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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES – UNESP Fernando Luiz Cardoso Pereira Da Polifonia Vocal ao Ricercar Imitativo Relações Estruturais em Obras de Adrian Willaert com Base em Planos Cadenciais São Paulo 2017 Fernando Luiz Cardoso Pereira Da Polifonia Vocal ao Ricercar Imitativo Relações Estruturais em Obras de Adrian Willaert com Base em Planos Cadenciais Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em Música. Área de concentração: Musicologia Orientador: Prof. Dr. Marcos Fernandes Pupo Nogueira São Paulo 2017 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP P436d Pereira, Fernando Luiz Cardoso, 1972Da polifonia vocal ao ricercar imitativo: relações estruturais em obras de Adrian Willaert com base em planos cadenciais / Fernando Luiz Cardoso Pereira. - São Paulo, 2017. 236 f. : il. Orientador: Prof. Dr. Marcos Fernandes Pupo Nogueira. Tese (Doutorado em Música) – Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Willaert, Adrian, 1490?-1562. 2. Cadencia (Musica). 3. Musica - Analise, apreciação. I. Nogueira, Marcos Fernandes Pupo. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 780.15 iii Fernando Luiz Cardoso Pereira Da Polifonia Vocal ao Ricercar Imitativo Relações Estruturais em Obras de Adrian Willaert com Base em Planos Cadenciais Dissertação aprovada como exigência parcial para a obtenção do grau de Doutor em Música no curso de Pós-Graduação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, com área de concentração em Musicologia, pela seguinte banca examinadora: ______________________________________ Prof. Dr. Marcos Fernandes Pupo Nogueira UNESP - Orientador ______________________________________ Prof. Dr. Edilson Vicente de Lima Universidade Federal de Ouro Preto ______________________________________ Profa. Dra. Monica Isabel Lucas USP ______________________________________ Prof. Dr. Paulo Augusto Castagna UNESP ______________________________________ Prof. Dr. Lutero Rodrigues da Silva UNESP São Paulo, 31 de março de 2017 iv À minha esposa, Renata, e à minha filha, Luíza, pelas horas que a elas não dediquei por dedicar-me a este sonho. v AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Marcos Pupo Nogueira, pela orientação ao longo destes anos e pela confiança em meu trabalho. Ao Prof. Carlos Iafelice, já mestre e agora doutorando, pelos inúmeros ‘dialogos em música’ e pelo companheirismo em nossa jornada comum. Ao Grupo de Pesquisa “Teorias da Música”, e às instituições que o suportam. Ao secretariado da pós-graduação do IA-UNESP, em nome de Angela Lunardi, por toda a prestatividade. À Biblioteca da ECA-USP, em nome do bibliotecário Walber Lustosa, pelo excelente atendimento e coleguismo, e à Biblioteca do IA-UNESP. À Profa. Regina Schlochauer, que estimulou-me a seguir o caminho da pesquisa em música, e ao Prof. Sérgio Carvalho e à Profa. Dra. Mônica Lucas, por me proporcionarem os primeiros contatos com a música antiga, bem como as primeiras apresentações. Aos Profs. Alessandro Santoro e Luís Otávio Santos, pela compreensão durante o período mais turbulento da tese. Aos Profs. Drs. Edilson de Lima, Monica Lucas, Paulo Castagna, Lutero Rodrigues, Vitor Gabriel e Cesar Villavicencio pelas valiosas contribuições nas defesas de tese e qualificação. Aos colegas e amigos, músicos populares, eruditos e leigos, incluindo aqui meus irmãos Fábio e Flávio, pelo apoio nesta empreitada. Aos meus pais, João e Ruth, que sempre estarão em meu coração. À CAPES pela bolsa institucional de pesquisa. vi RESUMO O objetivo deste trabalho foi estudar aspectos estruturais em peças polifônicas de Adrian Willaert, visando identificar possíveis relações entre sua obra vocal e instrumental, nominadamente os gêneros moteto e ricercare. Entre os diversos aspectos estruturais que serviram como base de comparação, a cadência foi eleita como elemento comum predominante e mensurável, por seus padrões de ocorrência e tipologia associados à uma classificação relativamente bem estabelecida por Bernhard Meier. Alguns tipos cadenciais pouco comuns foram identificados em peças de Willaert, em especial a cláusula melódica cantizans fuggita, que contudo não poderia ser atribuída ao próprio compositor sem uma investigação sobre sua possível ocorrência em obras de compositores influentes pregressos, como Josquin. Tal observação implicou no estudo de fontes primárias pregressas a Willaert, no intuito de identificar, de um lado, aspectos que corroboraram o desenvolvimento da música instrumental a partir de modelos vocais ao longo dos séculos XV e XVI e, de outro, possíveis influências relacionadas ao uso de tipos cadenciais incomuns. Foi desenvolvido um modelo de plano cadencial expandido na medida em que as peças foram analisadas, contemplando também um método de análise motívica que estimulou o exame de escopo deste método analítico convergente em uma peça de Clemens non Papa, compositor contemporâneo mas pouco relacionado ao círculo de Willaert. Como conseqüência desta pesquisa, foi possível identificar uma estrutura cadencial denominada ‘cadência escalonada’ como um último meio de articulação potencial, além de alguns agrupamentos estruturais acoplados ao padrão cadencial cantizans-tenorizans, nomeado aqui como ‘cadência-C/T’. Palavras-chave: cadência, ricercare, moteto, Willaert, análise vii ABSTRACT The goal of this work was the study of structural aspects in polyphonic pieces by Adrian Willaert, aiming to identify possible relations between his vocal and instrumental works, namely the moteto and ricercare genres. Among the various structural aspects that served as a basis for comparison, cadence was chosen as a measurable and predominant common element, by patterns of occurrence and typology associated with a relatively well-established classification by Bernhard Meier. Some unusual cadential species were identified in Willaert’s pieces, specially the melodic clausula cantizans fuggita, which however could not be attributed to the composer without an investigation on its possible occurrence in works by influential composers such as Josquin. This modification implied in the study of primary sources previous to Willaert, in order to identify, on the one hand, aspects that corroborated the development of the instrumental music from vocal models during the fifteenth- and sixteenth-centuries and, on the other hand, possible influences related to the use of these unusual cadential species. An expanded cadential plan model was developed as the pieces were being analyzed, including a method of motivic analysis that prompted the scope examination of this converging analytical method in a piece by Clemens non Papa, a contemporary but unrelated composer to Willaert’s circle. As a consequence of this research, it was possible to identify a cadential structure nominated ‘staggered cadence’ as a ultimate means of potential articulation, besides some structural groupings coupled with the basic cadential pattern cantizans-tenorizans, here nominated as ‘C/T-cadence’. Keywords: cadence, ricercare, moteto, Willaert, analysis viii Sumário INTRODUÇÃO.....................................................................................................................................1 1 O DESENVOLVIMENTO DA MÚSICA INSTRUMENTAL NO RENASCIMENTO ............5 1.1 O tratado Musica getutscht de Virdung, e o instrumentarium musical da época........................5 1.2 Iconografia de época e contexto teórico no tratado de Virdung ...............................................8 1.3 Polifonia vocal a partir do Codex Montpellier e sua possível instrumentalização ..................20 1.4 Um repertório desprovido de texto e o papel das carmina em sua instrumentalização .........33 1.5 Música impressa no século XVI e sua contraparte instrumental ............................................42 1.6 Escrita polifônica a três vozes a partir do Trium vocum carmina de Formschneider ............49 1.7 Escrita a duas vozes ...............................................................................................................56 1.8 A defesa de um repertório exclusivamente instrumental .......................................................59 1.9 Tablaturas italianas para alaúde e teclado ..............................................................................64 1.9.1 O primeiro período de impressões de álbuns para teclado na Itália ...................................66 1.9.2 O segundo período de impressões de álbuns para teclado na Itália ....................................69 1.9.3 O papel dos organistas da Basílica de S. Marco no desenvolvimento do ricercare ............71 2 ASPECTOS DA ESCRITA POLIFÔNICA NO RENASCIMENTO ........................................81 2.1 Imitação e contraponto nos séculos XV e XVI ......................................................................81 2.1.1 Formas de perseguição: técnicas e modelos .....................................................................83 2.1.2 Formas de perseguição em repertórios dos séculos XV e XVI ..........................................85 2.2 Gêneros polifônicos ................................................................................................................87 2.2.1 A Missa .............................................................................................................................87 2.2.2 O Moteto, com foco na obra de Josquin Des Prez ..............................................................89 2.3 Técnicas de composição .........................................................................................................96 2.3.1 Composição sobre melodia conhecida .............................................................................96 2.3.2 Composição sobre melodia concebida livremente ..........................................................101 2.4 Cadências .............................................................................................................................104 2.5 Convenções polifônicas de inflexão cromática ....................................................................107 2.6 O partitio gênero-differentia para cláusula e cadência, segundo Zarlino e Dressler .............109 2.7 Modos ...................................................................................................................................110 2.8 Tópico especial: a polifonia vocal imitativa de Adrian Willaert ..........................................112 2.8.1 Motetos de Willaert ........................................................................................................112 2.8.2 Influência de compositores franco-flamengos sobre Willaert ........................................113 3 ANÁLISE DE PEÇAS POLIFÔNICAS COM BASE EM PLANOS CADENCIAIS ............117 3.1 Planejamento e desenvolvimento analítico ...........................................................................117 3.1.1 O plano tonal de Powers ..................................................................................................118 3.1.2 O plano cadencial de Meier .............................................................................................119 3.1.3 O plano cadencial ampliado.............................................................................................120 3.1.4 Estruturas de agrupamento: ferramentas gráficas e conceitos analíticos .........................123 3.2 Tópico especial: o ricercare ..................................................................................................125 3.2.1 Do ricercare prelúdico ao imitativo ................................................................................125 3.2.2 Ricercares de Adrian Willaert ........................................................................................126 3.2.3 Análise do “Ricercar tertius” a quatro vozes de Willaert ................................................130 3.3 Adrian Willaert e o moteto “Magnum haereditatis mysterium” ..........................................137 3.3.1 Estudo comparativo de fontes primárias em “Magnum haereditatis mysterium” ..........137 ix 3.3.1.1 O cantochão “Magnum haereditatis mysterium” ......................................................138 3.3.1.2 Análise comparativa do moteto “Magnum haereditatis mysterium” de Willaert .....139 3.3.1.3 Disposição textual e silábica .....................................................................................142 3.3.2 Musica ficta e recta e análise por hexacordes ................................................................146 3.3.2.1 Fontes primárias e a edição moderna de Zenck .........................................................146 3.3.2.2 Inflexões recta por inscrição de acidentes, deductio e intabulação ..........................152 3.3.2.3 Análise de inflexões ficta e recta por causa pulchritudines .....................................154 3.3.2.4 Análise de inflexões recta por outras convenções ....................................................157 3.3.3 Análise motívica e cadencial de “Magnum haereditatis mysterium” .............................159 3.4 Clemens non Papa e o moteto “Venit vox de coelo” ...........................................................165 3.4.1 Fontes primárias de “Venit vox de coelo” ......................................................................166 3.4.2 Análise motívica e cadencial de “Venit vox de coelo”, prima pars ...............................170 3.4.3 Concordâncias observadas a partir da prima pars de “Venit vox de coelo” ..................181 3.5. Análises adicionais CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................198 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................................................202 ANEXO I ..........................................................................................................................................214 ANEXO II .........................................................................................................................................218 ANEXO III .......................................................................................................................................222 ANEXO IV .......................................................................................................................................223 x LISTA DE FIGURAS Capítulo 1 Figura 1. Instrumentos com teclas (schlüssel): Virginal, Clavicordium, Claviciterium etc ..................6 Figura 2. Instrumentos com trastes (bünden) e ordens (koren): Lauten, Quintern, Groß Geigen .........6 Figura 3. Instrumentos sem trastes nem teclas, com múltiplas koren: Harpffen, Psalterium etc ...........6 Figura 4. Instrumentos sem trastes nem teclas, com uma a três koren: Trumscheit, Clein Geigen .........6 Figura 5. Instrumentos com orifícios: Russpfeif, Krum horn, Gemsen horn, Zincken, Platerspiel etc ...7 Figura 6. Instrumentos sem orifícios: Busaunen, Felttrummet, Clareta, Thurner horn ........................7 Figura 7. Instrumentos de tubo com foles: Orgel, Positive, Portative, Regal .......................................8 Figura 8. Xilogravuras em frontispícios de álbuns de tablatura para órgão e/ou alaúde .........................9 Figura 9. Meckenem, gravuras retratando instrumentos executados em ocasião pública ou privada ....10 Figura 10. A. Dürer, L. van Leyden e H. Burgkmair. Gravuras com instrumentos .............................11 Figura 11. H. Burgkmair, Ciclo de Hans Burgkmair. Duas pinturas a óleo sobre tela .........................11 Figura 12. Teclado de um monocórdio idealizado por Virdung, de acordo com o gênero diatônico ..12 Figura 13. Scala musicalis, sive manus Guidonis aretini (mão Guidoniana) ......................................15 Figura 14. Letras para intabulação, sobre as correspondentes teclas do clavicórdio ...........................16 Figura 15. “O haylige onbeflecte zart iunckfrawschafft marie”, tenor em notação mensural ...............17 Figura 16. “O haylige onbeflecte zart iunckfrawschafft marie”, tablatura de clavicórdio ....................18 Figura 17. “O haylige onbeflecte zart iunckfrawschafft marie”, tablatura de alaúde (excerto) .............18 Figura 18. Tabela de dedilhados correlatos para flautas doces ............................................................19 Figura 19. Família de violas baixo, tenor, alto e discanto ....................................................................19 Figura 20. H. Gerle, Musica Teusch. Instrumentos, tablatura, instruções de leitura e intabulação .......20 Figura 21. Montpellier Codex. a) Amoureusement mi tient; b) A dieu comment cele ...........................21 Figura 22. Ma fin est mon commencement. G. de Machaut, Poésies, fol. 479v-480r ............................22 Figura 23. Códice Chantilly. a) B. Cordier, Belle, boné, sage; b) Guido, Dieux gart ...........................23 Figura 24. Anônimo, Et in terra pax (a 4). Matteo da Perugia, Liber continens hymnos ......................24 Figura 25. G. Dufay, Puisque vous estez campieur (a 3). Chansonnier Nivelle de la Chaussée ...........25 Figura 26. Magister Johannes, Códice de Modena (quatro peças) ........................................................27 Figura 27. Heinrich Isaac, Argentum et aurum (a 4). Códice Nikolaus Leopold ..................................28 Figura 28. Pierre de La Rue, Missa L’homme armé I, Kyrie I. Codex Jena 22 ......................................29 Figura 29. Pierre de La Rue. Missa Lomme Arme, tenor, resolutio. Petrucci, Misse Petri de la Rue ...31 Figura 30. Pierre de La Rue, Missa L’homme armé I, Et in terra pax. Códice Jena 22 .......................32 Figura 31. H. Isaac, Maudit soit cil qui trouva jaulosie. Chansons e mottetti a tre e quatro voci .........34 Figura 32. Carmen in sol (após Maudit soit de Isaac), discantus. Munich Partbooks ...........................34 Figura 33. Obrecht, Fors seulement l'attente que je meure. Liederbuchlein des Fridolin Sicher .........35 Figura 34. H. Isaac, Missa La mi la sol, prima pars. Códice Basevi ....................................................35 Figura 35. Motetos-chanson no Códice Basevi. a) L. Compère; b) A. Agricola; c) J. Prioris ..............36 Figura 36. Moteto secular latino. Marbrianus de Orto, Dulces exuviae. Códice Basevi .......................37 Figura 37. Moteto-canção. Ghiselin. Anima mea liquefacta. Códice Basevi ........................................37 Figura 38. Tricinium sacro. Ghiselin, O florens rosa. Códice Basevi ..................................................38 Figura 39. Tricinium sacro. La Rue, Si dormiero. Códice Basevi .........................................................39 Figura 40. Intabulações de Si dormiero, atribuídas a: a) Isaac; b) Agricola; e c) Finck .........................40 Figura 41. Peças de Hofhaimer intabuladas para órgão por Kotter .......................................................41 Figura 42. Peças de Hofhaimer intabuladas para alaúde por Neusidler ...............................................41 Figura 43. Hofhaimer, Carmen in Fa (Hercules), discantus. Munich Partbooks ..................................41 Figura 44. Petrucci. Harmonice musices Odhecaton A, peças selecionadas .........................................43 Figura 45. Ockeghem, Ut heremita solus. Petrucci, Motetti C ..............................................................45 Figura 46. E. Öglin, Aus sonderer künstlicher Art, parte do tenor. Duas peças anônimas .....................46 Figura 47. Tabulaturen etlicher lobgesang. (a) Benedictus (órgão); (b) Mein M. ich hab (alaúde) ......46 Figura 48. Formschneider, Schöne auszerlesne lieder, parte do discantus. Duas peças anônimas ........47 Figura 49. Phaletium Dactylicum, parte do Cantus I. Formscheider, Varia carminum genera .............49 Figura 50. Prefácio. H. Formschneider, Trium vocum carmina ...........................................................50 Figura 51. L. Senfl, Das lang. a) peça no. 1, discantus. Trium vocum carmina; b) incipit a 3 ...........52 xi Figura 52. L. Senfl, Fantasia. a) peça no. 67, bassus. Trium vocum carmina; b) incipit a 3 ...............52 Figura 53. Rhau, Tricinia tum veterum. (a) frontispício; (b-d) Exercicium sex vocum ........................55 Figura 54. Jacques da Mantua, Quam pulchra est. Gardano, Motetta trium vocum ..............................55 Figura 55. B. Trombocino, Amor que vuoi ragion. Andrea Antico, Canzoni nove ...............................56 Figura 56. Gardano, Grace et vertu. Berg & Neuber. Bergkreyen: auff zwo Stimmen componirt .........57 Figura 57. F. Spinacino, Recercare. Intabulatura de Lauto, Libro secondo .......................................64 Figura 58. Schiett’arbuscel. Cipriano de Rore, Tutti i madrigali .........................................................65 Figura 59. A. Antico, Frottole intabulate. Trombocino, Amor quando fioriva mia speme .................66 Figura 60. MS Castell’Arquato. M.A. Cavazzoni. Recercada de maca in Bologna ............................67 Figura 61. Intavolatura cioè recercari canzoni himni... libro primo. G. Cavazzoni, recercar primo .....68 Figura 62. Attaingnant. a) Dixneuf chãsons musicales; b) Tabulature pour le jeu Dorgues ...............68 Figura 63. Arrivabene, A. Musica nova, Accommodata... A. Willaert, Ricercar primo, bassus ...........69 Figura 64. J. Buss, Et puís a ton. J. Moderne, Le parangon des chansons, Tiers livre, fol. 19 ...............72 Figura 65. Padovano, recercar del ottavo tono. Fallamero, G. Il libro primo de intavolatura da liuto.73 Figura 66. Ricercare del nono tono. Andrea Gabrieli, Il terzo libro di ricercari ................................74 Figura 67. G. Gabrieli, toccata del secondo tuono. Girolamo Diruta, Il Transilvano .........................75 Figura 68. C. Merulo, “Canzon decimaottava”. Raverii, Canzoni per sonare... libro primo ...............77 Figura 69. C. Merulo, “Canzon Dita Petit Jacquet”. Canzoni d´intavolatura d´organo... libro primo.77 Figura 70. C. Merulo, “Toccata Nona”. Verovio, Toccate d´intavolatura d´organo libro primo .........78 Figura 71. Mortaro, “Canzone detta l’Albergona, partita & intabulata”. Diruta, Transilvano 2a parte.79 Figura 72. L. Luzzaschi, “Ricercare”. G. Diruta, Seconda parte del Transilvano ...............................80 Capítulo 2 Figura 73. Dufay, “Nuper rosarum flores”. Códice alfa.x.1.11, Choralis liber ...................................90 Figura 74. Josquin, “Salve regina” a 5. Petrus Alamire, MS Mus. Ms. 34............................................97 Figura 75. Josquin, “Miserere mei, Deus”, tenor secundus. Petrucci, Motetti de la Corona. Libro 3 ..98 Figura 76. Josquin, “Illibata dei virgo nutrix”, tenor. MS Capp. Sist. 15 ..............................................99 Figura 77. Tenor de “Huc me sydereo”, conduzindo o cantochão “Plangent eum” ............................100 Figura 78. Cantochão “Plangent eum”, antifonário da Biblioteca de Klosterneuburg .......................101 Figura 79. Josquin, “De profundis clamavi” (a 5), superius, inscrição canônica. MS Capp. Sist. 38 ..102 Capítulo 3 Figura 80. Ferramenta gráfica para agrupamento expositivo .............................................................123 Figura 81. Ferramenta gráfica para agrupamento digressivo ..............................................................123 Figura 82. Ferramenta gráfica para agrupamento polirrítmico ...........................................................123 Figura 83. Ferramenta gráfica para agrupamento homorrítmico .......................................................123 Figura 84. Ferramentas gráficas para o ‘constructo contrapontístico’ ...............................................124 Figura 85. Ferramenta gráfica para duplicação ..................................................................................124 Figura 86. “Magnum haereditatis mysterium”, livro de partes manuscrito (Ferrara: c.1527-33) ......148 Figura 87. “Magnum haereditatis mysterium”, livro de coro manuscrito (Roma: 1536) ...................149 Figura 88. “Magnum haereditatis mysterium”, livro de partes manuscrito (Königsberg: 1537-44) ...149 Figura 89. “Magnum haereditatis mysterium”, livro de coro manuscrito (Heilsbronn, 1541) ............150 Figura 90. “Magnum haereditatis mysterium”, livro de partes impresso (Augsburg, 1540) ...............150 Figura 91. “Magnum haereditatis mysterium”, livros de partes impressos em Ferrara e Veneza ........151 Figura 92. “Venit vox de coelo”, livro de coro manuscrito (Munique: após 1552) ...........................167 Figura 93. “Venit vox de coelo”, livro de partes impresso (Veneza: Scotto, 1554) ...........................167 Figura 94. “Venit vox de coelo”, livro de partes impresso (Antuérpia: Phalèse, 1555) ......................168 Figura 95. “Venit vox de coelo”, livro de partes manuscrito (Kassel: Heugel, após 1555) .................168 Figura 96. “Venit vox de coelo”, livro de partes impresso (Nuremberg: Berg, 1559) .........................168 Figura 97. “Venit vox de coelo”, livro de coro manuscrito (Leiden: Blawe, 1559) .............................169 xii LISTA DE TABELAS Capítulo 1 Tabela 1. Figuras de duração em notação mensural e em tablatura .......................................................17 Tabela 2. “Missa L’homme armé” (La Rue), atribuição silábica para o 1o motivo no bassus ...............29 Tabela 3. Chansons compiladas na Itália, encontradas como “Carmen in Sol” em códices alemães ....33 Tabela 4. Posicionamento numérico de peças com o título “Carmen”, em MS Vienna 18810 ..............42 Tabela 5. Petrucci, Motetti C. Peças com texto substituído por incipit, exceto na voz entre parêntesis.44 Tabela 6. Formschneider, obras impressas até 1550 .............................................................................48 Tabela 7. Publicações dedicadas a formações a três, a partir de 1540 ...................................................53 Tabela 8. Publicações alemãs para duas vozes, a partir de 1540 ...........................................................57 Tabela 9. Peças de Ant. Gardano (RISM 1539/21) ocorrentes em livros posteriores de bicinia ........58 Tabela 10. Algumas obras compiladas nos dois livros de Intavolatura de Lauto de F. Spinacino ........64 Tabela 11. Ricercares a três vozes por autores diversos em fontes distintas no séc. XVI ......................70 Tabela 12. Obras de Andrea Gabrieli para teclado, em tablatura ou em livro de partes ........................74 Tabela 13. Obras de Claudio Merulo para teclado, em intabulação ou em livro de partes ....................76 Capítulo 2 Tabela 14. Peças polifônicas com abertura em ‘perseguição’, ordenadas segundo figuras, Cap. 1 ......85 Tabela 15. Motetos de Josquin em seção única a vozes diversas; principais técnicas de composição.92 Tabela 16. Motetos de Josquin em duas seções a vozes diversas; principais técnicas de composição .93 Tabela 17. Motetos de Josquin em três seções a vozes diversas; principais técnicas de composição ...94 Tabela 18. Motetos de Josquin reunidos por tipo de texto ....................................................................95 Tabela 19. Compilação de convenções para inflexões em polifonia, segundo Routley ....................108 Tabela 20. Os oito modos e os tenores do tons salmódicos correspondentes, segundo Wiering .......111 Tabela 21. Motetos de atribuição incerta entre Willaert e compositores influentes ..........................115 Tabela 22. Willaert e possíveis compositores influentes ...................................................................115 Tabela 23. Motetos a quatro vozes de Willaert ..................................................................................116 Capítulo 3 Tabela 24. Premier livre des chansons à 3 parties. Seleção de entradas em tabela de Powers..........118 Tabela 25. Plano cadencial de Meier para o moteto “Exsultate Deo” a cinco vozes de Lechner .........119 Tabela 26. Plano cadencial para Se la belle, modo mixolídio .............................................................122 Tabela 27. Ricercares de Adrian Willaert ou atribuídos a ele, catalogados por Kidger ......................127 Tabela 28. Planos tonais e determinação de modos de ricercares a três e quatro vozes de Willaert ....128 Tabela 29. Plano tonal e determinação do modo do ricercare a cinco vozes atribuído a Willaert .......129 Tabela 30. Conjuntos agrupados por relações de modos e número de vozes ......................................129 Tabela 31. Plano cadencial para o “Ricercare tertius” de Willaert ......................................................136 Tabela 32. Algumas regras (selecionadas) de Lanfranco (1533) e de Stocker (1570) .........................144 Tabela 33. No. de ligaduras em motetos “Magnum haereditatis mysterium” de Willaert ...................145 Tabela 34. Cronologia de “Magnum haereditatis mysterium” em manuscritos ou impressos ...........147 Tabela 35. Palavras associadas a um e♭ inscrito no tenor de “Magnum haereditatis mysterium” .......152 Tabela 36. Inflexões ocorrentes por acidente inscrito, deductio ou em tablatura; notas e ocorrentes .153 Tabela 37. Inflexões de e relativas ao tenor e ao bassus, por deductio entre e♭ e e♮ ............................153 Tabela 38. Inflexões de e relativas ao cantus e ao altus, por deductio entre e♭ e e♮ .............................154 Tabela 39. Ocorrências de f♯ ficta para “Magnum haereditatis mysterium” (a 4) de Willaert .............155 Tabela 40. Ocorrências de c♯ e b♮ ficta para “Magnum haereditatis mysterium ................................155 Tabela 41. Ocorrências recta no cantizans e no altizans de “Magnum haereditatis mysterium” .........156 Tabela 42. Ocorrências recta no tenorizans e no basizans de “Magnum haereditatis mysterium” ......156 Tabela 43. Relação das fontes primárias consultadas para o preparo de transcrição analítica ...........166 Tabela 44. Convenções indicativas do posicionamento dos versos do texto, utilizadas na análise .....171 Tabela 45. Plano cadencial para Venit vox de coelo, versos 1, 2 e 3....................................................175 Tabela 46. Plano cadencial para Venit vox de coelo, versos 4, 5, 6 e repetição ...................................180 Tabela 47. Motetos com finalis em F contidos no Tabulaturbuch auff Orgeln... de Rühling (1583) ..185 xiii Tabela 48. Willaert, “Beata viscera Maria virginis”, plano cadencial ...............................................192 Tabela 49. Willaert, “Recercar quarto”, plano cadencial ...................................................................197 LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS Capítulo 1 Exemplo 1. Sistemas perfeito maior e menor, constituintes do sistema imutável .................................13 Exemplo 2. L’homme armé, canção secular francesa, como cantus firmus .........................................29 Exemplo 3. Edição moderna de um ricercare de Buus, em partitura aberta e intabulação ..................72 Capítulo 2 Exemplo 4. Agricola, incipits. a) “Oblier veult douleur et tristesse”; b) “Comme femme” ................86 Exemplo 5. La Rue, “Missa Ave Maria”. Exordium das seções a quatro vozes ..................................88 Exemplo 6. Cantochão “Ave Maria” como “Credo” da “Missa Ave Maria” de La Rue .......................88 Exemplo 7. Ockeghem, “Kyrie” da Missa caput .................................................................................89 Exemplo 8. Josquin, “De profundis clamavi” (a 5). Das Chorwerk, vol. 57, 1955 .............................102 Exemplo 9. Cantizans, com a sensível sincopada ...............................................................................104 Exemplo 10. Altizans, geralmente sustentando o quinto grau .............................................................104 Exemplo 11. Tenorizans, sempre descendo um grau para a finalis .....................................................104 Exemplo 12. Basizans, que alcança a finalis por salto descendente ou ascendente .............................104 Exemplo 13. Clausula vera, semiperfeita ..........................................................................................105 Exemplo 14. Cadência perfeita ..........................................................................................................105 Exemplo 15. Cadência plena ..............................................................................................................105 Exemplo 16. Clausula frigia ..............................................................................................................106 Exemplo 17. Cadência semiperfeita (sem ficta, clausula doria) ........................................................106 Exemplo 18. Cadência escalonada .....................................................................................................106 Exemplo 19. Cantizans diminuta .......................................................................................................106 Exemplo 20. Todas as possibilidades de perturbação ........................................................................106 Exemplo 21. Inversão da cadência C/T ..............................................................................................106 Exemplo 22. Cadenza perfetta com resolução em 8ª de acordo com Zarlino ....................................109 Exemplo 23. Cadenza imperfetta com resolução em 3ª ou em 5a de acordo com Zarlino ...................109 Exemplo 24. Clausulae perfectae com movimento basizans de acordo com Dressler ........................110 Exemplo 25. Clausulae semiperfectae sem movimento basizans de acordo com Dressler .................110 Capítulo 3 Exemplo 26. G. Binchois, “Se la belle”. Wilibald Gurlitt, Sechzehn weltliche lieder zu 3 stimmen ....121 Exemplo 27. Exordium do “Ricercar tertius” de Willaert. Agrupamentos expositivo e digressivo ....131 Exemplo 28. Exordium do “Ricercar tertius” de Willaert. Cadências nos tons de A e D ...................132 Exemplo 29. Medio do “Ricercar tertius” de Willaert, cc. 26-54 ........................................................133 Exemplo 30. Medio do “Ricercar tertius” de Willaert, cc. 55-74 .......................................................134 Exemplo 31. Finis do “Ricercar tertius” de Willaert, c. 75 ao fim ......................................................135 Exemplo 32. Antífona “Magnum haereditatis mysterium” ................................................................139 Exemplo 33. Fragmentos 1, 2 e 3 em fontes primárias de “Magnum haereditatis mysterium” ...........141 Exemplo 34. Fragmentos 4, 5 e 6 em fontes primárias de “Magnum haereditatis mysterium” ...........142 Exemplo 35. Fragmentos 7, 8 e 9 em fontes primárias de “Magnum haereditatis mysterium” ...........143 Exemplo 36. “Magnum haereditatis mysterium”, análise do segmento “Magnum hereditatis” ........159 Exemplo 37. “Magnum haereditatis mysterium”, análise do segmento “templum Dei factus est” ...160 Exemplo 38. “Magnum haereditatis mysterium”, análise do segmento “uterus nesciens virum” .....161 Exemplo 39. “Magnum haereditatis mysterium”, análise do segmento “non est pollutus” ...............162 Exemplo 40. “Magnum haereditatis mysterium”, análise do segmento “carnem assumens” ............162 Exemplo 41. “Magnum haereditatis mysterium”, análise do segmento “venient dicentes” ..............163 xiv Exemplo 42. “Magnum haereditatis mysterium”, análise do segmento “Gloria tibi domine” ..........164 Exemplo 43. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, início do exordium (primeiro verso) ................173 Exemplo 44. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, fim do exordium, imbricação, início 2o verso .174 Exemplo 45. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, fim do 2o verso, imbricação, início 3o verso .....174 Exemplo 46. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, fim do 3o verso / início do 4o verso ...................176 Exemplo 47. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, fim do 4o verso / início do 5o verso .................177 Exemplo 48. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, continuação do 5o verso com análises ...........177 Exemplo 49. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, exposição do verso final ................................178 Exemplo 50. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, exposição secundária do verso final ..............179 Exemplo 51. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, final do verso “contra sitimulum calcitrare” ....180 Exemplo 52. Clemens non Papa, “Respondit miles”, exposição final de “contra stimulum…” .........181 Exemplo 53. Clemens non Papa, “Vox de coelo sonuit”, motivo de terças descendentes .................182 Exemplo 54. Clemens non Papa, “Venit vox de coelo”, em arranjos vocal e intabulado para órgão ..183 Exemplo 55. Orlando di Lasso, “Tempus est ut revertar” ..................................................................187 Exemplo 56. Willaert, “Beata viscera Maria virginis”, análise cadencial .........................................190 Exemplo 57. Willaert, “Beata viscera Maria virginis”, análise cadencial (continuação) ..................191 Exemplo 58. Willaert, “Recercar quarto”, análise cadencial .............................................................193 Exemplo 59. Willaert, “Recercar quarto”, análise cadencial (continuação) ......................................194 Exemplo 60. Willaert, “Recercar quarto”, análise cadencial (continuação) ......................................195 Exemplo 61. Willaert, “Recercar quarto”, análise cadencial (continuação) ......................................196 LISTA DE ESQUEMAS Capítulo 1 Esquema 1. O gamut completo e o sete hexacordes ..............................................................................15 Esquema 2. Fragmentação entre vozes. Primeira seção do Gloria da Missa L’homme armé ................32 Capítulo 2 Esquema 3. Iafelice, C. Diss. de mestrado. Quadro da possível emersão da polifonia na Europa .......81 Capítulo 3 Esquema 4. Plano articular do exordium do “Ricercar tertius” ...........................................................132 Esquema 5. Sugestão de filiação estemática com base em aspectos conjuntivos e separativos ...........169 Esquema 6. Padrão gráfico das setas em arranjo a voce piena ............................................................170 Esquema 7. Distribuição dos versos nas cinco vozes no exordium de “Venit vox de coelo” .............171 Esquema 8. Possível inflexão da nota B nos oito modos, segundo hexacordes e suas mutações .........188 xv 1 INTRODUÇÃO A música renascentista dos séculos XV e XVI é hoje objeto de amplo estudo, não só por sua singularidade e abundância em fontes históricas mas também por seu papel na gênese da música barroca no século XVII. No Brasil, um público de apreciadores, intérpretes e pesquisadores nesta esfera tem se formado parte em extensão à cultura musical barroca já estabelecida no país,1 cuja demanda por subsídios interpretativos fomenta a apreciação do período anterior.2 Enquanto o barroco distingue-se do renascimento com a edificação da seconda prattica nos alicerces do stile moderno, a escrita polifônica em stile antico do renascimento conservase ao longo do barroco por meio de técnicas como a fuga (que dá origem ao gênero instrumental homônimo para teclado) e seu símile menos estrito, a imitação, na qual modelam-se os ricercares deste período. Durante o renascimento, entretanto, o ricercare ocorre em formas variadas de instrumentação, estratificação em vozes e tratamento temático, polifônico e contrapontístico, que serão cruciais para o desenvolvimento de gêneros instrumentais do barroco como a abertura francesa, o trio sonata e muito da polifonia para teclado incluindo a própria fuga. O presente estudo tem como objeto o ricercare imitativo e o desenvolvimento de sua escrita no século XVI em Veneza, com foco especial na obra de Adrian Willaert (c.1490-1562) e em sua relação com modelos vocais (motetos e hinos) de mesma autoria, por meio de avaliação do plano cadencial dessas obras e pelo seu confrontamento intragênero (ricercarricercar) e intergênero (moteto-ricercar) por grau de similaridade (ou dissimilaridade) estrutural, entre outros aspectos (cronologia, estilo, estratificação). Estas apreciações poderiam ser extendidas (se possível) a dois compositores contemporâneos a Adrian Willaert e pupilos seus, os organistas da Basílica de São Marco, Andrea Gabrieli e Claudio Merulo, cuja produção de motetos, ricercares ensemble e ricercares para instrumentos de teclado sugere um material propício para análise. O objetivo prototípico desta tese seria identificar as relações entre escritas vocal e instrumental neste círculo de compositores ligados à Basílica de São Marco e fornecer subsídios de análise para este tipo de repertório, favorecendo o aprofundamento em seus estudos teóricos e de performance. 1 Por outro lado, a complexidade modal-polifônica da música renascentista inspira hoje teóricos e compositores em seu estudo. 2 O próprio autor deste trabalho, envolvido na performance do repertório destes dois períodos ao cravo e ao órgão, tem notado uma maior familiaridade à polifonia barroca ao estudar aquela do renascimento. 2 Os diversos tópicos em estudo foram agrupados em três capítulos neste trabalho, segundo seu viés musicológico. No Capítulo 1, “O desenvolvimento da música instrumental no Renascimento”, a perspectiva histórica conduz os eventos que culminam na independência da música vocal em relação à instrumental, portanto focando obras que, se não fossem instrumentais em sua origem, poderiam ser tocadas por instrumentos. Já no Capítulo 2, “Aspectos da escrita polifônica no Renascimento” a perspectiva é teórica, buscando evidenciar as principais técnicas de composição, desde a imitação até o uso de cadências e modos. Por fim, o Capítulo 3 “Análise de peças polifônicas com base em planos cadenciais” apresenta o desenvolvimento de uma metodologia analítica aplicável tanto aos motetos quanto aos ricercares, a fim de compará-los. O Ricercare, gênero que estimulou a pesquisa aqui apresentada, é apresentado com uma bibliografia atualizada sobre seu desenvolvimento no século XVI e sua produção por Adrian Willaert, sugerindo as obras com potencial analítico. Já a escrita vocal polifônica é enfocada contextualizando o moteto entre os gêneros vocais do fim do século XV e a possível influência de compositores como Josquin sobre Willaert. A comparação de obras musicais visando estabelecer relações estruturais parte da prospecção de seus componentes estruturais básicos, ou seja, texto e música. No caso de obras vocais polifônicas do renascimento, a escrita depende de técnicas de composição que enalteçam seu texto, aspecto que vai se refletir na escrita instrumental em desenvolvimento à época. Tornase premente portanto investigar a natureza tanto desta escrita vocal, em sua multitude de características, como a de sua contraparte instrumental. A primeira etapa deste trabalho foi a seleção e obtenção de fac-similes de fontes primárias destas obras polifônicas renascentistas. A maior parte das obras analisadas foi transcrita em partitura a partir destas fontes, o que demandou o aprofundamento conceitual para interpretações de escrita mensural, musica ficta, hexacordes e colocação silábica. O moteto “Magnum haereditatis mysterium” a 4, de Willaert, serviu como modelo para a exploração destes e de outros aspectos, representados em publicações a seguir mencionadas. O estudo comparativo de fontes primárias de “Magnum haereditatis mysterium” (PEREIRA; NOGUEIRA, 2014, pp. 211-224) permitiu traçar relações de transmissão entre seu cantochão e publicações de época do moteto em arranjos a quatro e cinco vozes por Willaert, incluindo seu manuscrito mais antigo. A análise do cantochão apontou duas correntes históricas, uma em modo hipodórico transposto e outra sem transposição. Estas fontes foram comparadas à transcrição do Liber usualis e ao cantus firmus nas várias edições dos motetos de Willaert, 3 visando compreender seus padrões de variação nos motetos. Para este propósito, foi realizada a análise melódica e silábica do texto, de acordo com regras de colocação silábica de Lanfranco e Stocker. Foi realizada também a uma discussão sobre cultura de impressão envolvendo intérpretes, compositores, editores e teóricos neste processo. Análises de hexacordes e de inflexões ficta e recta (PEREIRA, 2016, pp. 179-196) foram realizadas com base em convenções de clausulae cadenciais como causa necessitatis e causa pulchritudines do moteto em manuscritos e impressos, editados em livros de parte, de coro e em tablatura, comparados ainda à edição moderna de Zenck. Tanto as ocorrências de inflexão ficta e recta bem como as discrepâncias de atribuição entre a tablatura de Gintzler e a edição de Zenck foram esclarecidas, porém em oposição à idéia geral de que tablaturas são fontes seguras para a interpretação por deductio. Aspectos de transmissão de “Magnum haereditatis mysterium” foram investigados pela análise detalhada da colocação silábica em suas fontes primárias (PEREIRA, 2015a, p. 61-73), conduzindo a uma avaliação de filiação estemática das alterações de sua notação em suas fontes primárias. Discordâncias de colocação silábica por parte de copistas diversos permitiram uma relação matricial de dados que revelou duas correntes de escrita, uma a partir de Ferrara e outra a partir Augsburg. Este trabalho não foi, de fato, incluído no corpo da tese, sendo adicionado como ANEXO IV para consultas e referências quaisquer. Em seguida, um conjunto de ferramentas analíticas em observação à bibliografia disponível foi aplicado a transcrições deste repertório. Análises preliminares foram exercidas sobre o “Ricercar tertius” de Willaert (1490-1562) e sobre o moteto “Venit vox de celo” de Clemens non Papa (1510-1555), dois contemporâneos cuja obra é reverenciada em tratados de Gioseffo Zarlino (1517-1590) e Gallus Dressler (1533-1589) respectivamente e cujos aspectos comuns de escrita poderiam servir como “controle” na avaliação de técnicas, dada a improbabilidade histórica de seu intercâmbio. A convergência de duas ferramentas – a análise motívica e o plano cadencial – na análise do moteto “Venit vox de coelo”, de Clemens non Papa, mostrou uma forte associação do texto com seu tratamento cadencial. Seu estudo a partir de diversas fontes primárias apontou discrepâncias relevantes de inflexão cromática e de colocação silábica para postular o plano cadencial. Estabeleceram-se correlações entre a hierarquia de cadências e articulações do texto, enquanto que as relações motívicas em cada segmento do texto possibilitaram a diferenciação entre processos imitativos estritos e digressivos. A associação das duas estratégias analíticas mostrou que a dramaticidade do texto é modulada nas diversas seções do moteto pelo uso 4 deliberado de espécies cadenciais (perfeita, semiperfeita, completa, incompleta) e por padrões de imbricação que refletem a articulação do discurso, revelando um plano articular para além daquele cadencial, observável também no ricercare. A convergência também foi realizada para “Magnum haereditatis mysterium”, resultando em dados com os quais foram traçados importantes paralelos. Ambos os trabalhos estão sendo publicados, estando no prelo (NOGUEIRA; PEREIRA, 2016, pp. 1-27). O plano cadencial também foi discutido como ferramenta analítica para o “Ricercar Tertius” (PEREIRA, 2015b, p. 47). Visando desenvolver dispositivos teóricos para a análise de ricercares, foram discutidas as terminologias para cláusulas, categorias e planos cadencias como descrito por Meier e Castilho, em vista de sua aplicabilidade, com base em diversos tratados de época. Foram identificadas fortes relações entre cláusulas formalis perfeitas e as articulações estruturais deste ricercare de Willaert e expandiu-se o modelo cadencial de Meier, incluindo-se vozes complementares à análise e considerando articulações não cadenciais ao estudo. Os primeiros ricercares de Willaert aqui examinados, a quatro vozes, integram a coletânea Musica nova accomodata (1540), da qual boa parte é reproduzida no álbum Musicque de Joye (1550). Tratam-se de ricercares cuja escrita a voce piena tem paralelos com o moteto a quatro vozes. Seu plano cadencial, entretanto, diferencia-se especialmente pela utilização de arcaísmos. Ricercares a três vozes, contudo, são majoritários na obra instrumental de Willaert. Nestes, a escrita parece mimetizar aquela a voce piena, sendo possível identificar duas das quatro entradas imitativas em uma única voz, em semelhança à escrita a três vozes de seu poucos motetos (e seções de hinos). Análises do “ricercar quarto” (1559) e o moteto “Beata viscera Mariae virginis” (1549) de Willaert, ambos nesta formação, são apresentadas como exemplos de aplicação da metodologia desenvolvida. 5 1 O DESENVOLVIMENTO DA MÚSICA INSTRUMENTAL NO RENASCIMENTO Durante as décadas de 1950 e 1960, foram produzidos importantes textos sobre música instrumental no Renascimento, como “Instrumental music of the 16th Century” (REESE, 1959), “Instrumental Music Printed Before 1600” (BROWN, 1965), “Concerted Instrumental Music” (MEYER, 1968) e “Solo Instrumental Music” (APEL, 1968). Estes textos sintetizam capítulos importantes da pesquisa em música dos séculos XV e XVI, que aliadas às posteriores discussões sobre o tema, propiciam uma visão mais nítida dos eventos históricos que impulsionaram a emancipação da polifonia instrumental imitativa, e em específico a do gênero ricercare. Parte desse impulso é decorrente de um variado instrumentarium no século XV, representado em iconografia de época1 e em tratados teórico-práticos do início do século XVI, pioneiramente o de Sebastian Virdung (c.1465-fl.1511). Neste capítulo, evidências deste desenvolvimento em fontes primárias foram rastreadas desde o século XIII ao XVI, focando a teoria de época segundo Virdung, aplicada à intabulação ao órgão e ao alaúde. 1.1 O tratado Musica getutscht (1511) de Virdung, e o instrumentarium musical da época Musica getutscht2 é considerado o primeiro relato impresso sobre instrumentação com vasta iconografia, seguido de Musica instrumentalis Deudsch (AGRICOLA, 1529)3. Em forma de diálogo com Andreas Silvanus (interlocutor e discípulo no tratado), Virdung sistematiza os instrumentos musicais4 em categorias como cordas (seyten), sopros (windt) ou metais (mettalen), que se subdividem em “tipos”, segundo aspectos morfológicos ou mecânicos. A categoria das cordas, por hora, se divide em: a) instrumentos com teclas (schlüssel), como Virginal, Clavicordium, Claviciterium, Clavicimbalum e Lyra (viela de roda ou hurdy-gurdy); b) instrumentos com trastes (bünden) e ordens (koren5), como Lauten (alaúde), Quintern (alaúde soprano) e Groß Geigen (lira da gamba ou lirone); c) instrumentos sem trastes nem teclas, porém com múltiplas koren, como Harpffen (harpa), Psalterium e Hackbrett (dulcimer de martelos); e d) instrumentos sem trastes nem teclas, porém com uma a três koren, como Trumscheit (tromba marina) e Clein Geigen (rabeca), descritos nas Figuras 1 a 4. 1 Cf. instrumentos em iconografia medieval e renascentista em Lassetter (1991, pp. 105-116), Egan (1961, com imagens entre pp. 192-193), Polk (1989, pp. 393-396), Powers (2001, pp. 20-22) e Carlone (2005, p.77). 2 Cf. edição crítica moderna em língua inglesa (BULLARD, 1993). 3 Cf. edição crítica moderna em língua inglesa (HETTRICK, 1994). 4 Nomes de instrumentos, como relatados por Virdung, serão mencionados em itálico e inicial maiúscula; a tradução para alguns instrumentos teve como base a enciclopédia Musical Instruments of the World (DIAGRAM GROUP, 1997) e é praticada entre parêntesis e com inicial minúscula. 5 Possivelmente o mesmo que o atual termo Choren, sinônimo de saitenpaaren, ou seja, “cordas duplas”. 6 Figura 1. Instrumentos com teclas (schlüssel): Virginal, Clavicordium, Claviciterium, Clavicimbalum, Lyra. Figura 2. Instrumentos com trastes (bünden) e ordens (koren): Lauten, Quintern, Groß Geigen. Figura 3. Instrumentos sem trastes nem teclas, com múltiplas koren: Harpffen, Psalterium, Hackbrett. Figura 4. Instrumentos sem trastes nem teclas, com uma a três koren: Trumscheit, Clein Geigen. Já na categoria dos sopros (holen roren6), instrumentos distinguem-se primordialmente entre os que podem ou não ser soprados (geplasen, atualmente geflasen) por um instrumentista; o primeiro desses grupos se subdivide em: a) instrumentos com orifícios (cujo fechamento e abertura são controlados pelos dedos), como Russpfeif (bocal de flauta), Krum horn (ocarina), Gemsen horn (ocarina de chifre), Zincken (corneto), Platerspiel (gaita de bexiga), Krumhörner 6 “Tubos ocos”, parecendo não haver um correlato moderno exato do termo (hohle röhren ou hohlrohre). 7 (família dos cromornes), Sackpfeiff (gaita-de-fole ou cornamusa), Schalmey (charamela ou shawn), Bombardt (bombarda, charamela tenor ou shawn tenor), Schwegel (gaita de três furos7), Zwerchpfeiff (flauta traverso) e Flöten (flautas baixo, tenor e discanto8); b) instrumentos sem orifício, controlados apenas pelo sopro: Busaunen (trombone de vara), Felttrummet (trompete campal), Clareta (clarim), e Thurner horn (trompete de guarda), mostrados nas Figuras 5 e 6. Figura 5. Instrumentos com orifícios: Russpfeif, Krum horn, Gemsen horn, Zincken, Platerspiel, Krumhörner, Sackpfeiff, Schalmey, Bombardt, Schwegel, Zwerchpfeiff, Flöten. Figura 6. Instrumentos sem orifícios: Busaunen, Felttrummet, Clareta, Thurner horn. Para alguns instrumentos de sopro, como o Orgel (órgão), Portative, Positive e Regal, o fluxo de ar é acionado por foles (plaspelge, atualmente balg ou blasebalg). Eles formam uma subcategoria que também dispõe de um teclado, neste caso para controlar válvulas de passagem de ar nos tubos (ou palhetas, no caso do regal), como mostrado na Figura 7. A terceira categoria, aquela dos instrumentos metálicos ressonantes, incluem os sinos, cuja altura de nota é definida por sua massa específica9, e o triângulo. Percussões e instrumentos bíblicos também são citados. 7 Também conhecido como hand-pipe (gaita de mão) por ser executada com uma única mão, ou tabor-pipe (gaita com tambor), pois um tambor, executado com a mão livre, acompanhava a gaita. Ver Figura 9a, adiante. 8 Este termo será será utilizado no presente trabalho como sinônimo de “voz superior”, desvinculado do sentido de “técnica” comum à polifonia aquitaniana (século XII), e corresponderá aos termos ‘cantus’ e ‘superius’ 9 Virdung compara esta categoria à subcategoria dos órgãos, pela proporcionalidade das massas de sinos consonantes (sob intervalos de oitava ou de quinta), comparável àquela entre as medidas dos tubos do órgão. 8 Figura 7. Instrumentos de tubo com foles: Orgel, Positive, Portative, Regal (todos são também de teclado). A capacidade sonora destes instrumentos renascentistas determinava seu uso para fins sociais ou domésticos. Neste sentido, os instrumentos se distinguiam em “categorias públicas ou privadas”, de acordo com sua sonoridade, como relatam Coelho e Polk (2016, p. 5): “Ouvintes e músicos do século quinze viam os instrumentos geralmente divididos em duas classes [n.e., de volume], os ‘sonoros’ (haut) e os ‘suaves’ (bas), distintos pelo timbre, e em geral, ocupando papéis definidos em cada contexto. As categorias ‘sonoras’ incluíam trompetes, shawms e outros sopros (exceto as flautas), trombone e gaita de foles. Instrumentos para música ‘suave’ consistiam em órgãos e outros instrumentos de teclado com cordas (como clavicórdios e cravos), alaúdes e outras cordas dedilhadas, todos os instrumentos de cordas e arco, e flautas”. 1.2 Iconografia de época e contexto teórico no tratado de Virdung A iconografia de época é representada em meios como xilogravura (como em tratados de Arnolt Schlick, Pierre Phalèse e Elias Ammerbach, Figura 8), gravura (como as de Israhel von Meckenem, Albrecht Dürer, Lucas van Leyden e Hans Burgkmair, Figuras 9 e 10) e pintura (como as de Burgkmair, Figura 11). Os instrumentos mais sonoros ocorrem geralmente em ensemble (ou junto a vozes e instrumentos menos sonoros), como em cenas de banquete, celebração ou dança (Figuras 8b, 8c, 9a). Já os instrumentos menos sonoros, mais adequados a performance solista ou pequenas formações, ocorrem no cotidiano doméstico (Figuras 9b, 9c, 9d), de rua (Figuras 10a, 10b) ou mesmo da corte (Figura 10c) ou da igreja (Figura 11a). É curioso notar que, apesar da profusão de bandas de sopro em toda a Europa, e em especial no império Germânico (POLK, 1987, pp. 162-166), os avanços em notação, estilo e difusão musical a partir de 1500 são mais relacionados aos instrumentos domésticos. Coelho e Polk (op. cit., pp. 2-3) notam que “boa parte da música vocal era arranjada por instrumentistas, sendo popularizada em versões instrumentais”, e que tais arranjos eram a via comum de contato com o repertório vocal sacro e secular pela maior parte desta audiência (Figuras 11a, 11b). 9 (a) (b) (c) (d) Figura 8. Xilogravuras em frontispícios de álbuns de tablatura para órgão e/ou alaúde. (a) musicista em Tabulaturen etlicher Lobgesang (SCHLICK, 1512); (b) banquete musical em Orgel oder Instrument Tabulatur (AMMERBACH, 1571); (c) celebração musical em Ein new kunstliche Tabulaturbuch (AMMERBACH, 1575); (d) recital em Des Chansons & Motetz Reduictz en tabulature (PHALÈSE, 1547). Os instrumentos podem ser ordenados segundo as categorias de Virdung. Cordas: clavicórdio (c), alaúde (a,c,d), quintern (c), viola da gamba (c,d), harpa (a,d), rabeca (a). Sopros: corneto (c), gaita de fole (c), traverso (b,c,d), flauta doce (a,d), trompete ou clarim (b,c), portativo (a), positivo (b,c,). Metais: triângulo (c). Também ocorrem vozes (c,d). 10 (a)10 (b)11 (c)12 (d)13 Figura 9. Israhel von Meckenem, gravuras retratando instrumentos executados em ocasião pública ou privada. (a) A dança na corte de Herodes (21,1 x 31,3 cm). Banda de sopros com Gemsen horn (ocarina de chifre), Schwegel (gaita com tambor) e Busaunen (trombone de vara) servindo a uma celebração com dança e banquete. (b, c, d) Cenas da vida cotidiana (16 x 10.9 cm). Coleção de doze gravuras das quais três detalham execuções domésticas de harpa, alaúde, canto e órgão positivo (com foles). 10 Israhel von Meckenem, The dance at the court of Herod, c.1495. Londres: The British Museum. Disponível em: <www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?assetId=52759001&objectI d=1402352&partId=1>. Acesso em: 21 nov. 2016. 11 Israhel von Meckenem, Lute player and harpist, c.1495-1503. Nova Iorque: Metropolitan Museum of Art Online collection. Disponível em: <www.metmuseum.org/art/collection/search/336177>. Acesso em: 21 nov. 2016. 12 Israhel von Meckenem, The singer and the lute player, c. 1495. Chicago: Chicago Arts Intitvt Online collection. Disponível em: <www.artic.edu/aic/collections/artwork/3805>. Acesso em: 21 nov. 2016. 13 Israhel von Meckenem, The organ player and his wife, c. 1495-1503. Chicago: Chicago Arts Intitvt Online collection. Disponível em: <www.artic.edu/aic/collections/artwork/3810>. Acesso em: 21 nov. 2016. 11 (a)14 (b)15 (c)16 Figura 10. Albrecht Dürer, Lucas van Leyden e Hans Burgkmair (respectivamente). Gravuras com instrumentos. (a) The bagpiper (12,2 x 8 cm); (b) The musicians (11.9 x 7,7 cm) retrata alaúde e rabeca. (c) The Emperor Maximilian studying the Science of Music (22 x 19,9 cm), com diversos instrumentos e alguns músicos. (a) (b) 17 Figura 11. Hans Burgkmair, Ciclo de Hans Burgkmair . Duas pinturas a óleo sobre tela (ambas de 18 x 28cm). (a) Concert de musique sacrée, provavelmente em uma igreja, devido a presença de uma estante de livro de coro; (b) Concert de musique profane, retratando um Regal e instrumentos da braccio (lira ou viola). 14 Albrecht Dürer, The bagpiper (1514). Nova Iorque: Metropolitan Museum of Art Online collection. Disponível em: <www.metmuseum.org/art/collection/search/363441>. Acesso em: 21 nov. 2016. 15 Lucas van Leyden, The musicians (1524). Chicago: Chicago Arts Intitvt Online collection. Disponível em: <www.artic.edu/aic/collections/artwork/50264>. Acesso em: 21 nov. 2016. 16 Hans Burgkmair, The Emperor Maximilian studying the Science of Music (c.1500). Londres: National Portrait Gallery online collection. Disponível em: <www.npg.org.uk/collections/search/portrait/mw124601/The-EmperorMaximilian-studying-the-Science-of-Music?LinkID=mp64833&role=art&rNo=0>. Acesso em 21 nov. 2016. 17 Hans Burgkmair, Circle of Hans Burkmair (1530). Basiléia: Galerie Jean-François Heim. Disponível em: <www.galerieheim.ch/artiste-details3.php?type=&id_artiste=88&lng=1>. Acesso em: 21 nov. 2016. 12 Virdung vincula o ensino de instrumentos ao contexto teórico vingente à época, formulando “regras” (regulieren) para diversos instrumentos, porém limitando sua aplicação àqueles com teclas, trastes (e ordens) ou orifícios18. No caso das tablaturas (tabulaturen), tais regras explicitam posições e/ou dedilhados que, associados a indicações de duração, permitem a execução segundo uma transcrição técnica do repertório em notação mensural. O autor “inicia a lição” (hie facht es anzulernen) conjecturando o layout de um protótipo de clavicórdio19, com múltiplas cordas em uníssono, cada qual com um ponto de divisão projetado para o contato de um tangente (uma pequena barra metálica que funciona como um traste levadiço). Os pontos derivam da divisão do monocórdio20, de acordo com o gênero diatônico (BULLARD, 1993, p. 124), e o tangente é acionado por uma tecla, fazendo a corda vibrar em dois segmentos resultantes, dos quais um é abafado por feltros e outro produz o som desejado, enquanto houver contato do tangente com a corda. Segundo Virdung, as teclas deste clavicórdio – todas “brancas”, mais duas “pretas”, ambas b♭ (Figura 12) – correspondem à Scala musicalis, sive manus Guidonis aretini (escala musical, ou mão guidoniana21, ver Figura 15, adiante). Tal escala, limitada à esfera da musica recta ou vera (cf. Esquema 1, p. 15), é similar não só ao gamut – como ficaria conhecida a escala de Guido D’Arezzo, ver adiante – mas também a modelos prévios nos tratados De Institutione Musica, de Boécio (séc. VI) e Enchiridion musices (também conhecido como Dialogus in Musica ou Dialogus de Musica, c. 1000), de Odo (também tratado por Lombardus Anonymous, Odo de Arezzo ou Pseudo-Odo). G A B♮ C D E F G a b♮ b♭ c d e f g aa bb♮ cc dd ee bb♭ Figura 12. Teclado de um monocórdio medieval idealizado por Virdung, de acordo com o gênero diatônico. 18 Virdung compromete-se a explicar “regras” para outros tipos de instrumento em seu futuro tratado, “ein Deutsche Musica”, naquele momento apenas em manuscrito, nunca publicado, e considerado perdido, atualmente. 19 Já no século XV ocorrem as primeiras descrições do clavicórdio, em especial por Arnaut de Zwolle, cujo tratado apresenta um diagrama para este instrumento (Howell, “Medical Astrologers and the Invention of the Stringed Keyboard Instruments”, Journal of Musicological Research 10, 1990, pp. 2, 4-5, apud MOLL, 2006, pp. 12-13). 20 O monocórdio é descrito por Odo como uma cithara de corda única, que por meio de um cavalete móvel permite a dedução de proporções harmônicas que definem as notas dos sistemas perfeitos gregos. 21 Atkinson (2009, p. 232). A mão era utilizada como suporte para diversos dispositivos mnemônicos. 13 O fundamento destes modelos escalares é o “sistema imutável”, híbrido dos sistemas perfeitos maior e menor da Grécia Antiga22. Estes sistemas são constituídos por agrupamentos de tetracordes (conjuntos de quatro notas, ver adiante) em sequência disjunta (onde, por justaposição, dois tetracordes somam oito notas) ou conjunta (onde, por elisão, este total diminui para sete notas), do agudo para o grave. Para o sistema perfeito menor, são necessários três tetracordes conjuntos; já para o sistema maior, quarto tetracordes são dispostos em sequência conjunta, disjunta e conjunta, nesta ordem. Em qualquer destes casos, adiciona-se ao final uma nota grave (um tom inteiro abaixo), denominada Proslambanomenos (Figura 13). Enquanto os sistemas perfeitos maior e menor possuem quinze e onze notas, respectivamente, o sistema imutável soma um total de dezesseis notas ao considerar tanto o b♭ quanto o b♮. Exemplo 1. Sistemas perfeito maior e menor, constituintes do sistema imutável Segundo Boécio em seu De Institutione Musica, as notas dos sistemas gregos seriam representadas por letras lídias (BOETII, 1867, pp. 177-225); Boécio, contudo, utiliza letras latinas de A até P (consecutivas, maiúsculas) para representar as notas da escala (ibid., apud. MOLL, 2006, pp. 60-63), o que ficaria conhecido como “sistema A-P”23. O tetracorde é uma sequência de quatro notas cuja extensão corresponde ao intervalo de quarta justa, o diatessaron. A nota mais aguda é a primeira do tetracorde (assim como em qualquer dos sistemas gregos). As duas notas intermediárias do tetracorde podem ter afinações distintas, definindo relações intervalares (do agudo ao grave) que configuram três gêneros distintos: o diatônico (t-t-st), o cromático (3m-st-st) e o enarmônico (3M-1/4t-1/4t) (cf. ATKINSON, 2009, p. 11). Segundo Quintilianus (apud. BULLARD, 1994, p. 236, nota 94), o gênero diatônico era o mais adequado ao canto, sendo usado por qualquer “comum”. 