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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM IMAGEM E SOM - PPGIS JOYCE FELIPE CURY O DOCUMENTÁRIO DE PAULO GIL SOARES NA CARAVANA FARKAS: VOZES, PERSONAGENS E CULTURA POPULAR SÃO CARLOS - SP 2015 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM IMAGEM E SOM - PPGIS JOYCE FELIPE CURY O DOCUMENTÁRIO DE PAULO GIL SOARES NA CARAVANA FARKAS: VOZES, PERSONAGENS E CULTURA POPULAR Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som, para a obtenção do título de Mestre em Imagem e Som. Linha de pesquisa: História e Políticas do Audiovisual. Orientador: Prof. Dr. Samuel José Holanda de Paiva SÃO CARLOS - SP 2015 Àqueles que documentam as múltiplas realidades da vida. AGRADECIMENTOS Primeiramente aos meus pais, Joana e Jamil, pelo incentivo e apoio incondicionais desde sempre. Ao meu orientador, Samuel Paiva, que me acolheu em 2012 e confiou no projeto de pesquisa e em mim, com quem tive a oportunidade de aprender e estar em constante diálogo. A Gustavo Souza, que aceitou participar da Qualificação e da Defesa, apresentando ótimas referências ao longo do percurso. Ao professor Arthur Autran, que participou da Qualificação e aceitou prosseguir na Defesa, cuja contribuição ampliou as possibilidades do trabalho. Aos professores do PPGIS da UFSCar, que colaboraram com sugestões e bibliografias valiosas: Flávia Cesarino Costa e Suzana Reck Miranda pelos diálogos que se estenderam para além das aulas; aos professores Luciana Araújo, Alessandro Gamo e Josette Monzani, pela indicação de referências importantes para a realização desta caminhada. Agradeço novamente à Flávia, pela suplência na Qualificação e Defesa. Incluo aqui a professora Naiá Sadi Câmara por aceitar ser suplente na Defesa, que me acompanha desde a graduação. Aos colegas do PPGIS, amigos para todos os momentos, pelo apoio e reflexões: Daniel Maggi, Flávio Rocha, Sancler Ebert, Marina Campos, Mateus Nagime, Daniela Ramos, Juily Manghirmalani, Cid Machado e Tiago Severino. Aos integrantes do grupo Cinemídia, pela pertinência das discussões nos encontros, muitas aproveitadas para questões que travei com meu objeto de pesquisa. Ao Felipe Rossit, secretário do PPGIS, pela solicitude e presteza. À Roberta Assef, que estimulou a aproximação com o PPGIS, quando era mestranda do Programa. Aos amigos: Isaac Mathias (que também ajudou com as traduções), Luciana Garavello, Mariel Meira, Priscila Vitelli, Vivian Takahashi, Enéias Barros e Simei Morais, pela força e lealdade. À Gertrud Romanelli (Trud), da biblioteca da USP de São Carlos, que conseguiu o empréstimo de diversos livros e teses fundamentais para a pesquisa. Às equipes da Cinemateca Brasileira e do Arquivo Multimeios do Centro Cultural São Paulo, que disponibilizaram para cópia os documentos sobre Paulo Gil Soares. Aos cineastas Sergio Muniz e Sidnei Paiva Lopes (in memoriam), integrantes da Caravana Farkas, que se dispuseram a dar entrevistas e contar um pouco mais sobre os filmes que realizaram há 50 anos. À Capes, pela bolsa concedida durante os dois anos em que a pesquisa foi desenvolvida. “Se a escolha dependesse de mim, gostaria de passar a vida fazendo documentários”. Paulo Gil Soares (1935-2000) RESUMO Esta pesquisa lança um olhar para os oito documentários dirigidos por Paulo Gil Soares entre 1960 e 1970 na experiência hoje conhecida como Caravana Farkas, todos realizados no Nordeste brasileiro: Memória do cangaço (1965), Erva Bruxa (1969-70), A morte do boi (1970), A mão do homem (1969-70), Jaramataia (1970), O homem de couro (1969-70), Vaquejada (1970) e Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges (1970). Trata-se de curtas e médias-metragens inseridos num projeto que tinha como intuito “revelar o Brasil aos brasileiros” – em voga no contexto do Cinema Novo –, do qual participaram cineastas que vivenciaram uma experiência de produção bastante singular, na qual percebe-se um compartilhamento de ideias políticas, mas, sobretudo, de opções estéticas e temáticas no campo do documentário. Tentando-nos afastar da generalização acerca dessa experiência, por vezes presente na literatura sobre cinema brasileiro, apontaremos traços distintivos dos oito filmes de Paulo Gil Soares, sendo nosso propósito delinear características da “voz” deste cineasta na Caravana Farkas e, desta forma, diferenciá-lo de outros realizadores da mesma experiência. Para isso, nas análises fílmicas que se sucedem, nos deteremos em três aspectos pertinentes às construções estéticas e discursivas de seus documentários: as vozes acionadas, o modo como os personagens são retratados e as apropriações da cultura popular. Palavras-chave: Documentário brasileiro; Caravana Farkas; Paulo Gil Soares; voz; personagem; cultura popular. ABSTRACT This research takes a look at the eight documentaries directed by Paulo Gil Soares between 1960 and 1970 in the experience that became known today as Caravana Farkas, all of them made in northeastern Brazil: Memória do cangaço (1965), Erva Bruxa (1969-70), A morte do boi (1970), A mão do homem (196970), Jaramataia (1970), O homem de couro (1969-70), Vaquejada (1970) e Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges (1970). It´s about short and medium-length films that were inserted in a project which had the intention to “bring Brazil to the Brazilians” – in vogue in the context of the Cinema Novo – and it was attended by filmmakers who experienced a very singular production, in which it is perceived a share political views and, especially, aesthetics and thematic options in the documentary field. By trying to step away from the generalization about that experience, which is sometimes present the literature on Brazilian cinema, we will point out the distinctive features of the eight Paulo Gil Soares movies. It's our purpose to outline the features of this filmmaker's "voice" in Caravana Farkas and thus differentiate him from other directors of the same experience. For this purpose, in the filmic analysis that follow, we will focus in three relevant aspects to the aesthetic and discursive constructions of his documentaries: the activated voices, the way the characters are portrayed and the appropriation from folk culture. Keywords: Brazilian Documentary; Caravana Farkas; Paulo Gil Soares; voice; character; folk culture. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................. 12 1. CAPÍTULO 1: NA TRILHA DOS FILMES .................................................... 27 1.1 Memória do cangaço (1965) ..................................................................... 27 1.2 Erva Bruxa (1969-70) ................................................................................. 36 1.3 A morte do boi (1970) ............................................................................... 42 1.4 A mão do homem (1969-70) ...................................................................... 46 1.5 Jaramataia (1969-70) ................................................................................. 50 1.6 O homem de couro (1970) ........................................................................ 53 1.7 Vaquejada (1970) ....................................................................................... 56 1.8 Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges (1970) ........... 59 1.9 Esboços de uma “voz” ............................................................................. 61 2. CAPÍTULO 2: APROXIMAÇÃO AO OUTRO: PENSANDO OS FILMES A PARTIR DOS PERSONAGENS ....................................................................... 67 2.1 O embate com o outro em posição de poder .......................................... 69 2.1.1 Intelectuais à prova .................................................................................. 70 2.1.2 Ambiguidades do coronel ....................................................................... 86 2.1.3 Personagens em crise ............................................................................ 94 2.1.4 O proprietário e o sindicalista ou os “vilões do trabalhador” ................... 105 2.2 Tensões com o “outro de classe”: entre o coletivo e o individual …. 111 2.2.1 Quando o outro é heroicizado: o vaqueiro Zé Galego ............................122 3. CAPÍTULO 3: A APROPRIAÇÃO DA CULTURA POPULAR .................. 129 3.1 Diálogos com Lina Bo Bardi .................................................................. 129 3.2 A voz da cultura popular: cordel, aboios e canções ............................. 144 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 165 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................. 175 FICHA TÉCNICA DOS FILMES.......................................................................186 INTRODUÇÃO Meu nome completo é Paulo Gil de Andrada Soares. Andrada de criadores de bois e cabras, na zona do agreste da Bahia; Soares, de antigos exportadores de fumo, do vale do Paraguassu, cidade colonial do Recôncavo baiano com muita saga de gente heróica. Nasci na Bahia, na Rua do Carro. Eu e minha mãe, apenas nós dois: há naturalmente nisto todo o mistério da minha necessidade de olhar a vida com muita pressa, documentando-a tôda necessariamente. O dia foi 6 de agôsto e o ano 1935. Nesse dia, algum tempo depois, foi jogada uma bomba atômica em Hiroshima, por isso hoje não comemoro mais aniversário, vou ficando velho sem bôlo com velinhas (ALENCAR, 1966, p.B2). Assim se apresentou Paulo Gil Soares (1935-2000) em uma entrevista ao Jornal do Brasil em 1966, um ano após dirigir Memória do cangaço (1965), filme que marcou sua carreira como documentarista. Baiano de Salvador, fez parte de uma geração de artistas e intelectuais, que conferia ao fazer artístico um fazer político. Sua atuação começa na década de 1950 na capital soteropolitana, conforme aponta Antonio Risério (1995)1. Ainda adolescente, ao lado de figuras como Glauber Rocha, Fernando Peres, Calasans Neto e Florisvaldo Mattos, integrou o que ficou conhecida como a Geração Mapa (ou grupo Mapa/Jogralescas), grupo marcado por duas atividades: encenações de poesias líricas – as Jogralescas de Teatralizações Poéticas – e a revista Mapa (195758), que versava sobre teatro, cinema e literatura, como lembra João Carlos Teixeira Gomes (1997, p.27-107). No final da década de 1950, começou a trabalhar como jornalista em veículos da rede dos Diários Associados na Bahia, chegando à chefia de redação muito jovem; escrevia também poemas e publicou três livros: Velas, Glaubelena e Vida, paixão e mortes de Corisco, o Diabo louro (1984). Este último, de caráter documental, ainda será citado ao longo da pesquisa e é o único do qual sabemos a data. Foi membro do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes), de Salvador, no início da década de 1960, movimento políticocultural que existiu até a deflagração do golpe militar, em 1964, atuando na área de teatro. Neste mesmo ano, Paulo Gil Soares se mudou para o Rio de Janeiro. 1 Ver também o Capítulo 3 desta dissertação. 12 Sua atividade como cineasta iniciou-se em 1963, retomando a parceria com Glauber: torna-se assistente de direção, co-roteirista, cenógrafo e figurinista de Deus e o diabo na terra do sol (1963), emblemática produção dos primeiros anos do Cinema Novo brasileiro; mais tarde colabora com ele em Terra em transe (1967) e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), sendo o responsável pela cenografia e figurino de ambos2. Ainda no campo da ficção, Paulo Gil dirigiu três longas-metragens: Proezas do satanás na vila do leva-etraz (1967), Um homem e sua jaula (1969) e Procura-se uma virgem (1971)3. Mas é como documentarista a sua atuação mais intensa e contínua. Dirigiu oito documentários no Nordeste, entre 1964 e 1970, na experiência conhecida como Caravana Farkas4. Em seguida, entre 1971 e 1972, tornou-se diretor artístico e de criação do programa Globo-Shell Especial, na TV Globo, que resultou numa série de 25 documentários patrocinados pela Shell. Em 1973, na mesma emissora, assumiu um dos cargos de direção do Globo Repórter (no ar até hoje), que substituiu o Globo-Shell na programação, no qual permaneceu por dez anos. Além de dirigir alguns documentários, Paulo Gil convidou cineastas para trabalharem nos programas – a maioria deles oriunda do Cinema Novo –, num momento singular de experimentação de linguagem na televisão. Nomes como Eduardo Coutinho, Walter Lima Jr., Geraldo Sarno, João Batista de Andrade, Maurice Capovilla, Eduardo Escorel, Dib Lutfi. De acordo com Igor Sacramento (2008), são documentários dirigidos por Paulo Gil para o Globo-Shell Especial: O negro na cultura brasileira (1972), Arte popular (1972), Testemunho de natal (1972), O pão nosso de cada dia (1972), Poderíamos acrescentar a assistência de direção em A cruz na praça (Glauber Rocha, 1959), embora o filme seja dado como perdido. 2 Em Proezas do satanás na vila do leva-e-traz (1967), baseado na literatura de cordel, uma vila se vê transformada após a descoberta de petróleo; o longa, que ganhou prêmio no Festival de Brasília, em 1967, conta com músicas de Caetano Veloso e os atores Jofre Soares, Isabella, Zózimo Bulbul, entre outros. Um homem e sua jaula (1969) se chamaria Matéria de memória, por ser uma adaptação do romance homônimo de Carlos Heitor Cony; Paulo Gil abandonou sua direção em 1967, terminada por Fernando Coni Campos, mas ambos assinam como diretores. Finalmente, Procura-se uma virgem (1971) é uma comédia que tem no elenco nomes como Hugo Carvana e Wilson Grey. Fonte: Filmografia do cinema brasileiro, disponível no site da Cinemateca Brasileira: www.cinemateca.gov.br. 3 Há ainda o curta-metragem Terra triste (1963), documentário realizado durante as filmagens de Deus e o diabo, mas não sabemos se foi finalizado. O curta teria sido rodado na mesma locação do filme de Glauber, na cidade de Monte Santo, na Bahia, e tratava da questão do pietismo no Nordeste (MONZANI, 2005, p.33). 4 13 Vietnam – O preço da paz (1972). Documentários para o Globo Repórter: Os Intocáveis (1973), Meu padim, Padre Cícero (1973), Cavalos (1973), Por que caem os aviões? (1973), John Kennedy: o homem e o mito (1973). Credita-se também a ele o documentário O poder do machado de Xangô (1976), contudo, foi dirigido pelo fotógrafo e etnógrafo francês Pierre Verger e apenas traduzido por Paulo Gil para o português. Paula Muniz (2001), filha do cineasta, revelou que o diálogo do pai com a TV Globo começou anos antes desses programas, em 1967, quando dirigiu Amazonas: mitos e realidades. Nosso interesse é debater sobre a produção documental de Paulo Gil, lançando um olhar para o conjunto de documentários que realizou entre 1960 e 1970 na Caravana Farkas, inserindo-nos também nas discussões acerca desta experiência marcante do cinema brasileiro, explorada com mais veemência pelos estudos acadêmicos a partir dos anos 20005. Paulo Gil Soares dirigiu oito títulos, curtas e médias-metragens, em duas fases de produção da Caravana, que retratam diferentes aspectos do Nordeste: Memória do cangaço (1965) recupera personagens e fatos históricos do cangaço; Erva Bruxa (1969-70) trata da indústria fumageira na Bahia; A morte do boi (1970) foca no abate rudimentar de bois no Nordeste; A mão do homem (1969-70) aborda a curtição e o artesanato de couro em cidades da Paraíba e da Bahia; Jaramataia (1970) mostra como é o trabalho na fazenda homônima, na Paraíba; O homem de couro (1969-70) apresenta diversos aspectos sobre o universo dos vaqueiros; Vaquejada (1970) registra a festa que é tradição entre os vaqueiros; por fim, Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges (1970) acompanha a visita de Frei Damião a uma cidade do interior da Paraíba, trazendo entrevistas com ele e seus devotos. Apontaremos particularidades destes oito documentários, a fim de delinear traços característicos da “voz”6 de Paulo Gil na Caravana Farkas, Também nos anos 2000, o Canal Brasil e a TV Senado compraram e exibiram vários dos documentários. Vale mencionar que alguns filmes recentes incorporaram imagens feitas pela Caravana Farkas, caso de Thomaz Farkas, brasileiro (Walter Lima Jr., 2003), Serras da desordem (Andrea Tonacci, 2006), Caravana Farkas (Danielle Araújo, 2010) e Dominguinhos (Mariana Aydar, Joaquim Castro e Eduardo Nazarian, 2014). Não temos a informação de que títulos realizados anteriormente aproveitaram o material da Caravana. 5 O conceito de “voz” é tomado de Bill Nichols (2010), sobre o qual discorreremos mais adiante. O termo aparecerá entre aspas toda vez que nos referirmos ao sentido conferido por esse autor. 6 14 eventualmente estabelecendo o cotejo com outros de seus realizadores, com os quais trava diálogos estéticos e ideológicos7. Por isso, são necessárias algumas considerações sobre a experiência da qual fazem parte. Reconhece-se hoje como Caravana Farkas o conjunto de 39 filmes produzidos – a maioria também financiada – entre 1964 e 1981 no Brasil pelo fotógrafo e empresário Thomaz Farkas, herdeiro das lojas Fotoptica: 37 documentários, dos quais um é em longa-metragem e os demais curtas ou médias-metragens; e duas ficções, sendo um média e um longa8. Iremos tratar dos documentários, divididos pelo pesquisador Gilberto Sobrinho (2008, 2010, 2011 e 2012) em três fases, mediante os diferentes modos de produção e realização. A 1a fase (1964-65) é composta por quatro média-metragens que compartilham da técnica do som direto, novidade à época no país, e trazem um retrato crítico de temas diversos: Viramundo (Geraldo Sarno, 1965) trata da migração nordestina na cidade de São Paulo; Memória do cangaço (Paulo Gil Soares, 1965) é filmado na Bahia e recupera aspectos da história do cangaço; Subterrâneos do futebol (Maurice Capovilla, 1965) é realizado em São Paulo e aborda a carreira do jogador de futebol; finalmente, Nossa escola de samba (Manuel Horácio Gimenez, 1965) mostra os preparativos da escola de samba Unidos de Vila Isabel, do Rio de Janeiro, antes do desfile de carnaval. Com exceção de Memória do cangaço, captado em 35mm, os demais foram feitos na bitola 16mm, depois ampliados para 35mmm para compor o longa-metragem Brasil Verdade (1968), visando a exibição em salas de cinema comerciais. O nome indica a ideia que unia o grupo centrado em Farkas, de mostrar “a verdade” sobre o Brasil, e também remete ao cinéma vérité (cinema verdade), estilo de documentário associado ao francês Jean Rouch, no qual a entrevista é um O eventual cotejo será feito com documentários de Geraldo Sarno e Sergio Muniz, por serem, ao lado de Paulo Gil, os diretores mais atuantes da Caravana. 7 A relação dos 39 filmes está no catálogo da mostra intitulada A Caravana Farkas: Documentários – 1964-1980; apesar do nome indicar serem documentários, constam também as duas ficções: o média-metragem O homem descasado (Rubens Xavier, 1981) e o longa O Picapau Amarelo (Geraldo Sarno, 1973-74). Em 2009, a Videofilmes lançou um box de sete dvds, “Projeto Thomaz Farkas: documentários”, com quase todos os documentários restaurados e exibidos na mostra; são essas cópias que iremos utilizar em nossa pesquisa. 8 15 recurso primordial. Porém, fica difícil estabelecer uma correspondência tão estreita com a produção brasileira, conforme veremos no decorrer da pesquisa. Nota-se que os filmes feitos entre 1964 e 1965 não tratam de aspectos de uma mesma região, o que vai mudar na 2ª fase (1967-1971). Nesta, são realizados 19 documentários em viagens que os cineastas fazem ao Nordeste brasileiro, conhecidos em conjunto sob o nome A condição brasileira, de temas que se complementam: as relações de trabalho do homem do campo e suas implicações econômicas, a religião, as manifestações culturais, como a literatura de cordel, a música improvisada pelos cantadores, o artesanato. Sete, dos oito documentários de Paulo Gil na Caravana, foram realizados nesta fase de produção, com exceção de Memória do cangaço, da fase anterior. Geraldo Sarno dirige nove: A cantoria (1969-1970), Vitalino/Lampião (1969), O engenho (19691970), Padre Cícero (1971), Casa de farinha (1969-1970); Os imaginários (1970), Jornal do sertão (1970), Viva Cariri! (1969-1970), Região: Cariri (1970). Sergio Muniz assina a direção de Rastejador s.m. (1969) e Beste (1969); e Eduardo Escorel realiza Visão de Juazeiro (1970), seu primeiro filme como diretor solo9. Já a 3ª fase (1972-1981) se distancia das anteriores, tanto pelo esquema de produção, pois alguns são em coprodução e por meio de parcerias diversas; pela temática dispersa – do registro da produção rural a manifestações artísticas tipicamente urbanas –; e pelos diretores envolvidos, já que permanece Sergio Muniz, saem Paulo Gil e Geraldo Sarno, e entram nomes como Miguel Rio Branco, Guido Araújo e o próprio Farkas. São filmes de Sergio Muniz nesta fase: A cuíca (1978), De raízes & rezas, entre outros (1972), Cheiro/Gosto, o provador de café (1976), Um a um (1976), Andiamo ln´merica (1977-78), Beste (1977-78) e O berimbau (1978). Thomaz Farkas dirige outros três: Paraíso Juarez (1971), Todomundo (1978-80) e Hermeto, campeão (1981). Dois por Guido Araújo: A morte das velas no Recôncavo (1970) e Feira da banana (1972-73). E há também Trio elétrico (Miguel Rio Branco, 1978), Ensaio (Roberto Duarte, 1975) e Certas palavras (Maurício Beru, 1979). Anos antes, em 1966, Eduardo Escorel dirigiu, ao lado de Júlio Bressane, o documentário Bethânia bem de perto – A propósito de um show. 9 16 Cunhada pelo cineasta Eduardo Escorel, a expressão Caravana Farkas dá nome à mostra dos filmes organizada pelo cineasta Sergio Muniz, em 1997, no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro: Antes da Caravana Holiday que Carlos Diegues consagrou em Bye Bye Brasil, houve outra que partiu de São Paulo para esquadrinhar o Nordeste. Foi a Caravana Farkas, fruto da generosidade de Thomaz Farkas (CCBB, 1997, p.12). Na verdade, Escorel referia-se apenas aos 19 documentários realizados entre 1967 e 1971 em viagens ao Nordeste, mas a expressão acabou nominando todos os filmes produzidos por Farkas. Assim, a ideia de caravana pode ser lida para além de um deslocamento físico (as viagens) dos cineastas; no caso dos documentários, é também um deslocar-se em direção ao outro, ao povo. Farkas financia a maior parte dos filmes e assina a direção e a fotografia de alguns, conforme listamos anteriormente. Os documentários da 1ª e 2ª fases, quando Paulo Gil participou da experiência, são realizados no auge do regime militar no Brasil, entre 1964 e 1971, reverberando o quadro ideológico da geração de artistas e intelectuais da década de 1960, em especial do Cinema Novo. O cineasta Carlos Diegues (apud Bernardet e Galvão, 1983, p. 135) acredita que o pensamento dos cineastas na década de 1960, inclusive o dele próprio, estava apoiado em três pilares: “politização”, “onipotência absoluta” e “compromisso com o país”. Politização porque havia uma ideia de que a cultura, no caso o cinema, poderia ser agente transformador da sociedade e, de forma mais profunda, isso representaria uma disputa do poder pelo povo; “onipotência absoluta” porque, pelo menos até 1968, antes da promulgação do A.I.5, havia a sensação de que o cineasta-intelectual “podia tudo”; e “compromisso com o país”, resultante dos dois fatores anteriores, era um sentimento de responsabilidade social por parte do cineasta. Não é nosso intuito mapear as diversas vertentes do pensamento e da produção cinemanovista, mas considerar seu diálogo com a Caravana Farkas, experiência que dá continuidade a perspectivas presentes em documentários como Aruanda (Linduarte Noronha, 1960), Arraial do cabo (Mário Carneiro e Paulo César Saraceni, 1960) e Maioria absoluta (Leon Hirszman, 1964), filmes 17 que colocam na tela imagens e vozes do povo, abordam de forma crítica a realidade do país e promovem renovações estéticas no cinema nacional. A ideia de Farkas era documentar como vivia o homem brasileiro, fazer um mapeamento do país, de modo a “revelar o Brasil aos brasileiros”: “[...] os filmes são apenas parte de um sonho que tentava levar o povo brasileiro a descobrir sua própria identidade” (FARKAS, 2006, p.16). Perpassa um viés educativo que lembra as pretensões de John Grierson para o documentarismo inglês na primeira metade do século XX, pois sua intenção era que os filmes fossem comprados por escolas e utilizados como apoio ao material didático em sala de aula – proposta mais enfatizada na 2ª fase de produção –, ou veiculados pela televisão. Ambas intenções não ocorreram como se planejava, devido ao momento político do país, mas os filmes circularam em cineclubes, universidades, sindicatos e festivais, tendo repercussão considerável na crítica da época. Do documentário inglês empresta-se também a tradição de uma voz over pedagógica que ajuda a organizar o discurso, presente em vários dos títulos, misturada a outras práticas, oriundas do cinéma vérité e do direct cinema (cinema direto). Para colocar em prática seu projeto, Farkas se aliou a pessoas que compartilhavam suas ideias, sobretudo políticas: O que nos unia era um pensamento muito parecido porque todos nós pensávamos politicamente da mesma maneira. Se tivesse um que tivesse uma outra, vamos dizer, ideologia, não entrava. Nós éramos jovens, tínhamos ideais. O nosso ideal era transformar o Brasil, não pela fotografia ou pelos filmes, mas esperar uma transformação (FARKAS, 2003, 8’40’’)10. Entre as pessoas que colaboraram com a produção, estavam o argentino Fernando Birri, fundador da Escuela Documental de Santa Fe, que participou apenas das discussões iniciais, em 1963, para a realização dos primeiros filmes; e os também argentinos Edgardo Pallero e Manuel Horácio Gimenez. Estes dois, que prosseguiram com Farkas, tinham colaborado com Birri em dois filmes que abordam problemas sociais da Argentina, produções que também reverberam a Depoimento de Thomaz Farkas ao diretor Walter Lima Jr., no documentário Thomaz Farkas, brasileiro, de 2003. 10 18 proposta desses cineastas, com claro intuito educativo, de promover uma tomada de consciência do subdesenvolvimento de seu país por meio do cinema: o documentário Tiré Dié (Fernando Birri, 1958-60) e a ficção Los inundados (Fernando Birri, 1961). Destacam-se ainda no grupo o cineasta Sergio Muniz, que substituiu Vladimir Herzog na produção de Viramundo e continuou com Farkas até as últimas realizações da Caravana, exercendo diversas funções; Maurice Capovilla, paulista que tinha estudado em Santa Fé; o fotógrafo Affonso Beato, que trazia experiência em produções do Cinema Novo e colabora em mais da metade dos títulos; Sidnei Paiva Lopes, responsável pelo som direto da maioria dos filmes da 2ª e 3ª fases; e dois baianos, estreantes em direção, que não moravam mais na Bahia quando dirigem os documentários na 1ª e 2ª fases da Caravana: Geraldo Sarno, que havia estagiado por um ano no ICAIC (Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos) e Paulo Gil Soares, diretor sobre o qual esta pesquisa vai se deter. Cabe ainda mencionar o apoio acadêmico da USP (Universidade de São Paulo), por meio do IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), onde são feitas pesquisas de temas para a realização dos filmes da 2ª fase11. Constatamos que algumas tentativas de classificação geral dessa produção foram feitas por críticos e pesquisadores, sem que houvesse um consenso. Fernão Ramos (2004 e 2008), por exemplo, fala em um “estilo verdade” (RAMOS, 2004, p. 91-92) das primeiras produções e em outro momento as inclui como representantes do “direto” no que ele chama de “documentário novo brasileiro” (RAMOS, 2008, p.376-406), admitindo que procedimentos do documentário clássico griersoniano, como a utilização da voz over pedagógica, se aliavam às tomadas em som direto e às imagens feitas no “corpo a corpo” entre cineasta e mundo representado. Já Marcius Freire (2009, p.4-5), ao observar a 2ª fase de produção da Caravana, considera os O IEB chegou a aceitar, em 1966, o projeto “Pesquisa e documentários sobre cultura popular do Nordeste” (que se tornou a 2ª fase de produção da Caravana e receberia o nome de A Condição Brasileira), encaminhado pela produtora de Geraldo Sarno, Saruê Filmes Ltda., e pela produtora de Thomaz Farkas, Thomaz J. Farkas, com proposta de coprodução de documentários, o que não se realizou naquele momento. A colaboração da instituição se deu por meio da socióloga e professora da Universidade, Maria Isaura Pereira de Queiroz, que escreveu textos para acompanhar os documentários da 2ª fase de produção, para fins de sua comercialização como material didático. 11 19 documentários como “etnográficos” e os incompatibiliza à tradição documental norte-americana ou francesa, aproximando-os do documentário clássico inglês. O crítico e cineasta David Neves (1966, s/p), à época das primeiras produções, as intitularia como pertencentes ao cinema direto brasileiro, ponderando que aqui tínhamos “ecos” do que se produzia internacionalmente. Já o crítico e historiador de cinema Paulo Emílio Salles Gomes (1965), no artigo “Novembro em Brasília”, sobre o Festival de Brasília e o filme O desafio (Paulo Cesar Saraceni, 1965), sugere que o filme de Saraceni, assim como as primeiras produções de Farkas, seriam “filmes-conversa”, referindo-se ao peso da fala em tais filmes. Outra denominação vem do cineasta Orlando Senna, que em entrevista para um especial sobre a Caravana realizado pela TV Senado em 2003, disse serem produções exemplo de “documentário social”. Concordamos com Gilberto Sobrinho (2012), ao resumir que os documentários da Caravana podem ser lidos a partir de três linhas de força: 1) a formação de uma geração de importantes realizadores cuja envergadura singulariza o moderno documentário brasileiro, a saber: Geraldo Sarno, Paulo Gil Soares, Maurice Capovilla, Eduardo Escorel, Sérgio Muniz e outros; 2) as experiências de linguagem em filmes que asseguram um lugar de autonomia na apropriação das novas técnicas de gravação em imagem e som, sendo os filmes da Caravana algo que marca o singular do cinema direto/verdade brasileiro; 3) o conteúdo narrativo dos filmes é marcado pelo registro de formas de manifestação da cultura brasileira em setores como trabalho, religião, artesanato, literatura etc., consideradas suas inter-relações e todo o espectro com que compõem um museu vivo de extratos de uma realidade em transformação, em face do processo de modernização do país (SOBRINHO, 2011, p.315). Nossa pesquisa entra neste debate, propondo um olhar não generalizante da produção, mas a partir das particularidades dos documentários de cada realizador, no caso, Paulo Gil Soares. Seguimos um caminho já iniciado por Sobrinho (2008, 2011, 2012 e 2013), que se voltou com mais ênfase para os filmes de Geraldo Sarno e Sergio Muniz, traçando suas características estilísticas e temáticas. Clara Leonel Ramos (2007) também salienta tal aspecto no próprio título de sua dissertação de mestrado, As múltiplas vozes da Caravana Farkas e a “crise” do modelo sociológico, afirmando tratar-se de uma produção heterogênea, em que são notáveis singularidades no conjunto de filmes de cada realizador. 20 Desta forma, aproveitando o mesmo termo utilizado pela autora, pretendemos traçar características da “voz” de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas. O conceito de “voz” é tomado de Bill Nichols (2010): O fato de os documentários não serem uma reprodução da realidade dá a eles uma voz própria. Eles são uma representação do mundo, e essa representação significa uma visão singular do mundo. A voz do documentário é, portanto, o meio pelo qual esse ponto de vista ou essa perspectiva singular se dá a conhecer (NICHOLS, 2010, p.73) [grifo original]. Nichols confere à “voz” uma noção ampla e intangível, não restrita ao sentido literal do termo, ao que é dito verbalmente por um locutor ou pelos personagens em um documentário. Ela atesta, por exemplo, o “caráter” (relacionado à ética) de um documentarista e também sua “visão criativa” (relacionada ao estilo): “A voz do documentário transmite qual é o ponto de vista social do cineasta e como se manifesta esse ponto de vista no ato de criar o filme” (Ibid., p.76). Trata-se de uma “voz” que fala por meio de todos os códigos visuais e sonoros do filme, por sua vez dependentes das escolhas do documentarista tanto no momento do registro quanto da montagem: composição dos planos, aproximação ou distanciamento dos elementos filmados, quando e o quê cortar, gravação de comentário em voz over, depoimentos tomados em som direto, inserção de fotografias de arquivo, adição de músicas, organização cronológica dos materiais, enfim, são inúmeras as possibilidades. Ou seja, tratar da “voz” de Paulo Gil é compreender seu “envolvimento no mundo histórico” (Ibid., p.74) a partir de como ele organiza esses códigos. Embora Nichols (1997 e 2010) não explicite, esboça-se em sua abordagem a questão da autoria no documentário12. Por exemplo, ele sugere que documentaristas como Frederick Wiseman, Chris Marker, Esther Shub e Marina Goldovskaya seriam donos de uma “voz própria” (Ibid., p.135), aventando a possibilidade da “voz” atestar a individualidade do realizador. Significativo – e inspirador para nossa pesquisa – neste sentido é o artigo “Fred Wiseman´s documentaries: theory and structure”, no qual aponta características da “voz” Alguns pesquisadores têm se debruçado sobre a questão da autoria no documentário, propondo paradigmas teóricos a partir de diferentes objetos. Ver: COELHO (2012), FREIRE (2011), SERAFIM (2009) e SOUZA (2012). 12 21 desse documentarista, antes mesmo de apresentar o conceito13. A partir da observação das estratégias de montagem, funções desempenhadas pelos personagens, entre outros aspectos apreendidos do texto fílmico, Nichols efetua uma leitura que revela como determinadas escolhas de Wiseman, no nível da linguagem, implicam em questões éticas, políticas e ideológicas com relação ao “mundo histórico representado”, no caso, instituições públicas norte-americanas. Em vez de uma “teoria do autor”, Nichols (1997 e 2010) fala em uma “teoria do gênero”, identificando seis “modos de representação” documental, que agrupam as diferentes “convenções” adotadas pelos documentaristas em épocas diversas: poético, expositivo, observativo, participativo (ou interativo), reflexivo e performático14. Cabe uma breve explicação sobre eles, já que ao longo da pesquisa alguns serão mencionados. O modo poético (exemplos são filmes de Joris Ivens e Chris Marker) salienta aspectos formais – visuais, sonoros ou da montagem –, aproximandose da experimentação: “[...] enfatiza mais o estado de ânimo, o tom e o afeto do que as demonstrações de conhecimento ou ações persuasivas” (Ibid., p.138). O modo expositivo (John Grierson, Robert Flaherty) apoia-se no verbal para expor um argumento, seja por meio de legendas ou pelo comentário em voz over, numa intenção didática, dirigindo-se diretamente ao espectador. O modo observativo (Frederick Wiseman, Robert Drew, irmãos Maysles) transmite a sensação de menor interferência do cineasta ao real possível, uma ideia de transparência; evita-se a inserção de voz over, músicas extra-diegéticas, entrevistas, enfim, aquilo que não foi captado no instante da tomada. O modo participativo ou interativo (Jean Rouch, Eduardo Coutinho) assume o encontro do cineasta (mesmo que sua imagem não apareça) com situações/personagens do “mundo histórico”; normalmente caracterizado pela entrevista. Já o modo reflexivo (Dziga Vertov) encaminha o espectador a refletir sobre o fazer documental. Por fim, o “Fred Wiseman´s documentaries: theory and structure” foi publicado originalmente em 1978 na revista Film Quarterly e depois como capítulo do livro Ideology and image: social representation in the cinema and other media, em 1981. O primeiro artigo no qual Nichols defende seu conceito de “voz”, “The voice of documentary”, foi publicado apenas em 1983, no mesmo periódico. 13 Em La representación de la realidad – tradução em espanhol do livro Representing reality, publicado em 1991 –, o autor fala em quatro modos, que posteriormente se desdobraram nos seis mencionados: expositivo, de observação, interativo (participativo) e reflexivo. 14 22 modo performático (Jonas Mekas, Marlon Riggs) enfatiza a subjetividade do próprio cineasta. A maneira como Nichols (2010) apresenta os modos, tomando exemplos que seguem uma ordem cronológica, pode nos levar, precipitadamente, a uma história do documentário, mas o autor alerta para que não os encaremos assim, nem a partir da superação de um modo por outro, pois eles aparecem em filmes de várias épocas e simultaneamente. Pensando nesta simultaneidade sugerida por Nichols e julgando ser pouco produtivo tentar encaixar nosso objeto em modos ou outras tipificações, trabalhamos com a ideia de que um documentário pode apresentar níveis de modos de representação. Inspiramo-nos em um raciocínio de Roger Odin (2012, p.27), quando fala em “escala documentária” e “níveis de documentaridade”, referindo-se à possibilidade de alguns documentários serem mais documentários do que outros, dependendo das “instruções documentarizantes” inscritas no texto fílmico e do quanto o espectador filia o que está vendo a um Enunciador real. Por exemplo, os créditos podem sugerir que se trata de um documentário ao informar quem produziu o filme, assim como figuras estilísticas, como a locução explicativa, a utilização de entrevistas, imagens feitas com a câmera na mão, etc. Segundo o autor, tais instruções podem se dar em maior ou menor nível em um mesmo filme, o que permitiria falar em “escala” e “níveis”. De forma análoga, consideramos que pode haver, em um mesmo documentário, momentos mais participativos, mais expositivos, mais reflexivos, etc., dependendo das “instruções de leitura” que oferecem as sequências escolhidas para serem analisadas: são os níveis de modos de representação. Outro autor central para a pesquisa é Jean-Claude Bernardet, sobretudo suas reflexões no livro Cineastas e imagens do povo. Bernardet (2003) analisa alguns documentários brasileiros realizados entre as décadas de 1960 e 1980, precisamente curtas e médias-metragens, começando justamente por duas produções da 1ª fase da Caravana Farkas: Viramundo (Geraldo Sarno, 1965) e Subterrâneos do futebol (Maurice Capovilla, 1965), configurando-os como representantes do que ele denominou de “modelo sociológico” de documentário. Levando em conta as diversas vozes que falam nos filmes, o autor sugere que tal modelo é pautado, resumidamente, por uma relação hierárquica sujeitoobjeto, na qual o sujeito é o cineasta, dono da “voz do saber” e, portanto, do 23 discurso; e o objeto são os entrevistados, representantes da “voz da experiência”, da vivência individual. Em outras palavras, aqueles que dão os depoimentos, notadamente o “outro de classe”15 em relação ao cineasta, são dissolvidos de sua condição de sujeitos, tornam-se objetos de estudo e falam para reforçar uma tese construída pelo cineasta, normalmente alicerçada por um saber científico, generalizante e de fora da experiência, daí o termo sociológico. Interessa-nos perceber em que medida os documentários de Paulo Gil se afastam ou se aproximam dessa postura sociológica, a fim de não promover uma leitura generalista, mas percebendo-o como um parâmetro que diz respeito ao seu engajamento no “mundo histórico representado”. Esse tipo de filme seria sintomático de um pensamento que permeou a intelectualidade brasileira na década de 1960, em grupos político-culturais como o Cinema Novo, já mencionado, o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e o CPC (do qual Paulo Gil fez parte), de que caberia ao intelectual o papel de ser o “porta-voz” do povo, o responsável por promover sua “desalienação” e a transformação da sociedade. No caso, por meio da produção cultural, em que as noções de povo e nação ganham relevo. Conforme coloca Renato Ortiz (1994), havia a necessidade de uma identidade nacional a ser forjada para o povo, que estaria “[...] profundamente ligada a uma reinterpretação do popular pelos grupos sociais e à própria construção do Estado brasileiro” (ORTIZ, 1994, p.8). São questões que ecoam em nosso objeto e serão debatidas ao longo da pesquisa. A partir de nosso reiterado confronto com os oito documentários que Paulo Gil realizou na Caravana Farkas, consideramos pertinente discorrer sobre três aspectos, decorrentes de construções discursivas e estéticas, que nos ajudam a traçar características de sua “voz”: as vozes diversas dos filmes, as configurações dos personagens e as apropriações que fazem da cultura popular. Aspectos que se desdobram nos capítulos deste trabalho. O camponês e o proletário em Viramundo; o jogador de futebol em Subterrâneos do futebol e, no caso dos documentários de Paulo Gil, sobretudo o vaqueiro, seriam o “outro de classe”, pois não pertencem à “classe” do cineasta e do público em potencial desses filmes. Em oposição, um documentário como A opinião pública (1965), de Arnaldo Jabor, composto por depoimentos de pessoas da classe média, mostraria o “mesmo de classe”. 15 24 Desta forma, no capítulo 1, Na trilha dos filmes, apresentamos os oito documentários do diretor, apontando suas temáticas, quais vozes são convocadas, atributos das imagens e algumas informações de produção. Um capítulo mais descritivo, mas necessário para introduzir o leitor nas problemáticas seguintes que serão debatidas. No capítulo 2, Aproximação ao outro: pensando os filmes de Paulo Gil Soares a partir dos personagens, centramo-nos na observação de vários “atores sociais” (NICHOLS, 1996 e 2010) ou personagens do conjunto de documentários. Muito pela influência das leituras de Bernardet, optamos por separá-los em duas categorias: personagens em posição de poder e personagens que são “outro de classe”, por sua vez fracionados de acordo com traços em comum que apresentam. Algumas perguntas norteiam o capítulo: quais personagens esses filmes constroem? Como as pessoas filmadas se comportam diante da câmera? Qual a relação existente entre os personagens e a enunciação dos filmes? O que está implicado na relação do cineasta-intelectual com o outro filmado? É o capítulo mais extenso, sendo uma perspectiva que ainda pouco se debate em torno da Caravana Farkas. No capítulo 3, A apropriação da cultura popular, desdobramos a discussão em duas perspectivas. Primeiro, apontamos convergências entre as ideias e práticas de Paulo Gil e da Caravana e o pensamento da arquiteta Lina Bo Bardi – que morou em Salvador e integra a geração de artistas e intelectuais mencionada no início deste texto. Depois, observamos como são incorporados materiais da cultura popular, especialmente a literatura de cordel manifestada pela voz da locução ou da música, em três documentários do diretor: Memória do cangaço, Vaquejada e O homem de couro, percebendo como esse elemento coloca em xeque a filiação dos filmes ao “modelo sociológico”, caráter comumente associado aos documentários realizados na década de 1960 no Brasil. Escolhemos os três títulos porque neles a cultura popular, notadamente a poesia de cordel, aparece de forma mais intensa do que nos demais filmes que Paulo Gil dirigiu na Caravana. Trata-se de um elemento que potencializa o discurso desses filmes e deixa em relevo conflitos entre o saber do cineasta e o saber popular. Para dar conta do percurso, predomina como método a análise fílmica com pesquisa de instrumentos documentais (AUMONT e MARIE, 2004), em um 25 movimento que parte do texto fílmico para levantar questões de cunho teórico e histórico. Neste sentido, recorremos a uma ampla bibliografia, que contempla desde olhares de outros pesquisadores sobre a Caravana Farkas e discussões teóricas e históricas no campo do documentário, às relações do cinema com outras artes – música e literatura – e abordagens sociológicas em torno do popular. Além disso, também nos valemos de materiais da fortuna crítica sobre Paulo Gil Soares – sem fazer disto uma análise sistemática da recepção dos filmes, mas utilizando-os pontualmente na dissertação –; de documentos depositados na Cinemateca Brasileira, onde há textos escritos pelo diretor e pela socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz com a finalidade de apresentar o conteúdo dos filmes para possível comercialização, sobretudo em escolas; e do catálogo elaborado para a mostra organizada por Sergio Muniz no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro em 1997, que traz, além da relação e da ficha técnica dos filmes da Caravana Farkas, depoimentos de críticos e dos diretores que participaram da experiência. Uma das justificativas para este trabalho é o fato de Paulo Gil Soares ter despertado pouco interesse dos pesquisadores de audiovisual até então, mesmo com uma produção e história significativas na televisão e no cinema brasileiros. Embora alguns estudos tenham se dedicado à Caravana Farkas, ao Globo Shell e ao Globo Repórter, ainda é escassa a abordagem específica dos documentários do diretor. Sobre suas ficções, a bibliografia revisada menciona um ou outro título, que mereceriam observação mais criteriosa. Num outro sentido, nossa pesquisa justifica-se por intentar colaborar em discussões mais amplas no campo do documentário, particularmente o brasileiro, como o estudo de diferentes vozes, dos personagens e da música, que suscitam reflexões estéticas e éticas inerentes ao fazer documental. Longe de pretender esgotar as questões provocadas pelos documentários de Paulo Gil, aqui lançaremos um olhar, entre os vários possíveis. 26 CAPÍTULO 1 – NA TRILHA DOS FILMES [...] e lá fomos nós realizar um ciclo fantástico de filmes que retratava a cultura da região, num esforço de produção que nunca mais se repetiu e acredito ser difícil voltar a acontecer (CCBB, 1997, p.9)16. Neste capítulo iniciaremos a aproximação com os documentários em curta e média-metragem dirigidos por Paulo Gil Soares entre 1964 e 1970, na experiência conhecida como Caravana Farkas, todos feitos no Nordeste brasileiro: Memória do cangaço (1965), Erva Bruxa (1969-70), A morte do boi (1970), A mão do homem (1969-70), Jaramataia (1970), O homem de couro (1969-70), Vaquejada (1970) e Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges (1970). Observaremos algumas estratégias imagéticas e sonoras na articulação do discurso desses oito títulos, detendo-nos na descrição dos filmes e configurações de suas vozes, pontuando aspectos de produção quando pertinentes. Nosso objetivo ao final do capítulo é elencar algumas características da “voz” de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas, que serão pontos de partida para as questões debatidas nos capítulos seguintes. 1.1 – Memória do cangaço (1965) Entre os oito documentários que Paulo Gil Soares dirigiu na Caravana Farkas, o média-metragem (29’) Memória do cangaço é o que se diferencia em termos de produção e também o mais premiado em festivais17. Ao contrário dos demais, sua concepção começa antes do contato do diretor com o produtor e financiador dos filmes, Thomaz Farkas, e há um esquema de coprodução com o Setor de Cinema da Divisão de Difusão Cultural do Itamaraty e o DPHAN A frase de Paulo Gil Soares refere-se aos filmes realizados na 2ª fase da Caravana Farkas e está em seu depoimento para o catálogo da mostra A Caravana Farkas: Documentários – 1964 – 1980, organizada por Sergio Muniz em 1997 no Rio de Janeiro. 16 Prêmios: Gaivota de Ouro, no Festival Internacional do Filme (Rio de Janeiro, 1965); Prêmio Governador do Estado (São Paulo, 1965); Prêmio Dziga Vertov, da União Mundial de Cinematecas (Brasília, 1965); Primeiro Prêmio no Festival dei Popoli VII Rassegna Internazionale del Film Etnografico e Sociologico de Florença (Itália, 1966); Prêmio da Crítica Internacional na XI Jornada Internacional do Filme de Curta Metragem, em Tours (França, 1966). Outros festivais em que o filme foi exibido: Festival de Cinema de Berlim (Alemanha, 1966) e V Festival de Cinema de Viña Del Mar (Chile, 1967). 17 27 (Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), cuja maior contribuição parece ter sido o equipamento de filmagem, sendo seu único documentário da Caravana Farkas captado em 35 mm e preto e branco, feito com uma câmera Arriflex, mais leve e menor do que as câmeras utilizadas até meados da década de 1950. Os depoimentos foram gravados em som direto com um gravador portátil Nagra III, que ainda era novidade no Brasil18, mas já utilizado em países da Europa, nos Estados Unidos e no Canadá. Há também diferenças quanto à composição da equipe, em relação aos outros documentários do diretor. Pessoas que colaboraram com Memória do cangaço e que permanecem nos demais filmes: o argentino Edgardo Pallero (produção executiva), o fotógrafo Affonso Beato, a esposa de Paulo Gil, Terezinha Muniz (assistência de direção), e o próprio Farkas (financiador, produtor e eventualmente diretor de fotografia)19. O documentário é um dos quatro médias-metragens financiados e produzidos por Farkas entre 1964 e 1965, 1ª fase de produção da Caravana, reunidos em 1968 para compor o longa-metragem Brasil Verdade, conforme explicamos na Introdução deste trabalho. Em depoimento para o catálogo da mostra Caravana Farkas: Documentários 1964-1980, Paulo Gil conta que apresentou o roteiro de seu filme para Farkas após se encontrarem, em 1964, em um bar na avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, onde o fotógrafo convidou pessoas do Cinema Novo para conversar sobre a produção de documentários: Ouvi o Farkas falar e isso foi a melhor coisa que podia acontecer na minha vida, naquele dia e naquele ano. Mas o melhor foi que ele acreditou em mim e menos de uma semana depois ele aprovava o roteiro de Memória do Cangaço, meu primeiro filme pessoal e que terminou iniciando minha vida de cineasta e de carioca [...] (CCBB, 1997, p.9) Os demais documentários da Caravana foram feitos em 16 mm, também com gravadores de som Nagra. No artigo “A descoberta da espontaneidade: breve histórico do cinema-direto no Brasil”, David Neves (1966) explica sobre a chegada desses novos equipamentos ao Brasil, que eram mais leves e menores do que os utilizados até então, e cita a importância do curso oferecido em 1962, por meio da parceria entre UNESCO e Itamaraty, no qual o documentarista sueco Arne Sucksdorff apresentou e ensinou jovens cineastas a manusear as novidades tecnológicas. Sobre a introdução do som direto no cinema documentário brasileiro dos anos 1960, ver: GUIMARÃES (2008). 18 19 Ver ficha técnica dos filmes no final deste trabalho. 