances artísticas, rituais ou
cotidianas – são todas feitas de comportamentos duplamente
exercidos, comportamentos restaurados, ações performadas que as
pessoas treinam para desempenhar, que têm que repetir e ensaiar
(SCHECHNER, 2003, p.27).
O vaqueiro não finge que a câmera não está ali. Sua performance é
assumida e condicionada ao direcionamento dado pelo realizador. Não são
momentos de observação mais distanciada, como depois teremos no filme,
quando Zé Galego é visto durante o trabalho na fazenda. É um exemplo do que
Thomas Waugh (2011) chama de “presentational performance”, em que há “[...]
uma consciência da câmera, mais do que uma não-consciência, de apresentarse para a câmera [...]98” (WAUGH, 2011, p.76). O autor utiliza o termo em
oposição a “representational performance”99, um tipo de performance em que o
personagem não olha para a câmera, fingindo que ela é invisível, como se não
tivesse consciência de estar sendo filmado, como se estivesse “agindo
naturalmente”100. Tal convenção é inerente às produções do direct cinema, por
exemplo, e à maioria dos filmes de ficção.
Os documentários de Paulo Gil Soares são bastante apoiados em
entrevistas, por isso há predominantemente situações de “presentational
performance”; há também momentos que aparentam um “agir natural” (a beata
mais velha que aborda Frei Damião, por exemplo); outros personagens realizam
Trecho extraído do original: The convention of performing an awareness of the camera rather
than a nonawareness, of presenting oneself explicitly for the camera – the convention the
documentary cinema absorbed from its elder sibling photography – we shall call ‘presentational’
performance (WAUGH, 2011, p.76).
98
Preferimos manter os dois termos em inglês, ainda que uma tradução seja possível, algo como
“performance de apresentação” e “performance representacional” ou de representação.
99
A expressão “agir natural” é emprestada do documentarista holandês Joris Ivens, de um texto
escrito por ele em 1940, intitulado “Colaboration in Documentary”, no qual conta como dirigia os
personagens de seus filmes, que é citado por Brian Winston.
100
124
“presentational” e “representational” performances (como o próprio Frei Damião),
não sendo nossa intenção aplicar as reflexões de Thomas Waugh no sentido de
verificar qual personagem realiza esta ou aquela performance. Fizemos a
consideração sobre Zé Galego porque se trata de um personagem que não
apenas é convocado para dar entrevista ou mostrar uma situação de trabalho na
fazenda, como ocorre com outros personagens que são “outro de classe”.
Destacam-se seus gestos e sua vida mais do que de qualquer outro. Há
uma novidade, pois temos acesso à sua família, o que não ocorre nem nos
demais filmes de Paulo Gil Soares nem de outros realizadores na Caravana
Farkas101. Sua esposa é apresentada pelo vaqueiro, em off (aos 14’43’’), vista
costurando, cozinhando e separando o leite. Do lado de fora da casa, em
primeiro plano, dá um depoimento orgulhosa da profissão do marido, que por
vezes soa artificial e ensaiado, mas não deixa de ser incomum:
Gosto muito da vida de Zé ser vaqueiro [...] Eu não casei com lavrador
porque não gosto de trabalhar na roça, não gosto de aproveitar a
colheita. Casei, sim, com vaqueiro, porque gosto muito de leite e acho
muito bonito ver quando o gado sai do curral e quando entra à
tardezinha.
A mulher ainda fala a respeito dos dois filhos, em off, que são vistos em
plano conjunto brincando com um bezerro em um cercado da casa. Ela afirma
que ambos só dizem que “[...] quando crescerem vão ao mato, derrubar gado” e
que talvez sigam a profissão do pai, em seguida ouvido em off comentando sobre
o mesmo assunto. Mesmo que o tema ainda gire em torno da questão do
trabalho de vaqueiro, que é central para o documentário, conhecemos aspectos
daquele indivíduo, Zé Galego, mais do que de qualquer outro.
O personagem também dá depoimento sobre a profissão na metade do
filme, alternado com os de outros vaqueiros da fazenda. A situação de entrevista
não é assumida, ou seja, não vemos o cineasta ou ouvimos as perguntas que
faz; os personagens respondem diretamente à câmera. Em primeiro plano e
apoiado no lombo de seu cavalo, Zé Galego parece à vontade ao falar sobre os
melhores animais para o trabalho e de sua relação com a profissão:
Estamos considerando os realizadores da 1ª e 2ª fases da Caravana Farkas (1964-1970),
mesmo período em que Paulo Gil Soares participou da experiência.
101
125
Me criei trabalhando na agricultura, mas nunca dei valor, né. Aí saltei
da agricultura e fui trabalhar no D.E.R., trabalhei dez anos, mas
também não tirei futuro nenhum. Aí entrei na vida de gado e até hoje
não tou arrependido de jeito nenhum. E aonde existe boi e cavalo bom
eu tou encostado a eles.
Sua fala faz coro à de outros vaqueiros jovens e se opõe a um vaqueiro
mais velho, o único que reclama da profissão. Há ainda um momento de
performance musical (aos 15’57’’), quando Zé Galego e os demais demonstram
para a câmera como aboiam, como é o canto que entoam junto ao gado nos
trabalhos no campo. Cada um tem um “estilo” de aboio, embora o gesto seja
comum a todos, o de colocar uma das mãos sobre uma das orelhas. O canto
substitui suas falas, servindo como um elemento que os identifica, mesmo que
só saibamos o nome de um deles. Além de documentá-los, o filme incorpora
esses aboios à trilha musical em ocasiões diversas.
Ainda que o filme mostre outros vaqueiros e incorpore seus depoimentos,
Zé Galego destaca-se entre eles. É o único identificado, temos acesso a
aspectos de sua vida pessoal, ao seu aboio e sua relação com a câmera é
próxima, verificada nas primeiras tomadas do documentário. Zé Galego
personifica o mito do vaqueiro da literatura de cordel, por meio do jogo entre
imaginário e concreto que o filme sugere em seus momentos iniciais. Podemos
considerá-lo construído como um “herói do cotidiano”:
A escolha de um ‘herói’, seja simpático ou antipático, oferece um lugar
ao espectador que lhe permite situar-se em relação a ele. Ao expor
suas dificuldades, o espectador é convidado a compartilhar as
preocupações e a preocupar-se com seu destino (...) A heroicização
de um determinado ‘personagem’ (...) permite jogar com os
sentimentos: o medo (...), a pena (...), a simpatia (COLLEYN apud
VALLEJO, 2011, p.76)102.
Segundo Vallejo (2011), a construção de um personagem em um
documentário como herói ou, ainda, como anti-herói, relaciona-se com a “visão
e o juízo ideológico do realizador sobre o ator social” (VALLEJO, 2011, p.77).
No original: […] la elección de un ‘héroe’, ya sea simpático o antipático, ofrece un lugar al
espectador que le permite situarse en relación a él. Al exponer sus dificultades, se invita al
espectador a compartir las preocupaciones y a inquietarse por su suerte (...) La heroización de
un determinado ‘carácter’ (...) permite jugar con los sentimientos: el miedo (...), la pena (…), la
simpatía (COLLEYN apud VALLEJO, 2011, p.76).
102
126
Neste sentido, podemos sugerir que Zé Galego coincide com o vaqueiro
idealizado por Paulo Gil Soares:
[...] em têrmos de mito, o realmente corajoso, o bravo, o de destreza
assegurada e manifesta em trabalhos rurais, é o vaqueiro. Dêle a
responsabilidade de levar grandes manadas ao campo, para os pastos
de engorda, ou as grandes viagens para as feiras de gado. Dêle falam
os cancioneiros, nas festas tradicionais que cantam suas lutas contra
bois valentes e ardilosos. Com êles sonham as mocinhas nas noites
longas sem chuvas dos sertões nordestinos. Não é, de resto, o
vaqueiro o último cavaleiro ainda com armaduras, como se estivesse
sempre pronto para antigos torneios medievais? A roupa do cavaleiro
deixou de ser de metal; hoje é de couro, mas ainda guarda um gôsto
de arnês (SOARES, 1969, s/p)103.
Concomitantemente, Zé Galego é tanto o “homem de couro” universal, no
sentido do mito em torno do vaqueiro, quanto aquele sujeito em particular, com
esposa e dois filhos, que trabalha das 6 às 6 na fazenda Jaramataia, no interior
da Paraíba. Uma crítica de O homem de couro publicada em 1971, no Jornal do
Brasil, aponta para o diálogo entre coletivo e subjetivo existente no filme, para
um distanciamento e ao mesmo tempo aproximação com aqueles que retrata:
São 22 minutos em que, a paixão se sucedendo ao distanciamento,
Paulo Gil consegue brincar com as emoções do espectador [...] a
paixão pelo tema suplanta o distanciamento crítico (que nunca falta,
assim como a denúncia de um status determinado). Por isso mesmo,
a distante irritação é suplantada pela aproximação emotiva (CUNHA,
1971, p.14).
O “distanciamento crítico” a que o texto faz referência podemos interpretar
como sendo a já reiterada aspiração do cineasta-intelectual em ser “porta-voz”
do povo, uma postura sociológica diante do outro, que o dissolveria da condição
de sujeito para torná-lo um objeto de estudo, alguém que fala no filme para
comprovar uma tese. Já a “aproximação emotiva” refere-se à tentativa de dar a
conhecer o outro não como categoria, mas como indivíduo, sendo O homem de
couro exemplar nesse sentido.
Se a constante dialética coletivo/individual com o “outro de classe” nos
filmes de Paulo Gil Soares aponta para uma leitura que vai além do “modelo
sociológico” de documentário, como tentamos demonstrar neste capítulo,
Trecho do texto de apresentação de O homem de couro, escrito por Paulo Gil em 1969, que
consta no material publicitário do filme.
103
127
também aplicável aos personagens com poder, outro aspecto também contribui
para tal: a incorporação de materiais da cultura popular que ultrapassam a
documentação, tornando-se elemento estético-discursivo nos documentários, o
que será discutido no próximo capítulo.
128
CAPÍTULO 3 – A APROPRIAÇÃO DA CULTURA POPULAR
Neste capítulo, discutiremos como se dá o diálogo entre a cultura popular
e os documentários de Paulo Gil Soares, realizados na experiência da Caravana
Farkas. Longe de definirmos o termo, dada a dificuldade de tal tarefa, como
alerta Marilena Chauí (1984 e 1986), o objetivo é compreender qual ideia de
popular está implicada nos filmes e de que maneira a incorporação de
determinados materiais interfere no discurso de alguns dos documentários.
Nosso primeiro movimento será o de perceber como algumas das ideias
da arquiteta italiana Lina Bo Bardi (1914-1992) acerca do popular se manifestam
nos filmes do diretor, lembrando que um dos títulos, A mão do homem, é
dedicado a ela, informação que aparece nas cartelas iniciais. Tal perspectiva
inclui de fundo a compreensão do popular para os cineastas da geração do
Cinema Novo brasileiro, embora não seja nosso intuito mapear suas várias
vertentes, considerando também a existência de um diálogo ainda mais amplo,
com cinematografias de outros países da América Latina, realizadas entre 1960
e 1970, o chamado Nuevo Cine Latinoamericano (NCL).
Em um segundo momento, entraremos propriamente na análise de
materiais populares que aparecem em três documentários: Memória do cangaço,
Vaquejada e O homem de couro. Escolhemos estes títulos porque neles a cultura
popular, em especial a poesia, potencializa seus discursos mais do que em
outros filmes de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas. Para além da
documentação, a poesia popular, notadamente a extraída dos folhetos de cordel,
torna-se importante elemento estético-discursivo (seja pela incorporação na
locução ou na trilha musical), deixando em relevo conflitos entre o saber do
cineasta e o saber popular.
3.1 – Diálogos com Lina Bo Bardi
Desde Memória do cangaço, a cultura popular está presente nos
documentários de Paulo Gil Soares: os versos musicais improvisados pelos
violeiros, a literatura de cordel recitada pela narração ou musicada pelo cantador
popular, a música de pífanos, os aboios dos vaqueiros nordestinos, as cartelas
de apresentação com desenhos inspirados nas xilogravuras dos folhetos de
129
cordel, os cantos de orixás. A partir do que defende Marilena Chauí (1986),
apoiada no pensamento de Antonio Gramsci105, estamos tomando as
manifestações da cultura popular como sendo as “expressões dos dominados”,
que ocorrem dentro de uma cultura dominante, muitas vezes para resistir a ela:
[...] um conjunto de práticas, representações e formas de consciência
que possuem lógica própria (o jogo interno do conformismo,
inconformismo e resistência), distinguindo-se da cultura dominante
exatamente por essa lógica de práticas, representações e formas de
consciência (CHAUÍ, 1986, p.25)106.
Incorporar manifestações da cultura popular – como as mencionadas –
nos filmes era uma das tônicas do Cinema Novo brasileiro da década de 1960
em sua pretensão de atingir o povo, o que significaria fazer um cinema popular,
tornando-o um “instrumento de descoberta e reflexão sobre a realidade nacional”
(BERNARDET e GALVÃO, 1983, p.139)107. Um depoimento de Cacá Diegues
parece resumir a compreensão de muitos cineastas à época: “[...] parte-se das
raízes culturais nacionais do povo, transforma-se o folclore popular, a tradição
literária, as lendas, os mitos, apresentando ao povo, com linguagem mais
elaborada, aquilo que já lhe pertence” (DIEGUES apud BERNARDET e
GALVÃO, 1983, p.140).
Pensa-se o nacional e o popular no Cinema Novo não apenas em termos
de conteúdo, como se fazia até meados da década de 1950, mas também como
um caráter que deveria estar contido na linguagem dos filmes. Em suas primeiras
produções, buscam-se as “raízes culturais nacionais do povo” sobretudo no
Nordeste, tido como “[...] lugar mítico para compreender a brasilidade e discutir
a identidade nacional” (LUCAS, 2012, p.119). Justamente por meio da
reelaboração dessas raízes, mencionada por Diegues, seria possível
conscientizar o povo. Contraditoriamente, conforme assinalam Bernardet e
O filósofo marxista italiano será novamente mencionado mais adiante, quando da
aproximação entre seu pensamento e as ideias de Lina Bo Bardi.
105
Ao considerar a cultura popular dentro dessa lógica, Marilena Chauí manifesta a possibilidade
de seu caráter ambíguo, aspecto trabalhado pela autora em suas análises.
106
A problemática do nacional e do popular também estava em pauta para cineastas de outros
países da América Latina entre as décadas de 1960 e 1970, dentro de um movimento mais
amplo, conhecido como Nuevo Cine Latinoamericano (NCL). Ver: BURTON (1990).
107
130
Galvão (1983), isso teria feito com que os filmes se elitizassem e não atingissem
o povo, sendo esta uma das críticas ao Cinema Novo brasileiro – sobretudo aos
primeiros filmes.
Pensando na Caravana Farkas, há alinhamento com essa proposta,
lembrando também que todos os 19 filmes da 2ª fase de produção foram
realizados no Nordeste e, no caso de Paulo Gil Soares, também o documentário
sobre o cangaço, ainda na 1ª fase. No entanto, conforme nos relatou Sergio
Muniz em entrevista, a escolha em documentar a região teve muito mais a ver
com uma facilidade de produção – já que Geraldo Sarno e Paulo Gil eram
nordestinos, da Bahia, e já conheciam pessoas, lugares e temas – do que com
uma predileção pelo Nordeste nos moldes do cinema ficcional. A ideia de Farkas,
como já explicamos, era “mapear” o país, o que acabou não acontecendo. De
toda forma, a aproximação é possível pelo resultado dos filmes, que se
configuram como um crítico retrato social, econômico e cultural da região.
De acordo com D´Almeida (2003), os documentários realizados no
Nordeste têm a intenção de divulgar e preservar a cultura popular,
problematizando-a:
Os documentários partem do pressuposto de que o avanço dos meios
de comunicação, na sociedade capitalista, implica a desintegração –
desaparecimento ou transformação – da cultura popular e dos ‘valores
tradicionais’. Apresentam, ao mesmo tempo, a visão romântica do
popular, entendido como autêntico, ‘puro’, e a ilustrada, designando-o
como rústico e primitivo. Não se chega a uma síntese e a cultura
popular, ainda presente no mundo rural, é apresentada como algo em
vias de extinção (D´ALMEIDA, 2003, p.135).
O autor faz referência às visões “romântica” e “ilustrada” da cultura
popular relatadas por Marilena Chauí (1986), que considera ter havido no Brasil
– sobretudo na década de 1960, mas também em outros períodos – uma
oscilação entre os dois pontos de vista, sendo os casos mais interessantes
aquelas experiências que tentam uma “conciliação” de ambos, como parece ser
a Caravana Farkas: “[...] a Razão ‘vai ao povo’ para educar sua sensibilidade
tosca (eis o papel das vanguardas políticas), e o Sentimento ‘vai às elites’ para
humanizá-las (eis o papel das vanguardas artísticas)” (CHAUÍ, 1986, p.21-22).
Observando nos filmes como se dá a incorporação da cultura popular,
essa “conciliação” – o que não significa ausência de contradições – fica mais
131
evidente, conforme veremos posteriormente nas análises de três documentários
de Paulo Gil Soares. Antes, consideramos necessário discorrer sobre as ideias
acerca do popular de uma figura citada pelos integrantes da Caravana como
referência importante, explicitamente homenageada no filme A mão do homem,
de Paulo Gil: a arquiteta italiana Lina Bo Bardi.
Lina despertou na Bahia, e creio que um pouco pelo Nordeste, na
minha geração, essa coisa da importância e do significado da arte
popular, a arte popular como modelo, como geradora de formas para
um design, para um processo de industrialização do país. Eu penso
que esse era o núcleo do trabalho da Lina. Ela não pensava a arte
popular como coisa estagnada, de museu, morta. Ao contrário, ela
percebia a vitalidade dessas formas, a criatividade dessas formas. Há
uma frase dela (eu me lembro com uma clareza absoluta, ela me
dizendo isso): ‘Sob a pobreza e a miséria do povo nordestino tem uma
riqueza de formas, única, e é uma pena que o país não se aperceba
disso’. Esse era o objetivo dela. Era uma coisa vital, era uma coisa de
aproximação vital mesmo. De não fazer que certas formas que vem do
povo se percam no processo de desenvolvimento econômico, da
industrialização. Sou de uma geração que tem vinculação com a
questão nacional, a questão da identidade brasileira: Pra onde vai este
país? Qual é a nossa responsabilidade? Enorme! O que se percebia é
que havia um mundo em transformação, via-se com clareza que aquele
processo da cultura popular estava em transformação, e que era
necessário flagrar pela imagem alguma coisa daquele mundo, a gente
precisava fazer alguma coisa até para preservar a imagem de certas
formas. Qual é o objetivo? O objetivo é pesquisar, o objetivo é didático,
é guardar, preservar, na imagem e no som (SARNO, 2006, p.21)108.