22 23 Atkinson (2009, p.12-14). Cf. também Browne, Alma C. “The a-p System of Letter Notation”, Musica Disciplina, 35, 1981, pp. 5-54. 14 Já Odo propõe o uso de um grupo reduzido de letras (de A a G), segundo o Enchiridion musices (Dialogus de musica)24, que descreve a arte da divisão da corda do monocórdio a partir de G, nota um tom mais grave que A, como citado em tradução de Strunk (1950, p. 106): “Na primeira extremidade da corda, [...] coloque a letra G, isto é, o G grego (este G, sendo uma letra rara, não é entendida por muitos). Divida cuidadosamente a distância de G ao ponto colocado na outra extremidade em nove partes, e onde o primeiro nono a partir de G termina, escreva a letra A; nós chamaremos isto de primeiro grau (vox prima). Então, de forma similar, divida a distância da primeira letra, A, até o fim em nove, e no primeiro nono, coloque a letra B para o segundo grau. Estão volte para o começo, divida por quatro a partir de G, e para o terceiro grau escreva a letra C. A partir da primeira letra, A, divida similarmente por quatro, e para o quarto grau, escreva a letra D. Da mesma forma, dividindo B por quatro, você encontrará o quinto grau, E. A terceira letra, C, da mesma forma revela o sexto grau, F. Então retorne a G, e a partir dela e das outras letras que se seguem em ordem, divida a linha em duas partes, isto é, na metade, até que, exceto G, você tenha quatorze ou quinze graus. Quando você dividir os sons no meio, você deve marcá-los diferentemente. Por exemplo, quando você bisseciona a distância de G, em vez de G, escreva G; Para um A bissecionado, registre um segundo a; para B, um segundo ♮; para C, um segundo c; para D, um segundo d; para E, um segundo e; para F, um segundo f, para G, um segundo g; e para a, um segundo aa; tal que da metade do monocórdio em diante, as letras serão as mesmas como na primeira parte. Em adição, a partir do sexto grau, F, divida em quatro e, antes de ♮, coloque um segundo b redondo (rotundam); estes dois são aceitos como um grau único, um deles chamado de nono grau secundário, e ambos não se encontram na mesma melodia, comumente”. Vale observar que Odo não considera G como um grau (vox), mas o adiciona à ordem G A B♮ C D E F G a b♭ b♮ c d e f g aa25. Baseado em Odo, Guido D’Arezzo deduz o sistema por meio de dois tipos de divisão do monocórdio (Micrologus, c.1026-28)26, dividindo-o em três regiões, Graves (G–G), Acutae (a–g) e Superacutae (aa–dd) (ATCKINGSON, 2009, pp. 219-20), estendendo a sequência por quatro notas: G A B♮ C D E F G a b♭ b♮ c d e f g aa bb♭ bb♮ cc dd. A escala se consolida ao longo do século XII com a adição de um tom agudo ee (ibid., pp. 230-31). Já em sua Epistola de ignoto cantu (c. 1032)27, Guido promove o sistema de solmização baseado em um acróstico do hino Ut queant laxis, onde as sílabas ut, re, mi, fa, sol e la 24 Odo, “Dialogus de musica”. Em: Patrologia cursus completus (1844-1904, apud THESAVRVS MVSICARVM LATINARVM. Disponível em: <http://boethius.music.indiana.edu/tml/9th-11th/ODODI>. Acesso: 15 nov. 2016. 25 Segundo Crocker (“Studies in Medieval Music Theory and the Early Sequence”, 1997, p. 90, apud MOLL, 2006, pp. 79-82), Odo substitui aa por a e acresce ao sistema mais quatro tons na região aguda (b, ♮, k, D). 26 D’Arezzo, “Micrologus”. Em: Patrologia cursus completus (1844-1904, apud THESAVRVS MVSICARVM LATINARVM. Disponível em: <http://boethius.music.indiana.edu/tml/9th-11th/GUIMICRO>. Acesso: idem. 27 D’Arezzo, “Epistola […] de ignoto cantu”. Em: Patrologia cursus completus (1844-1904, apud THESAVRVS MVSICARVM LATINARVM. Disponível em <http://boethius.music.indiana.edu/tml/9th-11th/GUIEP>. Acesso em: 15 nov 2016. 15 constituem um dispositivo mnemônico (mais tarde conhecido como “hexacorde”) que vincula as sílabas mi-fa a notas escalares vizinhas por semitom (B-C, E-F e a-b♭) em uma sequência intervalar t-t-st-t-t. Isto permite o deductio de sete hexacordes, segundo três proprietates28: durum, contendo b♮ (G-A-B-C-D-E, G-a-b♮-c-d-e, g-aa-bb♮-cc-dd-ee); mollis, contendo b♭ (FG-a-b♭-c-d, f-g-aa-bb♭-cc-dd); e naturalis, sem b (C-D-E-F-G-a, c-d-e-f-g-aa) (Esquema 1). Esquema 1. O gamut completo e o sete hexacordes, delimitando os conceitos de Musica recta ou vera. Virdung comenta os nomes dados às notas por Guido D’Arezzo como um sistema de letra e sílabas (BULLARD, 1993, pp. 129-30, nota 111). A nota lá, a exemplo, se distingue em três alturas conforme sua designação: A-la-mi-re, a-la-mi-re ou aa-la-mi-re. A própria escala passa a ser conhecida como gamut, em referência à nota mais grave, gamma-ut (Figura 13). Figura 13. Scala musicalis, sive manus Guidonis aretini (escala ou mão Guidoniana, VIRGUND, 1511) 28 Ver os possíveis significados de hexacorde, deductio e proprietates em Mengozzi (2006, passim). 16 Virdung baseia-se agora em Boécio para argumentar a inclusão das outras notas pretas do teclado, de acordo com o gênero cromático29, e ainda estende o layout do clavicórdio adicionando uma tecla F abaixo do G e mais três teclas acima de ee, alcançando o gg. Após uma descrição mais detalhada da construção do instrumento, esclarece que ensinará Silvanus, o aprendiz, por meio de tablatura, uma vez que este não possui a prática do canto (i.e., leitura mensural). Como o estudo da tablatura implica no processo de intabulação (a partir de música vocal, no caso), Virdung apresenta o sistema de notação mensural a Silvanus, partindo da criação das linhas e espaços por Guido D’Arezzo e de sua relação com as letras A até G; estas, por sua vez, são relacionadas às sílabas do hexacorde, bem como b-quadratum (h) e b-rotundum (b) são relacionados às notas mi e fa (e aos hexacordes durum e mollis, por consequência) respectivamente. A seguir, descreve as notas elevadas por diesis (aquelas derivadas do gênero cromático) como sendo ficta, representando-as com uma cunha descendente alterando o formato da letra/nota de intabulação. Virdung distingue o uso de letras nas tablaturas da representação segundo a mão guidoniana, relatando o uso de maiúsculas em tradições antigas de intabulação, porém adotando como referência um estilo limitado às letras minúsculas com exceção da tecla mais grave: com traço, sublinhando as notas graves de g até e; sem traço, para a oitava central f–e; com traço sobrescrito, para as notas da região aguda f–b; e com letras duplas na região super aguda, de cc até gg (Figura 14)30. Figura 14. Letras para intabulação, sobre as correspondentes teclas do clavicórdio (VIRDUNG, 1511). 29 Virdung considera um gênero cromático composto por seis notas cromáticas, em desacordo com as quatro notas em relações (st-t-t) prescritas pela teoria grega. A confusão é esclarecida por Bullard (1993, p. 236, n. 94). 30 Inconsistências na concepção e produção desta xilogravura são discutidas por Bullard, (1993, pp. 238-39, nn. 112, 116, 117, 119 e 120). 17 As figuras de duração são apresentadas em dois formatos, para notação mensural ou tablatura. Na notação mensural, as notas adotam os seguintes formatos: quadrilatera (“quadrado”, para brevis e longa), rombus (“losango”, para semibreve, minima, semiminima, fusele, semifusele), romboides (“paralelogramo”, para a ligadura oblíqua) e rectangulum (“retângulo”, para a maxima). A referência do tempus é a breve, cuja duração pode ser duplicada sucessivamente à longa e à maxima (correlações “positiva–comparativa–superlativa”) ou dividada à semiminima e, a seguir, à minima (correlações “superlativa–comparativa–positiva”), acusando uma hierarquia de dobros de tempo da minima à maxima. Já na tablatura, os correlatos para breve e semibreve são o ponto (put) e o traço vertical (strichlin), colocados sobre letras do gamut ou sobre um pequeno losango preto, para uso exclusivo da voz superior da tablatura de órgão (um pentagrama). Não há símbolos correlatos para longa e para maxima na tablatura, mas há para as figuras menores minima, semiminima, fusele e semifusele, representados por “caudas” (hecklin) adicionadas ao traço vertical, representando a hierarquia até a semifusa. Pausas são observadas para figuras de breve, semibreve, mínima e semimínima; seria difícil aplicá-las, contudo, à fusele ou à semifusele, figuras típicas de fioriture (Tabela 1). figura maxima longa breve semibreve minima semiminima fusele semifusele notação mensural Tablatura Tablatura (pausas) Tabela 1. Figuras de duração em notação mensural e em tablatura (VIRDUNG, 1511) A seguir, Virdung apresenta uma peça a quatro vozes em notação mensural, “O haylige onbeflecte zart iunckfrawschafft marie” (“Ó santa, imaculada, terna virgindade de Maria”, Figura 15) como modelo para intabulação e leitura ao clavicórdio e ao alaúde (Figuras 16 e 17). Figura 15. “O haylige onbeflecte zart iunckfrawschafft marie”, tenor em notação mensural (VIRDUNG, 1511). 18 Figura 16. “O haylige onbeflecte zart iunckfrawschafft marie”, tablatura de clavicórdio. A voz do discanto é a única representada com notas no pentagrama; as outras são notadas com letras (VIRDUNG, 1511, excerto). Para a intabulação ao alaúde, Virdung detalha um conjunto de caracteres alfanuméricos que se relaciona com o sistema de trastes e ordens, indicando posições dos dedos para produzir a nota desejada (Cf. MINAMINO, 1988, pp. 40-45; 237-244) Figura 17. “O haylige onbeflecte zart iunckfrawschafft marie”, tablatura de alaúde (VIRDUNG, 1511, excerto). Virdung também provê tabelas de dedilhados correlatos para flautas doces baixo, tenor e discanto, com as numerações de orifícios fechados para cada uma das notas, ou simplificada por meio de um símbolo representativo, para leitura mensural (Figura 18). No ano seguinte à publicação do Musica getutscht, Arnolt Schlick critica, em seu recente tratado (SCHLICK, 1512), o trabalho de Virdung, apontando diversos erros em suas tablaturas (Cf. LENNEBERG, 1957, pp.2-5). 19 (a) (b) Figura 18. Tabela de dedilhados correlatos para flautas doces. a) notas para cada dedilhado (orifícios fechados), nas flautas baixo, tenor e discanto. b) símbolos representativos de cada dedilhado (VIRDUNG, 1511). O Musica getutscht também serviu de base para o Musica instrumentalis deudsch de Martin Agricola (1529), que reutiliza diversas imagens do tratado de Virdung e reorganiza toda a estrutura do texto, desta vez em forma de versos com rimas. Novas imagens são acrescentadas enriquecendo o conteúdo, como para famílias completas de instrumentos (Figura 19) e tabelas de dedilhados; contudo, Agricola exclui as polêmicas tablaturas de teclado e alaúde de Virdung. Figura 19. Família de violas baixo, tenor, alto e discanto. Um impulso subsequente é dado em 1532, quando Hieronymus Formschneider (ou Grapheus / Andreas, ?-1556,) publica o Musica Teusch, auf die Jnstrument der grossen unnd kleinen Geygen, auch Lautten, welcher massen die mit grundt und art irer Composicion auss dem gesang in die Tabulatur31 de Hans Gerle, que ocupa uma lacuna deixada por M. Agricola em seu Musica instrumentalis deudscht relativa à intabulação para instrumentos de cordas e arco e alaúde, podendo mesmo ser o primeiro do gênero. O álbum apresenta imagens da lira da gamba, da rabeca e do alaúde (Figuras 20a-c), junto a instruções teórico-práticas de execução. As tablaturas para lira da gamba e rabeca são dispostas para uma família completa, visando a leitura a quatro vozes (Figura 20d). São fornecidas também instruções de leitura mensural com 31 RISM 1532/13 (H. Gerle, Musica Teusch. Nuremberg: H. Formschneider). Berlin: Staatsbiblithek. Disponível em: <http://resolver.staatsbibliothek-berlin.de/SBB0001441A00000001>. Acesso em: 2 dez. 2016. 20 foco em imperfeições (Cf. nota 46, p. 27) e ligaduras (Figuras 20e-f), além de um sistema misto com melodias para quatro vozes (em notação mensural) acompanhadas de sua transcrição em uma linha subjacente de tablatura, visando o aprendizado da intabulação (Fig. 20g). (a) (b) (c) (d) (e) (f) (g) Figura 20. H. Gerle, Musica Teusch. Instrumentos (a-c); tablatura (d); instruções de leitura (e-f); intabulação (g). 1.3. Polifonia vocal a partir do Codex Montpellier e sua possível instrumentalização Se, de um lado, a tablatura tornou-se um meio de leitura próprio aos instrumentos harmônicos, de outro, prosperou a já tradicional leitura por notação mensural para instrumentos melódicos, de sopro ou arco. Desenvolvida desde o fim do século XIII em tratados de Franco da Colônia (c. 1260), Petrus de Cruce (c.1300) e Phillipe de Vitry (1322), este sistema foi disseminado ao longo dos séculos XIV e XV em manuscritos, compilados em códices (álbuns geralmente constituídos por velum, um pergaminho de pele de bezerro). Um de seus formatos mais comuns é o “livro de côro”, onde cada folio é ocupado em seus lados rectus/versus, cada par de vizinhos formando um conjunto “v/r” onde são notadas as vozes de uma mesma peça polifônica, sacra ou secular, abrangendo seções de missas, motetos, chansons, lieder e frottole. 21 Desde o século XIII, códices como o de Montpellier32 agrupam motetos, duplos ou triplos, arranjados em formato de “coro”, contrastando com o formato de partitura para organa e conductus. O tenor Omnes, disposto abaixo ou à direita das vozes colunadas nas figuras 21a e 21b, seria apropriado à performance instrumental segundo Tischler (1978, p. xxxii) devido à perda de significado melódico no ostinato rítmico resultante de sua restrição estrutural. (a) (b) Figura 21. Montpellier Codex. a) “Amoureusement mi tient / Hé amours mourrai je pour caeli / Omnes”, fol. 114v-115r. b) “A dieu comment / Por moi deduire et por moi / En non dieu, que nus die / Omnes”, fol. 36v-37r. 32 F-MO H196 (Livre de chansons anciennes et romant avec leurs notes de musicque, c.1280 e depois). Montpellier: Bibliothèque Inter-Universitaire, Section Médecine. Disponível em: <http://manuscrits.biumontpellier.fr/vignettem.php?GENRE%5B%5D=MP&ETG=OR&ETT=OR&ETM=OR&BASE=manuf>. Acesso em: 01 dez. 2016. 22 A leitura instrumental polifônica acompanha a evolução da notação mensural ao longo dos séculos XIV e XV. Desde a Ars Nova são conhecidas obras onde tenor, discanto ou contratenor eventualmente não possuem texto, sugerindo participação instrumental. No rondó “Ma fin est mon commencement”33 de Guillaume de Machaut (1300-1377), um texto invertido e retrógrado (versos A e B) pede a leitura simultânea em sentidos opostos por tenor e discanto, um deles possivelmente instrumental; seu texto complementar diz que um terceiro canto se retrograda por três vezes (“tiers chans trois fois seulement se retrograde”), referindo-se ao contratenor sem texto (instrumental, talvez) associado aos versos A (no sentido direto) ou B (no reverso, por três vezes), concluindo uma estrutura ABaA-abAB de rondó simples (Figura 22). “Ma fin est mon commencement (A) et mon commencement ma fin (B) Et teneüre vraiement (a) Ma fin est mon commencement (A) Mes tiers chans trois fois seulement (a) se retrograde et einsi fin (b) Ma fin est mon commencement (A) et mon commencement ma fin.” (B) Figura 22. “Ma fin est mon commencement”. G. de Machaut, Poésies34, fol. 479v-480r. Texto invertido e retrógrado no tenor, do último pentagrama do fol. v até o terceiro pentagrama do fol. r. Contratenor: deste ponto até o pentagrama seguinte. 33 O meu fim é o meu começo / e o meu começo é o meu fim / e verdadeiro curso / O meu fim é o meu começo / Minha terceira parte (canto, voz) três vezes somente / se move para trás e assim acaba. 34 Fonds français 1584 (Guillaume de Machaut, Poésies, 1372-1377), fol. 479v-480r. Paris: Bibliothèque nacionale de France. Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b84490444>. Acesso em: 30 nov. 2016. 23 Em contraste à ausência de texto, a presença de um incipit em uma ou mais vozes da polifonia pode ser indicativo de uma possível execução vocal “de cór” (par coeur). Em discussão acerca de motetos isorrítmicos, Berger (2005, pp. 212-14) conjectura que a arte da memória era aplicada não só ao texto, mas também à música – o que vem de encontro a ocorrências de peças a três vozes com texto guarnecido somente para o discanto. Tanto esta voz como a do contratenor são criados a partir de um cantus firmus, melodia vulgar entoada pelo tenor e presumivelmente reconhecível e memorizável, talvez ao ponto de dispensar o texto. Tal hábito poderia se refletir em outras vozes da polifonia, dependendo de sua similaridade ao tenor, o que não seria o caso de um contraponto florido no discanto, mas certamente seria válido para um contratenor resultante de um cânone, imitação ou contraponto menos arrojado, cujo texto poderia ser sugerido apenas por um incipit. No códice de Chantilly, dois rondós representativos da ars subtilior sublinham este raciocínio: “Belle, boné, sage”, manuscrito cordiforme de Baude Cordier (c.1380-c.1440), com incipits para o tenor e contratenor (figura 23a); e “Dieux gart”, de Guido (fl. 1372-74), sem texto algum para as mesmas vozes (figura 23b). Distinguem-se, portanto, quatro possíveis formas de execução para estas peças: apenas com vozes, com instrumentos dobrando as vozes, com instrumentos substituindo algumas das vozes, ou apenas com instrumentos. (a) (b) 35 Figura 23. Códice Chantilly . (a) B. Cordier, “Belle, boné, sage” (fol. 11v), com incipit para tenor e contratenor. (b) Guido, “Dieux gart” (fol. 25r), sem texto nem incipit para as mesmas vozes. 35 MS 564 [olim: MS 1047] (Codex Chantilly, França, c. 1390). Chantilly: Musée Condé. Disponível em: <http://petrucci.mus.auth.gr/imglnks/usimg/2/2b/IMSLP267994-PMLP433686-codex_de_chantilly.pdf>. Acesso em: 30 nov. 2016. 24 Tanto a escrita mensural como o próprio formato do livro de côro passam por estágios distintos de desenvolvimento ao longo do século XV. No Liber continens hymnos de 1430 vêse o espaço versus-rectus de um livro aberto disposto em proporções simétricas para as vozes, com sua latitude inferior ocupada pelo tenor em ‘notas corais romanas’, ou cantus planus, uma espécie de notação neumática tardia e não mensural (todas as notas têm a mesma duração, independente da figura) contraposta ao cantus mensuratus das vozes superiores (APEL, 1953, p. 378), como na seção “Et in terra pax”, relativa ao “Gloria” de uma missa anônima a quatro vozes (Figura 24). Ali, o tenor é isento da vinculação entre o texto e o canto, e ainda reproduz uma quarta voz, um contratenor, por cânone à oitava segundo a inscrição “tenor faciens contratenorem”, a partir de um signum congruentiae (“8” posicionado sobre a virga, quinta nota do tenor). Estas duas vozes canônicas sem texto, em oposição às vozes agudas, poderiam ser executadas ‘de cór’ ou até por instrumentos36 (Cf. ed. moderna37). Figura 24. Anônimo, “Et in terra pax” (a 4). Matteo da Perugia, Liber continens hymnos38, fol. 3v-4r; a quarta voz é resultante da inscrição “tenor faciens contratenorem” no início do tenor, na parte inferior do álbum. 36 No Codex Cyprus (MS J.II.9, Biblioteca Nazionale, Torino, c. 1413-20, um exemplar contemporâneo no estilo ars subtilior contendo polifonia sacra e profana), tenor e contratenor compartilham a mesma notação coral romana sem texto, dispostos respectivamente abaixo do discanto e do alto, estes por sua vez providos de textos distintos. 37 Cesare, G.; Fano, F. La cappella musicale del Duomo di Milano. Milão: Ricordi, 1956, pp. 247-262. 38 Alfa.m.5.24 (Liber continens hymnos. Milão: Matteo da Perugia, 1430). Biblioteca Estense Universitaria. Disponível em: <http://bibliotecaestense.beniculturali.it/info/img/mus/i-mo-beu-alfa.m.5.24.html>. Acesso em: 28 nov. 2016. 25 Estruturas em canône e contraponto derivadas do tenor se proliferam ao longo do século XV. Na chanson “Puisque vous estez campieur” (Figura 25), quatro versos dispostos ao longo da notação mensural do tenor (folio esquerdo, versus) relacionam-se a quatro frases melódicas separadas por pausas. A métrica destes versos é constatada por separações silábicas em seu arranjo, abaixo representadas por hifenizações. O primeiro verso rima com o quarto, na medida em que o segundo rima com o terceiro. A complexidade musical é proporcional à do texto: Im v1. “Puis que vous este campieur” (octassílabo) v2. “Voulentiers a vous campiroy–e” (eneassílabo) IIw v3. “A savoir mon se le pourroy–e” (eneassílabo) v4. “A vous pour estre bon pi–eur” (octassílabo) O texto complementar, segregado da notação mensural, agrupa-se em estrofes a cada dois versos; suas rimas assemelham-se à dos versos iniciais, que agrupados evidenciam um espelhamento representado por Im (versos 1 e 2) e IIw (versos 3 e 4). Dessa forma, as três estrofes complementares, com texto distinto das estrofes I e II, seriam representadas por IIIm, IVm e Vw. IIIm. “Et si vous estes sapieur / Contre vous aussi sapiroye / Puis…” IV . “Vous me cuidez maulvais pieur / Mais pour troys pos bien les piroye” Vw. “Vrayment ou je me tapiroye / Comme du monde le pieur / Puis que…” m Figura 25. G. Dufay, “Puisque vous estez campieur”39 (a 3). Chansonnier Nivelle de la Chaussée, fol. 15v-16r (livro de coro). Além do “contra”, uma terceira voz, canônica ao tenor, ocorre uma oitava acima após duas breves (“tempora bina site dyapason postea scande”). 39 MS Rés. Vmc. Ms. 57 (Chansonnier Nivelle de la Chaussée, 1460-1470), fol. 15v-16r. Paris: Bibliothèque nationale de France. Disponível em: <http://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb43363902j>. Acesso em: 29 nov. 2016. 26 Anexo ao fim da estrofe IIIm e Vw, o resíduo textual “Puis” indica a retomada da estrofe Im, que se desenvolve até a fermata no final do verso 2; a partir daí a forma se reinicia, repetindo o arranjo musical através das estrofes IVm e Vw com subsequente retorno a Im (resíduo “Puis que”), para concluir-se em IIw sob a única cadência sincopada do arranjo. O modelo final da chanson deve ser do tipo Im–IIw–IIIm–Im–IVm–Vw–Im–IIw, similar à forma fixa rondeau quatrain (Cf. GOLDBERG, 2001, p. 6) de estrutura ABBA-ab-AB-abba-ABBA, bastando-se apenas de quatro frases melódicas, relativas às estrofes Im e IIw, para estruturar-se. A polifonia da peça emerge de sua construção em canône e contraponto, derivados do tenor (ver figura 25, descrição e folio esquerdo, versus); este, contudo, deve projetar-se ao fim da forma (após a segunda fermata) por mais dois tempos de breve, para cadenciar junto à sua própria imitação. Peças seculares italianas podem ocorrer em cancioneiros espanhóis (Cancioneiro Musical de Palacios, 1470-c.1510), alemães (Glogauer Liederbuch, 1480, em livros de partes) e franceses (Chansonnier Cordiforme, c.1476; Chansonnier Pixérécourt, c.1484). Contudo, nem sempre se tratam de frottole; estas ocorrem de forma mais consistente em fontes italianas, como Florencia 229 (Banco Rari, c.1490, com quinze canções italianas), o códice Medici (final do século XV, com dez canções italianas a 3 ou a 4) e o intrigante Modena alfa.F.9.9. O manuscrito Modena alfa.F.9.9 (1495-6), um livro de coro horizontal oblongo, possui cerca de cem peças seculares em italiano onde predominam frottole de textura homofônica como “Aime ch'io moro per te donna crudele”, de Marchetto Cara (1465-1525)40, um autor representativo do gênero. Um único moteto latino – “Ave verum corpus natum”, de Crispinus (ou Crispin van der Stappen, c.1465-1532) – é presente no álbum, todavia chamando a atenção por sua textura homofônica, similar à das frottole. O álbum contém ainda três peças sem texto, com texturas bem distintas: a primeira em estilo imitativo (Figura 26a), anônima e com o título “Sine nomine”; a segunda em estilo homofônico (Figura 26b), sem título e também anônima, ocorrendo mais ao fim do álbum; vizinha a esta, ocorre a terceira peça, em estilo polifônico não imitativo (Figura 26c), sem título e de autoria de Io. Brocus (Giovanni Brocco, fl. final do século XV - início do século XVI), autor também da peça seguinte, “Se me abandoni fa che tu me rendi”, no mesmo estilo (figura 26d). Peças de Brocco também ocorrem no Cancioneiro Musical de Palacios41 e nos livros impressos de frottole de Petrucci. 40 Suas frottole são publicadas por O. Petrucci (Frottole. Libri I-IX, 1504-08) e A. Antico (Canzoni (1510, 1513). Madrid: Biblioteca Real, MS II-1335, 1470-1520. Manuscrito compilado de 1470 até o começo do séc. XVI, editado em 1890 por F. Barbieri como Cancioneiro musical de los siglos XV y XVI. Contém villancicos, romance e “canción”, a maioria para uma voz com acompanhamento instrumental, além de peças polifônicas de duas a quatro vozes, algumas de G. Brocco (“Io mi voglio lamentare” a 4), G. Fogliano (“L’amor, donna, ch’io ti porto” a 4) e B. Trombocino (“Vox clamantis in deserto”, a 3), todas também contidas nos Frottole de Petrucci. 41 27 (a) (b) (c) (d) Figura 26. Magister Johannes, Códice de Modena42 (quatro peças). a) Anônimo, “Sine nomine” (fol. 37v-38r); b) Anônimo, sem texto (fol. 93v-94r); c) Giovanni Brocco, sem texto (fol. 94v-95r); d) Giovanni Brocco, “Se me abandoni fa che tu me rendi”. 42 MS alfa.F.9.9 (Magister Johannes, 1495-6). Modena: Biblioteca estense universitaria. Disponível em: <http://bibliotecaestense.beniculturali.it/info/img/mus/i-mo-beu-alfa.f.9.9.html>. Acesso em: 30 nov. 2016. 28 A premissa instrumental para peças sem texto é discutível. Enquanto Litterick (1980, p. 480) defende que “a ausência de texto em fontes italianas é indicação clara de performance instrumental”, Edwards (2006, pp.6-9) aponta uma visão muito simplista em tal argumento: Cópias de obras feitas em ambientes culturais e linguísticos próximos daqueles de origem tendem a lembrar a forma como seus compositores as anotaram […]. Na medida em que as cópias se distanciam de seus arquétipos – temporalmente ou em aspectos linguísticos e culturais – a percepção de necessidade por palavras originais enfraquece. Textos vernáculos, em particular, podem ser retirados mesmo dentro de suas próprias áreas de linguagem […]. Nestas circunstâncias, a hipótese instrumental […] para obras sem texto em fontes polifônicas (italianas ou quaisquer outras) de fato começa a parecer simplista. O moteto, por sua vez, predomina em álbuns como o códice Nikolaus Leopold (14661511), com cerca de cento e noventa peças, sendo a maior parte sacra, além de peças seculares em alemão, francês ou holandês, ou sem texto. Em “Argentum et aurum” de H. Isaac (14501517), versos extensos sem rima são guarnecidos apenas no discanto; sua memorização, menos trivial que de uma chanson, reforça a ideia de execução parcialmente instrumental (Figura 27). “Argentum et aurum non est mihi quod autem habeo, hoc tibi do. Petrus quidem servabatur in carcere oratio autem fiebat pro eo sine intermissione ab Ecclesia Dei. Angelus autem Domini lumen refulsit in habitaculo carceris percussoque latere Petri, excitavit eum et surrexit velociter” (Antífona 2, Festo SS. Apostolorum Petri et Pauli, Vésperas e laudas, antifonário romano). Figura 27. Heinrich Isaac, “Argentum et aurum” (a 4). Códice Nikolaus Leopold43, fol. 72v-73r. 43 Mus.ms. 3154 (Chorbuch des Nikolaus Leopold, Innsbruck: 1466-1511). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://daten.digitale-sammlungen.de/~db/0005/bsb00059604/images/>. Acesso: 29 nov. 2016. 29 De outro modo, o costume com o ordinário missal poderia isentar o arranjo musical da guarnição de texto. Considera-se aqui os casos onde a relação texto-música é prescindível ou não de precisão ou exatidão em atribuições tentativas. A precisão refere-se à uma margem de erro insignificante na atribuição, enquanto que a exatidão proclama uma atribuição exclusiva. Na expressão “Kyrie eleison”, ambas as palavras possuem três sílabas, sendo possível atribuir uma ou outra a um mesmo segmento melódico de três notas, de forma precisa; contudo, se estas três notas são as primeiras de uma dada voz, a elas cabe exclusivamente a palavra “Kyrie” (inscrita na fonte primária, inclusive), o que torna o processo exato. Na “Missa L’homme armé I” de La Rue (códice Jena 22, c.1500) o motivo de “L’homme armé” (Exemplo 2) tem três de seus motivos reproduzidos no bassus, o primeiro (A) sobre suas nove notas iniciais (Figura 28). A B C Exemplo 2. “L’homme armé”, canção secular francesa, usado como cantus firmus por diversos compositores. A B B A B C Figura 28. Pierre de La Rue, “Missa L’homme armé I”, Kyrie I. Codex Jena 2244, fol. 2v-3r. 44 MS 22 (Chorbuch 22, Codex Jena, Bruxelas: 1500-1505), fol. 2v-3r. Jena: Biblioteca Electoralis. Disponível em: <http://archive.thulb.uni-jena.de/hisbest/receive/HisBest_cbu_00014267>. Acesso em: 29 nov. 2016. 30 Para um dado grupo de notas, são possíveis três tipos de atribuições: silábica (cada nota vincula-se a uma sílaba), neumática (duas ou mais notas formam ligadura mensural, para qual só a primeira nota recebe sílaba) ou melismática (em um extenso grupo de notas, selecionamse as que possuem melhores condições para receber as sílabas). A repetição de nota, contudo, impossibilita a pronúncia neumática ou melismática de uma sílaba, implicando (com raras exceções) na colocação da sílaba seguinte. Em vista desta regra, são viáveis apenas as combinações onde há vínculo silábico com a nota repetida (no caso, a segunda e a oitava da melodia). Às primeiras nove notas do bassus cabem, portanto, as seguintes configurações: L’homme armé, motivo “A” Silábica Melismática 1a) 1b) 1c) 1d) 2a) 2b) 2c) 2d) 2e) 2f) D D G F E D A A D KyKyKyKyKyKyKyKyKyKy- ririririririririri... ri... e e e e e e e... e... ... ... KyKyEEKyE... ... ... ... ririleilei... ... ... ... ... ... e e son son ... ... ... ... e e KyEKyE... ... KyEKyE- rileirileirileirileirilei- e son e son e son e son e son Tabela 2. “Missa L’homme armé” (La Rue), atribuição silábica do primeiro motivo “L’homme armé” no bassus A tabela de distribuição não implica em processos neumáticos, devido à ausência de ligaduras mensurais na fonte manuscrita; todavia, mesmo que ocorrentes, seriam impeditivas de uma distribuição minimamente adequada. A colocação silábica mais coerente, contudo, leva em conta a distinção do movimento melódico em duas frases consecutivas de seis e três notas, ambas cadenciando em D (finalis na missa de La Rue), depondo a favor de uma colocação melismática de tipos 2c a 2f. Nas alternativas 2e e 2f, entretanto, a sílaba melismática é mais fraca que em 2c e 2d; entre estas duas, o texto é levado a cabo apenas em 2d, preferivelmente a 2c, cuja demanda por repetição da palavra “Kyrie” é menor em um segmento contínuo, sem pausa. Uma frase similar inicia o contratenor, para a qual a melhor opção seria 1b (tipificado na tabela 2), uma vez que sua quarta nota (figura rombus preta, que corresponde a uma mínima pontuada) é repetição da altura anterior, implicando em mudança para a sílaba seguinte; parece preferível neste ponto repetir a palavra “kyrie” em vez de adiantar “eleison”, reservando este para o motivo cadencial com salto de quinta descendente, já configurado no bassus. O tenor, por sua vez, se desenvolve sob “fuga in Bassu[s]” entre os sinais de congruência e \, em proporção sesquiáltera (3:2) ditada pelos símbolos de mensuração O (tempo perfeito, prolação menor) e C (tempo imperfeito, prolação menor). 