28 Havia um desejo seu de investigar – e desmistificar – alguns aspectos da história do cangaço. É importante mencionar que o diretor já estava em contato direto com a temática, pois havia trabalhado com o conterrâneo Glauber Rocha em Deus e o diabo na terra do sol (1964), filme emblemático do Cinema Novo, no qual exerceu várias funções: co-roteirista, assistente de direção, cenógrafo, figurinista. Paulo Gil também emprega como recurso estilístico o uso da canção como locução auxiliar, conforme veremos mais adiante, e que está presente também no filme de Glauber. Outra aproximação entre os dois é que o personagem Antônio das Mortes de Deus e o diabo foi inspirado na figura do coronel José Rufino, como o próprio Glauber Rocha afirmou: O major Rufino que vemos em Memória do cangaço de Paulo Gil Soares, e que me inspirou o personagem de Antônio das Mortes, contou-me três vezes de maneira diferente como ele matou Corisco. E no filme de Paulo Gil, ele conta de uma quarta maneira (ROCHA, 2004, p.114). No livro Vida, paixão e mortes de Corisco, o Diabo louro, Paulo Gil Soares revela que ouvia, desde criança, uma empregada da família cantar versos que narravam o duelo ocorrido em 1940 entre o coronel José Rufino e o cangaceiro Corisco, fato que culminou na morte deste e no ferimento de sua esposa, Dadá. “Teria sido mesmo, de real, vera narrativa, o duelo como era contado? Eu sempre duvidei. E quis saber mais ouvindo os próprios personagens do narrado acontecido” (SOARES, 1984, p.12). Em dezembro de 1964, nos dias que precederam o Natal, deu-se seu encontro com o coronel Rufino, em uma fazenda na cidade de Jeremoabo, na Bahia, que resultou na principal entrevista do documentário Memória do cangaço. Ele conta como foi o contato com o coronel: Foi difícil a aproximação. Ele me estudava, tentava entender as nossas máquinas de filmar, perguntava mais que respondia. Terminou descobrindo que havia conhecido meu avô, Mano Dias de Andrade, em Itaberaba, Bahia. Foi discreto a respeito desse conhecimento. E ganhamos um pouco de confiança. Só se revelou mesmo após ter ouvido, no gravador, tudo que havíamos gravado em segredo. Foi então que ele se deslumbrou com aquela máquina: um Nagra III, gravador desenhado pelo suíço Eugene Kudelski. E começou nosso papo, longo, quieto, horas inteiras de gravação no meio da caatinga para que não houvesse ruídos de Jeremoabo. E sua memória aflorou nos caminhos antigos (ibidem, p.20). 29 Naquele mesmo mês Paulo Gil encontra pela primeira vez Sérgia Ribeiro da Silva, a Dadá, na casa onde estava hospedada, em Santana de Ipanema, nas Alagoas, e tenta se aproximar dela. No entanto, a mulher de Corisco (Cristino Gomes da Silva) não concedeu entrevista e foi bastante arisca com a equipe: [...] pedi a Afonso Beato, fotógrafo, que fosse filmando tudo mesmo sem permissão; e ao assustado Edgardo Pallero, que carregava o gravador, eu assegurei que tudo daria certo e era preciso que ele gravasse tudo. E foi terrível. Dadá avançou contra a câmera, fez ameaças, tentou me atingir com a muleta, exaltou-se e retornou aos seus velhos tempos de valentia; avançando e derrubando a câmara [...]20 (ibidem, p.24). No filme há um breve registro da situação acima descrita pelo diretor, quando Dadá é vista reagindo à presença da equipe e derrubando a câmera. A sequência está nos momentos finais do documentário (aos 26’40’’), após a explicação do coronel Zé Rufino sobre como ele matou Corisco, e dialoga com dois modos de representação documental propostos por Bill Nichols (1997 e 2010). O primeiro e mais evidente é o participativo, já que a existência da sequência no filme deve-se ao encontro entre cineasta e entrevistado, ou seja, assume-se essa condição. Tal postura, nesta sequência, se aproxima da que encontramos em documentários do cinéma vérité (cinema verdade), que têm na figura de Jean Rouch – diretor de Crônicas de um verão (1960) – o maior catalisador: “[...] o cineasta do cinéma vérité de Rouch era frequentemente um participante confesso da ação. [...] era parte provocadora da ação”21 (BARNOUW, 1996, p.223). A segunda possibilidade é que ao revelar, no próprio texto fílmico, a dificuldade de abordagem com Dadá e o enfrentamento dela com a equipe, o próprio fazer documentário é posto em questão, ou seja, há um nível do que O diretor se encontrará com ela novamente em 1980, catorze anos depois, já em Salvador (BA). Diferente do primeiro contato, desta vez a conversa e a filmagem acontecem. Paulo Gil conta no livro como foi esse encontro e as revelações de Dadá. A entrevista foi filmada pelo fotógrafo Dib Lutfi, com captação de som de Antonio Gomes e colaboração da repórter Tita Luz que, segundo as palavras do diretor, ajudou a “amaciar” Dadá antes da filmagem (SOARES, 1984, p.13). Não temos informações se o filme foi finalizado. 20 Tradução nossa para: “[...] el artista del cinéma vérité de Rouch era a menudo un participante declarado de la acción. [...] el artista del cinéma vérité hacía la parte de un provocador de la acción” (BARNOUW, 1996, p.223). 21 30 Nichols (1997 e 2010) denomina como “representação reflexiva”: “[...] o texto [fílmico] desloca seu foco de atenção do âmbito de referência histórica para o das propriedades do próprio texto”22 (NICHOLS, 1997, p.93). Em nosso caso, a referida sequência pode suscitar uma discussão que envolve a ética do documentarista diante dos personagens que filma, aspecto que será melhor debatido no capítulo 2. Utilizamos aqui o raciocínio que Roger Odin (2012) faz a respeito dos níveis de leitura de um filme e propomos que pode haver, em um mesmo documentário, momentos mais participativos, mais expositivos, mais reflexivos, etc., do que em outros: “níveis de modos de representação”. Bill Nichols (2010) também sugere algo semelhante com outras palavras, ao ponderar que esses “modos de representação” podem ser percebidos misturados em um mesmo documentário e em épocas distintas23. Além de Zé Rufino e da tentativa frustrada com Dadá, em Memória do cangaço há uma entrevista com um catedrático, o professor Estácio de Lima, especialista em medicina legal da Universidade Federal da Bahia, à época diretor do Museu de Antropologia da instituição. Temos ainda depoimentos dos excangaceiros Saracura (Benício Alves dos Santos) e Labareda (Ângelo Roque da Costa), e de Otília, mulher do também cangaceiro Mariano, morto em combate com a polícia. O filme expõe a intenção de ser uma monografia fílmica – sua estrutura se dará com a apresentação do tema, desenvolvimento e conclusão – já nos créditos iniciais: Um filme pesquisa, apresentando trechos do documentário sôbre cangaceiros feito em 1936 pelo mascate Abraão Benjamin24, Tradução nossa para: “[…] el texto desplaza su foco de atención del ámbito de la referencia histórica a las propriedades del propio texto” (NICHOLS, 1997, p.93). 22 23 Na p.24 da Introdução há a explicação de como chegamos a esse raciocínio. Na verdade, o nome do mascate turco era Benjamin Abraão e o filme, que tinha imagens do cotidiano de Lampião e seu grupo, foi montado em 1937, mas apreendido pelo órgão de censura do governo de Getúlio Vargas. Esquecido durante anos, em 1955 teve parte recuperada por Alexandre Wulfes e reeditada por Al Ghiu. Acrescentou-se uma locução e foi lançado nos cinemas como Lampeão (o rei do cangaço), com duração de 10 minutos. Informações extraídas do vídeo – uma restauração do filme de 1955, acrescida de 4 minutos inéditos – que acompanha o livro Iconografia do cangaço, organizado por Ricardo Albuquerque, editora Terceiro Nome. Vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=O33Flqcp5B4 24 31 fotografias e versos de Virgulino Ferreira da Silva, Lampião, e gravuras populares da literatura de Cordel”. Além desses materiais e das entrevistas, destaca-se a trilha musical, com canções em verso e música instrumental interpretadas pelos violeiros João Santana Sobrinho e José Canário, e o dobrado “Dois irmãos”, executado pela banda da Polícia Militar do Estado da Bahia. Após as cartelas que apresentam o filme e a equipe de produção, todas com reproduções de xilogravuras de folhetos de cordel, vemos um plano geral de uma feira popular em tomada aérea, enquanto ouvimos a locução do diretor, como uma “voz de Deus” (BRUZZI, 2006), explicar como se formaram os primeiros grupos de cangaceiros no Nordeste do Brasil. Diferentemente de outros realizadores da Caravana, Paulo Gil Soares é um “diretor-locutor” em todos os documentários que dirigiu, sendo esta uma informação extra fílmica. As imagens em seguida mostram pessoas mais de perto e são feitas já dentro da feira. Um trecho da locução merece ser destacado, pois nele há indicações da ideologia presente no documentário, que fará oposição à visão proferida pelo catedrático Estácio de Lima sobre as origens do cangaço, a qual comentaremos a seguir. Paulo Gil Soares (em over): Além das rebeliões de caráter religioso, com o fim do século passado surgiram no interior os primeiros grupos de cangaceiros, que viriam construir no Nordeste gestos de heroísmo e bondade, enfrentando as organizações agrárias e sua aliada mais constante: a volante policial. Vivendo nos agrestes, utilizavam a tática da guerrilha e lutavam apenas por dois objetivos: vingar crimes passados e conseguir munição de rifle e boca. Vestidos com roupagens vistosas, usavam chapéus em forma de meia-lua, enfeitados com moedas de ouro e prata. Corre a lenda que roubavam dos ricos para dar aos pobres. A locução termina com uma questão dirigida ao professor Estácio de Lima: “Mas, qual a origem dos cangaceiros?”. Em seu depoimento, o catedrático sustenta que as glândulas e o tipo físico do homem sertanejo fariam com que ele agisse com violência e entrasse para o cangaço. Paralelamente à fala do professor, vemos planos de vaqueiros – representando o homem sertanejo – descontraídos, que não correspondem à argumentação de Estácio de Lima. A explicação do professor é questionada em seguida pelo “diretor-locutor”: “Mas, estará o professor Estácio de Lima com a razão? Ouçamos um desses homens”. O discurso cientificista é então relativizado com o depoimento do 32 vaqueiro Gregório, entrevistado por Paulo Gil, que aparece enquadrado com o personagem e ao lado do operador de áudio. O diretor pergunta, por exemplo, se tem escola, se tem remédio ou hospital onde ele vive. Pelo comportamento tímido e as respostas do homem, deduz-se sua condição de vítima e de inércia, sendo novamente desmentida a fala do catedrático Estácio de Lima sobre o homem sertanejo. Há uma crítica, ainda que não seja mencionada em nenhum momento a palavra “governo”, a duas áreas de responsabilidade governamental – Educação e Saúde –, lembrando que o filme é de 1964, ano em que o então presidente do Brasil João Goulart foi deposto pelo golpe militar e instaurou-se o governo ditatorial no país, que durou 21 anos. Embora o filme seja sobre o cangaço, um movimento que se deu no Nordeste entre fins do século XIX e início do XX, são colocadas discussões atualizadas no tempo histórico do documentário (década de 1960). Após a entrevista com Gregório, vemos planos gerais de uma fazenda e o comentário em voz over de Paulo Gil Soares que interpreta o conteúdo da entrevista, trazendo-o para a discussão sobre o cangaço: Inteiramente só, o sertanejo é um homem abandonado à sua própria sorte. Nada lhe resta, senão a desesperança ou a rebeldia, que é um simples efeito de causas profundas, da ausência de justiça, analfabetismo, precariedade de comunicações, baixos salários, débil capitalismo e um lentíssimo desenvolvimento das forças produtivas [grifos nossos]. Na sequência evidencia-se um embate entre o cineasta, dono do que Jean-Claude Bernardet (2003) denomina “voz do saber”, e o professor Estácio de Lima, o acadêmico que, embora seja o “mesmo de classe” em relação ao cineasta, tem seu discurso desmentido pela articulação de diversas vozes na montagem – Fernão Ramos (2008), ampliando essa denominação, diz que Estácio de Lima seria um “mesmo que não sou eu” (RAMOS, 2008, p.397), o que para nós seria “o mesmo de classe com o qual eu não concordo”. Mais importante do que a nomenclatura, é perceber que não é necessário o comentário em voz over para que a “voz do saber” se sobressaia. Se nos primeiros minutos do filme é incorporado um discurso expositivo, conforme trechos que destacamos anteriormente, tal estratégia é deslocada 33 constantemente, havendo outros momentos mais interativos e até reflexivos no média-metragem. Fernão Ramos considera: “A voz, no entanto, não precisa ser acionada para explicitar a contraposição entre a fala [de Estácio de Lima] e a ideologia do média-metragem” (RAMOS, 2004, p.92). O recurso da montagem paralela, que coloca em contraposição vozes e imagens – a fala de Estácio de Lima se contrapõe à locução em over, às imagens dos vaqueiros e à entrevista com Gregório – é um dos procedimentos estilísticos que se repetirá em outros documentários de Paulo Gil na Caravana Farkas. Ainda acompanhando as reflexões de Bernardet (2003), o vaqueiro Gregório representaria a “voz da experiência”. Ele serve, assim como os operários de Viramundo (Geraldo Sarno, 1965) – um dos filmes analisados pelo autor para perceber as relações que se estabelecem entre as vozes do documentário –, como exemplo do “homem abandonado à sua própria sorte”, referido pelo “diretor-locutor”. É um momento em que há a superioridade da “voz do saber” sobre a “voz da experiência”, o que aproximaria Memória do cangaço do “modelo sociológico” de documentário proposto por Bernardet. No entanto, conforme veremos ao longo da pesquisa, há várias rupturas de uma postura sociológica no filme, como a “não-entrevista” com Dadá, o fato de Paulo Gil Soares tomar corpo ao lado do vaqueiro e não ser uma voz que está sempre fora do mundo histórico representado, entre outras situações. De toda forma, o saber acadêmico é desmentido pelo média-metragem, diferentemente dos documentários mais educativos feitos até então, justamente apoiados nesse saber: Em Memória do Cangaço é ironizado sutilmente o discurso didáticocientificista que tanto marcou o documentarismo brasileiro realizado, nos anos de 1930 e 1940, a partir da tradição do Ince [Instituto Nacional de Cinema Educativo] (RAMOS, 2004, p.92). Informações sobre o combate entre Zé Rufino e Corisco, fato que o diretor afirmou tê-lo motivado a fazer o documentário, só vão aparecer depois dessa longa introdução ao tema do cangaço, que dura quase nove minutos. O filme passa então a intercalar trechos da entrevista do coronel com os depoimentos de ex-cangaceiros, versos de Lampião recitados pela locução e as imagens feitas pelo mascate Benjamin Abraão na década de 1930. 34 A presença da voz over permanece, mas ela oscila entre a “voz de Deus”, didática e assertiva, e uma “voz lírica”, que recita versos da poesia popular, recurso explorado em outros documentários de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas – Vaquejada e O homem de couro –, sobre o qual trataremos com mais ênfase no capítulo 3. Merece ainda destaque o papel da canção com versos populares como “locutor auxiliar”, que em Memória do cangaço apresenta Zé Rufino e faz comentários sobre o personagem. Tal recurso será explorado também nos dois filmes citados acima. Há um tom de denúncia e investigação que perpassa o documentário, percebido, por exemplo, quando o “diretor-locutor” corrige e contraria a versão – consequentemente, a memória – de Zé Rufino sobre a morte de Corisco. Tratase de uma voz ríspida e de autoridade que aparece em dois momentos, nos últimos minutos do média-metragem, fornecendo a “verdade” sobre o fato. Falaremos mais sobre o encontro com o coronel no capítulo 2, quando elencarmos características dos personagens nos filmes de Paulo Gil Soares. Zé Rufino também conta, com orgulho, como os cangaceiros eram mortos e que mandava os policiais de sua volante cortarem as cabeças deles para depois serem fotografadas. Três desses policiais são vistos durante a entrevista ao lado do coronel, que os apresenta, explicando a função de cada um nos combates: os rastejadores Bentevi e Leonídio, e o cabo Antônio Isidoro. Leonídio dá um breve depoimento sobre a degola das cabeças, explicando que cumpria ordens de um outro superior, o sargento Odilon Flor; sua fala é coberta com imagens dessas cabeças, expostas no mesmo Museu de Antropologia – dirigido por Estácio de Lima – como espécie de “troféus” ganhos na luta contra o banditismo25. Nos minutos finais do filme, Paulo Gil pergunta o que o coronel fez depois da campanha contra o cangaço e Zé Rufino conta que comprou algumas fazendas e cria gado, se tornou um proprietário rural. Reiterando o que sugere O fato das cabeças permanecerem tanto tempo no museu (desde 1938) gerou polêmica. Uma reportagem, da edição de 6 de junho de 1959 da revista O Cruzeiro, por exemplo, colocou o debate em questão: são entrevistados um primo de Lampião, o advogado Dr. Antônio Ferreira Magalhães, e a filha de Lampião e Maria Bonita, Expedita Ferreira Messias, que pediam a retirada das cabeças do Museu; argumentando do lado oposto, o professor e diretor do Museu, Estácio de Lima, que defendia a permanência delas no local, alegando que deveriam ser vistas como “peças científicas”. MARTINS, João. “Justiça para Lampião”. In: O Cruzeiro, Rio de Janeiro: 06 jun. 1959. Disponível em http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/. 25 35 Meize Lucas (2012, p.210), consideramos que há uma recolocação da questão agrária apresentada no início do filme tanto pela locução quanto pela entrevista com o vaqueiro, e que no final é retomada pela informação de Rufino, como se a situação tivesse permanecido a mesma desde os tempos do cangaço. A última imagem de Memória do cangaço é um plano conjunto do coronel de costas e caminhando em direção a uma plantação de sua fazenda, como se estivesse “saindo de cena”. Enquanto o vemos, a canção popular novamente cumpre a função de “locutor auxiliar”, comentando sobre a vida atual do coronel. Em seguida, um letreiro com trechos modificados de uma poesia de cordel é inserido sobre a imagem, cujos versos fazem menção à ideia de memória e sugerem uma reflexão sobre o fazer documental, reflexões que faremos no capítulo 3, quando observarmos como os materiais da cultura popular são apropriados pelo discurso documentário de Paulo Gil Soares. Memória do cangaço inaugura algumas estratégias que se repetirão em outros filmes de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas, conforme veremos a seguir. Em nossa leitura, é seu documentário mais emblemático. Por isso, há um espaço maior às discussões em torno dele neste trabalho. 1.2 – Erva Bruxa (1969-70) Filmado em diversas cidades do Recôncavo Baiano, já em cores e captado em 16 mm, Erva Bruxa (1969-70) faz parte da 2ª fase de produção da Caravana Farkas, como os próximos títulos do diretor a serem abordados. O média-metragem (22’) mostra as etapas da produção e comercialização do tabaco: o momento da colheita, sua classificação no armazém e a venda. O filme denuncia os riscos à saúde que o manuseio do fumo traz ao operário e a indústria clandestina de charuto nas decadentes cidades baianas de Cachoeira e São Félix. Ainda questiona as relações de trabalho da indústria fumageira, tratando da mecanização que acarreta o desemprego e da relação desigual que é estabelecida entre produtor, comerciante e o mercado externo. Há depoimentos de lavradores, de supervisores de armazéns de fumo, de um sindicalista, de um empresário da indústria fumageira e de um médico sanitarista. A respeito da equipe que colaborou com o filme, destaca-se Sergio Muniz como produtor executivo (ao lado de Edgardo Pallero), Affonso Beato como 36 fotógrafo, Sidnei Paiva Lopes na captação do som direto, Geraldo Veloso como montador, João Trevisan como assistente de produção, figuras que se repetirão nos demais documentários de Paulo Gil na 2ª fase de produção da Caravana Farkas. A primeira parte do documentário (aproximadamente até os 11´) começa antes mesmo das cartelas que apresentam os créditos do média-metragem, quando a locução em voz over de Paulo Gil descreve, utilizando termos específicos da Botânica, as partes que compõe a planta do tabaco. A forma pedagógica da narração faz com que tenhamos a impressão de ouvirmos a leitura de um livro de Biologia ou de um verbete da coleção Brasiliana26. Junto à locução, trecho de “A Primavera” (da série de concertos “As quatro estações”), de Vivaldi, que reforça a erudição das palavras. Só então teremos as cartelas que apresentam a equipe do documentário, feitas pelo artista plástico Lênio Braga27, outra figura que colaborará em mais filmes. Ainda mantendo o tom educativo, o “diretor-locutor” dá informações (a partir de 2’15’’) sobre o cultivo do tabaco e o regime de trabalho normalmente praticado na lavoura, enquanto planos conjuntos mostram lavradores, dentre eles várias crianças, em uma plantação familiar do fumo tipo Bahia-Brasil. A locução sugere que, embora este seja um produto destinado à exportação, não traz benefícios econômicos para o trabalhador: “[...] sua produção é vendida por preço mínimo, sendo classificado para exportação pelos armazéns compradores, únicos beneficiados pela diferença de preço”. Esta é a primeira “defesa” do trabalhador feita pela voz over (neste caso do lavrador, depois será do operário do armazém) e faz com que o tom do documentário comece a mudar, como veremos adiante. O depoimento de um dos camponeses, cujo nome desconhecemos, confirma o que diz a voz over, afirmando que o ganho com a lavoura do fumo mal dá para as despesas. A coleção Brasiliana foi uma série de livros editados pela Companhia Editora Nacional entre 1931 e 1995, que abrigava diversas áreas do conhecimento a respeito do Brasil: de Geografia e História à Botânica. O próprio Farkas manifesta em algumas entrevistas sua intenção dos documentários serem como essa coleção de livros. 26 Lênio Braga foi um artista plástico que viveu na Bahia nas décadas de 1950 e 1960, também politicamente de esquerda. Ver: PEREIRA (2012). 27 37 Em seguida, o supervisor de um armazém (também não sabemos seu nome), onde são separadas as folhas do tabaco, explica a classificação do fumo da Bahia. Cobrindo sua fala, homens e mulheres são mostrados em planos conjuntos feitos com a câmera na mão, executando o trabalho no armazém sem proteção nas mãos ou nos pés. A situação se repetirá nas imagens seguintes, em que homens rodam uma espécie de pilão gigante que comprime as folhas, auxiliado pelos pés descalços dos trabalhadores. São diversos planos – de conjunto, detalhe – que descrevem o trabalho no armazém, onde a separação e o empacotamento do fumo são manuais. No plano sonoro, a voz over discorre em tom mais denunciativo sobre a forma rudimentar desse trabalho, acarretando em doenças profissionais aos trabalhadores, além de ser uma ocupação temporária. A saúde e a mudança na relação de trabalho na indústria do fumo são os dois aspectos que conduzirão as próximas entrevistas, amalgamando com as imagens e a locução mais uma “defesa” do trabalhador. Quando não há a locução, cantos de orixás acompanham as imagens dos operários nos armazéns. Temos então o depoimento de um médico (também não nominado), que confirma os problemas de saúde dos operários, ocasionados pelo manuseio do fumo sem proteção. Trata-se de um catedrático que colabora com uma das denúncias feitas pelo filme, ao contrário do que ocorre com Estácio de Lima em Memória do cangaço. Ainda voltaremos a falar dele no capítulo 2. Durante a fala do médico de Erva Bruxa, novos planos de um armazém, desta vez só de mulheres separando as folhas de fumo em esteiras. Após seu depoimento, novamente os cantos de orixás são inseridos no plano sonoro associados às imagens das operárias. Um breve silêncio antecede a entrevista seguinte com o presidente do sindicato dos trabalhadores na indústria de fumo da cidade de Cruz das AlmasBA, Saturnino Ferreira Conceição (único personagem do filme que sabemos o nome). O questionamento ao sindicalista é outro, sobre a demissão em massa de trabalhadores, informação que Paulo Gil Soares quer confirmar com ele; ouvimos as perguntas do diretor no instante da tomada, o que não ocorre com o médico sanitarista citado anteriormente. O recurso de montagem paralela é acionado: Saturnino nega ter havido demissões e, seguidamente, o depoimento 38 de um supervisor de armazém confirma a denúncia de Paulo Gil, desmentido o representante dos operários. Não há a necessidade de intermediação da voz over para explicitar a “defesa” que o filme faz do trabalhador, pois, como sugere Nichols (2010): “A voz do cineasta emerge da tecedura das vozes participantes e do material que trazem para sustentar o que dizem” (NICHOLS, 2010, p.160). A segunda parte de Erva Bruxa (a partir de 11’) detém-se nas questões relacionadas ao fumo cultivado na Bahia que é destinado à exportação. Mostra como é plantado um tipo de fumo com esta finalidade, o capeiro, destinado à fabricação de charutos e cigarrilhas, cujo cultivo na Bahia teve de ser adaptado. Os depoimentos do supervisor de uma lavoura, planos gerais de mulheres colhendo a planta e a voz over do “diretor-locutor” são bastante educativos, descrevem e explicam o plantio desse tipo de fumo e para qual mercado se destina. No entanto, assim como ocorre na primeira parte do documentário, o tom muda após a fala de um empresário da indústria fumageira, que ressalta a previsão de lucros altos com a exportação do fumo baiano no ano de 1969. Daí por diante, é apresentado o “outro lado” da história do fumo na Bahia: o aspecto didático dá lugar à investigação. Trata-se da indústria de fumo clandestina em Cachoeira e São Félix, duas cidades baianas às margens do rio Paraguaçu, antes “rainhas da lavoura fumageira”, conforme pontua a locução, que entraram em decadência após a Segunda Guerra Mundial. As imagens – que não sabemos de qual das duas cidades são – mostram prédios em ruínas e casarões abandonados, resquícios dos tempos econômicos áureos, cuja herança é um sistema doméstico e clandestino de fabricação de charutos. Enquanto acompanhamos a fabricação artesanal feita por uma “charuteira” em sua casa, a voz over nos informa que o produto abastece tanto o mercado local quanto algumas fábricas, que baixam seus custos de produção ao comprarem o charuto artesanal. Não há depoimentos de quem fabrica, nem de quem consome o produto. Aliás, os operários dos armazéns também não dão depoimento; apenas lavradores e o sindicalista representam o “outro de classe” no filme. O documentário termina com uma locução explicativa esclarecendo onde, por quem e como o tabaco – que só agora somos informados ter o “apelido” de erva bruxa – começou a ser consumido. As imagens finais são primeiros planos 39 de pessoas comercializando e fumando charutos; algumas percebem a presença da câmera e olham para o fotógrafo (e para o espectador). O último fotograma é a imagem de uma senhora, ilustrando o que diz a locução: alvejando os dentes com a ponta de um charuto. Em Erva Bruxa, há a alternância constante de um tom educativo/didático para um tom denunciativo, relacionada a como se manifestam as diversas vozes no filme e que também percebemos em outros títulos do diretor. Por um lado, há uma locução em over explicativa e imagens que mostram cada etapa do processo de cultivo e comercialização do tabaco; por outro, é essa mesma locução que se encarrega de denunciar as más condições de vida e de trabalho, reforçada pelas entrevistas sucessivamente colocadas pela montagem paralela, em que um personagem parece “responder” a outro, em um movimento de argumentação e contra argumentação. Temos um hibridismo de procedimentos: a voz over educativa que remete ao documentário griersoniano de caráter expositivo convive com as entrevistas que atestam a participação do cineasta, premissa do cinéma vérité. Fernão Ramos (2008) traduz certo espírito do “documentário novo” brasileiro, ao tratar de filmes realizados entre 1961 e 1965, que também está presente em Erva Bruxa e em outros títulos de Paulo Gil Soares, realizados em 1969-1970, momento de maior repressão política do país, após a promulgação do AI-5: O direto brasileiro mergulha no estilo que a nova técnica abre, mas dá um passo atrás, e mantém um ouvido atento às cobranças éticas do documentário clássico (educar, conscientizar). [...] A tensão entre uma nova sensibilidade estética que emerge (a nova sensibilidade para a miséria, o abandono e a fragilidade do outro popular) e os mecanismos sociais de censura e coerção que impossibilitam sua expressão provoca comoção no artista. [...] Para o novo cineasta, não é suficiente apenas mostrar a miséria na posição de recuo do direto, ou nela interferir na forma de entrevistas ou depoimentos. A evidência da miséria é tão grande, sua revolta tão comovente, a indignação tão intensa, e a absoluta urgência da transformação tão premente, que não se consegue conter a voz didática em over amplificando as mazelas do país, a alienação do povo e a estupidez da classe média (RAMOS, 2008, p.341). [grifos originais] Em Erva Bruxa, a descrição dos processos produtivos aparece como prenúncio de questões mais profundas, em que pesa a relação explorador/explorado. A “defesa” do explorado – o “povo” – pelo cineasta retoma a discussão sobre o papel do intelectual, em voga no contexto do Cinema Novo 40 e dos Centros Populares de Cultura da UNE no início da década de 1960, de cores marxistas, no qual o intelectual teria o papel de “desalienar” o “povo”. A ideia de o cineasta ser analista da realidade apreendida pela câmera se alinha à proposta de documentário que Thomaz Farkas (1972) defende em sua tese de doutorado, intitulada Cinema documentário: um método de trabalho, baseada na experiência com os documentários realizados na 1ª e 2ª fases de produção da Caravana. Para ele, é insuficiente para um documentário a “simples documentação” de fatos. Caberia ao cineasta fazer o aprofundamento dos assuntos registrados, o que resultaria em um “documentário dramatizado”, termo que aparece também nos escritos de John Grierson, catalisador do documentário educativo inglês da primeira metade do século XX. Vemos portanto que há vários conceitos para ‘Documentação’. Para o nosso estudo, consideramos dois: Um como o registro de acontecimentos, simples coleção justaposta e catalogada de acordo com um critério arbitrário, que em momento oportuno serão utilizados. Do seu conjunto surgirá uma informação cronológica, geográfica, histórica e a carga de significados resultantes dependerá do critério a ser adotado. O outro, como uma modalidade de documentação que, possuindo as características já descritas (dados coletados e catalogados) fará destes dados uma tecelagem ou melhor, uma trama. Há um tema. É o documentário dramatizado onde os fatos sofrem interpretação com intenção específica; já ultrapassa o nível de simples coleta de dados para impregná-los de uma visão ou ideia. Parte de fatos reais, mas oferece um ponto de vista subjetivado do seu autor; é mais aberto no sentido de colocar a discussão: é o fato somado à sua interpretação (FARKAS, 1972, p.11-12) [grifo original]. Podemos dizer que os dois conceitos acima estão nos filmes de Paulo Gil Soares, pois eles oscilam entre o caráter educativo, que estaria relacionado mais à descrição dos assuntos, ao primeiro conceito de documentação considerado por Farkas; e o caráter de denúncia, que já seria a interpretação dos fatos feita pelo cineasta, o segundo conceito para documentação. A propósito, o tom mais denunciativo é uma das características que diferenciam a “voz” de Paulo Gil Soares em relação a outros diretores da Caravana Farkas. Podemos comparar Erva Bruxa com outro documentário sobre “Atividades Sócio-Econômicas Primitivas”28 feito à mesma época, como Casa de farinha (1970), de Geraldo Sarno. Tomando como exemplo a locução, no filme de Sarno ela é também O termo foi utilizado para agrupar em temáticas os filmes, em texto de divulgação publicado na Revista Fotoptica. 28 41 bastante educativa, descreve todo o processo artesanal de fabricação da farinha de mandioca e explica como se dá a relação entre proprietário e lavrador. No entanto, é sutil e não coloca os problemas explicitamente – por exemplo, o baixo valor de venda do produto nas feiras e o alto valor dos impostos. Estes são subentendidos no depoimento de um camponês que abre e encerra o documentário, e não são interpretados pelo locutor29. Para o pesquisador Gilberto Sobrinho (2010), nos filmes de Paulo Gil há um peso maior da fala – seja a manifestada pela voz over, depoimentos ou canções – para fazer denúncias. Já nos filmes de Geraldo Sarno, que também fazem análise social, haveria “[...] uma poética da fruição através de uma linguagem mais elaborada” (SOBRINHO, 2010, p.36). 1.3 – A morte do boi (1970) A morte do boi é um dos cinco documentários de Paulo Gil na Caravana Farkas sobre atividades econômicas ligadas ao ciclo do gado e que exploram a figura do vaqueiro. O curta-metragem (11’) informa sobre a criação e comercialização do boi nas feiras do interior do Nordeste – utilizando imagens captadas no interior da Paraíba30 – e mostra o processo de abate em um matadouro primitivo em Feira de Santana, na Bahia, onde o animal é morto rudimentarmente, na faca, sem qualquer controle sanitário e cujas sobras de carne são disputadas por homens e mulheres, inclusive uma criança. O filme não tem entrevistas, o que exclui a manifestação da “voz da experiência”, aspecto que o diferencia dos demais títulos de Paulo Gil na Caravana Farkas. É também o mais expositivo do conjunto, sendo que a locução do diretor preserva o tom didático-denunciativo, do tipo “voz de Deus”. No entanto, outras características são recorrentes, conforme destacaremos adiante. Nas cartelas que apresentam a equipe do filme, assim como em Memória do cangaço, temos desenhos inspirados nas xilogravuras de cordel. Na trilha musical, há a música instrumental da Banda de Pífanos do Crato que, em tese, se relacionaria ao universo representado no curta. Repetindo a Outra diferença é que a locução não é de Geraldo Sarno, mas de Tite de Lemos. O filme não informa que as imagens da fazenda foram captadas no interior da Paraíba. Deduzimos serem de Taperoá, pois em outros títulos do diretor filmados neste município há planos que mostram os mesmos vaqueiros que aparecem em A morte do boi. 29 30 42 estrutura dos demais documentários, a voz over apresenta o tema sobre planos gerais da fazenda, nos quais vemos vaqueiros conduzindo os animais no pasto: A zona do agreste é a que mais contribui para o abastecimento de carne das capitais nordestinas. Seus rebanhos criados em pastos pobres, em regiões de baixo índice chuvoso e de alimentação deficiente são também os menos rentáveis deste mercado. Embora sendo uma atividade de baixa produtividade econômica, aparece com frequência, nesta região, em vista dos mínimos investimentos requeridos. Depois de quatro a seis anos de engorda, os bois atingem peso e são levados a pé para as feiras de gado onde serão negociados. As maiores boiadas geralmente chegam no verão e vêm extenuadas com as longas caminhadas. É possível ouvir alguns vaqueiros aboiando31 o gado quando a locução cessa, em momento de mais observação do que interferência do cineasta. Em seguida, são mostradas imagens de uma feira de animais, cuja lógica de funcionamento é explicada pela locução também de forma bastante didática. Ao lado da feira vemos o matadouro onde são mortos brutalmente os animais escolhidos pelos compradores que, pontua a locução, já são maltratados desde o curral. O documentário não informa se o matadouro das imagens já é o de Feira de Santana-BA porque a cidade é mencionada depois que o processo foi mostrado. Contudo, de acordo com a sinopse de A morte do boi, que consta no catálogo da mostra realizada em 1997, o abate é na cidade do interior da Bahia. A partir de 3’30’’, inicia-se o “passo a passo” do abate: não são poupados planos detalhes de sangue e tripas à mostra. Mais do que educar, o filme denuncia uma condição precária e subdesenvolvida do interior do Nordeste: são imagens do subdesenvolvimento. Dentro do matadouro, quem mata os animais o faz no facão e entra em contato direto com suas entranhas, sem proteção nas mãos ou nos pés. Muitos homens são vistos descalços pisando em poças de sangue ou em partes do boi já morto, em cenas que revelam um trabalho rudimentar, primitivo e sem qualquer fiscalização sanitária. A locução descreve cada etapa do processo e são resguardados comentários mais assertivos, pois as fortes imagens “falam” por si. O aboio é o canto entoado pelo vaqueiro para conduzir o gado nos trabalhos de campo, imitando o som dos animais: “[...] geralmente livre de forma estrófica, destituído de palavras as mais das vezes, simples vocalizações, interceptadas quando senão quando por palavras interjectivas, ‘boi’, ‘êh boi’, ‘boiato’, etc.” (ANDRADE, 1989, p.1-2) 31 43 A miséria mostrada na tela é de uma violência premente e nos remete ao que escreveu Glauber Rocha no manifesto Eztetyka da fome, em 1965, sobre o “miserabilismo” do Cinema Novo brasileiro. Segundo ele, ao cineasta caberia o papel de promover uma conscientização sobre a condição subdesenvolvida do país, comprometendo-se a levar para a tela a “verdade” – a fome e a miséria: [...] De Aruanda a Vidas secas, o cinema novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer; personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras [...] (ROCHA, 2004, p.65). Os filmes da Caravana Farkas inserem-se nessas discussões acerca do intelectual (do cineasta), como já citamos anteriormente, e tinham justamente a proposta de “revelar o Brasil aos brasileiros” e colocar na tela a fala e os gestos do povo brasileiro, o que é feito de forma crítica, analítica. Não por acaso, os quatro primeiros filmes dessa experiência foram agrupados com o nome de Brasil Verdade; já os 19 documentários da 2ª fase de produção, que vai de 1967 a 1971, na qual A morte do boi e outros seis filmes de Paulo Gil Soares se inserem, ficaram conhecidos conjuntamente como A condição brasileira. Nos documentários do diretor, a condição de subdesenvolvimento é colocada diretamente pelas imagens e pela fala. Voltando ao filme em questão, na sequência seguinte à do abate (aos 6’20’’) vemos várias pessoas – inclusive uma criança – disputando pedaços de bois desprezados pelo matadouro de Feira de Santana, expostos do lado de fora do galpão para servirem de alimento a urubus. São planos conjuntos que mostram as pessoas carregando nos ombros as partes dos animais; a criança, que caminha em direção à câmera, sai de quadro com o rosto manchado de sangue e encoberto com o pedaço que lhe compete. Há closes de cabeças de boi ensanguentadas e homens arrancam miolos a machadadas. A voz over complementa a denúncia das imagens: Uma produção marginalizada acompanha o processo de abate de bois. Sob a mais incrível ausência de controle sanitário, são aproveitados subprodutos para a venda nos açougues e feiras. 44 Uma mulher é observada retirando os excrementos do estômago e do intestino grosso de um animal, sobre os quais ela pisa descalça e que servirão para fazer dobradinha. Atrás dela, a câmera mostra, rapidamente, um urubu à espreita. Em seguida, acompanhamos mulheres limpando as patas dos bois (o mocotó) sob a “vigilância” de urubus e cães, a quem restam as centenas de ossos espalhados pelo chão. As mesmas mulheres também limpam as demais partes dos animais que, a locução informa, se transformarão em subprodutos como as farinhas de carne, de ossos e de sangue, a bílis, as crinas, os cascos, os chifres. Essa sequência é comentada por Alfredo D´Almeida (2003) que constata o que percebemos em outros títulos: “A dramaticidade construída no processo de montagem sobrepõe-se ao discurso e à imagem registradas32” (D´ALMEIDA, 2003, p.135). Sobre o aproveitamento das partes do boi, o curta ainda mostra um curtume primitivo mantido por uma criança às margens do rio Taperoá, na Paraíba, em mais uma sequência que revela o subdesenvolvimento. A locução explica como é feito o tratamento do couro e seu uso para a fabricação artesanal de chapéus, selas, sandálias e outros objetos a serem comercializados em feiras populares. Um artesão é visto confeccionando algumas peças e aparecerá novamente em A mão do homem, outro filme sobre o ciclo do gado, sobre o qual trataremos a seguir33. As imagens de A morte do boi carregam “indícios de pobreza”34: pessoas que disputam pedaços de carne deixadas ao ar livre; a criança que, sozinha, toma conta de um curtume primitivo; a técnica rudimentar empregada para o abate do boi; a falta de higiene dentro dos matadouros. Essa impregnação se dará também em imagens de outros títulos: elas apontam para a condição de vida precária, primitiva, miserável que o cinema (o cineasta) precisaria revelar. 32 Entendemos que o autor está considerando como discurso a enunciação feita pela voz over. Imagens gerais de feiras, de gado no pasto, do abate do boi serão utilizadas mais de uma vez nos filmes de Paulo Gil Soares sobre o ciclo do gado. 33 O termo seria um antônimo para “indícios de riqueza”, utilizado por Eduardo Morettin (2005) ao descrever as imagens de filmes documentais do período silencioso brasileiro feitos sob encomenda de proprietários de fazendas, comerciantes ou autoridades políticas. A recorrência de imagens de casarões, automóveis e inúmeros funcionários nos filmes serviriam como espécie de atestado de poder. 34 45 O minuto final do documentário lembra seu início. Há bois no pasto e uma conclusão é feita pela locução, que antecede os aboios dos vaqueiros: “E no campo novas boiadas são engordadas para novos abates. Ciclo econômico que mantém a grande maioria das fazendas nordestinas”. Há a estrutura de apresentação do tema, desenvolvimento e conclusão. A voz over é mais descritiva do que assertiva – a exceção é a sequência em Feira de Santana –, mas fornece informações que engrossam o caráter de denúncia e investigação do filme. Esse caráter se sobressai, mais uma vez, ao sentido didático que o curta teria. Se sua fala não diz (ou não pode dizer) diretamente sobre o que o filme trata – muito além de uma descrição do abate do boi, é a pobreza encontrada nesses lugares que o filme escancara –, as imagens encarregam-se de fazê-lo. 1.4 – A mão do homem (1969-70) O artesanato popular de peças em couro é o tema do média-metragem (19’) A mão do homem, que mostra desde o abate do gado e como a pele do animal é retirada, tratada e curtida, utilizando o material filmado em Taperoá – parte dele está em A morte do boi –, até o trabalho e a vida de artesãos do couro da cidade de Umburana, interior da Bahia. Uma informação a destacar é que o filme é dedicado à arquiteta italiana Lina Bo Bardi, cujas ideias acerca da cultura popular estão presentes nos títulos dirigidos por Paulo Gil Soares na Caravana Farkas, aspecto que será debatido no capítulo 3. Além do tema, o popular em A mão do homem está referenciado pela música instrumental da Banda de Pífanos de Caruaru e do cancioneiro popular (este não identificado no filme) que pontuam a narrativa. Em seu trabalho como diretor (alguns documentários já comentamos, outros ainda trataremos), essa incorporação se dá desde Memória do cangaço: a locução que recita versos populares, as cartelas de apresentação com desenhos de xilogravuras de cordel, a canção popular que apresenta o personagem Zé Rufino. A exemplo de outros filmes do diretor, o média-metragem começa com uma apresentação geral do tema. Planos gerais mostram o gado no curral, enquanto a locução em over didática traz informações históricas a respeito da 46 “civilização de couro”, cujos primórdios se deram no início da colonização do Brasil, quando o país chegava a exportar 200 mil peles por ano para Portugal: A carne do boi não era aproveitada por falta de condições de conserva. A coroa portuguesa mantinha o monopólio do sal e, como não o cedia aos abatedores, da criação de bovinos começada em 1530, aproveitava-se apenas as peles. Em seguida, um boi é puxado por um homem para dentro do matadouro e passamos a acompanhar como é o abate primitivo. As tomadas são feitas no mesmo local de A morte do boi. Diferentemente deste, o som diegético é preservado em algumas cenas, há silêncio naquelas em que é desferido o golpe de facão no animal e foca-se no processo de retirada da pele, que é explicado pela voz over. Novamente, a pobreza está indiciada nas imagens: a técnica rudimentar empregada, o contato direto das pessoas com as partes do boi ainda ensanguentadas, a presença de crianças que auxiliam no trabalho. Vemos as peles secando ao sol e a locução enfatiza que o curtimento do couro, assim como o abate, é feito de forma primitiva. Um curtidor informa o valor de compra da pele e por quanto vende o couro já tratado; outros são vistos carregando as peles na cabeça e a voz over não só explica, mas comenta: “Aqui no curtume, tanto o trabalho dos curtidores como dos proprietários é um trabalho temporário. Uns trabalham apenas 15 dias em cada período de três meses e sob as mais primitivas condições”. As imagens seguintes, planos em conjunto dos curtidores limpando com facões as peles dentro de um rio, ilustram a fala da locução: “Na natureza vão buscar os elementos que permitem o trabalho e, em muitos casos, as ferramentas são funcionais, mas nunca tecnicamente adequadas”. Acompanhamos o restante do procedimento – no qual os homens amassam o couro com os pés – sem a interferência da voz over e ouvimos a música da Banda de Pífanos de Caruaru, que ajuda a dar ritmo às imagens. Um dos curtidores carrega nas costas as peles já limpas e começa a sair do rio, quando a música cessa. No silêncio que dura poucos segundos, vemos o homem de costas, com as nádegas à mostra. A voz over denuncia e explicita a ironia que marca a condição daquelas pessoas: “Alguns não têm mesmo roupa para vestir enquanto trabalham”. A música continua, mas agora é uma canção 47 (interpretada por duas vozes que o filme não identifica), que também aparece na abertura do filme, cujo refrão é: “Foi lá pegaram / Mataram meu gavião / Meu senhor”. Nessa sequência, a articulação entre voz over, silêncio/música e as imagens desloca o filme do didatismo para um viés mais denunciativo. Um curtidor (não nominado) que dá depoimento descreve com mais detalhes como são o trabalho e a venda do couro aos comerciantes quem segundo ele, são os únicos que levam vantagem no negócio. Sua fala também aparece em off sobre imagens que mostram a destinação das peles já limpas, também pontuadas em alguns momentos pela trilha musical da Banda de Pífanos ou ainda acompanhadas por breve complementação feita pela voz over. O personagem será melhor observado no capítulo 2. Da descrição das atividades no curtume, o documentário passa a mostrar o artesão, que é equiparado ao curtidor: ambos não lucram com seu ofício, vivem em condição de vida precária e dependem do negociante. Vemos planos gerais e panorâmicos da então vila de Umburanas, no estado da Bahia (a partir de 9’), em que homens e mulheres são observados costurando o couro em frente suas casas, enquanto a voz over acusa: Não há luz, água encanada, esgotos ou escolas. Sua economia está diretamente ligada ao artesanato de couro. O trabalho é familiar e, aliado às pequenas plantações de cereais, fornece a subsistência aos moradores. Em seguida, mais tomadas descritivas mostram a confecção de objetos em couro. Um primeiro artesão se apresenta (aos 10’17’’), dizendo o nome – Natanael Felismino Barreto, “vulgo Natal” – e começa seu depoimento dizendo que trabalha muito e que não é fácil, mas prossegue com uma explicação bem didática sobre a fabricação artesanal de uma sela de cavalo, com o “passo a passo” ilustrado pelas imagens. Ainda um outro artesão dá depoimento (aos 15’30’’), Moisés Alves de Oliveira, colaborando mais para a denúncia da pobreza feita pelo filme. Ele explica sobre o feitio do chapéu de couro, mas o que predomina em sua fala é, como no caso do curtidor, o pouco ganho com o ofício e a consciência sobre quem leva vantagem com seu trabalho. Também falaremos mais sobre ele no próximo capítulo. 48 Diferentemente de Erva Bruxa ou Memória do cangaço, o documentário não traz a montagem paralela de entrevistas que coloca a argumentação e contra argumentação entre dois personagens porque não há a contra argumentação, já que não é personificado no filme o “explorador”, o negociante, que seria o outro extremo do “ciclo do couro”. Tanto o artesão quanto o curtidor são aqueles que levam desvantagem no capitalismo e a voz over cumpre o papel de reiterar essa condição e tirar conclusões. Sobre imagens de outros moradores da vila de Umburanas, todos trabalhando com o couro, a locução interpreta: Um artesanato ditado pelo útil e necessário, constituindo o valor da produção. Uma poética não criada pela mera fantasia. Uma produção para qual o próprio artesão não está preparado, pois não tem condições de consumi-la, como o chapeleiro que usa chapéu de palhas ou o fazedor de sandálias que compra o produto industrial por ser mais barato35. A penúltima sequência traz tomadas de uma feira popular (onde seriam comercializados os produtos dos artesãos), em que vemos alguns comerciantes, e sobre as quais ouvimos, em off, novamente o depoimento do curtidor de couro explicando que quem leva vantagem é sempre o negociante, pois este tem carro, enquanto o curtidor, mesmo que trabalhe por 40 anos, não consegue ter um meio de transporte nem para seu ofício nem para passeio. O documentário encerra mostrando um vaqueiro a cavalo em uma fazenda e vestindo a roupa feita inteira em couro, que aproxima da câmera e sai de quadro. A voz over conclui: “E o ciclo se cumpre. Encourado, o homem parte para o campo e vai cuidar do gado que um dia cederá a sua pele para novamente vesti-lo”. Em A mão do homem, o embate “explorador/explorado” permanece. Em consonância com os outros filmes, há sempre a denúncia da condição de vida precária das pessoas feita de forma bastante direta, reiterada tanto pelas imagens e pela voz over, quanto pelos depoimentos dos personagens – nós não ouvimos o que o entrevistador pergunta no filme, mas deduzimos pelas respostas que há um direcionamento seu para que esses problemas sejam explicitados. As imagens mais observativas descrevem os processos com a Este é um trecho da locução que retoma ideias – e palavras – de Lina Bo Bardi, a quem o filme homenageia. A relação entre os documentários de Paulo Gil Soares e as reflexões da arquiteta será tratada no capítulo 3. 35 49 pobreza implícita – no abate do boi, no curtimento da pele, na fabricação artesanal dos objetos de couro –, no entanto, não estão livres da interferência da locução ou da música. Os entrevistados, ou a “voz da experiência”, são conscientes de seu pouco ganho, colaborando para a construção da “voz” denunciativa de Paulo Gil Soares. 