Na declaração de Geraldo Sarno, além da interpretação que o cineasta
faz das ideias de Lina Bo Bardi, sobre as quais falaremos adiante, temos o
reconhecimento da arquiteta como figura que influenciou uma determinada
geração. Lina foi uma das pessoas que participaram ativamente de um momento
de efervescência cultural da Bahia, entre as décadas de 1950 e 1960, quando
artistas e intelectuais, com afinidades políticas, ideológicas e estéticas,
conviveram em Salvador, resultando em movimentos como o Cinema Novo e a
Tropicália. Além de Lina, o filósofo português Agostinho da Silva, os artistas
plásticos Mário Cravo e Carybé, o maestro alemão Hans-Joachim Koellreutter, o
etnólogo e fotógrafo francês Pierre Verger, o diretor de teatro Martim Gonçalves,
Vários documentários de Geraldo Sarno na Caravana Farkas, além de incorporarem a cultura
popular como elemento estético, a tomam como temática diretamente. São exemplos Jornal do
sertão (1970), que trata da literatura de cordel, e A cantoria (1970), que mostra o desafio entre
dois repentistas nordestinos. As concepções de cultura popular para Sarno neste momento estão
bastante vinculadas também às pesquisas realizadas pelo IEB (Instituto de Estudos Brasileiros)
da USP, órgão que inclusive foi acionado pelo diretor e por Farkas em 1966 para coproduzir os
filmes, o que não ocorreu. Sobre este aspecto na obra de Sarno, ver: SERRA (2013).
108
132
o crítico de cinema Walter da Silveira, entre outros, inspirariam com suas ideias
e ações jovens como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rogério Duarte, Glauber
Rocha, os já citados Sarno e Paulo Gil, e tantos outros. De acordo com Antonio
Risério (1995):
[...] o que ocorreu na Bahia, entre as décadas de 50 e 60, foi uma
convergência excepcionalmente feliz. Numa cidade culturalmente
forte, em termos populares, um governador e um reitor, principalmente
este, resolveram investir na inteligência, nos campos humanístico e
científico (não se deve esquecer que Edgard criou também, ao lado da
Escola de Teatro e do Seminário de Música, a Escola de Geologia e o
Instituto de Física). Formou-se, assim, o eixo Museu de Arte ModernaUniversidade da Bahia. As pessoas contratadas para coordenar esses
trabalhos – de Agostinho da Silva a Lina Bo, passando por Martim
Gonçalves e Koellreutter – levavam consigo informações fundamentais
da modernidade estético-intelectual, incluindo aí o precioso repertório
das experiências da avant-garde. Tais informações caíram em solo
fértil – a juventude universitária baiana, movendo-se de modo livre e
inventivo, num período em que a democracia e a confiança no futuro
imperavam nas quatro partes do país. Por fim, em meio a essa
juventude, despontariam novos artistas, capazes de imprimir direções
inovadoras ao curso da produção estética e intelectual brasileira
(RISÉRIO, 1995, p.144).
Segundo Marina Grinover (2010), tal convergência foi alavancada por um
cenário político oportuno, já que esses artistas maduros, de formação
modernista, são convocados pela elite política e acadêmica de Salvador – esta
centralizada na figura de Edgard Santos, reitor da Universidade Federal da Bahia
– com o intuito de:
[...] dar corpo teórico ao projeto de inclusão da Bahia no processo de
desenvolvimento do Nordeste. Este plano político-cultural era
harmonizado com as estratégias do governo federal de Juscelino
Kubitschek, com suas propostas progressistas da construção de
Brasília e do plano de Metas. O momento era da criação da SUDENE,
presidida por Celso Furtado cujo objetivo era o desenvolvimento do
Nordeste no caminho da industrialização; dos projetos da UNE de
alfabetização e politização do sertão com a formação dos CPCs e das
Ligas Camponesas. Neste ambiente progressista floresceram as ideias
de Lina Bo Bardi de comunhão entre a arte popular e a indústria
nacional (GRINOVER, 2010, p.3).
São algumas das referidas ideias de Bo Bardi acerca da arte/cultura
popular que nos interessam aqui, especialmente as amplificadas no período em
que viveu em Salvador, entre 1958 e 1964, quando dirigiu o MAMB (Museu de
Arte Moderna da Bahia), para o qual idealizou um projeto de museu educativo
133
que deveria promover o diálogo entre a cultura popular nordestina e a arte
moderna e contemporânea. Em 1963, a arquiteta inaugurou o Museu de Arte
Popular (MAP) dentro de uma nova sede do MAMB (antes ele ocupava o teatro
Castro Alves), no conjunto arquitetônico Solar do Unhão, localizado no centro da
capital soteropolitana, que foi restaurado por ela. A aproximação de “Dona Lina”
– como era chamada pelos mais jovens – com alguns cineastas baianos se dá
nesses anos. É preciso enfatizar a convivência da arquiteta com Glauber Rocha
e Paulo Gil Soares, no final da década de 1950, na redação do jornal Diário de
Notícias de Salvador, onde os dois trabalhavam e Lina escrevia uma coluna
dominical (intitulada “Olho sobre a Bahia”), e nas filmagens de Deus e o diabo
na terra do sol, já na década de 1960, apenas para mencionar duas
circunstâncias.
Para a exposição de abertura do MAP, intitulada Nordeste109, Lina
escreveu o texto “Civilização do Nordeste”, sintetizando sua proposta de debate
cultural:
Esta exposição que inaugura o Museu de Arte Popular do Unhão
deveria chamar-se Civilização do Nordeste. Civilização. Procurando
tirar da palavra o sentido áulico-retórico que a acompanha. Civilização
é o aspecto prático da cultura, é a vida dos homens em todos os
instantes. Esta exposição procura apresentar uma civilização pensada
em todos os detalhes, estudada tecnicamente (mesmo se a palavra
técnico define aqui um trabalho primitivo), desde a iluminação até as
colheres de cozinha, as colchas, as roupas, bules, brinquedos, móveis,
armas.
É a procura desesperada e raivosamente positiva de homens que não
querem ser ‘demitidos’, que reclamam seu direito à vida. Uma luta de
cada instante para não afundar no desespero, uma afirmação de
beleza conseguida com o rigor que somente a presença constante
duma realidade pode dar.
Matéria prima: o lixo.
Lâmpadas queimadas, recortes de tecidos, latas de lubrificantes,
caixas velhas e jornais. Cada objeto risca o limite do ‘nada’, da miséria.
Esse limite e a contínua e martelada presença do ‘útil’ e ‘necessário’ é
que constituem o valor desta produção, sua poética das coisas
humanas não-gratuitas, não criadas pela mera fantasia. É neste
sentido de moderna realidade que apresentamos criticamente esta
exposição. Como exemplo de simplificação direta de formas cheias de
eletricidade vital. Formas de desenho artesanal e industrial. Insistimos
na identidade objeto artesanal-padrão industrial baseada na produção
técnica ligada à realidade dos materiais e não à abstração formal
A exposição Nordeste foi dividida em duas partes. Uma que contemplava obras de artistas
plásticos nordestinos já conhecidos e uma outra com cerca de 1.000 objetos coletados em feiras
populares, como enfeites para casa, bules feitos de latas de manteiga, ex-votos, vasos, cestas,
lamparinas, roupas. Ver: RUBINO (2002) e RODRIGUES (2008).
109
134
folclórico-coreográfica. Chamamos este Museu de Arte Popular e não
de Folklore por ser o folklore uma herança estática e regressiva, cujo
aspecto é amparado paternalisticamente pelos responsáveis da
cultura, ao passo que arte popular (usamos a palavra arte não somente
no sentido artístico, mas também no de fazer tecnicamente), define a
atitude progressiva da cultura popular ligada a problemas reais.
Esta exposição quer ser um convite para os jovens considerarem o
problema da simplificação (não da indigência), no mundo de hoje;
caminho necessário para encontrar dentro do humanismo técnico, uma
poética.
Esta exposição é uma acusação.
Acusação dum mundo que não quer renunciar à condição humana
apesar do esquecimento e da indiferença. É uma acusação nãohumilde, que contrapõe às degradantes condições impostas pelos
homens um esforço desesperado de cultura. (BARDI, 1994, p. 34-39)
[grifo original]
Na interpretação de Silvana Rubino (2002), sobretudo a partir deste texto,
há a sugestão de que a pobreza e seus objetos sejam apropriados política e
esteticamente “[...] para fazer frente a um projeto de industrialização submisso e
alienante” (RUBINO, 2002, p.191). Lina via nesses objetos que compuseram a
exposição, oriundos da “pobreza e da miséria do povo nordestino”, uma “riqueza
de formas”, conforme mencionou Geraldo Sarno em citação anterior. Rubino
(2002) completa a análise:
Para quem o discurso apropriado era então devolvido? Para o produtor
daquele objeto, que se via exposto no museu, como Mestre Vitalino,
considerado autenticamente popular, alçado à categoria de artista; e
para a elite nordestina que certamente tinha uma ligação no mínimo
ambivalente com seus setores pobres e seus objetos. Acusa-se, mas
se estetiza; ou o contrário [...] Civilização nesse contexto era um
conceito includente, que de um lado, apesar da advertência mantinha
o caráter retórico da superioridade daqueles que eram civilizados e de
outro, buscava despir essa conotação mergulhando na peculiar noção
prática de cultura que é a cultura do modo de vida (RUBINO, 2002,
p.192).
Machado e Santos (2009) acreditam que o interesse de Lina era “[...]
documentar a capacidade de invenção do povo para dobrar as barreiras da
pobreza, em favor de sua sobrevivência” (2009, p.8). Os autores abordam outros
textos da arquiteta sobre o popular e alertam para ambiguidades quanto a
valoração de determinadas manifestações. É o caso da literatura de cordel, que
aparece em “Arte popular nunca é kitsch” como “bonitinha” e vista de forma
negativa por Lina:
135
A Arte Popular, julgada Kitsch pela classe ‘culta’, nunca é Kitsch:
mesmo em casos extremos, ela é perfeitamente reversível. O
verdadeiro Kitsch não é do povo, é da burguesia e é irreversível. A
Literatura de Cordel, sob uma aparente revolta e violência, apresenta,
na realidade, uma falsa imagem do homem do Sertão do Nordeste –
simples e bondosa. Assim como a cerâmica ‘figurativa’, aparentemente
irônica, de Caruarú. O homem do Sertão que sorri com bondade dos
‘doutores’, das autoridades, das leis e dos Senhores, simplesmente
não existe: é uma produção ‘bonitinha’, que se repete ad usum dos
visitantes, nacionais e estrangeiros, das feiras e dos mercados (BARDI,
1994, p.31-32).
No texto, Lina valoriza os objetos utilitários, como colchas, roupas feitas
com restos de tecidos, jogo de colheres de pau, que indicam a “capacidade de
sobrevivência do povo nordestino”, retomando aspectos do texto para a
exposição Nordeste. Apesar da crítica à literatura de cordel, considerando-a
kitsch por ter sido incorporada pela “burguesia”, é sua referência, por exemplo,
para produzir os cartazes da referida mostra e do filme Bahia de todos os santos
(Trigueirinho Neto, 1960), com desenhos inspirados em xilogravuras de folhetos.
Além disso, a própria exposição tinha um painel onde ficavam pendurados
alguns deles. A partir dessas imprecisões, Machado e Santos (2009) tentam
entender o que estava em pauta na concepção de popular da arquiteta:
Sua conceituação de ‘popular’ possivelmente passava pela construção
de uma produção alternativa – daí a necessidade de uma separação
radical. Lina define radicalmente esse parâmetro: faz um corte incisivo
entre produção positiva e negativa no terreno pantanoso dessa
produção, os valorando a partir da relação social de cada objeto
(MACHADO e SANTOS, 2009, p.7). [grifos nossos]
Nos documentários da Caravana Farkas, o cordel é uma das
manifestações mais recorrentes, o que não invalida aproximá-los das ideias de
Lina Bo Bardi porque, para além de algumas incoerências entre suas colocações
conceituais e suas práticas, como a mencionada, nos interessa perceber nos
filmes como se dá aquilo que a arquiteta preconiza em torno do popular de
maneira mais geral. Aspectos como a valorização e a preservação do que é
produzido pelo povo, a vinculação dessa cultura a uma questão de classes, a
necessidade do popular ser emancipado através da mediação do intelectual.
Machado e Santos (2009), Rubino (2002) e Grinover (2010) apontam para
a influência que Lina Bo Bardi teve do filósofo marxista italiano Antonio Gramsci
– ela chega a citá-lo em alguns textos –, um dos fundadores do Partido
136
Comunista na Itália, convergindo com seu pensamento em torno do papel
educativo da arte e sua concepção de cultura nacional-popular. Recorremos a
uma citação mais extensa de Marilena Chauí (1984), que explica algumas
noções para ele:
Nacional como resgate de uma tradição não trabalhada ou manipulada
pela classe dominante, popular como expressão da consciência e dos
sentimentos populares, feita seja por aqueles que se identificam com o
povo, seja por aqueles saídos organicamente do próprio povo, a cultura
nacional-popular gramsciana possui um aspecto pedagógico que não
pode ser negligenciado. Aliás, Gramsci vai muito longe nesta questão,
pois declara que há uma diferença entre o intelectual-político e o
intelectual-artista. O primeiro deve estar atento a todos os detalhes da
vida social, a todas as diferenças e contradições e não deve possuir
qualquer imagem fixada a priori. Em contrapartida, o segundo,
justamente por sua função pedagógica, deve fixar imagens,
generalizar, descrever e narrar o que é e existe, situando-se num
registro temporal diferente daquele do intelectual-político que visa o
que deve ser e existir, o futuro (CHAUÍ, 1984, p.17-18)110.
Ao tomar objetos populares para expô-los em um museu, Lina promove
ao mesmo tempo a valorização dos saberes populares e obrigatoriamente os
modifica – Silvana Rubino (2002) fala em estetização –, já que é preciso
catalogar, reorganizar, pensar em uma cenografia e “criar uma atmosfera” para
que se faça uma releitura dos objetos. Machado e Santos (2009) consideram os
critérios de organização de Lina provenientes de um “olhar moderno” e
exemplificam:
Se numa sala de milagres a massa disforme de objetos amontoados
alude ao gesto de agradecimento pela graça alcançada, quando os
mesmos são reordenados e expostos em estantes, ganham mais
destaque os critérios utilizados para esta organização e os aspectos
formais dos objetos, como a economia de gestos utilizada em sua
execução e a resultante concisão formal (MACHADO e SANTOS,
2009, p.5).
Trata-se do encontro entre dois saberes, do outro popular e da arquiteta,
que também se dá quando elementos da cultura popular são incorporados aos
documentários de Paulo Gil Soares – o que poderia ser extrapolado para
realizações de outros diretores da Caravana Farkas, com diferentes nuances.
É necessário colocar que as reflexões de Gramsci foram feitas no contexto do Estado fascista
italiano, situação bem diferente do Brasil do início dos anos 1960.
110
137
Desse encontro, que não ocorre sem dissonâncias, é gerado um novo saber.
Conforme sinaliza D´Almeida (2003):
O tema básico que perpassa os filmes [da Caravana Farkas] é o da
cultura de uma classe outra, que está no passado e não tem lugar no
aqui e agora da modernidade. A alteridade e a representação do outro
estão traspassadas pelas diferenças de classe, e o caráter de
resistência cultural e política das manifestações de cultura popular, na
visão dos cineastas, se perde na aparência de um mundo cujo destino
já está traçado: é a extinção.
Os filmes documentários, por outro lado, tornam-se o espaço de
confronto das diferentes culturas e de diálogo entre elas. Novos
significados surgem nesse conflito, atinentes à forma como o cinema
curto registra as manifestações da cultura popular de uma determinada
região, numa determinada época (D´ALMEIDA, 2003, p.4). [grifo
original]
Antes de traçarmos alguns paralelos com os filmes, cabe citar o trecho de
outro texto da arquiteta, “Por que o Nordeste?”, uma espécie de balanço dos
anos em que viveu na Bahia, possivelmente escrito em 1980, de acordo com
pesquisadores de sua obra:
[...] Estas notas são apenas uma documentação. Dezesseis anos se
passaram do fim de nossa tentativa de realizar (em condições
excepcionalmente favoráveis) uma experiência popular direta.
No Nordeste, no Polígono da Sêca.
Hoje, no balanço da falência cultural, quando as premissas de toda
uma cultura já respeitada atingem quase o ridículo, é preciso aceitar
sem medo a verdade.
Nem todas as culturas são ‘ricas’, nem todas são herdeiras diretas de
grandes sedimentações. Cavocar profundamente numa civilização, a
mais simples, a mais pobre, chegar até suas raízes populares é
compreender a história de um País. E um País em cuja base está a
cultura do Povo é um País de enormes possibilidades (BARDI, 1994,
p.20). [...] [grifo original]
Conforme apontam Machado e Santos (2009), Lina faz uma associação
entre identidade nacional e “raízes populares”. Há a ideia de “descobrir o país”
por meio de sua cultura, sendo possível uma analogia tanto com aquele
depoimento do cineasta Carlos Diegues, que resume uma das posturas do
Cinema Novo, quanto com a proposta da Caravana Farkas. Nossas reflexões a
partir de então se dão em torno de uma questão mais específica: como algumas
marcas do pensamento de Lina Bo Bardi acerca do popular se manifestam nos
documentários de Paulo Gil Soares?
138
Uma aproximação entre as práticas e ideias da arquiteta e o cinema foi
feita por Marina Grinover (2010), no artigo “Lina Bo Bardi e Glauber Rocha:
diálogos para uma filosofia da ‘práxis’”, em que relaciona Lina Bo Bardi com o
cineasta Glauber Rocha, propiciando um debate a partir da análise das
trajetórias e escritos dos dois artistas, mais do que das obras em si. Nossa
proposta, diferentemente, é um olhar para dentro dos filmes de Paulo Gil Soares.
Falemos de A mão do homem, que explicitamente é dedicado à arquiteta.
O próprio título remete à exposição A mão do povo brasileiro, realizada por Lina
em 1969 – mesmo ano do filme –, para inaugurar a nova sede do Masp (Museu
de Arte de São Paulo), com parte do material exibido anos antes em Nordeste,
no MAP de Salvador111. O documentário tem como tema o artesanato popular e
não se limita a mostrar como são feitos os objetos pelos artesãos, colocando
também os problemas que eles enfrentam: a industrialização como ameaça à
produção manual, o pouco ganho com o trabalho, a dependência do
comerciante. Pode ser lido também como uma “acusação”, retomando o que Lina
afirmou ser a exposição Nordeste, no texto que escreveu para sua abertura.