31 A escrita em cânone mensurado deste Kyrie é apenas uma das diversas técnicas aplicadas nesta missa de La Rue que, segundo Apel (1950, p.372), é “o mais brilhante exemplo de virtuosidade contrapontística prévia à Arte da Fuga de Bach”45. O tenor implícito na mensuração ternária da melodia do bassus é apresentada como “resolutio ex basso” no álbum de missas de La Rue impresso por Petrucci46. Não há diferença, contudo, em relação ao códice Jena, exceto pela transposição em uma oitava acima e a adição de uma longa ao final da melodia, cuja finalidade é equiparar a extensão do bassus. Mantido o sinal de mensuração O (tempo perfeito, prolação menor), a leitura deve ser tal que cada breve corresponda à duração de três semibreves, mantendo-se a divisão binária para a semibreve e notas menores. A breve, contudo, pode sofrer ‘imperfeição’ se seguida ou precedida de semibreve (imperfectio a parte post ou a parte ante)47. No exemplo a seguir, duas imperfeições são destacadas (Figura 29). Figura 29. La Rue. “Missa Lomme Arme”, tenor, “resolutio ex basso”. Petrucci, Misse Petri de la Rue, no. 230 Já o Gloria da mesma missa, em contraste ao do Liber continens hymnos arranjado em seção única (cf. Figura 23), ocorre dividido em cinco subseções de acordo com o texto, como a seguir. Sua primeira seção é mostrada na Figura 30, também extraída do Codex Jena 22. (Gloria in excelsis Deo) I. Et in terra pax hominibus bonae voluntatis. Laudamus te, benedicimus te, adoramus te, glorificamus te, gratia agimus tibi, propter magnam gloriam tuam, Domine Deus rex caelestis, Deus Pater omnipotens. Domine Fili unigenite Jesu Christe II. Domine Deus, Agnus Dei, Filius Patris 45 III. Qui tollis peccata mundi, miserere nobis. Qui tollis peccata mundi, suscipe deprecationem nostram. Qui sedes ad dexteram Patris IV. Miserere nobis. Quoniam tu solus sanctus, tu solus Dominus. Tu solis altissimus, Jesu Christe V. Cum santo Spiritu, in gloria, Dei Patris. Amen. Uma terceira seção para o Agnus Dei é adicionada a esta missa na edição de Petrucci (cf. nota seguinte), em cânone mensurado quarto-em-um, ou seja, todas as partes a partir de uma, o superius (cf. APEL, 1950, p. 373 para uma transcrição dos primeiros compassos). 46 SA.77.C.11 / 1-4 (Misse Petri de la Rue. Veneza: Petrucci, 1503). Viena: Österreichische Nationalbibliothek. Disponível em: <http://data.onb.ac.at/rec/AC09207323>. Acesso em: 31 nov. 2016. 47 Apel (1953, p. 108) aponta as seguintes regras de imperfeição: 1. Uma breve é perfeita se seguida por outra breve ou por uma pausa de breve. 2. Uma breve é perfeita se seguida por duas ou três semibreves. 3. Uma breve é imperfeita se seguida ou precedida por uma ou mais que três semibreves. 4. Se tanto imperfectio a parte post como a parte ante são admissíveis, a primeira tem preferência. 5. Uma pausa de breve nunca pode ser imperfeita; contudo, uma pausa de semibreve pode causar imperfeição. 32 Figura 30. Pierre de La Rue, “Missa L’homme armé I”, Gloria (Et in terra pax). Códice Jena 2248, fol. 12v-13r. Pode se observar que, em contraste ao padrão organizado da chanson e da frottole, a disparidade nas fragmentações melódicas entre vozes impossibilita uma associação intuitiva com o texto; torna-se premente, portanto, sua guarnição. No Esquema 2, a fragmentação por pausa é representada por ; palavras repetidas, em negrito; e palavras omitidas por ( ). Discanto “et in terra pax hominibus bonae voluntatis. Laudamus te, benedicimus te adoramus te, glorificamus te gratia agimus tibi propter magnam gloriam tuam gloriam tuam Domine Deus rex caelestis, Deus Pater omnipotens Domine Fili unigenite Jesu Christe.” Contratenor “et in terra pax hominibus bonae voluntatis. Laudamus te benedicimus te, adoramus te (glorificamus te) gratia agimus tibi propter magnam gloriam tuam (Domine Deus rex caelestis) Deus Pater omnipotens Domine Fili Fili unigenite Jesu Christe.” Tenor “et in terra pax hominibus bonae voluntatis Laudamus te, benedicimus te (adoramus te glorificamos te gratia agimus tibi) propter magnam gloriam gloriam tuam gloriam tuam (Domine Deus rex caelestis, Deus Pater omnipotens. Domine Fili unigenite) Jesu Christe.” Bassus “(et in terra pax hominibus bonae voluntatis) Laudamus te, benedicimus te (adoramus te, glorificamus te, gratia agimus tibi) propter magnam gloriam tuam Domine Deus rex caelestis, Deus Pater omnipotens Domine Fili unigenite Jesu Christe.” Esquema 2. Fragmentação de vozes. Primeira seção do Gloria da “Missa L’homme armé” (La Rue, códice Jena) 48 MS 22, op. cit., fol. 12v-13r. Disponibilidade: idem. Acesso em: 29 nov. 2016. 33 1.4 Um repertório desprovido de texto e o papel das carmina em sua instrumentalização Ao final do século XV, diversas peças de compositores franco-flamengos compiladas na Itália com menos texto reforçam a ideia de execução instrumental, em especial aquelas copiadas no início do século XVI na Alemanha, livres de texto e sob título comum Carmen (mais uma tonalidade), como as “Carmen in Sol” descritas na Tabela 3. Um exemplo significativo é “Maudit soit cil qui trouva jaulosie” de Isaac, cujo texto em Banco Rari49 só é guarnecido no discantus, restando um incipit para o tenor50, em contraste aos cancioneiros Medici51 e Chansons e motetti a tre e quatro voci52, providos de incipit unicamente no discantus. Compositor Heinrich Isaac (c.1450-1517) Chansons (Itália) “Maudit soit cil qui trouva jaulosie” a 4 Banco Rari 229, fol. 153v-154r; Medici Chansonnier, fol. 12v-13r; Chansons e motetti..., fol. 18v-19r Pierre de la Rue (1452-1518) “Adieux florens la Jolie” a 4 Magl.XIX.178, fol. 77v-78r 53; Banco Rari 229, fol. 150v-151r Alexander Agricola (c.1445-1506) “Oublier veult douleur et tristesse” a 3 Canzoniere D’Isabella D’Este, fol. 118v-120r 54; Q.17, fol. 3v-4r55 Carmen in Sol (Baviera) Folii Munich Partbooks (após 1523) 127v-128r (tenor) Munich Partbooks 134v-135r (tenor) Vienna 18810 (1524-33) 23r-24v Codex Pernner (c.1520) - ? 294v-295r Vienna 18810 29v-30r Tabela 3. Chansons compiladas na Itália, encontradas como “Carmen in Sol” em códices alemães manuscritos. Segundo Smithers (1970, p. 32), “Maudit soit” ocorre nos Munich Partbooks como uma “Carmen in sol” (fol. 127v-128r)56 cujo arranjo, contudo, não parece concordar com as fontes italianas da chanson (Tabela 3) quando comparadas suas seções introdutórias (Figuras 31 e 32). A concordância, contudo, é correta; Meconi (2009, p. 99) mostra que o copista “deu-se o trabalho de reverter as partes prima e seconda [...] de ‘Maudit soit’. Visto que a composição de Isaac é uma bergerette, a troca das duas partes resulta em maior senso musical em uma 49 MS Banco Rari 229 [olim: Magl.XIX. 59], (Florença: 1492-3). Florença: Biblioteca Nazionale Centrale (fontes online indisponíveis). Cf. edição moderna em: Brown, H. M. (ed.): “A Florentine Chansonnier from the Time of Lorenzo the Magnificent”, Monuments of Renaissance Music Vol. VII (Chicago, 1983). 50 Estas características foram inferidas a partir de uma edição “historicamente informada” por Clemens Goldberg, disponível em: <http://www.goldbergstiftung.org/file/florenz229gesamtalt.pdf>. Acesso: 01 dez 2016. 51 MS Capp.Giulia XIII.27 (Medici Chansonnier. Florença: 1942-4). Vaticano: Biblioteca Apostólica Vaticana. Disponível em: <http://digi.vatlib.it/view/MSS_Capp.Giulia.XIII.27>. Acesso em: 01 dez 2016. 52 MS Magl. XIX 107bis (Florença: c.1510). Florença: Biblioteca Nazionale Centrale. Disponível em: <http://www.bncf.firenze.sbn.it/oldWeb/Bib_digitale/Manoscritti/M19_107b/main.htm>. Acesso: 30 nov. 2016. 53 MS Magl. XIX.178 (Florença: 1492-4). Florença: Biblioteca Nazionale Centrale (fontes online indisponíveis). 54 MS 2856 (Canzoniere d’Isabella d’Este. Ferrara: Signorello, c1479). Roma: Biblioteca Casanatense. Disponível em: <http://opac.casanatense.it/Record.htm?idlist=&record=19917287124917354699>. Acesso em: 30 nov. 2016. 55 MS Q.17 [olim: 148] (Itália, provavelmente Florença: 1490). Bolonha: Biblioteca della Musica. Disponível em: <http://www.bibliotecamusica.it/cmbm/scripts/gaspari/scheda.asp?id=8062>. Acesso em: 01 dez. 2016. 56 Smithers (1970, p. 64) não aponta concordâncias com as fontes Chansons e motetti... e Magl. XIX.178. 34 performance sem texto [...] uma vez que é a prima pars que conclui uma bergerette”; a concordância se dá, de fato, após a fermata no folio versus do discantus desta Carmen. “Adieux florens la Jolie” ocorre tanto nos Munich partbooks como em Vienna 1881057; já a concordância de “Oublier veult” como o Codex Pernner58, indicada por Smithers, parece ser duvidosa59. Figura 31. H. Isaac, “Maudit soit cil qui trouva jaulosie”. Chansons e mottetti a tre e quatro voci, fol. 18v-19r. Figura 32. “Carmen in sol” (após “Maudit soit” de Isaac), discantus. Munich Partbooks60, fol. 127v-128r Vale observar que, das quatro Carmen in sol listadas nos Munich Partbooks (tenor: fol. 115v e 127v-128v, por Isaac; 134v-135r, por La Rue; e 136r-136v, por Hofhaimer), as três primeiras apresentam armadura de clave de um bemol – o que implica, como será visto adiante, em modo dório ou hipodório transposto para Sol –, enquanto que o arranjo de Hofhaimer não apresenta armadura, alinhando-se ao modo mixolídio ou hipomixolídio. Pode-se inferir, portanto, que o título “Carmen in sol” apenas indica a finalis do modo, seja transposto ou não. Peças totalmente sem texto também ocorrem em álbuns manuscritos no século XVI, como a versão de “Fors seulement l'attente que je meure” de Obrecht (Figura 33). Não se tem conhecimento de nenhuma fonte primária desta chanson de Obrecht com ocorrência de texto. 57 Mus.Hs. 18810 Mus [Olim: A.N. 35.E.126]. (Vienna 18810. Baviera: c. 1524-33). Viena: Österreichische Nationalbibliothek (fontes online indisponíveis). 58 MS C 120 (ou Regensburg 120) [Olim: D XII] (Codex Pernner. Ausburgo: c.1520). Regensburg: Bischöfliche Zentral Bibliothek (fontes online indisponíveis). 59 Cf. inventário disponível em: <http://www.diamm.ac.uk/jsp/Descriptions?op=SOURCE&sourceKey=2435>. Acesso em: 01 dez. 2016. 60 D-Mu MS 8° 329 [olim. Cim. 44c-2] (Munich Partbooks. Baviera: após 1523). Munique: Universitätsbibliothek. Disponível em: <https://epub.ub.uni-muenchen.de/12052>. Acesso em: 30 nov. 2016. 35 Figura 33. Obrecht, “Fors seulement l'attente que je meure”. Liederbuchlein des Fridolin Sicher61, pp.12-13. Há, contudo, uma única correspondência desta peça, com incipit, no Códice Basevi62. Este álbum contém chansons, motetos e seções de missa, além de peças de caráter misto (moteto-chanson, moteto secular latino, moteto-canção e tricinia sacros) cuja guarnição textual vai desde a plena até a mera menção de um incipit. Em seções de missa sem texto como Kyrie, Sanctus e Osanna (“Missa Fortuna desperata” de Obrecht), a execução “de cór” seria procedente devido à menor extensão dos textos originais; já para a seção Credo da “Missa La Mi La Sol” de H. Isaac, similar à sua “Missa O Praeclara” (e ao moteto “Rogamus te/O maria”), tal hipótese parece ser menor provável uma vez que o incipit em todas vozes sugere sua execução por ‘vocalize’ ou solmização, se descartada a performance instrumental (Figura 34). Figura 34. H. Isaac, “Missa La mi la sol”, prima pars. Códice Basevi. fol. 38v-39r. 61 MS 461 (Fridolin Sicher’s Song Book, Países Baixos: c.1500) pp.12-13. St. Gallen, Stiftsbibliothek. Disponível em: <http://www.e-codices.unifr.ch/en/list/one/csg/0461>. Acesso em: 30 nov. 2016. 62 MS Basevi 2439 (Bruxelas: 1507-8). Florença: Conservatorio di Musica Luigi Cherubini. Disponível em: <http://www.internetculturale.it/opencms/opencms/it/viewItemMag.jsp?id=oai%3Awww.internetculturale.sbn.it %2FTeca%3A20%3ANT0000%3AIFC0000001>. Acesso em: 30 nov. 2016. 36 A categoria moteto-chanson, por sua vez, constitui-se de obras bitextuais construídas sobre um cantus firmus latino, usualmente derivado de um cantochão acompanhado de texto francês nas outras vozes, aproximando-se tanto da chanson como do moteto (MECONI, 1991, 164). Sua guarnição textual no códice varia desde a plena, como em “Plaine d'ennuy de longue main / Anima mea” (a 3) de Loyset Compère (Figura 35a), até a completa apenas para o texto latino, como em “Belles sur touts / Tota pulchra es amica mea” (a 3) de Alexander Agricola (Figura 35b) ou em “Deuil et enuy / Quoniam tribulation” (a 4) de Johannes Prioris (Figura 35c). (a) (b) (c) Figura 35. Motetos-chanson no Códice Basevi. a) Loyset Compère. Plaine d'ennuy de longue main / Anima mea, fol. 50v-51r; b) Alexander Agricola. Belles sur touts / Tota pulchra es amica mea, fol. 63v-64r; c) Johannes Prioris. Deuil et enuy / Quoniam tribulatio, fol. 32v-33r. 37 Em oposição à maior parte do repertório deste códice, o moteto secular latino “Dulces exuviae” apresenta guarnição plena de seus quatro versos iniciais, arranjados por Marbrianus de Orto63 (Figura 36). Talvez esta fosse sua ocorrência arquetípica (W), uma vez que De Orto vinculou-se à corte bungurdiana dos Habsburgo em 1505 (MECONI, 1991, p. 158). Figura 36. Moteto secular latino. Marbrianus de Orto, “Dulces exuviae”. Códice Basevi. fol. 46v-47r. Já a categoria moteto-canção apresenta guarnição textual completa, como no extenso “Anima me liquefacta” de Ghiselin (Figura 37); seções homofônicas e silábicas podem ser ocorrentes, assim como fermata, métrica tripla e retorno ao motivo prévio. Figura 37. Moteto-canção. Ghiselin. “Anima mea liquefacta”. Códice Basevi, fol. 92v-93r e 93v-94r (residuum). 63 “Dulces exuviae, dum fata deusque sinebat / accipite hanc animam meque his exsolvite curis / Vixi et quem dederat cursum fortuna peregi / et nunc magna mei sub terras ibit imago.” 38 Tricinia sacros distinguem-se do gênero moteto-canção em suas características supracitadas, contudo guardando semelhanças no que tange sua predominância em coleções seculares, sua configuração a três vozes e seus textos devocionais latinos (parte deles de natureza Mariana e geralmente resumidos a um incipit), além de sua textura imitativa sobre padrões de mudança de motivos, repetição, sequência, movimento paralelo e uso frequente de amplas tessituras. Também podem incluir uma seção onde uma linha mais lenta compete com duas mais rápidas, e são mais longas que as chansons, seja por uso do cantochão ou sendo de composição livre plena. Em estudos prévios, este gênero foi tratado como tricinium instrumental, chanson instrumental, canção sem palavras, fantasia instrumental ou carminum instrumental (MECONI, 1991, p.166 e ref. cit.), constituindo um repertório intercruzado, porém distinto de peças como o “Benedictus” de Isaac e “La Alfonsina” de Ghiselin (mais apropriadamente tricinia instrumentais) devido ao seu caráter sacro (MECONI, 1991, pp.1678). Um de seus exemplos mais característicos é “O florens rosa”, também de Ghiselin (Figura 38), que utiliza o cantochão da antífona mariana de mesmo nome como cantus firmus na voz mais grave. Como aponta Meconi (1991, pp. 168-169), “suas duas vozes superiores são quase sempre imitativas e compartilham motivos melódicos curtos, com uso de sequência e movimento paralelo; o contratenor se junta a esta interação ao fim”. Figura 38. Tricinium sacro. Ghiselin, “O florens rosa”. Códice Basevi, fol. 90v-91r e 91v-92r (residuum). 39 Meconi ainda identifica dois “claros” exemplos de tricinia sacros no códice Basevi 2439, ambas de autoria (provável) de Pierre de la Rue: “Sancta Maria virgo” (fol. 94v-96r), que possui correspondência única no Trium vocum carmina de Formschneider (ver adiante); e “Si dormiero” que, do contrário, tem correspondência ampla em manuscritos, impressos e tablaturas, e cuja extensão também impressiona (Figura 39). Figura 39. Tricinium sacro. La Rue, “Si dormiero”. Códice Basevi, fol. 96v-97r e 97v-98r (residuum). Parece significativo que tricinia sacros e instrumentais como “Adieu mes amours”, “La Alfonsina”, “La Bernardina”, “Benedictus”, “La Morra” e “Si dormiero”, entre outras, ocorram nas tablaturas manuscritas e impressas da primeira metade do século XVI como as de órgão de Kotter64 e Fridolin Sicher (St. Gall 530)65 e a de alaúde de H. Neusidler66. “Si dormiero”, que é atribuída a La Rue no códice Basevi, vem creditada a Isaac, Agricola, ou Finck (Figura 40), respectivamente, nestas tablaturas; em outras fontes prévias, ainda ocorre com autoria anônima (MECONI, 1991, p. 174), corroborando a hipótese de atribuição tentativa nas intabulações. 64 MS F.IX.22 (Fundamentum totius artis musicae artificialitercompositum, 1513-1522). Basiléia: Universitätsbibliothek Basel. Disponível em: <http://www.e-manuscripta.ch/bau/noten/content/titleinfo/669614>. Acesso em: 01 dez 2016. 65 MS Cod. Sang. 530 (Tablature d’orgue de Fridolin Sicher, 1504-c.1531). São Galo: Stiftsbibliothek. Disponível em: <http://www.e-codices.unifr.ch/fr/list/one/csg/0530>. Acesso em: 01 dez 2016. 66 MS ZV11665 (Ein Newgeordent Kuenstlich Lautenbuch… / Der ander theil des Lautenbuchs, Nuremberg: Johann Petreius, 1536). Halle, Saale: Universitäts- und Landesbibliothek. Disponível em: <http://digitale.bibliothek.uni-halle.de/vd16/content/titleinfo/1000473>. Acesso em: 01 dez 2016. 40 (a) (b) (c) Figura 40. Intabulações de “Si dormiero”, atribuídas a: a) Isaac (Kotter, Fundamentum totius, fol. 35r); b) Agricola (Sicher, Tablature d’orgue, fol. 18v); e c) Finck (Neusidler, Der ander theil des Lautenbuchs, fol. Kiiiv). Essas intabulações da primeira metade do século XVI, a partir de obras mensurais em códices do final do século XV – especialmente os italianos – sugerem a habilitação das mesmas para a execução instrumental ao órgão e ao alaúde. Tais transcrições, notadamente de origem suíça (Basiléia, São Galo) e alemã (Nuremberg) contemplam tanto peças sacras latinas como seculares, vocais ou instrumentais que sejam, mas também lieder alemães que, ao superar em número as peças em latim, poderiam refletir o avanço da crença protestante, como é mais provável no caso do álbum impresso de Neusidler (c.1508-1563) para alaúde, publicado em 1536. Tais lieder ocorrem em menor número nas tablaturas manuscritas de órgão de Kotter e Sicher, mas a proporção de peças latinas nos álbuns é menor na de Kotter, o que pode estar alinhado ao fato deste seguir a fé protestante, fato que o levou inclusive à detenção, tortura e expulsão de Friburgo em 1530. Kotter (1480-1541) foi discípulo de Hofheimer entre 1498 e 1500 durante sua estada em Passau, na Alemanha; já Sicher (1490-1556) estudou com o alemão Hans Buchner (1483-1538), por sua vez também discípulo de Hofheimer (e seu substituto a serviço do imperador Maximiliano I) em sua estada em Constança, cidade alemã na fronteira com a Suíça, a partir de 1506. Paul Hofhaimer (1459-1537), por sua vez, foi um dos nomes mais conhecidos em sua época para além das terras alemãs, ladeando Isaac; ambos serviram à corte de Innsbruck, como organista e compositor, respectivamente, por volta de 1480. Poucas peças originais de Hofheimer sobrevivem nos álbuns produzidos por sua linhagem de pupilos, segundo Apel67 (1997, p.77), como uma “Carmen” sobre “Zucht Eer und lob” e uma “Tandernacken” intabuladas por Kotter (Figuras 41a, 41b) e Neusidler (Figuras 42a, 42b)68. 67 Apel (op. cit.) também inclui Recordare e Salve regina neste pequeno conjunto de peças, que são, contudo, excetuadas na bibliografia recente, segundo a qual outras peças de sua autoria ocorrem em fontes diversas. Cf. “Paul Hofhaimer” em: Digital Image Archive of Medieval Music. Disponível em: <http://www.diamm.ac.uk/jsp/Descriptions?op=COMPOSER&composerKey=713>. Acesso em 01 dez 2016. 68 Há também registros de intabulações destas peças para órgão por Leonhard Kleber e Jacob Paix, e para alaúde por Hans Juderkünig. Cf. Nowak, Leopold (ed.), Das deutsche Gesellschaftslied in Österreich von 1480 bis 1530, Bd. 72. Viena: Österreichischer Bundesverlag, 1930. Citação disponível em <http://imslp.org/wiki/Denkmäler_der_Tonkunst_in_Österreich>. Acesso em: 01 dez 2016. 41 (a) (b) Figura 41. Peças de Hofhaimer intabuladas para órgão por Kotter. a) “Carmen in Fa Zucht eer und lob”, fol. 69r; b) “Tandernack uf dem Rin lag”, fol. 24v. (a) (b) Figura 42. Peças de Hofhaimer intabuladas para alaúde por Neusidler. a) “Zucht ehr und lob”, fol. Fiiv; b) “Taner nack”, fol. Miiiir. Paul Hofhaimer é um nome presente também na escrita em partes. Assim como a sua já discutida “Carmen in sol”, encontram-se nos Munich Partbooks uma “Carmen in fa”69 (Figura 43) e uma “Carmen in re”, a primeira concordante com Vienna 18810 e também conhecida como “Carmen Hercules” (título comum em honra ao duque Ercole d’Este de Ferrara), além de cerca de quatro a seis de seus lieder, alguns com atribuição incerta. Figura 43. Hofhaimer, “Carmen in Fa” (Hercules), discantus. Munich Partbooks, fol. 73v-74r. 69 D-Mu MS 8° 329 [olim. Cim. 44c-2] (Lieder Chansons Instrumentalsätze. Bavaria: após 1523). Munique: Universitätsbibliothek. Disponível em: <https://epub.ub.uni-muenchen.de/12052>. Acesso em: 30 nov. 2016. 42 O MS Vienna 18810 (Mus.Hs. 18810 Mus) é um conjunto de livros de parte manuscritos contendo obras de Senfl, Isaac e Hofhaimer, figuras centrais na corte do Imperador Maximiliano. Senfl é representado em vinte e cinco peças, seguido numericamente por dezesseis de seu mestre, Isaac; já Hofhaimer, organista da corte, é representado em oito composições. Isaac, contudo, é o que mais contribui com peças intituladas Carmen (Tabela 4). Outros compositores são representados pela associação com Marguerita da Áustria, filha de Maximiliano, entre eles Pierre de la Rue e Alexander Agricola (ROBINSON, 1983, p. 68). Para a Carmen anônima de no. 58, a extensão incomum e a divisão em duas partes sugerem uma versão sem texto de moteto ou missa (ROBINSON, ibidem, p. 83). Nenhuma Carmen de Senfl ocorre em Vienna 18810; em termos estruturais, a de no. 8 (em lá) é a única que se inicia com pares imitativos; o primeiro par, em ré (contratenor e bassus, cânone em intervalo de breve) dista duas breves do segundo, em lá (discantus e tenor, similarmente), que se diferencia a partir da sexta nota. “Maudit soit” de Isaac ocorre em Vienna 18810 como “Maudit soyt” (no. 46), o que a exclui da Tabela 4; já a peça no. 36 (“Ain Lombre”) ocorre como “En l’ombre dung buyssonet” em outras fontes, sendo atribuída a compositores diversos (Smithers, 1970, p.64). Carmen in la (no. vozes) 4vv Isaac Senfl 8 Hofhaimer La Rue Agricola in re 4vv 36* (“Ain Lombre”) 9, 12 44* 10* 3vv in fa 4vv 3vv in sol 4vv 54* 40* 19* 55* 43* (“Hercules”) (?) 4vv 53* 11* 39* (“Adieux Florens”) 52 (“Oublier Veul”) Anônimo 58 Tabela 4. Posicionamento numérico de peças com o título Carmen, em MS Vienna 18810. Títulos em parêntesis indicam concordâncias com a Tabela 3, exceto no caso anônimo. * Concordante com os Munich Partbooks. 1.5 Música impressa no século XVI e sua contraparte instrumental De uma forma geral, obras musicais impressas passam a ser produzidas a partir de 1500, quando Petrucci desenvolve o primeiro meio efetivo de imprimir música mensural, marcando “um divisor de águas na forma como a música é compilada e distribuída” (BANKS, 2006, 123). Sua primeira publicação, o Harmonice musices odhecaton A70 (1501), contém majoritariamente 70 Cf. Boorman, Stanley: 'The 'First' Edition of the Odhecaton A' Journal of the American Musicological Society 30 (1977), 183-207, 199-201, 206. 43 chansons – a maioria apenas com um incipit – como “Adieu mes amours”, “De tous biens” e “Jay pris amours” (a quatro vozes) e “La morra”, “La alfonsina”, “Si dedero” (a três vozes, em igual número), além de umas poucas peças sacras contendo texto (Figura 44a-c). O formato de livro de coro oblongo (largura maior que a altura) se reproduz em seus álbuns produzidos entre 1502 e 1503: os Canti B e C, com chansons, e Motetti A e B, contendo música sacra. (a) (b) (c) Figura 44. Petrucci. Harmonice musices Odhecaton A , peças selecionadas. (a) Josquin Des Prez, “Adieu mes amours”, fol.16v-17r; (b) Isaac, “La morra”, fol.49v-50r; (c) De Orto, “Ave Maria”, fol. 3v-4r. 71 71 Q.51 (Harmonice musices Odhecaton, 1501). Bolonha: Museo Internazionale e Biblioteca della Musica. Disponível em: <www.bibliotecamusica.it/cmbm/scripts/gaspari/cheda.asp?id=8084>. Acesso em: 30 nov. 2016. 44 Já em 1504, Petrucci adota o modelo de livro de partes para estruturar o conteúdo de seu Motetti C72, com peças a quatro vozes. O texto é guarnecido em sua maior parte, excetuando-se um grupo onde a substituição de texto por um incipit ocorre de forma diversa para as quatro vozes, como descrito na Tabela 5. incipit Nas quatro vozes Nas vozes inferiores Em duas das vozes peça superius altus tenor bassus “Electi dei pontifices”* 9r 10r 9r-9v 8v-9r “Requiem eternam” (Obrecht) 9r-10r 10v-11r 9v 9r-9v “Ut heremita solus” (Ockeghem) 13v-14v 14v-15v 13r 12v-13v “Si bona suscepimus” 24r-24v 25r-25v 22v 22v “O admirabile comertium” (20r) 20v 17v 18r “Trinitas deitas”, ciclo (22v) 23r-23v 20v 20v “O decus innocentie”† / “Ave regina”‡ (18r)† 19r† 16r‡ 16v‡ “Alma redemptoris”, ciclo (Isaac) (16v) 17r-18r (14v) 15r-15v “Inviolata integra”, ciclo (27r) 28r-28v (25r-26r) 25v-26r Tabela 5. Petrucci, Motetti C. Peças com texto substituído por incipit, exceto na voz entre parêntesis. Autorias incertas, exceto quando indicado. *2a pars de “Concede nobis” (1a pars com guarnição); †/‡ moteto bitextual. É curioso o fato de “Electi dei pontifices” (secunda pars do ciclo “Concede nobis domine”, anônimo) ter como texto apenas um incipit. Os dois textos aparecem conjugados em pelo menos duas fontes de cantochão de Cambrai, F-CA 38, fol. 399r (c.1230) e F-CA Impr. XVI C 4, fol. 221r (c.1508), comuns à celebração do Commune plurimorum Confessorum73. A hipótese de leitura instrumental desta peça se enfraquece frente ao fato de sua prima pars possuir guarnição completa do texto. Vale destacar também a peça “Ut heremita solus” de Ockeghem, onde o tenor no fol. 13r ocorre em resolutio para duas partes semelhantes, cada uma dividida em três subseções mensurais O:C:O (tempo perfeito, imperfeito e perfeito novamente, sempre em prolação menor, em proporção 3:2:3). A primeira parte é constituída apenas por “longas”, revelando uma escrita em estilo cantus planus (“notas corais romanas”, ver Figura 24, p. 24); já a segunda parte ocorre em proporção “diminuta”, com as “longas” valendo “breves” (Figura 45d). As outras vozes da peça, sem guarnição alguma a não ser o incipit, estendem-se ao longo de quinze sistemas cada uma (em média), alcançando o surpreendente número de três páginas para uma peça sem texto (Figura 45a-c), o que equivaleria à extensão de alguns ricercares de Adrian Willaert, como veremos mais adiante. 72 BSB 4 Mus.pr. 160#Beibd.2., Motetti C. fol. 2r. Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00072011>. Acesso em: 30 nov. 2016. 73 Cf. fontes disponíveis em: <http://cantusdatabase.org/feast/410167/comm-plur-conf>. Acesso em: 01 dez. 2016. 45 (a) (b) (c) (d) Figura 45. Ockeghem, “Ut heremita solus”. Petrucci, Motetti C, (a-c) altus, fol. 14v-15v; (d) tenor, fol. 13r. Já os impressos alemães do início do século XVI parecem seguir uma lógica contrária à italiana. No livro de partes Aus sonderer künstlicher Art de Edhard Öglin74 (1512), um conjunto de quarenta e dois lieder (servidos apenas de seus incipits) é seguido de uma seção com sete peças latinas com guarnição em todas as vozes, exceto “Fama malum quo non aliud” (baseada em Virgílio) e em “In tu domine”, onde o texto é fornecido apenas para duas das vozes. As canções alemãs, que na parte do tenor são acompanhadas por textos estróficos (em paralelo), possuem textura homofônica e frases curtas, permitindo uma conjugação intuitiva do texto com a melodia, como em “Dich mütter gottes” (Figura 46a). Já as peças latinas polifônicas demandam de guarnição de texto devido ao seu arranjo melismático, como em “Paranimphus salutat virginem” (Figura 46b), cuja tessitura alcança um intervalo de décima segunda no discantus. No mesmo ano, paralelamente às tablaturas manuscritas para órgão, Peter Schöffer II (c.1475/80-1547) produz o primeiro álbum impresso de tablaturas tanto para órgão como para alaúde, o Tabulaturen etlicher lobgesang und lidlein uff die orgeln un lauten de Arnolt Schlick75. Enquanto a notação para órgão segue o padrão de manuscritos contemporâneos com a linha superior em sistema mensural com seis linhas (Figura 47a), a notação para alaúde distoa 74 RISM 1512/1 (Aus sonderer künstlicher Art... Augsburg: E. Öglin). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00082229>. Acesso em: 01 dez 2016. 75 RISM 1512/2 ou RISM A/I S 1650 (Arnolt Schlick, Tabulaturen etlicher lobgesang. Mainz: Peter Schöffer II). Paris: Bibliothèque nationale de France. Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k857264z/f16.image.r=.langES>. Acesso em: 01 dez 2016. 46 daquela descrita por Virdung, ao fazer uso de tal sistema de seis linhas para a voz aguda, na maioria das peças (Figura 47b); trataria-se esta de uma prática contemporânea à das tablaturas francesas e italianas, tal como em coleções de Attaingnant (ao fim dos anos 1520) e Bossinensis (entre 1509-11), respectivamente (KEYL, 1989, 276). O álbum contém um “Benedictus” (movimento de missa) a três vozes considerado “o primeiro ricercar para órgão”76, devido ao uso de imitação de maneira verdadeiramente fugal (APEL, 1997, p.88), permanecendo incerto se a composição é original de Schlick ou uma intabulação de peça vocal de outro compositor. (a) (b) Figura 46. E. Öglin, Aus sonderer künstlicher Art, parte do tenor. Duas peças anônimas. (a) “Dich mütter gottes rüff wir an”; (b) “Paranimphus salutat virginem”. (a) (b) Figura 47. Tabulaturen etlicher lobgesang. (a) “Benedictus”, fol. 29 (órgão); (b) “Mein M. ich hab”, fol. 57 (alaúde). 76 Cf. Frotscher, G. Geschichte des Orgelspiels und der Orgelkomposition. Berlin: Max Hesse, 1, 1935, p.100. 47 No ano seguinte ao Tabulaturen, Peter Schöffer II publica um álbum em livros de partes com lieder para três ou quatro vozes77, seguindo o layout para peças germânicas antecipado por Öglin, e mais tarde, em 1520, Grimm e Wirsung publicam um livro de côro impresso, contendo peças sacras latinas de Senfl e outros, o Liber selectarum cantionum quas vulgo mutetas appellant sex quinque et quatuor vocum (RISM 1520/4)78, com guarnição de texto completa. Após um hiato de doze anos, um novo impulso se inicia com a imprensa de H. Formschneider, que após a publicação do tratado instrumental Musica Teusch (1532, cf. anteriormente n. 31, p. 15) empenha-se na impressão de uma série de álbuns de perfil variado, elencados na Tabela 6. Dois álbuns de lieder são publicados em 1534 e 1536; o primeiro deles (H. Ott, Der est Teil) segue o modelo de Öglin, mantendo incipits para todas as vozes, enquanto que o álbum posterior (Schöne auszerlesne lieder) adota outro padrão, com guarnição silábica em todas as vozes, em paralelo a textos estróficos para todas as vozes, como no discantus de “In Gottes namen faren wir” (Figura 48a) e “Auff gut gelück wag ichs dahin” (Figura 48b); talvez isto se dê por conta de um repertório de lieder mais complexo, polifônico e ornamentado. Ambos os álbuns, contudo, são designados para realização instrumental, como indicado em seus títulos (...lustig zu singen, und auff allerley Jnstrument dienstlich). (a) (b) Figura 48. Formschneider, Schöne auszerlesne lieder, parte do discantus. Duas peças anônimas. (a) “In Gottes namen faren wir”, fol. A2v- a3r; (b) “Auff gut gelück wag ichs dahin”, fol. A7v- a8r. 77 RISM 1513/2, Rar. 967 (Gedruckt zu Mëtz. Metz: Schöffer, 1513). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00074659>. Acesso em: 01 dez 2016. 78 2Mus.pr.19 (Liber selectarvm cantionvm. Ausburgo: Grimm e Wirsung). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00083822>. Acesso em: 01 dez 2016. 48 RISM 1532/13 Título Estilo / Meio H. Gerle, Musica Teutsch, auf die Jnstrument der grossen unnd Consorts kleinen Geygen, auch Lautten, welcher massen die mit grundt instrumentais und art irer Composicion auss dem gesang in die Tabulatur (intabulação) Liras da gamba; rabecas; alaúdes Intabulação para alaúde Lieder vocal / instrumental, em 4 partes Incipit em todas vozes; no tenor, textos estróficos (1534) L. Senfl. Varia carminum genera, quibus tum Horatius, Moteto-lied, A/I S2806 tum alij egregij poetae, Graeci & Latini veteres & recentiones, latim, silábico sacri & prophani usi sunt, suavissimus harmonijs composita81 e homofônico H. Finck. Schöne auszerlesne lieder, des hoch berümpten Heinrici Finckens, sampt andern newen Liedern, von den Lieder vocal / 1536/9 fürsnesten diser kunst gesetzt, lustig zu singen vn auff die instrumental Jnstrument dienstlich vor nie im druck aussgangen82 Guarnição plena; textos estróficos em todas vozes Guarnição plena; mais polifônico e imitativo, seja estrófico ou não 1533/4 1534/17 Hans Gerle. Tabulatur auff die laudten etlicher preamble, Teutscher, Welscher und Francösischer stück79 Hans Ott. Der est Teil. Hundert und ainundzweintzig newe Lieder, von berümbtenn dieser kunst gesetzt, lustig zu singen, und auff allerley Jnstrument dienstlich80 Obs. Indisponível 1537/1 H. Ott, Novum et insigne opus musicum 6, 5, et 4 vocum83 Latim sacro Guarnição plena 1537/12 A/I S2807 H. Gerle, Musica Teutsch (reimpressão de RISM 1532/13) (1537) L. Senfl, Magnificat octo tonorum84 Instrumental Latim sacro Consorts Guarnição plena 1538/3 1538/9 H. Ott, Secundus tomus novi operis musici, 6, 5, et 4 vocum85 H. Ott, Trium vocum carmina a diversis musicis composita86 Latim sacro Diversos, trio Guarnição plena Nenhum texto 1539/2 Missa tredecim quatuor vocum87 Missa Guarnição plena 1546/31 Musica und Tabulatur (reimpressão de RISM 1532/13) Instrumental Consorts Latim sacro Guarnição plena A/I I89 (1550) H. Isaac. Primus tonus... Coralis Constantini 88 Tabela 6. Formschneider, obras impressas até 1550. O indexador RISM será sempre do tipo B/I (coleções impressas dos séculos XVI ao XVIII) exceto se indicado como A/I (impressos individuais antes de 1800). 