1.5 – Jaramataia (1970) Os vinte minutos do média-metragem Jaramataia mostram as atividades rotineiras da fazenda que dá nome ao filme, também na cidade de Taperoá, na Paraíba, e onde moram treze famílias: a criação do gado, a retirada do leite e a fabricação rudimentar de seus derivados, a produção de milho e algodão, o ritual de trabalho do vaqueiro, sua relação com os animais e com o dono da terra. Além da locução em over, há entrevistas com o proprietário e trabalhadores, além da fala de uma mulher que explica a fabricação do queijo, ouvida em off. A trilha musical, repetindo outros títulos, inclui a música instrumental da Banda de Pífanos de Caruaru, os aboios dos vaqueiros recolhidos pela região e as canções com versos da poesia popular interpretadas por Cego Birrão, que concorrem com outros sons do filme. Em sua primeira cena, antes mesmo das cartelas de apresentação, vemos um plano conjunto de um rezador que benze outro homem. Trata-se de uma prática comum àquelas pessoas, que é repetida a pedido do cineasta: a câmera, fixa, está bem posicionada. No entanto, há uma impressão de espontaneidade; não há interferência da voz over ou da trilha musical. O mesmo acontece após as cartelas, em que outro rezador, funcionário da fazenda Jaramataia, espera passar um homem com duas cabeças de gado pela câmera para então começar a benzer a terra, em uma espécie de ritual de trabalho. Em seguida, a locução didática, repetindo outros títulos, dá informações sobre o tipo de gado criado na fazenda, estabelecendo uma relação entre passado feudal e o presente ali representado: Os rezadores fazem parte do mundo ligado ao ciclo do gado nas distantes fazendas onde não chegavam as técnicas veterinárias. São herança de um mundo rural primitivo, de uma economia consubstanciada em longos pastos de engorda. Lembranças de antigas civilizações feudais, dos bois primitivos de Garcia D´Ávila que 50 alargaram as fronteiras do Brasil buscando pastos cada vez mais virgens. Jaramataia é o símbolo de muitas fazendas de gado dos sertões nordestinos. Gado de sertão, gado crioulo. Produto acomodado dos bois iniciais vindos da ilha de Cabo Verde, importados por Martim Afonso de Souza para a capitania de São Vicente. Um gado que foi obrigado a reduzir o seu porte. Reduzir a sua capacidade digestiva para satisfazer-se com pouco alimento nas épocas de seca. Um gado que ficou com as pernas longas em relação ao corpo para melhor suportar as longas caminhadas em busca de alimento e água. Enquanto planos gerais e de conjunto mostram um pouco do trabalho do vaqueiro na fazenda, a locução enfatiza a baixa produtividade de leite daquele gado sertanejo (140 litros por dia) devido à sua alimentação insuficiente e à divisão dos lucros com sua venda que o vaqueiro tem a fazer com o proprietário das terras, assunto que o filme ainda vai retomar. A próxima sequência dura quase seis minutos e destaca a “primitiva indústria de queijo” da fazenda, que existe porque a maior parte do leite produzido não é vendida, mas destinada à subsistência dos moradores. Temos as várias etapas da fabricação artesanal do queijo, da coalhada e da manteiga de garrafa, feita pelas esposas dos vaqueiros. As imagens são acompanhadas ora pela locução em off de uma delas explicando os processos, ora pela música de pífanos, ora pela locução que informa sobre os valores de venda dos produtos. Algumas, em plano detalhe, evidenciam as várias moscas nas mãos das mulheres e os objetos rudimentares empregados: mais “indícios de pobreza”. Aos 10’30’’, ainda acompanhando a fabricação do queijo, o “diretorlocutor” antecipa a defesa que o filme fará do vaqueiro: “Com esta indústria, o vaqueiro complementa o seu salário e o trabalho familiar chega a produzir 200 quilos por mês, cujos lucros são divididos com o proprietário”. O que temos em seguida é a montagem paralela entre duas entrevistas que, a exemplo de Erva Bruxa, coloca a fala do proprietário de terras lado a lado com o depoimento de um vaqueiro. Novamente, é denunciada a má condição de vida do trabalhador, aspecto que marca os filmes de Paulo Gil Soares, porque o dono da terra diz que dá condições boas de trabalho ao lavrador, que desmente a informação. Não é apenas na fala que se dá a contraposição e emerge a denúncia da condição precária daquelas pessoas. As imagens também são discrepantes: o proprietário traja camisa e calça social, se apoia em sua caminhonete e fala seguro olhando para a câmera, ainda é visto em um plano conjunto fiscalizando os trabalhadores, como se tivesse lhes dando ordens; a imagem do trabalhador 51 é o oposto, pois este veste roupas sujas e rasgadas, mal consegue se expressar e encarar a câmera. É a contraposição entre os “indícios de riqueza” e os “indícios de pobreza”. Voltamos a acompanhar (a partir dos 12’) um pouco mais do trabalho do vaqueiro na fazenda, personagem valorizado nos filmes do diretor, às vezes com tratamento romântico que lembra os folhetos de cordel, como nessa enunciação da voz over, enquanto o vaqueiro laça e se aproxima de um dos animais: Entre o vaqueiro e a madrinha da manada há não somente uma relação profissional. Há quase uma relação de amorosa amizade. Em grande parte dessa amizade depende o trabalho do vaqueiro, pois só assim ela atenderá o chamado do seu aboio, soltará o leite na hora da ordenha e conduzirá ao campo o gado que segue os sons do seu chocalho. Temos quase três minutos (de 13’ a 15’50’’) de planos sem a interferência do narrador, nos quais são observadas a marcação dos bois com ferrete quente e a castração de um bezerro, ambas feitas pelos vaqueiros. Alguns planos detalhes que mostram as duas situações lembram a sequência do abate primitivo de A morte do boi, mas sem o mesmo nível de crueldade. A insistência do cineasta em mostrar essas imagens que causam estranhamento reitera as oposições que os filmes colocam em discussão: arcaico x moderno, rural x urbano, explorador x explorado. As práticas do mundo rural são mostradas nos filmes de Paulo Gil Soares como seguindo a mesma lógica do capitalismo industrial das cidades, aspecto que é reforçado pelos números e cifras que a locução e a fala dos personagens contabilizam. Além da criação de gado e da atividade do vaqueiro, o documentário aborda a situação dos lavradores que plantam alguns produtos na fazenda, salientando que o trabalho é familiar e feito em regime de meia36, ou seja, metade da colheita é dividida com o proprietário das terras. A informação fornecida pela locução de que a fazenda está localizada na maior região produtora de milho e algodão do Estado da Paraíba, tendo como principais compradoras duas grandes indústrias da época, é contrastada com o depoimento de dois No regime de meia, assim como no de terça ou de quarta, não há vínculo trabalhista. Em troca do uso da terra, o lavrador, que mora na propriedade, entrega parte (metade, um terço ou um quarto) da produção ao proprietário. 36 52 moradores que dizem mal conseguirem viver com os ganhos da terra. Novamente, são mesclados o tom pedagógico com a denúncia da condição de vida do trabalhador no campo, com a atitude política do cineasta. Os últimos minutos de Jaramataia continuam a mostrar o gado nos pastos da fazenda e a locução fornece quantas cabeças são criadas, do que os animais se alimentam. Como ocorre em outros filmes, o “diretor-locutor” conclui o tema. Sobre os planos gerais do gado que caminha em direção à câmera, ouvimos sua interferência final: “Fim do dia. As vacas e seus bezerros voltam para o curral onde passarão a noite e, pela manhã, com a ordenha, recomeçará outra vez o ciclo de trabalho na Jaramataia”. O documentário termina com as imagens do gado sendo recolhido pelos vaqueiros, acompanhadas pelos versos populares cantados por Cego Birrão: “Alegria do vaqueiro / É montar em cavalo bom / Quando chega na porteira / Dizendo qual é o dom / É meu cavalo tem arreado / E meu chocalho de dois tom”. 1.6 – O homem de couro (1969-70) Em O homem de couro (21’) é retratado o universo dos vaqueiros. Também foi filmado em Taperoá, Paraíba, na mesma fazenda Jaramataia. Passamos a conhecer a serventia das peças de suas roupas de couro, suas rotinas de trabalho, os diferentes tipos de aboios que entoam junto ao gado, as dificuldades que enfrentam para sobreviver. Um deles, Zé Galego, é acompanhado de forma mais exaustiva, servindo como personagem central, do qual conhecemos a esposa e os filhos; outros também darão depoimentos e fazem uma performance de seu canto para o cineasta. Não há entrevista com o proprietário da fazenda. Há um recuo da voz over assertiva e generalizante que dá lugar à “voz lírica”, que recita versos da literatura de cordel combinada com a letra da canção com versos populares. As palavras oriundas do imaginário popular nordestino, fragmentadas ao longo do filme, é que se transformam em locução. Sobre Memória do cangaço comentamos que a letra da canção interpretada pela dupla de cantadores apresenta o personagem coronel José Rufino e que o narrador recita trechos de versos da literatura de cordel sobre Lampião ou poesias escritas por ele. Em O homem de couro, este recurso está 53 potencializado. A canção, por exemplo, conduz a narrativa em diversos momentos, tornando-se “locutor auxiliar”, termo que Jean-Claude Bernardet utiliza para se referir à função que o empresário entrevistado em Viramundo, filme de Geraldo Sarno, exerce na narrativa: [...] De modo geral, os locutores auxiliares estão numa posição de poder, quer pelo saber, quer pelo cargo que ocupam, bem como pela função que desempenham no sistema de informação dos filmes. Estão assim mais próximos dos locutores que dos entrevistados. E tudo isso não ocorre sem contradições (BERNARDET, 2003, p.25-26). [grifos nossos] No entanto, a canção de O homem de couro é um “locutor auxiliar” que tem outras características. Se é uma escolha do cineasta, ou seja, é ele quem tem o poder de incluí-la na montagem, ao mesmo tempo traz um saber que não é o dele, que representa a “voz da experiência” ou do “povo”. Diferentemente da canção de Viramundo, a letra da canção não foi encomendada para o filme, já que provém da literatura popular. Do mesmo modo se configuram os versos populares recitados pelo narrador, pois as palavras narradas não são escritas pelo cineasta e também provêm de um universo sobre o qual tem conhecimento, mas que não é o dele. Enquanto as cartelas com desenhos inspirados nas xilogravuras de folhetos de cordel apresentam a equipe técnica, ouvimos a voz do cantador Cego Birrão entoar a canção “Despedida do vaqueiro”, na qual um vaqueiro se despede do patrão, de seu cavalo e de seu ofício. Em seguida, vemos o vaqueiro Zé Galego (José Francisco Filho) se vestir com a roupa feita inteira em couro para a câmera, repetindo uma prática de seu cotidiano. A voz over pedagógica vai aparecer apenas nesse momento (de 1’a 3’10’’), descrevendo e explicando a função de cada parte da roupa do vaqueiro nos trabalhos no campo e, mesmo assim, se intercala com a canção. Nos momentos posteriores, a voz over ainda aparece, mas declama versos da literatura popular, fazendo o “diretor-locutor” mimetizar o poeta. O vaqueiro Zé Galego é o personagem principal do filme e será analisado no capítulo 2. Depois de mostrar sua roupa, monta em seu cavalo e apresentase para a câmera – e para o espectador –, dizendo o nome, quanto ganha por mês e que trabalha doze horas por dia no campo. Ele e outros homens são vistos 54 trabalhando, enquanto ouvimos aboios diversos – não necessariamente dos mesmos vaqueiros que aparecem no filme – introduzidos na trilha musical, a canção interpretada por Cego Birrão ou os versos recitados pela narração que exaltam o trabalho do vaqueiro. O documentário também aborda as dificuldades do trabalho de vaqueiro por meio do depoimento de um deles, mais velho que os demais personagens, dizendo que vai largar a profissão porque ganha pouco e se machucou muito no trabalho na fazenda. Novamente utilizando o recurso de montagem paralela, a fala dele fará contraposição não à fala do proprietário, mas a depoimentos de vários vaqueiros que falam com orgulho da profissão, em especial Zé Galego. Eles comentam sobre aspectos afáveis: os melhores tipos de cavalo para se montar, os vaqueiros mais famosos do Sertão, o touro mais valente, a amizade com os animais. Nos outros filmes de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas – Jaramataia, por exemplo – a situação desvantajosa na qual vive o trabalhador é reforçada pelos comentários da locução. Em O homem de couro, tal condição está colocada no depoimento do vaqueiro mais velho e na letra das canções interpretadas por Cego Birrão. Nesse sentido, a “voz do saber” entra em conflito com um outro saber, relacionado à “voz da experiência”, representada não apenas pelos depoimentos, mas pela poesia popular. Este aspecto será melhor debatido no capítulo 3. A poesia popular apropriada como elemento estético-discursivo em alguns documentários de Paulo Gil Soares exemplifica reflexões feitas pelo diretor décadas após ter participado da Caravana Farkas: As preocupações de então orientaram grande parte dos filmes feitos nas décadas seguintes e continuam hoje como pontos centrais do documentário brasileiro: organizar poeticamente os documentos, de modo a estimular uma participação do espectador pela razão e pelo sentimento, e tomar, à parte, aquele pedaço do País filmado, como um meio de revelar o todo, a condição brasileira. E ainda hoje é assim, como retrato vivo do País e como um modelo de cinema documentário, que esses filmes são vistos (SOARES apud D´ALMEIDA, 2003, p.7374). Não estamos afirmando que o cineasta se exime quando materiais populares são incorporados ao filme; estão implicadas as escolhas do cineasta que têm uma intenção: “revelar o todo, a condição brasileira”, como ele próprio 55 afirma. Entendemos, porém, que O homem de couro é um filme no qual as perspectivas sobre o tema não estão colocadas unilateralmente pela “voz do saber”, pois surgem a partir da combinação de narrativas preexistentes ao filme e do universo poético da “voz da experiência”. O documentário ainda dá espaço para o depoimento da esposa do vaqueiro Zé Galego (aos 15’); vemos seus filhos brincando com o gado no quintal da casa deles que, afirmam os pais, querem seguir na profissão de vaqueiro, darão continuidade ao “ciclo”. Mostrar a família de algum personagem é uma situação rara nos filmes do diretor e da Caravana Farkas de modo geral, fato que será reiterado no próximo capítulo. Outro momento interessante e específico deste filme (de 15’55’’ a 17’05’’) é quando vemos quatro vaqueiros aboiando para a câmera. É uma situação mais lúdica em que cada um, enquadrado em plano médio com seu cavalo, exibe seu “estilo” de aboio, alguns combinando versos populares. É também uma das poucas situações em que a música não é extra-diegética; aboios aparecerão novamente, mas acompanhando outras imagens, inclusive algumas da sequência final do documentário. Repetindo outros títulos, O homem de couro termina com imagens de vaqueiros recolhendo o gado, finalizando mais um dia de trabalho na fazenda. Ao invés da voz over fazer uma conclusão, são os versos da canção “A morte do vaqueiro”, cantada por Cego Birrão, que encerram o filme, deixando em aberto sua interpretação. 1.7 – Vaquejada (1970) O curta-metragem (11’) Vaquejada foi filmado na mesma fazenda Jaramataia, na cidade paraibana de Taperoá, informação que sabemos pelo depoimento que nos deu Sidnei Paiva Lopes, responsável pelo som direto deste e dos demais títulos de Paulo Gil realizados na 2ª fase de produção. Como o nome sugere, o filme documenta a festa popular entre os vaqueiros que, de acordo com Cascudo (1984), está relacionada à “apartação” do gado, um de seus trabalhos de campo, consistindo na derrubada de um boi (puxando seu rabo ou com uma vara de ferrão) por um vaqueiro montado em seu cavalo. O documentário aproxima-se de O homem de couro tanto no eixo temático quanto 56 estilístico, pois também incorpora na linguagem a poesia popular que interpreta o universo do vaqueiro. Do mesmo modo, há um recuo da voz over pedagógica, que só aparece em dois momentos e não comenta diretamente a condição de vida das pessoas. É um filme que se dedica a mostrar um momento lúdico na vida de quem trabalha no campo, ao contrário dos outros títulos. Novamente, os versos da letra da canção e da narração conduzem a narrativa; há uma entrevista com o escritor Ariano Suassuna, também estudioso das manifestações culturais nordestinas, que interpreta a festa, e o depoimento de um dos vaqueiros, em off, que explica as “regras” de uma vaquejada. As primeiras imagens, antes mesmo das cartelas – estas novamente trazendo desenhos inspirados nas xilogravuras dos folhetos de cordel –, são acompanhadas pela canção “Vaquejada do Mulungu”, do cordelista e cantador repentista João Lucas Evangelista, interpretada por Cego Birrão, que substitui a narração em voz over, tornando-se locutor auxiliar, descrevendo o que vemos: centenas de vaqueiros montados em seus cavalos correndo pela fazenda. Os versos enaltecem o vaqueiro e os planos gerais mostram os homens chegando para a festa. Há uma intervenção feita pela voz over de forma mais tradicional, logo no início do curta (aos 1’28’’): “A vaquejada, além da feira livre, é um dos poucos momentos lúdicos da vida dos vaqueiros. Vários deles vêm das mais distantes fazendas mostrar sua destreza e bravura”. Este tipo de narração aparecerá apenas outra vez, para explicar como os bois são trazidos para a vaquejada. Nos demais momentos em que é acionada, a voz over é a “voz lírica” que recita os versos da literatura de cordel, narrando as perseguições dos vaqueiros aos animais. A análise sobre o tema é feita pelo entrevistado, Ariano Suassuna, visto em plano médio, sentado em uma cadeira e manuseando um livro. Sua entrevista aparece fragmentada ao longo do filme. Ele compara o papel da vaquejada no Nordeste à da tourada na Espanha, explica sua origem e avalia (2’25’’): “É muito mais um espetáculo artístico do que uma necessidade de cada dia”. Ainda diz que a vaquejada é um evento de fraternidade, onde participam vaqueiros, filhos de fazendeiros e pequenos proprietários; a posição social não é determinante na participação da festa (ao contrário dos trabalhos de campo), mas a “destreza pessoal e coragem”. Suassuna interpreta e dá explicações 57 sobre o tema, o que em outros filmes é feito pelo próprio locutor: torna-se um “locutor auxiliar”. Nesse sentido, Suassuna seria, em relação ao cineasta, um “mesmo de classe” que teria uma perspectiva sobre a festa coincidente à dele. Essa coincidência se dá em meio a ambiguidades. A entrevista, nos conta o próprio Ariano Suassuna37, não foi realizada por Paulo Gil Soares (de fato, as perguntas à Suassuna estão em over), mas por Thomaz Farkas, na Bahia, confirmando o caráter coletivo da produção e o diálogo que o diretor estabelecia com o restante do grupo. Outra peculiaridade é que Vaquejada não estava “programado” para ser feito. Sidnei Paiva Lopes contou que o dono da fazenda Jaramataia promoveu a festa em um domingo de manhã como uma “despedida” para a equipe de cineastas: “Nenhuma oportunidade era perdida. Os diretores tinham a liberdade de propor coisas na hora”38. Repetindo o que ocorre em O homem de couro, os versos recitados pela locução não julgam; eles são provenientes de três poesias populares, de autores diferentes, e narram histórias de perseguição entre vaqueiros e touros que são descritas pelas imagens. Nessa apropriação do popular, de uma narrativa que preexiste ao filme, novamente há um conflito entre o saber do cineasta e o saber popular, que também conduz a narrativa. Há várias vozes que falam, sem que o filme sugira um consenso sobre o tema: de um lado temos a fala de Suassuna, que representa o intelectual e problematiza a relação do vaqueiro com a vaquejada; de outro, as letras da canção e da poesia recitada em verso pela locução, que oferecem a visão lúdica da festa. Reiteramos que Ariano Suassuna será melhor debatido com mais profundidade no capítulo 2 sobre personagens e a questão da cultura popular no capítulo 3. Ariano Suassuna comentou sobre a entrevista que deu para o filme em depoimento intermediado por sua assessoria de imprensa, em 07 de agosto de 2013. Disse que jamais conheceu Paulo Gil Soares e nem assistiu ao filme, e que o encontro teria se dado com Thomaz Farkas e Glauber Rocha. 37 38 Depoimento dado à autora em 05 de dezembro de 2013. 58 1.8 – Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges (1970) Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges é um médiametragem (20’) também feito “por acaso”. O diretor de produção, Sergio Muniz, contou em depoimento que a equipe estava em Taperoá – filmando os outros títulos que já comentamos – e soube que Frei Damião, famoso frade capuchino tido como santo pelo “povo”, se encontrava em uma missão na cidade. Como o Frei era amigo do prefeito e a equipe ficou hospedada na casa de um também amigo do político, foi possível a aproximação: “[...] ele estava sempre na retranca, mas deu entrevista” (SOBRINHO, 2012, p.249), comentou Muniz. É o único dos documentários de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas que trata de religião. O filme traz uma longa entrevista com Frei Damião, que aparece fragmentada e articulada com imagens de observação de uma missa e de peregrinação, e com depoimentos de outros personagens, que falam sobre milagres atribuídos a ele. Além do próprio Frei, há bastante espaço para a fala de uma beata de óculos (a trataremos assim porque ela não é nominada no filme) que, de acordo com Sidnei Paiva Lopes, procurou a equipe na cidade querendo dar um depoimento e convocou outros beatos para testemunharem, funcionando no filme como entrevistadora. Coberta por uma roupa preta e com óculos de armação grossa, a mulher aparece antes mesmo das cartelas de apresentação da equipe, numa espécie de prólogo, cantando o trecho de uma música sacra. A voz over assertiva fará intervenção uma única vez e em tom irônico, no início do documentário, enquanto são mostrados planos gerais da cidade e do “corpo a corpo” de Frei Damião com os devotos nas ruas: Taperoá, Paraíba, 1969. Um aviso mágico corre pelas estradas e ruas, atinge cada casa. Frei Damião chegará trazendo a paz para os bons, consolo para os aflitos e o fogo eterno para os impuros. O capuchino é visto caminhando pela rua, acompanhado por centenas de fiéis, e a locução compara sua figura à de Antônio Conselheiro (1830-1897) e Padre Cícero (1844-1934), ambos religiosos que viveram no Nordeste, com grande devoção popular e relações estreitas com a política de seu tempo. A locução explica rapidamente a trajetória do Frei e prossegue em tom irônico, 59 sobre as imagens de fiéis que se amontoam para chegar perto do frade: “Um novo messias para o povo. A trombeta dos aflitos, o martelo dos hereges”. Semelhante à estratégia utilizada em Memória do cangaço, a voz over do “diretor-locutor” faz uma pergunta inicial que o filme deverá responder: “Mas, quem é Frei Damião?”. Vemos novamente a beata de óculos e um proprietário de terras – o mesmo entrevistado ao lado da caminhonete em Jaramataia – e ambos reforçam que o Frei é um santo. A beata aparecerá ainda mais vezes, ora falando de maneira geral sobre a fé em Frei Damião, ora ao lado de outras pessoas que dão depoimentos de milagres atribuídos ao padre. Aos 4’10’’, a beata conta que um sobrinho seu tinha verrugas que sumiram após colocar no rosto uma água benzida por Frei Damião. Sobre a voz dela em off, a montagem traz a imagem de Frei Damião esboçando um sorriso, como se estivesse rindo do que a beata diz. A articulação do filme se dará sempre nessa chave irônica, em que a figura do Frei é constantemente colocada em xeque. Em seguida, há uma missa de Frei Damião, na qual observamos os rostos e reações dos participantes, a maioria homens, enquanto o religioso fala que sexo é pecado e orienta os fiéis a viverem na castidade. O frade cita como pecaminosas as revistas e livros que provocariam o desejo sexual e os métodos contraceptivos que seriam, em suas palavras finais de pregação: “[...] contra a lei de nosso Senhor”. A entrevista com o Frei começa após a missa. Como em outros filmes do diretor, as perguntas de Paulo Gil Soares são diretas, feitas na tomada e deixam o frade em uma posição desconfortável, pois reiteram sempre a mesma questão, sobre o fanatismo do povo ser estimulado pela igreja, o que é constantemente negado pelo religioso – daí a percepção de Sergio Muniz sobre a “retranca” do personagem. O recurso de montagem paralela nesse filme, a exemplo de outros já comentados, contrapõe o que Frei Damião diz ao diretor com depoimentos dos devotos, mas também com seu próprio comportamento diante deles, em consonância com o fanatismo, construindo uma figura – lembremos que a locução lança a pergunta “Quem é Frei Damião?” no início do filme – passível de dúvidas, trabalhando sempre na chave da ironia. Clara Leonel Ramos (2003) considera Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges um filme de “transição”, pensando no “modelo sociológico” elaborado por Bernardet (2003): 60 Há, de um lado, a tese de fundo, altamente crítica à religião e coerente com uma posição que prevalece unânime nos documentários da Caravana. No entanto, o documentário não se resume ao que poderia ser classificado como filme de tese. ‘Frei Damião’ traz algumas novidades em relação ao dito ‘modelo sociológico’, como a presença da ‘religião subjetiva’ através de vivências religiosas pessoais – embora o registro do rito coletivo ainda exista, e a associação entre religião e forças socioeconômicas dominantes seja constantemente sugerida –, a retração do comentário e a forte participação de entrevistas, que na década de 70 se tornariam mais populares (RAMOS, 2003, p.81). Não é possível afirmar que há nesse filme uma transferência do discurso da “voz do saber” para a “voz da experiência”, mas há a valorização de subjetividades dos personagens que o afastariam do “modelo sociológico”. Ainda retomaremos esta questão no capítulo 2, quando tratarmos das configurações dos personagens nos filmes de Paulo Gil Soares. Os momentos finais do documentário, mesmo já sem a entrevista, reforçam uma associação entre religião e alienação. A partir dos 16’45’’, Frei Damião é observado pregando ao ar livre. Ele está de pé em cima da mureta de uma casa e suas palavras causam comoção nas pessoas; várias aparecem chorando e ao final da pregação aplaudem o padre, em apoteose. Durante a pregação ouvimos a voz dele e a música instrumental da Banda de Pífanos, que aumenta de volume após os aplausos. As pessoas passam a conduzi-lo pelas ruas da cidade até o carro que o levará embora e tocam nele. Vemos o carro saindo e os fiéis o seguem, enquanto na trilha sonora é colocada em off o trecho de uma de suas pregações, que é proferida junto com a voz das pessoas: “Dai ao povo brasileiro paz constante e prosperidade completa [...]”. Paralelamente vemos uma mulher chorando a partida do Frei e as pessoas começam a se dispersar pelas ruas. Há um corte brusco para a beata de óculos, que diz: “Senhor Deus, misericórdia” e em seguida sua fala é silenciada; vemos apenas a boca da mulher articulando as palavras, possivelmente em exaltação ao Frei, com a música de pífanos ao fundo, e o documentário termina. 1.9 – Esboços de uma “voz” Retomando os pontos levantados neste capítulo, apontaremos aqui características da “voz” de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas, perceptíveis 61 pela descrição e leitura inicial dos oito documentários. Em termos temáticos, há o interesse em retratar como vive o homem sertanejo nordestino, notadamente enfocando suas relações de trabalho, o que se aproxima das preocupações de outros diretores da Caravana. No entanto, diferente dos demais, há uma atenção à figura do vaqueiro, presente em seis dos oito títulos. Para esse retrato não bastam as explicações mais didáticas sobre os trabalhos no campo, o artesanato de couro, o abate do boi. É preciso analisar a realidade apreendida, investigar e denunciar as más condições de vida das pessoas. Em Jaramataia, por exemplo, o “passo-a-passo” da fabricação do leite de fazenda, em uma sequência que dura mais de 7 minutos, revela, também, a denúncia sobre o pouco ganho do vaqueiro e a situação precária daquelas pessoas. Já em A morte do boi, mostra-se em detalhes o processo de abatimento do gado, mas isso é mais um pretexto para que a pobreza da região venha à tona. Tais situações fazem com que o tom dos filmes seja constantemente deslocado do caráter educativo para o da denúncia: antes de mais nada, tratase de uma “voz” política, que reflete a postura do realizador, em consonância com o pensamento da intelectualidade de esquerda brasileira da época. Em 1966, um ano após ter realizado Memória do cangaço, Paulo Gil deu um depoimento ao jornal carioca Correio da Manhã, no qual defendeu o tipo de documentário que estava propondo: No momento em que o cinema brasileiro atravessa uma crise de público, êsse mesmo público que acusa os filmes brasileiros de pecarem por sua incomunicabilidade; quando os críticos afirmam que o cinema se distancia do público, o cinema direto, ou cinema-verdade como é chamado na França, preenche essa lacuna, porque a sua característica principal é a comunicação direta e desalienante (PAULO GIL, 1966, p.7). Longe de sugerir um estilo propriamente – notadamente, ele se refere a “cinema direto” e “cinema verdade” como sendo a mesma coisa –, o que fica evidente é a urgência de uma nova postura do cineasta brasileiro, que deveria tentar a “comunicação direta e desalienante” com o público. Em seus filmes, essa “desalienação” se daria pela denúncia da má condição de vida das pessoas, associada normalmente às relações desvantajosas que se estabelecem, por exemplo, entre o proprietário de terras e o camponês; entre o negociante e o artesão ou o curtidor de couro; em suma, entre o “explorador” e o “explorado”. 62 No caso de Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges, a alienação está associada ao fanatismo religioso, que é problematizado pelo filme. Cabe lembrar que a ideia do financiador e produtor dos filmes, Thomaz Farkas, tratava-se de um projeto político: vender os documentários para escolas e exibi-los na televisão, o que acabou não ocorrendo. Conforme ele afirmou: “Eu achava que dando essa consciência [por meio dos filmes] seria tão revolucionário quanto uma revolução” (FARKAS, 2003, 12’47’’)39. É preciso balizar as palavras de Farkas, deslocadas quase 40 anos da época de realização dos filmes, já que a ideia de revolução parece não condizer com as intenções comerciais e o esquema de produção empreendidos por ele à época40. Pode-se compreender a “revolução” de que fala como sendo uma conscientização do espectador, muito mais numa chave educativa do que de luta revolucionária. A postura ativa, participante e crítica diante da realidade não era uma discussão do Brasil e se integra a um movimento mais amplo de debates dos cineastas na América Latina entre as décadas de 1960 e 1970, conhecido como “Nuevo Cine Latinoamericano” (NCL), no qual se inclui a experiência do Cinema Novo brasileiro, contexto no qual a produção da Caravana Farkas se insere. Contudo, é preciso ver com cautela essa aproximação, pois, ao contrário das produções realizadas, por exemplo, na Argentina, Chile ou Cuba, a cinematografia brasileira não estava engajada politicamente na perspectiva de uma luta revolucionária41. Sergio Muniz, em 1967, publicou um texto na revista Mirante das artes no qual traça características do que ele denomina como sendo o “cinema direto brasileiro”, resumindo vários dos aspectos em pauta para os cineastas naquele momento. A partir da observação dos quatro primeiros médias-metragens financiados por Farkas, entre 1964 e 1965 (depois reunidos no longa Brasil Trecho do depoimento de Thomaz Farkas no documentário Thomaz Farkas, brasileiro (Walter Lima Jr., 2003). 39 Já explicamos que a intenção de Farkas era comercializar os filmes, vendendo-os para escolas e para a televisão. Os documentários tinham o selo Thomaz Farkas Filmes Culturais e eram vendidos na Fotoptica, loja da qual o produtor era dono. Em entrevista a nós, o cineasta Sergio Muniz chegou a comentar que algumas instituições de ensino adquiriram os filmes, mas que o número não foi significativo. Também em entrevista, Sidnei Paiva Lopes comentou que o esquema de realização foi bastante profissional: todos da equipe recebiam salário e folgas semanais. 40 41 Sobre o Nuevo Cine Latinoamericano (NCL), ver NUÑES (2009). 63 Verdade e hoje considerada a 1ª fase de produção da Caravana Farkas), Muniz afirma: Idealmente o cineasta que faz cinema direto ‘vê’ e ‘escuta’ tudo. Ainda que isso seja um conceito um tanto geral, é realmente um ponto de partida que possibilita constatar que o cinema direto verifica como, na realidade, as pessoas agem, pensam e falam. Mas, diferenciando-se dos cineastas que utilizam a técnica do ‘direto’ (freqüentemente chamado, ainda que erroneamente, de cinema verdade) nos Estados Unidos, no Canadá e na França, o cineasta brasileiro ao fazer o cinema direto não se satisfaz nem concorda em só documentar tal ou qual realidade, dela ser simples espectador ou esperar que dita realidade se explique sozinha. Para o cineasta brasileiro que utiliza a técnica do ‘direto’, há que existir uma visão crítica dos conflitos e contradições que estão na realidade que seu filme apresenta. Seja qual for o nível em que a realidade for surpreendida, documentada pelo cineasta brasileiro que faz cinema direto, ela será desintegrada, examinada e posteriormente reintegrada pelo autor do filme ou pelo seu público. [...] Com a acuidade da visão crítica, associada à acuidade de ‘ver’ e ‘escutar’ tudo – seletivamente – estaremos pondo a descoberto a realidade geral que nos cerca ao mesmo tempo que tentamos tornar transparentes e claras as sutilezas e contradições do ser humano em conflito com o meio e consigo mesmo, e, o que é que mais nos interessa, estaremos conhecendo o homem brasileiro (MUNIZ, 1967, p.44). O nome “cinema direto brasileiro” se relacionaria, portanto, a uma postura política do cineasta e aos meios técnicos para colocá-la em prática. Observando os filmes de Paulo Gil Soares, fica mesmo difícil estabelecer correspondência com o direct cinema norte-americano dos irmãos Maysles, de Richard Leacock ou de Robert Drew, por exemplo. Ao contrário da experiência brasileira, esses documentaristas adotavam a postura da “mosca-na-parede”, o que implicava em não intervir no momento da tomada; seus filmes queriam romper com o documentário educativo da escola inglesa de John Grierson, negando procedimentos que lhe eram caros, como a utilização da voz over ou a inserção de músicas na montagem, procedimentos também explorados nos documentários de Paulo Gil. Erik Barnouw (1996) resume: O documentarista do cinema direto colocava sua câmera diante de uma situação de tensão e aguardava uma crise [...] o artista do cinema direto queria ser invisível [...] era como um espectador que não interferia na ação42 (BARNOUW, 1996, p.223). Tradução nossa para: “El documentalista del cine directo llevaba sú cámara ante una situación de tensión y aguardaba a que si produjera una crisis [...] El artista del cine directo aspiraba a ser invisible [...] era um circunstante que no intervenía en la acción” (BARNOUW, 1996, p.223). 42 64 O que há em alguns momentos dos filmes de Paulo Gil Soares, como já apontamos, é uma observação mais distanciada em tomadas mais descritivas. Sidnei Paiva Lopes, responsável pelo som direto em sete dos oito documentários aqui comentados, contou que a equipe tentava passar ao máximo despercebida nas feiras, por exemplo, e que às vezes a câmera era colocada até escondida no meio dos produtos: Para filmar lá [no Nordeste], eu cortei a barba. Porque o gravador, com um microfone desse tamanho, um fone de ouvido, já chama atenção o suficiente. [...] A gente tentava não usar roupas extravagantes, quer dizer, tentar sumir no meio da multidão. A gente tentava desaparecer43. Entendemos que os documentários do diretor apresentam um caráter híbrido44, no sentido de combinarem figuras estilísticas de modos distintos de representação documental para articularem o discurso: convivem “voz de Deus” assertiva ou explicativa, “voz lírica” que recita versos da poesia popular, entrevistas que atestam a presença do realizador na tomada, imagens mais observativas trazendo “indícios de pobreza”. Na impossibilidade de tipificações preexistentes, preferimos dizer que nesse subconjunto há “níveis de modos de representação documental” diversos, aqui cruzando as ideias de Bill Nichols (2010) com o raciocínio de Odin (2012), conforme mencionamos no início deste capítulo. Por exemplo, A morte do boi é mais expositivo que Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges. Este, por sua vez, é mais participativo, pois há um embate entre o diretor (mesmo que não o vejamos) e Frei Damião no instante da entrevista. No entanto, são filmes que também trazem momentos de observação, até de reflexividade, como comentamos em uma passagem de Memória do cangaço. São documentários que pretendem revelar e denunciar a “condição brasileira” e, para isso, dependem do verbal, da fala: da voz over, dos depoimentos das pessoas entrevistadas, das letras das canções populares. Neste sentido, aciona-se frequentemente o recurso de montagem paralela em 43 Depoimento à autora em 05 de dezembro de 2013. Não confundir com “filmes híbridos”, tidos por Odin (2012) como aqueles que acionam duas ou mais instruções de leitura, que ficam “[...] na interseção de dois (ou mais) conjuntos cinematográficos [...]” (ODIN, 2012, p.27). 44 65 que há a contraposição de ideias, quando se coloca a fala de dois entrevistados seguidamente (como em Erva Bruxa ou Jaramataia); ainda quando há contraposição entre depoimentos e imagens (em Memória do cangaço ou Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges, por exemplo). Em relação à voz over, ela é sempre do próprio diretor, que é um “diretorlocutor”, diferentemente dos filmes de Geraldo Sarno e Sergio Muniz na Caravana Farkas, que optam pela contratação de locutores profissionais. Há também um peso maior às denúncias nos documentários de Paulo Gil Soares em comparação aos demais realizadores, dando a impressão de que o caráter educativo é mais um pretexto para que outras questões sejam reveladas. Conforme pontuamos ao longo de todo o capítulo, para continuar a perceber singularidades da “voz” de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas, nossa próxima discussão, no capítulo 2, será em torno das configurações dos personagens. Já no capítulo 3, trataremos da apropriação de materiais da cultura popular em alguns documentários. 66 CAPÍTULO 2 – APROXIMAÇÃO AO OUTRO: PENSANDO OS FILMES DE PAULO GIL SOARES A PARTIR DOS PERSONAGENS No capítulo anterior, esboçamos algumas características dos oito documentários realizados por Paulo Gil Soares na experiência da Caravana Farkas, procurando marcar algumas recorrências temáticas e formais do conjunto pela articulação de suas vozes. Baseando-nos na constatação de que esses filmes se apoiam, em grande medida, no registro da fala e dos gestos das pessoas, nosso objetivo agora será observar alguns dos personagens neles retratados, nomeados também “atores sociais”, e compreendidos a partir das reflexões de Bill Nichols (1997 e 2010): Eu utilizo o termo ‘ator social’ para enfatizar o grau que os indivíduos representam-se a si mesmos diante dos outros; isto pode ser tomado por uma interpretação. Este termo também nos lembra que os atores sociais, as pessoas, conservam a capacidade de atuar dentro do contexto histórico no qual se desenvolvem. Já não prevalece a sensação de distanciamento estético entre um mundo imaginário [da ficção] em que os atores realizam sua interpretação e o mundo histórico em que as pessoas vivem. A interpretação dos atores sociais, contudo, é similar à dos personagens de ficção em muitos aspectos. Os indivíduos apresentam uma psicologia mais ou menos complexa e voltam nossa atenção para seu desenvolvimento ou destino (NICHOLS, 1997, p.76)45. Como já explicamos no capítulo 1, convivem nos filmes modos diversos de representação: do mais expositivo apoiado em uma voz over didática e assertiva ao mais interativo/participativo, no qual se enfatiza o encontro do realizador com o outro. Decorrente disso, os personagens ora são entrevistados diretamente pelo realizador, ora dão depoimentos em que não é assumida a situação de entrevista, ora são observados realizando alguma ação. Essas modulações são importantes e precisam ser balizadas. Tradução nossa para: “Yo utilizo el término ‘actor social’ para hacer hincapié en el grado en que los individuos se representan a sí mismos frente a otros; esto se puede tomar por una interpretación. Este término también debe recordarnos que los actores sociales, las personas, conservan la capacidad de actuar dentro del contexto histórico en el que se desenvuelven. Ya no prevalece la sensación de distanciamiento estético entre un mundo imaginario en el que los actores realizan su interpretación y el mundo histórico en el que vive la gente. La interpretación de los actores sociales, no obstante, es similar a la de los personajes de ficción en muchos aspectos. Los individuos presentan una psicología más o menos compleja y dirigimos nuestra atención hacia su desarrollo o destino” (NICHOLS, 1997, p.76). 45 67 Perceberemos em vários momentos analisados a manifestação daquilo que Mariana Baltar (2010) chama de “tradição intervencionista” do documentário brasileiro, que pressupõe “[...] marcas mais explícitas da performance da persona do realizador ao longo do filme como instância que provoca, entrevista, confronta os agentes/sujeitos do filme” (BALTAR, 2010, p.1) [grifo nosso]. As reflexões da autora partem das ideias acerca do conceito de “dramaturgia de intervenção”, elaborado por Jean-Claude Bernardet (2003 e 2005), a propósito da prática adotada por João Batista de Andrade em filmes como Liberdade de imprensa (1967) e Migrantes (1973), nos quais o documentarista filma uma realidade gerada por ele, sendo sua presença não só explícita como necessária para criar as situações dos filmes. Bernardet (2005) chega a utilizar a expressão “documentário de intervenção” quando debate sobre esses títulos, resumindo o que acarretava tal “dramaturgia”: Era a negação do discurso sociológico como fonte de verdade, a recusa da posição de superioridade que consiste em mostrar fatos e pessoas e falar a respeito, ex-câmara, era assumir não o papel de um pretenso observador neutro, mas uma posição ativa que assume a responsabilidade de criar situações nas quais as contradições sociais se expressam. É isto, me parece, que leva Batista ao conceito de dramaturgia de intervenção (BERNARDET, 2005, p.304). Os documentários de Paulo Gil Soares não podem ser considerados “de intervenção” porque, diferentemente dos dois títulos de João Batista de Andrade, cuja “dramaturgia” se dá praticamente em todas as situações dos filmes, neles há momentos de intervenção assumida do realizador, no sentido de provocador, como sugere Mariana Baltar (2010). Sobre a instância do personagem, a autora acrescenta que ao longo dessa “tradição intervencionista”, essa figura, tão cara ao documentário brasileiro, “[...] aparece e reina em ampla tensão mais ou menos conflituosa com o outro personagem, o próprio realizador” (BALTAR, 2010, p.1). Tais tensões nos interessam aqui. Quando isso ocorre, percebe-se o que Baltar (2010) chamou de “performance da persona do realizador”, mas ainda retomaremos a discussão. Cabe ponderar que nos documentários aqui estudados, Paulo Gil Soares não é assumidamente um personagem, mas a entonação de sua voz e as perguntas que faz aos demais personagens atestam sua postura política e sua persona. 68 Algumas questões tangenciarão nosso percurso. Quais personagens esses filmes constroem? Como os personagens se comportam diante da câmera? Qual relação é estabelecida entre os personagens e a enunciação dos documentários? O que está implicado na relação entre o cineasta-intelectual e o outro? Lembrando que os documentários da Caravana Farkas, nas palavras de Thomaz Farkas, têm como preocupação central “[...] o homem, sua relação com outros homens, seus problemas com o emprego e o trabalho, com a terra que lavra, com a máquina que utiliza” (FARKAS, 1972, p.40). Iremos analisar personagens dos oito filmes de Paulo Gil Soares observando com profundidade maior aqueles que, em nossa leitura, têm mais relevância para o discurso fílmico e para as discussões que faremos, admitindo ser subjetiva qualquer seleção. Desta forma, dividimos o capítulo em duas grandes partes, resultando em dois agrupamentos de personagens. Na primeira parte, trataremos dos sujeitos filmados que ocupam posições de poder: o intelectual, o coronel, o proprietário da fazenda, o sacerdote religioso. Já na segunda, nos ateremos àqueles referidos por Jean-Claude Bernardet (2003) como o “outro de classe”: o ex-cangaceiro, o vaqueiro, o lavrador, o artesão, o curtidor de couro e o beato nordestinos. Cabe ressaltar que os filmes efetuam tratamentos diferentes para personagens pertencentes ao mesmo grupo. Veremos, por exemplo, que Frei Damião e Ariano Suassuna são “personagens com poder”, mas a relação que os dois documentários – Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges e Vaquejada – estabelecem com eles é distintiva, quase oposta. Isso se deve, em grande medida, ao contexto histórico desta produção, no caso, às afinidades ideológicas entre realizador e o outro filmado. 2.1 – O embate com o outro em posição de poder Quando observamos nos documentários de Paulo Gil Soares personagens que detêm algum poder, uma característica a sublinhar é a sensação de conflito com essas pessoas, suscitada pelo movimento dos filmes de autorizar / desautorizar seus discursos, que ocorre ora no instante da tomada, quando ouvimos as perguntas e colocações do diretor-entrevistador; ora pela articulação da montagem, em que às vezes é acionada sua voz, mas já gravada 69 em estúdio. É um aspecto que diferencia o conjunto de filmes do diretor dos demais realizadores da Caravana Farkas, como Geraldo Sarno ou Sergio Muniz, em que também há enfrentamentos com diferentes poderes, mas não diretamente com personagens que os detêm, como faz Paulo Gil Soares. 2.1.1 – Intelectuais à prova Os personagens tidos como intelectuais ou catedráticos aparecem apenas nos documentários de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas, não sendo convocados pelos demais realizadores que participaram da 1ª e 2ª fases de produção. A respeito deles, podemos dizer que, por um lado, temos colocado em dúvida o saber acadêmico, quando, por exemplo, a explicação sobre as origens do cangaceirismo feita pelo professor Estácio de Lima, em Memória do cangaço, é questionada, sendo uma postura que ia na contramão do documentário brasileiro realizado até então, justamente respaldado pelo conhecimento científico. Por outro lado, uma figura como a do escritor Ariano Suassuna, único depoente de Vaquejada, “reina” sozinha, atuando mais como locutor do que o próprio Paulo Gil Soares. Falemos primeiro de Estácio de Lima, de Memória do cangaço, à época diretor do Museu de Antropologia da Universidade Federal da Bahia e professor na Faculdade de Medicina da mesma instituição, a quem o documentário faz um agradecimento, logo na cartela inicial de apresentação, o que não deixa de ser curioso, já que em seguida o saber do catedrático será colocado sob suspeita. Ele é o primeiro entrevistado do filme. A locução o apresenta, citando sua função e cargo na universidade, e coloca a questão sobre qual seria a origem dos cangaceiros. Em nenhum momento ouvimos Paulo Gil Soares conversar com ele ou fazer perguntas no momento da entrevista; sua intervenção é feita a posteriori. Esta é uma informação relevante e depois será retomada. Quando o professor começa a responder à pergunta feita pela locução, não o vemos de imediato, sendo seu depoimento em off coberto por planos gerais em travelling46 da arquitetura imponente da universidade, dos corredores, Thomaz Farkas (1972) comenta que esses planos foram feitos de forma improvisada, com o fotógrafo Affonso Beato sendo empurrado pelo diretor Paulo Gil Soares em um carrinho que era 46 70 estátuas e pessoas que ali transitavam, situando-nos no ambiente do catedrático. Após a contextualização do espaço, há um corte para Estácio de Lima, visto em primeiro plano em sua sala na universidade, imprensado contra uma parede e sentado, o que não lhe dá mobilidade dentro do quadro. Dirigindose diretamente à câmera, sua fala é pausada e segura, sem hesitações, obedecendo às normas cultas da língua e assemelhando-se à leitura de um livro científico – ele até faz citação de um psiquiatra alemão. Rapidamente, o documentário abandona a imagem dele para se ater nos planos de alguns vaqueiros em momentos de aparente descontração, enquanto o discurso do catedrático continua a ser ouvido, em off. De acordo com ele, a entrada de um homem no cangaço estaria relacionada ao ambiente em que vive, a fatores geográficos e sociais, mas também a um determinado tipo físico magro do sertanejo e a glândulas existentes em seu corpo que o conduziriam a “reações típicas”, à violência. Em nada sua descrição se parece com as imagens dos homens e crianças com seus cavalos, bastante descontraídos, que o documentário apresenta em montagem paralela. Fernão Ramos (2008, p.397) pontua que o discurso de Estácio de Lima estava deslocado em pelo menos meio século, correspondendo a um pensamento racista que era dominante no Brasil no primeiro quarto do século XX. O conflito com o professor é feito então fora da tomada, por meio do contraponto que as imagens dos vaqueiros estabelecem com sua fala, sem a necessidade de acionar a locução de imediato. O recurso será utilizado em seguida, após o término do depoimento do catedrático, para enfatizar a dúvida quanto à plausibilidade dele: “Mas, estará o professor Estácio de Lima com a razão? Ouçamos um desses homens”. Dá-se início a outro momento em que o discurso de Lima é deslegitimado, quando temos a entrevista com o vaqueiro Gregório47, que também não aparenta ser passível de violência ou suscetível a “reações típicas”, como afirmara o professor, mas alguém oprimido pelas condições desfavoráveis de vida. utilizado para transportar corpos à sala de autopsia do Instituto Médico Legal da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia. Ainda retornaremos à entrevista do vaqueiro, quando tratarmos do “outro de classe” nos filmes de Paulo Gil Soares. 