Algumas passagens da locução repetem seus termos: “primitivo” (ouvido
bastante em outros filmes também), “produção relacionada ao útil e necessário”,
“uma poética não criada pela mera fantasia”112. Os artesãos abordados por Paulo
Gil Soares são a corporificação dos “homens que não querem ser ‘demitidos’,
que reclamam seu direito à vida”, referidos pela arquiteta. Valoriza-se o saber
desses homens, transmitido de geração para geração, e dois são entrevistados
em suas casas. Quase metade do filme se detém em mostrar como são
confeccionados a sela e o chapéu de couro; também registra o que eles têm a
dizer sobre o trabalho. Embora afirmem viver em condição precária, não falam
em abandonar o ofício e prezam pela qualidade das peças que produzem – o
primeiro artesão entrevistado fala, por exemplo, que não gostou da sela que fez
–, ecoando ainda outras palavras de Lina, já citadas anteriormente: “Uma luta de
cada instante para não afundar no desespero, uma afirmação de beleza
Em 1969, o Museu de Arte Popular de Salvador não funcionava mais – ele durou apenas dois
anos –, pois, após o golpe militar de 1964, o Exército ocupou o Solar do Unhão. Naquele ano,
Lina Bo Bardi voltou para São Paulo, primeira cidade onde morou no Brasil, sendo responsável
por projetos arquitetônicos de importantes espaços culturais, como o do atual prédio do Masp,
na Avenida Paulista; do Sesc Pompeia, na zona oeste; do teatro Oficina, na região central.
111
112
Ver transcrição da passagem da locução no capítulo 1, item 1.4.
139
conseguida com o rigor que somente a presença constante de uma realidade
pode dar”.
Essa realidade é a miséria, denunciada pelo filme em todos os processos
que resultam nas peças de couro: da retirada da pele do animal à fabricação
manual feita pelos artesãos. Na apresentação da cidade de Umburanas (então
vila), na Bahia, onde o carro-chefe da economia é o artesanato de couro, não há
luz, água encanada, esgoto ou escolas, enfatiza o “diretor-locutor”. Denuncia-se
a situação precária, mas o documentário não aponta possíveis soluções para
que a produção artesanal consiga enfrentar a industrialização. Inclusive, reiterase o fato dos próprios artesãos consumirem o produto industrializado por ser
mais barato que o manual, pesando a ideia de um ciclo permanente para eles,
do qual não há saída.
O filme mostra aspectos do que Lina escreve sobre o artesanato brasileiro
em “Arte popular e pré-artesanato nordestino”:
Não existe um artesanato brasileiro, existem produções esporádicas.
O Brasil será obrigado a enfrentar o problema da verdadeira
industrialização diretamente. As corporações artesanais não entram
em sua formação histórica.
No Nordeste existe, se queremos continuar a usar a palavra
artesanato, um pré-artesanato, sendo a produção nordestina
extremamente rudimentar. A estrutura familiar de algumas produções
como, por exemplo, as rendeiras do Ceará ou os ceramistas de
Pernambuco, podem ter uma aparência artesanal, mas são grupos
isolados, ocasionais, obrigados pela miséria a este tipo de trabalho,
que desapareceria logo com a necessária elevação das rendas do
trabalho rural (BARDI, 1994, p.26). [grifo original]
É relevante citar uma declaração do diretor, em entrevista feita por Miriam
Alencar e publicada em 1968 no Jornal do Brasil, em que aspectos relativos ao
povo e à cultura popular aparecem evidenciados. Embora Paulo Gil Soares não
mencione Lina Bo Bardi diretamente, como fez Geraldo Sarno, percebe-se
convergências entre suas ideias:
Sem pretensão, o cineasta é uma testemunha da vida, no seu sentido
mais extenso – testemunha participante e não mero assistente; o
cineasta deve cobrir acontecimentos passados e presentes, devendo
elaborar essa matéria com a habilidade e a astúcia de um artesão para
que êsse trabalho possa ser jogado para a frente e vir a cobrir um outro
tempo: o futuro, do qual êle deve também ser o construtor. Parece-me
que o cineasta do mundo-sub deve ser forçosamente o representante
da cultura de seu povo, isto é, no caso específico do Brasil, deve
debruçar-se sôbre sua rica, vária e fecunda sapiência popular e
140
arrancar daí matéria-prima para seu trabalho, sem assustar-se com os
maneirismos impostos pelas artes importadas. A partir daí, então,
começamos a sentir a exata necessidade do cinema de pesquisa para
que o cineasta possa dispor de todos os meios desejados de
conhecimento do seu povo e possa expressá-los. No meu caso, sou
fruto de costumes rurais baianos. Usar simplesmente todo êsse vasto
material que povoa meu mundo daria coisas charmosas, e como o que
desejo é representá-lo como uma cultura de raiz, sou obrigado a
conscientizar essa cultura, desmistificando-a em pesquisas, para
transfigurá-la (ALENCAR, 1968, p.8) [grifos nossos].
Mesmo que o diretor afirme não haver pretensão em suas afirmações,
elas conjecturam o papel do cineasta de um país subdesenvolvido (no caso, o
Brasil): alguém que, responsável por construir o “tempo futuro” e acima do povo,
deve representá-lo, reelaborar sua “cultura de raiz” e conscientizá-la. Isso não
significa a desvalorização de manifestações culturais populares, mas a
necessidade de uma mediação para que se revele a “fecunda sapiência” inerente
a elas. É preciso mencionar que Paulo Gil Soares dá seu depoimento a Miriam
Alencar quase quatro anos depois de ter filmado Memória do cangaço – antes
de ter dirigido os demais documentários na Caravana – e no contexto de exibição
do primeiro longa-metragem de ficção que dirigiu, Proezas do satanás na vila do
leva-e-traz (1967), cuja estruturação apoia-se, segundo ele, em “[...] um estudo
de narrativa oral dos cantadores de feira e contadores de histórias ao pé da
fogueira ou de alpendre da fazenda” (Ibidem). Observando os documentários
dirigidos por Paulo Gil na 1ª e 2ª fases da Caravana Farkas, percebe-se a
valorização da cultura popular que, necessariamente, é modificada no interior do
filme, ganhando novos sentidos.
As palavras de Paulo Gil apontam, assim como as de Lina em texto que
citamos anteriormente, para a associação entre nacional e cultura popular, na
busca por uma “cultura de raiz”. Ele afirma a necessidade de utilizar “matériaprima” que vem do povo como forma de não ceder aos “maneirismos” das “artes
importadas”, ou seja, do cinema estrangeiro. Um debate essencial para o
Cinema Novo que, conforme já colocamos, tinha a intenção de tomar o popular
tanto no conteúdo quanto na forma para fazer um cinema popular que,
consequentemente, seria um cinema nacional.
Nos documentários da Caravana Farkas, particularmente os realizados
por Paulo Gil Soares, a cultura popular – a literatura de cordel, a música de
pífanos, os aboios dos vaqueiros, os cantos de orixás – é ao mesmo tempo
141
documentada e integra a linguagem dos filmes, tornando-se elemento estético
que irrompe múltiplos significados. Não há uma rejeição do que vem do povo
e, mesmo que o cineasta fale em “conscientizar” essa cultura, há o
reconhecimento de um valor intrínseco a essas manifestações, reinterpretadas
no interior do discurso fílmico: empresta-se a “sapiência popular” para suscitar
discussões
em
torno
do
rural/urbano,
do
arcaico/moderno,
do
explorador/explorado.
Tomemos o exemplo de um material popular que aparece reinterpretado
num dos documentários de Paulo Gil Soares. Na trilha musical de Erva Bruxa há
dois cantos de orixás que acompanham imagens de homens e mulheres
trabalhando – a maioria negros – em condições precárias nos armazéns de fumo
baianos. O cineasta pega um elemento do ritual religioso da cultura afro, com
forte presença na Bahia, mas não necessariamente conhecido por aquelas
pessoas filmadas, transformando-o em leitmotiv114: sempre que ouvimos a
música, vemos os trabalhadores nos armazéns que, conforme denuncia o filme,
são vítimas do constante desemprego e das “doenças profissionais”
ocasionadas pelo manuseio do fumo sem proteção.
Cantos aos orixás são entoados em cerimônias religiosas africanas,
manifestações que foram trazidas às Américas pelos negros traficados como
escravos – no caso do Brasil, desde 1715 –, sendo sua preservação uma forma
de resistência às humilhações e imposições dos senhores de escravos em
âmbitos diversos, do trabalho à religião. Pierre Verger (2000) afirma que a Bahia
é um dos poucos lugares onde as cerimônias africanas – nesse estado brasileiro
denominadas de candomblé – foram conservadas pelos descendentes dos
negros libertos da escravidão, amparando-os em momentos de dificuldade. Ele
elucida que, durante as cerimônias, os deuses (orixás) evocados pelos cantos
“visitam” o corpo de seus adeptos. Em outras palavras, há o transe. O autor
sugere que o ritual religioso é emancipador: “De empregadas domésticas e
lavadeiras humilhadas, de carregadores e operários mal pagos, eles se tornam
Leitmotiv é o uso de temas musicais curtos ou ideias musicais que se repetem, introduzido
por Richard Wagner em suas composições. No caso dos filmes, o leitmotiv pode aparecer
associado a um personagem, um lugar, um objeto (APPEL e DANIEL apud KASSABIAN, 2001,
p.50).
114
142
filhos e filhas de Deus, respeitados, admirados, cortejados” (VERGER, 2000,
p.24).
A associação dos cantos de orixás às imagens dos operários do fumo na
Bahia em Erva Bruxa retoma, em nossa leitura, a significação que expusemos
acima. Trata-se de uma manifestação atrelada à escravidão e que no
documentário é justamente utilizada como trilha musical das sequências que
mostram trabalhadores nos armazéns em condições desfavoráveis, como se os
escravos de outrora correspondessem agora àquelas pessoas. Retirados do
ritual religioso, os cantos acompanham imagens de trabalho que são um retrato
do subdesenvolvimento, sendo factível o paralelo com Terra em transe (Glauber
Rocha, 1967), filme no qual Paulo Gil Soares fez os cenários e os figurinos, que
também conta com a música do candomblé. No filme de Glauber Rocha, ela
aparece já na abertura do longa-metragem, acompanhando imagens aéreas do
mar, em alusão ao país mitológico de Eldorado, ao “Terceiro Mundo”115.
A relação dos filmes de Paulo Gil Soares com a cultura popular nordestina
tem variações, é claro, diante das proposições de Lina Bo Bardi, entrando em
jogo outras referências. Desta forma, o que tentamos apontar até aqui foram
conexões entre algumas reflexões de uma arquiteta estrangeira que via uma
potência nas formas e materiais da cultura popular do Nordeste, pensando em
uma maneira de incorporá-los ao design industrial, e a prática de um cineasta
baiano que apontou como necessária a apropriação em seus filmes de
elementos dessa cultura, com a qual conviveu desde sempre – Paulo Gil Soares
é “fruto de costumes rurais baianos”, conforme ele próprio afirmou na entrevista
ao Jornal do Brasil, mencionada neste capítulo. Nosso próximo passo será
perceber, em três documentários do diretor, como materiais da cultura popular,
notadamente a poesia da literatura de cordel, tornam-se elemento de tanta
potência para suas narrativas quanto aqueles objetos expostos no museu para
Bo Bardi.
Cf.: XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema
marginal. São Paulo: Cosac Naif, 2013.
115
143
3.2 – Vozes da cultura popular: cordel, aboios e canções
Nas análises que se seguem nossa atenção será voltada aos momentos
em que três documentários de Paulo Gil Soares incorporam materiais extraídos
da cultura popular. A ênfase será dada à poesia tomada dos folhetos da literatura
de cordel e manifestada com mais frequência pela voz over do “diretor-locutor”
ou dos cantadores populares116. A escolha justifica-se porque, partindo da
constatação de que a fala tem grande peso no conjunto de filmes do diretor,
perceber o que diz a poesia popular é oportuno para observar o conflito entre
saberes – o popular e o do cineasta – ao qual nos referimos no início deste
capítulo. Examinaremos situações em que este elemento suscita uma leitura que
acreditamos romper com o “modelo sociológico” de documentário proposto por
Bernardet (2003). Começaremos pelo filme que utiliza a poesia popular de forma
mais pontual e terminaremos com aquele que dá maior espaço a ela na narrativa,
nesta ordem: Memória do cangaço, Vaquejada e O homem de couro. A respeito
deste último, faremos uma análise mais abrangente de sua trilha musical, que
se destaca entre os demais.
Entendemos
que
por
incorporarem
a poesia
popular, os três
documentários podem ser lidos como obras intertextuais, tomando o conceito de
intertextualidade de Gerard Genette (2006), advindo da literatura:
[...] uma relação de co-presença entre dois ou vários textos, isto
é, essencialmente, e o mais frequentemente, como presença efetiva
de um texto em um outro. Sua forma mais explícita e mais literal é a
prática tradicional da citação (com aspas, com ou sem referência
precisa) [...] (GENETTE, 2006, p.8).
Além da poesia, cinco documentários de Paulo Gil Soares tomam do cordel xilogravuras,
utilizadas pelos artistas plásticos Lygia Pape (ela trabalhou apenas em Memória do cangaço) e
Lênio Braga para criarem as cartelas de apresentação dos filmes, fornecendo ao espectador a
materialidade de um universo cultural que tanto introduz a temática quanto comenta as funções
técnicas dos títulos. Por exemplo, há xilogravuras com desenhos de bois nas cartelas de
apresentação de A morte do boi; de vaqueiros com cavalos em Vaquejada e O homem de couro;
de um padre com pessoas em volta em Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges;
de alguns cangaceiros em Memória do cangaço. Com relação ao comentário que os desenhos
fazem das funções técnicas, dois exemplos: quando as cartelas indicam informações sobre a
trilha musical, há desenhos de violeiros; no filme sobre o cangaço, a xilogravura que acompanha
o letreiro da produção executiva é a de um padre entregando uma chave a um cangaceiro.
116
144
Mesma abordagem é feita por Sylvia Nemer (2007) ao tratar das relações
entre o cordel e dois filmes de Glauber Rocha, Deus e o diabo na terra do sol
(1964) e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), nos quais Paulo
Gil foi colaborador. A autora baseia suas análises na ideia de “migrações
culturais”: “[...] o processo de migração da literatura de cordel do seu ambiente
original, caracterizado pela oralidade, para uma realidade estética na qual
predomina a imagem” (NEMER, 2007, p.25)117. Ao contrário das duas ficções de
Glauber, nos documentários que estudamos não é o cineasta quem escreve as
canções populares ou o texto em verso a ser recitado pela locução, baseado na
estrutura da literatura de cordel. Os materiais são “emprestados” de seu
“ambiente original” e incorporados ao discurso documentário do realizador,
ganhando novos significados118.
Trata-se de uma “apropriação da apropriação”, o que a torna ainda mais
instigante. Conforme explica Jerusa Pires Ferreira (1993), algumas poesias
populares do Nordeste que encontramos nos folhetos de literatura de cordel
remontam à literatura culta em prosa das novelas de cavalaria ibéricas
(carolíngias e arturianas) do século XVIII. O que ocorre é uma adaptação feita
pelo poeta popular de temas das novelas europeias, estampando a maneira de
dizer e a realidade nordestinas, nas quais recorrentemente o vaqueiro e o
cangaceiro são os heróis. Por sua vez, tanto o cordel como a literatura culta
europeia originam-se de tradições orais: respectivamente, das cantorias e dos
desafios119, e do trovadorismo oral da Idade Média.
Ao registrar essa manifestação e incorporá-la enquanto elemento estético,
o cineasta introduz em seu filme interpretações da realidade nordestina feitas
pelos poetas populares e dirigidas a um público que se equipara a este em
condição social.
A afirmação da autora acerca do predomínio/superioridade da imagem no cinema é
questionável, sendo uma discussão que não nos cabe no momento.
117
Parece haver uma única exceção neste sentido: a canção de Memória do cangaço, sobre a
qual falaremos adiante.
118
De acordo com Cascudo (1984), o desafio é uma espécie de “luta” entre dois cantadores, em
que a proeza está em continuar os versos do adversário, seguindo a mesma métrica rítmica,
como registra o documentário A Cantoria (1970), de Geraldo Sarno.
119
145
Em termos de ‘cultura letrada’, estes poetas são privilegiados frente ao
seu público, embora compartilhe com ele da mesma cultura de tradição
oral e do mesmo sistema de crenças e valores. Como homens do povo,
através de sua poesia fizeram-se mediadores entre o rural e o urbano,
o litoral e o sertão, a cultura de tradição oral e a cultura escrita (TERRA,
1983, p.38).
É apropriada, portanto, uma narrativa preexistente, escrita por um
“homem do povo”, alguém que não pertence ao universo do cineasta, do
intelectual. Daí falarmos em conflito de saberes. Há uma relação ambígua, pois,
por outro lado, é o cineasta quem seleciona os materiais populares e os organiza
no discurso fílmico. A mediação aqui é de outra ordem. Os filmes tratam do
universo sertanejo nordestino, mas atingem um público que coincide com a
esfera do realizador. Sabemos que a ideia de Farkas era vender os
documentários para escolas e exibi-los na televisão, mas a produção acabou
circulando em cineclubes, faculdades e festivais de cinema.
O cordel ainda pode ser compreendido na qualidade de fenômeno
midiático popular, como defende Vilma Quintela (2012)120. Conhecido como o
“jornal do sertão”121, seus versos eram lidos nas fazendas e nas cidades, sendo
uma das poucas fontes de informação e lazer do sertanejo nordestino até o início
do século XX, lembrando que boa parte da população era analfabeta.
Falemos dos filmes. Nenhum deles informa o nome, a autoria ou a origem
das poesias populares por eles apropriadas, com exceção dos versos escritos
por Lampião, anunciados como tal pela locução em Memória do cangaço. Neste
documentário, os versos populares aparecem sob três formas: na canção
improvisada pelos violeiros João Santana Sobrinho e José Canário, sobreposta
às imagens do coronel Zé Rufino; na narração em voz over de Paulo Gil Soares
que recita trechos extraídos do cordel e os mencionados versos de Lampião para
acompanhar imagens de arquivo de seu bando, filmadas na década de 1930 por
Benjamin Abraão; finalmente, no letreiro que é colocado sobre o último plano do
No artigo “Particularidades do cordel como fenômeno midiático popular”, a autora aponta para
os diálogos entre o cordel e as mídias contemporâneas, como o jornal, o rádio, a televisão e a
internet.
120
Título homônimo do documentário de Geraldo Sarno, de 1970, que explica o ciclo dessa
produção popular: a tradição oral é impressa nos folhetos, retorna oralmente à voz do cantador
e novamente é impressa nos folhetos. Por esse motivo, ainda que tentemos apontar quem
escreveu as poesias, fica difícil uma delimitação tão precisa de seus autores.