79 H. Gerle, Tabulatur auff die Laudten. Nuremberg: H. Formschneider, 1533. Londres: British Library (fonte digital indisponível). 80 Mus.pr. 35 (H. Ott, Der est Teil. Hundert und ainundzweintzig newe Lieder. Nuremberg: H. Formschneider, 1534). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitalesammlungen.de/view?id=bsb00082621>. Acesso em: 02 dez 2016. 81 Mus.Pr. 35#Beibd.2 (L. Senfl. Varia Carminvm Genera. Nuremberg: H. Formschneider, 1534). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitalesammlungen.de/view?id=bsb00082623>. Acesso em: 02 dez 2016. 82 Mus.pr. 35#Beibd.1 (H. Finck e outros, Schöne auszerlesne Lieder. Nuremberg: H. Formschneider, 1536). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitalesammlungen.de/view?id=bsb00082622>. Acesso em: 02 dez 2016. 83 Mus.pr. 9606 (H. Ott, Novvm et insigne opvs musicvm. Nuremberg: Formschneider, 1537). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00083303>. Acesso em: 02 dez 2016. 84 4 Mus.pr. 159#Beibd.3 (L. Senfl, Magnificat octo tonorum. Nuremberg: H. Formschneider, 1537). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitalesammlungen.de/view?id=bsb00074414>. Acesso em: 02 dez 2016. 85 4 Mus.pr. 177 (H. Ott, Secvndvs tomvs novi operis mvsici. Nuremberg: H. Formschneider, 1538). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitalesammlungen.de/view?id=bsb00074420>. Acesso em: 02 dez 2016. 86 4 Mus. 6a(2) (H. Ott., Trivm vocvm carmina. Discantus. Nuremberg: H. Formschneider, 1538). Jena: Thüringer Universitäts- und Landesbibliothek, Bibliotheca Electoralis. Disponível em: <http://archive.thulb.unijena.de/hisbest/receive/HisBest_cbu_00019286>. Acesso em: 02 dez 2016. 87 4 Mus.pr 159#Beibd.1 (Missa tredecim quatuor vocum. Nuremberg: H. Formschneider, 1539). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitalesammlungen.de/view?id=bsb00074412>. Acesso em: 02 dez 2016. 88 4 Mus.pr 123-1/3#1 (H. Isaac, Primus tonus... Coralis Constantini. Nuremberg: H. Formschneider, 1550). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitalesammlungen.de/view?id=bsb00094084>. Acesso em: 02 dez 2016. 49 No meio tempo entre estas duas publicações, Formschneider imprime Varia carminum genera, álbum com peças de Senfl e outros, que contrasta pelo conteúdo de caráter profano e até humanista, aludindo a motivos greco-romanos, modos e métricas. Surpreende neste material a unidade textural homofônica e silábica, similar à dos lieder; a guarnição de seus textos latinos, contudo, é plena em todas as vozes (como no cantus I de “Phaletium Dactylicum”, Figura 49), apesar de sua estrutura estrófica, mostrando que o modelo editorial de Öglin aplica-se apenas a textos germânicos, possivelmente devido à mais fácil memorização da língua pátria. Figura 49. “Phaletium Dactylicum”, Cantus I. Formscheider, Varia carminum genera, fol. Aivv-Avr Formschneider ainda colaboraria com Hans Ott (editor de Der est Teil, 1534) em mais três importantes coleções. A primeira, Novum et insigne opus musicum, sex, quinque, et quatuor vocum (1537) parece ser um êxito comercial da firma, a julgar pela quantidade de cópias remanescentes desta antologia de motetos em seis livros de partes89, tanto que no ano seguinte é publicado o Secundus tomus novi operis musici, também para seis, cinco e quatro vozes. Neles, o modelo de guarnição plena em todas as vozes serve tanto à demanda de texto em latim dos motetos como democratiza o acesso a qualquer tipo de público. 1.6. Escrita polifônica a três vozes a partir do Trium vocum carmina de Formschneider Em 1538, Formschneider produz, possivelmente também em parceria com Ott90, o álbum Trium vocum carmina. Trata-se de uma coletânea de cem peças, a três vozes, concordantes com diversas compilações prévias, manuscritas ou impressas, de códices sem texto (cf. inventário em BROWN, 1965, pp. 59-61). Seu repertório reúne gêneros como lieder, chanson, seções de missa, tricinia sacros, danças, e motetos, contemplando autores ‘antigos e 89 Cópias remanescentes em vinte e duas bibliotecas indexadas ao catálogo RISM. Cf. catálogo disponível em: <http://opac.rism.info/metaopac/singleHit.do?methodToCall=showHit&curPos=2&identifier=251_SOLR_SER VER_1779422332>. Acesso em: 03 dez 2016. 90 Edwards (2006, p.1) trata como indefinida tal parceria, atribuída a Ott no catálogo RISM, disponível em: <http://opac.rism.info/metaopac/refineSearch.do?id=year&methodToCall=filterSearch&subval=1538>. Acesso em: 03 dez 2016. 50 modernos’, como mencionado em seu prefácio (Figura 50). Não consta no álbum, contudo, nenhum índice nem atribuição autoral, guarnição de texto e sequer um incipit. Figura 50. Prefácio. H. Formschneider, Trium vocum carmina, fol. 2r “CUMPRIMENTO AOS VIRTUOSOS MÚSICOS Oferecemo-lhes, vejam, grande número de escolha de canções a três vozes, compostas pelos mais aprovados mestres da Música, sejam antigos ou modernos. Nós as selecionamos com particular entusiasmo, não apenas de forma que as mais agradáveis obras de gênios monumentais desta área não fossem perdidas, mas também para que pudéssemos estimular o entusiasmo da juventude a abraçar determinadamente esta arte, de longe a mais doce. Pois bem conhecidos são não só os notáveis elogios dos poetas gregos antigos, Teógnis, Homero e outros, com os quais veneraram a música como constante companheira da retidão e da aprendizagem, mas também os julgamentos, para além daqueles obscuros, de filósofos que atestam como sendo do interesse do Estado que a juventude deva aplicadamente aprender música. Mas que nada mais houvesse a esta arte além de sua doçura e prazer, poderia isto não ser elogio o bastante a ela, especialmente uma vez que esta vida, que pertence a nossas preocupações e nossas variadas e diferentes atribulações, não pode ser prazerosa a não ser que abrandada por algum prazer cultural? Nós, portanto, pensamos que tal entusiasmo nosso será aprovado por todos os bons homens, uma vez que estamos tendo esta ideia para o bem tanto do estado como da juventude, e salvando de perecer os mais doces trabalhos de músicos notáveis. Mas uma vez que as palavras destas canções não possuíam uma linguagem única, nós julgamos que seria mais conveniente se as retirássemos, designando as canções por números; pois nos pareceu que seria hediondo se textos, ora Germânicos, ora Franceses, e por vezes Italianos ou Latinos, fossem misturados. Pois, em canções a três vozes, parece o compositor estar mais ocupado com uma mistura bem elaborada de sons do que de palavras. O músico erudito irá desfrutar deste prazer em abundância, mesmo sujeito a palavra nenhuma. Nem mesmo com os nomes dos autores fomos solícitos, uma vez que cada um tem suas próprias características notórias, pelas quais músicos eruditos podem facilmente reconhecê-los. Adeus, e desfrutem em felicidade de nosso trabalho, pois também daremo-lhes outros desta natureza, pela ajuda de Deus”91 91 Tradução nossa, porém mais literal que a produzida em língua inglesa por Edwards em seu artigo dedicado às obras atribuíveis à Alexander Agricola no Trium vocum carmina (2006, pp.33-34). 51 Neste prefácio, o caráter didático da obra fica patente na argumentação por um repertório selecionado para “estimular o entusiasmo da juventude”; já a subtração de todo e qualquer tipo de texto tem base em outros argumentos. Primeiro, pareceria “hediondo se textos, ora Germânicos, ora Franceses, e por vezes Italianos ou Latinos, fossem misturados”; além disso, o compositor estaria “mais ocupado com uma mistura bem elaborada de sons do que de palavras”. Esta visão editorial poderia refletir as aspirações de um público alvo indiferente à língua estrangeira e mais interessado em seu conteúdo puramente musical. A omissão das autorias sugere que, à época, a difusão desse repertório era tal que o reconhecimento de seus autores seria possível por simples caracterização apreciativa. Fitch (2010, p.49) compara esta habilitação aos esforços de musicólogos atuais no intuito de desenvolver tal capacidade distintiva, ao que invoca terminologias da estemática no desenvolvimento de seu raciocínio: “A própria ideia de que contemporâneos poderiam facilmente distinguir os estilos de, digamos, Busnoys e Caron, Josquin e La Rue, Obrecht e Isaac, Brumel e Agricola, é extravagantemente enervante para os músicos de hoje, estejam eles julgando a confiabilidade de uma atribuição ou avaliando reinvidicações conflitantes. Fazer isto é como identificar aspectos ‘separativos’ de estilo musical (emprestando a terminologia da estemática), tarefa já o suficiente árdua; mas igualmente incerta é a comparação estilística de tipos “conjuntivos”, na qual poderia-se apontar a influência de um compositor sobre o outro, ou identificar suas preocupações comuns; pois isto pode tomar a forma não de caprichos gramaticais ou sintáticos, mas de considerações nas quais os teóricos daquele tempo não estariam a par – entendimentos comuns de forma e empréstimo musical, construção melódica, ou textura contrapontística. Neste campo mais especulativo, deve-se caminhar mais circunspectamente; pois como pode se propor com confiança similaridades de panorama estético ou ainda categorias mais abstratas, quando nossa habilidade em diferenciar estilos composicionais em termos mesmo dos mais básicos componentes da sintaxe musical parece tão incerta? Pode-se quase que vislumbrar o autor do prefácio de Formschneider, torcendo o nariz para nós (‘músicos eruditos’), ao longo dos séculos”. Concordâncias com códices italianos do fim do século XV (“La Morra”, “Benedictus” e “Fortuna desperata” de Isaac; “Si sumpsero” e “Malheur me bat” de Obrecht; “Si dedero”, “Belles sur touts”, “Tandernaken” e “Oublier veuil tristesse” de Agricola; “Ma bouche rit” de Ockeghem; “Sancta Maria Virgo” de Pierre de la Rue; “La Alfonsina” de Ghiselin) sugerem uma miríade de gêneros formando um repertório possivelmente transmitido através dos manuscritos Codex Pernner, Vienna 18810 e Munich parbooks, e talvez até mesmo pelo Odhecaton A (a pressupor pelo seu êxito editorial, com reimpressões em 1503 e 1504), ao Trium vocum carmina. Os autores ‘antigos’ melhor representados na coletênea são aqueles da escola franco-flamenga, tanto da terceira geração (A. Agricola, Obrecht e Isaac, com sete atribuições cada um, seguidos por Josquin, Compère, Ghiselin, La Rue e Brumel, com pelo menos duas atribuições cada) como da segunda (Ockeghem, Ghizeghem e Martini, falecidos 52 antes de 1500, também representados com ao menos duas atribuições cada); já entre os ‘modernos’ figuram três autores vivos quando da publicação da coletânea: S. Dietrich, A. von Bruck e L. Senfl; ao último, são atribuídas três autorias por concordância com os manuscritos alemães, entre as quais as peças número 1, a extensa e não imitativa “Das lang” (Figuras 51ab, concordante com RISM 1535/14 e com os Munich partbooks) e número 67, uma “Fantasia” com entradas imitativas (Figuras 52a-b) (seguidas de incipits melódicos para todas as vozes)92. (a) (b) Figura 51. L. Senfl, “Das lang”. a) peça no. 1, discantus. Trium vocum carmina, fol. 02r-02v; b) incipit para as três vozes, Senfl Project, S 043. (a) (b) Figura 52. L. Senfl, “Fantasia”. a) peça no. 67, bassus. Trium vocum carmina, fol. 34v-35r; b) incipit para as três vozes, Senfl Project, S 103. Vale observar que a concordância de “Das lang” com RISM c.1535/14 revela tal como uma fonte adicional de peças a três vozes, sem texto, porém com incipit. O álbum, talvez o primeiro impresso configurado somente para três vozes, não possui descrição de título, sendo referenciado por “Ich hab mich recht gehalten”, sua primeira peça, na catalogação de seu único original sobrevivente93. Contendo chansons, lieder e motetos polifônicos, tem como algumas concordâncias com outros álbuns as peças “Si sumpsero” (Obrecht), “Der Hundt”, “La morra” e “Benedictus” (Isaac), “La alfonsina” (Ghiselin) e “C’est donc pour moi” (Willaert). Mesmo não sendo possível avaliar em que extensão o Trium vocum carmina influenciou o mercado editorial alemão, pode-se inferir sua influência em publicações a partir de 1540 exclusivas para três vozes (trium vocum, tricinia, triciniorum), como elencado na Tabela 7. 92 Incipits disponíveis em: <http://www.senflonline.com>. Acesso em 6 dez 2016. Rés. Vm7 504 (Ich hab mich recht gehalten, Superius apenas. Frankfurt: C. Egenoff, c. 1535). Paris: Bibliothèque nationale. Disponível em: http://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb42660087x>. Acesso em: 6 dez 2016. 93 53 RISM Editor Título 1540/8 Kriesstein Concentus novi, trium vocum, ecclesiarum usui94 1541/2 Petreius Trium vocum cantiones centum95 1542/8 Rhau Tricinia. Tum veterum tum recentiorum in arte musica symphonistarum96 1543/6 Gardano Motetta trium vocum97 (republ. 1551/3, 1569/3) A/I O262 (1549) Berg & Neuber Tricinia in pias aliquot98 A/I F720 (1559) Berg & Neuber Tricinia sacra ad voces pueriles pares in usum scholarum composita in tertio tomo triciniorum99 (republ. 1563/2)100 [1560]/1 Berg & Neuber Selectissimorum triciniorum101 1560/2 Berg & Neuber Variarum linguarum tricinia. Tomi secundi102 1567/2 D. Gerlach Tricinia sacra ex diversis et probatis autoribus103 A/I H6325 (1573) Adam Berg Christiani Hollandi mvsici celeberrimi Triciniorum, quae cum vivae voci, tum omnis generis instrumentis musicis104 A/I C1471 (1574) Phalèse & Bellère de Castro. Triciniorum sacrorum omnis generis instrumentis musicis105 A/I L878 (1575) Adam Berg Lasso. Liber mottetarum, trium vocum, quae cum vivae voci, tum omnis generis instrumentis musicis106 (republ. 1577)107 Tabela 7. Publicações dedicadas a formações a três, a partir de 1540. Após a publicação de missas e lieder a três e quatro vozes por Melchior Kriesstein em 1540, Petreius publica em 1541, em Nuremberg, o Trium vocum cantiones centum, com 94 Mus.pr.45 (Kugelmann, H. Concentvs novi, trivm vocvm. Ausburgo: M. Kriesstein, 1540). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00094084>. Acesso em: 05 dez 2016. 95 4 Mus.11a(1) (Trivm vocvm cantiones centvm. Discantus. Nuremberg: Petreius, 1541). Jena: Thüringer Universitäts- und Landesbibliothek, Bibliotheca Electoralis. Disponível em: <http://archive.thulb.unijena.de/hisbest/receive/HisBest_cbu_00020660>. Acesso em: 05 dez 2016. 96 4 Mus.11a(2) (Tricinia tum vetervm tum recentiorvm. Discantus. Wittenberg: G. Rhau, 1542). Jena: Thüringer Universitäts- und Landesbibliothek, Bibliotheca Electoralis. Disponível em: <http://archive.thulb.unijena.de/hisbest/receive/HisBest_cbu_00019396>. Acesso em: 05 dez 2016. 97 K.3.d.7. (Motetta trium vocum. Veneza: Gardano, 1543). Londres: British Museum. Fonte digital indisponível. 98 VD16 T1935 (Tricinia in pias aliqvot. Nuremberg: Berg/Neuber, 1549). Zwickau: Ratsschulbibliothek. Fonte digital indisponível. 99 K.8.i.1.3 (In tertio tomo triciniorum. Nuremberg: Berg/Neuber, 1559). Londres: British Library. Disponível em: <https://repository.royalholloway.ac.uk/items/85804fb9-1d76-fb02-a4ba-1b3cdd91b43a/1/>. Acesso: 5 dez 2016. 100 “In tertio tomo triciniorum” é o título do livro de parte do cantus inferior e superior, e provavelmente significa que este é o terceiro em uma série de três livros de Tricinia por este editor, vol. 1 sendo RISM 1560/1 e vol. 2 sendo RISM 1560/2, apesar do ano de publicação deste volume anteceder por um ano os outros. 101 K.8.i.1.1 (Selectissimorum triciniorum. Nuremberg: Berg/Neuber, 1560). Londres: British Library. Disponível: <https://repository.royalholloway.ac.uk/items/c3af115e-59c3-66dc-c16a-2e16bb95f586/1/>. Acesso: 5 dez 2016. 102 K.8.i.1.2 (Triciniorum in secundo tomo contentorum. Nuremberg: Berg/Neuber, 1560). Londres: British Library. Disponível em: <https://repository.royalholloway.ac.uk/items/b7ff2afa-da00-ba74-1e8da95eb4d108f6/1/>. Acesso: 5 dez 2016. 103 Tricinia sacra ex diversis. Nuremberg: Gerlach, 1567). Heilbronn: Stadtbibliothek. Fonte digital indisponível. 104 4 Mus.pr. 119#Beibd.2 (J. Puhler, Christiani Hollandi mvsici celeberremi triciniorvm. Munique: A. Berg, 1573. Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitalesammlungen.de/view?id=bsb00071977>. Acesso em: 05 dez 2016. 105 A-F4 G2 (Triciniorum sacrorum. Leuven: Phalèse/Bellère). Londres:British Library. Fonte digital indisponível. 106 S/3864(1) (Lasso, O. Liber mottetarum trium vocum. Munique: A. Berg, 1575). Madrid: Biblioteca del Real Conservatorio Superior de Música. Fonte digital indisponível. 107 4 Mus.pr. 946 (Lasso, O. ibidem). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00094026>. Acesso em: 06 dez 2016. 54 motetos, lieder, chansons e madrigais, em semelhança ao Trium vocum carmina. Há, contudo várias diferenças: as peças possuem ampla guarnição de texto e são discriminadas em um index mais detalhado, relacionando compositor e obra, afora o ineditismo do repertório. Peças de compositores mais antigos tendem a ser única, como “Esurientes” de Compère, “Lauda Christum pauper homuntio” de Mouton (previamente apenas em BrusC 27511, c.1530-35), “Sol occasum nesciens” e “Quem tremunt” de Isaac ou, do mesmo autor, “Tristitia vestra”, em concordância próxima apenas com o Trium vocum carmina. Entre os compositores mais jovens figuram F. de Layolle (“Peccavi super”), A. De Silva (“Fac mecum signum”), La Fage (“Quam pulchra es amica”, “Quae est ista quae procesit”), A. von Bruck (“Virgo prudentíssima”, “Tota formosa”), P. Moulu (“Sicut malus”, “Domine ante omne”) e Sampson (“Et iterum venturus”, “Pater a nullo est factus”). Cinco chansons de Willaert também são presentes na obra. Já em 1542, em Wittenberg, Rhau publica o Tricinia. Tum veterum tum recentiorum, seguindo similarmente a linha de Trium vocum carmina, com motetos, lieder, chansons, madrigais, porém com ampla guarnição de texto. O index contém peças desvinculadas daquele repertório sintetizado no Trium vocum carmina, mas os autores são citados somente ao longo do álbum. Entre as peças latinas, distinguem-se aquelas de compositores antigos (“In pace in id ipsum” de A. Agricola, “Ego sum dominus deus” de Obrecht, “Nos debemus gratias” e “Omnes peccaverunt” de La Rue, “Quid retribuam” de H. Isaac, “O domine libera” de L. Compère e “Tristitia vestra” de Hofhaimer) e dos novos, como T. Stoltzer (“In domine confido”), S. Dietrich (“Tota pulchra”, “Ecce quem vates”), M. Pipelare (“Sensus carnis mors”), Benedictus Dulcis (“Rogamus vos fratres”), A. von Bruck (“Quomodo misereatur”) e F. de Layolle (“In principio erat lux”, “Pater noster”). A primeira peça é de Johann Walter (“Vivo ego dicit”, no.1), compositor relacionado ao protestantismo e amigo de Martinho Lutero. A vocação instrumental do álbum é sugestionada pela gravura na página de rosto (Figura 53a), contendo diversos instrumentos; além disso, a peça anônima “Exercicium sex vocum Musicalium, pro pueris in Schola” reflete o caráter didático da obra (Figuras 53 b-d). O moteto profano “Dulces exuviae” (no. 50, fol. 65r-65v) a três vozes tem atribuição disputada entre Willaert e Mouton. Em Nuremberg, Berg e Neuber ditam a produção de álbuns a três vozes entre 1549 e 1563, produzindo obras de veio explicitamente didático como Tricinia sacra ad voces pueriles pares in usum scholarum composita in tertio tomo triciniorum, publicado em 1559 e republicado em 1563. Não se sabe, contudo, se suas partes I e II, Selectissimorum triciniorum e Variarum linguarum tricinia, publicadas em 1560, são republicações ou publicações atrasadas. Seus repertórios são compostos, novamente, por motetos, chansons e lieder. 55 (a) (b) (c) (d) Figura 53. Rhau, Tricinia tum veterum tum recentiorum. (a) frontispício, discantus; (b-d) “Exercicium sex vocum musicalium, pro pueris in Schola”, discantus, fol. 40r (b), tenor, fol. 41v (c); e bassus, fol. 40r (d). Chamam ainda a atenção as publicações de Adam Berg em Munique, incluindo o Liber mottetarum, trium vocum, quae cum vivae voci, tum omnis generis instrumentis musicis de Orlando de Lasso, já em 1575, com a sugestão explícita de performance instrumental. Na Itália, a publicação de motetos a três vozes inicia-se em 1534 com o Motetta trium vocum de Gardano (republicado duas vezes, RISM 1551/3 e 1569/3), contendo motetos como “Tu es Petrus” e “Puer natus est” de Cristóbal de Morales, “Sancta Maria sucurre” e “Ave virgo gratiosa” de Constanzo Festa e “Quam pulchra est” de Jacques da Mantua (Figura 54), além de ricercares de Willaert (“Re”, “Mi”, “Fa”, “Sol”, a serem discutidos no item 3.2.2, p. 126). (a) (b) (c) Figura 54. Jacques da Mantua, “Quam pulchra est”. Gardano, “Motetta trium vocum”. Cantus, fol. Aiir (a); Tenor, fol. Eiir (b); Bassus, fol. Iiir (c). Outros gêneros italianos precedentes abrangem madrigais a três vozes de Jacques Arcadelt, Constanzo Festa, Giacomo Fogliano e Jhan Gero publicados por Scotto (RISM 1537/7) e por Gardano (RISM 1541/13, 1542/18, 1543/21, 1543/23), além de uma canzona a 56 três vozes, “Amor que vuoi ragion” (Figura 55), excepcionalmente encontrada em um álbum de canzonas a quatro vozes, o Canzoni nove con alcune scelte de varii libri di canto, de Andrea Antico108 (RISM 1510). Neste álbum, assim como em álbuns de lieder, o texto é guarnecido apenas para uma das vozes – no caso, a superior – enquanto que as outras carregam um incipit. Figura 55. B. Trombocino, “Amor que vuoi ragion”. Andrea Antico, Canzoni nove, fol. 24v-25r. Na França, a publicação do álbum Triciniorum sacrorum omnis generis instrumentis musicis de Jean de Castro é representativa também de outras publicações incluindo peças a três vozes que se estende desde 1534, como o Liber septimus XXIII. Trium, quatuor, quinque, sexve vocum modulos de Pierre Attaingnant. 1.7 Escrita a duas vozes Em paralelo à escrita a três vozes, álbuns contendo bicinia são publicados na Alemanha a partir de 1540 (ver Tabela 8), primeiramente em Augsburg, onde Melchior Kriesstein publica bicinia em meio a peças com até seis vozes em seu Selectissimae; já Georg Rhau, em Wittenberg, os publica em 1545 (três anos após seu Tricinia) em dois volumes: Bicinia gallica, latina, germanica... Tomus primus, e Secundus tomus biciniorum, quae et ipsa sunt. Os álbuns também contém fugas a partir das duas vozes do bicinium, que são detalhadas em vários tipos no segundo volume, como “Fugae duarum vocum ex uma”, “trium ex uma”, “quatuor ex uma”, “quatuor vocum”, “ex duabus”, culminando em uma Ave Maria a oito vozes, a partir de duas. Já em Nuremberg, Montanus & Neuber publicam o Bicinia sacra. Schöne geistliche Lieder und Psalmen em 1547, seguido do Diphona amoena et florida em 1549, talvez em resposta à iniciativa de Rhau. 108 KK.II.32 (Marcello Silber, Canzoni nove con alcune scelte de varii libri di canto. Roma: A.Antico, 1510). Basiléia: Universitätsbibliothek, mf. 545. Disponível em: www.ub.unibas.ch/digi/a100/diverse_projekte/pre2009pdf/BAU_1_005163368.pdf 57 RISM Editor Título 1540/7 Kriesstein Selectissimae necnon familiarissimae cantiones...a sex usque ad duas voces109 1545/6 Rhau Bicinia gallica, latina, germanica... Tomus primus110 1545/7 Rhau Secundus tomus biciniorum, quae et ipsa sunt...111 1547/18 Montanus & Neuber Bicinia sacra. Schöne geistliche Lieder und Psalmen112 1549/16 Montanus & Neuber Diphona amoena et florida, selectore Erasmo113 1551/20 Berg & Neuber Bergkreyen: auff zwo Stimmen componirt114 A/I L902 (1577) Adam Berg Lasso, O. Novae aliqvot et ante hac non ita vsitatae ad dvas voces115 Tabela 8. Publicações alemãs para duas vozes, a partir de 1540. A obra publicada em 1551 por Berg & Neuber (Bergkreyen: auff zwo Stimmen componirt), contudo, parece possuir mais concordâncias com o primeiro livro de bicinia de Rhau, pela inclusão de peças de Gardano (ver Figura 56 e Tabela 9). Esta tradição culmina em Novae aliqvot et ante hac non ita vsitatae ad dvas voces de Orlando di Lasso, publicada em 1577 por Adam Berg em Munique, contendo doze peças com texto e outras doze sem. (a) (b) Figura 56. Gardano, “Grace et vertu”. Berg & Neuber. Bergkreyen: auff zwo Stimmen componirt., fol. Fiiv. (a) voz superior; (b) voz inferior. 109 Mus.pr.142 (Salminger, S. Selectissimae necnon. Ausburgo: M. Kriesstein, 1540). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00081591>. Acesso em: 05 dez 2016. 110 SCHL 090 (Bicinia gallica, latina, germanica. Wittenberg: G. Rhau, 1545). Berlin: Staatslibliothek. Disponível em: <http://nbn-resolving.de/urn:nbn:de:0185-schl0904>. Acesso em: 07 dez 2016. 111 K.2.c.3 (Secundus tomus biciniorum. G. Rhau, 1545). Londres: British Library. Disponível em: <https://repository.royalholloway.ac.uk/items/f341c3e7-b0fd-ceec-b5bb-e139a982e2eb/1/> 112 VD16 ZV26898 (Othmayr, C. Bicinia sacra. Nuremberg: Berg/Neuber, 1549). Zwickau: Ratsschulbibliothek. Fonte digital indisponível. 113 4 Mus.Pr. 92 (Rotenbucher, E. Diphona amoena et florida. Nuremberg: Berg & Neuber) Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00080431>. Acesso em: 06 dez 2016. 114 4 Mus. Pr. 454 (auff zwo Stimmen componirt. Nuremberg: Berg/Neuber) Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00072036>. Acesso em: 06 dez 2016. 115 4 Mus.pr.134 (Novae aliqvot et ante hac non ita. Munique: A. Berg). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00071982>. Acesso em: 06 dez 2016. 58 Canzonas a duas vozes parecem exercer influência direta no primeiro álbum de Bicinia publicado por Rhau. De um total de noventa e seis peças de vários autores, vinte e duas são canzonas de Antonio Gardano (Tabela 9) publicadas previamente pelo próprio em Canzoni francese a due voci116 (RISM 1539/21, com republicações em 1544, 1552, 1564 e 1586). Peça A moy tout seul Aupres de vous Ces fascheux Contente desir De jour De mon amy Distant hellas Entre vous Grace et vertu Il me convient Jouyssance Kriesstein 1540/7 1540/7 Rhau 1545/7 1545/6 1545/6 1545/6 1545/6 1545/6 1545/6 1545/6 1545/6 1545/6 1545/6 Berg 1551/20 1551/20 1551/20 Peça Las, fortune Las, voullés Le cueur de vous N’auray-je jamais O vray dieu Qui la vouldra Robin, Robin Si j’ay eu du mal Ta bonne grace Une sans plus Vivre ne puis Kriesstein 1540/7 1540/7 Rhau 1545/6 1545/6 1545/6 1545/6 1545/6 1545/6 1545/6 1545/6 1545/6 1545/6 1545/6 Berg 1551/20 1551/20 1551/20 Tabela 9. Peças de Ant. Gardano publicadas em RISM 1539/21 ocorrentes em livros posteriores de bicinia. Entre outros gêneros italianos a due voci comparáveis aos bicinia figuram madrigais de Jhan Gero (RISM 1541/14) e peças diversas publicadas por Gardano em Il primo libro a due voci...117, obra que foi republicada por dezenove vezes entre 1559 e 1688. 116 Canzoni francese a due voci di Ant. Gardane, et di altre autori. Veneza: Gardano, 1539. Álbum não encontrado em catálogo físico / digital de bibliotecas indicadas pelo RISM. Cf. lista disponível em: <http://opac.rism.info/metaopac/singleHit.do?methodToCall=showHit&curPos=3&identifier=251_SOLR_SER VER_1089438581>. Acesso em 7 dez 2016. 117 Mus.pr.142 (Salminger, S. Selectissimae necnon. Ausburgo: M. Kriesstein, 1540). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00081591>. Acesso em: 05 dez 2016. 59 1.8 A defesa de um repertório exclusivamente instrumental Como pode ser observado, obras em notação mensural desde o final do século XV ao início do século XVI, estejam em livros de côro ou de partes, manuscritos ou impressos, podem abdicar da guarnição textual, mesmo em peças longas como em seções de missa, motetoschanson e tricinia sacros como os do códice Basevi, ou de peças sem nenhum incipit como no Liederbuchlein des Fridolin Sicher ou no Trium vocum carmina. De outro modo, são mais comuns os casos onde a ausência de texto é menos crítica – seja por memória, ou por outro procedimento qualquer – como nos cancioneiros italianos Banco Rari 229, Medici Chansonnier e Canzoniere D’Isabella D’Este, dotados de um incipit que funciona basicamente como um título de peça. Tais chansons, contudo, perdem estes títulos-incipit em compilações notadamente alemãs, assumindo a designação comum Carmen (cf. códices Munich partbooks, Vienna 18810 e Codex Pernner na Tabela 3, anteriormente). A estas, somam-se nestes códices outras carmina – baseadas em lieder ou mesmo sem modelo vocal identificado, como as de Kotter e de Hofhaimer – tornando o conjunto ainda mais indistinguível. Completam este quadro as peças sem texto que compõem os álbuns Odhecaton A, Canti B e Canti C de Petrucci. Mas como fica evidente pelo prefácio de Trium vocum carmina (Figura 53, anterior) tal protocolo não seria problema para uma parte do público que aprecia tais obras como modelos de estudo de música (digamos, composição); da mesma forma, instrumentistas adquirem progressivamente os álbuns cujo título os acolhe. As evidências de execução instrumental e utilização didática destas obras deixam pouca dúvida de seu perfil ambíguo, e ao servir a dois senhores – a voz e o instrumento –, tal democratização se estenderia para qualquer obra musical passível de instrumentação, mesmo que dedicadas apenas para a execução vocal. A participação dos instrumentos na execução musical é, muito provavelmente, pregressa às evidências aqui elencadas. Uma outra dimensão especulativa, contudo, também se desenvolve em paralelo ao histórico de abdicação do texto guarnecido à música; trata-se da questão de ter havido, ao final do século XV, uma música exclusivamente instrumental, para ensemble. No ensaio The Instrumental Consort Repertory of the Late Fifteenth Century, Jon Banks (2006) inicialmente adverte quanto a um repertório que não deve ser julgado como instrumental pelo simples fato de não ser provido de texto sob a melodia, baseado especialmente na argumentação histórica de que, à época, cantores profissionais aplicariam de memória os textos cabíveis à musica; a partir dessa ressalva, dedica-se à seleção de um repertório que seria 60 inequivocamente instrumental em vez de vocal, utilizando como filtro de classificação três categorias descritas por Banks (ibidem, pp. 3-4): “Discussões prévias de um possível repertório instrumental em meio aos cancioneiros concentraram-se em questões envolvendo a identificação de peças individuais de música enquanto instrumentais em vez de vocais, principalmente com base em evidência estilística interna. A questão de um ‘estilo instrumental’ foi primeiramente discutida em detalhe por Sarah Fuller, seguida de dois artigos complementares por Warwick Edwards e Louise Litterick que propõe a existência de três gêneros principais que devem ser entendidos como composição instrumental desde sua criação. Ambos os comentaristas concordam que a maioria das peças baseada em um linha pré-existente de chanson polifônica – chamada ‘res facta’ por Edwards, após Tinctoris – seriam de certo instrumentais. Edwards em particular define rigorosamente a forma, identificando diversos subgêneros nela e fornecendo bases estilísticas convincentes para distinguir peças instrumentais ‘res facta’ de movimentos de Missa com procedimentos composicionais similares. Peças livres, baseadas em melodias monofônicas, seriam diferentes o suficiente de composições ‘res facta’ (paráfrases de linhas ritmicamente fixas de chansons polifônicas) para serem consideradas como um gênero diferente por ambos os autores, considerando que neste livro a possibilidade disso representar uma forma instrumental é muito mais tentativamente avançada. A terceira categoria a ser identificada como possivelmente instrumental é um grupo de peças compostas livremente, chamado de ‘canção sem palavras’ por Edwards e de ‘chanson instrumental’ por Litterick. Mais uma vez, o gênero é definido e distinguido de qualquer outra música vocal por características peculiares de estilo musical que são discutidas em detalhe. Em todos casos e gêneros, contudo, todos comentadores são cuidadosos em qualificar qualquer avaliação de peça como instrumental ao enfatizar a imprecisão de evidência estilística interna obtida da música escrita. De forma livre, reconhecem que não existem aspectos de estilo ou colocação de texto na música medieval tardia e renascentista ‘precoce’ que inequivocamente especifique instrumentos. Além disso, não importa quão precisamente sejam definidas, quaisquer características de estilo composicional que possam ser rotuladas como ‘instrumentais’ inevitavelmente brotam no repertório principal de Missas e motetos, que é inquestionavelmente vocal; um exemplo particularmente bom disso é o famoso ‘Benedictus’ da missa ‘Quant j’ay au cour’ de Isaac. A questão do estilo é peculiarmente tensa, assim como admitem prontamente tanto Edwards e Litterick. Não há razão para supor que uma peça usada por instrumentistas, mesmo que tivesse sido especificamente concebida para eles, fosse obrigada a seguir qualquer padrão estilístico peculiar que não as convenções universais de composição do século XV.” (pp. 3-4). Banks procura refinar a base de prospecção deste repertório, que estaria restrita a questões de estilo musical apontada em estudos prévios; passa a considerar como um potencial elemento seletivo a extensão de partes individuais, que em alguns casos seria ‘incantável’, demonstrando sua propriedade instrumental. Admite, também, que uma dada parte do repertório, comum e inclusa em fontes instrumentais como tablaturas de alaúde, apresenta as características distinguíveis de um gênero próprio; mas, em especial, vê como argumento mais persuasivo a consideração de repertórios no contexto de suas fontes, para além da música como peça individual. Neste sentido, Banks faz menção a um grupo de manuscritos costumeiramente chamados ‘cancioneiros italianos’, onde é constante a ocorrência de chansons francesas 61 desprovidas de seus textos. Na maioria dos casos, estas peças apresentam concordâncias em códices franco-flamengos com guarnição completa, mas por vezes tais fontes não são encontradas, ao que Banks (ibidem, pp. 5-6) exemplifica: “‘Des biens d’amour’ de Martini é um exemplo de uma peça que parece exatamente como se fosse originalmente composta como um arranjo de rondó, mesmo considerando que é encontrada apenas sem texto, e isto em doze fontes diferentes. Nesta circunstância, parece haver pouca razão para duvidar que é uma adaptação sem texto de um original com texto cujas fontes estão agora perdidas, mesmo que obtivesse uma considerável circulação como peça sem texto, igualmente. De outro lado, há outras peças entre estes ‘cancioneiros’ onde a afirmação de que elas provavelmente derivam de originais vocais é difícil de sustentar. Muitas possuem títulos que parecem funcionar como ‘mottos’ autônomos que são extremamente improváveis de serem aberturas de chanson ou ainda quaisquer outros tipos de textos. Isto sugere fortemente que a música deveria ser executada sem palavras, especialmente uma vez que títulos de peças possivelmente identificáveis como literais ‘canções sem palavras’ são quase que universalmente as aberturas de seus textos [n.e. incipit]. Adicionalmente, é também possível identificar certos gêneros composicionais únicos a este repertório de peças que não contém texto em nenhuma fonte [...]