47 71 Ainda que Estácio de Lima fosse especialista no assunto48 e ocupasse uma cadeira na universidade, o documentário não dá aval às suas considerações, ao seu saber acadêmico, preferindo relativizá-lo com outros relatos e saberes: do vaqueiro, dos ex-cangaceiros, da poesia popular49 e, até certo ponto, do coronel Zé Rufino, como veremos mais adiante. Em nossa interpretação, colocar em dúvida e até ridicularizar o que diz o professor é, consequentemente, por em xeque a superioridade de um intelectual que, diferentemente do cineasta, não era de esquerda e, portanto, não se alinha ideologicamente a ele. Essa postura relaciona-se às discussões que ganham força após o golpe militar de 1964 com a instauração da ditadura – que em âmbito cultural interrompeu, por exemplo, a produção dos CPCs (Centros Populares de Cultura) –, justamente pautadas na ideia do intelectual como “porta-voz” do povo e responsável por promover sua desalienação por meio da cultura. Neste sentido, é notável que durante a entrevista com Estácio de Lima, o entrevistador e também diretor Paulo Gil Soares intervenha fora do mundo histórico representado – para citar uma expressão de Bill Nichols (1997 e 2010) –, e que na entrevista com o vaqueiro Gregório (representante do povo) não apenas ouvimos as perguntas do diretor como o vemos ao lado do personagem segurando um microfone, colocando-se na tela, em outro procedimento raro para o documentário realizado à época no país. Ou seja, é o realizador ao lado do povo, literalmente, o que pode ser tomado como uma tentativa de se aproximar dele, um dos anseios dos cineastas à época. São escolhas perceptíveis no nível da linguagem que revelam um aspecto ideológico pertinente e para além da película: as diferentes posturas do cineastaintelectual diante de um outro intelectual, cujo discurso não se alinha ao dele; e diante do outro povo. Retomamos os ensinamentos de Nichols (1997), quando diz: “[...] cada escolha de configuração espaço-temporal entre realizador e entrevistado tem implicações e uma potencial carga política, uma valência No mesmo ano em que foi finalizado o documentário Memória do cangaço, em 1965, Estácio de Lima publicou o livro O mundo estranho dos cangaceiros (ensaio bio-sociológico). 48 49 A utilização de materiais da cultura popular no filme será melhor debatida no capítulo 3. 72 ideológica, por assim dizer, que merece nossa atenção” (NICHOLS, 1997, p.87)50. Na entrevista com Estácio de Lima, o que temos é a imagem/fala do personagem e o apagamento das perguntas ou intervenções do entrevistadordiretor, que se manifesta depois, por meio de uma voz over que põe em dúvida o depoimento do acadêmico. Trata-se de uma escolha e não uma necessidade técnica51, já que com outros entrevistados do mesmo filme, como Dadá e o vaqueiro, Paulo Gil Soares se manifesta no instante da tomada. Escolha que marca também o lugar privilegiado do realizador, da “voz do saber” exercendo seu controle sobre o discurso fílmico. O status de autoridade de Estácio de Lima é desarmado pela montagem: somos levados a comparar o que ele diz com o que o restante do filme apresenta (imagens, depoimentos, narração em over), tornando sua fala pouco crível. Sua própria fala ajuda nesse sentido, pois chega a provocar riso quando ele compara características de homens gordos e magros – estes seriam mais propensos a entrar no cangaço –, afirmando que os primeiros seriam “homens que amam a vida, que vivem numa extroversão contínua, que esquecem com facilidade as mágoas”, enquanto os magros “guardam muito mais as ofensas recebidas”. Em nosso entendimento, a montagem e a performance do catedrático diante da câmera ajudam a construí-lo como um personagem antipático no filme. Diante desta constatação, parece-nos pertinente trazer para o debate uma primeira discussão, encaminhada por David Mac Dougall (1998, p.29), sobre a instância do personagem no cinema documentário (notadamente o etnográfico). De acordo com o autor, o personagem teria uma “múltipla identidade”: é uma pessoa que existe anteriormente e fora do filme; é alguém construído através da interação com o realizador; e, finalmente, passaria por uma última construção feita pelo público que assiste ao filme. Nosso interesse volta-se para os dois primeiros momentos, levando-se em conta que o terceiro presumiria um estudo Tradução nossa para “[…] cada elección de la configuración espaciotemporal entre realizador y entrevistado tiene implicaciones y una carga política potencial, una valencia ideológica, como si dijéramos, que merece nuestra atención” (NICHOLS, 1997, p.87). 50 Tal possibilidade poderia ocorrer, levando-se em conta que na época de realização do filme a gravação em som direto ainda era uma novidade a ser explorada. 51 73 de recepção, que está além de nossos objetivos, embora admitamos nosso lugar também enquanto espectadores. Mac Dougall (1998, p.34) afirma que as escolhas feitas pelo cineasta durante o processo de montagem do filme – ou seja, se ele adiciona, remove ou troca de lugar o material filmado – fazem com que o personagem se modifique gradualmente, o que complementa o apontamento de Nichols (1997) citado anteriormente: Olhar através do visor de uma câmera e manipular o material de alguém filmado são ambos atos de inspeção intensa e íntima. O primeiro é vívido e lançado a um alto nível de expectativa. O futuro é desconhecido: o cineasta e os personagens estão unidos em um presente comum, esperando cada novo rumo de acontecimentos. A montagem do filme, por contraste, é solitária e deliberada. Ela envolve constantes e frequentes repetições tediosas durante longos períodos. Gradualmente o cineasta passa a conhecer o material filmado em todos os seus detalhes. Cada palavra e gesto das pessoas filmadas assume um peso adicional, no conhecimento do que elas se tornarão, mas também em sua perfeita retidão. Nos planos vistos várias vezes, as pessoas se comportam incrivelmente como deveriam – como estavam destinadas a se comportar (MAC DOUGALL, 1998, p. 34)52. Voltemos a Estácio de Lima. Desdobrando as considerações de Mac Dougall (1998), notemos que o acesso que Memória do cangaço nos dá ao professor limita-se a trechos de sua entrevista, que dura pouco mais de 3 minutos, sendo boa parte ouvida em off. Podemos comparar Estácio de Lima ao empresário em Viramundo que, de acordo com Bernardet (2003), funciona como um “locutor auxiliar” na narrativa. Ambos têm uma prosódia que se assemelha à locução em voz over, falam de forma homogênea e de fora da “experiência”, utilizam a norma culta da gramática, ocupam posições de poder. No entanto, há uma diferença fundamental. Se no filme de Geraldo Sarno o que o empresário diz complementa a fala do locutor sobre o migrante nordestino, em Memória do cangaço o discurso de Estácio de Lima é deslegitimado, posto em xeque e se Tradução nossa para: “Looking through the viewfinder of a camera and handling the footage of those one has filmed are both acts of intense and intimate inspection. The first is vivid and pitched at high level of expectation. The future is unknown: the filmmaker and subjects are bound together in a common present, awaiting each fresh turn of events. Film editing, by contrast, is solitary and deliberate. It involves constant and often wearisome repetitions over extended periods of time. Gradually the filmmaker comes to know the footage in all its details. Every word and gesture of the people filmed assumes an added weight, in the knowledge of what will become of them, but also in its quintessential rightness. In shots seen over and over again, people behave uncannily as they must – as they were destined to behave” (MAC DOUGALL, 1998, p.34). 52 74 opõe à visão proferida pela locução, consequentemente pelo filme. Bernardet (2007) comenta que o documentário de Paulo Gil Soares compartilha com filmes como Maioria absoluta (Leon Hirszman, 1964) a atitude de colocar em oposição uma determinada realidade e suas teses oficiais (no caso do filme de Hirszman, o analfabetismo e a visão da burguesia sobre o problema), “[...] a fim de sugerir que estas são obsoletas, não evoluíram com a realidade e precisam atualizarse” (BERNARDET, 2007, p.66). É preciso mencionar, também, que Memória do cangaço opera um jogo entre passado e presente, do qual Estácio de Lima não escapa. Quando o professor fala sobre os fatores que teriam propiciado a entrada do homem sertanejo no cangaço, refere-se a um passado, a um movimento ocorrido no nordeste brasileiro entre fim do século XIX e início do XX. No entanto, as imagens que passamos a acompanhar são de homens no tempo presente do filme, década de 1960, e não há indicação dessa distância temporal; inclusive, assumimos uma espécie de atemporalidade, em que o discurso de Estácio de Lima é facilmente transportado para o presente, mecanismo que o filme adotará em outros momentos. Afirmamos que, além do encaminhamento feito pela montagem, a performance do professor diante da câmera também o colocaria em uma chave de antipatia. Antes de mais nada, é preciso demarcar o que estamos tomando como performance de um personagem no documentário. De maneira sucinta, poderíamos assumir a performance como a atuação do sujeito filmado, noção que trabalhos como os de Mariana Baltar (2007 e 2008) e Clara Leonel Ramos (2013) ajudam a elucidar, ainda que o corpus analisado por elas seja composto por documentários contemporâneos, em que a instância do personagem frequentemente é o elemento que organiza a narrativa53. Ambas as autoras partem do conceito de performance de Erving Goffman54: “[...] toda atividade de Mariana Baltar analisa Ônibus 174 (José Padilha, 2002), Um passaporte húngaro (Sandra Kogut, 2003), Peões (Eduardo Coutinho, 2004), A pessoa é para o que nasce (Roberto Berliner, 2004), Estamira (Marcos Prado, 2004) e Edifício Master (Eduardo Coutinho, 2002). Já Clara Leonel Ramos escolhe quatro títulos: Entreatos (João Moreira Salles, 2004), Juízo (Maria Augusta Ramos, 2007), Serras da desordem (Andréa Tonacci, 2006) e Jogo de cena (Eduardo Coutinho, 2007). 53 Na tradução para o português que encontramos do livro de Erving Goffman, The presentation of self in everyday life (A representação do eu na vida cotidiana), de 1975, o termo performance está substituído ora por desempenho, ora por representação. No entanto, manteremos performance quando nos referirmos às conceituações que ele sugeriu. 54 75 um determinado participante, em dada ocasião, que sirva para influenciar, de algum modo, qualquer um dos outros participantes” (GOFFMAN, 1975, p.23). Outra passagem da introdução do livro de Goffman (1975) parece interessante para pensarmos na ideia geral de atuação, que pode ser deslocada para um filme documentário: “[...] quando uma pessoa chega à presença de outras, existe, em geral, alguma razão que a leva a atuar de forma a transmitir a elas a impressão que lhe interessa transmitir” (GOFFMAN, 1975, p.13-14). Pensando na pessoa enquanto um personagem do filme e nas “outras” como a equipe de realização (no caso de nosso corpus, formada pelo diretor, pelo fotógrafo e por quem capta o som), podemos dizer que a atuação de Estácio de Lima está ligada à sua participação em um documentário, mediada por uma negociação – a qual não temos acesso – entre o realizador e ele. Mariana Baltar (2008) segue raciocínio semelhante, defendendo o uso do conceito de performance no documentário por sua “dimensão de negociação e projeção de imagens”: Ele permite abordar o jogo de negociações que parece presente entre os personagens de um documentário e o diretor/equipe como um jogo entre performances; sem, no entanto, invalidar o elemento principal do que legitima o documentário como representação da realidade: o fato de seus atores sociais serem ‘pessoas’ da vida real. ‘Pessoas’ da vida real que representam, performam, para as câmeras do documentário, os papéis sociais de si, sua autoimagem (BALTAR, 2008, p.171). Neste sentido, a performance do catedrático de Memória do cangaço parece dialogar com uma das situações apontadas por Goffman (1975, p.15)55, quando atuando intencionalmente e de maneira consciente diante dos outros, a pessoa se comporta de uma determinada forma que condiz com o grupo social do qual faz parte. Estácio de Lima, filmado no ambiente que o caracteriza, a universidade, olha para a câmera como se estivesse dando uma aula, tem O autor cita vários tipos de situações: “Às vezes [a pessoa] agirá de maneira completamente calculada, expressando-se de determinada forma somente para dar aos outros o tipo de impressão que irá provavelmente levá-los a uma resposta específica que lhes interessa obter. Outras vezes, o indivíduo estará agindo calculadamente, mas terá, em termos relativos, pouca consciência de estar procedendo assim. Ocasionalmente, expressar-se-á intencional e conscientemente de determinada forma, mas, principalmente, porque a tradição de seu grupo ou posição social requer este tipo de expressão, e não por causa de qualquer resposta particular (que não a de vaga aceitação ou aprovação), que provavelmente seja despertada naqueles que foram impressionados pela expressão” (GOFFMAN, 1975, p.15). 55 76 postura professoral, o que também se manifesta pelo modo como fala, formal e eloquente, e o que fala, uma tentativa de expor uma tese sobre o cangaço, na qual utiliza vários termos científicos. Ele performa seu papel social para a câmera e seu comportamento condiz com seu ambiente cotidiano, ou seja, o meio acadêmico, a universidade, a sala de aula. De todo modo, essa performance colabora para sua antipatia, quando comparamos Estácio de Lima a outros personagens que, de alguma maneira, tornam-se mais próximos do espectador, esforço que o catedrático parece não fazer. Se a autoridade intelectual é colocada em dúvida em Memória do cangaço, diferente é o que ocorre em Vaquejada com o escritor e catedrático em cultura popular, Ariano Suassuna. A locução também apresenta o personagem e a ele lança uma questão, de maneira semelhante como faz com Estácio de Lima, e novamente há o apagamento do entrevistador; não vemos nem ouvimos Paulo Gil Soares no momento da entrevista56. Uma única questão é feita a Ariano Suassuna pelo “diretor-locutor” e aparece aos 2 minutos de filme, acompanhada da imagem do escritor, após termos visto vaqueiros chegando e se reunindo para o local onde seria realizada a festa de vaquejada, em uma fazenda no interior da Paraíba57: “[...] você que usa em sua literatura temas populares, o que você tem a dizer sobre a vaquejada?”. Suassuna aparece enquadrado em plano americano, sentado em uma cadeira de balanço e segurando um livro na mão, o qual frequentemente olha enquanto explica as possíveis origens da festa. Há menos rigidez em Suassuna do que em Estácio de Lima: frequentemente ele olha para baixo, faz algumas hesitações na fala, não olha diretamente para a câmera, mas para o lado direito (onde possivelmente estava alguém da equipe que o entrevistava) e se movimenta um pouco na cadeira; parece estar mais à vontade do que o catedrático de Memória do cangaço. Apesar disso, temos a representação esperada de um intelectual: trata-se de alguém que fala de modo formal sobre uma experiência – a vaquejada – sem Há uma diferença de produção que deve ser considerada neste caso porque, como já comentamos, a entrevista com Ariano Suassuna não foi feita pelo diretor, mas gravada em local e tempo diferentes do restante do documentário. 56 57 Para mais informações contextuais, ver capítulo 1, item 1.7. 77 participar dela, que analisa aspectos sociais implicados na festa, que está apartado do povo, mas reflete sobre e por ele. Se a postura de Suassuna é mais amigável do que a de Estácio de Lima, o modo como o documentário lida com seu discurso também é. Em Vaquejada, também pouco vemos o personagem, mas ouvimos bastante seu depoimento em off, coberto por imagens diversas da festa, cumprindo uma função que comumente é do locutor, a de fornecer informações mais gerais sobre o tema e fazer uma interpretação acerca dele58. O escritor é, por isso, um “locutor auxiliar”, para lembrar a denominação de Bernardet (2003), mas seu peso no filme é maior do que o empresário de Viramundo ou os técnicos de Subterrâneos do futebol (Maurice Capovilla, 1965), já que no filme de Paulo Gil, Suassuna é quem de fato analisa o tema, tarefa que a locução não faz. Além do escritor, o filme tem o depoimento em off de outro homem (possivelmente um vaqueiro) que explica, a partir da “experiência”, aspectos técnicos da vaquejada, as regras, qual o espaço demarcado para a derrubada do boi e como é a premiação. No entanto, nunca o vemos, nem somos a ele apresentados ou sabemos seu nome, apenas ouvimos sua voz. Sua fala descreve algumas imagens, porém, não o consideramos como “locutor auxiliar”, pois tal função está filiada a uma autoridade dentro do discurso fílmico e a uma semelhança que haveria, em termos de prosódia e visão de mundo, com o “diretor-locutor”, o que não é o caso do depoente em questão. Voltando a Ariano Suassuna, sua entrevista aparece fragmentada no decorrer do documentário. Ela começa com a contextualização histórica da vaquejada, passando por comentários sobre a vestimenta especial para a ocasião, e termina com uma interpretação do escritor sobre as implicações da festa para a vida do vaqueiro. É pertinente para nossa discussão citarmos a passagem em que se dá esta última. No minuto final do documentário, passamos a ver planos gerais de vaqueiros derrubando bois seguidamente – proeza sobre a qual ouvimos falar ao longo do curta-metragem, mas só é mesmo concretizada nesses planos finais –, enquanto ouvimos a análise da festa feita por Suassuna: É importante marcar que neste documentário há raras inserções de uma locução mais tradicional, ficando a cargo desta algumas informações no início do curta-metragem e a recitação de versos da literatura de cordel, aspecto que será melhor observado no capítulo 3. 58 78 A vaquejada é o momento em que o vaqueiro pode exercitar o seu orgulho. A vaquejada tem, como todo espetáculo... Da mesma maneira que o grande momento do ator é o momento em que ele sobe ao palco pra representar, o grande momento da vida do vaqueiro é aquele no qual ele participa de uma vaquejada, e se torna mais importante como personagem do que é como pessoa. A imagem que cobre a frase final do entrevistado é um plano geral de vaqueiros correndo com seus cavalos em direção à câmera. Em seguida, no plano sonoro, um aboio toma o lugar da fala e o curta-metragem termina. Deste modo, o depoimento de Suassuna conclui o filme, é a interpretação sobre a festa do ponto de vista de um intelectual, tarefa que o “diretor-locutor” não faz, como ocorre em outros documentários. Em Vaquejada, há uma única intervenção mais analítica da locução em voz over, logo no início do curta, que introduz a argumentação feita por Suassuna posteriormente, afirmando que a feira livre e a vaquejada seriam os poucos momentos lúdicos na vida de um vaqueiro; não há outros comentários ou o aprofundamento do assunto feito pela locução ao longo do documentário. Cabe pontuar que no filme há ainda um outro discurso, o das poesias populares recitadas pela voz de Paulo Gil Soares ou musicadas pelo cantador Cego Birrão, que apresentam, por meio de um eu-lírico que ora é um boi, ora um vaqueiro, uma visão mais romântica da vaquejada, os feitos para a derrubada dos animais e o orgulho da profissão. Podemos, assim, estabelecer um contraponto entre Estácio de Lima e Ariano Suassuna quanto à autorização de seus discursos nos filmes, além das já comentadas distintas performances que os dois realizam diante da câmera. Em Vaquejada, o discurso do escritor é autorizado e endossado, sem questionamentos, o que é bem diferente do catedrático de Memória do cangaço, colocado em dúvida. Suassuna participa do documentário do começo ao fim, cumprindo uma função de locutor e representante da “voz do saber”; já Estácio de Lima, além de ter seu discurso ironizado e desmentido, é “abandonado” após sua entrevista para dar lugar a outros personagens. Nossas considerações vão ao encontro do que observa Meize Lucas (2012): A coincidência de pontos de vista entre realizador e Ariano Suassuna dispensa a voz do primeiro. Sua presença [do cineasta] se faz pela maneira como constrói o filme e, nessa construção, como utiliza a fala autorizada do intelectual (LUCAS, 2012, p.282). 79 A autora destaca que Paulo Gil Soares não entrevista “qualquer intelectual” em Vaquejada, já que Suassuna era um pesquisador, artista, incentivador da cultura popular, além de nordestino: Há o reconhecimento de um determinado saber que não é somente acadêmico, visto que Ariano era também um produtor cultural, um artista. E, mais ainda, alguém que promovia a chamada cultura popular e a defendia como uma questão política (LUCAS, 2012, p.282). É coerente a autorização do discurso de Suassuna, considerando também a relação do escritor com a cultura popular, alinhando-se não somente aos interesses de Paulo Gil Soares e dos demais realizadores da Caravana Farkas, como da geração de cineastas do Cinema Novo de maneira mais ampla. Conforme afirmam Jean-Claude Bernardet e Maria Rita Galvão (1983) sobre a questão: No Cinema Novo, uma preocupação marcante seria a utilização de elementos da cultura popular como ponte para atingir o povo: a idéia é que se faça um cinema popular (que se dirija ao povo) com matériaprima popular (que vem do povo). Visando o estabelecimento de uma comunicação mais íntima e direta com o povo, os autores procuraram inspirar-se (senão apoiar-se diretamente) na cultura popular, incorporando elementos que provêm dela [...] (BERNARDET E GALVÃO, 1983, p.139-140)59. Cabe citar um outro catedrático, o médico de Erva Bruxa, que colabora para uma das denúncias do filme, sobre os diversos problemas de saúde que acometem os trabalhadores da indústria fumageira. Ele confirma, com explicação científica, o que a locução em voz over sugere sobre os riscos para a saúde do operário que trabalha manualmente com o fumo. De modo semelhante aos demais documentários, a locução lança uma questão, que será respondida pelo médico (aos 8’20’’): “Mas, quais são essas doenças?”. Enquanto vemos pessoas manuseando, sem proteção, as folhas da planta e trabalhando descalças, o médico nomeia várias doenças e diz que algumas ocorrem porque não há fiscalização na admissão dos operários. Visto em um consultório, enquadrado em primeiro plano, conclui sua avaliação: “Se eu fosse um médico sanitarista e tivesse autoridade para tal, provocaria a aposentadoria de 50% dos No capítulo 3, aprofundaremos a questão da cultura popular, observando como é incorporada nos documentários de Paulo Gil. 59 80 trabalhadores da indústria fumageira”. Trata-se de um catedrático que, embora não conduza a argumentação, como faz Ariano Suassuna, torna-se mais um colaborador para as denúncias do filme, com o embasamento de uma autoridade científica. O mesmo realizador que duvida da autoridade acadêmica de Estácio de Lima em Memória do cangaço é quem autoriza sem restrições Ariano Suassuna a proferir a visão social sobre a festa em Vaquejada e quem convoca o médico de Erva Bruxa para “ajudar” na denúncia das más condições de trabalho. A diferença de tratamento deve-se, neste caso, a uma afinidade político-ideológica com o outro filmado. Seria equivocado pensar no tratamento dos personagens nos documentários de Paulo Gil Soares em termos evolutivos, pois há características que são recorrentes tanto no filme realizado em 1965 quanto nos demais do final da década de 1960. É possível, neste sentido, afirmar que a figura do intelectual aparece de forma contraditória nos filmes. Em alguns momentos, como quando ele questiona o catedrático ou desmente o coronel Zé Rufino em Memória do cangaço (situação sobre a qual falaremos no próximo item), sua intervenção feita após as entrevistas, com uma voz já gravada em estúdio, evidencia sua posição de poder enquanto realizador diante dos sujeitos filmados, lembrando aqui a construção de personagens possível de ser feita pela montagem, conforme sugere Mac Dougall (1998) e sobre a qual já comentamos. Já na tentativa frustrada de entrevistar Dadá – para citar um exemplo do mesmo filme –, o enfrentamento com o outro, que se recusa a falar e até derruba a câmera, põe à prova o cineasta-intelectual, circunstância não prevista e não favorável à elaboração de uma possível “tese”, e mesmo assim o plano é mantido no filme. Ainda retomaremos as situações com Zé Rufino e Dadá em outros itens neste capítulo. Por agora, seria interessante observar como é oposta a postura do cineasta quando entrevista Frei Damião em Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges, se comparada ao recuo de sua presença em Vaquejada. São filmes realizados à mesma época que apontam para distintas atitudes do cineasta-intelectual em relação ao outro, sendo a afinidade político-ideológica com os personagens fator determinante para tal. Na situação de entrevista com o Frei, o realizador tanta fazer com que ele admita existir o fanatismo religioso do povo e que tal comportamento seria 81 também responsabilidade da própria Igreja. Ouvimos Paulo Gil Soares, extraquadro, ou seja, como uma “inteligência incorpórea”60, fazendo questões reiterativas a Frei Damião: “O povo de Taperoá diz que o senhor é santo. O senhor aceita isso, Frei Damião?”; “Quais os caminhos para se alcançar a santidade?”; “O povo diz que o senhor já realizou vários milagres. O senhor fez alguma cura que possa ser considerado um milagre?”; “O que é que o senhor acha do Padre Cícero?”; “A que o senhor atribui o fanatismo do povo?”; “E quem é culpado por essa religião mal entendida?”; “Mas não seria o medo do inferno que faz o povo se fanatizar e seguir atrás dos padres em quem ele acredita?”; “Mas o comportamento do povo em vários momentos é de fanatismo?”; “Isso é bom ou mal para a Igreja, Frei Damião?”. As questões estão na ordem apresentada pelo documentário; a montagem, no entanto, deixa indícios de que trechos de algumas respostas do entrevistado foram deslocados para fazer relação com outros materiais, como depoimentos de devotos ou situações que mostram o contato do Frei com fiéis na rua. Como nosso interesse no momento é perceber de que maneira as intervenções de Paulo Gil nesse filme durante a entrevista podem ser contrastadas com um posicionamento mais recuado do cineasta-intelectual em outros títulos, as considerações em torno da montagem, da performance do Frei e dos demais personagens do filme, serão deixadas para um item posterior. Observando as perguntas feitas ao entrevistado central do documentário, é possível identificar aspectos da “performance da persona do realizador”, emprestando aqui a expressão de Baltar (2010). No caso, sua performance durante o confronto direto com o outro: há uma atitude provocativa, ele atua como um repórter investigativo que coloca em xeque o entrevistado a fim de revelar uma determinada situação; perpassa também um certo tom irônico, evidenciado por frases do tipo “[...] não seria o medo do inferno que faz o povo se fanatizar [...]”, mas também por sua impostação de voz que se mantém afável, embora não seja leve o conteúdo de suas perguntas ao Frei. Mesmo quando o diretor intervém verbalmente fora do mundo histórico, no caso, quando é sua Bill Nichols (1997, p.130) diz que o realizador torna-se uma “inteligencia incorpórea” quando ouvimos sua interação com o personagem no instante de uma entrevista ou em outras formas de encontro com o outro, mas não o vemos enquadrado. 60 82 locução em voz over que questiona o outro externamente ao encontro – caso das situações com Estácio de Lima e Ariano Suassuna –, também podemos falar em uma performance do realizador. Partimos do pressuposto de que é identificável no conjunto de filmes do diretor, notadamente por meio do som, uma coincidência de sujeitos: Paulo Gil Soares é quem empresta sua voz à locução, quem atua como entrevistador (ausente ou presente na tomada) e quem, em algumas ocasiões, mimetiza um poeta popular ao recitar versos de cordel61. Trata-se de uma característica que se diferencia do conjunto de outros realizadores da Caravana Farkas (Geraldo Sarno, Sergio Muniz) que optam por narradores profissionais (o ator Othon Bastos, o poeta Ferreira Gullar, Tite de Lemos, entre outros) e, especialmente, pouco se expõem mesmo no momento de encontro com o outro62. Em nossa percepção, Paulo Gil Soares mostra-se mais como sujeito nos filmes do que os demais realizadores e, por isso, falamos em sua performance, reverberando as considerações de Baltar (2010)63. Cabe relativizar este conceito, citado anteriormente segundo Goffman (1975). Para o autor, a performance é considerada o desempenho, a atividade de alguém que participa de uma situação a fim de influenciar os demais participantes. Apoiando-se nesta ideia, podemos dizer que o realizador exerce uma performance dentro da Nos dados técnicos dos documentários não há essa informação. A afirmação pode ser feita baseada em materiais extra fílmicos: textos que discorrem sobre os filmes, fotografias de making of e entrevistas com integrantes da Caravana Farkas. 61 Para exemplificar a diferença quanto à manifestação de Paulo Gil Soares como sujeito nos filmes, em contraste com outros realizadores, podemos citar dois documentários dos outros dois diretores mencionados. Em Rastejador s.m. (1969), de Sergio Muniz, é a locução de Othon Bastos que faz as questões aos personagens rastejadores, não havendo uma presença declarada do realizador nesse encontro com o outro filmado. Em Jornal do Sertão (1970), de Geraldo Sarno, também não há a explicitação do realizador; temos a narração expositiva de Tite de Lemos, intercalada com momentos mais observativos, a maioria performances musicais de cantadores populares do Nordeste. 62 É preciso tomar cuidado para não encaixar os filmes no modo de representação performático, conforme as modalidades documentais sugeridas por Bill Nichols (2010). Mesmo que neles seja possível perceber “marcas mais explícitas da performance do realizador” (BALTAR, 2010, p.1), não há a recusa de uma representação realista, nem ênfase dada à experiência do próprio realizador, algumas premissas de documentários performáticos. Apenas a título de exemplo, 33 (Kiko Goifman, 2002) e Um passaporte húngaro (Sandra Kogut, 2003) são tidos como documentários performáticos, nomeados por Bernardet (2005, p.142-156) como “documentários de busca”, pois ambos estão pautados na busca pessoal dos realizadores: a procura da mãe biológica, no caso de Goifman, e a tentativa de obter cidadania e passaporte húngaros, no caso de Kogut. 63 83 situação que é o próprio filme. Por um lado, no momento da entrevista, ela serviria para influenciar o entrevistado, quem participa do filme dando depoimentos. Lembrando a entrevista com Frei Damião, não há um tom agressivo nas perguntas do diretor, que pouco a pouco tenta “pressionar” o personagem para obter as respostas que deseja. Por outro lado, sua performance influencia também aquele que participa do filme indiretamente, que vai refletir sobre o que viu e ouviu, ou seja, o espectador. Nossas observações trazem alguns aspectos referentes à “tradição intervencionista” do documentário brasileiro que, em contexto mais amplo, se relaciona à ideia de “intervenção ativa” de Jean Rouch e Edgar Morin, pensada a propósito de Crônica de um verão (1961): O ato, afinal, é a palavra; o ato se traduz através dos diálogos, das discussões, conversas, etc. O que me interessa não é o documentário que mostra as aparências, é uma intervenção ativa para ir além das aparências e extrair delas a verdade escondida ou adormecida (ROUCH e MORIN, apud DA-RIN, 2004, p.152). [grifos nossos] A “intervenção ativa” seria, desta maneira, a premissa do documentário interativo/participativo, pensando nos modos de representação sugeridos por Bill Nichols (1997 e 2010). Silvio Da-Rin (2004) afirma que nesse tipo de filme “[...] a presença do realizador é potencializada, ao invés de dissimulada” (DA-RIN, 2004, p.152) e considera, sobre Crônica de um verão, que Rouch e Morin, ao adotarem tal postura de intervenção, tornavam-se personagens de seu próprio documentário, “[...] interagindo com os demais atores sociais, procurando extrair revelações e ‘verdades ocultas’” (DA-RIN, 2004, p.153). Voltando aos documentários de Paulo Gil Soares, não há neles uma permanente “intervenção ativa”, tal qual ocorre no filme de Rouch e Morin, mas alguns momentos em que tal caráter é evidenciado, potencializando a presença do realizador. Um depoimento de Paulo Gil, de 1966, no contexto de Memória do cangaço, em alguma medida retoma o que afirmaram os realizadores franceses, sobretudo quanto à importância da fala do outro: Como linguagem o cinema direto [captado em som direto], indo buscar no jornalismo e na pesquisa de campo as ciências sociais, renova tôda a linguagem cinematográfica, modificando assim a estrutura tradicional do filme, pois enquanto ‘os planos’ têm um tempo predeterminado de 84 montagem, no cinema-verdade, a importância do plano está naquilo em que o homem tem a dizer. (PAULO GIL, 1966, p.7) [grifos nossos] Observando os documentários do diretor, essa importância se confirma; a fala, conforme já apontamos no capítulo 1, é elemento determinante em suas narrativas, em grande parte proferida pelos personagens. Como já observamos com base em Mac Dougall (1998), é notório que aquilo que as pessoas têm a dizer sofre a mediação do cineasta no momento da montagem. Citamos Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges para exemplificar como o cineasta-intelectual adota uma postura inquiridora diante do outro; no entanto, em contraste, há filmes em que sua atitude é diferente, caso mesmo de Vaquejada, no qual o diretor recua e é Ariano Suassuna quem profere a análise social sobre a festa. Poderíamos ainda mencionar O homem de couro, documentário em que os versos da literatura de cordel e os depoimentos dos personagens se encarregam de contrapor visões sobre a profissão de vaqueiro, sem a explicitação do realizador nas entrevistas, nem sua análise na locução, sugerindo uma não univocidade de sua “voz do saber”, abrindo espaço para a manifestação de outras vozes neste filme, aspecto que ainda retomaremos no capítulo 3. No conjunto de filmes do diretor, há, dessa forma, a intervenção do cineasta em diferentes níveis, inclusive com o mesmo personagem, caso de Zé Rufino em Memória do cangaço, sobre o qual falaremos no próximo item, em que ora há uma situação de diálogo no instante da entrevista, ora uma negação de sua fala depois do momento do encontro, eliminando qualquer “defesa” do entrevistado. Paulo Gil Soares duvida de Estácio de Lima; se isenta com Ariano Suassuna; põe em xeque Frei Damião; trata ambiguamente Zé Rufino; é enfrentado por Dadá e mantém sua “não-entrevista” no filme. Ainda teremos a oportunidade de analisar estas e outras situações neste e no próximo capítulo, em que as relações entre a “voz do saber”, do cineastaintelectual, aparece tensionada com as demais vozes do filme, notadamente com a “voz da experiência”. Passaremos agora à observação de outra figura, que também detém poder, mas em âmbito diferente: o coronel. 85 2.1.2 – Ambiguidades do coronel Quando observamos Estácio de Lima e Ariano Suassuna, comentamos que suas performances correspondem à expectativa que temos em relação a um intelectual, ou seja, alguém que domina um determinado assunto, fala com clareza e segurança, utiliza as normas cultas da língua, etc. Não temos essa expectativa somente quando assistimos a um filme, mas em nossa vida cotidiana, segundo Goffman (1975, p.11-24), ao afirmar que isso se deve ao fato de já dispomos de informações prévias sobre o indivíduo – no caso mencionado, sobre um determinado grupo, o dos intelectuais –, o que nos levaria, inicialmente, a uma visão estereotipada sobre ele. Pensando que este indivíduo seja um coronel, é esperado que tenha uma postura rígida, altiva, entre outras características que poderíamos elencar, partindo de uma visão que não deixa de ser subjetiva em relação à essa figura ou a qualquer outra. A depender do comportamento do indivíduo ou de outras informações que passemos a ter sobre ele, características diversas de sua persona podem vir à tona e atenuar o estereótipo. Neste sentido, e voltando à questão do coronel, observaremos de que maneira José Rufino se configura como uma figura ambígua em Memória do cangaço, tanto pelo fato do documentário mostrar um personagem que vai além da tipificação de um coronel, quanto pelo modo como lida com seu discurso. Ele é o principal personagem do média-metragem que, conforme vimos no capítulo anterior64, foi realizado porque Paulo Gil Soares pretendia saber se o que ouvia sobre o duelo entre Zé Rufino e o cangaceiro Corisco tinha acontecido da forma como lhe contavam desde criança. Por isso, procurou quem tinha participado do episódio – o coronel e Dadá, a viúva de Corisco – para que recobrassem a memória daqueles tempos e narrassem suas versões. A entrevista com o coronel é a mais extensa do filme; além dos momentos em que responde às perguntas do diretor (extraquadro), também o vemos caminhando em sua fazenda em Jeremoabo, na Bahia, local do encontro; o documentário utiliza ainda como recurso fotografias fixas do personagem que, segundo o produtor e fotógrafo Thomaz Farkas (1972), ajudariam a enfatizar o 64 Ver item 1.1, que apresenta a estrutura e aspectos da produção de Memória do cangaço. 86 que se pretende dizer no filme. É preciso salientar que, mesmo Zé Rufino sendo colocado em xeque em algum momento, veremos que o tratamento dado a ele é muito diferente daquele de Estácio de Lima, personagem do mesmo documentário, que também detém poder e sobre o qual já comentamos. Aos 9 minutos do média-metragem, vemos pela primeira vez o coronel, caminhando em direção à câmera, com o rosto em primeiro plano; é a canção improvisada pelos cantadores populares que acompanha a imagem e o “apresenta”. Em seguida, um plano conjunto o localiza no meio de uma plantação em sua fazenda e a câmera o segue até a varanda de uma casa, onde cumprimenta algumas pessoas e finalmente senta-se para dar início à entrevista. Zé Rufino, de pernas cruzadas e agora visto em plano americano, tem um olhar por vezes desconfiado e direcionado para o lado esquerdo, onde estava o diretor Paulo Gil Soares65 – diferente do professor Estácio de Lima, que olha diretamente para a câmera e demonstra maior confiança nela e na equipe, como vimos anteriormente. Ainda que haja uma perceptível dificuldade do coronel em recobrar a memória para relatar os fatos do passado, sua fala expressa segurança, como quando conta com orgulho como os cangaceiros eram mortos ou quando lembra que mandava os policiais de sua volante cortarem as cabeças para depois serem fotografadas. O coronel é um exemplo do que Aida Vallejo66 (2008, p.75) caracteriza como personagem com “personalidade única”, que despertaria o interesse em quem realiza documentários por ser uma figura que possibilitaria a exploração de sua singularidade. Tal tipo de pessoa, segundo a autora, se oporia a um outro, também de interesse dos documentaristas, que seria alguém cuja história individual representa ou é paradigmática dentro de um discurso mais universal – Paulo Gil Soares não aparece no documentário durante a entrevista com o coronel; sabemos que ele estava à esquerda do personagem porque tivemos acesso a uma fotografia still. Ao contrário do que ocorre na entrevista com o professor Estácio de Lima, as perguntas de Paulo Gil Soares ao coronel são ouvidas no momento da conversa. 65 As considerações de Aida Vallejo são muito pertinentes e eficazes para o que pretendemos, tanto que as acionaremos em outros momentos. No entanto, convém notar que a autora parece entrar em contradição. Vallejo rejeita o uso do termo personagem para tratar das pessoas filmadas em documentários, preferindo o termo “ator social” de Bill Nichols por considerar o primeiro mais correto para se referir ao sujeito que interpreta ações escritas por uma outra pessoa. No entanto, suas análises baseiam-se justamente na possibilidade do “ator social” no documentário ser construído de maneira análoga ao personagem do filme de ficção. 66 87 um exemplo poderia ser o vaqueiro Gregório, também de Memória do cangaço, e outros trabalhadores abordados nos filmes de Paulo Gil Soares, sobre os quais falaremos em outro item deste capítulo. Zé Rufino é uma figura considerada histórica, citada pelos livros que tratam do cangaço67 e sobre a qual a literatura popular de cordel também dedicou inúmeros versos. Alguém que, tendo um caráter singular, gradualmente é construído pelas falas e gestos que o filme nos dá a conhecer. Comentaremos uma primeira passagem. À altura dos 11 minutos, Zé Rufino acaba de nominar os cangaceiros que já tinha matado ou assistido em suas mortes. Em seguida, passamos a ouvi-lo, em off, sobre imagens de Lampião e seu bando captadas por Benjamin Abraão na década de 1930. Ele conta sobre as três vezes em que o referido cangaceiro o convidou para fazer parte de seu bando e das negativas que lhe deu. Paulo Gil Soares pergunta por que o coronel não quis acompanhar Lampião e ele responde: “Eu nunca tive vontade de andar pegado em arma assim, derramando sangue [...]. Eu nunca quis ser soldado e, muito pior, bandido”. Ao coronel pergunta-se então sobre suas qualidades de sanfoneiro. Ao invés das imagens filmadas por Abraão, vemos alguns planos da própria fazenda de Rufino, detalhes de suas pernas, animais que andam por ali, planos fechados de pessoas da fazenda. Zé Rufino conta que aprendeu a tocar sanfona com outros sanfoneiros: “Eu me dediquei melhor, mais um pouco do que eles. Com quem eu aprendi ficou tocando muito menos do que eu. A minha vida era tocar nas festas”, diz o coronel, vaidoso, lembrando que às vezes tocava por cinco ou seis noites seguidas. Do relato sobre a época em que era sanfoneiro, há um corte em seu depoimento, um salto para quando foi sargento. Sem fornecer mais explicações sobre como isso teria acontecido (na declaração anterior ele afirmava não ter desejo de entrar para a polícia), diz apenas “Deus me ajudou e eu fui sargento”, mencionando que em poucos dias matou muitos bandidos e subiu na carreira, tornando-se aspirante a oficial. A próxima pergunta, que ouvimos agora na No livro Os cangaceiros, de Maria Isaura Pereira de Queiroz, não apenas o coronel Zé Rufino é citado, como a autora reproduz trechos da entrevista realizada por Paulo Gil Soares para Memória do cangaço, inclusive alguns que acabaram não indo para o filme. Ver: QUEIROZ (1977). 67 88 presença do coronel – o que permite perceber sua reação –, atesta a ambiguidade que comentamos anteriormente. Paulo Gil Soares: “O que é que o senhor sentia quando atirava num cangaceiro?”. Rufino responde de forma serena e orgulhosa: “Na hora eu sentia satisfação porque tinha encontrado o que eu procurava na caatinga”. Paulo Gil novamente: “O senhor teve medo alguma vez?”. Rufino, seguro: “Não, senhor”. Mais adiante, Zé Rufino ainda contará que autorizava policiais de sua volante a arrancar as cabeças dos cangaceiros à faca, deixando-as sangrar, para depois fotografá-las. Há uma abertura dada pelo documentário para acessarmos a um Zé Rufino menos tipificado, não somente aquele que comandou a volante policial que matou mais de vinte cangaceiros no início do século XX, mas um homem que tocava sanfona em festas, que não tinha o desejo de entrar na polícia nem de ser cangaceiro porque não queria “pegar em armas”. Seu depoimento é atravessado por questões de cunho histórico (do cangaço, do Brasil) e de sua vida pessoal. O coronel é apresentado como um sujeito ambíguo: o sanfoneiro desinteressado em armas tornou-se um homem do alto escalão da polícia que se sentia bem ao matar bandidos. Lembrando que, quando a entrevista foi realizada, no final de 1964, o coronel já havia se aposentado e era fazendeiro – outra posição de poder –, informação que está em seu último depoimento no documentário. As contradições do personagem ultrapassam os limites temáticos da película ou a comprovação de uma tese de fundo, sendo interessante para refletirmos sobre como alguns documentários da década de 1960 já adotam posturas não tão próximas do que Bernardet (2003) denominou “modelo sociológico” de documentário. De acordo com o autor, nesse modelo o tratamento dado à “voz da experiência” – que podemos aproximar da voz de Zé Rufino –, ou seja, aquele que fala sobre sua vivência individual, o reduziria a um tipo sociológico. Quer dizer, o sujeito filmado seria uma amostragem, um objeto de estudo sobre o qual não acessaríamos traços mais subjetivos. Ainda que estratégias mais radicais para emergir a subjetividade do outro tenham sido adotadas nas décadas seguintes pelos documentaristas, nos parece pertinente que um documentário como Memória do cangaço, realizado na mesma época e dentro da mesma experiência de produção que Viramundo e Subterrâneos do futebol, ambos filmes analisados por Bernardet como representantes do modelo 89 sociológico, permita uma leitura menos unívoca quanto ao seu principal personagem, Zé Rufino. Além das escolhas feitas pelo cineasta na montagem, que ajudam a delinear os traços do personagem em um documentário, não ignoramos a colaboração da performance do sujeito diante da câmera nesse processo, conforme afirmamos anteriormente. Se o filme tenta dar abertura à construção de Zé Rufino como um personagem “singular” e não generalizante, é porque suas falas e gestos também permitem que esse encaminhamento seja possível. As ideias de Sergio Santeiro (1978) são úteis para essa compreensão. Embora admita que o material registrado pelo filme seja passível de manipulação e reordenação, Santeiro (1978) acredita que o registro do som direto, a fala em sincronia com a imagem das pessoas permitiria uma “autonomia própria” das situações registradas pelo filme. Santeiro (1978) trata o personagem de um documentário como alguém dotado de prévias significações, que atua no filme para performar seu próprio papel social, tornando-se um “ator natural” que, “[...] primeiro, foi sujeito de uma experiência vivida, e é agora sujeito de uma experiência re-vivida, passível de seleção e crítica que a faça digna do papel que o sujeito atribui a si mesmo” (SANTEIRO, p.81) [grifo original]. Cabe destacar o reconhecimento do autor quanto à consciência que o personagem no documentário teria de seu papel, atuando para legitimá-lo. No caso de Zé Rufino, essa consciência está sutilmente evidenciada na maneira desconfiada com que olha para o entrevistador; há uma inquietação sua quanto ao que estaria sendo gravado. O fato do coronel pedir para ouvir o gravador de som antes de prosseguir com a entrevista, conforme mencionado no capítulo 1 (item 1.1) a partir do livro de Paulo Gil Soares, apoia também essa afirmação. Ainda acompanhando as ideias de Sergio Santeiro (1978), haveria, para ele, uma proximidade entre o “ator natural” do documentário e o ator da ficção, pois ambos encenam para a câmera e garantem uma dimensão dramática ao filme, com a diferença de que o primeiro seria pautado em um “modelo social” – ou seja, em sua própria experiência, em seu papel social – e o segundo em um “modelo estético”. O autor dá o nome de “dramaturgia natural” à encenação do “ator natural”, exemplificando elementos que podem compô-la: 90 A maneira do entrevistado dizer o seu texto, a reação às perguntas, pequenas entonações de voz, a postura ou a expressão facial críticas do entrevistado ou de outra pessoa que esteja a seu lado, a relação do local em que a entrevista é feita com as interferências que possam ocorrer, o contraponto de entrevistador e entrevistado, tudo são elementos dotados de significação e que compõem um quadro de comportamento cênico a que podemos chamar de dramaturgia natural (SANTEIRO, 1978, p.81). Embora as considerações do autor refiram-se apenas a “performances de entrevista” – ele não usa em momento algum o termo performance, mas é possível a analogia68 – e ele não tenha aprofundado suas ideias em análises posteriores a esse texto, elas introduzem um caminho profícuo para investigação69. Podemos elencar alguns elementos que compõem a “dramaturgia natural” de Zé Rufino percebidos até então: o olhar desconfiado em direção ao entrevistador, o orgulho e a serenidade ao contar sobre os cangaceiros que matou, o tom vaidoso de seu relato de quando tocava sanfona, a postura destemida. São marcas deixadas por sua fala e gestos, pelas quais o conhecemos no filme. Se o depoimento do coronel traz informações antagônicas sobre sua vida, é também ambivalente a forma com que o filme lida com o discurso dele. Até os 25 minutos de Memória do cangaço, a fala de Zé Rufino chega a conduzir a narrativa em diversos momentos: apresenta três policiais que compunham sua volante (os vemos ao seu lado em um plano conjunto) e explica suas funções; fala sobre Otília, viúva do cangaceiro Mariano, que em seguida é entrevistada no filme; comenta sobre a valentia de dois ex-cangaceiros, Saracura e Labareda, Acompanhando um raciocínio de Clara Leonel Ramos (2013), podemos traçar um paralelo entre as ideias de Goffman (1975) de performance, as de Santeiro sobre o “ator natural” (sua “dramaturgia natural” e a noção de “autorrepresentação”) e o que Nichols (1997 e 2010) chamou de “ator social”. 68 Fazemos referência ao artigo “Conceito de dramaturgia natural”, no qual Sergio Santeiro analisa situações de entrevista em Viva Cariri! (Geraldo Sarno, 1970) e Visão de Juazeiro (Eduardo Escorel, 1970), ambos documentários da Caravana Farkas, cujas reflexões serão citadas mais vezes neste capítulo. Ainda que o autor tenha se limitado às duas produções, em diálogo com nosso corpus de estudo, é possível utilizar suas ideias mesmo em documentários contemporâneos, como sugere Clara Leonel Ramos (2013) em sua tese de doutorado intitulada A construção do personagem no documentário brasileiro contemporâneo: autorrepresentação, performance e estratégias narrativas. 69 91 sendo seu depoimento em off que apresenta essas figuras antes de suas respectivas entrevistas. A fala do personagem poupa a locução em over de interligar essas entrevistas. Ela é acionada para fazer uma contextualização histórica sobre a morte de Lampião, dar informações sobre Maria Bonita (inclusive repreendendo o coronel por ter esquecido de mencioná-la) ou recitar versos do cangaceiro e da literatura de cordel. A fala de Zé Rufino permanece autorizada, sem ser contestada, até os últimos minutos do filme, quando a locução em voz over interfere de forma veemente sobre duas respostas do coronel, contrariando o que ele diz a respeito da morte de Corisco e, com isso, repete um procedimento que observamos na entrevista de Estácio de Lima. Na primeira situação, Paulo Gil Soares (25’ 40’’) pergunta: “E o último cangaceiro que o senhor matou?”. Rufino: “Corisco”. Paulo Gil: “Em que dia, coronel?”