121
146
coronel caminhando de costas, “saindo de cena”, em direção a uma plantação
de sua fazenda.
A canção apresenta Zé Rufino ao espectador, poupando a locução de
cumprir esse papel e faz comentários carregados de ironia sobre o personagem
que, como vimos no capítulo anterior, é permeado por ambiguidades. Os versos
aparecem quando vemos o coronel pela primeira vez, caminhando em direção à
câmera, por volta dos 9 minutos: “Aí vem José Rufino / Perseguindo o cangaceiro
/ Que é um homem destemido / No Nordeste brasileiro / Sujeito das pernas moles
/ E tem um dedo ligeiro”. A música retorna nos planos finais do filme: “O coronel
Zé Rufino / Vai voltar pra o Sertão / Descansando a sua vida / E já guardou o
mosquetão / Hoje é um homem pacato / Nos entre lãs do Sertão”.
Mais do que descrever o que estamos vendo (Zé Rufino chegando e indo
embora), a música acrescenta algo que não está nas imagens, ajudando na
construção
do
principal
personagem
do
filme,
caracterizando-o
contraditoriamente como “destemido” e “sujeito das pernas moles”. Cabe notar
que a letra da canção entra no jogo entre passado/presente realizado pelo
documentário: primeiro, fala de Rufino como perseguidor de cangaceiros
remetendo à primeira metade do século XX; depois, como “homem pacato” que
guardou sua arma e descansa no Sertão no tempo presente do filme (década de
1960).
Consideramos que a canção assume nesses dois momentos o papel de
“locutor auxiliar”122, lembrando o que ocorre com a música em Viramundo, de
Geraldo Sarno. No entanto, há diferenças notáveis. Em Memória do cangaço, os
intérpretes são populares, ou seja, estão mais próximos da maioria das pessoas
retratadas pelo documentário, da “experiência”; no filme de Sarno, a música é de
Caetano Veloso, a letra de Capinam e a voz de Gilberto Gil que, apesar de
empregarem a mesma métrica rítmica do cancioneiro popular, não fazem parte
daquele universo. A letra da canção em Viramundo é uma “instância verbal
generalizadora” (BERNARDET, 2003, p.20), cantada em 1ª pessoa, que
Embora Bernardet (2003) tenha empregado o termo para se referir ao papel desempenhado
pelo empresário em Viramundo, considerando-o semelhante ao locutor devido à sua posição de
poder e distância social dos demais entrevistados, acreditamos que a canção também pode ser
tratada como tal pela função que exerce na narrativa, ainda que apresente contradições,
conforme alertado pelo próprio autor.
122
147
contribui para reforçar o que o locutor diz sobre os migrantes nordestinos; já no
filme de Paulo Gil Soares, trata de um personagem em particular, é cantada em
3ª pessoa e faz comentários sobre Zé Rufino de forma irônica, caráter bem
diferente da locução didática e assertiva do diretor123.
São instantes em que a música é o único material sonoro que acompanha
as imagens, exigindo mais atenção do espectador do que uma “música de
fundo”. Trata-se do que Anahid Kassabian124 (2001), autora que propõe algumas
ferramentas para analisar a música em filmes, chama de “continuum de
atenção”, ou seja, o nível de atenção que um determinado material musical pode
demandar para o espectador. Conforme veremos adiante, as canções nos outros
dois documentários abordados também se comportam desta maneira, trazendo
diferentes implicações para suas narrativas.
Voltando ao filme, a poesia popular é ainda tomada pela locução, que
deixa de funcionar como “voz de Deus” para mimetizar um poeta em três
ocasiões. Em uma delas (a partir de 24’10’’), versos escritos por Lampião
misturam-se às informações históricas, reinterpretando o episódio da morte do
cangaceiro; no plano imagético, fotografias, mapas e as imagens filmadas por
Benjamin Abraão na década de 1930. Enquanto Lampião se aproxima da câmera
e a encara mostrando um facão, ouvimos:
Meu rifle atira cantando / Num compasso assustador / Faz gosto brigar
comigo / Porque sou bom cantador / Enquanto meu rifle trabalha /
Minha voz longe se espalha / Zombando da própria dor.
Meize Lucas (2012) avalia: “As imagens deixam de ser ilustrações para
‘ganharem’ voz. Os versos funcionam como um relato, uma memória dos
eventos vividos” (LUCAS, 2012, p.209). Ampliando a afirmação da autora,
consideramos pertinente o fato do eu-lírico dos versos ser o próprio Lampião. Na
impossibilidade do cangaceiro dar um depoimento no filme, eles substituem sua
fala, num jogo entre o concreto das imagens e o imaginário da poesia. Da
Embora não possamos afirmar com certeza, o roteiro de Memória do cangaço dá indícios de
que os versos da canção foram escritos por Paulo Gil Soares e apenas improvisados
musicalmente pelos violeiros.
123
Mesmo que o interesse de Anahid Kassabian seja filmes de ficção hollywoodianos das
décadas de 1980 e 1990, suas ferramentas de análise dialogam com os Estudos Culturais e de
recepção, o que acreditamos ser também eficaz para analisar a música em documentários.
124
148
objetividade de uma narração didática e de fora da “experiência” diante dos fatos,
os versos deslocam o documentário para a subjetividade poética de quem deles
participou, transformando o discurso histórico. A partir da incorporação da poesia
escrita por um cangaceiro, rompe-se com a visão única acerca do tema – de que
o cangaceiro é bandido ou herói –, auxiliando no que o diretor afirmou ser a
pretensão de seu filme: “desmistificar o cangaço” (AYMORÉ, 1965, B5).
Esse elemento configura-se, deste modo, como uma das brechas para ler
Memória do cangaço para além da chave do “documentário sociológico”. Nos
interessa tratar de mais uma situação. No último plano do filme, vemos o coronel
Zé Rufino de costas andando em sua fazenda, como que “saindo de cena”.
Sobre sua imagem, um letreiro com os seguintes versos encerra o filme: “Eu
desejava senhores / Fazer uma estoria exata / Mas como devem saber / Nem
tudo não se relata... / E se eu souber esquecer / Muita vida vou viver...”. Tratase de um trecho modificado do cordel “Visita de Lampião a Juazeiro”, do poeta
popular José Cordeiro, que funciona como um comentário metalinguístico, ou
seja, a respeito do próprio filme125.
É como se o próprio cineasta, a “voz do saber”, dissesse aquelas palavras
aos espectadores, assumindo que o que acabamos de assistir é uma
interpretação do real, não uma “estória exata”. Coloca-se em dúvida o próprio
documentarista e o que foi transmitido, assim como ocorre, ainda que em outros
termos, na sequência com Dadá, sobre a qual comentamos no capítulo 2. Em
nossa leitura, a partir do que propõe Bernardet (2003), nesse instante de
reflexividade provocado pela apropriação dos versos da poesia popular, o
documentário assume tratar-se de um discurso sobre o real. Manifesta-se,
mesmo que não de maneira exacerbada como propõe o autor, o primeiro e o
terceiro elementos, no nível da linguagem, que ele considera indicativos de uma
ruptura com o “modelo sociológico”:
[...] deixar de acreditar no cinema documentário como reprodução do
real, tomá-lo como discurso e exacerbá-lo enquanto tal; quebrar o fluxo
da montagem audiovisual e desenvolver uma linguagem baseada no
fragmento e na justaposição; opor-se à univocidade e trabalhar sobre
a ambiguidade (BERNARDET, 2003, p. 217) [grifos nossos].
Os versos correspondentes de José Cordeiro, que encontramos no folheto de cordel: “Eu
desejava, leitores / Fazer uma história exata / Mas como devem saber que nem tudo se relata /
Mas para ver Lampião / Pobre não tinha razão / Só a tinha os de gravata”. Disponível na
Cordelteca: http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=Cordel&PagFis=56834
125
149
Não estamos, com isso, negando a defesa que o filme faz do “outro de
classe”, especificamente do sertanejo nordestino, por meio do tema do cangaço,
movimento histórico que se propõe a investigar. Há, de fundo, a ideia do
intelectual como porta-voz desse outro, “povo”, e nisso pesa um tom de
superioridade no discurso fílmico. Contudo, nos parece que há brechas dessa
univocidade, um “abaixar o tom” (RAMOS, 2008, p. 399). Também não estamos
fazendo um juízo de valor, propondo que um “documentário sociológico” é bom
ou ruim, mas consideramos Memória do cangaço um exemplo profícuo para
colocarmos em questão a ideia de uma certa lógica evolutiva no documentário
brasileiro, detendo-nos em análises que levam em conta as especificidades de
cada título, em vez de generalizações.
Uma outra leitura para aqueles versos modificados da poesia popular
seria associá-los a Zé Rufino, como se fossem seu pensamento, justamente por
acompanharem sua imagem, quando já não mais ouvimos sua voz, sendo ele o
principal personagem entrevistado no filme. Convém lembrar que o coronel é
desmentido duas vezes: quando troca a data da morte de Corisco e quando
conta sua versão do embate com o cangaceiro, situação que se relaciona tanto
à impossibilidade de uma “estória exata”, quanto ao aspecto da memória que
conduz o documentário, suscitada nos últimos versos: “E se eu souber
esquecer.../ Muita vida vou viver”.
Quando incorporada pelo documentário, a poesia popular é transfigurada
e irrompe múltiplos significados, não mais correspondendo ao sentido dado nos
folhetos de cordel126. Ao observar como se comporta o canto popular em alguns
filmes (ficcionais e não ficcionais) chilenos da década de 1970 e o uso da
literatura de cordel em documentários da 1ª e 2ª fases da Caravana Farkas –
entre eles Memória do cangaço –, Ximena Vergara (2014) considera:
[...] tanto no caso chileno como no brasileiro o cinema toma rotas rurais,
nordestinas, e advoga pelos trabalhadores através de musicalidades
tradicionais. Deste modo, incorporam, documentam ou recriam formas
Em “Visita de Lampião a Juazeiro”, por exemplo, os versos impressos no folheto narram a
visita que Lampião fez à cidade de Juazeiro do Norte, no Ceará, na década de 1920, tendo como
eu-lírico o poeta.
126
150
da poesia popular, que afastam estes filmes de perspectivas pitorescas
(VERGARA, 2014, p.100)127.
Em nosso caso, as poesias populares não são tomadas apenas
musicalmente, mas também recitadas como parte da locução, que nesses
momentos desloca-se de uma objetividade didática e assertiva, bastante
presente em Memória do cangaço, para uma subjetividade poética. A conclusão
de Vergara (2014), ainda, vai ao encontro de uma perspectiva lançada por
Claudia Mesquita (2006) a respeito da música nos documentários da Caravana
Farkas:
Creio que o uso da música reflete uma ‘não coincidência’, uma
explicitação do lugar do realizador, de modo que os filmes, em seu
discurso, acabam por evidenciar um diálogo (ou um confronto) entre
culturas distintas. A colisão da perspectiva do realizador com aquela
dos sujeitos da experiência, com seus trabalhos e saberes, resulta
numa tensão criativa que, em seus melhores momentos, os filmes da
Caravana conseguem expressar – notadamente através da trilha
sonora (MESQUITA, 2006, p.8).
A autora encaminha uma discussão sobre a presença da cultura popular
nesses filmes a fim de apresentar visão distinta da proferida por Jean-Claude
Bernardet (1975) em “O Nordeste congelado pelo cinema”, artigo no qual ele
critica alguns documentários brasileiros, incluindo os produzidos por Farkas,
afirmando que fazem uma “desapropriação de imagens e sons tirados da cultura
popular” porque não são realizados por aqueles que a produzem nem os atinge
como público: não seriam filmes de, mas sobre cultura popular.
Segundo Bernardet (1975), os documentários não problematizariam estas
questões, apresentando-se como “defensores da cultura popular, tentando
coincidir com seus problemas” – daí Claudia Mesquita (2006) falar numa “não
coincidência”. Para nós, concordando com esta autora, interessa mais perceber
de que modo a poesia popular – presente na música, na fala do locutor e, no
caso do documentário sobre o cangaço, também nos letreiros finais – dialoga
com outros elementos nos filmes, mesmo admitindo que estes são sobre cultura
Tradução nossa para: “[...] tanto en el caso chileno como en el brasileiro el cine toma rutas
campestres, nordestinas, y aboga por los trabajadores mediante musicalidades tradicionales. De
este modo, incorporan, documentan o recrean formas de la poesía popular, que alejan a estos
filmes de perspectivas pintoresquistas” (VERGARA, 2014, p.100).
127
151
popular, cujas manifestações necessariamente são transformadas quando
apropriadas pelo cineasta.
Em Vaquejada, a incorporação da poesia popular é mais intensa que em
Memória do cangaço. Os versos acompanham já as primeiras imagens, planos
gerais de vaqueiros correndo com seus cavalos na fazenda Jaramataia, no
interior da Paraíba, onde a festa é registrada. Trata-se de “Vaquejada do
Mulungu”, do cordelista e repentista João Lucas Evangelista, interpretada
musicalmente e modificada por Cego Birrão, cantador popular do Crato-CE128.
Em 1ª pessoa e tendo como eu-lírico um vaqueiro, introduz o tema do filme:
Convido quem nunca assistiu / Uma festa de vaquejada / Na Fazenda
Mulungu / Numa safra bem criada / Os vaqueiros nos cavalo /
Aboiando essa toada ei / Eu nasci em Jaguaribe / Eu me criei no Iguatu
/ Eu nasci pra pegar brabo / Topo todo sururu / Touro brabo e
vaquejada / Só se vê no Mulungu ei / Lá em casa são quatro irmãos /
Todos quatro interesseiro / Um deu pra tocar sanfona / E outro pra
bater pandeiro / E outro pra ser valentão / E eu nasci pra ser vaqueiro
ei / Tem quatro coisa no mundo que o vaqueiro dá valor / É o som
duma sanfona / É o baião de um cantador / É uma mulher carinhosa /
E um cavalo corredor ei / Tem quatro coisa no mundo que me deixa
em confusão / Uma carreira de boi brabo / Na caatinga do sertão / É
uma mulher bem bonita / Pra consolar meu coração129.
A mudança de alguns versos feita pelo cantador é inerente à lógica da
cultura popular, de acordo com Marilena Chauí (1986):
[...] o campo comunicativo [da cultura popular] se reestrutura segundo
a prática, o desejo e o pensamento dos participantes. Feito e refeito,
confere sentido à expressão popular: ‘quem conta um conto, aumenta
um ponto’ (CHAUÍ, 1986, p.73).
Para exemplificar sua colocação, a autora cita justamente o cordel
nordestino, que adapta motivos da literatura europeia, sendo constantemente
modificado.
José de Figueiredo Filho (1962), no livro Folclore no Cariri, trata Cego Birrão (ou João Teixeira
da Silva) como um aboiador em verso: “Seu aboio não tem rival, entre vaqueiros. É canto
mavioso e sentido que nos prende a alma, comunicando-nos nostalgia da vida rural. É
entremeado de versos, cantados na mesma toada, desmentindo assim a versão quase universal
de que o aboio não tem letra. Até espécie de dueto há naquele canto. Birrão canta disputa entre
vaqueiro do Sertão e proprietário do Cariri” (FILHO, 1962, p.50).
128
Encontramos a versão publicada no folheto de cordel por João Lucas Evangelista disponível
em: http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=Cordel&PagFis=34633.
129
152
Assim como em Memória do cangaço, na passagem mencionada a
canção não concorre com outros sons, sendo pertinente notar a exaltação que a
letra faz do vaqueiro. O aspecto é mais perceptível quando ouvimos um segundo
trecho, já sobreposto aos planos gerais das pessoas aguardando pelo início da
vaquejada, após a locução “formal” – em uma das raras aparições no filme –
explicar que os vaqueiros vêm de longe para mostrar sua destreza e bravura na
festa: “A vida melhor do mundo / É a vida do vaqueiro / Passa o dia campeando
/ Correndo nos tabuleiro / À noite vai namorar / Com a filha do fazendeiro ei”. A
letra não descreve as imagens, fazendo comentários em torno do tema que não
encontram correspondência na materialidade no filme. Seu sujeito, o vaqueiro
nascido em Jaguaribe, representa o personagem mítico do sertão, uma
abstração.
Atuam de maneira diferente trechos de mais três poesias da literatura de
cordel recitados pela voz over de Paulo Gil, que substituem a narração de cunho
mais didático. Duas delas foram escritas por Fabião Hermenegildo Ferreira da
Rocha (1848-1928), o Fabião das Queimadas130: Romance do boi mão de pau
e Vaquejada na fazenda Belo Monte. A terceira, cujo autor não conseguimos
identificar, é A Vaqueijada (sic)131, famosa nos sertões. Intercalados no filme,
os versos transformam-se em texto único que descreve as imagens. O curtametragem não dá qualquer indicação de que o texto narrado por Paulo Gil é
apropriado das poesias populares, ou seja, um espectador não familiarizado
com os versos pode tomá-lo como sendo do próprio realizador.
Observemos algumas situações. Antes de mostrar os vaqueiros tentando
derrubar os bois, diferentes planos mostram homens nos currais preparando os
animais e os vaqueiros esperando do lado de fora. Ouvimos versos de
Vaquejada na fazenda Belo Monte recitados pelo diretor-locutor: “Gritou o dono
da festa / Com o curral cheio de gado / Mais de 50 cabeça / 20 touros separado
/ Quem tiver cavalo encoste / Que os touro estão jejuado”. A correspondência
As duas poesias são abordadas no livro Vaqueiros e cantadores, de Luís da Câmara Cascudo;
o título da segunda é atribuído. Informa o autor que Fabião era negro, nasceu na região das
Queimadas, no município de Santa Cruz, no Rio Grande do Norte. Foi escravo, mas conseguiu
pagar sua alforria e de sua família, tornando-se pequeno agricultor. Sempre cantava
acompanhado por uma rabeca, sendo presença constante em festas de vaquejada, casamentos
e batizados (CASCUDO, 1984, p.320).
130
A poesia foi encontrada sob o título de A Vaqueijada em: BARROSO, Gustavo. Ao som da
viola. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, 1921, p.320-325.
131
153
entre as imagens e os versos recitados pelo locutor é uma das estratégias do
documentário.
Mais trechos da mesma poesia descrevem outras imagens, tomadas em
plano conjunto, do touro que consegue escapar da perseguição de dois
vaqueiros durante a vaquejada: “Correu um touro cabano / Este de rajada cor /
Foi tirado cinco vez / E cavalo nenhum tirou / Bateram palma e disseram / Já vi
bicho corredor”. Ou ainda: “O Medalho e o Pedrês / Corriam sempre irmanados
/ Um numa banda, outro doutra / E eu no meio imprensado / Porém sempre me
safando / Pois corria com cuidado”.