. Estes gêneros podem ser identificados menos por aspectos composicionais isolados – que podem e de fato ocorrem em qualquer tipo de peça, como notado acima – do que pela coincidência de um número de fatores independentes dentro da mesma peça. Certas combinações de fatores são encontradas regularmente em peças frequentemente sem texto, não sendo encontradas entre chansons, de um lado, e missas e motetos, de outro. O argumento de que peças exibindo estes fatores foram concebidas sem texto já em sua criação torna-se mais convincente porque é entre elas que o título em ‘motto’ acima aludido é principalmente encontrado. Além do que, outro gênero inteiramente sem texto, aquele da res facta, engloba unicamente todas as peças reminiscentes com largas extensões incantáveis. Visto que apenas uma minoria da música nos ‘cancioneiros’ italianos sem texto é baseado nestes gêneros, trata-se de uma minoria numerosa e amplamente distribuída, que novamente enfatiza o quanto este repertório é diferente de qualquer outro. Portanto, apesar de as questões de estilo musical e considerações de guarnição de texto nas fontes possam ser inconclusivas em si próprias, quando elas são consideradas reunidas em conluio podem ainda prover a base para a identificação e definição razoável de um repertório instrumental do fim do século XV.” Parece ser válido aqui anexar a seguinte reflexão de Banks (ibidem, pg. 7) acerca de sua circunspecção repertorial: “Uma relação do performer ao fim de século XV com seus textos escritos foi condicionada por convenções e licenças, tanto gerais como locais, que podem ser somente hoje especuladas, e a especulação é algo que musicólogos tradicionalmente veem com profunda suspeita, frequentemente com um bom motivo. Felizmente, há algum valor no exercício se a especulação puder ser restrita para atingir uma imagem hipotética na qual todas as questões conflitantes de guarnição de texto na fonte, estilo musical, tendências de cultura geral e considerações de performance prática sejam resolvidas simultaneamente.” Banks relaciona inicialmente um conjunto de oito peças notadas em pentagrama que seriam fortes candidatas a peças puramente instrumentais, considerando estilo, texto, distribuição de fontes e, mais importante, extensão além daquela esperada para a voz humana, 62 digamos, igual ou maior a quinze notas em uma das vozes, ao menos. As peças se distribuem entre algumas poucas fontes, entre elas: Canti C, contendo dois arranjos de “Le serviteur”; MS Verona 757, com uma peça a três vozes, sem título e anônima; e MS Segovia, que abriga três unica (“D’ung aultre amer”, de Agricola, “De tous biens plaine”, de Adam e “Le souvenir”, de Tinctoris) além de “De tous biens plaine” de Roellkin (também em MSS Perugia 1013 e Breslau 2016) e uma “Tandernaken” de Agricola (também em Canti C e no Trium vocum carmina). As peças, arranjadas apenas para duas ou três vozes, possuem tessitura de quinze a dezenove notas, ao menos em uma das vozes (BANKS, ibidem, pp. 18-20). Tal tessitura seria de difícil execução por qualquer instrumento, senão o alaúde, que até o final do século XV prestava à execução de linhas individuais extensas, com o auxílio de uma palheta (plectrum); desta forma, consorts de alaúde poderiam executar tais peças polifônicas, hipótese esta suportada pelo fato de haverem diferentes tamanhos deste instrumento no período, segundo Banks (ibidem, p. 48). O repertório para tal consort de alaúdes não seria restrito, contudo, a estas oito peças. Banks considera que cerca de cem peças estruturalmente similares, mas com extensões pouco menores que dessas oito, são coincidentes não só em suas fontes desprovidas de texto, mas também em sua elaboração sobre tenores emprestados de chansons polifônicas (“De tous biens plaine” de Hayne, “Le serviteur” de Dufay, “Le souvenir” de Morton e “D’ung aultre amer” de Ockeghem), o que as caracteriza como arranjos res facta (BANKS, ibidem, pp. 48-49, e ref. ali citada)118. Dadas algumas poucas alterações, seu tamanho é similar ao das chansons originais, sendo mantida a integridade do cantus firmus, que se inicia logo na abertura da peça e governa qualquer tipo de pré-imitação ou independência entre as vozes livres, não possuindo pausas significantes. Governadas pelo tenor, as vozes raramente referem-se a ele por imitação ou paráfrase, tendo por característica a rapidez e a elaboração escalar abundante, como em “D’ung aultre amer” de Agricola (BANKS, ibidem, p. 50). Tais características, tão similares à do ricercare prelúdico (a ser contemplado mais adiante neste trabalho), distinguem-se de um segundo gênero distintivo de peças instrumentais, similar à res facta mas com liberdade no uso do cantus firmus e eventualmente com mais vozes em seu arranjo. Estas diferentes configurações para a res facta são observadas especialmente na variedade de arranjos de “Fors seulement” e de alguns outros canti firmi, podendo representar uma mudança mais generalizada na técnica composicional notadamente após 1500, 118 Segundo o verbete Res facta no Grove Online Edition (por Margareth Bent), o termo, aparentemente cunhado por Tinctoris já apresenta significado conflitante em seus dois tratados, Terminorum musicae diffinitorum (c.1472) e Liber de arte contrapunctii (1470). A discussão se estende ao longo da segunda metade do século XX, sem contudo fazer menção aos trabalhos de Banks e de Edwards, responsáveis pela interpretação aqui descrita. 63 enquanto que o primeiro tipo de res facta é fortemente representado em fontes das décadas de 1480 e 1490. As principais características de seu cantus firmus são agora alterações em alturas e fragmentação por pausas, apresentando-o apenas após uma introdução baseada em préimitação ou elaboração livre entre as outras vozes; tal característica de escrita sobre o cantus firmus assemelha-se àquela do moteto ou de extratos da Missa e é incomum às peças res facta acima descritas. Incluem-se nestas categorias outras variantes da res facta de importância secundária (BANKS, ibidem, 60-64). A terceira e última categoria, a dos ‘ricercares em consort’, é um refinamento dos outrora mencionados gêneros ‘canção sem palavras’ ou ‘chanson instrumental’, no que enfatiza em seu título o caráter instrumental do gênero, distinguindo-o de tradições vocais. Tratam-se, contudo, de peças solo para alaúde ou teclado (apesar de sua escrita mensural em partes) que representam uma tradição inequivocamente instrumental, exatamente contemporânea às peças em consort já discutidas. Incluem peças como “La morra” de Isaac, “La alfonsina” de Ghiselin e “La bernardina” de Josquin, entre outras menos conhecidas, muitas delas comuns ao cancioneiro Medici ou ao MS Segovia, além de “Das kind lag in der wiegen” de Isaac e “Das lang” e a fantasia no. 67 de Senfl, comuns ao Trium vocum carmina, como exemplos em uma fonte mais tardia. A peças anônima “Byblis”, contida no MS Bologna Q18, seria o exemplo mais representativo deste grupo; sua principal característica é a estrutura de frase e seu layout total, claramente incompatível com qualquer uma das tradições de verso em forma fixa, visto em especial a ausência de uma cesura central (BANKS, ibidem, pp. 64-67). Apesar de ser tentadora a possível correlação dos dois últimos gêneros de Banks com o ricercare imitativo, deve-se considerar que seu procedimento ensaístico é baseado no que pode ser visto como exceções ao grande repertório de música polifônica, e que de fato o ricercare imitativo, como será visto adiante, estabelece ligações com a performance vocal, dentro de uma agenda pedagógica. O desenvolvimento da música instrumental, até este ponto, parece garantir, contudo, que as exceções que configuram o primeiro gênero de Banks, o das res facta, pode sim ter relação com o ricercar prelúdico, a seguir apresentado dentro da tradição das tablaturas. 64 1.9 Tablaturas italianas para alaúde e teclado A partir de 1507, Petrucci edita em Veneza as Intabulature de lauto, uma série de álbuns compilados por alaudistas como Francesco Spinacino (fl.1507) e Joan Ambrosio Dalza (fl.1508), contendo tablaturas de chansons (a maior parte), seções de missa (Kyrie, Christe, Agnus Dei, Benedictus), motetos (especialmente de Josquin) e outros gêneros como frottola, de diversos autores. A estas transcrições foram adicionadas peças de caráter prelúdico e improvisativo, denominadas ricercare (Figura 57). Figura 57. F. Spinacino, “Recercare”. Intabulatura de Lauto, Libro secondo, fol. 47r 119 Diversas destas peças correspondem aos gêneros prognosticados por Banks. A título de exemplo, nestas Intavolature de Lauto encontramos as seguintes concordâncias: Libro primo (RISM 1507/5) Libro secondo (RISM 1507/6)119 Res facta “Comme femme”, a 3 (Agricola) “Allez regretz”; “Tandernaken” (Agricola) “Fortuna desperata” (Martini ou Isaac) ricercare em ensemble “La morra” (Isaac); “Fortuna d’un gran tempo”, “La bernardina” (Josquin) “La stangetta” (Weerbeke) outros “Ave Maria” (Josquin); “Benedictus” (Isaac); “De tous biens” (Hayne); “O Venus banth” (Weerbecke) “Palle, palle” (Isaac); “Malheur me bat” (Ockeghem); “Amours, amours” (Hayne); “Si dedero” (Agricola) ricercares dezessete dez Tabela 10. Algumas obras compiladas nos dois livros de Intavolatura de Lauto de F. Spinacino 119 Mus. Ant. Pract. P 680/2 (F. Spinacino & J.A.Dalza, Intabulatura de Lauto, Libro Secondo. Veneza: Petrucci, 1507). Cravóvia: Biblioteka Jagiellonska. Disponível em: <http://jbc.bj.uj.edu.pl/dlibra/doccontent?id=231566 >. Acesso em: 30 nov. 2016. Cf. Mais informações em: Brown, H.M. “Embellishment in Early Sixteenth-Century Italian Intabulations”, Proceedings of the Royal Musical Association, 100, 1973-4, pp. 49-83. 65 Já as intabulações para teclado consistiam, na Itália, na notação das vozes envolvidas em um sistema duplo, com cinco a seis linhas mais uma clave na parte superior e com cinco a oito linhas mais uma ou duas claves na parte inferior. Tal sistema foi utilizado pioneiramente por Andrea Antico, Marco Antonio Cavazzoni e seu filho Girolamo Cavazzoni, como será visto adiante. Contudo, boa parte da música per sonare a instrumentos diversos, inclusive teclados, era publicada na forma de livros de partes, cabendo ao tecladista arranjar as vozes em uma parte única para execuções solo. De outro modo, era possível harmonizar livremente a partir da parte do bassus, como já seria de costume no acompanhamento de obras originalmente vocais. Este status só se modificaria no terceiro quartel do século XVI, ao se estabelecer a ‘partitura aberta’ (sistema com pentagramas múltiplos, servindo um para cada voz) como principal meio impresso para teclado (REESE, 1959, pg. 519-529), décadas após sua utilização prototípica nos manuscritos de Castell´Arquato120 (ver adiante). Tal sistema contemplava especialmente peças em contraponto estrito como ricercares, canzonas, fantasias e capriccios, sendo menos adequada para peças em estilo idiomático de teclado como variações, prelúdios e toccatas. Um dos primeiros exemplos de partitura aberta foi produzida por Cipriano de Rore, em seu Tutti i madrigali... a quatro voci spartiti et accomodati per sonar d’ogni sorte d’instrumento perfetto...121 (APEL, 1953, pp. 18-19) (Figura 58). Figura 58. “Schiett’arbuscel”. Cipriano de Rore, Tutti i madrigali... fol. Fiv-Fiir. Partitura aberta, para teclado. 120 Ladewig, J. “The Use of Open Score as a Solo Keyboard Notation in Italy ca. 1530-1574”. Em: Essays in Honor of John F. Ohl: A Compendium of American Musicology, Ed. Enrique Alberto Arias et al. Evanston: Northwestern University Press, 2001, pp. 75-91. 121 BO 0310 (Rore, Tutti i madrigali. Veneza: Gardano, 1577). Bolonha: Biblioteca della Musica. Disponível em: <http://www.bibliotecamusica.it/cmbm/viewschedatwbca.asp?path=/cmbm/images/ripro/gaspari/_U/U146/>. Acesso em: 10 dez 2016. 66 1.9.1 O primeiro período de impressões de álbuns para teclado na Itália O histórico de tablaturas italianas impressas para teclado se inicia de fato em 1517 com as vinte e seis frottole intabuladas por Andrea Antico (1480-1538)122, em grande parte originais de Bartolomeo Tromboncino (Figura 59) e Marchetto Cara. Estas intabulações, que em muito lembram a partitura atual com dois sistemas de cinco linhas (YOUNG, 1963, p. 167), já são dotadas de ornamentação pelo emprego de grande número de mordentes e trilos nas vozes superiores, enquanto o baixo permanece quase inalterado em relação ao modelo vocal. A estrutura formal das peças originais é fielmente preservada com exceções ocasionais; por outro lado, choques cromáticos são frequentes, por exemplo entre F natural e F♯ (REESE, 1959, p. 534, e ref. cit.). Figura 59. Andrea Antico, Frottole intabulate per organo. Trombocino, “Amor quando fioriva mia speme”. Já na obra de Marco Antonio Cavazzoni (1490-1560)123 uma exploração motívica incipiente extrapola o caráter semi-improvisativo de peças para alaúde publicadas previamente; seus recerchari preludiam, em grande similitude, motetos cuja autoria pode ser do próprio compositor, aspecto que inspira a nomenclatura “ricercare prelúdico ou improvisativo”. As canzonas de Marco Antonio apresentam esquemas com repetição, como constata Reese (1959, pp. 534-35) em formas aba, aab ou aaba, em semelhança às canzoni francesi vocais originais, distinguindo-se formalmente do moteto e do ricercare. Ademais, a escrita acordal e a ocorrência de falsas relações e choques cromáticos são frequentes em toda sua obra. 122 RISM 1517/3: Antico, A. Frottole intabulate per sonare organi, Roma: 1517. Milano: Biblioteca privata Polesini. Catálogo não encontrado. Cf. transcrições de exemplos em Jeppesen, K. Die italienische Orgelmusik am Anfang des Cinquecento, Copenhague: Munksgaard, 1943. 123 K.8.b.8 (Cavazzoni, M.A. Recerchari, motetti, canzoni... Libro I. Veneza: B. Vercelensis, 1523). Londres: British Library. Fonte digitalizada indisponível. Cf. edição moderna em b.314.j (Monuments of music and Musical Literature in Facsimile, ser. 1, music. 12). Londres: British Library. Fonte digitalizada indisponível. 67 Além das peças publicadas em Recerchari, motetti, canzoni... libro primo, uma única peça adicional de Marco Antonio, a “Recercada de maca in Bologna” (Figura 61) é encontrada entre os dez fascículos manuscritos de Castell´Arquato124, produzido provavelmente na década de 1530 junto a ricercares de Jacopo Fogliano (1468-1548), Jacques Brunel (?-1564) e Claudio Veggio (1510-?), onde o uso de imitação é progressivamente mais organizado, representando um estágio de transição entre os ricercares prelúdico e imitativo (SWENSON, 1971, pp. 5-6). Vale ressaltar que a autoria de um conjunto de ricercares concordantes nos códices Chigi e Bourdeney tem sido disputada entre Jacques Brunel (segundo Lowinski125 e Newcomb126) e Giaches Wert (segundo MacClintock127). Figura 60. MS Castell’Arquato. M.A. Cavazzoni. “Recercada de maca in Bologna”. O uso da imitação em tablaturas para teclado deste primeiro período atinge um ápice na obra de Girolamo Cavazzoni (1520-77), filho de Marco Antonio e pupilo de Adrian Willaert. Os quatro ricercares contidos em seu álbum Intavolatura cioè Recercari, Canzoni, Hinni128 de 1542 são visivelmente mais polifônicos que os de seu pai, e sua estrutura é comparável à do 124 Slim, H.C. “Keyboard Music at Castell’ Arquato by an Early Madrigalist”, Journal of the American Musicological Society, 15, 1962, p. 35-47. 125 Lowinsky, E.E. “Early Scores in Manuscript”, Journal of the American Musicological Society, 13, 1960, pp. 126-173. 126 Newcomb, A. “The anonymous ricercars of the Bourdeney Codex”, in: Frescobaldi Studies, ed. Alexander Silbiger. Durham: Duke University Press, 1987, pp. 97-123. Newcomb ainda sugere que Luzzaschi foi um discípulo de Brunel em Ferrara. 127 MacClintock, C. “The ‘Giaches Fantasias’ in MS Chigi Q VIII 206: A Problem in Identification”, Journal of the American Musicological Society, 19, 1966, pp. 370-382. 128 S.2 (RISM A/I C 1571: Cavazzoni, G. Intavolatura cioè Recercari, Canzoni, Hinni. Veneza: 1542). Bologna: Biblioteca dela musica. Disponível em: <http://bibliotecamusica.it/cmbm/scripts/gaspari/scheda.aps?id=10722>. Acesso em 8 dez 2016. Cf. edição moderna em Giacomo Benvenuti (ed.) I Classici musicali italiani, vol. IV: Girolamo Cavazzoni, Musica sacra, ricercari e canzoni, Milano: Società Anonima Notari La Santa, 1919. 68 moteto no uso de imitação pervasiva129 (Figura 61). Contudo, a extensão dos pontos de imitação é alargada devido às diversas reiterações do material temático, característica que se torna a marca do chamado “ricercare imitativo”. Completam a coleção duas canzonas em paráfrase livre sobre “Faulte d´argent” de Josquin e “Il est bel et bon” de Passareau, além de hinos sobre cantus firmus (ocasionalmente em notas longas), e magnificats, com seções intercaladas aos versos do cantochão, em sucessivas variações do tema (REESE, 1959, pp. 535-36). Figura 61. Intavolatura cioè recercari canzoni himni magnificati... libro primo. G. Cavazzoni, “Recercar primo”. Vale lembrar que, em paralelo a este primeiro período de impressões italianas, Pierre Attaingnant publica em Paris um conjunto de sete álbuns em tablatura para teclado entre 1530 e 1531. Estas coleções contemplam desde chansons como “Ung grand plaisir”130 (Figura 62a) a seções de missa como um Kyrie131 (Figura 62b). Contudo, nem ele nem outros editores franceses voltam a publicar neste formato, ao longo do século XVI. (a) (b) Figura 62. Tablaturas de teclado de Pierre Attaingnant. (a) Dixneuf chãsons musicales, 1530. “Ung grand Plaisir”, fol. 1v. (b) Tabulature pour le jeu Dorgues, 1531. Kyrie, fol. 1v. 129 Mais detalhes desta técnica serão apontados adiante. Mus.pr. 235 (RISM 1531/6; Dixneuf chãsons musicales reduictes en la tabulature des Orgues Espinettes Manicordions. Paris: P. Attaingnant, 1530). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00082255>. Acesso em: 10 dez 2016. 131 Mus.pr. 232 (Tabulature pour le jeu Dorgues Espinetes et Manicordions. Paris: P. Attaingnant, 1531). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitalesammlungen.de/view?id=bsb00041543>. Acesso em: 10 dez 2016. 130 69 1.9.2 O segundo período de impressões de álbuns para teclado na Itália Girolamo Cavazzoni ainda contribuiria, sob o nome de Hieronimo da Bologna, com um ricercare em uma publicação entitulada Musica nova, Accommodata per cantar et sonar sopra organi, et altri strumenti132, editada por Andrea Arrivabene (fl. 1534-70) em 1540. O álbum contém apenas ricercares divididos em livros de partes individuais, sendo possivelmente o primeiro do gênero (Figura 63). Julio Segni da Modena, provável discípulo de J. Fogliano (1498-1561), contribui majoritariamente com treze ricercares, ao que se somam três ricercares de Adrian Willaert (1490-1562), dois de Girolamo Parabosco (c.1524-57), e apenas um de Guilielmo Golin (fl. 1540) e outro de Nicolaus Benoist (fl.1538-40). Figura 63. Arrivabene, A. Musica nova, Accommodata... A. Willaert, “Ricercar primo”, bassus, fol. 2r. Swenson (1971, pg. 23-27) discute a reedição do álbum Musica nova, Accommodata... por Colin Slim133, que combinou a única parte remanescente do original – o bassus – às partes concordantes de uma compilação similar publicada em 1550, a coletânea “Musique de Joye”134, por sua vez também um exemplar único, porém com seus quatro livros de partes completos. Entre os ricercares ensemble a quatro vozes do “Musica nova accommodata...” encontra-se um único exemplar a três vozes, de autoria de Julio Segni da Modena135, que 132 R.152 (RISM 1540/22: Musica nova, Accommodata... Veneza: Arrivabene, 1540). Bolonha: Biblioteca della musica. Parcialmente disponível em: <www.bibliotecamusica.it/cmbm/scripts/gaspari/scheda.asp?id=10576>. Acesso em: 10 dez 2016. Apenas o o bassus é remanescente. 133 Slim, H.C. Monuments of Renaissance Music, Vol. I: Musica nova. Chicago: University of Chicago Press, 1964. 134 Cf. 0014/ W4 Liturg. 282d (4) (RISM 1550/24: Musicque de joye. Lyon: Jacques Moderne, 1550). Munique: Ludwig-Maximilians-Universität, Universitätsbibliothek. Fonte digitalizada indisponível. Há controvérsias quanto à data de publicação. (Mvsicqve de Ioye... Lyon: Modern, ca. 1544). Cf. em: <bvbd2.bib-bvb.de/optcgi/order/bestand.pl?ID=BV010575631&Jahr=&SigelNB=EXT>. Acesso em 10 dez 2016. Disponível em: <https://archive.org/details/imslp-de-joye-moderne-jacques>. Acesso em: 08 dez 2016 (link do RISM online). 135 Vale lembrar que nenhuma peça vocal deste autor é remanescente, apenas ricercares. 70 remonta às peças a três vozes discutidas anteriormente. A título de comparação, ricercares a três vozes foram escritos também por Giuliano Tiburtino (c.1510-69), A. Willaert, G. Cavazzoni (como Hieronimo da Bologna), Antonio Barges (fl.1546-65), Pietro Vinci (15251584), Antonio il Verso (1565-1621) e Ascanio Mayone (1565-1627) (Tabela 11). RISM Título Autor 1540/22 (A. Arrivabene)† Musica nova, Accommodata (um único ricercar a três vozes) Segni 1543/6 (A. Gardano)† Motetta trium vocum (republ. 1551/3, 1569/3) Willaert 1549/34 (H. Scotto)136 Fantesie, et recerchari a tre voci Tiburtino; Willaert 1551/16137, 1559/25138 1593/8139 (A. Gardano) Fantasie Recercari Contrapunti a tre voci di M. Adriano & de altri Willaert; Autori appropriati per Cantare et Sonare d’ogni sorte di stromenti; Cavazzoni; Barges (ou Fantasie... novamente ristampati) 1591/2a (M. Scotto)140 Il secondo libro de motetti e ricercari a tre voci di Pietro Vinci con alcuni ricercari di Antonio Il Verso suo discepolo Vinci; Il Verso A/I M1490 (G.B. Sottile)141 Primo libro di ricercari a tre voci Mayone Tabela 11. Ricercares a três vozes por autores diversos em fontes distintas no séc. XVI. † Citado anteriormente. Swenson também discute a utilização do termo fantasia em peças com as mesmas características do ricercare, em paralelo à utilização do termo ricercare em peças com característica de canzona, mostrando a imprecisão da aplicação histórica destes termos. Também mostra que associações musicológicas entre ricercare e moteto datam da primeira metade do século XX, e que a aplicação do termo ricercare contempla desde obras complexas até exercícios didáticos, mesmo a duas142 ou uma única voz143 (SWENSON, 1971, pg. 2-4). 136 K.3.b.4 (RISM 1549/34: Tiburtino, G. Fantesie, et recerchari a tre voci... Veneza: H. Scotto,1549). Londres: British Library. Disponível em: <https://repository.royalholloway.ac.uk/items/54c31d9f-d737-ca5d-d88f56e7f801c30a/1/>. Acesso em: 12 dez. 2016. Cf. também: Haar, J. “The ‘Fantasie et recerchari’ of Giuliano Tiburtino”, The Musical Quarterly, 59, 1973, pp. 223-238. 137 CNCE 46049 (Willaert, A. et al. Fantasie Recercari Contrapunti... Veneza: Antonio Gardano, 1551). Florença: Biblioteca Marucelliana. Fonte digitalizada indisponível. 138 4 Mus. Pr. 117 (Willaert, A. et al. Fantasie Recercari Contrapunti... novamente... ristampati. Veneza: Antonio Gardano, 1559). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitalesammlungen.de/view?id=bsb00075013>. Acesso em: 12 dez 2016. 139 A.569.c (Willaert, A. et al. Fantasie Recercari... novamente... Veneza: A. Gardano, 1593). Londres: British Library. Parcialmente disponível (canto, basso) em: <https://repository.royalholloway.ac.uk/items/cdf8a61e-11f259ab-a245-e9753d4d4f14/1/>. Acesso em: 12 dez. 2016. 140 CNCE 46635 (Vinci, P. et al. Il secondo libro de motetti e ricercari a tre voci... Veneza: Girolamo Scotto, 1591). Veneza: Biblioteca Nazionale Marciana. Fonte digitalizada indisponível. 141 31.1.14 (Mayone, A. Primo libro di ricercari a tre voci. Nápolis: G.B. Sottile, 1606). Nápolis: Biblioteca del Conservatorio di Musica S. Pietro A Majella. Fonte digitalizada indisponível. 142 CC.152 (RISM A/I Z356: Zuccharo, A. Ricercate a due voci di Anibale Zuccharo... nouamente composte... libro primo.... Veneza: A. Raverii, 1606). Bolonha: Biblioteca della musica. Disponível em: <www.bibliotecamusica.it/cmbm/scripts/gaspari/scheda.asp?id=13101>. Acesso em: 12 dez 2016. 143 Para uma visão mais completa do ricercare a uma voz veja: Horsley, I. “The Solo Ricercar in Diminution Manuals: New Light on Early Wind and String Techniques”. Acta Musicologica, Vol. 33, 1961, pp. 29-40). 71 Nestas peças, a ornamentação pode adquirir maior importância, o que é evidente nas quatro ricercadas para violone solo de Diego Ortiz (c.1510-c.1570)144 sobre “O felici occhi miei” de Arcadelt, ou ainda nas ricercate de Giovanni Bassano (c.1560-1617)145, que ilustram várias fórmulas cadenciais e tipos de ornamentação (SWENSON, 1971, pp. 10-11). 1.9.3 O papel dos organistas da Basílica de S. Marco no desenvolvimento do ricercare Os desenvolvimentos subsequentes para o ricercare ao teclado são decorrentes de obras produzidas em Veneza por Jacques Buus, Annibale Padovano, Andrea Gabrieli, Claudio Merulo e Giovanni Gabrieli, que se revezaram entre os órgãos I e II na Basílica de São Marco, entre 1541 e 1612146. Estes autores integram o assim chamado “círculo de Willaert”, do qual também fariam parte Cipriano de Rore, Nicola Vicentino, Gioseffo Zarlino, Baldassare Donato, Gioseffo Guami, Perissone Cambio e Francesco dalla Viola (estes, contudo, mais vinculados a Willaert pela escrita madrigalesca). Todos, no entanto, possuem alguma relação mestre-aluno com o mestre de capela de São Marco (McKINNEY, 2010, pp. 265-289). Jacques Buus (1500-65) tem a maior parte de sua obra publicada por Antonio Gardano (1509-69). Após seu primeiro álbum de canzoni francese (a seis vozes) de 1543147, um considerável número de ricercares ensemble é publicado em álbuns de 1547 (libro primo)148 e 1549 (libro secondo)149; quatro ricercares deste segundo álbum sendo editados em tablatura de teclado, acrescidos de ornamentos, no mesmo ano150. No Exemplo 3 é reproduzida a edição moderna por Kinkelday (1968, p. 245), onde as versões são comparadas. Um exemplar monotemático figura entre os seus ricercares multi-motívicos (Reese, 1959, pg. 537-38). 144 R/14653 (Ortiz, D. Trattado de glosas sobre clausulas y otros generos de puntos en la musica de violones. Roma: Valerio Dorico e Luis Dorico, 1553). Madri: Biblioteca Nacional de España. Disponível em: <http://bdhrd.bne.es/viewer.vm?id=0000037748>. Acesso em: 12 dez 2016. 145 R.294 (Bassano, G. Ricercate, Passaggi et Cadentie per potersi essercitar nel diminuir terminatamente con ogni sorte d'Istrumento. Veneza: Vincenzi & Andimo, 1585). Bolonha: Biblioteca della musica. Parcialmente disponível em: <www.bibliotecamusica.it/cmbm/scripts/gaspari/scheda.asp?id=11238>. Acesso em: 10 dez 2016. 146 Slim, H.C. The keyboard ricercar and fantasia in Italy, c. 1500-1550, with reference to parallel forms in European lute music of the same period. Harvard University, tese de doutoramento, 1961; Tappa, R.J. An analytical study of the use of imitative devices in the keyboard ricercar from 1520-1720. Indiana University, tese de doutoramento, 1965. 147 4 Mus.pr. 52#Beibd.1 (Buus, J. Il primo libro di canzoni francese a sei voci di Iaqves Bvvs organista [...], Veneza: A. Gardano, 1543). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitalesammlungen.de/view?id=bsb00074423>. Acesso em: 13 dez 2016. 148 4 Mus.pr. 96#Beibd16 (RISM A/I B5195: Buus, J. Recercari [...] da cantare et sonare d'organo et altri stromenti, libro I a quattro voci. Veneza: A. Gardano, 1547). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00071914>. Acesso em: 11 dez 2016. 149 A.58.a. (RISM A/I B5196: Buus, J. Il Secondo libro di recercari da cantare et sonare d'organo et altri stromenti a quattro voci. Veneza: A. Gardano, 1549). Londres: British Library, incompleto. Fonte digital indisponível. 150 K.1.f.16. (RISM A/I B5197: Buus, J. Intabolatura d'organo di Recercari. Veneza: A. Gardano, 1549). Londres: British Library. Fonte digital indisponível. 72 Exmplo 3. Edição moderna de um ricercare de Buus, em duas versões: uma em partitura aberta, seguida por outra, abaixo, representando uma intabulação da mesma peça para órgão. Buus ainda produz outros álbuns exclusivos, como o Primo libro de moteti a quatro voci de 1549151 e o Primo libro dele canzoni francese a cinque voci... de 1550152. Algumas coletâneas contendo peças de Buus chegam até nós em formato de “livro de mesa” em publicações de Jacques Moderne (fl. 1523-1544) a partir de 1538, como as chanson francese contidas no álbum Le parangon des chansons153 (Figura 66). Esta é uma das poucas publicações continentais de livros de mesa, cuja tradição é cultivada no final do século XVI na Inglaterra. Figura 64. J. Buss, “Et puís a ton”. J. Moderne, Le parangon des chansons, Tiers livre, fol. 19. 151 SA.76.D.12/1-4 Mus 18 (RISM A/I B5198: J. Buus, Libro primo de moteti a quatro voci... Novamente da lui composti. Veneza: A. Gardano, 1549). Viena: Österreichische Nationalbibliothek. Disponível em: <http://data.onb.ac.at/rec/AC09167754>. Acesso em: 13 dez 2016. 152 4 Mus.pr. 52#Beibd.6 (RISM A/I B5199: J. Buus, Libro primo delle canzoni francese a cinque voci… Veneza: G. Scotto, 1550). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitalesammlungen.de/view?id=bsb00074428>. Acesso em: 13 dez 2016. 