. Zé Rufino, ainda enquadrado em plano americano e com as pernas cruzadas, já não aparenta tanta confiança no que vai dizer. Hesita, olha para a diagonal como que recobrando a memória e afirma: “No dia 25 de maio de 39”. A voz de Paulo Gil Soares o corrige, agora fora da tomada, sobre a fotografia fixa do entrevistado: “Não, coronel. Foi no dia 5 de maio de 1940”. Em seguida, Zé Rufino relata a sua versão do duelo com o cangaceiro, em off, enquanto vemos fotografias de Corisco intercaladas com as suas, montadas como se ambos estivessem em ação. O coronel conta que estava perseguindo o cangaceiro e quando o encontrou pediu para se entregar, mas Corisco teria “respondido” atirando: “[...] aí eu comecei a trocar tiro com ele e, adiante, a mulher [Dadá] caiu baleada, com a perna quebrada. Mas, antes dele se aprumar, eu atirei nas costas dele e ele caiu”. A voz do diretor, em tom áspero e novamente fora do momento da entrevista, desmente a versão de Rufino, enquanto vemos outra fotografia fixa do coronel, em primeiro plano, na qual parece acuado, dando a impressão de que vai levantar as mãos e desta vez olhando diretamente para a câmera: “Não, coronel. Corisco não respondeu aos seus tiros porque estava aleijado de ambos os braços”. Ao contrário das perguntas, feitas durante a tomada e na presença do personagem, a voz que objeta foi colocada posteriormente, gravada em estúdio e não se mostra amigável como quando do “corpo a corpo” com o entrevistado. 92 A sequência comentada sugere o acionamento de Bill Nichols (1997 e 2010) e suas considerações sobre questões éticas que a entrevista no documentário coloca: [...] as entrevistas são uma forma de discurso hierárquico que é resultado da distribuição desigual de poder, como ocorre com a confissão e o interrogatório. Como se manipula a estrutura inerentemente hierárquica desta forma? A história oral filmada (ou história audiovisual) coloca questões éticas diferentes das que levantam as histórias orais que vão formar um arquivo com material de fonte primária? Que direitos ou privilégios mantém o entrevistado? [...] (NICHOLS, 1997, p.82)70. Zé Rufino não sabe como o realizador irá utilizar sua entrevista, não tem controle sobre isso. O que responderia o coronel se o entrevistador o tivesse desmentido no momento de realização da entrevista? Manteria sua serenidade ou lembraria dos tempos de combate? Por que Paulo Gil não fez isso? Perguntas que não conseguiremos responder. O encaminhamento feito pelo documentário é o de endossar o discurso do coronel até os minutos finais, quando somos surpreendidos pela condução diferente, lembrando a atitude questionadora do “diretor-locutor” do começo, quando temos a entrevista com Estácio de Lima. No entanto, o embate com o professor não é articulado do mesmo modo, iniciando-se quando o locutor põe em dúvida as explicações do professor, sem dar uma resposta imediata que a conteste, mas deixando que o espectador tire suas conclusões a partir de outros elementos – imagens, depoimento do vaqueiro – inseridos na montagem. Com o coronel é diferente: a locução dirige-se à sua fotografia fixa, simulando um diálogo com ele que, afinal, já não pode mais responder. Não se coloca em dúvida o que ele diz, pois, o locutor desmente, declaradamente, sua versão dos fatos. Explicita-se, assim, a superioridade da “voz do saber” do Tradução nossa para: “[…] las entrevistas son una forma de discurso jerárquico que se deriva de la distribución desigual del poder, como ocurre con la confesión y el interrogatorio. ¿Cómo se manipula la estructura inherentemente jerárquica de esta forma? ¿Plantea la historia oral filmada (o historia audiovisual) cuestiones éticas diferentes de las que plantean las historias orales que vayan a formar parte de un archivo como material de primera mano? ¿Qué derechos o prerrogativas conserva el entrevistado?” (NICHOLS, 1997, p.82). O autor faz essas reflexões quando explica sobre o modo de representação documental interativo ou participativo (termo este que usará em textos posteriores). Conforme já mencionamos no início desta dissertação, nosso intuito não é encaixar os filmes de Paulo Gil Soares em um modo ou outro, mas aproveitar as discussões que o autor faz nas situações que consideramos pertinentes, caso da passagem acima descrita, de Memória do cangaço. 70 93 cineasta sobre a “voz da experiência” de Zé Rufino. O diretor, conforme mencionamos, foi motivado a fazer o filme porque queria investigar justamente esse episódio, a morte de Corisco, ouvindo quem dele participara. No entanto, é sua própria voz que se encarrega de narrar a “verdade” sobre o fato, desautorizando a “experiência” do coronel. Zé Rufino configura-se como um personagem ambíguo pela soma de suas singularidades que o filme nos dá acesso (um coronel que tinha prazer em matar bandidos, mas que antes não pensava em pegar em armas e era músico em festas) e pelo movimento feito pelo documentário de autorizar/desautorizar seu discurso. Ou seja, não se trata de uma situação de “crise” do personagem, que deixaria em relevo as contradições. Isto é o que ocorre com outras pessoas com poder que aparecem nos filmes de Paulo Gil Soares, sobre as quais falaremos no próximo tópico. 2.1.3 – Personagens em crise Antes de passarmos à observação dos personagens que constituem este item, é preciso esclarecer o que estamos tomando como “crise”. Baseamo-nos em apontamentos de Sergio Santeiro (1978, p. 80-85) que, ao assumir a existência de uma “dramaturgia natural” inerente ao “ator natural” em um documentário, sugere como perspectiva de análise a reflexão sobre momentos em que tal encenação falha, seja pelo despreparo do “ator” ou pela interferência do “real na cena”, durante uma entrevista. A essa falha, Santeiro (1978) deu o nome de “crise na representação”. A “crise” é um momento de ruptura no filme, instaurada a partir de um personagem, que daria eminência a algo inesperado na narrativa. O primeiro personagem que perceberemos em “crise” é Frei Damião, de Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges. Anteriormente, observamos a entrevista com ele a fim de identificar as tensões entre ele e o “cineasta-intelectual” Paulo Gil Soares, no momento do encontro, mas não levamos em conta as reações do Frei, nem o que teria respondido, o que não era o intuito naquela ocasião. Desta vez, nosso olhar volta-se para este personagem, percebendo como realiza performances (ou, nos termos de Santeiro, dramaturgias, representações) distintas diante da câmera: uma na 94 situação de entrevista para o diretor e outra quando está na presença de fiéis, contrariando a representação de seu próprio papel. Tal perspectiva é por vezes adotada por Clara Leonel Ramos (2007) quando analisa, comparativamente, três documentários da Caravana Farkas que, para ela, estariam afastados do que é compreendido como “modelo sociológico” (BERNARDET, 2009): o próprio Frei Damião, de Paulo Gil Soares; De raízes e rezas, entre outros (1972), de Sergio Muniz; e Viva Cariri! (1970), de Geraldo Sarno. Acionaremos a autora, a fim de lançar mais perspectivas de leitura. Conforme já afirmamos, há um movimento em Frei Damião para trazer à tona o fanatismo religioso como algo maléfico para o povo e como uma situação que a Igreja também contribuiria para existir e da qual se beneficiaria71. Além das perguntas do realizador, a articulação feita pela montagem em torno do personagem central auxilia nesse movimento, colocando lado a lado “dois Freis”: um que nega o fanatismo religioso, alegando que tal comportamento seria a interpretação errada da religião pelo povo, em suas palavras, “ignorante em matéria de religião”; e outro que, quando do encontro com o mesmo povo, atua de um modo que reforçaria tal fanatismo, de modo análogo ao de Antônio Conselheiro e Padre Cícero – líderes religiosos que geraram grande devoção nos séculos XIX e XX, respectivamente, sobretudo no Nordeste brasileiro –, associação que fica sugerida em uma das poucas intervenções da voz over, logo no início do documentário, ao contextualizar a figura de Frei Damião para o espectador. Iremos refletir sobre a “crise” de Frei Damião a partir de: a) a comparação entre as diferentes situações, de entrevista e do “corpo a corpo” com os fiéis, sugerida pelo encaminhamento da montagem, que coloca em evidência o contraste do comportamento/discurso do Frei em ambas; b) a reação do Frei no encontro com uma de suas devotas, que destoa de seu papel enquanto religioso. Frei Damião, durante a entrevista, é enquadrado em primeiro plano, de modo que fica sobressalente sua expressão, com mínimas variações de enquadramento pelo ajuste do zoom da câmera durante sua fala. Em grande parte do tempo sua feição é risonha, aparentando ingenuidade, com um olhar que às vezes se direciona à câmera, às vezes para baixo, quando se mostra em 71 Ver capítulo 1, item 1.8. 95 dúvida quanto ao que responder. Escolhemos para analisar o encadeamento de situações que se inicia por volta dos 11 minutos e exemplifica a referida “crise”. Após uma beata que sempre aparece de óculos e roupa preta – como não sabemos seu nome, vamos identificá-la por seus traços físicos, mas ainda falaremos em outro item deste capítulo sobre a personagem – declarar sua grande devoção ao Frei, há um corte para ele no momento da entrevista, afirmando que “Fanatismo é ... Fanatismo é ... É quando o povo entende mal a religião, atribui a um padre coisas que somente Deus pode realizar”. Há outro corte, para uma tomada observacional do filme, em que vemos, em plano conjunto, uma senhora negra, já bastante idosa, dirigir-se ao Frei, que tem mais pessoas à sua volta. Ela diz: A coisa que eu quero é obedecer às voz de Frei Damião. E peça a Deus por mim, Frei Damião. Tenha compaixão dessa alma pecadora, penitente, desobediente. Se eu vivo à busca de Frei Damião, é porque eu sou muito desobediente. Ele me dá os conselho e eu conheço que eu desobedeço e venho pedir perdão a ele, é isso. A partir da última frase, o Frei começa a rir e vira-se para o lado, como que procurando a câmera, e aumenta o riso quando a senhora afirma que, se ouvisse os conselhos de Frei Damião, seria uma religiosa. Em seguida, um novo corte retorna ao momento da entrevista, em que o diretor-entrevistador assegura diante do Frei: “Mas o comportamento do povo, em vários momentos, é de fanatismo”, fato que Frei Damião nega: “Não, não é fanatismo não”. Há outro retorno para a senhora de antes, que continua a falar de sua desobediência e pede para o padre não desprezá-la. Mais uma vez, o religioso ri diante dela. A passagem exemplifica como se manifesta no filme a “crise na representação” de Frei Damião. Primeiro, seu discurso diante do entrevistador nega um comportamento que ele próprio terá no contato com os fiéis, alguém que detém o poder religioso e presencia o fanatismo do povo. Tal fanatismo será reforçado em outros momentos observacionais do documentário: quando beijam as mãos do Frei ou tocam sua cabeça; quando vemos pessoas chorando copiosamente durante a pregação que faz, de forma improvisada na rua (ele sobe na mureta de uma casa diante de uma multidão); ou, em um dos últimos planos do filme, quando vemos um cordão humano o ajudando a andar até o 96 carro que o transportará, tamanha a quantidade de pessoas que o seguem e querem tocá-lo. Segundo, a “crise” percebida no próprio plano. Lembrando aqui Sergio Santeiro (1978), no encontro do Frei com a senhora negra, há a interferência do “real sobre a cena”: a abordagem da senhora a Frei Damião, pedindo perdão e dizendo que é uma pecadora, não é uma situação esperada, fazendo com que ele ria dela e trazendo à tona uma reação irônica diante da fiel, que beira a chacota, comportamento que destoa de seu papel enquanto religioso. Soma-se à interferência do real o “despreparo cênico” do personagem, que não sustenta o papel de sacerdote sério desempenhado em outros momentos no filme – quando diz ser avesso ao fanatismo, quando é visto conduzindo uma missa ou fazendo pregações na rua. Nas palavras de Ramos (2007), ele é “flagrado”, o que não ocorre em outras ocasiões. Ampliamos, assim, as considerações de Santeiro (1978) sobre a “crise na representação” de um personagem (ou “ator natural”), ao trazer a possibilidade dela ocorrer não somente em entrevistas, como sugeriu e empreendeu o autor em suas análises72, mas também em momentos observacionais, situações sem a “intervenção ativa” do realizador. Desse modo, a “crise” de Frei Damião é apreendida de forma aguda quando comparamos atuações do personagem nas diferentes circunstâncias que o documentário coloca, o que resulta, aproveitando as palavras de Clara Leonel Ramos (2007, p.102 e p.150), no “desmascaramento” de sua persona pelo filme. É preciso, no entanto, matizar algumas das considerações da autora. Ela afirma que o Frei atualiza seu papel no momento da entrevista, o que já seria uma “crise na representação”. Isso ocorreria porque o personagem perceberia o insucesso de sua representação diante do realizador, com quem trava um embate ideológico (vale lembrar que as perguntas de Paulo Gil Soares a ele são Sergio Santeiro analisa situações de dois documentários da Caravana Farkas em seu artigo. A primeira é o depoimento de um beato em Visão de Juazeiro (Eduardo Escorel, 1970) – há a situação da entrevista, embora o filme só nos dê acesso ao homem falando em monólogo –, que sem querer coloca em dúvida seu próprio discurso, sobre a profecia de um milagre, por fazer um engano com a data em que ocorreria, logo corrigido por ele. A segunda situação é a entrevista feita por Geraldo Sarno, em Viva Cariri! (1970), com uma beata do interior do Ceará em uma sala de ex-votos, em que o autor aponta para o momento em que a mulher parece irritar-se diante da equipe do documentário e é “socorrida” por outra beata, travando um diálogo inesperado. 72 97 reiterativas, em torno do fanatismo religioso, que o Frei sempre nega existir), e passaria a empreender uma mudança de postura: da feição risonha e com ar ingênuo, para uma mais séria e assertiva, a fim de enfrentar melhor o entrevistador, de mostrar um “controle” da situação. Essa mudança em sua “dramaturgia natural” manifestaria a mencionada “crise” do personagem. Discordamos da autora quanto à ideia do Frei atualizar sua postura no momento da entrevista, pois se trata de um material apresentado pelo filme de forma fragmentada, ou seja, não temos certeza sobre quais tomadas foram feitas primeiro, se as dele se mostrando mais risonho ou mais sério, sendo difícil sustentar que o Frei tenha começado a conversar com Paulo Gil Soares de um jeito e, percebendo uma atuação que não estava funcionando, evoluído para outro, como dá a entender a leitura empreendida pela autora. A “atualização” da postura do personagem – de risonho/ingênuo para sério/assertivo – é um desenvolvimento feito pela montagem, que pode ou não corresponder ao que aconteceu no encontro entre o realizador e Frei Damião. Da entrevista, o filme apresenta primeiro os planos em que o Frei se mostra risonho e olha bastante para baixo, quando Paulo Gil Soares o interroga sobre o fanatismo religioso, parecendo não entender a pergunta ou ter dúvidas para responder ao entrevistador. Já quase no fim do documentário, as tomadas da entrevista são do personagem proferindo, em tom mais sério e bastante seguro, um discurso sobre a importância da comunhão e a força do diabo. Portanto, naquilo que o documentário nos dá a conhecer da entrevista, no “real do filme”, não fica patente o momento em que teria se dado a “crise na representação” de Frei Damião, quer dizer, quando o personagem teria percebido sua má atuação diante do entrevistador e mudado de postura, como dão a entender os apontamentos de Clara Leonel Ramos. Não estamos, contudo, negando que o Frei representa a si mesmo de modo oposto ao longo do documentário, revelando contradições que a montagem, como já demonstramos, nos ajuda a perceber. Cabe ressaltar sobre o filme a presença e importância das tomadas observacionais. Mostrar o diálogo entre personagens, por exemplo, não era prática comum no documentário brasileiro de então, em uma aproximação aos procedimentos adotados pelo cinema direto norte-americano. Para Nichols (1997), filmes que compartilham desse modo de representação propõem que o 98 espectador seja uma espécie de voyeur que observa o desenrolar das situações como se não houvesse mediação do cineasta, uma (falsa) sensação de “acesso transparente” ao mundo histórico. Sobre a relação entre os personagens (chamados por Nichols de “atores sociais”), realizador e espectador em documentários que se utilizam de estratégias observativas, o autor afirma: A pessoa que está atrás da câmera, e do microfone, não chama a atenção dos atores sociais nem se compromete com eles de forma direta ou indireta. Ao invés disso, acreditamos que desfrutamos da oportunidade de ocupar o posto de um observador ideal, deslocandonos entre pessoas e lugares para encontrar pontos de vista reveladores (NICHOLS, 1997, p.78)73. O “ponto de vista revelador”, pensando na situação da abordagem da senhora negra ao religioso, mencionada em Frei Damião, corresponde à percepção da “crise na representação” do personagem, flagrante em uma tomada observacional, ou seja, em que não há “intervenção ativa” do cineasta. Podemos citar, ainda, um outro tipo de movimento feito pelo documentário e que ajuda a construir o personagem, que é o de contrapor as respostas da entrevista do Frei, nas quais nega ter feito milagres ou desaprova o fanatismo religioso do povo, com depoimentos de pessoas da cidade de Taperoá, na Paraíba – colhidos em tempo diferente da entrevista e sem a presença do religioso – que falam de milagres atribuídos a ele ou declaram grande devoção à sua figura. Esse outro jogo também funciona para o processo de “desmascaramento” da persona do Frei, mas nossa escolha aqui foi nos voltarmos para a percepção de como a “crise” é instaurada diante da confrontação do Frei com ele próprio, uma das possibilidades sugeridas pelo encaminhamento da montagem do filme. Em Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges, diferentemente do que ocorre em outros documentários analisados neste capítulo, a voz do realizador não põe em dúvida ou desmente o personagem, Tradução nossa para: “La persona que está detrás de la cámara, y del micrófono, no capta la atención de los actores sociales ni se compromete con ellos de forma directa o indirecta. Por el contrario confiamos en disfrutar de la oportunidad de ocupar el puesto de un observador ideal, desplazándonos entre personas y lugares para hallar puntos de vista reveladores” (NICHOLS, 1997, p.78). 73 99 como faz com Estácio de Lima ou Zé Rufino em Memória do cangaço74. É notório que, na entrevista com o Frei, as perguntas de Paulo Gil Soares sobre o fanatismo religioso tentem “encurralá-lo”, deixando transparecer o conflito ideológico entre ambos (ou entre a Igreja e o intelectual de esquerda), mas o realizador não explicita o julgamento que faz acerca do entrevistado. Ele fica sugerido pela contraposição dos diversos materiais do filme: as declarações do Frei, planos observacionais e depoimentos de devotos, que apontam para a contradição entre o que diz e como age o religioso. Evidenciam-se pelo encadeamento do documentário a crítica ao fanatismo religioso e a associação religião/alienação, ideia bastante presente em filmes da mesma época75. Desta forma, constrói-se o personagem Frei Damião, deve-se ressaltar, de maneira não favorável a ele. A resposta à pergunta feita pela locução no início do documentário, “Mas... Quem é Frei Damião?”, fica aqui sugerida: trata-se de um personagem em “crise”. Se em Frei Damião comparamos o personagem central com ele mesmo – perspectiva de análise diferente em relação às demais até então empreendidas neste capítulo –, a observação de Dadá (Sérgia Ribeiro da Silva), de Memória do cangaço, personagem também com um determinado poder e que gera uma “crise” no filme, encaminha a discussão para sentido diverso. Antes de mais nada, é necessário tomar cuidado ao equiparar Dadá, que é “outro de classe” com relação ao cineasta, aos demais personagens com poder nos filmes de Paulo Gil Soares. A viúva de Corisco foi alguém que participou do movimento do cangaço e quando é abordada pelo diretor, quase trinta anos depois, já é uma Não estamos, no entanto, desconsiderando o fato de que a montagem paralela entre o depoimento de Estácio de Lima, as imagens de sertanejos e a entrevista com o vaqueiro em Memória do cangaço, por exemplo, ajuda a colocar em descrença o catedrático. A diferença é que a dúvida quanto ao seu discurso não é apenas suscitada por essa montagem, mas explicitada pela voz over do realizador – “Mas... Estará o professor Estácio de Lima com a razão?”. Não é o mesmo que ocorre em Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges, em que a voz over também faz uma questão no início do filme, mas esta não coloca, declaradamente, o personagem em xeque ou em descrédito – “Mas... quem é Frei Damião?” –, pergunta que aos poucos tenta ser respondida pelo documentário. 74 Pensando em documentários realizados no âmbito da Caravana Farkas, poderíamos citar Viramundo (Geraldo Sarno, 1965), Viva Cariri! (Geraldo Sarno, 1970), Padre Cícero: o patriarca de Juazeiro (Geraldo Sarno, 1972) e Visão de Juazeiro (Eduardo Escorel, 1970), que fazem relações entre religião, economia e política. Sobre nuances em torno da abordagem da religião no Cinema Novo, ver subcapítulos “O Cinema Moderno e a Questão Nacional” e “A Religião do Oprimido” – este último sobre o cinema de Glauber Rocha – em: ISMAIL, Xavier. O cinema brasileiro moderno. Paz e Terra: São Paulo, 2001, p.18-37 e p.148-154. 75 100 senhora, com um grave defeito na perna esquerda – ela, inclusive, aparece de muletas no filme – devido ao tiro que levou do coronel Zé Rufino no episódio da morte de Corisco. Ao ser abordada para dar entrevista, ela reage negativamente e com afronta. De um lado, há a lembrança de uma valentia dos tempos de outrora, que a própria personagem faz menção quando se contrapõe ao realizador. De outro, e sobretudo, o enfrentamento de Dadá com a equipe de filmagem suscita questões de alteridade e ética, das relações de poder entre realizador e personagem. É devido a esse poder que a personagem está colocada aqui em nossa discussão. A negativa de Dadá, mantida pelo filme, explicita uma abertura do documentário ao “risco do real” (COMOLLI, 2007, p.169-178), ao “real da cena” (SANTEIRO, 1978), situação pertinente para refletirmos ainda sobre alguns momentos de Memória do cangaço que o afastariam de um documentário do tipo “sociológico”. Ao contrário do que ocorre com outros personagens do mesmo filme, a passagem com a viúva de Corisco é muito breve: dura menos de 30 segundos. A pouca duração, contudo, não diminui a importância que adquire na narrativa. Descreveremos a situação para então tecermos nossas considerações76. Aos 26’40’’, após ser desmentida a versão do coronel Zé Rufino sobre a morte de Corisco, vemos a fotografia fixa de Dadá, em plano médio, da tomada que se desenrolará adiante, sobre a qual ouvimos sua voz: “O que é que há?”. Tentando abordá-la, ouve-se o diretor, praticamente em off, já que uma ínfima parte de seu rosto aparece do lado esquerdo do quadro: “Dona Sérgia, é o seguinte... O professor Estácio [de Lima] mandou nós procurarmos a senhora...”. Dadá o interrompe e começa a falar, quando passamos a vê-la já em movimento: “Mas o doutor Estácio sabe que eu não atendo essas pessoas assim”. Ouvimos Paulo Gil Soares tentando explicar do que se trata, enquanto Dadá encara a câmera fazendo um sinal negativo, dirige-se em direção ao equipamento e o derruba. De fundo, há o choro de uma criança – de fato, movimenta-se atrás de Dadá uma moça segurando um bebê no colo e outra criança mais à frente. A gravação da imagem é interrompida (o que vemos é a tela preta), mas do som não, sendo possível ouvir Dadá em tom de ameaça à Para informações contextuais do encontro entre Paulo Gil Soares e Dadá, ver capítulo 1, item 1.1. 76 101 equipe: “Não! Não! De forma nenhuma. Se está aqui com causos de gravadores, não façam isso porque eu mato um”. Passamos a ver outra fotografia sua, desta vez da época do cangaço e de corpo inteiro, que a câmera filma movimentandose no eixo vertical, de baixo para cima. Sobre a imagem, a continuação de sua fala: “Eu nunca fui desordeira, mas desta vez eu vou ser. Se acompanhei Corisco, eu era mulher dele, obediente a meu marido”. Dadá (como Estácio de Lima e Zé Rufino) não escapa ao jogo entre passado e presente feito em Memória do cangaço que, no trabalho da montagem com sua fotografia fixa, insinua uma comparação entre a Dadá do tempo presente (do filme) e a Dadá dos tempos de cangaceirismo, retomando a menção que a personagem faz a Corisco, ou seja, ao tempo passado. A performance de Dadá se contrapõe à dos outros remanescentes do cangaço, de aparente pacatez. Sua recusa em participar do filme sugere que se trata de alguém que quer apagar da memória aqueles tempos do cangaço, como também faz em seu depoimento o ex-cangaceiro Saracura, que integrava o bando de Lampião77. Quando introduzimos a discussão sobre Dadá, dissemos que sua passagem no filme seria um momento de abertura ao “risco do real”, mas não explicamos qual a acepção do termo, emprestado de Jean-Louis Comolli (2007, p.169-178), do capítulo intitulado “Sob o risco do real”, de seu livro Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Nele, o autor faz uma defesa de filmes documentários, por considerá-los “[...] abertos para o mundo: eles são atravessados, furados, transportados pelo mundo” (COMOLLI, 2007, p.170). Filmes que seriam permissivos à imprevisibilidade, ao acaso, diferentes de outras formas de narrativa – ficções de um modo geral, mas também a própria vida – que estariam presas a roteiros e que, na perspectiva lançada pelo autor, deveriam também se abrir para as “fissuras do real”. Trecho do diálogo entre Paulo Gil e Saracura (ou Benício Alves dos Santos) à altura dos 18 minutos de Memória do cangaço: 77 - O senhor sente saudades daqueles tempos? - Não. - Nenhuma? - Não. - Se Lampião existisse ainda, o senhor não voltaria pra lá? - Nada. - Nada? - Eu odeio quando fala naquele tempo. 102 Alguns questionamentos poderiam ser suscitados a partir dessas considerações de Comolli. Por exemplo, existem documentários roteirizados, que não se abrem tanto ao “risco do real” ou não revelam ao espectador as tais “fissuras”. Interessa-nos tomar do autor os apontamentos sobre as pessoas filmadas em documentários, que servem para refletir acerca da personagem Dadá: O que acontece com aqueles que filmamos, homens ou mulheres, que se tornam, assim, personagens de filmes? Eles nos atraem e nos retêm, antes de tudo, porque existem fora do nosso projeto de filme. É somente a partir daquilo que farão conosco dentro desse projeto (e, às vezes, contra nós) que se tornarão seres do cinema. Isso demonstra o quanto estamos, de saída, sem condições de lhe dar ordens (podemos oferecer, no máximo, indicações), de ‘avacalhar’ sua própria mise-enscène (ao contrário, trata-se de deixá-la aparecer em primeiro plano), de interromper ou alterar o curso de suas ações (a não ser o tempo suspenso de uma filmagem) (COMOLLI, 2007, p.175) [grifos nossos]. Tais considerações precisam ser matizadas, é verdade, já que algumas configuram-se mais como propostas do que deveria ser o cinema documentário do que algo que se observa nos filmes de maneira generalista78. De todo modo, o trecho citado de Comolli lança luz às relações nem sempre harmoniosas entre realizador – que detém poder porque possui os meios de produção – e personagem. A passagem com Dadá traz à tona uma disputa de poderes: negarse a dar entrevista e derrubar a câmera são atos que demostram o poder que um personagem pode exercer em um documentário, de não querer colaborar com o cineasta e assim alterar o seu projeto de filme. O outro poder nessa disputa é o do cineasta, que começa a filmar antes mesmo da permissão de Dadá e continua gravando (o som) à sua revelia, expondo uma postura ética problemática. A manutenção dessa passagem depende do poder do cineasta, de escolher o material que entra ou sai no filme. Contudo, sua permanência não é favorável nem ao cineasta nem à construção de uma possível “tese” no documentário. É um momento de “crise” no filme, sintomático de uma maior abertura aos “riscos do real” e que transgrede o que seria esperado em um documentário “sociológico”. Apenas para exemplificar, a ideia de Comolli (2007) sobre a pouca interferência do cineasta na mise-en-scène dos personagens desconsidera todos os documentários em que se nota ter havido uma direção cênica dos “atores sociais”, desde Nanook of the North (Robert Flaherty,1922). 78 103 Para retomar os apontamentos de Jean-Claude Bernardet (2003 e 2005), é possível perceber, no momento de “crise” com a personagem Dadá, indícios de uma postura de realização menos sociológica, um conflito – aqui, literalmente – entre a “voz do saber” (ou “voz do dono”, nos termos de Sergio Santeiro) do cineasta e a “voz do outro” ou “voz da experiência” da personagem. Bernardet elenca documentários da década de 1960 que já apontavam para essa transformação: Liberdade de imprensa (João Batista de Andrade, 1967), LavraDor (Paulo Rufino, 1968), Indústria (Ana Carolina, 1969) e Roda & outras histórias (Sergio Muniz, 1965) – este último no âmbito da Caravana Farkas. Tais filmes, embora bastante diferentes, teriam as seguintes afinidades: A primeira é que a realidade tende a não ser mais achatada por uma compreensão unívoca. A realidade é múltipla. A multiplicidade de seus aspectos não é excludente, nem um mais verdadeiro que o outro: os vários níveis articulam-se entre si e todos pertencem a vivências tão importantes e significativas umas quanto as outras. Outra afinidade não menos essencial: a quebra do poder do documentarista que não aborda seu objeto de estudo do alto de sua sabedoria, reduzindo o outro à categoria sociológica. O cineasta coloca-se como um sujeito, e não como o sujeito onisciente e onipotente; ele se recusa a constituir o outro como objeto e trabalha sobre a distância entre ele e o outro; institui o outro como sujeito, dialoga com o outro como sujeito. O fato de aparecer o sujeito documentarista (e não filmando ingenuamente a câmara filmando, mas na estrutura do filme) e a constituição do outro, não em objeto, mas em outro sujeito, são movimentos complementares de um mesmo processo (BERNARDET, 2005 p.308-309). Acompanhando Bernardet, evidencia-se na tomada comentada de Memória do cangaço a “intervenção ativa” do realizador, situação que escapa a um sistema de argumentação fechado, pela incorporação do inesperado no filme, da “não-entrevista”, que colabora para reflexões sobre o fazer documentário e suas implicações éticas. Graças ao poder que Dadá exerce enquanto personagem, coloca-se em “crise” tanto a condução da narrativa do documentário, que apresenta um momento discrepante dos demais; quanto a “crise” do cineasta-intelectual que, em vez de mascarar o insucesso da abordagem com Dadá, usa seu poder como realizador para mantê-lo na montagem e deixá-lo transparecer, dando ao espectador a possibilidade de tirar suas próprias conclusões sobre os personagens em confronto e seus poderes. 104 2.1.4 – O proprietário e o sindicalista ou os “vilões do trabalhador” Os últimos personagens com poder que iremos observar nos documentários de Paulo Gil Soares são aqueles que ocupam posições de autoridade no âmbito do trabalho: o proprietário rural, o presidente do sindicato, o empresário. Pessoas cujos discursos são articulados pela montagem a fim de apontar para denúncias, como a condição desfavorável para o lavrador em sua relação com o dono da terra; a demissão massiva de operários na indústria fumageira devido à mecanização; os altos lucros obtidos com a exportação do fumo produzido na Bahia em contraposição à precariedade da situação do trabalhador e ao escasso – até clandestino – mercado interno. Evidencia-se a aspiração do cineasta na defesa do “explorado” e acusação do “explorador”. As denúncias emergem por meio de um recurso de montagem paralela que ora articula a entrevista do personagem sugerindo um contraponto com as imagens e com as informações fornecidas pela locução; ora coloca em contraposição as falas de dois personagens, como se um estivesse respondendo ao outro, em um jogo de argumentação e contra argumentação recorrente nos documentários do diretor. Iremos observar três dessas situações. Na primeira, em Erva Bruxa, desmente-se a afirmação do presidente do sindicato da indústria fumageira da Bahia, Saturnino Ferreira da Conceição, que nega ter havido a demissão de operários. Entrevistado no sindicato, ele aparece em plano médio atrás de uma mesa cheia de carteiras de trabalho, quase na metade do filme, após alguns planos gerais que mostram mulheres fazendo a separação das folhas de fumo em um armazém. Paulo Gil Soares (extraquadro) questiona o sindicalista: “Nós temos a informação de que um armazém que está mecanizado neste momento, ele dispensou cerca de 75% do seu pessoal. Qual a posição do sindicato diante disso?”. Saturnino não olha diretamente para a câmera ao responder e hesita por alguns segundos: “Não é puxando, como diz a gíria, o saco dessa firma, mas discordo a essa notícia”. Paulo Gil Soares insiste: “Mas houve ou não houve dispensa?”. Fazendo um sinal negativo com a cabeça, o sindicalista: “Não. Que continua todos os operário trabalhando”. Há o corte para o depoimento de um homem que aparenta ser o supervisor de um armazém – possivelmente o mesmo em que houve demissões. Centralizado no quadro, o homem aparece dentro do local em um plano mais 105 aberto, onde o vemos em enquadramento médio à frente e um segundo plano de mulheres separando o fumo em esteiras. Seu depoimento endossa a denúncia suscitada pelo realizador: “A mecanização teve início há aproximadamente três meses e com isto conseguimos reduzir 70% da mão-deobra”. Novo corte retorna ao sindicalista. Desta vez, é questionado sobre a destinação do fumo produzido na Bahia, se é comprado apenas por armazéns brasileiros; ele responde que brasileiros são os agentes (que intermediam a venda). O filme vai retomar a questão da exportação do produto na entrevista com um empresário, nos últimos minutos, sendo a segunda situação que observaremos. Sobre a sequência descrita, novamente há Paulo Gil Soares atua como um repórter investigativo que tenta tirar do entrevistado a informação que lhe interessa. Esta é uma característica que o diferencia dos demais realizadores da Caravana Farkas, reforçando as considerações de Gilberto Sobrinho (2013), quando faz uma comparação com outro realizador, Geraldo Sarno: Estilisticamente, as entrevistas de Paulo Gil (desde o próprio Memória do Cangaço) são mais denunciativas que as de Geraldo Sarno e adquirem caráter ‘investigativo’ quando utilizam-se da argumentação e contra argumentação montados paralelamente (SOBRINHO, 2013, p.35). É o que percebemos na situação com o presidente do sindicato. Acrescentando ainda que, além da fala do supervisor do armazém desmenti-lo, o próprio plano de sua entrevista dá indícios de que a afirmação sobre as demissões pode não ser verdadeira, devido à quantidade de carteiras de trabalho que vemos em cima da mesa. Filmados em tempo e espaço diferentes, os personagens “interagem” graças à montagem. Bill Nichols (1997) afirma, sobre o papel da montagem em documentários interativos/participativos: A montagem tem a função de manter uma continuidade lógica entre os pontos de vista individuais, por regra geral sem a vantagem de um comentário global, cuja lógica passa para a relação entre as afirmações mais fragmentadas dos sujeitos das entrevistas ou o intercâmbio conversacional entre o realizador e os agentes sociais (NICHOLS, 1997, p.79)79. No original: “El montaje tiene la función de mantener una continuidad lógica entre los puntos de vista individuales, por regla general sin la ventaja de un comentario global, cuya lógica pasa 79 106 Mesmo que não haja um comentário global manifesto (pela locução, por exemplo) a respeito das afirmações que fazem os personagens, ele fica implicitamente sugerido pelo modo como são articulados os depoimentos na montagem. Não se trata, neste caso, de valorizar pontos de vista individuais – tanto que o presidente do sindicato é desmentido –, mas de reforçar a denúncia do realizador. Nichols (1997, p.80-81) toma alguns documentários interativos/participativos para mostrar que a justaposição de entrevistas com outros materiais ou com outras entrevistas pode sugerir uma comparação entre as diferentes afirmações apresentadas a fim de promover uma revelação em torno do tema. É o que ocorre na sequência comentada de Erva Bruxa. Questiona o autor sobre documentários interativos/participativos80: Até onde pode ir a participação? Quais são os limites para além dos quais um realizador não pode estabelecer uma negociação? Quais táticas permitem a ‘acusação’ fora de um sistema legal formal? A palavra ‘acusação’ faz referência ao processo de investigação social ou histórica a que se propõe o realizador em seu diálogo com testemunhas [de um fato, de um acontecimento] com o objetivo de desenvolver uma argumentação. Na realidade, a relação com as testemunhas pode ser mais próxima à de um defensor público que à de um acusador: não é habitual que se estabeleça uma relação de confrontação senão uma relação em que se busca informação para se estabelecer um raciocínio (NICHOLS, 1997, p.80)81. A ideia do realizador como um “defensor público” parece eficaz para pensarmos no projeto da Caravana Farkas de modo mais amplo, sendo os de maior caráter investigativo os documentários de Paulo Gil Soares, adotando estratégias singulares para revelar denúncias. Conforme resume D´Almeida (2003, p.89), a Caravana configura-se como um projeto político-didático baseado a la relación entre las afirmaciones más fragmentarias de los sujetos de las entrevistas o al intercambio conversacional entre el realizador y los agentes sociales” (NICHOLS, 1997, p.79). 80 Conforme afirmamos no capítulo 1, os documentários de Paulo Gil Soares apresentam diferentes níveis de modos de representação documental, dependendo da sequência examinada. No trecho citado de Erva Bruxa há estratégias de cunho interativo/participativo, ainda que o mesmo filme tenha sequências mais expositivas. Tradução para: “¿Hasta dónde puede ir la participación? ¿Cuáles son los límites más allá de los que un realizador no puede establecer una negociación? ¿Qué tácticas permite la «acusación» fuera de un sistema legal formal? La palabra «acusación» hace referencia al proceso de investigación social o histórica en que se interna el realizador en su diálogo con testigos con el objeto de desarrollar una argumentación. En realidad, la relación con los testigos puede estar más cerca de la de un defensor público que de la de un acusador: no es habitual que se establezca una relación de confrontación sino una relación en la que se busca información para un razonamiento” (NICHOLS, 1997, p.80). 81 107 na ideia do cineasta-intelectual como um mediador, aquele que promoveria, ao revelar criticamente a realidade brasileira, uma conscientização da sociedade, que então perceberia as “contradições do capitalismo”82. Uma segunda situação em Erva Bruxa aponta para esta constatação. Ela começa com a entrevista de um empresário da indústria fumageira, que se dá em torno dos 16 minutos. Paulo Gil retoma o questionamento feito ao sindicalista, sobre quanto da produção de fumo da Bahia é aproveitado pela indústria local. O empresário (não sabemos seu nome) aparece em plano médio/americano sentado de pernas cruzadas em uma cadeira com um jardim ao fundo e segurando um charuto, em postura altiva, com traje social e óculos escuro. Responde que o fumo baiano é mais destinado à exportação, visando os mercados europeu, estadunidense e argentino. Sua fala é pausada, tranquila. Sobre os charutos mais caros, explica que só podem ser produzidos manualmente – em montagem paralela, imagens de uma mulher enrolando um desses charutos cobrem parte da fala do empresário – e calcula entre US$ 15 e US$ 20 milhões os valores obtidos com a exportação do fumo baiano nos anos 1968 e 1969, respectivamente. Em contraposição à situação de pujança referida pelo empresário, passamos a ver duas cidades do interior da Bahia – Cachoeira e São Félix – que a voz over do “diretor-locutor” afirma estarem em decadência, em nada lembrando os tempos áureos das exportações do fumo produzido em suas lavouras nem os números do empresário, abrigando uma indústria caseira e clandestina de charutos. Planos de mulheres em suas casas enrolando o produto assemelham-se aos anteriores, dos charutos caros citados pelo empresário, demonstrando que o processo é o mesmo. Não há depoimentos; as “contradições do capitalismo” ficam sugeridas quando da comparação entre as afirmações do empresário e da locução/imagens que passamos a acompanhar. Além dos filmes de Paulo Gil Soares, cabe lembrar que na maioria dos documentários da Caravana Farkas realizados na 1ª e 2ª fases de produção (1965-1970) há a temática do trabalho. Alguns: Viramundo (1965), de Geraldo Sarno, mostra as mazelas enfrentadas pelo nordestino que migra para São Paulo em busca de trabalho na construção civil; Subterrâneos do futebol (1965), de Maurice Capovilla, aborda o jogador de futebol enquanto um trabalhador explorado como qualquer outro; Vitalino, Lampião (1969) e Os imaginários (1970), ambos de Geraldo Sarno, mostram profissões ameaçadas pela industrialização; Casa de farinha (1970) e O engenho (1970), também de Sarno, sobre a produção rudimentar da farinha de mandioca e da rapadura, respectivamente. 82 108 As contradições são percebidas ainda na comparação da imagem do empresário com a dos operários do armazém: em paralelo à fala do personagem e ao longo do documentário, aparecem trabalhando descalços, com roupas sujas, sem proteção nas mãos. Dessa comparação, manifesta-se vinculada ao cenário da indústria fumageira da Bahia a oposição desenvolvimento/subdesenvolvimento ou riqueza/pobreza. Tal oposição é revelada ainda de modo mais contundente quando observamos o proprietário rural (de quem também não sabemos o nome) de Jaramataia83, documentário que aborda as atividades rotineiras da fazenda homônima localizada no interior da Paraíba, tratando-a como exemplar de um modelo agrário “primitivo”, que persistiria em muitas fazendas no sertão do Nordeste. O dono da propriedade aparece na metade do filme, em plano americano, enquadrado ao lado de um automóvel, símbolo de seu status de poder, no qual fica apoiado com um dos braços. Traja camisa e calça sociais limpas, seu gestual aparenta segurança e tranquilidade, suas respostas são feitas com olhar direto à câmera. Em alguns instantes, fica difícil entender o que ele fala e o documentário não utiliza legendas ou outro recurso para minimizar essa incompreensão. Ele conta que as terras são herança de família e que começou no “trabalho de machado e de foice no pesado”, como os homens mostrados em seguida, em plano conjunto, com o proprietário ao lado que gesticula e lhes dá alguma ordem. É acionado o recurso de montagem paralela, de forma semelhante ao que ocorre em Erva Bruxa, que coloca lado a lado as falas do proprietário e de dois trabalhadores da fazenda, como se estivessem em diálogo. Do primeiro trabalhador vemos somente o rosto, em primeiríssimo plano, enfatizando a expressão do homem que, ao contrário do proprietário, é comedido, não encara a câmera e reclama do pouco ganho com o trabalho84. Já o segundo trabalhador aparece em plano médio (como o proprietário) segurando duas vacas, com a roupa rasgada e suja, tendo o rosto pouco visível devido à sombra que faz o Em Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges, o mesmo personagem dá um depoimento sobre o religioso. 83 84 Retomaremos mais aspectos sobre os personagens que são o “outro de classe” no item 2.2. 109 chapéu. Seguem as mencionadas falas que são inseridas pelo filme seguidamente: Proprietário: “Fui comprando as terras nesse tempo, achei mais baratas, e assim consegui comprar aqui nesse município 7 mil quadras85 de terra e criar mil cabeças de gado”. Trabalhador 1: “Eu luto aqui na fazenda, o ganho é pouco”. Proprietário: “Meu sistema é muito seguro para o trabalhador”. Trabalhador 1: “Faz vinte anos que nós fizemos conta. De lá pra cá não fizemos mais. Faz hoje, faz amanhã. Não fizemos mais conta”. Proprietário: “Eu empresto dinheiro ao morador pra ele trabalhar a ele mesmo. Não empresto pra ele trabalhar a mim não. Empresto o dinheiro sem juro pra ele limpar o seu roçado, trabalhando no que é dele. Agora, fiscalizo ele”. Trabalhador 2: “Eu entrei ganhando 5 contos e agora estou ganhando 10 contos e 500. E num dá”. Pelo contraponto que estabelecem os depoimentos, fica sugerida a relação desigual que há entre dono da terra e trabalhador, em que este aparece em profunda desvantagem. O contraste também é percebido na comparação das imagens dos personagens, que expõem “indícios de riqueza” e “indícios de pobreza”, como já esboçamos no capítulo 1. A explicitação do realizador faz-se desnecessária para tal. Apreendemos, por meio da tensão que se estabelece entre as vozes e imagens daquele que é dono da terra e daquele que não a possui, uma questão mais ampla de fundo: a da reforma agrária, sugerida como a solução para os problemas mostrados ao longo de Jaramataia86. Às nossas considerações, podemos acrescentar o que afirma Meize Lucas (2012) ao refletir sobre a mesma passagem: Quadra ou braça de terra é uma antiga medida de comprimento utilizada no meio rural: 1 braça corresponde a pouco mais de 2 metros quadrados. 85 A sugestão é colocada por outros documentários realizados no âmbito da Caravana Farkas, como Viramundo, de Geraldo Sarno. Ao entrevistar em São Paulo um dos migrantes nordestinos, o diretor suscita a problemática: o mesmo homem afirma que teria ficado no Nordeste, caso tivesse conseguido comprar um pedaço de terra. O encaminhamento feito pelo documentário sugere que está no campo a solução para os problemas na cidade apresentados pelo filme. Sobre a questão, ver: PAIVA, Samuel e CURY, Joyce. Revendo imagens do povo pela locomoção e politização. Revista Novos Olhares, vol. 3, no. 2, fev. 2015, p. 100-112. 86 110 A ideia de uma propriedade que se desenvolve com base numa economia calcada em relações de proximidade e trocas pessoais – comuns em muitas análises sociológicas e econômicas e viés presente na literatura regionalista – é colocada em xeque a partir da fala dos próprios entrevistados (LUCAS, 2012, p.278). O sindicalista, o empresário e o proprietário rural são personagens construídos pelos documentários para personificar o capitalismo. No caso, como o lado “mau” nas relações de trabalho, os “vilões do trabalhador”. Seus depoimentos servem para comprovar o que os filmes afirmam em outros momentos, notadamente a situação precária do lavrador, do vaqueiro ou do operário da indústria do fumo. Aparecem, de forma implícita, questões mais amplas que faziam parte da pauta dos intelectuais de esquerda no Brasil dos anos 1960: a oposição ao capitalismo, ao capital estrangeiro e ao latifúndio – portanto, em favor da reforma agrária (NAPOLITANO, 2014; RIDENTI, 2000; SCHWARZ, 2008). O presidente do sindicato é a figura de comportamento mais contraditório, pois espera-se, pelo menos em tese, alguém que seja o “porta-voz” dos problemas dos operários, o que não acontece. Sua informação a respeito das demissões é desmentida, fazendo com que o personagem passe a ser tomado na chave da ironia, de maneira negativa. Cabe notar que, ao contrário dos outros dois personagens analisados, o sindicalista é o “outro de classe” com poder, alguém que foi operário e deveria representar essa classe trabalhadora. No filme, contudo, quem se torna o “porta-voz” do operário é o próprio cineasta. Quanto ao empresário e ao proprietário rural, ao terem seus discursos sobre riqueza contrapostos a uma realidade de extrema pobreza, são também colocados em posição antipática, seus depoimentos adquirem valoração negativa, tornando-se clara a oposição entre “explorador” e “explorado”, em que pesa a defesa que o documentário faz do segundo, o trabalhador. São questões que voltarão a ser discutidas no próximo item, quando faremos considerações sobre o “outro de classe” nos filmes de Paulo Gil Soares. 2.2 – Tensões com o “outro de classe”: entre o coletivo e o individual Diferentemente da maioria dos personagens que detêm algum poder nos documentários de Paulo Gil, a sensação que temos diante daqueles que não o 111 possuem, no caso, o “outro de classe”, não é de conflito ou tensão com o realizador ou com a narrativa, no sentido de autorizar/desautorizar seu discurso87. Se o coronel, o sacerdote religioso, o proprietário de terra, entre outros, são colocados em xeque de alguma forma nos filmes, o mesmo não ocorre com ex-cangaceiros, lavradores, vaqueiros, artesãos que dão entrevista ou são mostrados em suas atividades rotineiras. Suas falas e ações não são contestadas, mas reveladoras de sua condição; há uma “defesa” que os documentários tentam fazer dessas pessoas. As tensões com o “outro de classe” são de outra ordem: ora os personagens são percebidos nos filmes como exemplares de uma categoria ou “tipo”, ou seja, construídos como “entes coletivos” (VALLEJO, 2008, p.79); ora como indivíduos que têm nome, subjetividades e exercem um protagonismo na narrativa. De início, atentemos para os números relativos a esses personagens nos oito documentários do diretor, indicativos do que afirmamos88: dos 23 que aparecem falando – mesmo que a situação de entrevista não esteja explicitada ou que seja um momento mais observativo –, de 8 sabemos o nome, anunciado pelo próprio personagem ou pelo realizador (na locução ou no instante do encontro). Memória do cangaço é o único filme do conjunto em que todos os personagens são nominados; Jaramataia e Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges não dão acesso a nomes; e A morte do boi não tem depoimentos, mas mostra pessoas exercendo alguma atividade cotidiana. Os demais filmes dão a conhecer nomes de alguns. Os personagens que fazem parte da esfera do trabalho falam sempre sobre as mesmas coisas: descrevem a atividade que realizam, dizem quanto ganham, reclamam dos ganhos e da vantagem financeira que leva o negociante ou o proprietário da terra. Se isso ocorre, é porque as perguntas feitas a eles também se repetem: A maioria das perguntas beira a típica ‘pergunta retórica’, em que o cineasta basicamente já sabe que tipo de resposta obterá, mas que se faz necessário para empregar esse tipo de ‘denúncia’ mais direta que Paulo Gil Soares costuma fazer em seus filmes, normalmente tomando As exceções – o “outro de classe” com algum poder – são a viúva de Corisco, Dadá, de Memória do cangaço; e o presidente do sindicato dos trabalhadores da indústria fumageira da Bahia, Saturnino Ferreira Conceição, de Erva Bruxa, sobre os quais comentamos anteriormente. 