Conforme indica Cascudo (1984), esses versos escritos por Fabião das
Queimadas narram uma vaquejada que de fato ocorreu, na década de 1920, no
Rio Grande do Norte. Eles apontam para um eu-lírico que não é o poeta, nem
um vaqueiro, mas um dos touros:
Em vez de deter-se em narrar a vaquejada, o velho Fabião apaixonase por um novilho cabano (de orelhas pendentes) que não foi
alcançado pelos vaqueiros. Insensivelmente o cantador encarna o
animal, descreve seu orgulho, sua alegria de derrotar os melhores
parelheiros da redondeza. Pela voz do negro poeta o animal saúda
ironicamente os cavalos, manda lembrança aos vaqueiros e ante
prepara uma ‘gesta’ que outro cantador fará, a perseguição do
novilho tornado célebre (CASCUDO, 1984, p.110).
Nos dois minutos finais do filme, temos vários planos em câmera lenta
que enfim mostram os vaqueiros derrubando os bois, acompanhados primeiro
pelos versos de A Vaqueijada: “Perseguir um novilho / Que pelo pátio estourou /
Anselmo fazendo esteira / Francisco tarrafeou / E deu tal queda no bicho / Que
o mocotó passou”. Em seguida, por trechos de Romance do boi mão de pau, de
Fabião das Queimadas, novamente com eu-lírico de um touro: “Adeus, lagoa dos
Véios / E lagoa do Jucá / E serra da Joana Gomes / E riacho do Juá / Adeus, até
outro dia / Nunca mais virei por cá”.
Os exemplos apontam que há uma tentativa em Vaquejada de recriar em
imagens cinematográficas o que dizem os versos da literatura de cordel recitados
pela locução, que se amalgamam à manifestação popular oriunda da tradição
oral. Outra consideração é que, ao apropriar-se dos versos, o “diretor-locutor”
encarna também seu eu-lírico. Quer dizer, afasta-se de uma voz autoritária que
faz interpretações, presente em outros títulos, e passa a mimetizar o poeta
154
popular, embora seus universos sejam distantes.
Conforme abordamos no capítulo anterior, neste documentário quem faz
a análise social do tema e explica as origens da vaquejada é Ariano Suassuna,
que representa a autoridade intelectual, a “voz do saber” do cineasta. Contudo,
o filme cede espaço para que também se manifeste a perspectiva romântica
presente nos versos de cordel, proveniente de um saber popular ligado à
“experiência” dos assuntos vividos – inclusive o próprio Suassuna chega a recitar
versos do poeta popular Lino Pedra Azul para exemplificar como o cavalo que
participa das vaquejadas é tido como mito sertanejo. Não há um consenso, ou
seja, o filme não elabora uma tese que deva ser comprovada, permitindo que o
espectador tire suas próprias conclusões a partir do que viu e ouviu.
Atuando de forma mais intensa que em Memória do cangaço, a poesia
popular é essencial na condução da narrativa de Vaquejada, que o afastaria da
ideia de discurso fechado sobre o real, do “modelo sociológico”. Embora a
entrevista com Suassuna marque a presença do intelectual como figura
detentora de um saber que permite analisar a “experiência” alheia, o
documentário abre-se também para o discurso da poesia popular, interpretação
outra do universo sertanejo, elaborada por alguém que é “povo”.
No entanto, a apropriação não se dá sem problemas. O filme não explicita
quem escreveu os versos narrados ou cantados, passíveis de serem atribuídos
ao próprio realizador ou, no caso da canção, a Cego Birrão. Assim, a informação
extra fílmica, de serem poesias provenientes dos folhetos de cordel, torna mais
complexa a compreensão das relações entre o cineasta e a cultura popular.
Por fim, tratemos de O homem de couro, que retrata aspectos da vida do
vaqueiro, tomando como exemplo o cotidiano de alguns que trabalham na
fazenda Jaramataia, especialmente um deles, Zé Galego, personagem já
comentado no capítulo anterior. Entre os três documentários aqui discutidos, é o
que mais problematiza a incorporação da poesia popular porque, na ausência da
locução “formal” para analisar o tema ou de outro intelectual que o faça (como
Ariano Suassuna em Vaquejada), são os versos do cordel adaptados pelo
cantador e o depoimento de um dos vaqueiros entrevistados que manifestam
uma visão crítica da profissão. Há também o “outro lado”, a exaltação e o orgulho
deste modo de vida, colocado nos versos populares recitados pela locução e nas
falas dos demais personagens.
155
Conforme mencionamos, o filme explora e dá mais espaço para diferentes
materiais musicais populares, se comparado aos outros dois títulos. Por isso,
paralelamente à percepção de como a poesia – que aparece tanto na forma
musical pela canção, quanto falada – se comporta, nossa análise refletirá sobre
outros aspectos relacionados à trilha musical que consideramos também
pertinentes para compreender o diálogo existente entre os documentários do
diretor e a cultura popular.
A exemplo de Vaquejada, o canto de Cego Birrão acompanha os minutos
iniciais de O homem de couro, já nas cartelas de apresentação. Ele interpreta a
poesia “Despedida do vaqueiro”133 e, nos instantes finais do documentário,
acompanhando planos gerais que mostram vaqueiros recolhendo o gado,
ouvimos sua voz entoar “A morte do vaqueiro”, cujo autor é desconhecido134.
Tornaremos a abordar as canções mais adiante.
Outro material musical do filme são os aboios dos vaqueiros, presentes
de duas maneiras. Ora são sincrônicos à imagem, quando os personagens
performam para a câmera (15’57’’ a 17’15’’) e percebemos o “estilo” de cada
aboiador; ora acompanham planos gerais do gado pastando ou do vaqueiro
conduzindo a boiada. Há aboios entoados apenas com vogais e outros em
versos, com trechos das poesias populares memorizadas pelos vaqueiros.
Conforme observou Mário de Andrade (1989)135, se filiam, assim como a
literatura de cordel, a práticas de povos europeus:
Nas vozes de excitação, de assustação, de chamado, de acalmar que
o homem usa pra com os animais, o aboio, as várias maneiras de
aboiar que os brasileiros empregam de Norte a Sul, apresentam toda
uma escala gradativa de emissões vocais que vão do simples ruído
oral interfectivo até a manifestação por assim dizer exclusivamente
musical do aboio-de-besta, em que nem existe mais o desenvolvimento
do grito interfectivo oral, na vocalização sem palavras que no geral se
une sempre ao aboio dos marroeiros [...] Como caráter, modos de
construir a frase, abusos de inícios idênticos para cada frase (de
133
Os versos são do poeta popular pernambucano Pedro Amorim (1921-2011).
Nos créditos menciona-se como cantador apenas Cego Birrão mas, aparentemente, não é o
único a entoar as canções, pois vozes de tessituras diferentes são ouvidas no meio do filme,
inclusive duas que cantam ao mesmo tempo.
134
Mário de Andrade realizou viagens ao Nordeste na década de 1920, sendo os apontamentos
mencionados provenientes delas. Em entrevista a Geraldo Sarno, Hilda Machado, Sylvie Debs e
José Carlos Avellar sugerem um paralelo dessa experiência com as viagens da Caravana
Farkas. Ver: SARNO (2006).
135
156
melodia quadrada ou não), gênero de vocalizações, liberdade rítmica,
emprego sistemático das fermatas (sem intenção virtuosística),
utilização de sons agudos: o aboio é absolutamente idêntico (o aboio
de boiadeiros) às canções de carreiros e arrieiros asturianos [...] Estes
têm acentuado sabor mourisco, por onde se pode filiar os nossos
aboios aos cantos de pastores árabes [...] (ANDRADE, 1989, p. 2-4).
[grifo original]
Também é incorporada ao filme, embora apareça apenas uma vez, a
música de pífanos, da Banda de Pífanos de Caruaru136. A sonoridade está
presente ainda em A mão do homem, Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo
dos hereges, Jaramataia e A morte do boi, sendo que neste último é da Banda
de Pífanos do Crato, do Ceará. Esse tipo de banda, também chamada cabaçal,
é formada por instrumentos de sopro (os pífanos) e percussão, influenciada pela
música negra, portuguesa e indígena: “Participando de manifestações sagradas
e profanas, as bandas de pífano guardam elementos técnicos e estéticos de
épocas longínquas” (PEDRASSE, 2002, p.15). Embora nos desvie da análise
do filme, essa apresentação mais detalhada dos materiais da trilha musical de
O homem de couro aponta para a impossibilidade de traçar uma origem das
manifestações populares, sendo “resultado de transformações sucessivas”,
como evidencia Chauí (1986, p.73).
Como ponto de partida, é estimulante a defesa do estudo e da aplicação
da música no campo do audiovisual documental feita por John Corner (2002),
que toma como exemplo o documentário inglês Listen to britain (Humphrey
Jennings e Stewart McAllister, 1942) para demonstrar sua potência:
Ela liberta [as imagens] do literalismo do comentário e subscreve a
possibilidade de fornecer surpresa e justaposição tanto quanto
conexões esperadas. Por meio da escuta da Grã-Bretanha, somos
capacitados adequadamente a olhar para ela (CORNER, 2002, p.359-
Quando os filmes foram realizados, no final da década de 1960, a Banda de Pífanos de
Caruaru, hoje bastante conhecida, ainda não tinha gravado seu primeiro disco. Suas músicas
foram captadas in loco pela equipe de documentaristas, em um esquema improvisado, com
apenas dois microfones para os instrumentos e dentro de um teatro, conforme nos contou Sidnei
Paiva Lopes, responsável pelo som direto. Algumas dessas gravações foram cedidas por
Thomaz Farkas para integrarem a coleção Mapa Musical do Brasil, lançada comercialmente
entre 1972 e 1973 pela gravadora paulista Marcus Pereira Discos, composta por 16 discos com
músicas de quatro regiões do Brasil. De fato, encontramos no volume 4 do disco Música Popular
do Nordeste uma das músicas que está em O homem de couro e ainda em Frei Damião: trombeta
dos aflitos, martelo dos hereges: A briga do cachorro com a onça, não identificada nos filmes.
Deste modo, a documentação musical da Caravana extrapolou os limites da narrativa fílmica,
ecoando em uma produção fonográfica que pretendia também mapear o Brasil, só que
musicalmente. Na contracapa do disco, Marcus Pereira comenta ter assistido aos documentários
da Caravana Farkas. Ver: MAGOSSI (2013).
136
157
360)137.
Recorreremos às ferramentas analíticas propostas por Anahid Kassabian
(2001) para tratar do trabalho da trilha musical em O homem de couro. De
acordo com a autora, a música é mediada pela cultura, sendo um fenômeno de
produção de sentido e processo de identificação: “[...] músicas específicas
interagem com seus ouvintes em modos específicos de produção de sentido”
(KASSABIAN, 2011, p. 8)138. Kassabian, que prefere falar em perceptor ao invés
de espectador, lança três grandes questões para refletir sobre a música dos
filmes com os quais trabalha, que adaptaremos para o documentário de Paulo
Gil Soares: “1) Como é a relação da música com o mundo narrativo do filme?;
2) Como percebemos o método da música dentro da cena?; 3) O que a música
evoca ou comunica para nós?” (KASSABIAN, 2001, p.42)139.
A primeira pergunta diz respeito à música como integrante ou não do
mundo narrativo do filme. Colocando de forma simplista, de sua relação com a
diegese140. Para nós, é mais pertinente aproveitar a ideia de mundo narrativo
em outra direção: a música de O homem de couro – e poderíamos estender
para os demais filmes – pertence ao universo de quem é documentado ou ao
universo de quem documenta, do realizador? Os versos entoados pelo cantador
popular, os aboios dos vaqueiros e a música de pífanos fazem parte do universo
que o filme retrata, do vaqueiro, remetendo de forma mais ampla a
musicalidades nordestinas. No entanto, exceto os aboios cantados pelos
próprios vaqueiros durante o momento de performance musical, quem garante
Tradução nossa para: “It frees them from the literalism of commentary and underwrites the
possibility of delivering surprise and juxtaposition as well as of expected connections. Through
listening to Britain, we are enabled properly to look at it” (CORNER, 2002, p.359-360).
137
Tradução nossa para “[...] specific musics engage with their listeners in specific modes of
meaning production” (KASSABIAN, 2001, p. 8).
139 “How is the music’s relationship to the narrative world of the film perceived?; How do we
perceive the music’s method within the scene?; What does the music evoke in or communicate
to us?” (KASSABIAN, 2001, p.42). Conforme já explicamos em nota, a autora analisa filmes
ficção hollywoodianos dos anos 1980-1990.
138
Kassabian fala em três possibilidades de relação da música com o mundo narrativo do filme:
source music se refere à música ligada a um evento narrativo, por exemplo, uma cena de
performance musical; já dramatic scoring é uma música que não se integra ao mundo narrativo,
como a acionada em Jaws (Steven Spielberg, 1975) sempre que o tubarão aparece; por fim, a
source scoring trabalha ao mesmo tempo dentro e fora do mundo da narrativa, como quando
uma música é tocada por alguém ou um objeto (uma vitrola, um rádio) em uma cena e continua
na seguinte em outro local, ou seja, há uma combinação entre a source music e a dramatic
scoring (KASSABAIN, 2001, p.43-49).
140
158
que os personagens ali retratados ou que outros vaqueiros da mesma região
tenham alguma vez ouvido aquelas músicas?
A Banda de Pífanos de Caruaru, por exemplo, é de Pernambuco. Ora, O
homem de couro foi filmado em outro estado, no interior da Paraíba, assim como
outros filmes que a incorporam. Essa música não estaria muito mais ligada ao
que o realizador considera como sonoridade representativa do Nordeste do que
pertencente ao universo daqueles vaqueiros? Trata-se de uma relação
ambígua: a trilha musical relaciona-se ao universo retratado pelo filme e, ao
mesmo tempo, configura-se como uma escolha do realizador, vinculada ao seu
imaginário sobre a região e aos personagens que se propõe a documentar.
Fernão Ramos (2008), ao mencionar as diversas vozes de um
documentário, comenta sobre o papel da música:
A voz over, a voz em primeira pessoa, a voz dialógica das entrevistas,
a voz do depoimento, a voz das imagens de arquivo, a voz dos
diálogos ou monólogos no mundo (com o sujeito-da-câmera oculto,
em recuo, agindo). Essas são as vozes que fazem as asserções do
documentário. Além disso, há a modulação da voz da música. [...] No
caso do documentário, muitas vezes, a música qualifica
diferencialmente as emoções que a narrativa quer agregar às
asserções enunciadas. A música possui na tradição documentária
uma dimensão que não fica aquém daquela do cinema de ficção, e
que ainda deverá ser estudada (RAMOS, 2008, p. 86) [grifos originais].
Em nosso entendimento, a “voz da música”, mais do que modular,
também pode fazer asserções no documentário, capacidade por nós validada
quando dos comentários sobre os outros dois títulos de Paulo Gil. Como em O
homem de couro a participação da música é maior, continuaremos a analisá-la
respondendo às questões propostas por Kassabian (2001). A segunda delas,
“Como percebemos o método da música dentro da cena?”, desdobra-se em dois
fatores. Um se refere a quanto da “história da música” (history music continuum)
o espectador consegue identificar, quer dizer, as outras referências – em nosso
caso, musicais ou não – que a música de um filme é capaz de acionar. De
acordo com a autora, haveria três usos nesse sentido: a música pode funcionar
como citação, alusão e/ou leitmotiv – este último foi citado no item anterior,
quando nos referimos aos cantos de orixás em Erva Bruxa, que sempre
acompanham as imagens dos operários da indústria do fumo baiana.
Em O homem de couro e nos demais filmes do diretor, as músicas são
159
citações, na medida em que preexistem ao filme, não foram “encomendadas”141.
Gravadas in loco e extraídas da cultura popular, também fazem alusão, pois
evocam outras narrativas, dialogando com a tradição da literatura oral, dos
cantos de trabalho, com matrizes musicais diversas e oriundas de séculos
anteriores, como já explicamos. O método da música dentro da cena ainda se
relaciona ao nível de atenção que ela demanda para o espectador, por exemplo,
se é o único elemento sonoro da cena ou se “concorre” com entrevistas, locução
em over, etc. Sobre este aspecto comentamos ao tratar da canção em Memória
do cangaço e Vaquejada; a estratégia repete-se em O homem de couro, que dá
espaço ainda maior a este elemento da trilha musical.
A última pergunta de Kassabian (2001), “O que a música evoca ou
comunica para nós”, é a que julgamos mais significativa para refletir sobre a
canção entoada por Cego Birrão, cuja letra, conforme mencionamos, é
proveniente das poesias da literatura de cordel, manifestação popular aqui
enfatizada. A partir dessa questão, sugere-se que a música de um filme pode
servir a três propósitos: identificação (identification), atmosfera (mood) e
comentário (commentary) (KASSABIAN, 2001, p.56).
Ouvindo os materiais musicais de O homem de couro, podemos
identificar a região que ele retrata, o Nordeste, e seu tema, o cotidiano dos
vaqueiros, além de ajudarem na construção de uma atmosfera rural. Por nossa
conta, acrescentaríamos o propósito documental da música em um filme,
inerente ao próprio registro audiovisual que, no caso da Caravana Farkas, é
compreendido pelos cineastas como forma de preservar manifestações
culturais em vias de desaparecer142. Isto posto, é o propósito da música de fazer
comentário que nos interessa observar com mais empenho em O homem de
couro, no caso, das duas canções entoadas por Cego Birrão nos primeiros
minutos e nos instantes finais do documentário, relacionando-as a outros.
A exemplo do que afirmamos sobre Memória do cangaço e Vaquejada, a
canção no filme desempenha um papel de “locutor auxiliar”, não no sentido de
Um exemplo de “encomenda” seria a canção de Viramundo, trilha musical original composta
para o documentário e inspirada na métrica rítmica do cancioneiro popular. Há indícios no roteiro
de Memória do cangaço de que a canção do filme tenha sido improvisada musicalmente pelos
violeiros, a partir da letra escrita pelo próprio diretor, Paulo Gil Soares.
142 Mencionamos em nota anterior que essa documentação extrapolou limites fílmicos: pelo
menos uma das músicas gravadas pela Caravana Farkas foi integrada a um dos discos de
música popular da gravadora Marcus Pereira.
141
160
equivalência em termos de ponto de vista ou de poder em relação ao locutor,
como proposto por Bernardet (2003), mas por sua função na narrativa. Diferente
do que ocorre nos outros dois documentários, a letra da canção em O homem
de couro faz um contraponto ao que diz a locução poética proferida por Paulo
Gil Soares, lembrando que ambas são versos da poesia popular, ou seja, não
foram escritas pelo cineasta. Vejamos essa relação no filme.