153 4 Mus.pr. 183#Beibd.2 (RISM 1538/17: Le parangon des chansons. Tiers livre contenant xxvi chansons nouvelle au singulier prouffit & delectation des musiciens. Lion: J. Moderne, 1538). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00072029>. Acesso em: 11 dez 2016. Reimpressão catalogada como RISM 1543/13. Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00072018>. Acesso em: 11 dez 2016. 73 Annibale Padovano (1527-75) tem um álbum com treze ricercares a 4 publicado em livros de partes por Antonio Gardano em 1556154. A obra é republicada postumamente, em 1588, por seu filho Angelo Gardano (1540-1611)155 que também edita, em 1604, tablaturas de órgão de Padovano156. O autor parece ter uma relação importante com a família Gardano, uma vez que outras obras suas foram publicadas por essa imprensa em vida – álbuns de motetos a cinco e seis vozes157 e de missas a cinco vozes158 – ou postumamente, como uma canzon em seis stanzas e um madrigal, em coletânea a quatro vozes onde é um dos principais colaboradores159, e mesmo uma battaglia a otto voci160. Além disso, seus recercar del terzo e del ottavo tono aparecem em um álbum para alaúde de 1584161 (Figura 65). Figura 65. Padovano, “recercar del ottavo tono”. Fallamero, G. Il libro primo de intavolatura da liuto, fol. 69r. 154 G33/9;20;31;42 (RISM A/I A1250: Padovano, A. Il primo libro de ricercari a quattro voci. Veneza: Antonio Gardano, 1556). Londres: Royal College of Music. Fontes digitalizadas indisponíveis. 155 R.33 (RISM A/I A1251: Padovano, A. Il Primo Libro de Ricercari a quattro voci, nouamente Ristampato. Veneza: Angelo Gardano, 1588). Disponível em: <http://www.bibliotecamusica.it/cmbm/scripts/gaspari/scheda.asp?id=10560>. Acesso em: 10 dez 2016. 156 R.34 (RISM A/I A1252: Padovano, A. Toccate et Ricercare D´Organo. Veneza: Angelo Gardano, 1604). Bolonha: Biblioteca della Musica. Disponível em: <http://www.bibliotecamusica.it/cmbm/scripts/gaspari/scheda.asp?id=12250>. Acesso em: 11 dez 2016. 157 B.1 (RISM A/I A1247: Padovano, A. Liber motectorum quinque et sex vocum ... Liber primus. Veneza: A. Gardano, 1567). Londres: British Library. Fontes digitalizadas indisponíveis. 158 B.1.a. (Padovano, A. Annibalis Patauini ... missarum quinque vocum liber primus. Veneza: Antonio Gardano, 1573). Londres: British Library. Fontes digitalizadas indisponíveis. 159 A.70.u. (RISM 1561/15: di Cipriano et Annibale, madrigali a quattro voci insieme altri eccellenti autori. Veneza: A. Gardano, 1561). Londres: British Library. Disponível em: <https://repository.royalholoway.ac.uk/items/d1659f0e-b9ab-5e69-7109-87f95553dab2/1/>. Acesso: 9 dez 2016. 160 E. 14 (Dialoghi Mvsicali de Diversi Eccellentissimi Avtori, a sette, otto, noue, dieci, undeci, & dodeci voci. Veneza: Angelo Gardano, 1592). Londres: British Library (incompleto). Disponível em: <https://repository.royalholoway.ac.uk/items/7b171f76-2d2c-5a19-7cd4-77b7cd20e795/1/>. Acesso: 9 dez 2016. 161 Hirsch.III.192. (RISM 1584/13: Fallamero, G. Il libro primo de intavolatura da liuto... Veneza: Melchior Scotto, 1584). Londres: British Library. Disponível em: <https://repository.royalholoway.ac.uk/items/460e62cd0333-2277-151b-70bb715b61a8/1/>. Acesso em: 11 dez 2016. 74 Andrea Gabrieli (1533-85) tem seis volumes de obras para teclado publicados postumamente entre 1589 e 1605 (Tabela 12), entre outros, contendo trinta e três ricercares arranjados em livros de partes ou em intabulações com ornamentação escrita (Figura 66). Seus ricercares variam de um estilo comum à época até exemplos monotemáticos, como o Ricercare a oito162, onde após seis diferentes pontos de imitação o primeiro é repetido ao final (lembrando a forma canzona). Andrea Gabrieli ainda produz canzoni francese baseadas em transcrições de chansons e intabulações ornamentadas sobre madrigais como “Anchor che col partire” de Rore. Suas intonazioni resguardam a estrutura que posteriormente evoluirá ao seu modelo de toccata. gênero ricercare canzona toccata Título formato RISM Madrigali et ricercari (1589) partes A/I G0077163 Ricercari...tabulati per stromenti da tasti... libro secondo tablatura 1595/13164 Il terzo libro di ricercari...tabulati per stromenti da tasti tablatura 1596/19165 Canzoni alla francese et ricercari ariosi, tabulati per stromenti..libro quinto tablatura 1605/18166 Canzoni alla francese per sonar sopra istromenti da tasti... libro sesto tablatura 1605/19167 Intonationi d´organo di Andrea Gabrieli et di Gio tablatura 1593/10168 Tabela 12. Obras de Andrea Gabrieli para teclado, em tablatura ou em livro de partes. Figura 66. “Ricercare del nono tono”. Andrea Gabrieli, Il terzo libro di ricercari, fol. 22v-23r. 162 E.17. (RISM 1587/16: Concerti di Andrea e di Gio libro primo. Veneza: Angelo Gardano, 1587). Londres: British Library. Disponível em: <https://repository.royalholoway.ac.uk/items/7beb4d03-4be0-3d2d-0e283268368bf329/1/>. Acesso em: 11 dez 2016. 163 S.160 (Madrigali et ricercari... Veneza: Angelo Gardano, 1589). Bolonha: Biblioteca della Musica. Fontes digitalizadas indisponíveis. 164 S.161/2 (Ricercari...tabulati... libro secondo. Veneza: Angelo Gardano, 1595). Bolonha: Biblioteca della Musica. Fontes digitalizadas indisponíveis. 165 S.161/3 (Il terzo libro di ricercari... Veneza: Angelo Gardano, 1596). Bolonha: Biblioteca della Musica. Cópia digital de estudo adquirida por projeto de pesquisa CNPq. Também parcialmente disponível em: <http://www.bibiotecamusica.it/cmbm/viewschedatwbca.asp?path=/cmbm/images/ripro/gaspari/_S/S161/>. Acesso em: 13 dez 2016. 166 Canzoni alla francese... libro quinto. Veneza: Angelo Gardano, 1605. Ausburgo: Staats- und Stadtbibliothek. Fontes digitalizadas indisponíveis. 167 S. 162 (Canzoni alla francese... libro sesto. Veneza: Angelo Gardano, 1605). Bolonha: Biblioteca della Musica. Fontes digitalizadas indisponíveis. 168 S.161/1 (Intonationi d´organo... Veneza: Angelo Gardano, 1593). Bolonha: Biblioteca della Musica. Fontes digitalizadas indisponíveis. 75 Grande parte da música de Andrea Gabrieli é publicada postumamente por seu sobrinho, Giovanni Gabrieli, em particular os seus Concerti de 1587169, uma grande coleção de música sacra, secular e instrumental. Giovanni, contudo, acrescentava obras de próprio cunho a estas coleções. Com a publicação de Sacra symphoniae de 1597170, uma coletânea autoral própria sua, torna-se um dos expoentes na produção de música sacra em Veneza; algumas das peças são inclusas na coleção Sacra symphoniae impressa por Kauffmann em 1598171 na Alemanha. Ricercares, canzonas, tocatas, intonazioni, fugas e uma fantasia para teclado de Giovanni Gabrieli ocorrem em fontes manuscritas como a “Intavolatura de Turin”172, ou impressas como as peças inseridas nas coleções de seu tio Andrea (os álbuns de Intonazioni de 1593 e de Ricercari... de 1595), além de um álbum próprio de canzonas (“Canzoni di Gio. Gabrieli”173) e uma “toccata del secondo tuono” ocorrente no álbum Il Transilvano174 (Fig. 67). Figura 67. G. Gabrieli, “Toccata del secondo tuono”. Girolamo Diruta, Il Transilvano, pp. 39-41. 169 S. 159 (RISM 1587/16, A/I G85. Concerti di Andrea, et di Gio. Gabrieli… libro primo et secondo. Veneza: Angelo Gardano, 1587). Bolonha: Biblioteca della Musica. Disponível em: <http://www.bibiotecamusica.it/cmbm/viewschedatwbca.asp?path=/cmbm/images/ripro/gaspari/_S/S161/>. Acesso em: 13 dez 2016. 170 Mus.ant.pract. G 80 (Sacrae symphoniae… senis, 7, 8, 10, 12, 14, 15, & 16, tam vocibus, quam instrumentis, edition nova. Veneza: Angelo Gardano, 1597). Cracóvia: Biblioteka Jagiellonska. Fontes digitais indisponíveis. 171 4 Mus.pr. 2724 (RISM 1598/2: Caspar Hassler. Sacrae symphoniae, Diversorum… Authorum. Nuremberg: Paul Kauffmann, 1598). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitalesammlungen.de/view?id=bsb00080450>. Acesso em: 16 dez 2016. 172 Cf. Oscar Mischiati, L’intavolatura d’organo tedesca della Biblioteca Nazionale di Torino. “L’organo”, 4, 1963, 2-154 e 237-8. 173 S 163 (RISM A/I G0088: “Canzoni di Gio. Gabrieli”. Veneza: Gardano / Magni, 1615). Bolonha: Biblioteca della Musica. Disponível em: <www.bibliotecamusica.it/cmbm/scripts/gaspari/scheda.asp?id=8302>. Parece haver um erro no link. Acesso em: 16 dez 2016. Cf. também: Mus.ant.pract. G 90. Cracóvia: Biblioteka Jagiellonska. Fontes digitalizadas indisponíveis. 174 K.8.h.22. (RISM 1597/25: Girolamo Diruta: Il transilvano... Veneza: Giacomo Vincenti, 1597). Londres: British Library. Disponível em: <https://repository.royalholoway.ac.uk/items/45784664-6abe-bc43-7d7fdcacb2b949e4/1/>. Acesso em: 11 dez 2016. 76 Já Claudio Merulo (1533-1604) tem uma maior produção de obras para teclado, incluindo ricercares, canzonas, tocatas e missas (Tabela 13). Até 1567, publica por meio de sua própria imprensa, mas a partir de 1574 sua obra é impressa principalmente pelos Gardano, mesmo postumamente, sendo revisada por seu sobrinho Giacinto Merulo para este fim. gênero título missa Messe d´intavolatura d´organo...libro quarto (1568) tablatura A/I M2373175 Ricercari d´intavolatura d´organo... libro primo (1567) tablatura 990041052176 Ricercari d´intavolatura... libro primo... novamente ristampato (1605) tablatura A/I M2378177 ricercare toccata RISM Il primo libro de ricercare da cantare, a quatro voci (1574) partes A/I M2374178 Ricercari da cantare a quattro voci... libro secondo (1607) partes A/I M2380179 Ricercari da cantare a quattro voci... libro terzo (1608) partes A/I M2381180 Canzoni d´intavolatura d´organo... a quatro voci... libro primo (1592) canzona formato tablatura A/I M2375181 Libro secondo di canzoni d´intavolatura d´organo... a quatro voci (1606) tablatura A/I M2379182 Terzo libro di canzoni d´intavolatura... a cinque voci (1611) tablatura A/I M2382183 Toccate d´intavolatura d´organo libro primo (1598) tablatura A/I M2376184 Toccate d´intavolatura d´organo... libro secondo (1604) tablatura A/I M2377185 Tabela 13. Obras de Claudio Merulo para teclado, em intabulação ou em livro de partes. Canzonas de Merulo são impressas em três álbuns autorais de intavolatura para órgão (1592, 1606 e 1611), em versões ornamentadas a partir de modelos a quatro vozes ocorrentes 175 Messe d´intavolatura d´organo...libro quarto. Veneza: s.n., 1568. Roma: Biblioteca del Conservatorio di Musica Santa Cecilia. Catálogo indisponível. 176 Mus.ant.pract. M685 (Ricercari d´intavolatvra... libro primo. Veneza: C. Merulo, 1567). Cracóvia: Biblioteka Jagiellonska. Disponível em: <http://jbc.bj.uj.edu.pl/publication/175867/content>. Acesso: 15 dez 2016. 177 T.110 (Ricercari d´intavolatura d´organo... libro primo... novamente ristampato. Veneza: Angelo Gardano, 1605). Bolonha: Biblioteca della musica. Fontes digitalizadas indisponíveis. 178 FRBNF43150299 (Il primo libro de ricercare da cantare, a quatro voci. Veneza: Gardano e filhos, 1574). Paris, Bibliotèque nationale de France (Alto, canto e basso somente). Fontes digitalizadas indisponíveis. O tenor é reproduzido em microfilme. FRBNF37283689. Cambridge (Mass.): Omnisys, ca. 1990. Disponível em : <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k59047t.r=Merulo,+Claudio.langES>. Acesso em: 15 dez 2016. 179 T.111 (Ricercari da cantare a quattro voci... libro secondo. Veneza: Angelo Gardano & fratelli, 1607). Bolonha: Biblioteca della musica. Fontes digitalizadas indisponíveis. 180 T.112 (Ricercari da cantare a quattro voci... libro terzo. Veneza: Angelo Gardano & fratelli, 1608). Bolonha: Biblioteca della musica. Fontes digitalizadas indisponíveis. 181 Canzoni d´intavolatura d´organo... a quatro voci... libro primo. Veneza: Angelo Gardano, 1592). Basiléia: Universitätsbibliothek, Musiksammlung. Fontes indisponíveis. 182 (Libro secondo di canzoni d´intavolatura d´organo... Veneza: Angelo Gardano & fratelli, 1606). Paris: Bibliotèque du Conservatoire. Fontes digitalizadas indisponíveis. 183 (Terzo libro di canzoni d´intavolatura d´organo... Veneza: Angelo Gardano, 1611). Paris: Bibliotèque du Conservatoire. Fontes digitalizadas indisponíveis. 184 2 Mus.pr. 54-1/2#1 (Toccate d´intavolatura... libro primo. Roma: S. Verovio, 1598). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00094272>. Acesso em: 15 dez 2016. 185 2 Mus.pr. 54-1/2#2 (Toccate d´intavolatura d´organo libro secondo. Roma: S. Verovio, 1604). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitalesammlungen.de/view?id=bsb00094273>. Acesso em: 15 dez 2016. 77 em fontes diversas (CUNNINGHAM, MCDERMOTT, 1992, p. xii). Parte destes modelos são atribuídos ao próprio intabulador, como as canzonas nos 1, 2, 3, 4 e 9 de seu primeiro álbum de 1592, em concordâncias com o Códice MCXXVIII, Biblioteca Capitolare di Verona (Collarile, 2008, p. 120). Outras canzonas a quatro vozes suas ocorrem em coletâneas como Canzon di diversi per sonare libro primo (1588, nos. 1 e 2)186, e Canzoni per sonare libro primo (nos. 5, 18, 23 e 36)187; desta última, a “Canzon decimaottava” (Figura 68) também é concordante com a “Canzon a 4 Dita Petit Jacquet”, no. 9 do primeiro ábum de canzonas intabuladas (Figura 69), segundo Cunningham e Mcdermott (ibidem, p. xiii). O estudo destas correlações, junto à de outras intabulações de Merulo, podem dizer muito acerca de sua prática composicional. Figura 68. C. Merulo, “Canzon decimaottava a 4 & 5 si placet”: canto, tenore, basso (fol.11r) e quinto (fol. 2r). Raverii, A. Canzoni per sonare con ogni sorte di stromenti... libro primo (1608).; o alto corresponde à voz “si placet”, aqui ausente. Concordância: modelo a quatro vozes, códice MCXXVIII (Verona: Bibl. Capitolare). Figura 69. C. Merulo, “Canzon a 4 Dita Petit Jacquet”. Angelo Gardano, Canzoni d´intavolatura d´organo... a quatro voci... libro primo (1592)., fol. 36r-36v. 186 RISM: Recueils I, 1588/31 (original não encontrado). Cf. Sumner, F. (ed.) Giacomo Vincenti (publisher), Canzon di diversi per sonar com ogni sorte di stromenti (Venice, 1588). Nova York [u.a.]: Garland, 1994;. 187 4 Mus. Pr. 527 (RISM 1608/24: Canzoni per sonare con ogni sorte di stromenti a quattro, cinque et otto... libro primo. Veneza: Alessandro Raverii, 1608). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00074352>. Acesso em: 15 dez 2016. 78 Entre outros gêneros contemplados por Merulo, ricercares a quatro seriam comparáveis em estrutura aos motetos de seu álbum Il primo libro de motteti a quattro voci pari, novamente dati in luce188 de 1584; este estudo, contudo, ficou além dos objetivos desta pesquisa. Diferentemente da maior parte de sua obra, publicada pela família de Gardano até 1611, álbuns de tocatas de Merulo são impressas em Roma, por Simone Verovio. Tratam-se de suas últimas obras publicadas em vida, após mudar para Parma, exemplares de um estilo misto, com seções polifônicas intercalando-se às de estilo improvisativo, ao longo de diversas seções, como pode ser notado em um trecho de sua “Toccata Nona” do primeiro livro de tocatas (Figura 70). Figura 70. C. Merulo, “Quarto tuono – Toccata Nona”. Simone Verovio, Toccate d´intavolatura d´organo libro primo (1598), pp. 39-41 (a toccata tem mais duas páginas). Claudio Merulo ainda tem uma toccata publicada no tratado teórico-prático Il Transilvano de Girolamo Diruta (1554-1610), que a este presta homenagem explícita em reconhecimento à sua genialidade tanto técnica como composicional. Outros autores como Andrea Gabrieli, Luzzascho Luzzaschi (1545-1607), Antonio Romanini (fl. 1585-1600), Paolo Quagliati (1555-1628), Bell’haver (1541-1587) e Gioseffo Guami (1542-1611) – além do próprio Diruta – também são contemplados nesta primeira parte do álbum, publicada originalmente em 1593 e voltada exclusivamente à execução de toccatas ao órgão. Já a Seconda parte del Transilvano189 tem um espectro teórico mais abrangente, organizado em quatro 188 FRBNF43150298 (RISM A/I M2363: Il primo libro de motteti a quattro voci pari... Veneza: A. Gardano, 1584). Paris: Bibliothèque national de France (contendo três vozes: superius, tenor II e bassus; falta o tenor I, contido no catálogo da Bibliothèque de l’Arsenal em Paris, não encontrado). Fontes digitalizadas indisponíveis. 189 D. 19 (RISM 1609/33: G. Diruta, Seconda parte del Transilvano, dialogo diviso in Quattro libri… Veneza: G. Vincenti, 1609). Bolonha: Biblioteca della Musica. Disponível em: <http://www.bibiotecamusica.it/cmbm/scripts/gaspari/scheda.asp?id=1935>. Acesso em: 17 dez 2016. 79 divisões do álbum, cada um voltado a um conjunto de aspectos composicionais como a intabulação ornamentada de canzonas (libro primo), teoria do contraponto para a composição de ricercares (libro secondo), transposição (libro terzo) e intabulação de monodia sacra (libro quarto). São exemplificadas ali duas canzonas intabuladas por Diruta, uma de G. Gabrieli (“detta la Spiritata”) e outra de Antonio Mortaro (c.1570-c.1520), “detta l’Albergona, partita & intabulata”, demonstrando o processo de intabulação (Figura 71). A chanson francese é um modelo preferido à adaptação instrumental em comparação ao madrigal, mesmo às custas de uma menor extensão formal, produzindo canzonas com base (ou não) em um modelo vocal. Figura 71. Mortaro, “Canzone detta l’Albergona, partita & intabulata”. Diruta, Seconda parte del Transilvano (1610), pp. 18-21. 80 Reese sugere que “...como um tipo de composição, a canzona instrumental prova ser um estudo no arranjo de seções musicais – um estudo em estrutura –, bem como o ricercare é um estudo da exploração dos recursos composicionais”, destacando obras de Luzzaschi, Brignoli, Pellegrini, Banchieri, Guami e Malvezzi em seus esforços por obter alguma espécie de unidade temática entre as seções da canzona (Reese, 1959, pg. 541-543). Já os ricercares do Il Transilvano são de cinco autores e abrangem todos os doze tuonos: “ricercare del primo” e “secondo tuono” por Luzzaschi (Figura 72); “del terzo” e “quarto” por Pichi (1571-1643); “del quinto” e “sexto” por Banchieri (1568-1634); “del settimo”, “ottavo”, “undecimo” e “duodecimo” por Diruta; e “del nono e decimo” por Fattorini (fl. 1598-1609). Figura 72. Girolamo Diruta, Seconda parte del Transilvano (1610). Luzzascho Luzzaschi, “Ricercare del primo tuono”, p. 24; “Ricercare del secondo tuono”, p. 25. No capítulo a seguir, peças selecionadas deste primeiro capítulo serão submetidas a classificação segundo aspectos composicionais diversos, evolvendo seus materiais de partida e técnicas como a imitação. 81 2 ASPECTOS DA ESCRITA POLIFÔNICA NO RENASCIMENTO No capítulo anterior, uma série de gêneros musicais dos séculos XV e XVI foram elencados na medida em que instrumentos musicais poderiam apropriar-se de sua execução, a partir de fontes musicais notadas com ou sem texto. Tal hipótese torna-se cada vez mais concreta ao fim do século XV e início do século XVI, com a proliferação de tablaturas para instrumentos de corda e arco (como as liras da gamba), corda e traste (família do alaúde) e teclas. Ao fim do século XVI a polifonia imitativa instrumental já está consolidada, atingindo seu estágio mais avançado no gênero ricercare imitativo. A seguir, alguns aspectos importantes da escrita polifônica serão apresentados para delimitar deste estudo. 2.1 Imitação e contraponto nos séculos XV e XVI Formas polifônicas se desenvolvem principalmente a partir do século XII segundo duas correntes distintas, porém interativas, de estilos imitativos ou simplesmente contrapontísticos, que culminam no contraponto do século XVI, como esquematizado em um recente trabalho dentro de nosso grupo de pesquisa, mostrado no Esquema 3. Esta intrincada rede de gêneros musicais é influenciada por duas formas de inventio, a ‘imitação’ e o ‘contraponto’, cujas definições relacionadas são apresentadas a seguir. Esquema 3. C. Iafelice, dissertação de mestrado. Quadro sinóptico da possível emersão da polifonia na Europa. 82 Imitação estrita ou canônica. O processo de imitação pode ser desenvolvido de formas diversas, como sistematizado por Iafelice (IAFELICE, 2016, pp. 276-284) em seu modelo conceitual das cinco protoformas do cânone, descritas a seguir: 1) ‘forma de perseguição’: caracterizada por entradas imitativas estritas em estilo fugal; 2) ‘forma de rotação’: relativa especificamente ao rondellus; 3) ‘forma de elaboração métrica’: quando há manipulação de proporção e mensura; 4) ‘forma de elaboração melódica’: quando a melodia é desenvolvida em movimento contrário (cancrizans), inverso (per arsin & thesin) ou por modulação (per tonus); 5) ‘forma híbrida’: quando duas ou mais destas formas atuam de forma concatenada. Em relação aos exemplos mencionados no capítulo anterior, a primeira das protoformas, a de ‘perseguição’, pode resultar de protocolos canônicos como “tenor faciens contratenorem”, na seção de missa anônima “Et in terra pax” (cf. Fig. 24, p. 24), ou “tempora bina site dyapason postea scande” na chanson “Puisque vous estez campieur” de G. Dufay (cf. Fig. 25, p.25). De maneira similar, o terceiro tipo de protoforma – de ‘elaboração métrica’ – resulta, no Kyrie da “Missa L’homme armé I” de Pierre de La Rue, da inscrição “Fuga in bassu[s]” no tenor, onde as vozes envolvidas concorrem em proporção sesquiáltera, com imperfeições (cf. Fig. 29, p. 31). Já a quarta protoforma, a de ‘elaboração melódica’, é consequente da interpretação do texto enigmático de “Ma fin est mon commencement” de Machaut (cf. Fig. 22, p. 22), resultando em estrutura de rondó por movimento cancrizans de suas vozes conjugadas. A quinta protoforma, a do tipo ‘híbrida’, é representada por dois tipos de elaboração, fugal e métrica, como na prima pars da “Missa La mi la sol” de H. Isaac (cf. Fig. 34, p. 35), desta vez sem inscrição. Iafelice (ibidem, pp. 90-91) aponta ainda a possível classificação de alguns cânones como sendo ‘não fugais’, como aqueles obtidos por elaboração métrica ou melódica. O exemplo supracitado de elaboração métrica de La Rue, contudo, vai contra esta observação, no que tange ao uso do termo ‘fuga’ em uma elaboração métrica. Visto a ambiguidade que a terminologia pode apresentar, será evitado, na medida do possível, o uso da terminologia derivada das palavras ‘cânone’ e ‘fuga’, neste trabalho. As terminologias descritas a seguir, por sua vez, são derivadas de seu perfil imitativo ou contrapontístico e de seu papel na textura polifônica produzida. Imitação. O conceito tradicional de imitação na música polifônica é comumente vinculado ao de perseguição, como descreve Iafelice (op. cit., p. 276-7). Um entendimento mais amplo do termo ‘imitação’, contudo, deve abordar também as outras protoformas imitativas descritas por Iafelice, o que implica na diferenciação entre o conceito ‘bruto’ de imitação, ou 83 seja, de reprodução exata ou não de um dado modelo, e o de ‘processo de imitação’, referente ao modo como se realiza tal reprodução, podendo gerar resultados muito diferentes, por exemplo, ao utilizar-se perseguição ou elaboração métrica. 2.1.1 Formas de perseguição: técnicas e modelos O processo de perseguição se configura de formas diversas, refletindo particularidades do modelo e do processo de imitação. Schubert (2007, pp. 488-489) apresenta definições com base em gráficos que servem de referência para a discriminação destes modelos, como apresentados a seguir. Duo não imitativo. Quando duas melodias diferentes se sobrepõem, gerando uma relação contrapontística definida como ‘módulo’ (CUMMINGS e SCHUBERT, 2015, pp. 219225) Duo imitativo. Tecnicamente, trata-se da melodia que, após um intervalo de tempo, é seguida por uma imitação da mesma. A sobreposição destas duas melodias também gera um módulo, como no caso anterior. O intervalo entre o modelo e a imitação pode ser chamado de ‘intervalo de imitação ordinária’. Par de duos não imitativos. Ocorre após o estabelecimento do duo não imitativo, que ao longo de seu desenvolvimento é adicionado de mais duas vozes que imitam tal duo. O intervalo entre o duo inicial e sua imitação pode ser chamado de ‘intervalo de imitação do duo’. Par de duos imitativos. De maneira semelhante, ocorre após o estabelecimento do duo imitativo, que ao longo de seu desenvolvimento é adicionado de outras duas vozes que o imitam. Mais uma vez, o intervalo entre o duo inicial e sua imitação pode ser chamado de ‘intervalo de imitação do duo’. Imitação em trio ou quarteto. Diferentemente do par de duos imitativos, estabelece um arranjo a três ou quatro vozes (ou eventualmente mais), todas com o mesmo intervalo de imitação ordinária. Nestes casos, deve ocorrer a repetição do módulo inicialmente formado. Contraponto imitativo. É quando, em qualquer um destes casos, ocorre uma repetição do módulo gerado por um par imitativo ou não imitativo. As vozes de um conjunto imitativo podem exibir relações de ‘ordem primária ou secundária’. Define-se aqui como ‘ordem primária’ as relações exibidas pela sobreposição das vozes sem levar em conta os aspectos imitativos do conjunto. No caso do duo não imitativo, as melodias sobrepostas são referidas por sua altura relativa (superior/inferior) ou pela voz que as conduz. Já no caso do duo imitativo, a voz que inicia o conjunto (ou ‘primeira voz’) é livre até 84 que se inicie a imitação, caracterizando um ‘período livre’ de sua exposição; em contraste, a entrada da ‘segunda voz’ (inevitavelmente a imitação) após o ‘período livre’ da primeira voz caracteriza o que pode então ser chamado de ‘período conjugado’. Já as relações de ordem secundária do conjunto imitativo implicam na consideração de aspectos como a extensão absoluta de um modelo de imitação e parâmetros que limitam tal conceituação, o que será discutido no Capítulo 3 em observação à conceituação de agrupamentos expositivos e digressivos de Nogueira (2014, pp. 63-76). A conceituação da terminologia envolvendo imitação esbarra em conceitos clássicos da literatura que não fasem distinção técnica entre as ‘ordens primária ou secundária’ aqui em discussão. O soggetto, por exemplo, corresponde à melodia que sofre a imitação, em sua duração absoluta (CUMMING, SCHUBERT, op. cit., p. 201), conceito aplicável tanto ao modelo livre como à imitação conjugada. Em adição, o período conjugado da primeira voz tem sido tratado em algumas situações pelo termo técnico ‘contrassujeito’ (CUMMING, SCHUBERT, ibidem, p. 221), como conceituado na definição escolástica de “fuga clássica”. Da mesma forma, os conceitos de ‘antecedente’ e ‘consequente’ podem ser dúbios em relação à ordem em que operam (primária ou secundária). Neste contexto, pode-se encampar ao conceito de ordem primária o termo ‘concomitante’, que corresponderia ao segmento conjugado da primeira voz em relação à imitação na segunda voz. Tal definição não corresponde propriamente à de contrassujeito, na medida em que o modelo de imitação na primeira voz pode se estender para além da entrada da segunda voz, como em stretto, caracterizando a abertura de peça imitativas como Venit vox de coelo de Clemens non Papa ou o Ricercar tertius de Willaert, analisadas no capítulo seguinte. Alguns conceitos complementares à esta discussão são elencados a seguir. Imitação pervasiva. É caracterizada pela repetição do soggetto em todas as vozes da polifonia, marcando a peça não só em seu início, mas também em suas seções intermediárias. Imitação livre. É aquela que, segundo Cummings e Schubert (ibidem, p. 211) não apresenta um contraponto imitativo. Abertura. Caracteriza o início de uma peça e muito do inventio a ela relacionada. A abertura pode combinar diversos dos aspectos aqui elencados, podendo configurar-se de forma imitativa em duo, trio ou par de duos (imitativos ou não imitativos) ou de forma não imitativa. Contraponto livre. De caráter não imitativo, pode ocorrer como complemento à construção de formas imitativas. 85 2.1.2 Formas de perseguição em repertórios dos séculos XV e XVI A maior parte dos exemplos descritos no Capítulo 1 desta tese se caracterizam como ‘forma de perseguição’, porém essencialmente em sua abertura, permitindo com que as imitações se libertem após um curto período de exposição; esta ‘abertura imitativa’ é observada em chansons, seções de missa, tricinia instrumentais e sacros, carminas, motetos e ricercares. Na Tabela 14, peças identificadas pelo símbolo † tem todas as vozes envolvidas neste tipo de imitação (no “Recercare primo” de G. Cavazzoni, as quatro vozes se desenvolvem em ‘fuga real’ ao longo de oito notas). Para algumas destas peças, a leitura tenderia a ser especificamente instrumental: “Carmen in sol” de Isaac (após “Maudit soit cil qui trouva jalosie”), “Fors seulement l'attente que je meure” de Obrecht e a fantasia de Senfl, por não possuírem nenhum texto nem incipit guarnecido, e “Benedictus” de Schlick, “Si dormiero” de La Rue, e “Recercare primo” de Cavazzoni, em seus formatos intabulados. Fig. (pág.) a 23 (23) 24 (24) 25 (25) 26a (27) 31 (34) 32 (34) 33 (35) 34 (35) 35a (36) 35b (36) 37 (37) 39 (39) 40 (40) 44a (43) 47a (46) 51 (52) 52 (52) 54 (55) 61 (68) Peça compositor Belle, bone, sage B. Cordieur Et in terra pax (superius I e II) anônimo Puisque vous estez campieur G. Dufay Sine nomine anônimo Maudit soit cil qui trouva jaulosie† H. Isaac Carmen in sol (após Maudit soit)† H. Isaac Fors seulement l'attente que je meure† J. Obrecht Missa La mi la sol (prima pars) H. Isaac Plaine d'ennuy de longue main / Anima mea† L. Compère Belles sur touts / Tota pulchra es amica mea A. Agricola Anima me liquefacta† Ghiselin Si dormiero† P. de La Rue Si dormiero (intabulado)† P. de La Rue Adieu mes amours Josquin Desprez Benedictus (intabulado)† A. Schlick Das lang L. Senfl Fantasia† L. Senfl Quam pulchra est† J. da Mantua Recercare primo (tablatura)† G. Cavazzoni gênero chanson seção de missa chanson indeterminado chanson carmen chanson seção de missa moteto-chanson moteto-chanson moteto-canção tricinium tricinium tricinium seção de missa carmen carmen moteto ricercare vv. Execução 3 4 3 4 3 3 4 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 4 voc./(instr.) voc./(instr.) voc./instr. instr. voc./instr. instr. instr. voc./instr. voc./(instr.) voc./(instr.) voc./(instr.) (voc.)/instr. instr. (voc.)/instr. instr. instr. instr. voc./(instr.) instr. Tabela 14. Peças polifônicas com abertura em ‘forma de perseguição’, ordenadas segundo figuras do Cap. 1. † - todas as vozes envolvidas na abertura imitativa. Quando a indicação ‘voc.’ ou ‘instr.’ estiver entre parêntesis, a viabilidade de sua execução por este meio será menor que do que por aquele sem parêntesis. As peças sem identificação na tabela anterior possuem ao menos duas vozes em relação imitativa. É comum, nestes casos, que o processo de imitação se prolongue, de modo a contrastar com a(s) voz(es) concorrente(s) não imitativa(s); é o caso, por exemplo, de “Belles 86 sur touts / Tota pulchra es amica mea” de Agricola (cf. Tabela 14), onde discanto e tenor se imitam por pelo menos doze notas. Já no moteto-chanson “Deuil et enuy / Quoniam tribulatio” (a 4) de Johannes Prioris (cf. Figura 35c, p. 36) a imitação de três notas em mesma altura, entre o altus e o bassus, é quase irrelevante, distinguindo-se da categoria de abertura imitativa. Este também é o caso do tricinium sacro “O florens rosa” de Ghiselin (a 3), onde duas vozes imitamse por quatro notas, contudo sem nenhuma consistência rítmica (cf. Figura 38, p. 38). Um caso adicional é o da chanson “Oblier veult douleur et tristesse” de Agricola (Exemplo 4a), que também é manifesta como uma carmen em sol (cf. Tabela 3, p. 33). Tal peça apresenta imitações de até dez notas em suas três vozes mas não exatamente como abertura imitativa, uma vez que as imitações são precedidas por material que resulta do contraponto complementar ao modelo. Aberturas não-imitativas em contraponto livre caracterizam peças como a ‘res facta’ “Comme Femme” de Agricola (Exemplo 4b) e o ‘ricercare em ensemble’ “La morra” de Isaac (cf. Fig. 44b, p. 43), ambas contidas no primeiro livro de intabulações para alaúde de Spinacino (cf. Tabela 10, p. 64), além do moteto “Argentum et aurum” (a 4) de Isaac (cf. Figura 27, p. 28). (a) (b) Exemplo 4. Incipits de chansons a 3 de Agricola. (a) “Oblier veult douleur et tristesse”1; (b) “Comme femme”. É importante frisar que as peças acima discutidas são apenas alguns exemplos de estrutura imitativa, não consistindo em absoluto em um levantamento completo de todas as fontes disponíveis, o que ultrapassaria a circunscrição desta pesquisa. 