87 88 Em oposição, personagens que detêm poder totalizam 9, dos quais 6 são nominados. 112 parte do homem comum, denunciando algum tipo de injustiça ou de condições ruins de existência (SOBRINHO, 2010, p.16). É o caso do curtidor de couro de A mão do homem, que aparece duas vezes no filme. Na primeira, à altura dos 5 minutos, o vemos enquadrado em primeiro plano, que aos poucos se abre para um plano conjunto, pelo movimento de zoom out, mostrando o curtume onde ele está e outro trabalhador ao fundo. Olhando para a câmera, o homem explica, passo a passo, como é feita a curtição do couro. Sua fala completa a descrição do processo feita pela locução e pelas imagens. Na segunda vez em que o vemos, em torno dos 8 minutos, o plano faz movimento oposto, do mais aberto para o fechado no rosto dele, à medida em que revela a situação de quem curte o couro e daquele que fabrica as peças usando o material: “O curtidor nem o fabricante não contam vantagem nenhuma. A vantagem só tá sempre no negociante”. Afirma que nem com trinta anos de trabalho um curtidor tem condições de comprar um meio de transporte para facilitar o trabalho ou passear. A fala deste curtidor vai se completar, ainda, no depoimento do artesão Moisés Alves de Oliveira, de Umburanas, na Bahia, a quem vemos confeccionando um chapéu de couro em planos diversos, e que também explica com detalhes as etapas do processo, em off. Os dois relatos começam a se cruzar quando o artesão comenta que gasta bastante com o material, vendendo o chapéu ao negociante, que o revende. Ele aponta para a diferença de preço do produto manual, que “é 10”, e o industrial, que “é 5”, diz que acaba ganhando pouco e que nem sempre “tem mês que dá pra se defender”. Em torno dos 15’40’’, o homem aparece enquadrado na janela de sua casa. O plano segue a mesma lógica do curtidor, começa mais fechado no rosto do personagem e se abre, em zoom out, enquadrando abaixo da janela uma mulher que trabalha na confecção de um chapéu. O artesão diz seu nome, apresentando-se à câmera, e dá informações de caráter mais individual: Moro na Umburana, trabalho no couro há 16 anos, mais minha família, [que] ajuda eu a trabalhar. Quem me ensinou foi meu pai. Eu não tenho nada. Não dá pra ganhar, dá pra viver mal, né. Quem ganha mais são os negociante. 113 Ele completa falando o que prefere confeccionar, sinalizando positivamente com a cabeça, certamente ao entrevistador, cuja voz e corpo estão suprimidos: “Gosto de fazer o chapéu de couro”. Ainda que os personagens tratem das mesmas questões – a relação desigual com o comerciante, a denúncia da condição de vida ruim –, o depoimento do artesão tem um caráter mais subjetivo. Ao sabermos seu nome, com quem aprendeu o ofício e sua preferência pelo chapéu, temos acesso não ao “tipo” artesão, mas a um artesão em especial; as particularidades de sua experiência ganham algum relevo. A “personalização da experiência” (RAMOS, 2007, p.125) ocorre também com os ex-cangaceiros e o vaqueiro entrevistados em Memória do cangaço ou com Zé Galego de O homem de couro, sobre os quais falaremos mais à frente. É possível, por exemplo, traçar interseções entre o curtidor de A mão do homem, os camponeses de Jaramataia e o lavrador de Erva Bruxa. De Jaramataia, dois personagens já foram observados quando tratamos da contraposição que suas falas e imagens fazem com a do proprietário de terras, no item 2.1.4. Ambos reiteram que ganham pouco com o trabalho e um deles denuncia a falta de acerto de contas com o dono da fazenda. Ainda dois personagens retomam as questões no mesmo filme. Em Jaramataia, um lavrador aparece em torno dos 17 minutos, em alguns planos conjuntos que o mostram trabalhando em uma plantação, intercalados com uma breve tomada de seu rosto em primeiro plano. Ele exemplifica quais cultivos têm ali e sua destinação, sendo questionado mais adiante pelo realizador, que ouvimos extraquadro: “Dá pra viver com o dinheiro que o senhor ganha nessa terra?”. O homem, em off, a quem vemos trabalhando com uma enxada: “Dá não, senhor. A gente vive a pulso”. Sua fala é concluída pelo personagem seguinte, um jovem vaqueiro que está agachado em um pedaço de terra: “Eu vou seguir para outro lugar porque sei que aqui não dá pra mim viver, de maneira alguma”. O lavrador de Erva Bruxa, por sua vez, aparece no início do documentário, visto em plano conjunto trabalhando com sua família em uma plantação de fumo, inclusive crianças. Novamente, há um primeiro plano no instante de seu depoimento e a denúncia surge: “A lavoura do fumo não dá [...] Quando é no 114 tempo que a gente tá colhendo o fumo, é a conta da despesa e olha lá. E muitas vezes a gente ainda fica devendo”. São pessoas cujas subjetividades estão dissolvidas, configurando-se em amostragem do sertanejo nordestino que vive em condição precária. Recuperando o que diz Bernardet (2003, p.24) sobre o “modelo sociológico” de documentário, a propósito dos migrantes de Viramundo, são personagens que, tratados mais como objetos de estudo do que sujeitos, representam um “tipo sociológico”, uma “abstração”. De cunho denunciativo, suas falas completam as informações fornecidas pela locução ou por personagens análogos, inclusive em filmes distintos, como apontamos. Esses trabalhadores conseguem identificar sua situação desvantajosa na relação com o proprietário ou o comerciante, mas não indicam um caminho para modificá-la, parecem presos àquela realidade cíclica que a locução faz questão de enfatizar. A solução, como diz o vaqueiro jovem de Jaramataia ou ainda um vaqueiro mais velho que dá depoimento em O homem de couro, é sair da fazenda, mudar de profissão. Refletindo nesse viés, há uma persistência naquilo que Brian Winston (2011) chama de “tradição da vítima”. Segundo o autor, ela pode ser observada desde documentários ingleses dos anos 1930, que retratavam como viviam os trabalhadores e os problemas sociais da época, até produções do cinema direto da década de 1960 ou em materiais televisivos dos anos 198089. Nesta “tradição” está implicada a escolha dos documentaristas em filmar e entrevistar pessoas destituídas de poder – operários, agricultores, desempregados, moradores de bairros carentes. São as “personagens pobres, sofredoras” de Edgar Anstey90, realizador a quem Winston toma como uma das referências do documentarismo inglês. Alguns problemas de ordem ética e moral são suscitados pelo autor diante dessa “tradição da vítima”, aqui nos interessando o O artigo de Brian Winston foi originalmente publicado em 1988. O autor afirma, sobre o cinema direto, por exemplo, que este “[...] deu à tradição da vítima a tecnologia que permitiu um grau de intrusão na vida das pessoas comuns que anteriormente não era possível” (WINSTON, 2011, p.66). 89 Edgar Anstey foi um documentarista inglês que integrou o grupo de John Grierson na década de 1930. Realizou, entre vários outros, o curta-metragem Housing problems (Edgar Anstey e Arthur Elton, 1935) sobre o problema de moradia para trabalhadores da Grã-Bretanha, que moravam em favelas. O filme foi pioneiro porque dá a palavra aos operários, que são ouvidos em suas próprias casas e em som sincrônico às imagens. 90 115 fato dos personagens serem mostrados como seres indefesos e a falta de dimensão e controle que têm com relação às imagens construídas pelos filmes. No Brasil da década de 1960, quando os documentários de Paulo Gil Soares foram realizados, a ideia de vitimização de Winston pode ser relacionada com a já comentada pretensão do cineasta-intelectual em ser o “porta-voz” das mazelas que afligiam o homem brasileiro, notadamente o nordestino, mostrado como vítima de sua condição. Observando os filmes, fica patente a defesa que fazem dessas pessoas, seja pela ênfase da locução sobre sua situação “primitiva”, pelas imagens que endossam seus discursos ou pela montagem que as favorece em detrimento de personagens com poder. Suas falas potencializam as denúncias, é notório, mas situações sem depoimentos também são flagrantes de um retrato do subdesenvolvimento. São planos que mostram pessoas disputando pedaços de carne no chão ao lado de um abatedouro clandestino, crianças trabalhando no abate do boi e na curtição de sua pele em A morte do boi; imagens de beatos focalizados em primeiro plano sentindo grande comoção diante da presença de Frei Damião ao proferir um discurso religioso; operários descalços e com o corpo desprotegido em contato com as folhas de fumo nos armazéns, mulheres que enrolam charutos para abastecer um mercado clandestino, crianças que ajudam na lavoura em Erva Bruxa; as esposas dos vaqueiros que fabricam, de maneira artesanal e em meio a moscas, o queijo em Jaramataia; o curtidor de couro em A mão do homem, que trabalha com ferramentas rudimentares e dentro do rio, flagrado seminu enquanto trabalha, pois não tem dinheiro para comprar roupas. Por um lado, perpassa nos filmes a ideia de personagem coletivo, o sertanejo nordestino como categoria social, aproveitando aqui as considerações de Aida Vallejo (2008) sobre a possibilidade de personagens serem construídos como “entes coletivos” em documentários: As conotações ideológicas desta construção implicam uma categorização da pessoa em função de suas características comuns com o resto das que conformam sua categoria e, portanto, uma perda de sua especificidade e identidade pessoal (VALLEJO, 2008, p.79)91. Tradução para: “Las connotaciones ideológicas de esta construcción implican una categorización de la persona en función de sus características comunes con el resto de las que conforman su categoría y, por lo tanto, una pérdida de su especificidad e identidad personal” (VALLEJO, 2008, p.79). 91 116 Vallejo (2008), em certa medida, reverbera as reflexões de Bill Nichols (1997 e 2010) quando ele afirma que reduzir ou não as pessoas a “[...] estereótipos, joguetes ou vítimas [...]” (NICHOLS, 2010 p. 178) diz respeito a questões éticas, mas também políticas e ideológicas. Concordamos sobre esta relação, inclusive pelo que já comentamos da proposta político-didática dos filmes que estudamos e da ideia do intelectual como responsável por denunciar os problemas do país. Nichols (2010, p.178-208) sugere que os indivíduos no documentário que enfatiza questões sociais são comumente construídos como típicos, representativos ou vítimas do problema apresentado pelo filme, em que pesa um efeito de coletividade. Os títulos dirigidos por Paulo Gil Soares na Caravana Farkas podem ser tidos como exemplos para as afirmações de Vallejo (2008) e Nichols (1997 e 2010), conforme situações que já apontamos com alguns trabalhadores. Por outro lado – justamente aí residiria o que estamos tomando como tensões quanto ao “outro de classe” nesses filmes –, ao observarmos certos personagens percebemos a particularização da experiência do outro: uma tentativa de dar acesso a pessoas que têm nome e subjetividades. Um esforço que, se não significa a total quebra do paternalismo do cineasta com relação a essas pessoas, aponta para a valorização das experiências subjetivas. Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges apresenta essas tensões de maneira interessante. Embora não saibamos o nome de nenhum personagem, com exceção do próprio Frei Damião, a subjetividade aparece manifestada nos depoimentos, já que os devotos falam sobre sua fé e milagres atribuídos ao religioso. Mesmo que eles contribuam para reforçar a tese da religião como forma de alienação, que perpassa ao longo do filme, em nenhum momento são contestados e colocados em dúvida; também não são apoiados pela montagem, como ocorre com trabalhadores em outros filmes já mencionados. Clara Leonel Ramos (2007) afirma que justamente essa presença da “religião subjetiva”92 é um aspecto em que Frei Damião se diferencia do Clara Leonel Ramos (2007) fala em “religião subjetiva” e “religião objetiva” a partir das discussões de Claudia Mesquita em sua dissertação de mestrado sobre as transformações na abordagem da religião no documentário brasileiro do Cinema Novo à contemporaneidade, apoiando-se nesses dois conceitos lançados por Ismail Xavier no livro Sertão-mar: Glauber Rocha e a estética da fome. Ramos explica que a “religião objetiva” faz referência à “[...] representação da exterioridade objetiva da religião, através do registro de rituais coletivos” 92 117 documentário de cunho sociológico, ainda que a relação religião/alienação continue presente. Se, por um lado, é colocada a questão da fé como um rito coletivo, ao mostrar milhares de pessoas seguindo o religioso, na rua ou em cerimônias, tentando tocá-lo; por outro lado, há abertura para experiências pessoais de fé. Ao contrário do que ocorre na entrevista com Frei Damião, não ouvimos a voz do realizador fazendo perguntas ao “outro de classe”; sua presença na tomada nunca é explicitada, nem assumida a situação de entrevista. Há uma beata, que usa roupa e óculos pretos, a quem podemos considerar personagem principal entre os devotos93. Em uma espécie de prólogo do filme, ela é vista sentada em uma calçada, em plano americano, entoando o trecho de uma canção religiosa: “Senhor Deus, pela vossa sagrada paixão e morte, misericórdia”. Além desse momento de performance sacro-musical, suas declarações sobre fé e devoção ao Frei servem para introduzir depoimentos de outros devotos convocados pelo filme, encadeados pela montagem em um bloco nos primeiros minutos. A beata chega a atuar como entrevistadora, quando a vemos ao lado de uma mulher pedindo para que conte a graça alcançada por sua filha “por intercessão de Frei Damião”. Conforme já comentamos, os testemunhos dessas pessoas servem como contraponto ao discurso do Frei, que se diz contrário ao fanatismo religioso e nega ter operado milagres. Duas pessoas referem-se a situações prosaicas que teriam sido resolvidas por intermédio do religioso: um rádio quebrado e uma aliança perdida. Outras duas falam de problemas de saúde: a mulher “entrevistada” pela beata, cuja filha tinha uma ferida na cabeça e ficou boa depois de Frei Damião ter lhe passado a mão; um homem que afirma “Me deitei aleijado e amanheci bom”, após ter se confessado ao Frei, que o teria curado e dito a ele ser “doutor das almas”. Além deles, há a senhora negra que aborda o religioso e participa de um momento mais observativo do filme, em que ele é “flagrado” rindo dela, sobre o qual comentamos no item 2.1.3. Essas pessoas têm dificuldade para se expressar, alguns depoimentos soam artificiais e ensaiados. (RAMOS, 2007, p.44). Já “religião subjetiva” compreende “[...] a representação da religião como uma vivência individual, a expressão do sentimento religioso personalizado” (Id. Ibid.). Conforme explicamos no capítulo 1, item 1.8, foi a beata quem procurou a equipe para participar do documentário. 93 118 Voltando à beata principal, ela nunca fala de alguma experiência pessoal, como os demais personagens. Faz afirmações gerais sobre o Frei, atuando como se fosse “porta-voz” dos devotos, falando em nome deles. À altura dos 11 minutos, no mesmo local em que a vimos cantando no começo do filme, relata com convicção sobre a fé que, acredita, todos teriam em Frei Damião: Porque os nossos olhos quando volta pra Frei Damião, não temos força pra dizer nada, a não ser se curvar e se entregar pra ele fazer da gente o que ele quiser. Se disser assim, ‘eu vou lhe matar agora’, eu acredito que nenhum cristão se revolta, se entrega como nós nos entregamos a Deus, nosso Senhor. A ideia de adoração ao Frei que perpassa todo o seu discurso é comprovada quando vemos como se comporta a multidão diante do religioso, ou seja, sua fala atualiza-se nas imagens. Trata-se de uma personagem que tem um comportamento distinto dos demais que são “outro de classe” nos documentários de Paulo Gil Soares, ao tomar para si o papel de “representante” dos devotos, de uma coletividade. Aqueles que contam sobre sua experiência religiosa individual podem ser percebidos de maneira ambígua. Por um lado, valorizam-se suas histórias pessoais, no sentido de que não são desmentidas – ainda que alguns casos (os mais banais, da aliança perdida e do rádio quebrado) sejam factíveis de leitura irônica – nem colocadas em dúvida. Por outro lado, os relatos de milagres ajudam, inevitavelmente, na construção de um personagem coletivo, do nordestino vítima de sua alienação, que perpassa outros filmes da Caravana Farkas e, mais amplamente, os primeiros filmes do Cinema Novo. A leitura que faz Clara Leonel Ramos (2007) é análoga: Os depoentes não são vistos pelo autor como adversários ideológicos que mereçam ser confrontados, já que seriam vítimas da sua própria ignorância. Trata-se de um olhar paternalista em relação a estes entrevistados. Isto não significa, contudo, que a ‘religião subjetiva’ – ou seja, a subjetividade religiosa destes personagens – seja vista de maneira positiva, nem apresentada como um olhar aceitável em relação ao tema. Apesar disso, a falta de questionamento direto dos depoimentos populares aponta para uma legitimação da fé – fundada na falta de conhecimento e no medo da punição – como substrato da cultura popular (RAMOS, 2007, p.94). 119 Essas tensões quanto ao “outro de classe” persistem quando observamos personagens de outros filmes. Já comentamos sobre o artesão Moisés Alves de Oliveira, de A mão do homem, cujo depoimento traz informações de cunho bastante pessoal e outras que se fundem à denúncia das más condições daqueles que trabalham com o couro de maneira geral. Além de Moisés, podem ser tomados outros personagens que manifestam, ao mesmo tempo, subjetividade e coletividade. Observemos Gregório, vaqueiro entrevistado em Memória do cangaço, lembrando que esse trabalhador rural é figura recorrente nos documentários de Paulo Gil, aparecendo em seis deles. Sua entrevista funciona como resposta ao questionamento da locução, que põe em dúvida a explicação científica do catedrático Estácio de Lima94 sobre a pré-disposição do homem sertanejo ao cangaço, à violência. Gregório é visto aos 6’39’’ montado a cavalo, em um plano conjunto que enquadra também o diretor Paulo Gil Soares, segurando um microfone, e ao lado o operador de áudio. Pela fala do homem, deduz-se sua condição de vítima e inércia, um contraponto ao que Estácio de Lima sugere sobre o homem sertanejo. Paulo Gil: Seu Gregório, há quantos anos o senhor é vaqueiro? Seu Gregório: Eu? Paulo Gil: Sim senhor. Seu Gregório: Vinte anos. Paulo Gil: Esse gado que o senhor toma conta é do senhor? Seu Gregório: Não senhor. Paulo Gil: E, Seu Gregório, quanto é que o senhor ganha por mês? Seu Gregório: Eu não ganho por mês, não senhor. Paulo Gil: O senhor ganha como? Seu Gregório: Só se tiver sorte. [...] Paulo Gil: O senhor sabe ler e escrever, Seu Gregório? Seu Gregório: Não senhor. Paulo Gil: Tem escola por aqui por perto, não? Seu Gregório: Tem não. Paulo Gil: E hospital? Seu Gregório: Tem não. Tinha uma escola aí, mas já acabou. Paulo Gil: E hospital, tem aqui? Seu Gregório: Não senhor. [...] A locução, aos 6’33’’: “Mas estará o professor Estácio de Lima com a razão? Ouçamos um desses homens”. 94 120 As respostas do vaqueiro serão interpretadas pela locução em momento seguinte, colaborando para que o percebamos como um sujeito oprimido, que não tem acesso a direitos básicos, “abandonado à própria sorte”, para repetir as palavras do locutor. Representante da “voz da experiência”, é alguém que fala sobre a própria vivência, em particular, corroborando com generalizações feitas pela locução. Neste sentido, para retomar as premissas do “modelo sociológico” de documentário de Bernardet (2009), haveria uma correspondência entre esse personagem e os operários de Viramundo ou os jogadores de Subterrâneos do futebol. Contudo, ao contrário destes, em Memória do cangaço há o rompimento da exterioridade do cineasta com relação ao “mundo histórico representado” – para usar uma expressão de Nichols (1997 e 2010) –, ou seja, há sua personificação na tela, que se dá justamente ao lado do “outro de classe”, coadunando com o anseio do cineasta-intelectual em “defender” o povo. Paulo Gil Soares é o único diretor da Caravana que se personifica na tela, além de outros momentos de explicitação na tomada, sobre os quais já comentamos95. Dentro da discussão a respeito da tensão entre o coletivo e o individual ao retratar personagens que são “outro de classe”, deve-se considerar o não anonimato do vaqueiro e dos demais entrevistados no mesmo filme como tentativa de individualizar suas experiências. Isso ocorre de forma mais vigorosa com dois ex-cangaceiros em Memória do cangaço. Um deles é Benício Alves dos Santos, no cangaço apelidado de Saracura e que fez parte do bando de Lampião, funcionário do IML de Salvador, na Bahia, quando o documentário é realizado. Ele é visto (por volta dos 16’) caminhando na rua, enquadrado em primeiro plano durante a entrevista, a quem Paulo Gil Soares pergunta (extraquadro) o nome, os motivos da entrada para o cangaço e como era sua vida na caatinga, o que comia, como dormia. O homem conta que se tornou cangaceiro porque a polícia estava perseguindo seu pai, de quem “arrancou as barba, arrancou as unha” porque achava que fosse “coiteiro” (quem conhecia e ajudava algum cangaceiro). Benício dos Santos diz não gostar de falar sobre aquele tempo. Vale lembrar que o filme não indica a presença física ou vocal do diretor, ou seja, sabemos tratar-se de Paulo Gil Soares por uma informação extra fílmica. 95 121 Aspectos semelhantes são tomados da entrevista com Ângelo Roque da Costa (aos 20’25’’), no cangaço nominado Labareda, chefe do grupo de Saracura, que também afirma ter sido cangaceiro para resolver uma questão de família: um soldado queria “carregar” sua irmã. Com bastante dificuldade para se expressar, mostra marcas de bala no braço, explica que acabou se entregando e foi “salvo” pelo presidente da república. Os dois personagens são introduzidos pela fala do coronel Zé Rufino, conforme já mencionamos, que chega a comentar sobre a qualidades dos bandidos. Fazem contraponto à figura altiva do coronel e, ao contrário dele, não falam com orgulho sobre o passado. Ambos ex-lavradores, são atualizados na figura do vaqueiro Gregório. Conforme interpreta Meize Lucas (2012): Se o cangaço acabou, o mesmo não se poderia dizer da realidade em que ele surgiu e se desenvolveu. O homem sem terra e exposto aos poderes locais continuava a existir (LUCAS, 2012, p.205). Para nós, ainda que esses personagens se mostrem como vítimas do poder (do dono da terra, da polícia), suas experiências particulares não são desconsideradas e o filme nos dá acesso a sujeitos distintos, mesmo tendo trajetórias de vida semelhantes. Também a presença de Dadá, conforme já observamos no item 2.1.3, rompe com a expectativa de tipificar os excangaceiros. Faz-se pertinente observar mais atentamente um último personagem que é “outro de classe”, por ser representante emblemático dessa dialética entre coletivo/individual ou impessoalidade/subjetividade. Trata-se de outro vaqueiro, Zé Galego, personagem central de O homem de couro. 2.2.1 – Quando o outro é heroicizado: o vaqueiro Zé Galego O vaqueiro Zé Galego é protagonista de O homem de couro. Isso porque o documentário nos dá mais acesso a ele do que aos demais personagens do filme: sabemos sobre seu trabalho, como é seu aboio, quem são seus filhos, sua esposa. Aspectos diversos em torno de um mesmo sujeito, que o diferencia tanto de outros vaqueiros no filme – é o único também de quem sabemos o nome – 122 quanto dos personagens que são “outro de classe” em outros títulos sobre os quais já comentamos. Ele é quem primeiro aparece no documentário. Enquadrado em planos diversos dentro de um casebre de madeira, veste sua roupa de couro para a câmera, uma prática de seu cotidiano que é repetida a pedido do cineasta, com quem parece conversar. Às vezes ele encara a câmera, como se esperasse uma aprovação para continuar se vestindo e vemos seus lábios se mexendo, mas não o ouvimos porque o som diegético é silenciado. Enquanto veste a roupa feita em couro, a locução descreve e explica para que serve cada parte dela no trabalho no campo. Ao ajeitar sua sela, a locução em voz over recita versos da poesia de cordel “História do boi mandingueiro e o cavalo misterioso”96. É como se estivéssemos ouvindo o pensamento daquele homem: “Esta sela eu herdei / Do finado meu avô / Que ele tinha herdado / Do velho seu trisavô”. Outros trechos da poesia serão utilizados da mesma maneira, trabalhando o concreto das imagens com o imaginário do cordel: o vaqueiro dos versos materializa-se em Zé Galego. Nos planos seguintes, já do lado de fora do casebre, planos conjuntos o mostram montando em seu cavalo. Anda pelos arredores da fazenda até parar de frente para a câmera, atrás da cerca que delimita a entrada da propriedade, quando finalmente passamos a ouvi-lo. Ele se apresenta, diz seu nome: “Me chamo José Francisco Filho, conhecido por Zé Galego. Sou vaqueiro da Jaramataia, ganho 15 mil por semana e o leite. E o campo é de 6 às 6”. Abre a cerca para iniciar mais um dia de trabalho na fazenda, que será acompanhado pelo filme. Zé Galego, como os demais trabalhadores dos documentários de Paulo Gil Soares, diz quanto ganha e trabalha, no entanto, ao contrário deles, não reclama de sua condição97. Pelo contrário, fala com orgulho da profissão. As duas sequências – do vaqueiro colocando sua roupa de couro e depois se apresentando – trazem um caráter informativo/pedagógico, introduzem o tema do documentário ao espectador; evidenciam ainda, mesmo que isso não “História do boi mandingueiro e o cavalo misterioso” é uma poesia de cordel escrita e publicada por João Martins de Ataíde. Em O homem de couro e nos demais filmes do diretor não estão identificadas as poesias populares. 96 Um vaqueiro mais velho é o único no filme que reclama de sua condição e diz que vai abandonar a profissão. Ainda falaremos sobre ele no capítulo 3, a fim de fazer relações entre seu discurso e o de uma poesia de cordel incorporada ao documentário. 97 123 esteja explicitado no filme, que houve uma orientação do cineasta para que o personagem se posicionasse e se apresentasse de tal maneira. São situações de seu cotidiano que Zé Galego repete para a câmera em performances, acrescentando aqui mais uma perspectiva para o conceito, a partir de Richard Schechner (2003): Performances afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e adornam corpos, contam histórias. Performances artísticas, rituais ou cotidianas – são todas feitas de comportamentos duplamente exercidos, comportamentos restaurados, ações performadas que as pessoas treinam para desempenhar, que têm que repetir e ensaiar (SCHECHNER, 2003, p.27). O vaqueiro não finge que a câmera não está ali. Sua performance é assumida e condicionada ao direcionamento dado pelo realizador. Não são momentos de observação mais distanciada, como depois teremos no filme, quando Zé Galego é visto durante o trabalho na fazenda. É um exemplo do que Thomas Waugh (2011) chama de “presentational performance”, em que há “[...] uma consciência da câmera, mais do que uma não-consciência, de apresentarse para a câmera [...]98” (WAUGH, 2011, p.76). O autor utiliza o termo em oposição a “representational performance”99, um tipo de performance em que o personagem não olha para a câmera, fingindo que ela é invisível, como se não tivesse consciência de estar sendo filmado, como se estivesse “agindo naturalmente”100. Tal convenção é inerente às produções do direct cinema, por exemplo, e à maioria dos filmes de ficção. Os documentários de Paulo Gil Soares são bastante apoiados em entrevistas, por isso há predominantemente situações de “presentational performance”; há também momentos que aparentam um “agir natural” (a beata mais velha que aborda Frei Damião, por exemplo); outros personagens realizam Trecho extraído do original: The convention of performing an awareness of the camera rather than a nonawareness, of presenting oneself explicitly for the camera – the convention the documentary cinema absorbed from its elder sibling photography – we shall call ‘presentational’ performance (WAUGH, 2011, p.76). 98 Preferimos manter os dois termos em inglês, ainda que uma tradução seja possível, algo como “performance de apresentação” e “performance representacional” ou de representação. 99 A expressão “agir natural” é emprestada do documentarista holandês Joris Ivens, de um texto escrito por ele em 1940, intitulado “Colaboration in Documentary”, no qual conta como dirigia os personagens de seus filmes, que é citado por Brian Winston. 100 124 “presentational” e “representational” performances (como o próprio Frei Damião), não sendo nossa intenção aplicar as reflexões de Thomas Waugh no sentido de verificar qual personagem realiza esta ou aquela performance. Fizemos a consideração sobre Zé Galego porque se trata de um personagem que não apenas é convocado para dar entrevista ou mostrar uma situação de trabalho na fazenda, como ocorre com outros personagens que são “outro de classe”. Destacam-se seus gestos e sua vida mais do que de qualquer outro. Há uma novidade, pois temos acesso à sua família, o que não ocorre nem nos demais filmes de Paulo Gil Soares nem de outros realizadores na Caravana Farkas101. Sua esposa é apresentada pelo vaqueiro, em off (aos 14’43’’), vista costurando, cozinhando e separando o leite. Do lado de fora da casa, em primeiro plano, dá um depoimento orgulhosa da profissão do marido, que por vezes soa artificial e ensaiado, mas não deixa de ser incomum: Gosto muito da vida de Zé ser vaqueiro [...] Eu não casei com lavrador porque não gosto de trabalhar na roça, não gosto de aproveitar a colheita. Casei, sim, com vaqueiro, porque gosto muito de leite e acho muito bonito ver quando o gado sai do curral e quando entra à tardezinha. A mulher ainda fala a respeito dos dois filhos, em off, que são vistos em plano conjunto brincando com um bezerro em um cercado da casa. Ela afirma que ambos só dizem que “[...] quando crescerem vão ao mato, derrubar gado” e que talvez sigam a profissão do pai, em seguida ouvido em off comentando sobre o mesmo assunto. Mesmo que o tema ainda gire em torno da questão do trabalho de vaqueiro, que é central para o documentário, conhecemos aspectos daquele indivíduo, Zé Galego, mais do que de qualquer outro. O personagem também dá depoimento sobre a profissão na metade do filme, alternado com os de outros vaqueiros da fazenda. A situação de entrevista não é assumida, ou seja, não vemos o cineasta ou ouvimos as perguntas que faz; os personagens respondem diretamente à câmera. Em primeiro plano e apoiado no lombo de seu cavalo, Zé Galego parece à vontade ao falar sobre os melhores animais para o trabalho e de sua relação com a profissão: Estamos considerando os realizadores da 1ª e 2ª fases da Caravana Farkas (1964-1970), mesmo período em que Paulo Gil Soares participou da experiência. 101 125 Me criei trabalhando na agricultura, mas nunca dei valor, né. Aí saltei da agricultura e fui trabalhar no D.E.R., trabalhei dez anos, mas também não tirei futuro nenhum. Aí entrei na vida de gado e até hoje não tou arrependido de jeito nenhum. E aonde existe boi e cavalo bom eu tou encostado a eles. Sua fala faz coro à de outros vaqueiros jovens e se opõe a um vaqueiro mais velho, o único que reclama da profissão. Há ainda um momento de performance musical (aos 15’57’’), quando Zé Galego e os demais demonstram para a câmera como aboiam, como é o canto que entoam junto ao gado nos trabalhos no campo. Cada um tem um “estilo” de aboio, embora o gesto seja comum a todos, o de colocar uma das mãos sobre uma das orelhas. O canto substitui suas falas, servindo como um elemento que os identifica, mesmo que só saibamos o nome de um deles. Além de documentá-los, o filme incorpora esses aboios à trilha musical em ocasiões diversas. Ainda que o filme mostre outros vaqueiros e incorpore seus depoimentos, Zé Galego destaca-se entre eles. É o único identificado, temos acesso a aspectos de sua vida pessoal, ao seu aboio e sua relação com a câmera é próxima, verificada nas primeiras tomadas do documentário. Zé Galego personifica o mito do vaqueiro da literatura de cordel, por meio do jogo entre imaginário e concreto que o filme sugere em seus momentos iniciais. Podemos considerá-lo construído como um “herói do cotidiano”: A escolha de um ‘herói’, seja simpático ou antipático, oferece um lugar ao espectador que lhe permite situar-se em relação a ele. Ao expor suas dificuldades, o espectador é convidado a compartilhar as preocupações e a preocupar-se com seu destino (...) A heroicização de um determinado ‘personagem’ (...) permite jogar com os sentimentos: o medo (...), a pena (...), a simpatia (COLLEYN apud VALLEJO, 2011, p.76)102. Segundo Vallejo (2011), a construção de um personagem em um documentário como herói ou, ainda, como anti-herói, relaciona-se com a “visão e o juízo ideológico do realizador sobre o ator social” (VALLEJO, 2011, p.77). No original: […] la elección de un ‘héroe’, ya sea simpático o antipático, ofrece un lugar al espectador que le permite situarse en relación a él. Al exponer sus dificultades, se invita al espectador a compartir las preocupaciones y a inquietarse por su suerte (...) La heroización de un determinado ‘carácter’ (...) permite jugar con los sentimientos: el miedo (...), la pena (…), la simpatía (COLLEYN apud VALLEJO, 2011, p.76). 102 126 Neste sentido, podemos sugerir que Zé Galego coincide com o vaqueiro idealizado por Paulo Gil Soares: [...] em têrmos de mito, o realmente corajoso, o bravo, o de destreza assegurada e manifesta em trabalhos rurais, é o vaqueiro. Dêle a responsabilidade de levar grandes manadas ao campo, para os pastos de engorda, ou as grandes viagens para as feiras de gado. Dêle falam os cancioneiros, nas festas tradicionais que cantam suas lutas contra bois valentes e ardilosos. Com êles sonham as mocinhas nas noites longas sem chuvas dos sertões nordestinos. Não é, de resto, o vaqueiro o último cavaleiro ainda com armaduras, como se estivesse sempre pronto para antigos torneios medievais? A roupa do cavaleiro deixou de ser de metal; hoje é de couro, mas ainda guarda um gôsto de arnês (SOARES, 1969, s/p)103. Concomitantemente, Zé Galego é tanto o “homem de couro” universal, no sentido do mito em torno do vaqueiro, quanto aquele sujeito em particular, com esposa e dois filhos, que trabalha das 6 às 6 na fazenda Jaramataia, no interior da Paraíba. Uma crítica de O homem de couro publicada em 1971, no Jornal do Brasil, aponta para o diálogo entre coletivo e subjetivo existente no filme, para um distanciamento e ao mesmo tempo aproximação com aqueles que retrata: São 22 minutos em que, a paixão se sucedendo ao distanciamento, Paulo Gil consegue brincar com as emoções do espectador [...] a paixão pelo tema suplanta o distanciamento crítico (que nunca falta, assim como a denúncia de um status determinado). Por isso mesmo, a distante irritação é suplantada pela aproximação emotiva (CUNHA, 1971, p.14). O “distanciamento crítico” a que o texto faz referência podemos interpretar como sendo a já reiterada aspiração do cineasta-intelectual em ser “porta-voz” do povo, uma postura sociológica diante do outro, que o dissolveria da condição de sujeito para torná-lo um objeto de estudo, alguém que fala no filme para comprovar uma tese. Já a “aproximação emotiva” refere-se à tentativa de dar a conhecer o outro não como categoria, mas como indivíduo, sendo O homem de couro exemplar nesse sentido. Se a constante dialética coletivo/individual com o “outro de classe” nos filmes de Paulo Gil Soares aponta para uma leitura que vai além do “modelo sociológico” de documentário, como tentamos demonstrar neste capítulo, Trecho do texto de apresentação de O homem de couro, escrito por Paulo Gil em 1969, que consta no material publicitário do filme. 103 127 também aplicável aos personagens com poder, outro aspecto também contribui para tal: a incorporação de materiais da cultura popular que ultrapassam a documentação, tornando-se elemento estético-discursivo nos documentários, o que será discutido no próximo capítulo. 128 CAPÍTULO 3 – A APROPRIAÇÃO DA CULTURA POPULAR Neste capítulo, discutiremos como se dá o diálogo entre a cultura popular e os documentários de Paulo Gil Soares, realizados na experiência da Caravana Farkas. Longe de definirmos o termo, dada a dificuldade de tal tarefa, como alerta Marilena Chauí (1984 e 1986), o objetivo é compreender qual ideia de popular está implicada nos filmes e de que maneira a incorporação de determinados materiais interfere no discurso de alguns dos documentários. Nosso primeiro movimento será o de perceber como algumas das ideias da arquiteta italiana Lina Bo Bardi (1914-1992) acerca do popular se manifestam nos filmes do diretor, lembrando que um dos títulos, A mão do homem, é dedicado a ela, informação que aparece nas cartelas iniciais. Tal perspectiva inclui de fundo a compreensão do popular para os cineastas da geração do Cinema Novo brasileiro, embora não seja nosso intuito mapear suas várias vertentes, considerando também a existência de um diálogo ainda mais amplo, com cinematografias de outros países da América Latina, realizadas entre 1960 e 1970, o chamado Nuevo Cine Latinoamericano (NCL). Em um segundo momento, entraremos propriamente na análise de materiais populares que aparecem em três documentários: Memória do cangaço, Vaquejada e O homem de couro. Escolhemos estes títulos porque neles a cultura popular, em especial a poesia, potencializa seus discursos mais do que em outros filmes de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas. Para além da documentação, a poesia popular, notadamente a extraída dos folhetos de cordel, torna-se importante elemento estético-discursivo (seja pela incorporação na locução ou na trilha musical), deixando em relevo conflitos entre o saber do cineasta e o saber popular. 3.1 – Diálogos com Lina Bo Bardi Desde Memória do cangaço, a cultura popular está presente nos documentários de Paulo Gil Soares: os versos musicais improvisados pelos violeiros, a literatura de cordel recitada pela narração ou musicada pelo cantador popular, a música de pífanos, os aboios dos vaqueiros nordestinos, as cartelas de apresentação com desenhos inspirados nas xilogravuras dos folhetos de 129 cordel, os cantos de orixás. A partir do que defende Marilena Chauí (1986), apoiada no pensamento de Antonio Gramsci105, estamos tomando as manifestações da cultura popular como sendo as “expressões dos dominados”, que ocorrem dentro de uma cultura dominante, muitas vezes para resistir a ela: [...] um conjunto de práticas, representações e formas de consciência que possuem lógica própria (o jogo interno do conformismo, inconformismo e resistência), distinguindo-se da cultura dominante exatamente por essa lógica de práticas, representações e formas de consciência (CHAUÍ, 1986, p.25)106. Incorporar manifestações da cultura popular – como as mencionadas – nos filmes era uma das tônicas do Cinema Novo brasileiro da década de 1960 em sua pretensão de atingir o povo, o que significaria fazer um cinema popular, tornando-o um “instrumento de descoberta e reflexão sobre a realidade nacional” (BERNARDET e GALVÃO, 1983, p.139)107. Um depoimento de Cacá Diegues parece resumir a compreensão de muitos cineastas à época: “[...] parte-se das raízes culturais nacionais do povo, transforma-se o folclore popular, a tradição literária, as lendas, os mitos, apresentando ao povo, com linguagem mais elaborada, aquilo que já lhe pertence” (DIEGUES apud BERNARDET e GALVÃO, 1983, p.140). Pensa-se o nacional e o popular no Cinema Novo não apenas em termos de conteúdo, como se fazia até meados da década de 1950, mas também como um caráter que deveria estar contido na linguagem dos filmes. Em suas primeiras produções, buscam-se as “raízes culturais nacionais do povo” sobretudo no Nordeste, tido como “[...] lugar mítico para compreender a brasilidade e discutir a identidade nacional” (LUCAS, 2012, p.119). Justamente por meio da reelaboração dessas raízes, mencionada por Diegues, seria possível conscientizar o povo. Contraditoriamente, conforme assinalam Bernardet e O filósofo marxista italiano será novamente mencionado mais adiante, quando da aproximação entre seu pensamento e as ideias de Lina Bo Bardi. 105 Ao considerar a cultura popular dentro dessa lógica, Marilena Chauí manifesta a possibilidade de seu caráter ambíguo, aspecto trabalhado pela autora em suas análises. 106 A problemática do nacional e do popular também estava em pauta para cineastas de outros países da América Latina entre as décadas de 1960 e 1970, dentro de um movimento mais amplo, conhecido como Nuevo Cine Latinoamericano (NCL). Ver: BURTON (1990). 107 130 Galvão (1983), isso teria feito com que os filmes se elitizassem e não atingissem o povo, sendo esta uma das críticas ao Cinema Novo brasileiro – sobretudo aos primeiros filmes. Pensando na Caravana Farkas, há alinhamento com essa proposta, lembrando também que todos os 19 filmes da 2ª fase de produção foram realizados no Nordeste e, no caso de Paulo Gil Soares, também o documentário sobre o cangaço, ainda na 1ª fase. No entanto, conforme nos relatou Sergio Muniz em entrevista, a escolha em documentar a região teve muito mais a ver com uma facilidade de produção – já que Geraldo Sarno e Paulo Gil eram nordestinos, da Bahia, e já conheciam pessoas, lugares e temas – do que com uma predileção pelo Nordeste nos moldes do cinema ficcional. A ideia de Farkas, como já explicamos, era “mapear” o país, o que acabou não acontecendo. De toda forma, a aproximação é possível pelo resultado dos filmes, que se configuram como um crítico retrato social, econômico e cultural da região. De acordo com D´Almeida (2003), os documentários realizados no Nordeste têm a intenção de divulgar e preservar a cultura popular, problematizando-a: Os documentários partem do pressuposto de que o avanço dos meios de comunicação, na sociedade capitalista, implica a desintegração – desaparecimento ou transformação – da cultura popular e dos ‘valores tradicionais’. Apresentam, ao mesmo tempo, a visão romântica do popular, entendido como autêntico, ‘puro’, e a ilustrada, designando-o como rústico e primitivo. Não se chega a uma síntese e a cultura popular, ainda presente no mundo rural, é apresentada como algo em vias de extinção (D´ALMEIDA, 2003, p.135). O autor faz referência às visões “romântica” e “ilustrada” da cultura popular relatadas por Marilena Chauí (1986), que considera ter havido no Brasil – sobretudo na década de 1960, mas também em outros períodos – uma oscilação entre os dois pontos de vista, sendo os casos mais interessantes aquelas experiências que tentam uma “conciliação” de ambos, como parece ser a Caravana Farkas: “[...] a Razão ‘vai ao povo’ para educar sua sensibilidade tosca (eis o papel das vanguardas políticas), e o Sentimento ‘vai às elites’ para humanizá-las (eis o papel das vanguardas artísticas)” (CHAUÍ, 1986, p.21-22). Observando nos filmes como se dá a incorporação da cultura popular, essa “conciliação” – o que não significa ausência de contradições – fica mais 131 evidente, conforme veremos posteriormente nas análises de três documentários de Paulo Gil Soares. Antes, consideramos necessário discorrer sobre as ideias acerca do popular de uma figura citada pelos integrantes da Caravana como referência importante, explicitamente homenageada no filme A mão do homem, de Paulo Gil: a arquiteta italiana Lina Bo Bardi. Lina despertou na Bahia, e creio que um pouco pelo Nordeste, na minha geração, essa coisa da importância e do significado da arte popular, a arte popular como modelo, como geradora de formas para um design, para um processo de industrialização do país. Eu penso que esse era o núcleo do trabalho da Lina. Ela não pensava a arte popular como coisa estagnada, de museu, morta. Ao contrário, ela percebia a vitalidade dessas formas, a criatividade dessas formas. Há uma frase dela (eu me lembro com uma clareza absoluta, ela me dizendo isso): ‘Sob a pobreza e a miséria do povo nordestino tem uma riqueza de formas, única, e é uma pena que o país não se aperceba disso’. Esse era o objetivo dela. Era uma coisa vital, era uma coisa de aproximação vital mesmo. De não fazer que certas formas que vem do povo se percam no processo de desenvolvimento econômico, da industrialização. Sou de uma geração que tem vinculação com a questão nacional, a questão da identidade brasileira: Pra onde vai este país? Qual é a nossa responsabilidade? Enorme! O que se percebia é que havia um mundo em transformação, via-se com clareza que aquele processo da cultura popular estava em transformação, e que era necessário flagrar pela imagem alguma coisa daquele mundo, a gente precisava fazer alguma coisa até para preservar a imagem de certas formas. Qual é o objetivo? O objetivo é pesquisar, o objetivo é didático, é guardar, preservar, na imagem e no som (SARNO, 2006, p.21)108. Na declaração de Geraldo Sarno, além da interpretação que o cineasta faz das ideias de Lina Bo Bardi, sobre as quais falaremos adiante, temos o reconhecimento da arquiteta como figura que influenciou uma determinada geração. Lina foi uma das pessoas que participaram ativamente de um momento de efervescência cultural da Bahia, entre as décadas de 1950 e 1960, quando artistas e intelectuais, com afinidades políticas, ideológicas e estéticas, conviveram em Salvador, resultando em movimentos como o Cinema Novo e a Tropicália. Além de Lina, o filósofo português Agostinho da Silva, os artistas plásticos Mário Cravo e Carybé, o maestro alemão Hans-Joachim Koellreutter, o etnólogo e fotógrafo francês Pierre Verger, o diretor de teatro Martim Gonçalves, Vários documentários de Geraldo Sarno na Caravana Farkas, além de incorporarem a cultura popular como elemento estético, a tomam como temática diretamente. São exemplos Jornal do sertão (1970), que trata da literatura de cordel, e A cantoria (1970), que mostra o desafio entre dois repentistas nordestinos. As concepções de cultura popular para Sarno neste momento estão bastante vinculadas também às pesquisas realizadas pelo IEB (Instituto de Estudos Brasileiros) da USP, órgão que inclusive foi acionado pelo diretor e por Farkas em 1966 para coproduzir os filmes, o que não ocorreu. Sobre este aspecto na obra de Sarno, ver: SERRA (2013). 108 132 o crítico de cinema Walter da Silveira, entre outros, inspirariam com suas ideias e ações jovens como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rogério Duarte, Glauber Rocha, os já citados Sarno e Paulo Gil, e tantos outros. De acordo com Antonio Risério (1995): [...] o que ocorreu na Bahia, entre as décadas de 50 e 60, foi uma convergência excepcionalmente feliz. Numa cidade culturalmente forte, em termos populares, um governador e um reitor, principalmente este, resolveram investir na inteligência, nos campos humanístico e científico (não se deve esquecer que Edgard criou também, ao lado da Escola de Teatro e do Seminário de Música, a Escola de Geologia e o Instituto de Física). Formou-se, assim, o eixo Museu de Arte ModernaUniversidade da Bahia. As pessoas contratadas para coordenar esses trabalhos – de Agostinho da Silva a Lina Bo, passando por Martim Gonçalves e Koellreutter – levavam consigo informações fundamentais da modernidade estético-intelectual, incluindo aí o precioso repertório das experiências da avant-garde. Tais informações caíram em solo fértil – a juventude universitária baiana, movendo-se de modo livre e inventivo, num período em que a democracia e a confiança no futuro imperavam nas quatro partes do país. Por fim, em meio a essa juventude, despontariam novos artistas, capazes de imprimir direções inovadoras ao curso da produção estética e intelectual brasileira (RISÉRIO, 1995, p.144). Segundo Marina Grinover (2010), tal convergência foi alavancada por um cenário político oportuno, já que esses artistas maduros, de formação modernista, são convocados pela elite política e acadêmica de Salvador – esta centralizada na figura de Edgard Santos, reitor da Universidade Federal da Bahia – com o intuito de: [...] dar corpo teórico ao projeto de inclusão da Bahia no processo de desenvolvimento do Nordeste. Este plano político-cultural era harmonizado com as estratégias do governo federal de Juscelino Kubitschek, com suas propostas progressistas da construção de Brasília e do plano de Metas. O momento era da criação da SUDENE, presidida por Celso Furtado cujo objetivo era o desenvolvimento do Nordeste no caminho da industrialização; dos projetos da UNE de alfabetização e politização do sertão com a formação dos CPCs e das Ligas Camponesas. Neste ambiente progressista floresceram as ideias de Lina Bo Bardi de comunhão entre a arte popular e a indústria nacional (GRINOVER, 2010, p.3). São algumas das referidas ideias de Bo Bardi acerca da arte/cultura popular que nos interessam aqui, especialmente as amplificadas no período em que viveu em Salvador, entre 1958 e 1964, quando dirigiu o MAMB (Museu de Arte Moderna da Bahia), para o qual idealizou um projeto de museu educativo 133 que deveria promover o diálogo entre a cultura popular nordestina e a arte moderna e contemporânea. Em 1963, a arquiteta inaugurou o Museu de Arte Popular (MAP) dentro de uma nova sede do MAMB (antes ele ocupava o teatro Castro Alves), no conjunto arquitetônico Solar do Unhão, localizado no centro da capital soteropolitana, que foi restaurado por ela. A aproximação de “Dona Lina” – como era chamada pelos mais jovens – com alguns cineastas baianos se dá nesses anos. É preciso enfatizar a convivência da arquiteta com Glauber Rocha e Paulo Gil Soares, no final da década de 1950, na redação do jornal Diário de Notícias de Salvador, onde os dois trabalhavam e Lina escrevia uma coluna dominical (intitulada “Olho sobre a Bahia”), e nas filmagens de Deus e o diabo na terra do sol, já na década de 1960, apenas para mencionar duas circunstâncias. Para a exposição de abertura do MAP, intitulada Nordeste109, Lina escreveu o texto “Civilização do Nordeste”, sintetizando sua proposta de debate cultural: Esta exposição que inaugura o Museu de Arte Popular do Unhão deveria chamar-se Civilização do Nordeste. Civilização. Procurando tirar da palavra o sentido áulico-retórico que a acompanha. Civilização é o aspecto prático da cultura, é a vida dos homens em todos os instantes. Esta exposição procura apresentar uma civilização pensada em todos os detalhes, estudada tecnicamente (mesmo se a palavra técnico define aqui um trabalho primitivo), desde a iluminação até as colheres de cozinha, as colchas, as roupas, bules, brinquedos, móveis, armas. É a procura desesperada e raivosamente positiva de homens que não querem ser ‘demitidos’, que reclamam seu direito à vida. Uma luta de cada instante para não afundar no desespero, uma afirmação de beleza conseguida com o rigor que somente a presença constante duma realidade pode dar. Matéria prima: o lixo. Lâmpadas queimadas, recortes de tecidos, latas de lubrificantes, caixas velhas e jornais. Cada objeto risca o limite do ‘nada’, da miséria. Esse limite e a contínua e martelada presença do ‘útil’ e ‘necessário’ é que constituem o valor desta produção, sua poética das coisas humanas não-gratuitas, não criadas pela mera fantasia. É neste sentido de moderna realidade que apresentamos criticamente esta exposição. Como exemplo de simplificação direta de formas cheias de eletricidade vital. Formas de desenho artesanal e industrial. Insistimos na identidade objeto artesanal-padrão industrial baseada na produção técnica ligada à realidade dos materiais e não à abstração formal A exposição Nordeste foi dividida em duas partes. Uma que contemplava obras de artistas plásticos nordestinos já conhecidos e uma outra com cerca de 1.000 objetos coletados em feiras populares, como enfeites para casa, bules feitos de latas de manteiga, ex-votos, vasos, cestas, lamparinas, roupas. Ver: RUBINO (2002) e RODRIGUES (2008). 