Acompanhando os créditos do documentário e em seguida os planos em
que o vaqueiro Zé Galego se veste dentro de um casebre com roupas de couro
para a câmera, ouvimos trechos de “Despedida do vaqueiro” entoados por Cego
Birrão, intercalados a uma locução pedagógica – único momento em que
aparece – explicando cada parte da roupa. A canção é o lamento de um
vaqueiro: “Meu patrão eu vou embora / Da seca Deus me defenda / Talvez em
sua fazenda / Eu não apareça mais / Talvez por causa da seca / Ganhando
pouco dinheiro / Na profissão de vaqueiro / Sem fortuna e sem amor [...]”. A letra
não corresponde ao personagem que vemos nas imagens; no capítulo 2, vimos
que Zé Galego fala com orgulho e satisfação da profissão.
Após descrever as roupas de couro, a locução somente recita versos da
literatura de cordel, que não falam em lamentação nem fazem crítica às
condições de trabalho em nenhum momento, tratando de aspectos lúdicos em
torno do mito do vaqueiro. Comentamos no capítulo 2 sobre alguns trechos,
extraídos de “História do boi mandingueiro e o cavalo misterioso”, de João
Martins de Ataíde, que encontram correspondência na fala e ação de Zé
Galego143. Por exemplo, após vestir-se e já do lado de fora do casebre, o
personagem e seu cavalo são vistos em plano conjunto, enquanto ouvimos a
locução recitar: “Com esta sela o cavalo / Corre mais do que o vento / Tem tanta
velocidade / Que ultrapassa o pensamento”. Ou ainda, já na metade do filme
(10’30’’), sobrepostos ao plano conjunto que mostra quatro vaqueiros – entre
eles Galego – montados a cavalo andando pela fazenda, após a captura de um
boi:
O rei mandou me chamá / Pra casar com a sua fia / O dote que ele me
dava / Oropa, França e Bahia / Ouro em pó e pedra fina / Como
ninguém possuía / Roupa de couro bordada / Com todo o ouro que
143
Ver o primeiro momento em que isso ocorre no item 2.2.1.
161
havia / Camisa de seda, cetim / Com botão de prataria / Eu então lhe
respondi / Que era pouco / Eu não queria / Sou moço, sou vaidoso /
Sou fio de boa famía / Piso no chão devagar / Que as fôia seca não
chia / Ando na flor da água / E a água não se arrepia / Minha mãe se
lastimava / E meu pai se maldizia / Do campo eu não saio por dote /
Histórias de fantasia / O rei mandou me chamá / Pra casar com a sua
fia / O dote que ele me dava / Eu disse que não queria144.
Perspectiva oposta manifesta-se nas letras das duas canções entoadas
por Cego Birrão no início e no final do filme. Falemos desta última, que tem
como eu-lírico o dono da fazenda, emprestando os versos da poesia popular “A
morte do vaqueiro”. Ela aparece nos minutos finais, acompanhando planos
gerais de um vaqueiro (não identificado) que recolhe os animais, que encerra
um dia de trabalho (aos 18’ 25’’):
Vou vender minha fazenda / Que o vaqueiro faleceu / Da morte dele
pra cá / O gado entristeceu / Até mesmo a bezerrama / Com o
desgosto morreu / É grande a lamentação / Do gado nos tabuleiros /
Quando eu ia para o campo / Chorando sem paradeiro / Voltei pra
casa pensando / No aboio do vaqueiro / Ele antes de morrer / Pediu
pra não haver choro / Despediu-se da fazenda / E do cavalo pé-deouro / Abraçou-se com Carmelita / Beijando o gibão de couro / Ele
antes de morrer / Se despediu do patrão / Dizendo pra Carmelita / Dême um aperto de mão / Deixa a vida do vaqueiro / Com a dor no
coração / Amortalharam o vaqueiro / Com um terno de algodão /
Levando para o cemitério / De guarda-peito e gibão/ Todo gado
acompanharam / Chorando atrás do caixão.
O que diz a canção se alinha ao depoimento de um vaqueiro mais velho,
o único personagem do filme que não exalta a profissão. Filmado em primeiro
plano, às vezes cabisbaixo, afirma que não pode mais trabalhar depois de 18
anos como vaqueiro (11’11’’ a 11’36’’):
Apanhei muito de pontada de boi, coice de gado, peitada de cavalo.
Teve muitas e muitas vezes de vim do mato e mandarem me buscar
no carro, sem fala, num mato de pancada. Agora eu deixei porque o
que eu ganhava não dava pra eu viver.
As duas canções – “Despedida do vaqueiro” no início do filme e “A morte
do vaqueiro” no fechamento – dialogam entre si. As letras de ambas fazem
alegoria à morte do vaqueiro, aqui interpretada como a possível extinção dessa
função nas fazendas, sendo que a primeira tem como eu-lírico o próprio
Versos de autor desconhecido facilmente encontrados nos livros que tratam da literatura de
cordel.
144
162
vaqueiro e a segunda o dono da fazenda, o patrão. Em O homem de couro, ao
invés da locução interpretar com criticidade o tema, a exemplo do que ocorre
em outros documentários de Paulo Gil Soares, é a “voz da música”, a letra da
canção, que apresenta a visão crítica. No caso, a de que o vaqueiro, apesar de
ser figura mítica do sertão, está desaparecendo (se despedindo ou morrendo)
porque não consegue mais sobreviver, seja pelo pouco ganho ou pelas
condições desfavoráveis de trabalho.
A canção é extraída da cultura popular, ou seja, traz uma interpretação
que provém do universo da “experiência”, do “povo”, e não do cineasta. Ao
mesmo tempo, sua inserção no filme depende dele. Não há um único ponto de
vista sobre a vida do vaqueiro, deixando que a poesia popular manifeste
perspectivas distintas. Ao confrontarmos os versos da canção e da locução com
os personagens do “mundo histórico representado”, entramos no jogo entre
imaginário e concreto provocado pelo documentário, assim como o faz a poesia
popular. Desta forma, pela tensão de saberes e visões opostas sobre o tema,
em grande medida provocadas pela música, o documentário também se afasta
de um “modelo sociológico”.
Conforme observamos, os materiais da cultura popular são incorporados
em diferentes níveis nos três documentários aqui discutidos. Em Memória do
cangaço, embora de forma mais tímida, a literatura de cordel suscita leituras
outras acerca dos fatos históricos, provocando reflexões também sobre o “real
do documentário”. Já em Vaquejada, a canção com os versos populares traz
uma perspectiva sobre a festa e o universo do vaqueiro que não encontra
correspondência na materialidade do filme, fazendo um comentário que se
descola do campo tangível; por outro lado, o trabalho de montagem com os
versos recitados pela locução e as imagens tenta uma correspondência entre
ambos. Por fim, em O homem de couro, a canção entoada por Cego Birrão
cumpre um papel normalmente associado ao locutor – poderíamos tomar como
exemplo vários realizados na experiência da Caravana Farkas –, de analisar o
tema. Contudo, a “voz da música” não é a única, opondo-se a outros versos
também populares recitados pela locução, que expõem uma perspectiva mais
romântica,
encontrando
correspondência
no
principal
personagem
do
documentário.
A incorporação de materiais da cultura popular nesses filmes, além do
163
debate estético, propicia um debate ético, pois apropria-se do outro popular
aquilo que o cineasta compreende como representante de um certo imaginário
sobre o tema ou pessoas retratadas. Os documentários de Paulo Gil Soares na
Caravana Farkas não explicitam que aquelas manifestações registradas
estariam em vias de desaparecer, como faz Geraldo Sarno145; nem se
apropriam do popular numa chave mais tropicalista, como os filmes de Sergio
Muniz146. Podemos falar que os filmes de Paulo Gil Soares sugerem a
permanência da cultura popular, mesmo que haja a indicação do fim ou da
transformação, por exemplo, da profissão de vaqueiro, tal qual ocorre em O
homem de couro. Em contrapartida, sabemos que quando os materiais
populares são apropriados pelos documentários, transfiguram-se no interior do
discurso fílmico.
Um exemplo seria Jornal do Sertão (1970), que problematiza a continuidade da literatura de
cordel no Nordeste, tendo em vista a inserção de novos meios de comunicação. Ver: D´ALMEIDA
(2003, p.94-100).
145
Para citar apenas um, De raízes & rezas, entre outros (1972): “[...] o documentário apresenta
uma banda sonora “turbulenta”, em alguns momentos “agressiva” pela escolha que reúne
expressões como Índios do Xingu, Pedro Bandeira, Banda de Pífaros do Crato, Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Silvio Rodrigues, Pablo Milanes, Zabumba de Santa Brígida, Maria Bethania, Gal
Costa, Solo de Rabeca e cantos recolhidos em Juazeiro, Milton Nascimento, e declamação de
versos de João Cabral de Melo Neto, informados nos créditos de abertura” (SOBRINHO, 2012,
p.7).
146
164
4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa surgiu, para além das motivações acadêmicas, do apreço
pelos documentários de Paulo Gil Soares e pelo trabalho de Thomaz Farkas –
este “conheci” em uma palestra sobre fotografia em 2009, já bastante debilitado,
dois anos antes de seu falecimento. Eu gosto dos filmes, alguns mais outros
menos (como é de se supor). Há algo neles que me toca – como o punctum147
fotográfico barthesiano –, que a objetividade não daria conta de explicar. Por que
escolher tal realizador e não outros da Caravana Farkas? Ou ainda: o que há
nos documentários que justifique essa escolha? São perguntas de caráter
subjetivo que se relacionam com o que esta pesquisa tentou empreender.
A partir do confronto com os oito documentários de Paulo Gil Soares,
nosso objetivo foi traçar características de sua “voz” e assim diferenciar seus
filmes dos realizados por outros nomes na experiência da Caravana Farkas. Tal
perspectiva pretendeu afastar-se de uma generalização bastante frequente entre
pesquisadores que mencionam a Caravana, talvez provocada porque todos os
cineastas que dela participaram compartilham uma postura política semelhante
(de esquerda), como afirmou o próprio Thomaz Farkas, produtor e financiador
da maioria dos filmes; e porque, de fato, havia uma comunhão estética e temática
entre eles, provocada também pelo esquema de produção coletiva.
É comum, por exemplo, a associação da produção ao “modelo
sociológico” de documentário proposto por Jean-Claude Bernardet (2003),
incitada pelo fato de dois títulos realizados na 1ª fase, Viramundo (1965), de
Geraldo Sarno, e Subterrâneos do futebol (1965), de Maurice Capovilla, serem
analisados pelo autor como exemplos do modelo, no qual todas as vozes do
documentário colaborariam para a defesa de uma tese do cineasta, da “voz do
saber”. De forma mais ampla, o documentário brasileiro da década de 1960 é
vítima dessa generalização, embora o mesmo Bernardet aponte para rupturas
com o “modelo sociológico” em filmes realizados antes da década de 1970.
Como vimos – apenas para mencionar um exemplo –, o documentário de Paulo
O conceito de punctum foi proposto por Roland Barthes (1984) no clássico livro A câmara
clara. Poderíamos resumi-lo como sendo aquilo que toca, punge, instiga o espectador em uma
fotografia. Ou seja, relaciona-se à subjetividade de cada leitor da imagem, independentemente
das intenções do fotógrafo ou dos aspectos históricos, políticos e ideológicos implicados na
fotografia – estes relacionam-se ao que Barthes chama de studium, associado à objetividade.
147
165
Gil Soares, Memória do cangaço, de 1965, é “contemporâneo” aos títulos de
Sarno e Capovilla, e apresenta momentos de abertura e ambiguidade do
discurso: a “não-entrevista” com Dadá; as contradições do coronel Zé Rufino; os
versos modificados da literatura de cordel no último plano do filme que instigam
reflexão sobre o próprio fazer documental.
Também são corriqueiras abordagens que vinculam esses documentários
ao “modo expositivo” de Bill Nichols (1997 e 2010), como se os filmes de
realizadores diversos seguissem “mais ou menos” uma mesma estrutura ou
lógica, reduzindo o fazer estético a uma tipificação. Consideramos que é
necessário olhar para cada realizador e, mais estreitamente, para cada filme. Em
suma, é preciso repensar o tratamento homogêneo dessa produção e também
do documentário brasileiro da década de 1960.
Voltando aos caminhos desta pesquisa, nossa primeira ideia era
demarcar recorrências temáticas e de estilo no conjunto de documentários de
Paulo Gil Soares. Mas, como fazê-lo sem incorrer na mesma abordagem
generalista que se pretendia evitar? Como efetuar um tratamento de conjunto se
um ou outro título “escapasse”, não tivesse essas recorrências? A opção pela
noção de “voz”, a partir de Bill Nichols (2010), nos pareceu resolver a questão:
olhar para cada filme, a fim de encontrar como os documentários de Paulo Gil
Soares representavam o mundo histórico, em detrimento de outros realizadores
da Caravana Farkas. Este como diz respeito tanto à forma quanto ao conteúdo.
Por meio das escolhas do documentarista perceptíveis no texto fílmico, seria
possível discorrer sobre aspectos ideológicos, políticos, éticos em seu
“engajamento” com o mundo.
Após assistir aos documentários de Paulo Gil Soares e dos outros dois
diretores mais atuantes da Caravana, Geraldo Sarno e Sergio Muniz, os
aspectos que em nossa leitura seriam mais pertinentes para marcar as
singularidades da “voz” de Paulo Gil desdobraram-se nos três capítulos da
pesquisa: vozes, personagens e apropriações da cultura popular. Ao discorrer
sobre eles, eventualmente outras questões surgiram, como particularidades
temáticas, o tipo de montagem, o tom que perpassa os filmes. As vozes, por
exemplo, não têm espaço apenas no primeiro capítulo, mas percorrem toda a
dissertação, pois relacionam-se com os outros dois aspectos. Destacaremos,
então, as características da “voz” de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas.
166
Podemos dizer que seus documentários são de denúncia social com
pretexto educativo. Embora filmes de outros realizadores da Caravana
aproximem-se desta conotação, o tom denunciativo pesa mais nos títulos de
Paulo Gil Soares. Em vários deles, a explicação didática – por exemplo, do mito
do cangaceirismo no Nordeste, da fabricação de queijo de fazenda, de objetos
confeccionados em couro – torna-se um pretexto para que se revelem situações
de pobreza, desigualdade social, más condições de trabalho.
Em Memória do cangaço, A morte do boi, A mão do homem, Jaramataia
e Erva Bruxa há denúncias feitas de forma mais direta, seja por meio da locução
assertiva, que fala, por exemplo, no “abandono à própria sorte” do homem
sertanejo nordestino ou se refere a curtidores de couro que “não têm mesmo
roupa para vestir enquanto trabalham”148; seja pela montagem paralela que
contrapõe depoimentos do explorador e do explorado149; seja pelos “indícios de
pobreza” perceptíveis nos próprios planos: o abate do boi de modo rudimentar,
a disputa de partes da carne e uma criança que trabalha na curtição do couro
em A morte do boi, apenas para exemplificar com situações do documentário
que consideramos o mais gritante neste sentido.
Em Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges, a denúncia
emerge da articulação da montagem entre os vários depoimentos de beatos e a
entrevista com Frei Damião – praticamente não há interferência da locução – e
não diz respeito ao universo do trabalho, mas à alienação daquelas pessoas da
cidade de Taperoá-PB, que podemos tomar como representantes do beatismo
nordestino. Em Vaquejada e O homem de couro o caráter denunciativo é ainda
menos explicitado: no primeiro, Ariano Suassuna de certa forma denuncia a
condição de vida do vaqueiro, ao afirmar que na vaquejada ele “se torna mais
importante como personagem do que é como pessoa”; no segundo, um único
vaqueiro mais velho diz que vai abandonar a profissão – “o que eu ganhava não
dava pra eu viver” –, mas é a “voz da música” que se encarrega de fazer o
comentário crítico acerca do tema, por meio de canções em que a morte e a
despedida do vaqueiro podem ser lidas como alegorias do fim da profissão.
148
Trechos da locução em Memória do cangaço e A morte do boi, respectivamente.
149
O recurso aparece de maneira mais enfática em Erva Bruxa e Jaramataia.
167
Não devemos esquecer que os documentários integram um projeto maior
encabeçado por Farkas, que acreditava no potencial educativo dos filmes, sendo
que uma de suas propostas era vendê-los a escolas para serem utilizados como
material didático de apoio ao professor em sala de aula, ideia mais enfatizada na
2ª fase de produção da Caravana, quando os cineastas viajam para documentar
a região Nordeste do Brasil. Pensando nos títulos de Paulo Gil Soares, há uma
preocupação informativa, que se alinha com este objetivo – o mesmo não
podemos dizer sobre o conjunto de Sergio Muniz, por exemplo, cuja
experimentação de linguagem nos filmes pesa mais que sua retórica.
Quando foi diretor do programa de televisão Globo Repórter, na década
de 1970, Paulo Gil chegou a afirmar em entrevista ao jornal O Globo:
“Documentário é informação, principalmente”. Para ele, informar não significa ser
imparcial. Seus documentários na Caravana não tentam se isentar diante dos
temas: são críticos diante da religião, da economia, das relações de trabalho,
sobretudo no meio rural; mostram miséria, escancaram o subdesenvolvimento,
exploram as contradições do capitalismo. Neles perpassa um tom pessimista
diante dessa realidade, o que traz implicações ao propósito político do projeto,
de “educar” o espectador. Qual Brasil os filmes pretendiam mostrar? Sem dúvida,
um país que contrastava com os lemas de progresso e desenvolvimento
proferidos em âmbito governamental: a escolha do que documentar já marca
uma postura política.
No caso dos filmes de Paulo Gil Soares, todos retratam o Nordeste150,
sobretudo o Sertão, espaço emblemático para muitos cineastas do Cinema
Novo, que até hoje persiste como local mítico. Seus documentários têm
coerência temática: cinco títulos estão relacionados ao ciclo do gado (A mão do
homem, Jaramataia, A morte do boi, Vaquejada e O homem de couro); um é
sobre o “ciclo do fumo” na Bahia (Erva Bruxa); um recupera um fato histórico
(Memória do cangaço); o outro é sobre religião (Frei Damião: trombeta dos
aflitos, martelo dos hereges). Vaqueiros e lavradores são personagens
recorrentes, mas falaremos mais sobre eles adiante.
Vale lembrar que Viramundo, documentário dirigido por Geraldo Sarno na 1ª fase da Caravana
Farkas, trata da migração de nordestinos, mas foi filmado em São Paulo. Já Sergio Muniz filmou
em outras regiões na 3ª fase da Caravana, como o Sul.
150
168
O tom pessimista ao qual nos referimos anteriormente fica patente porque
existe uma ideia de permanência das situações retratadas nos filmes de Paulo
Gil Soares na Caravana. Quer dizer, seus documentários não apresentam
perspectivas de transformação para aquelas realidades e pessoas. Fazem
denúncias, mas não chegam a apontar soluções, vislumbrar mudanças, dando
a entender que tudo continuará como está. Deste modo, consideramos que os
filmes são atravessados pela impressão de um tempo circular, um eterno ciclo
de condições das quais não há escapatória: seja o vaqueiro Gregório de
Memória do cangaço, que continua a viver em situação precária, como aqueles
que décadas anteriores entraram para o cangaço; sejam os devotos de Frei
Damião, cuja solução para a pobreza está no divino. Essa ideia é encontrada,
ainda, em títulos que terminam com a locução em voz over justamente
reforçando tal percepção, caso de A mão do homem: “E o ciclo se cumpre.
Encourado, o homem parte para o campo e vai cuidar do gado, que um dia
cederá a sua pele para novamente vesti-lo”.
Aproveitando o ensejo, a natureza da voz over nos documentários de
Paulo Gil Soares é outro aspecto singular: trata-se da voz do próprio diretor151,
ao contrário do que ocorre nos filmes dos demais realizadores da Caravana
Farkas, que optam por contratar locutores profissionais152. Trata-se de um
“diretor-locutor” cuja voz over – com sotaque baiano que não passa
desapercebido – funciona ora como uma “voz de Deus”, didática ou assertiva,
ora como uma “voz lírica”, quando mimetiza um poeta e recita versos de poesias
populares – caso de Memória do cangaço, Vaquejada e O homem de couro.
Nestes filmes, a alternância entre a fala em prosa e em verso torna-se também
um deslocar da objetividade para a subjetividade.
A propósito, a fala tem mais peso nos documentários de Paulo Gil do que
nos títulos dos demais realizadores da Caravana: é preciso prestar atenção no
que as diversas vozes dizem. Além da locução, os depoimentos de personagens
são fundamentais e em alguns filmes a música cumpre um papel de “locutor
A informação não consta nos créditos dos documentários, mas é confirmada pelos
realizadores da Caravana Farkas e por outros pesquisadores, como LUCAS (2012), SOBRINHO
(2008, 2010, 2011, 2012 e 2013) e RAMOS (2008).
151
Embora não seja o intuito aqui a comparação com outros filmes, para além da Caravana
Farkas, é notório que o emprego da voz do próprio diretor na locução seja um procedimento que
se tornou praxe no documentário brasileiro realizado nas décadas seguintes.
152
169
auxiliar”, chegando até mesmo a conduzir a narrativa. Convivem com estes
recursos imagens mais observativas, como aquelas que mostram Frei Damião
no contato com os fiéis em Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos
hereges; vaqueiros durante o trabalho no campo em O homem de couro; um
homem benzendo outro no prólogo de Jaramataia. Ou seja, dependendo da
sequência e do documentário em questão, há níveis diversos de “modos de
representação” documental (NICHOLS, 1997 e 2010). Consequentemente, é
também difícil filiar os oito filmes somente à tradição do documentarismo inglês
da primeira década do século XX, tampouco apenas ao cinéma vérité ou ao
direct cinema da década de 1960, pois há a preponderância de um ou outro a
depender do título. Por exemplo, A morte do boi pode ser considerado um filme
mais expositivo que remete ao documentário inglês; já Frei Damião: trombeta
dos aflitos, martelo dos hereges, realizado no mesmo ano, é marcado pela
interação do diretor com Frei Damião e pela observação deste personagem em
instantes que aparentam maior distanciamento do cineasta: uma junção de
práticas do cinéma vérité e do direct cinema.
Mencionamos a importância dos personagens e eles são um parâmetro
significativo para marcar as diferenças entre os documentários de Paulo Gil
Soares e de outros realizadores da Caravana Farkas. Um primeiro ponto é que
o diretor convoca pessoas mais diversas para dar depoimentos do que outros
cineastas, que acabam ouvindo mais o “outro de classe”. Nos filmes de Paulo
Gil, há o que denominamos de personagens com poder: o intelectual, o coronel,
o médico, o empresário, o dono da fazenda, o sindicalista, o religioso. Também
há personagens que são “outro de classe”: vaqueiros, lavradores, excangaceiros, artesãos.
Estas duas categorias de personagens apresentam particularidades.
Sobre os personagens com poder, é possível afirmar que há conflito com a
maioria deles, um movimento de autorizar/desautorizar seus discursos, seja no
instante da tomada ou fora dela (neste caso pela intervenção da locução ou pela
articulação da montagem). É um aspecto que também diferencia os filmes de
Paulo Gil Soares de outros da Caravana. Quanto aos personagens que são
“outro de classe”, ao contrário, parece haver uma defesa que os documentários
fazem deles, refletindo uma postura comum do intelectual de esquerda da
década de 1960 no Brasil em sua aspiração de ser “porta-voz” do “povo”.
170
Em Memória do cangaço, encontramos as duas situações acima. Há, por
exemplo, um conflito com o catedrático Estácio de Lima fora do momento da
entrevista, em que a locução questiona a plausibilidade de seu depoimento,
colocando em dúvida a autoridade intelectual. Também há a defesa do “outro de
classe”: o vaqueiro Gregório é entrevistado por Paulo Gil Soares – que aparece
enquadrado ao lado dele e do operador de áudio –, cujas perguntas e respostas
em torno do acesso a direitos básicos (educação e saúde) sugerem tratar-se de
uma vítima, como também reitera a narração do “diretor-locutor”.
Um segundo ponto sobre os personagens que diferencia os filmes do
diretor dos demais é que temos acesso aos nomes de vários deles, o que indica
uma tentativa de acessar suas subjetividades; nos títulos de Sergio Muniz e
Geraldo Sarno isto ocorre com bem menos frequência.
Um terceiro ponto, neste mesmo sentido, é que há tensões entre o coletivo
e o individual quanto ao “outro de classe”, que ora é “anônimo” e representa um
tipo ou categoria social; ora é individualizado, quando aspectos de sua vida, em
particular, são acessados. Zé Galego em O homem de couro é o mais exemplar
dessa concomitância, pois tanto representa o mito do vaqueiro, quanto é
mostrado como um sujeito em especial, que tem esposa, filhos e preferências na
profissão. Poderíamos ainda apontar a beata (de nome desconhecido) em Frei
Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges; o artesão Moisés de Oliveira
em A mão do homem. Desta forma, consideramos que é preciso repensar a
associação dos documentários com o “modelo sociológico” sugerido por
Bernardet (2003), que pressupõe, entre outras coisas, que as pessoas filmadas,
no caso, representantes da “voz da experiência”, são dissolvidas da condição de
sujeitos para funcionarem apenas como amostragem, objetos de análise do
cineasta. Em nossa interpretação, há a tentativa de aproximação com o outro
nos documentários de Paulo Gil Soares.
O quarto e último ponto a destacar relacionado aos personagens é, para
nós, bastante emblemático. Diferentemente de Geraldo Sarno ou Sergio Muniz,
ouvimos – em Memória do cangaço também vemos em uma circunstância –
Paulo Gil Soares durante o encontro com o outro: ele se revela mais como
sujeito, não é alguém que está sempre fora do mundo histórico representado.
Quando a presença do realizador é percebida na tomada (mesmo que seja
somente sua voz), aspectos de sua performance vêm à tona, especialmente sua
171
postura como repórter investigativo, a partir das perguntas que faz aos
entrevistados, traço que também o distingue dos outros diretores. Trata-se de
alguém que “[...] provoca, entrevista, confronta os agentes/sujeitos do filme”
(BALTAR, 2010, p.1).
Por fim, a apropriação da cultura popular no discurso documentário do
diretor também atesta singularidades de sua “voz”. Com exceção de A mão do
homem, que trata do artesanato popular, e de Vaquejada, que registra a festa
popular entre os vaqueiros, a cultura popular não é o tema em si dos filmes –
como a maioria dos títulos de Geraldo Sarno, por exemplo –, mas uma ponte
para a compreensão dos universos retratados. Sobre o documentário citado de
Paulo Gil Soares, é dedicado a Lina Bo Bardi (a informação aparece nos
créditos), arquiteta italiana que morou entre 1958 e 1964 em Salvador, na Bahia,
influenciando uma geração de artistas e intelectuais que pensavam politicamente
de forma parecida.
Há um diálogo entre as ideias de Bo Bardi acerca da arte/cultura popular
e os documentários de Paulo Gil Soares, que conviveu com a arquiteta nesse
período em que ela esteve em Salvador, assim como Glauber Rocha e Geraldo
Sarno. A mão do homem, por exemplo, traz no próprio título a referência a uma
exposição realizada por Lina no mesmo ano do documentário, reunindo objetos
populares feitos por homens e mulheres do Nordeste. Objetos análogos aos que
estão no filme, como o chapéu e a sela de couro. Além disso, a narração e os
personagens encontram correspondência no texto da arquiteta intitulado
Civilização do Nordeste (BARDI, 1994, p.34-41), sintetizando seu debate
cultural, que abriu outra exposição feita por ela anos antes em Salvador (em
1963), no Museu de Arte Popular – espaço que idealizou e pretendia promover
o diálogo entre a cultura popular nordestina e a arte moderna e contemporânea.
Apesar de Geraldo Sarno comentar sobre a influência de Bo Bardi em seu
cinema, Paulo Gil explicita isto no próprio documentário em homenagem a ela.
Ademais, se a arquiteta via uma potência nas formas dos objetos populares
como possível de ser incorporada ao design industrial, quando o diretor se
apropria de materiais da cultura popular, notadamente a poesia de cordel, esta
torna-se um elemento muito potente em suas narrativas. Por isso, no capítulo 3
enfatizamos a observação da poesia popular em três documentários de Paulo
Gil na Caravana: Memória do cangaço, Vaquejada e O homem de couro.
172
Apropriadas nos três títulos com intensidades diferentes, consideramos
que nos momentos em que a poesia popular aparece evidencia-se o choque
entre o saber do cineasta e o saber popular. Em Memória do cangaço, por
exemplo, o letreiro com trechos modificados de uma poesia de cordel provoca
reflexão sobre o fazer documental, colocando em xeque tudo o que vimos e
ouvimos no documentário. Em Vaquejada, há uma tentativa de ilustrar os versos
de cordel recitados pelo “diretor-locutor” com as imagens do filme, porém, o
mesmo não acontece com a canção interpretada por Cego Birrão, também com
trechos de poesias de cordel, que encarna o eu-lírico de um vaqueiro
interpretando romanticamente a festa. Cabe lembrar que ainda há a
interpretação social da vaquejada feita por Ariano Suassuna neste filme. Já em
O homem de couro, nossa análise dividiu-se entre a observação de sua trilha
musical – mais rica em materiais da cultura popular do que os demais títulos – e
dos versos recitados pela locução. Constatamos que a letra da canção neste
documentário (também com versos de cordel) fala da profissão do vaqueiro de
forma crítica – elas tratam da morte e da despedida do vaqueiro da fazenda –,
reverberando o depoimento de um único personagem, sendo uma tarefa que a
locução não faz.
As poesias populares incorporadas por meio da locução, da canção, são
discursos extraídos do “povo”, da “voz do saber”, atentando para o fato de que o
cordel nordestino também é originário de manifestações que remontam à Idade
Média na Europa. Por outro lado, se estão nos filmes é porque foram escolhidas
pelo cineasta, o que não deixa de ser ambíguo. Prestando atenção no que dizem
os versos da poesia popular nos documentários, percebe-se a construção de um
discurso que não se molda por uma relação tão sociológica, pois o saber do
intelectual (do cineasta) e o saber do outro “povo” estão amalgamados por meio
da linguagem cinematográfica, permitindo que o espectador faça sua própria
leitura.
Pensando de forma comparativa, os filmes de Paulo Gil Soares não
indicam que a cultura popular estaria em vias de desaparecer, como colocam
alguns títulos de Geraldo Sarno, nem se apropriam dos materiais numa chave
tropicalista, como ocorre nos documentários de Sergio Muniz. Neste sentido, a
maneira como a cultura popular é incorporada aos filmes de Paulo Gil retoma a
ideia de tempo circular, a que nos referimos anteriormente.
173
Consideramos, ainda, que é necessário avançar na discussão, para além
da apropriação da poesia popular como instância discursiva que atua na locução,
na canção ou nos letreiros dos documentários de Paulo Gil Soares na Caravana
Farkas. Mesmo nos filmes em que a poesia popular não é incorporada na
linguagem,
há uma relação
que
extrapola o servilismo
explícito:
o
compartilhamento de certa lógica que perpassa os textos dos poetas populares.
Como nas poesias populares, há embate entre bem/mal que, nos filmes, pode
ser tomado como o embate explorado/explorador, presente de formas diferentes
em todos os títulos.
Defendemos também que não é possível olhar para o conjunto de
documentários de Paulo Gil de forma evolutiva, pois, como explicar que títulos
realizados no mesmo ano (os sete feitos na 2ª fase da Caravana) sejam
estruturados de maneiras tão diversas?
Para finalizar, a “voz” de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas tenta, ao
buscar o outro, revelar sua condição, geralmente fazendo denúncias que
atestam contradições do capitalismo. Por outro lado, essa “voz” expõe as
contradições do próprio cineasta, implicadas por suas escolhas nos filmes. Ao
apontarmos as singularidades dos documentários de Paulo Gil dentro dessa
experiência marcante do cinema brasileiro, percebemos o quanto é necessário
olhar de forma menos generalizante para a produção documental da década de
1960, atentando para suas diversas “vozes”.
174
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A CORAJOSA “CONDIÇÃO BRASILEIRA”. Revista Novidades Fotoptica, São
Paulo, v. 14, n. 50, p. 11-13, ago. 1971.
ALENCAR, Miriam. As proezas de Paulo Gil. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 jun.
1968. Caderno B, p.8.
_____. Memórias de um baiano. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 jan. 1966.
Caderno B, p.2.
ANDRADE, Mário de; ALVARENGA, Oneyda; TONI, Flávia Camargo. Dicionário
musical brasileiro. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Itatiaia, 1989.
AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. A Análise do filme. Lisboa: Texto & Grafia,
2004.
AUTRAN, Arthur. Leon Hirszman: em busca do diálogo. In: TEIXEIRA, Francisco
Elinaldo (org.). Documentário no Brasil: tradição e transformação. São Paulo:
Summus, 2004, p.199-226.
AYMORÉ, Artur. O cangaço segundo Paulo Gil. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,
30.set.1965, Caderno B, p.5.
BALTAR, Mariana. A nova-velha dramaturgia da performance do
documentarista. Catálogo da mostra Cineasta e Imagens do Povo, 2010.
Disponível
em:
<http://www.cineastaseimagensdopovo.com.br/05_01_006_textos.html>.
Acesso em: 08.fev.2015
_____. A performance da cena negociada. Revista Nau, São Paulo, v. 1, n.2, p.
163-178, ago.-dez. 2008.
_____. Realidade Lacrimosa: diálogos entre o universo do documentário e a
imaginação melodramática. Tese (Doutorado em Comunicação) – Programa de
Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Federal Fluminense, Niterói,
2007.
BARDI, Lina Bo. Tempos de grossura: o design do impasse. São Paulo: Instituto
Lina Bo e P.M. Bardi, 1994.
BARNOUW, Erik. El documental: Historia y estilo. Barcelona: Editorial Gedisa S/A,
1996.
175
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, 1921.
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia (trad. Júlio Castañon
Guimarães). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BERNARDET, Jean-Claude. A voz do outro. In: NOVAES, Adauto (org.). Anos
70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Senac, 2005, p.295-310.
_____. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a
1966. São Paulo: Companhia das letras, 2007.
_____. Cinema brasileiro: propostas para uma história. São Paulo: Companhia
das letras, 2009.
_____. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
_____. Documentários de busca: 33 e Passaporte Húngaro. In: LABAKI, Amir e
MOURÃO, Maria Dora (orgs.). O Cinema do Real. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
_____. Historiografia clássica do cinema brasileiro. São Paulo: Annablume,
2008.
_____. O Nordeste congelado pelo cinema. Opinião, Rio de Janeiro, 26.dez.
1975, p.20.
_____; GALVÃO, Maria Rita. Cinema, repercussões em caixa de eco ideológica:
(as idéias de “nacional” e “popular” no pensamento cinematográfico brasileiro).
São Paulo: Brasiliense, 1983.
BIBLIOTECA DIGITAL DA FUNDAÇÃO BILBIOTECA NACIONAL. Hemeroteca
digital. Disponível em: http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/. Acesso em:
10.abr.2015.
BRUZZI, Stela. Narration: The film and its voice. In: _____. New Documentary: a
critical introduction. London and New York: Routledge, 2006, p.47-72
BURTON, Julianne. Democratizing Documentary: Modes of Address in the New
Latin American Cinema, 1958-1972. In: _____. The Social Documentary in Latin
America (1990), p. 49-84.
CASCUDO, Luis da Câmara. Vaqueiros e cantadores. 81. ed. São Paulo: Itatiaia
Edusp, 1984.
176
CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil (Rio de Janeiro-RJ). A Caravana
Farkas: documentários 1964-1980. Rio de Janeiro, 1997.
CENTRO NACIONAL DE FOLCLORE E CULTURA POPULAR. Vinculado ao
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) do Ministério da
Cultura (MinC). Acervos digitais. Cordelteca. Disponível
em:
<http://www.cnfcp.gov.br/interna.php?ID_Secao=65>. Acesso em: 10.abr.2015.
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no
Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986.
_____. O nacional e o popular na cultura brasileira: Seminários. 2. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
CINEMATECA BRASILEIRA. Filmografia do Cinema Brasileiro. Disponível em:
http://www.cinemateca.gov.br. Acesso em: 10.abr.2015.
COELHO, Sandra. A questão da autoria no filme documentário e o caso Jean
Rouch: uma perspectiva de análise. Rumores, ano 6, ed. 12, n.2, p.233-252, jul.dez. 2012. Disponível em:<http://www3.usp.br/rumores/pdf/rumores12_13.pdf>.
Acesso em: 01.abr.2015.
COMOLLI, Jean-Louis. Sob o risco do real. In: ____. Ver e poder: a inocência
perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Tradução Augustin de Tugny;
Oswaldo Teixeira; Ruben Caixeta. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p.169178.
CORNER, John. Sounds real: Music and documentary. Popular Music,
Cambridge, v. 21, n.3, p. 357-366, out. 2002. Disponível em:
<http://www.jstor.org/discover/10.2307/853724?uid=2&uid=4&sid=2110677711
1373>. Acesso em: 02.fev.2015.
CUNHA, Wilson. Primeira crítica. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 mar.1971,
1º Caderno, p.14.
DA-RIN, Silvio. Verdade e imaginação. In: ____. Espelho partido: tradição e
transformação do documentário. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p.149167.