109 134 folclórico-coreográfica. Chamamos este Museu de Arte Popular e não de Folklore por ser o folklore uma herança estática e regressiva, cujo aspecto é amparado paternalisticamente pelos responsáveis da cultura, ao passo que arte popular (usamos a palavra arte não somente no sentido artístico, mas também no de fazer tecnicamente), define a atitude progressiva da cultura popular ligada a problemas reais. Esta exposição quer ser um convite para os jovens considerarem o problema da simplificação (não da indigência), no mundo de hoje; caminho necessário para encontrar dentro do humanismo técnico, uma poética. Esta exposição é uma acusação. Acusação dum mundo que não quer renunciar à condição humana apesar do esquecimento e da indiferença. É uma acusação nãohumilde, que contrapõe às degradantes condições impostas pelos homens um esforço desesperado de cultura. (BARDI, 1994, p. 34-39) [grifo original] Na interpretação de Silvana Rubino (2002), sobretudo a partir deste texto, há a sugestão de que a pobreza e seus objetos sejam apropriados política e esteticamente “[...] para fazer frente a um projeto de industrialização submisso e alienante” (RUBINO, 2002, p.191). Lina via nesses objetos que compuseram a exposição, oriundos da “pobreza e da miséria do povo nordestino”, uma “riqueza de formas”, conforme mencionou Geraldo Sarno em citação anterior. Rubino (2002) completa a análise: Para quem o discurso apropriado era então devolvido? Para o produtor daquele objeto, que se via exposto no museu, como Mestre Vitalino, considerado autenticamente popular, alçado à categoria de artista; e para a elite nordestina que certamente tinha uma ligação no mínimo ambivalente com seus setores pobres e seus objetos. Acusa-se, mas se estetiza; ou o contrário [...] Civilização nesse contexto era um conceito includente, que de um lado, apesar da advertência mantinha o caráter retórico da superioridade daqueles que eram civilizados e de outro, buscava despir essa conotação mergulhando na peculiar noção prática de cultura que é a cultura do modo de vida (RUBINO, 2002, p.192). Machado e Santos (2009) acreditam que o interesse de Lina era “[...] documentar a capacidade de invenção do povo para dobrar as barreiras da pobreza, em favor de sua sobrevivência” (2009, p.8). Os autores abordam outros textos da arquiteta sobre o popular e alertam para ambiguidades quanto a valoração de determinadas manifestações. É o caso da literatura de cordel, que aparece em “Arte popular nunca é kitsch” como “bonitinha” e vista de forma negativa por Lina: 135 A Arte Popular, julgada Kitsch pela classe ‘culta’, nunca é Kitsch: mesmo em casos extremos, ela é perfeitamente reversível. O verdadeiro Kitsch não é do povo, é da burguesia e é irreversível. A Literatura de Cordel, sob uma aparente revolta e violência, apresenta, na realidade, uma falsa imagem do homem do Sertão do Nordeste – simples e bondosa. Assim como a cerâmica ‘figurativa’, aparentemente irônica, de Caruarú. O homem do Sertão que sorri com bondade dos ‘doutores’, das autoridades, das leis e dos Senhores, simplesmente não existe: é uma produção ‘bonitinha’, que se repete ad usum dos visitantes, nacionais e estrangeiros, das feiras e dos mercados (BARDI, 1994, p.31-32). No texto, Lina valoriza os objetos utilitários, como colchas, roupas feitas com restos de tecidos, jogo de colheres de pau, que indicam a “capacidade de sobrevivência do povo nordestino”, retomando aspectos do texto para a exposição Nordeste. Apesar da crítica à literatura de cordel, considerando-a kitsch por ter sido incorporada pela “burguesia”, é sua referência, por exemplo, para produzir os cartazes da referida mostra e do filme Bahia de todos os santos (Trigueirinho Neto, 1960), com desenhos inspirados em xilogravuras de folhetos. Além disso, a própria exposição tinha um painel onde ficavam pendurados alguns deles. A partir dessas imprecisões, Machado e Santos (2009) tentam entender o que estava em pauta na concepção de popular da arquiteta: Sua conceituação de ‘popular’ possivelmente passava pela construção de uma produção alternativa – daí a necessidade de uma separação radical. Lina define radicalmente esse parâmetro: faz um corte incisivo entre produção positiva e negativa no terreno pantanoso dessa produção, os valorando a partir da relação social de cada objeto (MACHADO e SANTOS, 2009, p.7). [grifos nossos] Nos documentários da Caravana Farkas, o cordel é uma das manifestações mais recorrentes, o que não invalida aproximá-los das ideias de Lina Bo Bardi porque, para além de algumas incoerências entre suas colocações conceituais e suas práticas, como a mencionada, nos interessa perceber nos filmes como se dá aquilo que a arquiteta preconiza em torno do popular de maneira mais geral. Aspectos como a valorização e a preservação do que é produzido pelo povo, a vinculação dessa cultura a uma questão de classes, a necessidade do popular ser emancipado através da mediação do intelectual. Machado e Santos (2009), Rubino (2002) e Grinover (2010) apontam para a influência que Lina Bo Bardi teve do filósofo marxista italiano Antonio Gramsci – ela chega a citá-lo em alguns textos –, um dos fundadores do Partido 136 Comunista na Itália, convergindo com seu pensamento em torno do papel educativo da arte e sua concepção de cultura nacional-popular. Recorremos a uma citação mais extensa de Marilena Chauí (1984), que explica algumas noções para ele: Nacional como resgate de uma tradição não trabalhada ou manipulada pela classe dominante, popular como expressão da consciência e dos sentimentos populares, feita seja por aqueles que se identificam com o povo, seja por aqueles saídos organicamente do próprio povo, a cultura nacional-popular gramsciana possui um aspecto pedagógico que não pode ser negligenciado. Aliás, Gramsci vai muito longe nesta questão, pois declara que há uma diferença entre o intelectual-político e o intelectual-artista. O primeiro deve estar atento a todos os detalhes da vida social, a todas as diferenças e contradições e não deve possuir qualquer imagem fixada a priori. Em contrapartida, o segundo, justamente por sua função pedagógica, deve fixar imagens, generalizar, descrever e narrar o que é e existe, situando-se num registro temporal diferente daquele do intelectual-político que visa o que deve ser e existir, o futuro (CHAUÍ, 1984, p.17-18)110. Ao tomar objetos populares para expô-los em um museu, Lina promove ao mesmo tempo a valorização dos saberes populares e obrigatoriamente os modifica – Silvana Rubino (2002) fala em estetização –, já que é preciso catalogar, reorganizar, pensar em uma cenografia e “criar uma atmosfera” para que se faça uma releitura dos objetos. Machado e Santos (2009) consideram os critérios de organização de Lina provenientes de um “olhar moderno” e exemplificam: Se numa sala de milagres a massa disforme de objetos amontoados alude ao gesto de agradecimento pela graça alcançada, quando os mesmos são reordenados e expostos em estantes, ganham mais destaque os critérios utilizados para esta organização e os aspectos formais dos objetos, como a economia de gestos utilizada em sua execução e a resultante concisão formal (MACHADO e SANTOS, 2009, p.5). Trata-se do encontro entre dois saberes, do outro popular e da arquiteta, que também se dá quando elementos da cultura popular são incorporados aos documentários de Paulo Gil Soares – o que poderia ser extrapolado para realizações de outros diretores da Caravana Farkas, com diferentes nuances. É necessário colocar que as reflexões de Gramsci foram feitas no contexto do Estado fascista italiano, situação bem diferente do Brasil do início dos anos 1960. 110 137 Desse encontro, que não ocorre sem dissonâncias, é gerado um novo saber. Conforme sinaliza D´Almeida (2003): O tema básico que perpassa os filmes [da Caravana Farkas] é o da cultura de uma classe outra, que está no passado e não tem lugar no aqui e agora da modernidade. A alteridade e a representação do outro estão traspassadas pelas diferenças de classe, e o caráter de resistência cultural e política das manifestações de cultura popular, na visão dos cineastas, se perde na aparência de um mundo cujo destino já está traçado: é a extinção. Os filmes documentários, por outro lado, tornam-se o espaço de confronto das diferentes culturas e de diálogo entre elas. Novos significados surgem nesse conflito, atinentes à forma como o cinema curto registra as manifestações da cultura popular de uma determinada região, numa determinada época (D´ALMEIDA, 2003, p.4). [grifo original] Antes de traçarmos alguns paralelos com os filmes, cabe citar o trecho de outro texto da arquiteta, “Por que o Nordeste?”, uma espécie de balanço dos anos em que viveu na Bahia, possivelmente escrito em 1980, de acordo com pesquisadores de sua obra: [...] Estas notas são apenas uma documentação. Dezesseis anos se passaram do fim de nossa tentativa de realizar (em condições excepcionalmente favoráveis) uma experiência popular direta. No Nordeste, no Polígono da Sêca. Hoje, no balanço da falência cultural, quando as premissas de toda uma cultura já respeitada atingem quase o ridículo, é preciso aceitar sem medo a verdade. Nem todas as culturas são ‘ricas’, nem todas são herdeiras diretas de grandes sedimentações. Cavocar profundamente numa civilização, a mais simples, a mais pobre, chegar até suas raízes populares é compreender a história de um País. E um País em cuja base está a cultura do Povo é um País de enormes possibilidades (BARDI, 1994, p.20). [...] [grifo original] Conforme apontam Machado e Santos (2009), Lina faz uma associação entre identidade nacional e “raízes populares”. Há a ideia de “descobrir o país” por meio de sua cultura, sendo possível uma analogia tanto com aquele depoimento do cineasta Carlos Diegues, que resume uma das posturas do Cinema Novo, quanto com a proposta da Caravana Farkas. Nossas reflexões a partir de então se dão em torno de uma questão mais específica: como algumas marcas do pensamento de Lina Bo Bardi acerca do popular se manifestam nos documentários de Paulo Gil Soares? 138 Uma aproximação entre as práticas e ideias da arquiteta e o cinema foi feita por Marina Grinover (2010), no artigo “Lina Bo Bardi e Glauber Rocha: diálogos para uma filosofia da ‘práxis’”, em que relaciona Lina Bo Bardi com o cineasta Glauber Rocha, propiciando um debate a partir da análise das trajetórias e escritos dos dois artistas, mais do que das obras em si. Nossa proposta, diferentemente, é um olhar para dentro dos filmes de Paulo Gil Soares. Falemos de A mão do homem, que explicitamente é dedicado à arquiteta. O próprio título remete à exposição A mão do povo brasileiro, realizada por Lina em 1969 – mesmo ano do filme –, para inaugurar a nova sede do Masp (Museu de Arte de São Paulo), com parte do material exibido anos antes em Nordeste, no MAP de Salvador111. O documentário tem como tema o artesanato popular e não se limita a mostrar como são feitos os objetos pelos artesãos, colocando também os problemas que eles enfrentam: a industrialização como ameaça à produção manual, o pouco ganho com o trabalho, a dependência do comerciante. Pode ser lido também como uma “acusação”, retomando o que Lina afirmou ser a exposição Nordeste, no texto que escreveu para sua abertura. Algumas passagens da locução repetem seus termos: “primitivo” (ouvido bastante em outros filmes também), “produção relacionada ao útil e necessário”, “uma poética não criada pela mera fantasia”112. Os artesãos abordados por Paulo Gil Soares são a corporificação dos “homens que não querem ser ‘demitidos’, que reclamam seu direito à vida”, referidos pela arquiteta. Valoriza-se o saber desses homens, transmitido de geração para geração, e dois são entrevistados em suas casas. Quase metade do filme se detém em mostrar como são confeccionados a sela e o chapéu de couro; também registra o que eles têm a dizer sobre o trabalho. Embora afirmem viver em condição precária, não falam em abandonar o ofício e prezam pela qualidade das peças que produzem – o primeiro artesão entrevistado fala, por exemplo, que não gostou da sela que fez –, ecoando ainda outras palavras de Lina, já citadas anteriormente: “Uma luta de cada instante para não afundar no desespero, uma afirmação de beleza Em 1969, o Museu de Arte Popular de Salvador não funcionava mais – ele durou apenas dois anos –, pois, após o golpe militar de 1964, o Exército ocupou o Solar do Unhão. Naquele ano, Lina Bo Bardi voltou para São Paulo, primeira cidade onde morou no Brasil, sendo responsável por projetos arquitetônicos de importantes espaços culturais, como o do atual prédio do Masp, na Avenida Paulista; do Sesc Pompeia, na zona oeste; do teatro Oficina, na região central. 111 112 Ver transcrição da passagem da locução no capítulo 1, item 1.4. 139 conseguida com o rigor que somente a presença constante de uma realidade pode dar”. Essa realidade é a miséria, denunciada pelo filme em todos os processos que resultam nas peças de couro: da retirada da pele do animal à fabricação manual feita pelos artesãos. Na apresentação da cidade de Umburanas (então vila), na Bahia, onde o carro-chefe da economia é o artesanato de couro, não há luz, água encanada, esgoto ou escolas, enfatiza o “diretor-locutor”. Denuncia-se a situação precária, mas o documentário não aponta possíveis soluções para que a produção artesanal consiga enfrentar a industrialização. Inclusive, reiterase o fato dos próprios artesãos consumirem o produto industrializado por ser mais barato que o manual, pesando a ideia de um ciclo permanente para eles, do qual não há saída. O filme mostra aspectos do que Lina escreve sobre o artesanato brasileiro em “Arte popular e pré-artesanato nordestino”: Não existe um artesanato brasileiro, existem produções esporádicas. O Brasil será obrigado a enfrentar o problema da verdadeira industrialização diretamente. As corporações artesanais não entram em sua formação histórica. No Nordeste existe, se queremos continuar a usar a palavra artesanato, um pré-artesanato, sendo a produção nordestina extremamente rudimentar. A estrutura familiar de algumas produções como, por exemplo, as rendeiras do Ceará ou os ceramistas de Pernambuco, podem ter uma aparência artesanal, mas são grupos isolados, ocasionais, obrigados pela miséria a este tipo de trabalho, que desapareceria logo com a necessária elevação das rendas do trabalho rural (BARDI, 1994, p.26). [grifo original] É relevante citar uma declaração do diretor, em entrevista feita por Miriam Alencar e publicada em 1968 no Jornal do Brasil, em que aspectos relativos ao povo e à cultura popular aparecem evidenciados. Embora Paulo Gil Soares não mencione Lina Bo Bardi diretamente, como fez Geraldo Sarno, percebe-se convergências entre suas ideias: Sem pretensão, o cineasta é uma testemunha da vida, no seu sentido mais extenso – testemunha participante e não mero assistente; o cineasta deve cobrir acontecimentos passados e presentes, devendo elaborar essa matéria com a habilidade e a astúcia de um artesão para que êsse trabalho possa ser jogado para a frente e vir a cobrir um outro tempo: o futuro, do qual êle deve também ser o construtor. Parece-me que o cineasta do mundo-sub deve ser forçosamente o representante da cultura de seu povo, isto é, no caso específico do Brasil, deve debruçar-se sôbre sua rica, vária e fecunda sapiência popular e 140 arrancar daí matéria-prima para seu trabalho, sem assustar-se com os maneirismos impostos pelas artes importadas. A partir daí, então, começamos a sentir a exata necessidade do cinema de pesquisa para que o cineasta possa dispor de todos os meios desejados de conhecimento do seu povo e possa expressá-los. No meu caso, sou fruto de costumes rurais baianos. Usar simplesmente todo êsse vasto material que povoa meu mundo daria coisas charmosas, e como o que desejo é representá-lo como uma cultura de raiz, sou obrigado a conscientizar essa cultura, desmistificando-a em pesquisas, para transfigurá-la (ALENCAR, 1968, p.8) [grifos nossos]. Mesmo que o diretor afirme não haver pretensão em suas afirmações, elas conjecturam o papel do cineasta de um país subdesenvolvido (no caso, o Brasil): alguém que, responsável por construir o “tempo futuro” e acima do povo, deve representá-lo, reelaborar sua “cultura de raiz” e conscientizá-la. Isso não significa a desvalorização de manifestações culturais populares, mas a necessidade de uma mediação para que se revele a “fecunda sapiência” inerente a elas. É preciso mencionar que Paulo Gil Soares dá seu depoimento a Miriam Alencar quase quatro anos depois de ter filmado Memória do cangaço – antes de ter dirigido os demais documentários na Caravana – e no contexto de exibição do primeiro longa-metragem de ficção que dirigiu, Proezas do satanás na vila do leva-e-traz (1967), cuja estruturação apoia-se, segundo ele, em “[...] um estudo de narrativa oral dos cantadores de feira e contadores de histórias ao pé da fogueira ou de alpendre da fazenda” (Ibidem). Observando os documentários dirigidos por Paulo Gil na 1ª e 2ª fases da Caravana Farkas, percebe-se a valorização da cultura popular que, necessariamente, é modificada no interior do filme, ganhando novos sentidos. As palavras de Paulo Gil apontam, assim como as de Lina em texto que citamos anteriormente, para a associação entre nacional e cultura popular, na busca por uma “cultura de raiz”. Ele afirma a necessidade de utilizar “matériaprima” que vem do povo como forma de não ceder aos “maneirismos” das “artes importadas”, ou seja, do cinema estrangeiro. Um debate essencial para o Cinema Novo que, conforme já colocamos, tinha a intenção de tomar o popular tanto no conteúdo quanto na forma para fazer um cinema popular que, consequentemente, seria um cinema nacional. Nos documentários da Caravana Farkas, particularmente os realizados por Paulo Gil Soares, a cultura popular – a literatura de cordel, a música de pífanos, os aboios dos vaqueiros, os cantos de orixás – é ao mesmo tempo 141 documentada e integra a linguagem dos filmes, tornando-se elemento estético que irrompe múltiplos significados. Não há uma rejeição do que vem do povo e, mesmo que o cineasta fale em “conscientizar” essa cultura, há o reconhecimento de um valor intrínseco a essas manifestações, reinterpretadas no interior do discurso fílmico: empresta-se a “sapiência popular” para suscitar discussões em torno do rural/urbano, do arcaico/moderno, do explorador/explorado. Tomemos o exemplo de um material popular que aparece reinterpretado num dos documentários de Paulo Gil Soares. Na trilha musical de Erva Bruxa há dois cantos de orixás que acompanham imagens de homens e mulheres trabalhando – a maioria negros – em condições precárias nos armazéns de fumo baianos. O cineasta pega um elemento do ritual religioso da cultura afro, com forte presença na Bahia, mas não necessariamente conhecido por aquelas pessoas filmadas, transformando-o em leitmotiv114: sempre que ouvimos a música, vemos os trabalhadores nos armazéns que, conforme denuncia o filme, são vítimas do constante desemprego e das “doenças profissionais” ocasionadas pelo manuseio do fumo sem proteção. Cantos aos orixás são entoados em cerimônias religiosas africanas, manifestações que foram trazidas às Américas pelos negros traficados como escravos – no caso do Brasil, desde 1715 –, sendo sua preservação uma forma de resistência às humilhações e imposições dos senhores de escravos em âmbitos diversos, do trabalho à religião. Pierre Verger (2000) afirma que a Bahia é um dos poucos lugares onde as cerimônias africanas – nesse estado brasileiro denominadas de candomblé – foram conservadas pelos descendentes dos negros libertos da escravidão, amparando-os em momentos de dificuldade. Ele elucida que, durante as cerimônias, os deuses (orixás) evocados pelos cantos “visitam” o corpo de seus adeptos. Em outras palavras, há o transe. O autor sugere que o ritual religioso é emancipador: “De empregadas domésticas e lavadeiras humilhadas, de carregadores e operários mal pagos, eles se tornam Leitmotiv é o uso de temas musicais curtos ou ideias musicais que se repetem, introduzido por Richard Wagner em suas composições. No caso dos filmes, o leitmotiv pode aparecer associado a um personagem, um lugar, um objeto (APPEL e DANIEL apud KASSABIAN, 2001, p.50). 114 142 filhos e filhas de Deus, respeitados, admirados, cortejados” (VERGER, 2000, p.24). A associação dos cantos de orixás às imagens dos operários do fumo na Bahia em Erva Bruxa retoma, em nossa leitura, a significação que expusemos acima. Trata-se de uma manifestação atrelada à escravidão e que no documentário é justamente utilizada como trilha musical das sequências que mostram trabalhadores nos armazéns em condições desfavoráveis, como se os escravos de outrora correspondessem agora àquelas pessoas. Retirados do ritual religioso, os cantos acompanham imagens de trabalho que são um retrato do subdesenvolvimento, sendo factível o paralelo com Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), filme no qual Paulo Gil Soares fez os cenários e os figurinos, que também conta com a música do candomblé. No filme de Glauber Rocha, ela aparece já na abertura do longa-metragem, acompanhando imagens aéreas do mar, em alusão ao país mitológico de Eldorado, ao “Terceiro Mundo”115. A relação dos filmes de Paulo Gil Soares com a cultura popular nordestina tem variações, é claro, diante das proposições de Lina Bo Bardi, entrando em jogo outras referências. Desta forma, o que tentamos apontar até aqui foram conexões entre algumas reflexões de uma arquiteta estrangeira que via uma potência nas formas e materiais da cultura popular do Nordeste, pensando em uma maneira de incorporá-los ao design industrial, e a prática de um cineasta baiano que apontou como necessária a apropriação em seus filmes de elementos dessa cultura, com a qual conviveu desde sempre – Paulo Gil Soares é “fruto de costumes rurais baianos”, conforme ele próprio afirmou na entrevista ao Jornal do Brasil, mencionada neste capítulo. Nosso próximo passo será perceber, em três documentários do diretor, como materiais da cultura popular, notadamente a poesia da literatura de cordel, tornam-se elemento de tanta potência para suas narrativas quanto aqueles objetos expostos no museu para Bo Bardi. Cf.: XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Cosac Naif, 2013. 115 143 3.2 – Vozes da cultura popular: cordel, aboios e canções Nas análises que se seguem nossa atenção será voltada aos momentos em que três documentários de Paulo Gil Soares incorporam materiais extraídos da cultura popular. A ênfase será dada à poesia tomada dos folhetos da literatura de cordel e manifestada com mais frequência pela voz over do “diretor-locutor” ou dos cantadores populares116. A escolha justifica-se porque, partindo da constatação de que a fala tem grande peso no conjunto de filmes do diretor, perceber o que diz a poesia popular é oportuno para observar o conflito entre saberes – o popular e o do cineasta – ao qual nos referimos no início deste capítulo. Examinaremos situações em que este elemento suscita uma leitura que acreditamos romper com o “modelo sociológico” de documentário proposto por Bernardet (2003). Começaremos pelo filme que utiliza a poesia popular de forma mais pontual e terminaremos com aquele que dá maior espaço a ela na narrativa, nesta ordem: Memória do cangaço, Vaquejada e O homem de couro. A respeito deste último, faremos uma análise mais abrangente de sua trilha musical, que se destaca entre os demais. Entendemos que por incorporarem a poesia popular, os três documentários podem ser lidos como obras intertextuais, tomando o conceito de intertextualidade de Gerard Genette (2006), advindo da literatura: [...] uma relação de co-presença entre dois ou vários textos, isto é, essencialmente, e o mais frequentemente, como presença efetiva de um texto em um outro. Sua forma mais explícita e mais literal é a prática tradicional da citação (com aspas, com ou sem referência precisa) [...] (GENETTE, 2006, p.8). Além da poesia, cinco documentários de Paulo Gil Soares tomam do cordel xilogravuras, utilizadas pelos artistas plásticos Lygia Pape (ela trabalhou apenas em Memória do cangaço) e Lênio Braga para criarem as cartelas de apresentação dos filmes, fornecendo ao espectador a materialidade de um universo cultural que tanto introduz a temática quanto comenta as funções técnicas dos títulos. Por exemplo, há xilogravuras com desenhos de bois nas cartelas de apresentação de A morte do boi; de vaqueiros com cavalos em Vaquejada e O homem de couro; de um padre com pessoas em volta em Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges; de alguns cangaceiros em Memória do cangaço. Com relação ao comentário que os desenhos fazem das funções técnicas, dois exemplos: quando as cartelas indicam informações sobre a trilha musical, há desenhos de violeiros; no filme sobre o cangaço, a xilogravura que acompanha o letreiro da produção executiva é a de um padre entregando uma chave a um cangaceiro. 116 144 Mesma abordagem é feita por Sylvia Nemer (2007) ao tratar das relações entre o cordel e dois filmes de Glauber Rocha, Deus e o diabo na terra do sol (1964) e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), nos quais Paulo Gil foi colaborador. A autora baseia suas análises na ideia de “migrações culturais”: “[...] o processo de migração da literatura de cordel do seu ambiente original, caracterizado pela oralidade, para uma realidade estética na qual predomina a imagem” (NEMER, 2007, p.25)117. Ao contrário das duas ficções de Glauber, nos documentários que estudamos não é o cineasta quem escreve as canções populares ou o texto em verso a ser recitado pela locução, baseado na estrutura da literatura de cordel. Os materiais são “emprestados” de seu “ambiente original” e incorporados ao discurso documentário do realizador, ganhando novos significados118. Trata-se de uma “apropriação da apropriação”, o que a torna ainda mais instigante. Conforme explica Jerusa Pires Ferreira (1993), algumas poesias populares do Nordeste que encontramos nos folhetos de literatura de cordel remontam à literatura culta em prosa das novelas de cavalaria ibéricas (carolíngias e arturianas) do século XVIII. O que ocorre é uma adaptação feita pelo poeta popular de temas das novelas europeias, estampando a maneira de dizer e a realidade nordestinas, nas quais recorrentemente o vaqueiro e o cangaceiro são os heróis. Por sua vez, tanto o cordel como a literatura culta europeia originam-se de tradições orais: respectivamente, das cantorias e dos desafios119, e do trovadorismo oral da Idade Média. Ao registrar essa manifestação e incorporá-la enquanto elemento estético, o cineasta introduz em seu filme interpretações da realidade nordestina feitas pelos poetas populares e dirigidas a um público que se equipara a este em condição social. A afirmação da autora acerca do predomínio/superioridade da imagem no cinema é questionável, sendo uma discussão que não nos cabe no momento. 117 Parece haver uma única exceção neste sentido: a canção de Memória do cangaço, sobre a qual falaremos adiante. 118 De acordo com Cascudo (1984), o desafio é uma espécie de “luta” entre dois cantadores, em que a proeza está em continuar os versos do adversário, seguindo a mesma métrica rítmica, como registra o documentário A Cantoria (1970), de Geraldo Sarno. 119 145 Em termos de ‘cultura letrada’, estes poetas são privilegiados frente ao seu público, embora compartilhe com ele da mesma cultura de tradição oral e do mesmo sistema de crenças e valores. Como homens do povo, através de sua poesia fizeram-se mediadores entre o rural e o urbano, o litoral e o sertão, a cultura de tradição oral e a cultura escrita (TERRA, 1983, p.38). É apropriada, portanto, uma narrativa preexistente, escrita por um “homem do povo”, alguém que não pertence ao universo do cineasta, do intelectual. Daí falarmos em conflito de saberes. Há uma relação ambígua, pois, por outro lado, é o cineasta quem seleciona os materiais populares e os organiza no discurso fílmico. A mediação aqui é de outra ordem. Os filmes tratam do universo sertanejo nordestino, mas atingem um público que coincide com a esfera do realizador. Sabemos que a ideia de Farkas era vender os documentários para escolas e exibi-los na televisão, mas a produção acabou circulando em cineclubes, faculdades e festivais de cinema. O cordel ainda pode ser compreendido na qualidade de fenômeno midiático popular, como defende Vilma Quintela (2012)120. Conhecido como o “jornal do sertão”121, seus versos eram lidos nas fazendas e nas cidades, sendo uma das poucas fontes de informação e lazer do sertanejo nordestino até o início do século XX, lembrando que boa parte da população era analfabeta. Falemos dos filmes. Nenhum deles informa o nome, a autoria ou a origem das poesias populares por eles apropriadas, com exceção dos versos escritos por Lampião, anunciados como tal pela locução em Memória do cangaço. Neste documentário, os versos populares aparecem sob três formas: na canção improvisada pelos violeiros João Santana Sobrinho e José Canário, sobreposta às imagens do coronel Zé Rufino; na narração em voz over de Paulo Gil Soares que recita trechos extraídos do cordel e os mencionados versos de Lampião para acompanhar imagens de arquivo de seu bando, filmadas na década de 1930 por Benjamin Abraão; finalmente, no letreiro que é colocado sobre o último plano do No artigo “Particularidades do cordel como fenômeno midiático popular”, a autora aponta para os diálogos entre o cordel e as mídias contemporâneas, como o jornal, o rádio, a televisão e a internet. 120 Título homônimo do documentário de Geraldo Sarno, de 1970, que explica o ciclo dessa produção popular: a tradição oral é impressa nos folhetos, retorna oralmente à voz do cantador e novamente é impressa nos folhetos. Por esse motivo, ainda que tentemos apontar quem escreveu as poesias, fica difícil uma delimitação tão precisa de seus autores. 121 146 coronel caminhando de costas, “saindo de cena”, em direção a uma plantação de sua fazenda. A canção apresenta Zé Rufino ao espectador, poupando a locução de cumprir esse papel e faz comentários carregados de ironia sobre o personagem que, como vimos no capítulo anterior, é permeado por ambiguidades. Os versos aparecem quando vemos o coronel pela primeira vez, caminhando em direção à câmera, por volta dos 9 minutos: “Aí vem José Rufino / Perseguindo o cangaceiro / Que é um homem destemido / No Nordeste brasileiro / Sujeito das pernas moles / E tem um dedo ligeiro”. A música retorna nos planos finais do filme: “O coronel Zé Rufino / Vai voltar pra o Sertão / Descansando a sua vida / E já guardou o mosquetão / Hoje é um homem pacato / Nos entre lãs do Sertão”. Mais do que descrever o que estamos vendo (Zé Rufino chegando e indo embora), a música acrescenta algo que não está nas imagens, ajudando na construção do principal personagem do filme, caracterizando-o contraditoriamente como “destemido” e “sujeito das pernas moles”. Cabe notar que a letra da canção entra no jogo entre passado/presente realizado pelo documentário: primeiro, fala de Rufino como perseguidor de cangaceiros remetendo à primeira metade do século XX; depois, como “homem pacato” que guardou sua arma e descansa no Sertão no tempo presente do filme (década de 1960). Consideramos que a canção assume nesses dois momentos o papel de “locutor auxiliar”122, lembrando o que ocorre com a música em Viramundo, de Geraldo Sarno. No entanto, há diferenças notáveis. Em Memória do cangaço, os intérpretes são populares, ou seja, estão mais próximos da maioria das pessoas retratadas pelo documentário, da “experiência”; no filme de Sarno, a música é de Caetano Veloso, a letra de Capinam e a voz de Gilberto Gil que, apesar de empregarem a mesma métrica rítmica do cancioneiro popular, não fazem parte daquele universo. A letra da canção em Viramundo é uma “instância verbal generalizadora” (BERNARDET, 2003, p.20), cantada em 1ª pessoa, que Embora Bernardet (2003) tenha empregado o termo para se referir ao papel desempenhado pelo empresário em Viramundo, considerando-o semelhante ao locutor devido à sua posição de poder e distância social dos demais entrevistados, acreditamos que a canção também pode ser tratada como tal pela função que exerce na narrativa, ainda que apresente contradições, conforme alertado pelo próprio autor. 122 147 contribui para reforçar o que o locutor diz sobre os migrantes nordestinos; já no filme de Paulo Gil Soares, trata de um personagem em particular, é cantada em 3ª pessoa e faz comentários sobre Zé Rufino de forma irônica, caráter bem diferente da locução didática e assertiva do diretor123. São instantes em que a música é o único material sonoro que acompanha as imagens, exigindo mais atenção do espectador do que uma “música de fundo”. Trata-se do que Anahid Kassabian124 (2001), autora que propõe algumas ferramentas para analisar a música em filmes, chama de “continuum de atenção”, ou seja, o nível de atenção que um determinado material musical pode demandar para o espectador. Conforme veremos adiante, as canções nos outros dois documentários abordados também se comportam desta maneira, trazendo diferentes implicações para suas narrativas. Voltando ao filme, a poesia popular é ainda tomada pela locução, que deixa de funcionar como “voz de Deus” para mimetizar um poeta em três ocasiões. Em uma delas (a partir de 24’10’’), versos escritos por Lampião misturam-se às informações históricas, reinterpretando o episódio da morte do cangaceiro; no plano imagético, fotografias, mapas e as imagens filmadas por Benjamin Abraão na década de 1930. Enquanto Lampião se aproxima da câmera e a encara mostrando um facão, ouvimos: Meu rifle atira cantando / Num compasso assustador / Faz gosto brigar comigo / Porque sou bom cantador / Enquanto meu rifle trabalha / Minha voz longe se espalha / Zombando da própria dor. Meize Lucas (2012) avalia: “As imagens deixam de ser ilustrações para ‘ganharem’ voz. Os versos funcionam como um relato, uma memória dos eventos vividos” (LUCAS, 2012, p.209). Ampliando a afirmação da autora, consideramos pertinente o fato do eu-lírico dos versos ser o próprio Lampião. Na impossibilidade do cangaceiro dar um depoimento no filme, eles substituem sua fala, num jogo entre o concreto das imagens e o imaginário da poesia. Da Embora não possamos afirmar com certeza, o roteiro de Memória do cangaço dá indícios de que os versos da canção foram escritos por Paulo Gil Soares e apenas improvisados musicalmente pelos violeiros. 123 Mesmo que o interesse de Anahid Kassabian seja filmes de ficção hollywoodianos das décadas de 1980 e 1990, suas ferramentas de análise dialogam com os Estudos Culturais e de recepção, o que acreditamos ser também eficaz para analisar a música em documentários. 124 148 objetividade de uma narração didática e de fora da “experiência” diante dos fatos, os versos deslocam o documentário para a subjetividade poética de quem deles participou, transformando o discurso histórico. A partir da incorporação da poesia escrita por um cangaceiro, rompe-se com a visão única acerca do tema – de que o cangaceiro é bandido ou herói –, auxiliando no que o diretor afirmou ser a pretensão de seu filme: “desmistificar o cangaço” (AYMORÉ, 1965, B5). Esse elemento configura-se, deste modo, como uma das brechas para ler Memória do cangaço para além da chave do “documentário sociológico”. Nos interessa tratar de mais uma situação. No último plano do filme, vemos o coronel Zé Rufino de costas andando em sua fazenda, como que “saindo de cena”. Sobre sua imagem, um letreiro com os seguintes versos encerra o filme: “Eu desejava senhores / Fazer uma estoria exata / Mas como devem saber / Nem tudo não se relata... / E se eu souber esquecer / Muita vida vou viver...”. Tratase de um trecho modificado do cordel “Visita de Lampião a Juazeiro”, do poeta popular José Cordeiro, que funciona como um comentário metalinguístico, ou seja, a respeito do próprio filme125. É como se o próprio cineasta, a “voz do saber”, dissesse aquelas palavras aos espectadores, assumindo que o que acabamos de assistir é uma interpretação do real, não uma “estória exata”. Coloca-se em dúvida o próprio documentarista e o que foi transmitido, assim como ocorre, ainda que em outros termos, na sequência com Dadá, sobre a qual comentamos no capítulo 2. Em nossa leitura, a partir do que propõe Bernardet (2003), nesse instante de reflexividade provocado pela apropriação dos versos da poesia popular, o documentário assume tratar-se de um discurso sobre o real. Manifesta-se, mesmo que não de maneira exacerbada como propõe o autor, o primeiro e o terceiro elementos, no nível da linguagem, que ele considera indicativos de uma ruptura com o “modelo sociológico”: [...] deixar de acreditar no cinema documentário como reprodução do real, tomá-lo como discurso e exacerbá-lo enquanto tal; quebrar o fluxo da montagem audiovisual e desenvolver uma linguagem baseada no fragmento e na justaposição; opor-se à univocidade e trabalhar sobre a ambiguidade (BERNARDET, 2003, p. 217) [grifos nossos]. Os versos correspondentes de José Cordeiro, que encontramos no folheto de cordel: “Eu desejava, leitores / Fazer uma história exata / Mas como devem saber que nem tudo se relata / Mas para ver Lampião / Pobre não tinha razão / Só a tinha os de gravata”. Disponível na Cordelteca: http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=Cordel&PagFis=56834 125 149 Não estamos, com isso, negando a defesa que o filme faz do “outro de classe”, especificamente do sertanejo nordestino, por meio do tema do cangaço, movimento histórico que se propõe a investigar. Há, de fundo, a ideia do intelectual como porta-voz desse outro, “povo”, e nisso pesa um tom de superioridade no discurso fílmico. Contudo, nos parece que há brechas dessa univocidade, um “abaixar o tom” (RAMOS, 2008, p. 399). Também não estamos fazendo um juízo de valor, propondo que um “documentário sociológico” é bom ou ruim, mas consideramos Memória do cangaço um exemplo profícuo para colocarmos em questão a ideia de uma certa lógica evolutiva no documentário brasileiro, detendo-nos em análises que levam em conta as especificidades de cada título, em vez de generalizações. Uma outra leitura para aqueles versos modificados da poesia popular seria associá-los a Zé Rufino, como se fossem seu pensamento, justamente por acompanharem sua imagem, quando já não mais ouvimos sua voz, sendo ele o principal personagem entrevistado no filme. Convém lembrar que o coronel é desmentido duas vezes: quando troca a data da morte de Corisco e quando conta sua versão do embate com o cangaceiro, situação que se relaciona tanto à impossibilidade de uma “estória exata”, quanto ao aspecto da memória que conduz o documentário, suscitada nos últimos versos: “E se eu souber esquecer.../ Muita vida vou viver”. Quando incorporada pelo documentário, a poesia popular é transfigurada e irrompe múltiplos significados, não mais correspondendo ao sentido dado nos folhetos de cordel126. Ao observar como se comporta o canto popular em alguns filmes (ficcionais e não ficcionais) chilenos da década de 1970 e o uso da literatura de cordel em documentários da 1ª e 2ª fases da Caravana Farkas – entre eles Memória do cangaço –, Ximena Vergara (2014) considera: [...] tanto no caso chileno como no brasileiro o cinema toma rotas rurais, nordestinas, e advoga pelos trabalhadores através de musicalidades tradicionais. Deste modo, incorporam, documentam ou recriam formas Em “Visita de Lampião a Juazeiro”, por exemplo, os versos impressos no folheto narram a visita que Lampião fez à cidade de Juazeiro do Norte, no Ceará, na década de 1920, tendo como eu-lírico o poeta. 126 150 da poesia popular, que afastam estes filmes de perspectivas pitorescas (VERGARA, 2014, p.100)127. Em nosso caso, as poesias populares não são tomadas apenas musicalmente, mas também recitadas como parte da locução, que nesses momentos desloca-se de uma objetividade didática e assertiva, bastante presente em Memória do cangaço, para uma subjetividade poética. A conclusão de Vergara (2014), ainda, vai ao encontro de uma perspectiva lançada por Claudia Mesquita (2006) a respeito da música nos documentários da Caravana Farkas: Creio que o uso da música reflete uma ‘não coincidência’, uma explicitação do lugar do realizador, de modo que os filmes, em seu discurso, acabam por evidenciar um diálogo (ou um confronto) entre culturas distintas. A colisão da perspectiva do realizador com aquela dos sujeitos da experiência, com seus trabalhos e saberes, resulta numa tensão criativa que, em seus melhores momentos, os filmes da Caravana conseguem expressar – notadamente através da trilha sonora (MESQUITA, 2006, p.8). A autora encaminha uma discussão sobre a presença da cultura popular nesses filmes a fim de apresentar visão distinta da proferida por Jean-Claude Bernardet (1975) em “O Nordeste congelado pelo cinema”, artigo no qual ele critica alguns documentários brasileiros, incluindo os produzidos por Farkas, afirmando que fazem uma “desapropriação de imagens e sons tirados da cultura popular” porque não são realizados por aqueles que a produzem nem os atinge como público: não seriam filmes de, mas sobre cultura popular. Segundo Bernardet (1975), os documentários não problematizariam estas questões, apresentando-se como “defensores da cultura popular, tentando coincidir com seus problemas” – daí Claudia Mesquita (2006) falar numa “não coincidência”. Para nós, concordando com esta autora, interessa mais perceber de que modo a poesia popular – presente na música, na fala do locutor e, no caso do documentário sobre o cangaço, também nos letreiros finais – dialoga com outros elementos nos filmes, mesmo admitindo que estes são sobre cultura Tradução nossa para: “[...] tanto en el caso chileno como en el brasileiro el cine toma rutas campestres, nordestinas, y aboga por los trabajadores mediante musicalidades tradicionales. De este modo, incorporan, documentan o recrean formas de la poesía popular, que alejan a estos filmes de perspectivas pintoresquistas” (VERGARA, 2014, p.100). 127 151 popular, cujas manifestações necessariamente são transformadas quando apropriadas pelo cineasta. Em Vaquejada, a incorporação da poesia popular é mais intensa que em Memória do cangaço. Os versos acompanham já as primeiras imagens, planos gerais de vaqueiros correndo com seus cavalos na fazenda Jaramataia, no interior da Paraíba, onde a festa é registrada. Trata-se de “Vaquejada do Mulungu”, do cordelista e repentista João Lucas Evangelista, interpretada musicalmente e modificada por Cego Birrão, cantador popular do Crato-CE128. Em 1ª pessoa e tendo como eu-lírico um vaqueiro, introduz o tema do filme: Convido quem nunca assistiu / Uma festa de vaquejada / Na Fazenda Mulungu / Numa safra bem criada / Os vaqueiros nos cavalo / Aboiando essa toada ei / Eu nasci em Jaguaribe / Eu me criei no Iguatu / Eu nasci pra pegar brabo / Topo todo sururu / Touro brabo e vaquejada / Só se vê no Mulungu ei / Lá em casa são quatro irmãos / Todos quatro interesseiro / Um deu pra tocar sanfona / E outro pra bater pandeiro / E outro pra ser valentão / E eu nasci pra ser vaqueiro ei / Tem quatro coisa no mundo que o vaqueiro dá valor / É o som duma sanfona / É o baião de um cantador / É uma mulher carinhosa / E um cavalo corredor ei / Tem quatro coisa no mundo que me deixa em confusão / Uma carreira de boi brabo / Na caatinga do sertão / É uma mulher bem bonita / Pra consolar meu coração129. A mudança de alguns versos feita pelo cantador é inerente à lógica da cultura popular, de acordo com Marilena Chauí (1986): [...] o campo comunicativo [da cultura popular] se reestrutura segundo a prática, o desejo e o pensamento dos participantes. Feito e refeito, confere sentido à expressão popular: ‘quem conta um conto, aumenta um ponto’ (CHAUÍ, 1986, p.73). Para exemplificar sua colocação, a autora cita justamente o cordel nordestino, que adapta motivos da literatura europeia, sendo constantemente modificado. José de Figueiredo Filho (1962), no livro Folclore no Cariri, trata Cego Birrão (ou João Teixeira da Silva) como um aboiador em verso: “Seu aboio não tem rival, entre vaqueiros. É canto mavioso e sentido que nos prende a alma, comunicando-nos nostalgia da vida rural. É entremeado de versos, cantados na mesma toada, desmentindo assim a versão quase universal de que o aboio não tem letra. Até espécie de dueto há naquele canto. Birrão canta disputa entre vaqueiro do Sertão e proprietário do Cariri” (FILHO, 1962, p.50). 128 Encontramos a versão publicada no folheto de cordel por João Lucas Evangelista disponível em: http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=Cordel&PagFis=34633. 129 152 Assim como em Memória do cangaço, na passagem mencionada a canção não concorre com outros sons, sendo pertinente notar a exaltação que a letra faz do vaqueiro. O aspecto é mais perceptível quando ouvimos um segundo trecho, já sobreposto aos planos gerais das pessoas aguardando pelo início da vaquejada, após a locução “formal” – em uma das raras aparições no filme – explicar que os vaqueiros vêm de longe para mostrar sua destreza e bravura na festa: “A vida melhor do mundo / É a vida do vaqueiro / Passa o dia campeando / Correndo nos tabuleiro / À noite vai namorar / Com a filha do fazendeiro ei”. A letra não descreve as imagens, fazendo comentários em torno do tema que não encontram correspondência na materialidade no filme. Seu sujeito, o vaqueiro nascido em Jaguaribe, representa o personagem mítico do sertão, uma abstração. Atuam de maneira diferente trechos de mais três poesias da literatura de cordel recitados pela voz over de Paulo Gil, que substituem a narração de cunho mais didático. Duas delas foram escritas por Fabião Hermenegildo Ferreira da Rocha (1848-1928), o Fabião das Queimadas130: Romance do boi mão de pau e Vaquejada na fazenda Belo Monte. A terceira, cujo autor não conseguimos identificar, é A Vaqueijada (sic)131, famosa nos sertões. Intercalados no filme, os versos transformam-se em texto único que descreve as imagens. O curtametragem não dá qualquer indicação de que o texto narrado por Paulo Gil é apropriado das poesias populares, ou seja, um espectador não familiarizado com os versos pode tomá-lo como sendo do próprio realizador. Observemos algumas situações. Antes de mostrar os vaqueiros tentando derrubar os bois, diferentes planos mostram homens nos currais preparando os animais e os vaqueiros esperando do lado de fora. Ouvimos versos de Vaquejada na fazenda Belo Monte recitados pelo diretor-locutor: “Gritou o dono da festa / Com o curral cheio de gado / Mais de 50 cabeça / 20 touros separado / Quem tiver cavalo encoste / Que os touro estão jejuado”. A correspondência As duas poesias são abordadas no livro Vaqueiros e cantadores, de Luís da Câmara Cascudo; o título da segunda é atribuído. Informa o autor que Fabião era negro, nasceu na região das Queimadas, no município de Santa Cruz, no Rio Grande do Norte. Foi escravo, mas conseguiu pagar sua alforria e de sua família, tornando-se pequeno agricultor. Sempre cantava acompanhado por uma rabeca, sendo presença constante em festas de vaquejada, casamentos e batizados (CASCUDO, 1984, p.320). 130 A poesia foi encontrada sob o título de A Vaqueijada em: BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, 1921, p.320-325. 