D´ALMEIDA, Alfredo Dias. Caravana Farkas (1968/1970): a cultura popular (re)
interpretada pelo filme documentário – um estudo de folkmídia. Dissertação
(Mestrado em Comunicação) – Departamento de Comunicação Social,
Universidade Metodista de São Paulo, São Paulo, 2003.
177
FARKAS, Thomaz. Cinema documentário: um método de trabalho. Tese
(Doutorado em Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 1972.
_____. Notas de viagem. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
_____. Depoimento para o documentário Thomaz Farkas, brasileiro (Walter Lima
Jr., 2003).
FERREIRA, Jerusa Pires. Cavalaria em cordel: o passo das águas mortas. São
Paulo: Editora de Humanismo, Ciência e Tecnologia Hucitec Ltda.,1993.
FILHO, José Figueiredo. Folclore no Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitária do
Ceará, 1962.
FREIRE, Marcius. Caravana Farkas: uma experiência brasileira. São Paulo:
Rumores,
v.
3,
n.1,
set/dez.
2009,
s/p.
Disponível
em:
<http://www.revistas.usp.br/Rumores/article/view/51166>.
Acesso
em:
01.abr.2015.
_____. O autor no documentário. In: _____. Documentário: ética, estética e
formas de representação. São Paulo: Annablume, 2011, p.220-274.
GENETTE, Gerard. Cinco tipos de transtextualidade, dentre as quais a
hipertextualidade. Tradução Luciene Guimarães. In: _____.Palimpsestos: a
literatura de segunda mão. Belo Horizonte: Fale, 2006, p.7-15.
GOFFMAN, Erving. Introdução. In: ____. A representação do eu na vida
cotidiana. Tradução Maria Célia Santos Raposo. Petrópolis: Vozes, 1985, p.1124.
GOMES, João Carlos Teixeira. Glauber Rocha: esse vulcão. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1997.
GOMES, Paulo Emílio Sales. Novembro em Brasília (1965). In: ____. Crítica de
Cinema no Suplemento Literário – Vol. 2. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981,
p.455-459.
GRINOVER, Marina Mange. Lina Bo Bardi e Glauber Rocha: diálogos para uma
filosofia da “práxis”. 50 anos de Lina Bo Bardi: na encruzilhada da Bahia e do
Nordeste,
Salvador,
2010.
Disponível
em
<http://www.docomomobahia.org/linabobardi_50/15.pdf>.
Acesso
em:
06.jun.2014.
178
GUIMARÃES, Clotilde Borges. A introdução do som direto no cinema
documentário brasileiro na década de 1960. Dissertação (Mestrado em Ciências
da Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2008.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e
desbunde 1960/1970. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.
KASSABIAN, Anahid. Hearing film: Tracking Identifications in Contemporary
Hollywood Film Music. New York: Routledge, 2001.
LOPES, Sidnei Paiva. Depoimento. Entrevistadora: Joyce Cury. Monte Alegre do
Sul: 2013. 2 cartões de memória (120 min.), estéreo
LUCAS, Meize. Caravana Farkas: itinerários do documentário brasileiro. São
Paulo: Annablume, 2012.
MACDOUGALL, David. Transcultural cinema. New Jersey: Princeton University
Press, 1998.
MACHADO, Vanessa Rosa e SANTOS, Fábio Lopes de Souza. Lina Bo Bardi e
a cultura material popular. 50 anos de Lina Bo Bardi: na encruzilhada da Bahia
e
do
Nordeste,
Salvador,
2009.
Disponível
em:
<http://www.docomomobahia.org/linabobardi_50/22.pdf>.
Acesso
em:
06.jun.2014.
MAGOSSI, José Eduardo Gonçalves. O folclore na indústria fonográfica – A
trajetória da Discos Marcus Pereira. Dissertação (Mestrado em Meios e
Processos Audiovisuais) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2013.
MARCOLIN, Neldson; MOURA, Mariluce. Otimista e delirante, mas nem tanto.
Revista Fapesp, São Paulo, ed. 131, jan. 2007. Disponível em:
<http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/01/01/otimista-e-delirante-mas-nemtanto/. Acesso em: 01 fev. 2013.
MARTINS, João. Justiça para Lampião. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p.1-2, 06 jun.
1959. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/>. Acesso em:
10.abr.2014.
MESQUITA, Claudia. A Caravana Farkas e nós. São Paulo: Sinopse - Revista
de Cinema, ano 8, n.11, p.2-9, set. 2006.
MONZANI, Josette. Gênese de Deus e o diabo na terra do sol. São Paulo:
Annablume, 2006.
179
MORETTIN, Eduardo V. Dimensões históricas do documentário brasileiro no
período silencioso. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 25, n. 49, p.125152,
jan.-jun.
2005.
Disponível
em:
<http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=26304907>. Acesso em: 01.abr.2013.
MÜLLER, Jürgen E. Intermidialidade revisitada: algumas reflexões sobre os
princípios básicos desse conceito. In: DINIZ, Thais; VIEIRA, André (orgs.).
Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea volume 2.
Belo Horizonte: Rona Editora, Fale/UFMG, 2012, p.75-95. Versão online
disponível
em:
<http://www.letras.ufmg.br/site/Elivros/Intermidialidade%20e%20Estudos%20Interartes%20%20Desafios%20da%20Arte%20Contempor%C3%A2nea%202.pdf>. Acesso
em: 01.abr.2015.
MUNIZ, Paula. Globo Repórter: os cineastas na televisão. Mnemocine, São
Paulo,
2001.
Disponível
em:
<http://www.mnemocine.com.br/aruanda/paulogil1.htm>. Acesso em: 02 jul.
2012.
MUNIZ, Sergio. Cinema direto: anotações. Mirante das Artes, Rio de Janeiro,
n.1,
p.44,
jan.-fev.1967.
Disponível
em:
<http://www.carmattos.com/2013/11/05/cinema-direto-a-brasileira/>.
Acesso
em: 01.nov.2013.
NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. São Paulo:
Contexto, 2014.
_____. O regime militar brasileiro: 1964-1985. São Paulo: Atual, 1998.
NEMER, Sylvia. Glauber Rocha e a literatura de cordel: uma relação intertextual.
Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2007.
NEVES, David. A descoberta da espontaneidade (Breve histórico do cinema
direto no Brasil). 1966. Contracampo revista de cinema, Rio de Janeiro, n.39,
mai.
2002,
s/p.
Disponível
em:
<http://www.contracampo.com.br/39/cinemadiretobrasil.htm>.
Acesso
em:
11.set.2014.
_____. Cinema nôvo no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1966.
NICHOLS, Bill. Fred Wiseman’s documentaries: Theory and structure. Film
Quarterly, v.31, n. 3, p. 15-28, spring 1978. Disponível em:
<http://www.jstor.org/stable/1211723>. Acesso em: 11.dez.2014.
_____. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2010.
180
_____. La representación de la realidad: Cuestiones e conceptos sobre el
documental. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica AS, 1997.
NÚÑEZ, Fabián Rodrigo Magioli. O que é nuevo cine latinoamericano? O Cinema
Moderno na América Latina segundo as revistas especializadas
latinoamericanas. Tese (Doutorado em Comunicação) – Programa de PósGraduação em Comunicação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.
ODIN, Roger. Filme documentário, leitura documentarizante. Tradução Samuel
José Holanda de Paiva. Significação – Revista de Cultura Audiovisual, São
Paulo,
ano
39,
n.37,
p.10-30,
2012.
Disponível
em:
<
http://www.revistas.usp.br/significacao/article/view/71238/74234>. Acesso em:
01.jun.2013.
O PÃO nosso de cada dia de Norte a Sul do Brasil. O Globo, Rio de Janeiro,
25.mar.1972, Matutina, Geral, p. 13.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 5. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
PAIVA, Samuel e CURY, Joyce. Revendo imagens do povo pela locomoção e
politização. Revista Novos Olhares, São Paulo, v. 3, n. 2, p. 100-112, fev.2015.
Disponível
em:
<http://www.revistas.usp.br/novosolhares/article/viewFile/90207/92915>.
Acesso em: 01.mar.2015.
PARENTE, André. O cinema direto. In: ____. Narrativa e modernidade: os
cinemas não-narrativos do pós-guerra. Tradução Eloísa Araújo Ribeiro.
Campinas: Papirus, 2000, p. 110-129.
PAULO GIL explica a mensagem social do cinema-verdade. Correio da manhã,
Rio de Janeiro, 15 out. 1966, 1º Caderno, p.7.
PEDRASSE, Carlos Eduardo. Banda de Pífanos de Caruaru: uma análise
musical. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2002.
PEREIRA, Rubens Alves. Painel do vasto Sertão. Revista Légua & meia, ano 1,
n.1,
jul.
2002,
p.123-136.
Disponível
em:
<http://leguaemeia.uefs.br/1/1_123_painel.pdf>. Acesso em: 10.abr.2015.
PEREIRA, Miguel. Cinema e estado: um drama em três atos. In: XAVIER, Ismail;
BERNARDET, Jean-Claude; _____. O desafio do cinema: A Política do Estado
e a Política dos Autores. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p.47-64.
181
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Os cangaceiros. São Paulo: Duas Cidades,
1977.
QUINTELA, Vilma. Particularidades do cordel como um fenômeno midiático
popular. Concepções, v. 1, p. 83-101, 2012.
RAMOS, Clara Leonel. A construção do personagem no documentário brasileiro
contemporâneo: autorrepresentação, performance e estratégias narrativas. Tese
(Doutorado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes,
Universidade de São Paulo, São Paulo 2013.
_____. As múltiplas vozes da Caravana Farkas e a crise do “modelo sociológico”.
Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação) – Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
RAMOS, Fernão Pessoa. Cinema verdade no Brasil. In: TEIXEIRA, Francisco
Elinaldo (org.). Documentário no Brasil: tradição e transformação. São Paulo:
Summus, 2004, p.81-96.
_____. Mas afinal... O que é mesmo documentário? São Paulo: Senac, 2008.
RAMOS, José Mario Ortiz. Cinema, estado e lutas culturais: anos 50/60/70. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
RIDENTI, Marcelo. Brasil, anos 60: povo, nação, revolução. In: ____. Em busca
do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro:
Record, 2000, p.19-59.
RISÉRIO, Antonio. Avant-garde na Bahia. São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M.
Bardi, 1995.
RODRIGUES, Mayra. Exposições de Lina Bo Bardi. Trabalho de Conclusão de
Curso (Graduação) – Faculdade de Artes e Urbanismo, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2008.
ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
RUBINO, Silvana. Rotas da modernidade: trajetória, campo e história na atuação
de Lina Bo Bardi. Tese (Doutorado em Antropologia) – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002.
SACRAMENTO, Igor. Depois da revolução, a televisão: cineastas de esquerda
no jornalismo televisivo dos anos 1970. Dissertação (Mestrado em Comunicação
e Cultura) – Escola de Comunicação, Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
182
SANTEIRO, Sergio. Conceito de dramaturgia natural. Filme Cultura, Rio de
Janeiro, n. 30, p.80-85, ago. 1978.
SARNO, Geraldo. Cadernos do sertão. Salvador: Núcleo de Cinema e
Audiovisual (NAU), 2006.
SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-1969. In:____. O pai de família e
outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (1ª ed. 1978), p.70-111.
SERAFIM, José Francisco. O autor no cinema documentário. In: ___ (org.) Autor
e autoria no cinema e na televisão. Salvador: EDUFBA, 2009, p.33-47.
SOARES, Leôncio e FÁVERO, Osmar (org.). I Encontro Nacional de
Alfabetização e Cultura Popular. Brasília: Ministério da Educação; Secretaria de
Educação Continuada; Alfabetização e Diversidade; UNESCO, 2009.
SOARES, Paulo Gil. O homem de couro. Material publicitário da Thomaz Farkas
Filmes Culturais, Cinemateca Brasileira, São Paulo, 1969.
_____. Vida, paixão e mortes de Corisco, o Diabo Louro. Porto Alegre: L&PM,
1984.
SOBRINHO, Gilberto Alexandre. A Caravana Farkas e o moderno documentário
brasileiro: introdução aos contextos e conceitos dos filmes. In: HAMBURGER,
Esther et al (org.). IX Estudos de Cinema e Audiovisual Socine. São Paulo:
Annablume, 2008, p.155-162.
_____. Da intuição à realização: os filmes e as ideias de Sergio Muniz. Revista
Doc On-line, n. 12, p.245-260, ago. 2012. Disponível em: <
http://www.doc.ubi.pt/12/entrevista_gilberto_sobrinho.pdf>.
Acesso
em:
12.jun.2013.
_____. Os documentários de Geraldo Sarno (1964-1971): das catalogações e
análises do universo sertanejo aos procedimentos reflexivos. ALCEU, Rio de
Janeiro,
v.13,
n.26,
p.86-106,
jan.-jun./2013.
Disponível
em:
<http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/artigo6_26.pdf>.
Acesso
em:
14.mai.2013.
______. Sob os signos da transição: a Caravana Farkas e o moderno
documentário brasileiro. Relatório parcial de pesquisa. 2010 [material não
publicado].
_____. Sérgio Muniz no cinema e na TV: experimentação e negociação. In:
CÁNEPA, Laura et al (org.). XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine. São
Paulo:
Socine,
2011,
p.313-324.
Disponível
em:
183
<http://socine.org.br/livro/XII_ESTUDOS_SOCINE_V1_b.pdf>
12.jun.2013.
Acesso
em:
_____. Telas em mutação: da memória da TV às memórias dos sertões. Revista
Doc
On-line,
n.
15,
p.359-384,
dez.
2013.
Disponível
em
<http://www.doc.ubi.pt/15/artigos_gilberto_sobrinho.pdf>.
Acesso
em:
10.jun.2014.
SOUZA, Gustavo. A questão da autoria na produção de documentários de
periferia. ALCEU, Rio de Janeiro, v.12, n.24, p.109-121, jan.-jun. 2012.
Disponível em: <http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/Artigo%209_24.pdf>.
Acesso em: 21.dez.2014.
TERRA, Ruth Britos Lêmos. Memória de Lutas: Literatura de Folhetos do
Nordeste 1893-1930. São Paulo: Global Ed., 1983.
VALLEJO, Aida. Protagonistas de lo real: la construcción de personajes en el
cine documental. Secuencias: Revista de historia del cine, Madri, n. 27, p. 72-89,
2008.
Disponível
em:
<
https://repositorio.uam.es/xmlui/bitstream/handle/10486/3946/27476_27.4.pdf?s
equence=1 >. Acesso em: 10.jul.2014
VERGARA, Ximena. Canto a lo poeta y literatura de cordel en filmes chilenos y
brasileros de las décadas del sesenta y setenta. In: VILLAROEL (org.). Travesías
por el cine chileno y latino americano. Santiago: LOM ediciones; Centro Cultural
La Moneda, 2014, p.91-101.
VERGER, Pierre. Notas sobre o culto aos orixás e voduns na Bahia de Todos
os Santos, no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, na África (trad. Carlos
Eugênio Marcondes de Moura). 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2000.
VIANY, Alex. O processo do cinema novo. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999.
WAUGH, Thomas. Acting to play oneself. In: ____. The right to play oneself:
looking back on documentary film. Minneapolis: University of Minnesota Press,
2011, p.71-92.
WINSTON, Brian. A tradição da vítima no documentário griersoniano. In:
PENAFRIA, Manuela (org.). TRADIÇÃO E REFLEXÕES: contributos para a
teoria e estética do documentário. Covilhã: LabCom Books, 2011, p.58-81.
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo,
cinema marginal. 2.ed. São Paulo: Cosac Naif, 2013.
184
_____. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
185
FICHA TÉCNICA DOS FILMES QUE CONSTITUEM O CORPUS DA
PESQUISA
A mão do homem, cor / 19´/ 16 mm / 1969-70, direção e roteiro: Paulo Gil Soares;
produção: Thomaz Farkas; fotografia: Affonso Beato e Thomaz Farkas; música:
Banda de Pífanos de Caruaru; som direto: Sidnei Paiva Lopes; montagem:
Geraldo Veloso; produção executiva: Edgardo Pallero e Sergio Muniz.
A morte do boi, cor / 11´/ 16 mm / 1970, direção e roteiro: Paulo Gil Soares;
produção: Thomaz Farkas; fotografia: Affonso Beato; música: Banda de Pífanos
de Crato; som direto: Sidnei Paiva Lopes; montagem: Geraldo Veloso; produção
executiva: Edgardo Pallero e Sergio Muniz.
Erva Bruxa, cor / 21´/ 16 mm / 1969-70, direção e roteiro: Paulo Gil Soares;
produção: Thomaz Farkas; fotografia: Affonso Beato; música: Vivaldi, Zequinha
de Abreu e cantos de orixás; som direto: Sidnei Paiva Lopes; montagem: Geraldo
Veloso; produção executiva: Edgardo Pallero e Sergio Muniz.
Frei Damião trombeta dos aflitos, martelo dos herejes (sic), cor / 20´/ 16 mm /
1970, direção e roteiro: Paulo Gil Soares; produção: Thomaz Farkas; fotografia:
Affonso Beato; música: Banda de Pífanos de Caruaru; som direto: Sidnei Paiva
Lopes; montagem: Geraldo Veloso; produção executiva: Edgardo Pallero.
Jaramataia, cor / 20´/ 16 mm / 1970, direção e roteiro: Paulo Gil Soares;
produção: Thomaz Farkas; fotografia: Affonso Beato; música: Banda de Pífanos
de Caruaru e Cego Birrão; som direto: Sidnei Paiva Lopes; montagem: Geraldo
Veloso; produção executiva: Edgardo Pallero e Sergio Muniz.
Memória do Cangaço, p&b / 29´/ 35 mm / 1965, direção e roteiro: Paulo Gil
Soares; produção: Thomaz Farkas; fotografia: Affonso Beato; música: Armindo
de Oliveira; música (cantadores) João Santana Sobrinho e José Canário;
sincronização: Affonso Beato e Paulo Gil Soares; montagem: João Ramiro Melo;
produção executiva: Edgardo Pallero.
O homem de couro, cor / 21´/ 16 mm / 1969-70, direção e roteiro: Paulo Gil
Soares; produção e fotografia: Thomaz Farkas; música: Banda de Pífanos de
Caruaru e Cego Birrão; som direto: Sidnei Paiva Lopes; montagem: Geraldo
Veloso; produção executiva: Edgardo Pallero e Sergio Muniz.
Vaquejada, cor / 11´/ 16 mm / 1970, direção e roteiro: Paulo Gil Soares;
produção: Thomaz Farkas; fotografia: Affonso Beato; música: Cego Birrão e
aboios de vaqueiros do Cariri; som direto: Sidnei Paiva Lopes; montagem:
Geraldo Veloso; produção executiva: Edgardo Pallero e Sergio Muniz.
186