131 153 entre as imagens e os versos recitados pelo locutor é uma das estratégias do documentário. Mais trechos da mesma poesia descrevem outras imagens, tomadas em plano conjunto, do touro que consegue escapar da perseguição de dois vaqueiros durante a vaquejada: “Correu um touro cabano / Este de rajada cor / Foi tirado cinco vez / E cavalo nenhum tirou / Bateram palma e disseram / Já vi bicho corredor”. Ou ainda: “O Medalho e o Pedrês / Corriam sempre irmanados / Um numa banda, outro doutra / E eu no meio imprensado / Porém sempre me safando / Pois corria com cuidado”. Conforme indica Cascudo (1984), esses versos escritos por Fabião das Queimadas narram uma vaquejada que de fato ocorreu, na década de 1920, no Rio Grande do Norte. Eles apontam para um eu-lírico que não é o poeta, nem um vaqueiro, mas um dos touros: Em vez de deter-se em narrar a vaquejada, o velho Fabião apaixonase por um novilho cabano (de orelhas pendentes) que não foi alcançado pelos vaqueiros. Insensivelmente o cantador encarna o animal, descreve seu orgulho, sua alegria de derrotar os melhores parelheiros da redondeza. Pela voz do negro poeta o animal saúda ironicamente os cavalos, manda lembrança aos vaqueiros e ante prepara uma ‘gesta’ que outro cantador fará, a perseguição do novilho tornado célebre (CASCUDO, 1984, p.110). Nos dois minutos finais do filme, temos vários planos em câmera lenta que enfim mostram os vaqueiros derrubando os bois, acompanhados primeiro pelos versos de A Vaqueijada: “Perseguir um novilho / Que pelo pátio estourou / Anselmo fazendo esteira / Francisco tarrafeou / E deu tal queda no bicho / Que o mocotó passou”. Em seguida, por trechos de Romance do boi mão de pau, de Fabião das Queimadas, novamente com eu-lírico de um touro: “Adeus, lagoa dos Véios / E lagoa do Jucá / E serra da Joana Gomes / E riacho do Juá / Adeus, até outro dia / Nunca mais virei por cá”. Os exemplos apontam que há uma tentativa em Vaquejada de recriar em imagens cinematográficas o que dizem os versos da literatura de cordel recitados pela locução, que se amalgamam à manifestação popular oriunda da tradição oral. Outra consideração é que, ao apropriar-se dos versos, o “diretor-locutor” encarna também seu eu-lírico. Quer dizer, afasta-se de uma voz autoritária que faz interpretações, presente em outros títulos, e passa a mimetizar o poeta 154 popular, embora seus universos sejam distantes. Conforme abordamos no capítulo anterior, neste documentário quem faz a análise social do tema e explica as origens da vaquejada é Ariano Suassuna, que representa a autoridade intelectual, a “voz do saber” do cineasta. Contudo, o filme cede espaço para que também se manifeste a perspectiva romântica presente nos versos de cordel, proveniente de um saber popular ligado à “experiência” dos assuntos vividos – inclusive o próprio Suassuna chega a recitar versos do poeta popular Lino Pedra Azul para exemplificar como o cavalo que participa das vaquejadas é tido como mito sertanejo. Não há um consenso, ou seja, o filme não elabora uma tese que deva ser comprovada, permitindo que o espectador tire suas próprias conclusões a partir do que viu e ouviu. Atuando de forma mais intensa que em Memória do cangaço, a poesia popular é essencial na condução da narrativa de Vaquejada, que o afastaria da ideia de discurso fechado sobre o real, do “modelo sociológico”. Embora a entrevista com Suassuna marque a presença do intelectual como figura detentora de um saber que permite analisar a “experiência” alheia, o documentário abre-se também para o discurso da poesia popular, interpretação outra do universo sertanejo, elaborada por alguém que é “povo”. No entanto, a apropriação não se dá sem problemas. O filme não explicita quem escreveu os versos narrados ou cantados, passíveis de serem atribuídos ao próprio realizador ou, no caso da canção, a Cego Birrão. Assim, a informação extra fílmica, de serem poesias provenientes dos folhetos de cordel, torna mais complexa a compreensão das relações entre o cineasta e a cultura popular. Por fim, tratemos de O homem de couro, que retrata aspectos da vida do vaqueiro, tomando como exemplo o cotidiano de alguns que trabalham na fazenda Jaramataia, especialmente um deles, Zé Galego, personagem já comentado no capítulo anterior. Entre os três documentários aqui discutidos, é o que mais problematiza a incorporação da poesia popular porque, na ausência da locução “formal” para analisar o tema ou de outro intelectual que o faça (como Ariano Suassuna em Vaquejada), são os versos do cordel adaptados pelo cantador e o depoimento de um dos vaqueiros entrevistados que manifestam uma visão crítica da profissão. Há também o “outro lado”, a exaltação e o orgulho deste modo de vida, colocado nos versos populares recitados pela locução e nas falas dos demais personagens. 155 Conforme mencionamos, o filme explora e dá mais espaço para diferentes materiais musicais populares, se comparado aos outros dois títulos. Por isso, paralelamente à percepção de como a poesia – que aparece tanto na forma musical pela canção, quanto falada – se comporta, nossa análise refletirá sobre outros aspectos relacionados à trilha musical que consideramos também pertinentes para compreender o diálogo existente entre os documentários do diretor e a cultura popular. A exemplo de Vaquejada, o canto de Cego Birrão acompanha os minutos iniciais de O homem de couro, já nas cartelas de apresentação. Ele interpreta a poesia “Despedida do vaqueiro”133 e, nos instantes finais do documentário, acompanhando planos gerais que mostram vaqueiros recolhendo o gado, ouvimos sua voz entoar “A morte do vaqueiro”, cujo autor é desconhecido134. Tornaremos a abordar as canções mais adiante. Outro material musical do filme são os aboios dos vaqueiros, presentes de duas maneiras. Ora são sincrônicos à imagem, quando os personagens performam para a câmera (15’57’’ a 17’15’’) e percebemos o “estilo” de cada aboiador; ora acompanham planos gerais do gado pastando ou do vaqueiro conduzindo a boiada. Há aboios entoados apenas com vogais e outros em versos, com trechos das poesias populares memorizadas pelos vaqueiros. Conforme observou Mário de Andrade (1989)135, se filiam, assim como a literatura de cordel, a práticas de povos europeus: Nas vozes de excitação, de assustação, de chamado, de acalmar que o homem usa pra com os animais, o aboio, as várias maneiras de aboiar que os brasileiros empregam de Norte a Sul, apresentam toda uma escala gradativa de emissões vocais que vão do simples ruído oral interfectivo até a manifestação por assim dizer exclusivamente musical do aboio-de-besta, em que nem existe mais o desenvolvimento do grito interfectivo oral, na vocalização sem palavras que no geral se une sempre ao aboio dos marroeiros [...] Como caráter, modos de construir a frase, abusos de inícios idênticos para cada frase (de 133 Os versos são do poeta popular pernambucano Pedro Amorim (1921-2011). Nos créditos menciona-se como cantador apenas Cego Birrão mas, aparentemente, não é o único a entoar as canções, pois vozes de tessituras diferentes são ouvidas no meio do filme, inclusive duas que cantam ao mesmo tempo. 134 Mário de Andrade realizou viagens ao Nordeste na década de 1920, sendo os apontamentos mencionados provenientes delas. Em entrevista a Geraldo Sarno, Hilda Machado, Sylvie Debs e José Carlos Avellar sugerem um paralelo dessa experiência com as viagens da Caravana Farkas. Ver: SARNO (2006). 135 156 melodia quadrada ou não), gênero de vocalizações, liberdade rítmica, emprego sistemático das fermatas (sem intenção virtuosística), utilização de sons agudos: o aboio é absolutamente idêntico (o aboio de boiadeiros) às canções de carreiros e arrieiros asturianos [...] Estes têm acentuado sabor mourisco, por onde se pode filiar os nossos aboios aos cantos de pastores árabes [...] (ANDRADE, 1989, p. 2-4). [grifo original] Também é incorporada ao filme, embora apareça apenas uma vez, a música de pífanos, da Banda de Pífanos de Caruaru136. A sonoridade está presente ainda em A mão do homem, Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges, Jaramataia e A morte do boi, sendo que neste último é da Banda de Pífanos do Crato, do Ceará. Esse tipo de banda, também chamada cabaçal, é formada por instrumentos de sopro (os pífanos) e percussão, influenciada pela música negra, portuguesa e indígena: “Participando de manifestações sagradas e profanas, as bandas de pífano guardam elementos técnicos e estéticos de épocas longínquas” (PEDRASSE, 2002, p.15). Embora nos desvie da análise do filme, essa apresentação mais detalhada dos materiais da trilha musical de O homem de couro aponta para a impossibilidade de traçar uma origem das manifestações populares, sendo “resultado de transformações sucessivas”, como evidencia Chauí (1986, p.73). Como ponto de partida, é estimulante a defesa do estudo e da aplicação da música no campo do audiovisual documental feita por John Corner (2002), que toma como exemplo o documentário inglês Listen to britain (Humphrey Jennings e Stewart McAllister, 1942) para demonstrar sua potência: Ela liberta [as imagens] do literalismo do comentário e subscreve a possibilidade de fornecer surpresa e justaposição tanto quanto conexões esperadas. Por meio da escuta da Grã-Bretanha, somos capacitados adequadamente a olhar para ela (CORNER, 2002, p.359- Quando os filmes foram realizados, no final da década de 1960, a Banda de Pífanos de Caruaru, hoje bastante conhecida, ainda não tinha gravado seu primeiro disco. Suas músicas foram captadas in loco pela equipe de documentaristas, em um esquema improvisado, com apenas dois microfones para os instrumentos e dentro de um teatro, conforme nos contou Sidnei Paiva Lopes, responsável pelo som direto. Algumas dessas gravações foram cedidas por Thomaz Farkas para integrarem a coleção Mapa Musical do Brasil, lançada comercialmente entre 1972 e 1973 pela gravadora paulista Marcus Pereira Discos, composta por 16 discos com músicas de quatro regiões do Brasil. De fato, encontramos no volume 4 do disco Música Popular do Nordeste uma das músicas que está em O homem de couro e ainda em Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges: A briga do cachorro com a onça, não identificada nos filmes. Deste modo, a documentação musical da Caravana extrapolou os limites da narrativa fílmica, ecoando em uma produção fonográfica que pretendia também mapear o Brasil, só que musicalmente. Na contracapa do disco, Marcus Pereira comenta ter assistido aos documentários da Caravana Farkas. Ver: MAGOSSI (2013). 136 157 360)137. Recorreremos às ferramentas analíticas propostas por Anahid Kassabian (2001) para tratar do trabalho da trilha musical em O homem de couro. De acordo com a autora, a música é mediada pela cultura, sendo um fenômeno de produção de sentido e processo de identificação: “[...] músicas específicas interagem com seus ouvintes em modos específicos de produção de sentido” (KASSABIAN, 2011, p. 8)138. Kassabian, que prefere falar em perceptor ao invés de espectador, lança três grandes questões para refletir sobre a música dos filmes com os quais trabalha, que adaptaremos para o documentário de Paulo Gil Soares: “1) Como é a relação da música com o mundo narrativo do filme?; 2) Como percebemos o método da música dentro da cena?; 3) O que a música evoca ou comunica para nós?” (KASSABIAN, 2001, p.42)139. A primeira pergunta diz respeito à música como integrante ou não do mundo narrativo do filme. Colocando de forma simplista, de sua relação com a diegese140. Para nós, é mais pertinente aproveitar a ideia de mundo narrativo em outra direção: a música de O homem de couro – e poderíamos estender para os demais filmes – pertence ao universo de quem é documentado ou ao universo de quem documenta, do realizador? Os versos entoados pelo cantador popular, os aboios dos vaqueiros e a música de pífanos fazem parte do universo que o filme retrata, do vaqueiro, remetendo de forma mais ampla a musicalidades nordestinas. No entanto, exceto os aboios cantados pelos próprios vaqueiros durante o momento de performance musical, quem garante Tradução nossa para: “It frees them from the literalism of commentary and underwrites the possibility of delivering surprise and juxtaposition as well as of expected connections. Through listening to Britain, we are enabled properly to look at it” (CORNER, 2002, p.359-360). 137 Tradução nossa para “[...] specific musics engage with their listeners in specific modes of meaning production” (KASSABIAN, 2001, p. 8). 139 “How is the music’s relationship to the narrative world of the film perceived?; How do we perceive the music’s method within the scene?; What does the music evoke in or communicate to us?” (KASSABIAN, 2001, p.42). Conforme já explicamos em nota, a autora analisa filmes ficção hollywoodianos dos anos 1980-1990. 138 Kassabian fala em três possibilidades de relação da música com o mundo narrativo do filme: source music se refere à música ligada a um evento narrativo, por exemplo, uma cena de performance musical; já dramatic scoring é uma música que não se integra ao mundo narrativo, como a acionada em Jaws (Steven Spielberg, 1975) sempre que o tubarão aparece; por fim, a source scoring trabalha ao mesmo tempo dentro e fora do mundo da narrativa, como quando uma música é tocada por alguém ou um objeto (uma vitrola, um rádio) em uma cena e continua na seguinte em outro local, ou seja, há uma combinação entre a source music e a dramatic scoring (KASSABAIN, 2001, p.43-49). 140 158 que os personagens ali retratados ou que outros vaqueiros da mesma região tenham alguma vez ouvido aquelas músicas? A Banda de Pífanos de Caruaru, por exemplo, é de Pernambuco. Ora, O homem de couro foi filmado em outro estado, no interior da Paraíba, assim como outros filmes que a incorporam. Essa música não estaria muito mais ligada ao que o realizador considera como sonoridade representativa do Nordeste do que pertencente ao universo daqueles vaqueiros? Trata-se de uma relação ambígua: a trilha musical relaciona-se ao universo retratado pelo filme e, ao mesmo tempo, configura-se como uma escolha do realizador, vinculada ao seu imaginário sobre a região e aos personagens que se propõe a documentar. Fernão Ramos (2008), ao mencionar as diversas vozes de um documentário, comenta sobre o papel da música: A voz over, a voz em primeira pessoa, a voz dialógica das entrevistas, a voz do depoimento, a voz das imagens de arquivo, a voz dos diálogos ou monólogos no mundo (com o sujeito-da-câmera oculto, em recuo, agindo). Essas são as vozes que fazem as asserções do documentário. Além disso, há a modulação da voz da música. [...] No caso do documentário, muitas vezes, a música qualifica diferencialmente as emoções que a narrativa quer agregar às asserções enunciadas. A música possui na tradição documentária uma dimensão que não fica aquém daquela do cinema de ficção, e que ainda deverá ser estudada (RAMOS, 2008, p. 86) [grifos originais]. Em nosso entendimento, a “voz da música”, mais do que modular, também pode fazer asserções no documentário, capacidade por nós validada quando dos comentários sobre os outros dois títulos de Paulo Gil. Como em O homem de couro a participação da música é maior, continuaremos a analisá-la respondendo às questões propostas por Kassabian (2001). A segunda delas, “Como percebemos o método da música dentro da cena?”, desdobra-se em dois fatores. Um se refere a quanto da “história da música” (history music continuum) o espectador consegue identificar, quer dizer, as outras referências – em nosso caso, musicais ou não – que a música de um filme é capaz de acionar. De acordo com a autora, haveria três usos nesse sentido: a música pode funcionar como citação, alusão e/ou leitmotiv – este último foi citado no item anterior, quando nos referimos aos cantos de orixás em Erva Bruxa, que sempre acompanham as imagens dos operários da indústria do fumo baiana. Em O homem de couro e nos demais filmes do diretor, as músicas são 159 citações, na medida em que preexistem ao filme, não foram “encomendadas”141. Gravadas in loco e extraídas da cultura popular, também fazem alusão, pois evocam outras narrativas, dialogando com a tradição da literatura oral, dos cantos de trabalho, com matrizes musicais diversas e oriundas de séculos anteriores, como já explicamos. O método da música dentro da cena ainda se relaciona ao nível de atenção que ela demanda para o espectador, por exemplo, se é o único elemento sonoro da cena ou se “concorre” com entrevistas, locução em over, etc. Sobre este aspecto comentamos ao tratar da canção em Memória do cangaço e Vaquejada; a estratégia repete-se em O homem de couro, que dá espaço ainda maior a este elemento da trilha musical. A última pergunta de Kassabian (2001), “O que a música evoca ou comunica para nós”, é a que julgamos mais significativa para refletir sobre a canção entoada por Cego Birrão, cuja letra, conforme mencionamos, é proveniente das poesias da literatura de cordel, manifestação popular aqui enfatizada. A partir dessa questão, sugere-se que a música de um filme pode servir a três propósitos: identificação (identification), atmosfera (mood) e comentário (commentary) (KASSABIAN, 2001, p.56). Ouvindo os materiais musicais de O homem de couro, podemos identificar a região que ele retrata, o Nordeste, e seu tema, o cotidiano dos vaqueiros, além de ajudarem na construção de uma atmosfera rural. Por nossa conta, acrescentaríamos o propósito documental da música em um filme, inerente ao próprio registro audiovisual que, no caso da Caravana Farkas, é compreendido pelos cineastas como forma de preservar manifestações culturais em vias de desaparecer142. Isto posto, é o propósito da música de fazer comentário que nos interessa observar com mais empenho em O homem de couro, no caso, das duas canções entoadas por Cego Birrão nos primeiros minutos e nos instantes finais do documentário, relacionando-as a outros. A exemplo do que afirmamos sobre Memória do cangaço e Vaquejada, a canção no filme desempenha um papel de “locutor auxiliar”, não no sentido de Um exemplo de “encomenda” seria a canção de Viramundo, trilha musical original composta para o documentário e inspirada na métrica rítmica do cancioneiro popular. Há indícios no roteiro de Memória do cangaço de que a canção do filme tenha sido improvisada musicalmente pelos violeiros, a partir da letra escrita pelo próprio diretor, Paulo Gil Soares. 142 Mencionamos em nota anterior que essa documentação extrapolou limites fílmicos: pelo menos uma das músicas gravadas pela Caravana Farkas foi integrada a um dos discos de música popular da gravadora Marcus Pereira. 141 160 equivalência em termos de ponto de vista ou de poder em relação ao locutor, como proposto por Bernardet (2003), mas por sua função na narrativa. Diferente do que ocorre nos outros dois documentários, a letra da canção em O homem de couro faz um contraponto ao que diz a locução poética proferida por Paulo Gil Soares, lembrando que ambas são versos da poesia popular, ou seja, não foram escritas pelo cineasta. Vejamos essa relação no filme. Acompanhando os créditos do documentário e em seguida os planos em que o vaqueiro Zé Galego se veste dentro de um casebre com roupas de couro para a câmera, ouvimos trechos de “Despedida do vaqueiro” entoados por Cego Birrão, intercalados a uma locução pedagógica – único momento em que aparece – explicando cada parte da roupa. A canção é o lamento de um vaqueiro: “Meu patrão eu vou embora / Da seca Deus me defenda / Talvez em sua fazenda / Eu não apareça mais / Talvez por causa da seca / Ganhando pouco dinheiro / Na profissão de vaqueiro / Sem fortuna e sem amor [...]”. A letra não corresponde ao personagem que vemos nas imagens; no capítulo 2, vimos que Zé Galego fala com orgulho e satisfação da profissão. Após descrever as roupas de couro, a locução somente recita versos da literatura de cordel, que não falam em lamentação nem fazem crítica às condições de trabalho em nenhum momento, tratando de aspectos lúdicos em torno do mito do vaqueiro. Comentamos no capítulo 2 sobre alguns trechos, extraídos de “História do boi mandingueiro e o cavalo misterioso”, de João Martins de Ataíde, que encontram correspondência na fala e ação de Zé Galego143. Por exemplo, após vestir-se e já do lado de fora do casebre, o personagem e seu cavalo são vistos em plano conjunto, enquanto ouvimos a locução recitar: “Com esta sela o cavalo / Corre mais do que o vento / Tem tanta velocidade / Que ultrapassa o pensamento”. Ou ainda, já na metade do filme (10’30’’), sobrepostos ao plano conjunto que mostra quatro vaqueiros – entre eles Galego – montados a cavalo andando pela fazenda, após a captura de um boi: O rei mandou me chamá / Pra casar com a sua fia / O dote que ele me dava / Oropa, França e Bahia / Ouro em pó e pedra fina / Como ninguém possuía / Roupa de couro bordada / Com todo o ouro que 143 Ver o primeiro momento em que isso ocorre no item 2.2.1. 161 havia / Camisa de seda, cetim / Com botão de prataria / Eu então lhe respondi / Que era pouco / Eu não queria / Sou moço, sou vaidoso / Sou fio de boa famía / Piso no chão devagar / Que as fôia seca não chia / Ando na flor da água / E a água não se arrepia / Minha mãe se lastimava / E meu pai se maldizia / Do campo eu não saio por dote / Histórias de fantasia / O rei mandou me chamá / Pra casar com a sua fia / O dote que ele me dava / Eu disse que não queria144. Perspectiva oposta manifesta-se nas letras das duas canções entoadas por Cego Birrão no início e no final do filme. Falemos desta última, que tem como eu-lírico o dono da fazenda, emprestando os versos da poesia popular “A morte do vaqueiro”. Ela aparece nos minutos finais, acompanhando planos gerais de um vaqueiro (não identificado) que recolhe os animais, que encerra um dia de trabalho (aos 18’ 25’’): Vou vender minha fazenda / Que o vaqueiro faleceu / Da morte dele pra cá / O gado entristeceu / Até mesmo a bezerrama / Com o desgosto morreu / É grande a lamentação / Do gado nos tabuleiros / Quando eu ia para o campo / Chorando sem paradeiro / Voltei pra casa pensando / No aboio do vaqueiro / Ele antes de morrer / Pediu pra não haver choro / Despediu-se da fazenda / E do cavalo pé-deouro / Abraçou-se com Carmelita / Beijando o gibão de couro / Ele antes de morrer / Se despediu do patrão / Dizendo pra Carmelita / Dême um aperto de mão / Deixa a vida do vaqueiro / Com a dor no coração / Amortalharam o vaqueiro / Com um terno de algodão / Levando para o cemitério / De guarda-peito e gibão/ Todo gado acompanharam / Chorando atrás do caixão. O que diz a canção se alinha ao depoimento de um vaqueiro mais velho, o único personagem do filme que não exalta a profissão. Filmado em primeiro plano, às vezes cabisbaixo, afirma que não pode mais trabalhar depois de 18 anos como vaqueiro (11’11’’ a 11’36’’): Apanhei muito de pontada de boi, coice de gado, peitada de cavalo. Teve muitas e muitas vezes de vim do mato e mandarem me buscar no carro, sem fala, num mato de pancada. Agora eu deixei porque o que eu ganhava não dava pra eu viver. As duas canções – “Despedida do vaqueiro” no início do filme e “A morte do vaqueiro” no fechamento – dialogam entre si. As letras de ambas fazem alegoria à morte do vaqueiro, aqui interpretada como a possível extinção dessa função nas fazendas, sendo que a primeira tem como eu-lírico o próprio Versos de autor desconhecido facilmente encontrados nos livros que tratam da literatura de cordel. 144 162 vaqueiro e a segunda o dono da fazenda, o patrão. Em O homem de couro, ao invés da locução interpretar com criticidade o tema, a exemplo do que ocorre em outros documentários de Paulo Gil Soares, é a “voz da música”, a letra da canção, que apresenta a visão crítica. No caso, a de que o vaqueiro, apesar de ser figura mítica do sertão, está desaparecendo (se despedindo ou morrendo) porque não consegue mais sobreviver, seja pelo pouco ganho ou pelas condições desfavoráveis de trabalho. A canção é extraída da cultura popular, ou seja, traz uma interpretação que provém do universo da “experiência”, do “povo”, e não do cineasta. Ao mesmo tempo, sua inserção no filme depende dele. Não há um único ponto de vista sobre a vida do vaqueiro, deixando que a poesia popular manifeste perspectivas distintas. Ao confrontarmos os versos da canção e da locução com os personagens do “mundo histórico representado”, entramos no jogo entre imaginário e concreto provocado pelo documentário, assim como o faz a poesia popular. Desta forma, pela tensão de saberes e visões opostas sobre o tema, em grande medida provocadas pela música, o documentário também se afasta de um “modelo sociológico”. Conforme observamos, os materiais da cultura popular são incorporados em diferentes níveis nos três documentários aqui discutidos. Em Memória do cangaço, embora de forma mais tímida, a literatura de cordel suscita leituras outras acerca dos fatos históricos, provocando reflexões também sobre o “real do documentário”. Já em Vaquejada, a canção com os versos populares traz uma perspectiva sobre a festa e o universo do vaqueiro que não encontra correspondência na materialidade do filme, fazendo um comentário que se descola do campo tangível; por outro lado, o trabalho de montagem com os versos recitados pela locução e as imagens tenta uma correspondência entre ambos. Por fim, em O homem de couro, a canção entoada por Cego Birrão cumpre um papel normalmente associado ao locutor – poderíamos tomar como exemplo vários realizados na experiência da Caravana Farkas –, de analisar o tema. Contudo, a “voz da música” não é a única, opondo-se a outros versos também populares recitados pela locução, que expõem uma perspectiva mais romântica, encontrando correspondência no principal personagem do documentário. A incorporação de materiais da cultura popular nesses filmes, além do 163 debate estético, propicia um debate ético, pois apropria-se do outro popular aquilo que o cineasta compreende como representante de um certo imaginário sobre o tema ou pessoas retratadas. Os documentários de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas não explicitam que aquelas manifestações registradas estariam em vias de desaparecer, como faz Geraldo Sarno145; nem se apropriam do popular numa chave mais tropicalista, como os filmes de Sergio Muniz146. Podemos falar que os filmes de Paulo Gil Soares sugerem a permanência da cultura popular, mesmo que haja a indicação do fim ou da transformação, por exemplo, da profissão de vaqueiro, tal qual ocorre em O homem de couro. Em contrapartida, sabemos que quando os materiais populares são apropriados pelos documentários, transfiguram-se no interior do discurso fílmico. Um exemplo seria Jornal do Sertão (1970), que problematiza a continuidade da literatura de cordel no Nordeste, tendo em vista a inserção de novos meios de comunicação. Ver: D´ALMEIDA (2003, p.94-100). 145 Para citar apenas um, De raízes & rezas, entre outros (1972): “[...] o documentário apresenta uma banda sonora “turbulenta”, em alguns momentos “agressiva” pela escolha que reúne expressões como Índios do Xingu, Pedro Bandeira, Banda de Pífaros do Crato, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Silvio Rodrigues, Pablo Milanes, Zabumba de Santa Brígida, Maria Bethania, Gal Costa, Solo de Rabeca e cantos recolhidos em Juazeiro, Milton Nascimento, e declamação de versos de João Cabral de Melo Neto, informados nos créditos de abertura” (SOBRINHO, 2012, p.7). 146 164 4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa surgiu, para além das motivações acadêmicas, do apreço pelos documentários de Paulo Gil Soares e pelo trabalho de Thomaz Farkas – este “conheci” em uma palestra sobre fotografia em 2009, já bastante debilitado, dois anos antes de seu falecimento. Eu gosto dos filmes, alguns mais outros menos (como é de se supor). Há algo neles que me toca – como o punctum147 fotográfico barthesiano –, que a objetividade não daria conta de explicar. Por que escolher tal realizador e não outros da Caravana Farkas? Ou ainda: o que há nos documentários que justifique essa escolha? São perguntas de caráter subjetivo que se relacionam com o que esta pesquisa tentou empreender. A partir do confronto com os oito documentários de Paulo Gil Soares, nosso objetivo foi traçar características de sua “voz” e assim diferenciar seus filmes dos realizados por outros nomes na experiência da Caravana Farkas. Tal perspectiva pretendeu afastar-se de uma generalização bastante frequente entre pesquisadores que mencionam a Caravana, talvez provocada porque todos os cineastas que dela participaram compartilham uma postura política semelhante (de esquerda), como afirmou o próprio Thomaz Farkas, produtor e financiador da maioria dos filmes; e porque, de fato, havia uma comunhão estética e temática entre eles, provocada também pelo esquema de produção coletiva. É comum, por exemplo, a associação da produção ao “modelo sociológico” de documentário proposto por Jean-Claude Bernardet (2003), incitada pelo fato de dois títulos realizados na 1ª fase, Viramundo (1965), de Geraldo Sarno, e Subterrâneos do futebol (1965), de Maurice Capovilla, serem analisados pelo autor como exemplos do modelo, no qual todas as vozes do documentário colaborariam para a defesa de uma tese do cineasta, da “voz do saber”. De forma mais ampla, o documentário brasileiro da década de 1960 é vítima dessa generalização, embora o mesmo Bernardet aponte para rupturas com o “modelo sociológico” em filmes realizados antes da década de 1970. Como vimos – apenas para mencionar um exemplo –, o documentário de Paulo O conceito de punctum foi proposto por Roland Barthes (1984) no clássico livro A câmara clara. Poderíamos resumi-lo como sendo aquilo que toca, punge, instiga o espectador em uma fotografia. Ou seja, relaciona-se à subjetividade de cada leitor da imagem, independentemente das intenções do fotógrafo ou dos aspectos históricos, políticos e ideológicos implicados na fotografia – estes relacionam-se ao que Barthes chama de studium, associado à objetividade. 147 165 Gil Soares, Memória do cangaço, de 1965, é “contemporâneo” aos títulos de Sarno e Capovilla, e apresenta momentos de abertura e ambiguidade do discurso: a “não-entrevista” com Dadá; as contradições do coronel Zé Rufino; os versos modificados da literatura de cordel no último plano do filme que instigam reflexão sobre o próprio fazer documental. Também são corriqueiras abordagens que vinculam esses documentários ao “modo expositivo” de Bill Nichols (1997 e 2010), como se os filmes de realizadores diversos seguissem “mais ou menos” uma mesma estrutura ou lógica, reduzindo o fazer estético a uma tipificação. Consideramos que é necessário olhar para cada realizador e, mais estreitamente, para cada filme. Em suma, é preciso repensar o tratamento homogêneo dessa produção e também do documentário brasileiro da década de 1960. Voltando aos caminhos desta pesquisa, nossa primeira ideia era demarcar recorrências temáticas e de estilo no conjunto de documentários de Paulo Gil Soares. Mas, como fazê-lo sem incorrer na mesma abordagem generalista que se pretendia evitar? Como efetuar um tratamento de conjunto se um ou outro título “escapasse”, não tivesse essas recorrências? A opção pela noção de “voz”, a partir de Bill Nichols (2010), nos pareceu resolver a questão: olhar para cada filme, a fim de encontrar como os documentários de Paulo Gil Soares representavam o mundo histórico, em detrimento de outros realizadores da Caravana Farkas. Este como diz respeito tanto à forma quanto ao conteúdo. Por meio das escolhas do documentarista perceptíveis no texto fílmico, seria possível discorrer sobre aspectos ideológicos, políticos, éticos em seu “engajamento” com o mundo. Após assistir aos documentários de Paulo Gil Soares e dos outros dois diretores mais atuantes da Caravana, Geraldo Sarno e Sergio Muniz, os aspectos que em nossa leitura seriam mais pertinentes para marcar as singularidades da “voz” de Paulo Gil desdobraram-se nos três capítulos da pesquisa: vozes, personagens e apropriações da cultura popular. Ao discorrer sobre eles, eventualmente outras questões surgiram, como particularidades temáticas, o tipo de montagem, o tom que perpassa os filmes. As vozes, por exemplo, não têm espaço apenas no primeiro capítulo, mas percorrem toda a dissertação, pois relacionam-se com os outros dois aspectos. Destacaremos, então, as características da “voz” de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas. 166 Podemos dizer que seus documentários são de denúncia social com pretexto educativo. Embora filmes de outros realizadores da Caravana aproximem-se desta conotação, o tom denunciativo pesa mais nos títulos de Paulo Gil Soares. Em vários deles, a explicação didática – por exemplo, do mito do cangaceirismo no Nordeste, da fabricação de queijo de fazenda, de objetos confeccionados em couro – torna-se um pretexto para que se revelem situações de pobreza, desigualdade social, más condições de trabalho. Em Memória do cangaço, A morte do boi, A mão do homem, Jaramataia e Erva Bruxa há denúncias feitas de forma mais direta, seja por meio da locução assertiva, que fala, por exemplo, no “abandono à própria sorte” do homem sertanejo nordestino ou se refere a curtidores de couro que “não têm mesmo roupa para vestir enquanto trabalham”148; seja pela montagem paralela que contrapõe depoimentos do explorador e do explorado149; seja pelos “indícios de pobreza” perceptíveis nos próprios planos: o abate do boi de modo rudimentar, a disputa de partes da carne e uma criança que trabalha na curtição do couro em A morte do boi, apenas para exemplificar com situações do documentário que consideramos o mais gritante neste sentido. Em Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges, a denúncia emerge da articulação da montagem entre os vários depoimentos de beatos e a entrevista com Frei Damião – praticamente não há interferência da locução – e não diz respeito ao universo do trabalho, mas à alienação daquelas pessoas da cidade de Taperoá-PB, que podemos tomar como representantes do beatismo nordestino. Em Vaquejada e O homem de couro o caráter denunciativo é ainda menos explicitado: no primeiro, Ariano Suassuna de certa forma denuncia a condição de vida do vaqueiro, ao afirmar que na vaquejada ele “se torna mais importante como personagem do que é como pessoa”; no segundo, um único vaqueiro mais velho diz que vai abandonar a profissão – “o que eu ganhava não dava pra eu viver” –, mas é a “voz da música” que se encarrega de fazer o comentário crítico acerca do tema, por meio de canções em que a morte e a despedida do vaqueiro podem ser lidas como alegorias do fim da profissão. 148 Trechos da locução em Memória do cangaço e A morte do boi, respectivamente. 149 O recurso aparece de maneira mais enfática em Erva Bruxa e Jaramataia. 167 Não devemos esquecer que os documentários integram um projeto maior encabeçado por Farkas, que acreditava no potencial educativo dos filmes, sendo que uma de suas propostas era vendê-los a escolas para serem utilizados como material didático de apoio ao professor em sala de aula, ideia mais enfatizada na 2ª fase de produção da Caravana, quando os cineastas viajam para documentar a região Nordeste do Brasil. Pensando nos títulos de Paulo Gil Soares, há uma preocupação informativa, que se alinha com este objetivo – o mesmo não podemos dizer sobre o conjunto de Sergio Muniz, por exemplo, cuja experimentação de linguagem nos filmes pesa mais que sua retórica. Quando foi diretor do programa de televisão Globo Repórter, na década de 1970, Paulo Gil chegou a afirmar em entrevista ao jornal O Globo: “Documentário é informação, principalmente”. Para ele, informar não significa ser imparcial. Seus documentários na Caravana não tentam se isentar diante dos temas: são críticos diante da religião, da economia, das relações de trabalho, sobretudo no meio rural; mostram miséria, escancaram o subdesenvolvimento, exploram as contradições do capitalismo. Neles perpassa um tom pessimista diante dessa realidade, o que traz implicações ao propósito político do projeto, de “educar” o espectador. Qual Brasil os filmes pretendiam mostrar? Sem dúvida, um país que contrastava com os lemas de progresso e desenvolvimento proferidos em âmbito governamental: a escolha do que documentar já marca uma postura política. No caso dos filmes de Paulo Gil Soares, todos retratam o Nordeste150, sobretudo o Sertão, espaço emblemático para muitos cineastas do Cinema Novo, que até hoje persiste como local mítico. Seus documentários têm coerência temática: cinco títulos estão relacionados ao ciclo do gado (A mão do homem, Jaramataia, A morte do boi, Vaquejada e O homem de couro); um é sobre o “ciclo do fumo” na Bahia (Erva Bruxa); um recupera um fato histórico (Memória do cangaço); o outro é sobre religião (Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges). Vaqueiros e lavradores são personagens recorrentes, mas falaremos mais sobre eles adiante. Vale lembrar que Viramundo, documentário dirigido por Geraldo Sarno na 1ª fase da Caravana Farkas, trata da migração de nordestinos, mas foi filmado em São Paulo. Já Sergio Muniz filmou em outras regiões na 3ª fase da Caravana, como o Sul. 150 168 O tom pessimista ao qual nos referimos anteriormente fica patente porque existe uma ideia de permanência das situações retratadas nos filmes de Paulo Gil Soares na Caravana. Quer dizer, seus documentários não apresentam perspectivas de transformação para aquelas realidades e pessoas. Fazem denúncias, mas não chegam a apontar soluções, vislumbrar mudanças, dando a entender que tudo continuará como está. Deste modo, consideramos que os filmes são atravessados pela impressão de um tempo circular, um eterno ciclo de condições das quais não há escapatória: seja o vaqueiro Gregório de Memória do cangaço, que continua a viver em situação precária, como aqueles que décadas anteriores entraram para o cangaço; sejam os devotos de Frei Damião, cuja solução para a pobreza está no divino. Essa ideia é encontrada, ainda, em títulos que terminam com a locução em voz over justamente reforçando tal percepção, caso de A mão do homem: “E o ciclo se cumpre. Encourado, o homem parte para o campo e vai cuidar do gado, que um dia cederá a sua pele para novamente vesti-lo”. Aproveitando o ensejo, a natureza da voz over nos documentários de Paulo Gil Soares é outro aspecto singular: trata-se da voz do próprio diretor151, ao contrário do que ocorre nos filmes dos demais realizadores da Caravana Farkas, que optam por contratar locutores profissionais152. Trata-se de um “diretor-locutor” cuja voz over – com sotaque baiano que não passa desapercebido – funciona ora como uma “voz de Deus”, didática ou assertiva, ora como uma “voz lírica”, quando mimetiza um poeta e recita versos de poesias populares – caso de Memória do cangaço, Vaquejada e O homem de couro. Nestes filmes, a alternância entre a fala em prosa e em verso torna-se também um deslocar da objetividade para a subjetividade. A propósito, a fala tem mais peso nos documentários de Paulo Gil do que nos títulos dos demais realizadores da Caravana: é preciso prestar atenção no que as diversas vozes dizem. Além da locução, os depoimentos de personagens são fundamentais e em alguns filmes a música cumpre um papel de “locutor A informação não consta nos créditos dos documentários, mas é confirmada pelos realizadores da Caravana Farkas e por outros pesquisadores, como LUCAS (2012), SOBRINHO (2008, 2010, 2011, 2012 e 2013) e RAMOS (2008). 151 Embora não seja o intuito aqui a comparação com outros filmes, para além da Caravana Farkas, é notório que o emprego da voz do próprio diretor na locução seja um procedimento que se tornou praxe no documentário brasileiro realizado nas décadas seguintes. 152 169 auxiliar”, chegando até mesmo a conduzir a narrativa. Convivem com estes recursos imagens mais observativas, como aquelas que mostram Frei Damião no contato com os fiéis em Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges; vaqueiros durante o trabalho no campo em O homem de couro; um homem benzendo outro no prólogo de Jaramataia. Ou seja, dependendo da sequência e do documentário em questão, há níveis diversos de “modos de representação” documental (NICHOLS, 1997 e 2010). Consequentemente, é também difícil filiar os oito filmes somente à tradição do documentarismo inglês da primeira década do século XX, tampouco apenas ao cinéma vérité ou ao direct cinema da década de 1960, pois há a preponderância de um ou outro a depender do título. Por exemplo, A morte do boi pode ser considerado um filme mais expositivo que remete ao documentário inglês; já Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges, realizado no mesmo ano, é marcado pela interação do diretor com Frei Damião e pela observação deste personagem em instantes que aparentam maior distanciamento do cineasta: uma junção de práticas do cinéma vérité e do direct cinema. Mencionamos a importância dos personagens e eles são um parâmetro significativo para marcar as diferenças entre os documentários de Paulo Gil Soares e de outros realizadores da Caravana Farkas. Um primeiro ponto é que o diretor convoca pessoas mais diversas para dar depoimentos do que outros cineastas, que acabam ouvindo mais o “outro de classe”. Nos filmes de Paulo Gil, há o que denominamos de personagens com poder: o intelectual, o coronel, o médico, o empresário, o dono da fazenda, o sindicalista, o religioso. Também há personagens que são “outro de classe”: vaqueiros, lavradores, excangaceiros, artesãos. Estas duas categorias de personagens apresentam particularidades. Sobre os personagens com poder, é possível afirmar que há conflito com a maioria deles, um movimento de autorizar/desautorizar seus discursos, seja no instante da tomada ou fora dela (neste caso pela intervenção da locução ou pela articulação da montagem). É um aspecto que também diferencia os filmes de Paulo Gil Soares de outros da Caravana. Quanto aos personagens que são “outro de classe”, ao contrário, parece haver uma defesa que os documentários fazem deles, refletindo uma postura comum do intelectual de esquerda da década de 1960 no Brasil em sua aspiração de ser “porta-voz” do “povo”. 170 Em Memória do cangaço, encontramos as duas situações acima. Há, por exemplo, um conflito com o catedrático Estácio de Lima fora do momento da entrevista, em que a locução questiona a plausibilidade de seu depoimento, colocando em dúvida a autoridade intelectual. Também há a defesa do “outro de classe”: o vaqueiro Gregório é entrevistado por Paulo Gil Soares – que aparece enquadrado ao lado dele e do operador de áudio –, cujas perguntas e respostas em torno do acesso a direitos básicos (educação e saúde) sugerem tratar-se de uma vítima, como também reitera a narração do “diretor-locutor”. Um segundo ponto sobre os personagens que diferencia os filmes do diretor dos demais é que temos acesso aos nomes de vários deles, o que indica uma tentativa de acessar suas subjetividades; nos títulos de Sergio Muniz e Geraldo Sarno isto ocorre com bem menos frequência. Um terceiro ponto, neste mesmo sentido, é que há tensões entre o coletivo e o individual quanto ao “outro de classe”, que ora é “anônimo” e representa um tipo ou categoria social; ora é individualizado, quando aspectos de sua vida, em particular, são acessados. Zé Galego em O homem de couro é o mais exemplar dessa concomitância, pois tanto representa o mito do vaqueiro, quanto é mostrado como um sujeito em especial, que tem esposa, filhos e preferências na profissão. Poderíamos ainda apontar a beata (de nome desconhecido) em Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges; o artesão Moisés de Oliveira em A mão do homem. Desta forma, consideramos que é preciso repensar a associação dos documentários com o “modelo sociológico” sugerido por Bernardet (2003), que pressupõe, entre outras coisas, que as pessoas filmadas, no caso, representantes da “voz da experiência”, são dissolvidas da condição de sujeitos para funcionarem apenas como amostragem, objetos de análise do cineasta. Em nossa interpretação, há a tentativa de aproximação com o outro nos documentários de Paulo Gil Soares. O quarto e último ponto a destacar relacionado aos personagens é, para nós, bastante emblemático. Diferentemente de Geraldo Sarno ou Sergio Muniz, ouvimos – em Memória do cangaço também vemos em uma circunstância – Paulo Gil Soares durante o encontro com o outro: ele se revela mais como sujeito, não é alguém que está sempre fora do mundo histórico representado. Quando a presença do realizador é percebida na tomada (mesmo que seja somente sua voz), aspectos de sua performance vêm à tona, especialmente sua 171 postura como repórter investigativo, a partir das perguntas que faz aos entrevistados, traço que também o distingue dos outros diretores. Trata-se de alguém que “[...] provoca, entrevista, confronta os agentes/sujeitos do filme” (BALTAR, 2010, p.1). Por fim, a apropriação da cultura popular no discurso documentário do diretor também atesta singularidades de sua “voz”. Com exceção de A mão do homem, que trata do artesanato popular, e de Vaquejada, que registra a festa popular entre os vaqueiros, a cultura popular não é o tema em si dos filmes – como a maioria dos títulos de Geraldo Sarno, por exemplo –, mas uma ponte para a compreensão dos universos retratados. Sobre o documentário citado de Paulo Gil Soares, é dedicado a Lina Bo Bardi (a informação aparece nos créditos), arquiteta italiana que morou entre 1958 e 1964 em Salvador, na Bahia, influenciando uma geração de artistas e intelectuais que pensavam politicamente de forma parecida. Há um diálogo entre as ideias de Bo Bardi acerca da arte/cultura popular e os documentários de Paulo Gil Soares, que conviveu com a arquiteta nesse período em que ela esteve em Salvador, assim como Glauber Rocha e Geraldo Sarno. A mão do homem, por exemplo, traz no próprio título a referência a uma exposição realizada por Lina no mesmo ano do documentário, reunindo objetos populares feitos por homens e mulheres do Nordeste. Objetos análogos aos que estão no filme, como o chapéu e a sela de couro. Além disso, a narração e os personagens encontram correspondência no texto da arquiteta intitulado Civilização do Nordeste (BARDI, 1994, p.34-41), sintetizando seu debate cultural, que abriu outra exposição feita por ela anos antes em Salvador (em 1963), no Museu de Arte Popular – espaço que idealizou e pretendia promover o diálogo entre a cultura popular nordestina e a arte moderna e contemporânea. Apesar de Geraldo Sarno comentar sobre a influência de Bo Bardi em seu cinema, Paulo Gil explicita isto no próprio documentário em homenagem a ela. Ademais, se a arquiteta via uma potência nas formas dos objetos populares como possível de ser incorporada ao design industrial, quando o diretor se apropria de materiais da cultura popular, notadamente a poesia de cordel, esta torna-se um elemento muito potente em suas narrativas. Por isso, no capítulo 3 enfatizamos a observação da poesia popular em três documentários de Paulo Gil na Caravana: Memória do cangaço, Vaquejada e O homem de couro. 172 Apropriadas nos três títulos com intensidades diferentes, consideramos que nos momentos em que a poesia popular aparece evidencia-se o choque entre o saber do cineasta e o saber popular. Em Memória do cangaço, por exemplo, o letreiro com trechos modificados de uma poesia de cordel provoca reflexão sobre o fazer documental, colocando em xeque tudo o que vimos e ouvimos no documentário. Em Vaquejada, há uma tentativa de ilustrar os versos de cordel recitados pelo “diretor-locutor” com as imagens do filme, porém, o mesmo não acontece com a canção interpretada por Cego Birrão, também com trechos de poesias de cordel, que encarna o eu-lírico de um vaqueiro interpretando romanticamente a festa. Cabe lembrar que ainda há a interpretação social da vaquejada feita por Ariano Suassuna neste filme. Já em O homem de couro, nossa análise dividiu-se entre a observação de sua trilha musical – mais rica em materiais da cultura popular do que os demais títulos – e dos versos recitados pela locução. Constatamos que a letra da canção neste documentário (também com versos de cordel) fala da profissão do vaqueiro de forma crítica – elas tratam da morte e da despedida do vaqueiro da fazenda –, reverberando o depoimento de um único personagem, sendo uma tarefa que a locução não faz. As poesias populares incorporadas por meio da locução, da canção, são discursos extraídos do “povo”, da “voz do saber”, atentando para o fato de que o cordel nordestino também é originário de manifestações que remontam à Idade Média na Europa. Por outro lado, se estão nos filmes é porque foram escolhidas pelo cineasta, o que não deixa de ser ambíguo. Prestando atenção no que dizem os versos da poesia popular nos documentários, percebe-se a construção de um discurso que não se molda por uma relação tão sociológica, pois o saber do intelectual (do cineasta) e o saber do outro “povo” estão amalgamados por meio da linguagem cinematográfica, permitindo que o espectador faça sua própria leitura. Pensando de forma comparativa, os filmes de Paulo Gil Soares não indicam que a cultura popular estaria em vias de desaparecer, como colocam alguns títulos de Geraldo Sarno, nem se apropriam dos materiais numa chave tropicalista, como ocorre nos documentários de Sergio Muniz. Neste sentido, a maneira como a cultura popular é incorporada aos filmes de Paulo Gil retoma a ideia de tempo circular, a que nos referimos anteriormente. 173 Consideramos, ainda, que é necessário avançar na discussão, para além da apropriação da poesia popular como instância discursiva que atua na locução, na canção ou nos letreiros dos documentários de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas. Mesmo nos filmes em que a poesia popular não é incorporada na linguagem, há uma relação que extrapola o servilismo explícito: o compartilhamento de certa lógica que perpassa os textos dos poetas populares. Como nas poesias populares, há embate entre bem/mal que, nos filmes, pode ser tomado como o embate explorado/explorador, presente de formas diferentes em todos os títulos. Defendemos também que não é possível olhar para o conjunto de documentários de Paulo Gil de forma evolutiva, pois, como explicar que títulos realizados no mesmo ano (os sete feitos na 2ª fase da Caravana) sejam estruturados de maneiras tão diversas? Para finalizar, a “voz” de Paulo Gil Soares na Caravana Farkas tenta, ao buscar o outro, revelar sua condição, geralmente fazendo denúncias que atestam contradições do capitalismo. Por outro lado, essa “voz” expõe as contradições do próprio cineasta, implicadas por suas escolhas nos filmes. Ao apontarmos as singularidades dos documentários de Paulo Gil dentro dessa experiência marcante do cinema brasileiro, percebemos o quanto é necessário olhar de forma menos generalizante para a produção documental da década de 1960, atentando para suas diversas “vozes”. 174 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A CORAJOSA “CONDIÇÃO BRASILEIRA”. Revista Novidades Fotoptica, São Paulo, v. 14, n. 50, p. 11-13, ago. 1971. ALENCAR, Miriam. As proezas de Paulo Gil. 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Frei Damião trombeta dos aflitos, martelo dos herejes (sic), cor / 20´/ 16 mm / 1970, direção e roteiro: Paulo Gil Soares; produção: Thomaz Farkas; fotografia: Affonso Beato; música: Banda de Pífanos de Caruaru; som direto: Sidnei Paiva Lopes; montagem: Geraldo Veloso; produção executiva: Edgardo Pallero. Jaramataia, cor / 20´/ 16 mm / 1970, direção e roteiro: Paulo Gil Soares; produção: Thomaz Farkas; fotografia: Affonso Beato; música: Banda de Pífanos de Caruaru e Cego Birrão; som direto: Sidnei Paiva Lopes; montagem: Geraldo Veloso; produção executiva: Edgardo Pallero e Sergio Muniz. Memória do Cangaço, p&b / 29´/ 35 mm / 1965, direção e roteiro: Paulo Gil Soares; produção: Thomaz Farkas; fotografia: Affonso Beato; música: Armindo de Oliveira; música (cantadores) João Santana Sobrinho e José Canário; sincronização: Affonso Beato e Paulo Gil Soares; montagem: João Ramiro Melo; produção executiva: Edgardo Pallero. O homem de couro, cor / 21´/ 16 mm / 1969-70, direção e roteiro: Paulo Gil Soares; produção e fotografia: Thomaz Farkas; música: Banda de Pífanos de Caruaru e Cego Birrão; som direto: Sidnei Paiva Lopes; montagem: Geraldo Veloso; produção executiva: Edgardo Pallero e Sergio Muniz. Vaquejada, cor / 11´/ 16 mm / 1970, direção e roteiro: Paulo Gil Soares; produção: Thomaz Farkas; fotografia: Affonso Beato; música: Cego Birrão e aboios de vaqueiros do Cariri; som direto: Sidnei Paiva Lopes; montagem: Geraldo Veloso; produção executiva: Edgardo Pallero e Sergio Muniz. 186