1 Coeurdevey, Annie. Catalogue de la Chanson Française à la Renaissance. Centre D’Études Supérieures de la Renaissance, Université Frnaçois Rabelais de Tours. Disponível em: <http://ricercar.cesr.univ-tours.fr/3programmes/basechanson/index.htm>. Acesso em 18 dez 2016. 87 2.2 Gêneros polifônicos Em sua função de suporte para a entoação do texto, os diversos gêneros vocais até o momento descritos adotam estruturas que refletem, de um lado, os padrões estruturais de formas poéticas ou litúrgicas e, de outro, aspectos estilísticos distintivos dos gêneros musicais como extensão e textura musical. A conjunção de diversos fatores musicais pode criar um estereótipo para dado gênero vocal tal que seja distinguível mesmo em sua realização instrumental, como discutido anteriormente em relação ao prefácio do álbum Trium vocum carmina. Entre os gêneros vocais do período, missas e motetos apresentam textura polifônica claramente mais acentuada do que alguns gêneros seculares como a frottola e o madrigal – onde a homofonia é mais presente –, o que se estende à chanson, onde o conteúdo polifônico é limitado pela forma. Tais gêneros podem adotar formatos que refletem não só seu conteúdo semântico, mas também aspectos retórico-musicais de inventio (criação) e decorum (estilo adequado) que determinam sua maleabilidade. A seguir, tais gêneros polifônicos são descritos. 2.2.1 A Missa O texto fixo do ordinário da missa implica em uma limitação de ordem semântica para sua interpretação. Numerosos arranjos para o missal lançam mão, todavia, do recurso da paródia, lugar comum para este gênero a partir da geração de Josquin. Tal recurso consiste em criar nova música a partir de um motivo pré-estabelecido, como as diversas missas sobre o tema de L’omme armé com base no ordinário2. Este vínculo entre paródia e missa sugere que a vulgarização do texto implica em função mais cerimonial do que expressiva; a relação entre texto e música, portanto, se inverte, com o texto servindo de suporte para a música. Seu arranjo em seções (Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus, Benedictus e Agnus Dei) permite explorar a forma em uma variedade de técnicas, inclusive a adição de seções (ou subtração, no caso da Missa brevis). Tradicionalmente, um motivo comum é apresentado no exordium de cada seção, como na Missa “Ave Maria” de La Rue (EXPERT, 1892, pp. 77; 84; 112; 123). Ali, todas as seções a quatro vozes têm aberturas imitativas (Exemplo 5), exceto o Credo (a 5), onde a ‘perseguição’ se dá em pares (cantus e altus / tenor secundus e bassus) seguidos do próprio cantochão, parodiado no tenor primus (Exemplo 6). 2 Sargent, J. “Morales, Josquin and the ‘L’homme arme’ Tradition’, Early Music History, 30, 2011, pp. 177-212. 88 Kyrie Gloria in excelsis Deo Sanctus Agnus Dei Exemplo 5. La Rue, “Missa Ave Maria”. Exordium das seções Kyrie, Gloria, Sanctus e Agnus Dei (a 4). Exemplo 6. Cantochão “Ave Maria”, contido no ‘tenor primus’ (cc. 29-38) do “Credo”, único movimento a cinco vozes da “Missa Ave Maria” de La Rue (pp. 97-98) O estilo desta missa de La Rue e daquelas de compositores da terceira geração francoflamenga em diante tem relativa influência do estilo ‘missa tenor’ de gerações precedentes, como a Missa Caput de Ockeghem (Exemplo 7; KOLLER, 1912, p. 59). Seu estilo não imitativo ainda se observa em missas de Ockeghem como sua L’homme armé, apesar do tenor possuir maior variação rítmica. Por outro lado, sua Missa Prolationum apresenta escrita com elaboração métrica, em tempus imperfeito e prolações maior e menor nas vozes do tenor e do discantus, de onde derivam altus e bassus, porém com tempus ‘perfeito’ (IAFELICE, 2016, pp. 95-96). 89 Kyrie Exemplo 7. Ockeghem, Kyrie da “Missa caput”, cc. 1-15. Ao longo de cada seção da missa, divisões internas correspondem a articulações do texto, a exemplo de períodos completos, versos ou mesmo palavras (Cf. Kyrie I da “Missa L’omme armé I” de La Rue, Fig. 28, p. 29, e discussão relacionada), e são definidas estruturalmente por cadências e mudanças métricas. Arranjos em estrutura única para movimentos de missa, como o “Gloria” a 16 (1587) de Andrea Gabrieli, são menos comuns, e apresentam níveis internos de organização. Tal segmentação ocorre, de forma similar, no Gloria da “Missa L’omme armé I” de La Rue, como descrito em texto que precede a Figura 30 (Cf. p. 32). 2.2.2 O Moteto, com foco na obra de Josquin Des Prez Assim como na missa, espera-se que níveis de articulação interna do texto se reflitam no arranjo musical. No caso do moteto isto é mais comum naqueles imitativos e baseados em texto único, como os de Josquin, onde as vozes cantam um texto litúrgico pré-existente sob uma textura homogênea de contraponto. Tais textos litúrgicos pré-existentes consistem em versículos da Bíblia, cânticos, hinos, antífonas e responsórios, mas nunca o ‘próprio’ da missa. Motetos imitativos são comuns desde a primeira geração franco-flamenga, como “Anima mea liquefacta”3 de Dufay, onde o cantochão é parafraseado em todas as vozes. Dufay ainda compõe motetos mesurais e “cantilenas” em contraponto livre, mas em especial motetos 3 Cf. Planchart, A.E. (Ed.), Guillaume Du Fay Opera Omnia. Santa Barbara: Marisol Press, 2011. Disponível em: <http://www.diamm/ac/uk/resources/music-editions/du-fay-opera-omnia>. Acesso em: 20 dez 2016. 90 isorrítmos, com base em mais de um texto latino, sobre um tenor de notas longas (CUMMING, 1999, p. 1). O moteto ‘isorrítmico’ se caracteriza por uma melodia no tenor em talea (uma dada ordenação de durações ou ritmos) e color (repetições da talea, com elaboração métrica ou não). No moteto “Nuper rosarum flores” a quatro vozes, de Dufay (Figura 73), o cantochão “Terribilis est locus iste” é entoado por dois tenores (fol. 71r-71v, parte inferior), segundo diferentes talea (em relação de quinta justa) ao longo de quatro color definidas por prolações (três no fol. 71r e uma no fol. 71v). Já o texto “Nuper rosarum flores” é entoado em contraponto livre pelo motetus e triplum inscritos nos fol. 70v e 71r e continuados no espaço remanescente do fol. 71v. Figura 73. Dufay, “Nuper rosarum flores”. Códice alfa.x.1.11, Choralis liber4, fol. 70v, 71r e 71v. Apesar da repetição das talea em color diversas, os motetos isorrítmicos aparentam possuir uma estrutura de composição contínua, devida às vozes do motetus (aquele que conduz o texto, ou o ‘mote’, acima do tenor) e do triplum (voz acidional, mais aguda) que reproduzem textos extensos. Tais vozes se desenvolvem ao longo de extensas pausas de tenores em “Nuper rosarum flores”, em forma de dueto isolado, decorrentes de um segmento da talea ocupada por pausa. Como será visto adiante, a relação contrapontística nestes duetos isolados geralmente visa uma resolução cadencial de intervalos de sexta para oitava, o que de certo modo controla o âmbito e mesmo o contorno melódico deste dueto. 4 Alfa.X.1.11 (Choralis liber. Ferrara: século XV). Modena: Biblioteca Estense. Disponível em: <http://bibliotecaestense.beniculturali.it/info/img/mus/i-mo-beu-alfa.x.1.11.html>. Acesso em: 20 dez 2016. Cf. Planchart, A.E. (Ed.), idem. Disponível em: idem. Acesso em: 20 dez 2016. 91 O arranjo sobre um determinado texto pode gerar peças em seção única ou múltipla (prima pars, seconda pars, etc.), caso em que observamos ciclos que comportam um texto completo, refletindo inclusive suas articulações na estrutura musical (em semelhança ao que foi observado no caso do Gloria do missal). O moteto “Intemerata dei mater” de Ockeghem5 é um exemplo da segunda geração franco-flamenga, organizado em ciclo com três partes; nesta peça, todas as vozes seguem um mesmo texto sem repetição. Esta estrutura, pouco imitativa e por vezes homofônica, não é compatível com a técnica do isorrítmo, mais característica de motetos politextuais com arranjo em seção única. Seus textos são distribuídos pelas vozes componentes, como em “Magnanimae gentis”6 de Dufay onde um texto diferente é entoado por cada uma de suas três vozes, ou em “Ecclesiae militantis”7 do mesmo autor, onde o mesmo número de textos é distribuído entre cinco vozes. Motetos isorrítmicos ainda são produzidos por compositores da terceira geração francoflamenga: “Domine Dominus noster” a cinco vozes (atribuição duvidosa a Josquin), plenamente isorrítmico, está arranjado em seção única, em concordância com a previsão supracitada; já aqueles a seis vozes, como “Ave nobilissima creatura” e “Huc me sydereo” de Josquin, não só constituem ciclos de duas partes como também não chegam a ser plenamente isorrítmicos. Além do isorrítmo, motetos desta geração são marcados por um caleidoscópio de técnicas como cânone, motto, cantus firmus, duo imitativo, não imitativo, par de duos, pontos de imitação e de homofonia, alteração métrica, inganno e reiteração motífica. Nas tabelas a seguir, motetos são comparados em combinações de vozes e seções; alguns deles foram analisados em contexto pedagógico de graduação do Departamento de Música do Instituto de Artes da UNESP (São Paulo, SP), ao longo do ano de 20168. 5 Cf. edição moderna em: From Van Ockeghem tot Sweelinck, Vol. 1. Amsterdam: Alsbach, 1952, pp. 3-11. Cf. Planchart, A.E. (Ed.), idem. 7 Cf. Planchart, A.E. (Ed.), idem. 8 Disciplina OPT 0127TU – “Polifonia imitativa – repertório, formas e análise” ministrado pelo Prof. Dr. Marcos Pupo Nogueira, acompanhado pelos orientandos Fernando Cardoso e Carlos Iafelice. IA-UNESP, 2016. 6 92 vozes moteto (seção única) aspecto geral técnicas 4 Ave maria… virgo serena9 NJE 23.6 imitativo • abertura em imitação plena • pontos de imitação, de duos imitativos e de homofonia • finis ternário / binário 4 Ecce, tu pulchra est10 NJE 14.6 composição livre 4 Gaude virgo mater Christi11 NJE 24.2 imitativo 4 O bone et dulcis Jesu12† NJE 21.8 não imitativo 4 Salve Regina13† NJE 25.4 canônico e imitativo • bassus e altus: duo imitativo com quebra (M–M’) • canon a 4a alta em stretto deste duo gera tenor e cantus • o pleno resulta em par de duos imitativos (MM–M’M’) 5 Domine Dominus noster14 (Salmo 8) NJE 16.4 motto isorrítmico • abertura: duo em imitação sobre uníssono, com inganno • talea ‘Domine Dominus noster’, proporções 2:3:4:5:6 • pontos de imitação e de homofonia 5 De profundis clamavi15 NJE 15.13 5 Nymphes des bois16 (Requiem) sem NJE 6 Absolve quaesumus17 NJE 26.1 canônico e imitativo • superius e altus 1: fuga subdiapente após duas breves • outras vozes: construções imitativas 6 Pater noster / Ave Maria18 (moteto duplo)19 NJE 20.9 canônico, não imitativo • pontos de homofonia e de imitação livre • Pater noster: cânone à quinta, melodia composta • Ave Maria: cânone em uníssono, cita 1o verso do CF 8 Tulerunt Dominum meum20 NJE 14.7 Híbrido • abertura não imitativa • pontos de homofonia e de imitação em duo • abertura: par de duos em stretto imitativo em uníssono • finis ternário / binário / ternário / binário • abertura: duo não imitativo sobre tenores • tenores: canti firmi ‘Ave Maria’ e ‘Pater noster’ • tenor e primus contratenor são canônicos ao superius canônico e • intervalo de duas breves entre as vozes canônicas semi-imitativo • outras vozes interagem entre si e com o cânone • não imitativo no geral; poucos pontos de imitação cantus firmus, • tenor ‘Requiem aeternam…’ até ‘…perpetua luceat eis’ não imitativo • homofonia nas seções tacet e ‘Requiescat’ do tenor • Contrafactum de “Je prens congie de mes amours” (a 8) • abertura em par de duos mais um trio, imitativos • medius: segmentos bitextuais; finis: reiteração motífica Tabela 15. Motetos de Josquin em seção única, a vozes diversas, e as principais técnicas de composição. ‡ atribuição duvidosa; † peças analisadas em disciplina sobre polifonia no IA-UNESP, 2016. NJE = numeração do moteto no compêndio New Josquin Edition (Koninklijke Vereniging Voor Nederlandse Muziekgeschiedenis) 9 A. Smijers (ed.). Werken van Josquin des Prés, Motets I, Vol. 2. Amsterdam: Alsbach, 1922, no. 2. Josquin des Prés, “Vier Motetten zu 4 und 6 stimmen”. Em: F. Blume (ed.), Das Chorwerk, vol. 18. Wolfenbüttel: Möseler, 1932, pp. 4-7. 11 A. Smijers (ed.). Werken van Josquin des Prés, Motets IV, Vol. 7. Amsterdam: Alsbach, 1924, no. 23. 12 A. Smijers (ed.). Werken van Josquin des Prés, Motets III, Vol. 6. Amsterdam: Alsbach, 1924, no. 18. 13 W. Elders (ed.). Werken van Josquin des Prés, Motets XXV, Vol. 52. Amsterdam: Vereniging voor Nederlandse Muziekgeschiedenis, 1964, no. 95. 14 Josquin des Prés, “Zwein Psalmen zu 4 und 5 stimmen”. Em: H. Osthoff (ed.), Das Chorwerk, vol. 64. Wolfenbüttel: Möseler, 1957, pp. 1-11. 15 Josquin des Prés, “Drei Psalmen zu 4 – 6 stimmen”. Em: F. Blume e K. Gudewill (ed.), Das Chorwerk, vol. 57. Wolfenbüttel: Möseler, 1955, pp. 26-32. 16 A. Smijers (ed.). Werken van Josquin des Prés, Motets V, Vol. 9. Leipzig: Siegel, 1925, no. 29. 17 W. Elders (ed.). Werken van Josquin des Prés, Motets XXIII, Vol. 49. Amsterdam: Vereniging voor Nederlandse Muziekgeschiedenis, 1961, no. 82. 18 A. Smijers (ed.). Werken van Josquin des Prés, Motets XII, Vol. 36. Amsterdam: Alsbach, 1954 (b), no. 50. 19 como em D-Mbs Mus.pr. 9606 (fol. B2v), D-Mbs Mus.ms.863, D-Mbs Mus.ms.12 (pp. 20v-31r), RISM 1547/22 (GB-Lbl K.1.c.13, Intabolatura de lauto de Francesco da Milano, libro segondo), RISM 1547/22 (intabolatura Gintzler), 1547/23 (Des chansons & motets reduits en tablature de lut, Phalese). Imagem disponível de D-Mbs Mus.ms.12 em: stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00079112 20 Josquin des Prés, “Drei Evangelien-Motetten zu 4, 6 und 8 stimmen”. Em: F. Blume (ed.), Das Chorwerk, vol. 23. Wolfenbüttel: Möseler, 1933, pp. 1-11. 10 93 vozes moteto (duas seções) aspecto geral 21 4 Alma redemptoris mater NJE 23.1 4 Ave Christe immolate22† NJE 21.1 (Bauldeweyn) Imitativo • abertura em par de duos em stretto imitativo à 5a bassa • pontos de imitação, de duos imitativos e de homofonia • finis ternário / binário / ternário / binário (seconda pars) 4 Dominus regnavit23† NJE 17.1 (Salmo 92) Imitativo • abertura em par de duos em stretto imitativo à 5a bassa • pontos de imitação 4 imitativo e canônico técnicas • altus/tenor: cânone em uníssono após duas breves • duos imitativos com quebra De profundis24† (Salmo 129) Imitativo com • par de duos imitativos com quebra • textura imitativa estrita, com contraponto complementar quebra NJE 15.11 (Champion) • pouco desenvolvimento de imitação livre 4 Domine ne in furore tuo25† (Salmo 37) NJE 16.6 Imitativo • apenas alguns versos são arranjados: 2-4, 7, 11, 22 e 23 • frases melódicas correspondem à unidades gramaticais • par de duos imitativos, seções de imitação livre e estrita 5 Homo quidam fecit coenam26 NJE 19.4 Imitativo • cânone entre contratenor primus e tenor em uníssono • intervalo de breve (prima pars) ou longa (seconda pars) • outras vozes realizam imitações livres 5 Illibata Dei virgo nutrix27 NJE 24.3 • duos e pares de duos imitativos em formações diversas imitativo, motto • tenor: motto ‘la-mi-la’ em proporção fixa na prima pars • aparte as pausas, proporção global do motto é 6:2:1 mensural • O texto tem a assinatura acróstica de Josquin 5 Stabat Mater dolorosa28 NJE 25.8 • tenor parodia “Comme femme desconfortée” (Binchois) não imitativo, • contraponto livre sobre tenor sobre tenor • entradas não imitativas, ponto de homofonia e 6 Ave nobilissima criatura29 NJE 23.11 imitativo, mensural • • • • par de duos canônicos (in subdiapente) contra voz livre seções não imitativas, de imitação livre e de homofonia isorrítmico em relação às pausas na proporção 3:2:1 díptico com “Huc me sydereo” 6 Huc me sydereo30 NJE 21.5 imitativo, mensural • • • • entradas imitativas exceto sextus ‘si placet’ o sextus quase certamente não foi criado por Josquin cantus prius factus ‘Plangent eum quase unigenitum’ talea em proporção aproximada de 6:2:1 6 O virgo virginum31 NJE 24.11 híbrido • textura híbrida, ora imitativa, ora contrapontística • organização em trios (fabordão em ‘filie Jerusalem’) • métrica ternária / binária no finis da seconda pars 6 Praeter rerum seriem32 NJE 24.12 híbrido • cantus firmus parcialmente canônico (tenor / superius) • pares de trios não imitativos compõe a textura • 1a pars: ternário; 2a pars: binário / ternário / binário Tabela 16. Motetos de Josquin em duas seções, a vozes diversas, e as principais técnicas de composição. ‡ atribuição duvidosa; † peças analisadas em disciplina sobre polifonia no IA-UNESP, 2016. NJE = numeração do moteto no compêndio New Josquin Edition (Koninklijke Vereniging Voor Nederlandse Muziekgeschiedenis) 21 A. Smijers (ed.). Werken van Josquin des Prés, Motets VIII, Vol. 21. Leipzig: Kistner & Siegel, 1942, no. 38. Josquin des Prés, op. cit., 1932, pp. 8-15. 23 Josquin des Prés, “Drei psalmen zu 4 stimmen”. Em: Friedrich Blume (ed.), Das Chorwerk, vol. 33. Wolfenbüttel: Möseler, 1935, pp. 4-10. 24 Josquin des Prés, ibidem, 1935, pp. 10-16 25 Josquin des Prés, ibidem, 1935, pp. 17-24 26 A. Smijers (ed.). op. cit. 1925, no. 28. 27 A. Smijers (ed.). ibidem, 1925, no. 27. 28 A. Smijers (ed.). op. cit., 1942, no. 36. 29 A. Smijers (ed.). Werken van Josquin des Prés, Motets VII, Vol. 18. Leipzig: Kistner & Siegel, 1938, no. 34. 30 A. Smijers (ed.). op. cit., 1936, no. 30. 31 Josquin des Prés, op. cit., 1955, pp. 11-25. 32 A. Smijers (ed.). op. cit., 1938, no. 33. 22 94 vozes moteto (três seções) aspecto geral Técnicas a a • 1 e 2 pars: duo não imitativo (bicinium) seguido de sua repetição com a adição de uma 3a voz (tricinium) • 3a pars: apenas o tricinium, em contraponto livre 3 Ave verum corpus33‡ NJE 21.2 tricinium 4 Domine, exaudi orationem34 NJE 16.5 (Salmo 142) híbrido • abertura em par imitativo seguido de par não imitativo • 2a e 3a pars com abertura não imitativa • pontos de homofonia e de imitação em menor extensão 4 In principio erat verbum35 NJE 19.8 híbrido • par de duos imitativos com quebra; reiteração motívica • pontos de homofonia e de imitação • contraste de duos não imitativos e plenos homofônicos 5 Salve regina36† NJE 25.4 não imitativo sobre motto • abertura mista, imitativa e não imitativa • motto continuo na quinta vox, repetindo o cantus firmus • reiteração de motivos diversos: função textural 5 Miserere mei, Deus37 NJE 18.3 (Salmo 50) imitativo sobre motto • abertura em par de duos com imitação à 5a bassa • motto continuo no tenor 1, repetindo o cantus firmus • pontos de imitação, homofonia e duos imitativos ou não 5 Inviolata integra et casta38 NJE 24.4 cantus firmus canônico 6 Benedicta es coelorum39 NJE 23.13 (2a pars, 2 vozes) híbrido 6 Responsum accepit40‡ NJE 20.11 (2a pars, 3 vozes) canônico e imitativo • 1a e 2a pars: fuga in epidiapente após três breves • 3a pars: fuga in epidiapente após uma breve • imitação livre • • • • tenor e superius: fuga in uníssono quase estrita pontos de imitação e de homofonia 1a pars: pares não-imitativos de vozes livres com a fuga 2a pars: bicinium típico; 3a pars: imitação livre • altus e tenor: fuga in epi- ou subdiapente (1a ou 3a pars) • 1a pars: par de duos imitativos com quebra • 2a pars e 3a pars: imitação livre Tabela 17. Motetos de Josquin em três seções, a vozes diversas, e as principais técnicas de composição. ‡ atribuição duvidosa; † peças analisadas em disciplina sobre polifonia no IA-UNESP, 2016. NJE = numeração do moteto no compêndio New Josquin Edition (Koninklijke Vereniging Voor Nederlandse Muziekgeschiedenis) Todas estas peças (com exceção de “Nymphes des bois”) são editadas criticamente na New Josquin Edition, compêndio atualizado da obra de Josquin. Na indisponibilidade de acesso a esta obra, a análise preliminar destas peças baseou-se em fontes primárias online, disponíveis em acervos de bibliotecas estrangeiras, e em edições críticas, como os itens citados do compêndio Das Choirwerk, disponíveis em repositórios como IMSLP (International Music Score Library Project) e CPDL (Choral Public Domain Library), bem como outras edições modernas. A referência do primeiro compêndio de obras completas de Josquin, o monumental Werken van Josquin des Prés, foi utilizada em casos onde seria a mais representativa das fontes. 33 A. Smijers (ed.). Werken van Josquin des Prés, Motets II, Vol. 4. Amsterdam: Alsbach, 1923, no. 12. Josquin des Prés, op. cit., 1957, pp. 12-32. 35 A. Smijers (ed.). Werken van Josquin des Prés, Motets XIV, Vol. 38. Amsterdam: Alsbach, 1954(b), no. 56. 36 A. Smijers (ed.). Werken van Josquin des Prés, Motets XI, Vol. 35. Amsterdam: Alsbach, 1954(a), no. 48. 37 G. Schirmers Collection of Oratorios and Cantatas – Miserere mei Deus – Josquin de Près. Nova Iorque: G. Schirmers, 1898, p. 1-39. 38 Commer, F. (ed.). Josquin Deprès…Eine Sammlung ausgewählter kompositionen zu 4, 5 und 6 Stimmen. Berlin: Leo Liepmannssohn, 1877, pp. 46-56 39 A. Smijers (ed.). op. cit., 1954(a), no. 46. 40 Josquin des Prés, op. cit., 1933, pp. 12-21 34 95 Uma das abordagens mais significativas na análise e avaliação da obra de Josquin é desenvolvida por Milson, que determina um núcleo central de peças a cinco e seis vozes que delineiam importantes características do compositor (2000, p. 290). A observação das tabelas aqui elaboradas visa, contudo, explorar possíveis relações entre texto utilizado, técnica composicional e tipo de arranjo, partindo da premissa do texto como sugestivo da forma, em gradação variável ao se comparar os vários tipos de arranjo; tal aspecto pode servir como parâmetro na determinação de um modelo comparativo para com os ricercares imitativos de Willaert. Uma observação preliminar das Tabelas 15 a 17 revela um aspecto estrutural que polariza o conjunto, distinguindo peças construídas ou não sobre material pré-elaborado – cantus firmus, cantus prius factus, motto ou paráfrase – como mostrado na Tabela 18. Texto de base moteto seções vozes técnica predominante Velho Testamento canticum canticorum Ecce, tu pulchra est 1 4 composição livre, híbrida salmo 129 De profundis clamavi 1 5 cânone / imitação com quebra salmo 8 Domine Dominus noster 1 5 motto isorrítmico salmo 92 Dominus regnavit 2 4 imitativo salmo 129 De profundis clamavi 2 4 imitativo com quebra salmo 6 Domine, ne in furore tuo 2 4 imitativo salmo 142 Domine, exaudi orationem 3 4 imitativo / não imitativo salmo 50 Miserere mei, Deus 3 5 motto mensural / imitativo Novo Testamento orações Pater noster / Ave Maria 1 6 paráfrase canônica, híbrido responsório de casamento Homo quidam fecit 2 5 imitativo eucaristia In principio erat verbum 3 4 imitativo / não imitativo Devoção a Jesus Christo pai nosso (ord.) / ave maria O bone et dulcis Jesu 1 4 cantus firmus, híbrido texto humanístico Huc me sydereo 2 6 motto mensural, imitativo texto eucarístico Ave verum corpus 3 3 paráfrase, tricinium Devoção a Virgem Maria grande antífona mariana Salve regina 1 4 cantus firmus/canon imitativo livro das horas Ave maria… virgo serena 1 4 imitativo livro das horas 1 4 imitativo Gaude virgo grande antífona mariana Alma redemptoris mater 2 4 imitativo e canônico Livro das horas, acróstico Illibata Dei virgo nutrix 2 5 motto mensural, imitativo antífona/sequência alterada Stabat Mater dolorosa 2 5 cantus prius factus, não imit. antífona/sequência gregoriana Praeter rerum seriem 2 6 cantus firmus, hibrido livro das horas Ave nobilissima criatura 2 6 motto mensural, imitativo antífona devocional O virgo virginum 2 6 imitativo / não imitativo antífona da concepção Inviolata integra et casta 3 5 cantus firmus canônico grande antífona mariana Salve regina 3 5 motto, cantus firmus não imit. antífona Benedicta es coelorum 3 6 imitativo / não imitativo Texto não bíblico Inspirado no requiem Nymphes des bois 1 5 cantus prius factus, não imit. Inspirado no requiem Absolve quaesumus 1 6 cantus prius factus, canônico Não incluso na NJE FORA Ave Christe immolate 2 4 imitativo FORA Responsum accepit 3 6 canônico e imitativo Tabela 18. Motetos de Josquin reunidos por tipo de texto. Fileiras sombreadas distinguem ainda composições em motto de outras compostas sobre material pré-elaborado (cantus firmus, cantus prius factus, motto ou paráfrase). 96 2.3. Técnicas de composição 2.3.1. Composição sobre melodia conhecida Oriundas da utilização de melodias tradicionais como o cantochão, as técnicas mais comuns nesta categoria são cantus firmus, cantus prius factus, paráfrase e motto. A melodia produzida pode ainda estar associada a outras técnicas, como cânone ou imitação (restrita ou com quebra), elaboração métrica (isorrítmo ou aumentação/diminuição), ou contraponto não imitativo ou homofônico. A seguir, cada uma das técnicas é descrita e exemplificada. Cantus firmus. Caracteriza-se pela utilização integral de uma melodia tradicional, mais comumente um cantochão. Entre as peças selecionadas, Josquin utiliza a técnica em “O bone et dulcis Jesu”, “Salve regina” a 4, “Praeter rerum seriem” e “Inviolata integra et casta”. Destas, “Salve regina” e “Inviolata...” são exploradas canonicamente, emquanto “Praeter rerum seriem” tem construção parcialmente canônica; já “O bone et dulcis Jesu”, elaborado sobre os canti firmi ‘Pater noster’ e ‘Ave Maria’, desenvolve suas vozes complementares em contraponto livre, lembrando o padrão não imitativo da geração anterior, apesar de não ser isorrítmico. Cantus prius factus. Trata-se de uma melodia de empréstimo, sacra ou secular, ‘já composta’ como o próprio nome diz, como a “Stabat mater” de Josquin, acomodada sobre a sequência medieval “Comme femme desconfortée” de Binchois (Mellon chansonnier), com durações estendidas em ordem ‘superlativa’, ou seja, o quádruplo do original (ELDERS, 2013, pp. 173-174); outros exemplos de cantus prius factus são “Huc me sydereo”, “Ave nobilissima creatura”, “Nymphes des bois” e “Absolve quaesumus”. Paráfrase. Esta técnica implica no uso de uma melodia tradicional manipulada para fins composicionais, como em “Ave verum corpus”, baseada em tropo da missa em cantochão “De angelis”, e no moteto duplo “Pater noster / Ave Maria”, onde Josquin altera tanto o tom de recitação litúrgico ‘Pater noster’ quanto a antífona ‘Ave Maria’, adequando-os a cânones à quinta e ao uníssono, respectivamente em cada parte (ELDERS, 2013, pp. 154-156). Motto. Composições baseadas nesta técnica representam um extremo da dicotomia estilística de Josquin e ocorrem em arranjos preferencialmente a cinco e seis vozes nesta seleção. A técnica, herdada do isorritmo de gerações prévias, parte de um fragmento melódico em notas longas que se repete sistematicamente, podendo ainda ser submetido a procedimentos de transposição e/ou aumentação/diminuição. Em “Salve regina” a 5, o motto ‘salve’ no tenor primus é transposto por solmização de la-sol-la-re em cantus mollis e naturalis precedidos por pausas, soando g-f-g-c / d-c-d-G no modo dório transposto deste moteto (Figura 74). Elders 97 (2013, p. 70) avalia que “o moteto todo é impregnado com a melodia Gregoriana, ouvida principalmente no superius, mas também de forma fragmentada em outras vozes”. (a) (b) (c) Figura 74. Josquin, “Salve regina” a 5. Petrus Alamire, MS Mus. Ms. 34. (a) prima pars, fol. 1v; (b) seconda pars, fol. 4v; (c) tertia pars, fol. 5v41. Elders (2013, pp. 85-86) ainda aponta uma série de evidências para uma estruturação simbólica de “Salve regina” a 5, como o motto de quatro notas que, somado às três pausas prévias, gera o número mariano 7, ou as vinte e quatro ocorrências do motto ‘Salve’, doze na prima pars e mais doze nas outras duas partes, o que seria uma clara referência à Mulher do Apocalipse (do livro das revelações), com sua coroa de doze estrelas. Já em “Miserere mei, Deus” o padrão de transposição é mais complexo, ocorrendo per gradus em formas descendente, ascendente, e descendente, respectivamente em suas partes prima, seconda e tertia, como mostrado na Figura 82. O número total de ocorrências do motto é de vinte e uma (oito na prima pars, oito na seconda pars e cinco na tertia pars), duas a mais que o número de versos do respectivo salmo; contudo, o número de motti se equaliza ao de versos pela adição de um motto extra para os versos 1 e 13 (Elders, 2013, pp. 87-88). Sua seconda pars também faz uso do procedimento de diminuição, adotando o valor de mínima pontuada na primeira nota, metade do valor adotado nas partes prima e tertia, a semibreve pontuada; contudo, a proporcionalidade não é plena, visto os valores variáveis das pausas que intercalam os motivos melódicos (Figura 75). 41 MS Mus. Ms. 34 (“29 motets”. Munique: c. 1525). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <hppt://daten.digitale-sammlungen.de/~db/0007/bsb00079119/images/>. Acesso em: 27 dez 2016. 98 (a) (b) (c) Figura 75. Josquin, “Miserere mei, Deus”, tenor secundus. O. Petrucci, Motetti de la Corona. Libro tertio, fol. 94r (a), 95r (b), 96r (c)42. Outro moteto que faz uso de ambas as técnicas é “Illibata dei virgo nutrix”, cujo motto se repete no tenor pela solmização la-mi-la (desta vez literal) em cantus naturalis e mollis, intercalados por pausas, e transpostos segundo o modo hipodório. O motto ocorre isorritmicamente em cada uma das partes, mas no geral ocorre desproporção entre prima e seconda pars. Na prima pars, o isorrítmo se estrutura em tempus perfectum cum prolatione imperfecta (ternário), sendo constituído apenas por longas (seis pausas43 + três notas), durante três ocorrências do motto (Figura 76a). Já na seconda pars, o isorrítmo (três pausas + três notas) 42 K.1.d.15 (Motetti de la corona. Libro tertio. Fossombrone: O. Petrucci, 1519. Londres: British Lybrary. Disponível em: <https://repository/royalholloway.ac.uk/items/9995d2fc-7116-2e73-1718-f8f35aa2e24c/1/>. Acesso em: 27 dez 2016. 43 Vale lembrar que cada longa é constituída por três breves, nesta mensura; portanto, dezoito pausas de breves correspondem a seis pausas de longa. 99 é mensural, ocorrendo inicialmente sob tempus imperfectum diminuite cum prolatione imperfecta (binário) em proporções de breve e semibreve (Figura 76b); retorna, a seguir, em fórmula ternária, porém diminuído à figura de semibreve, e por fim novamente em breve, sob mensuração binária (Figura 76c). (a) (b) (c) Figura 76. Josquin, “Illibata dei virgo nutrix”, tenor. MS Capp. Sist. 15. (a) prima pars, fol. 246v e 247v (agrupados por edição de imagem); (b-c) seconda pars, fol. 248v e 249v, respectivamente44. Alteração duracional também é uma das características que marca o par de motetos “Huc me sydereo” e “Ave nobilissima creatura”, explorados na literatura exaustivamente nas análises de Carl Dahlhaus e Ruth DeFord. Dahlhaus (1990, p. 264) afirma que: “… ambos são baseados no mesmo cantus firmus. A antífona ‘Plangent eum’ dada no tenor de ‘Huc me sydereo’ é melodicamente idêntica à antífona ‘Benedicta tu in mulieribus’, que forma o cantus firmus de ‘Ave nobilissima creatura’. E a técnica de realização mensural das antífonas – como descrita por Rolf Dammann como uma ‘forma tardia do moteto isorrítmico’ – é a mesma em ambos os motetos”. Dahlhaus descreve em detalhe as relações métricas dos motti nestes motetos, mostrando que suas proporções não são, de fato, isorrítmicas, como julga Rolf Damann (DAHLHAUS, 44 MS Capp. Sist. 15 (fol. 246v-250r. Roma: c. 1495-1500). Vaticano: Biblioteca Apostólica. Disponível em: <http://digi.vatlib.it/view/MSS_Capp.Sist.15>. Acesso em 27 dez 2016. Cf. também SA.77.C.22/1-3 (Motetti a cinque. Libro primo, fol. 4v-5r. Veneza: O. Petrucci, 1508). Viena: Österreichische Nationalbibliothek. Disponível em: <http://data.onb.ac.at/rec/AC09197672>. Acesso em 27 dez 2016. 100 idem). Ruth DeFord concorda com a natureza comum do par de motetos, mas salienta seu caráter antagônico, sendo “Ave nobilissima criatura” um moteto da anunciação e “Huc me sydereo” um moteto da Paixão, observando também que “... ambos os motetos apresentam o cantus firmus três vezes na voz do tenor, uma na prima pars e duas vezes na seconda pars.” (DeFord, 2015, p. 304), como evidente no motto de “Plangent eum”, no tenor de “Huc me sydereo” (Figura 77). O longo motto coincide com fontes do cantochão como na Figura 78. Figura 77. Tenor de Huc me sydereo, conduzindo o cantochão Plangent eum45. Figura 78. Cantochão Plangent eum, antifonário da biblioteca de Klosterneuburg46. Ao grupo de motetos com motto a cinco e seis vozes pode-se adicionar “Domine, dominus noster” a cinco vozes, cujo motto estrito e em única seção faz dele o único moteto isorrítmico autêntico nesta seleção. Aqui, Josquin explora uma perspectiva simbólica, como patente na rubrica ‘crescite et multiplicamini’, adicionada exclusivamente ao moteto “Domine, dominus noster” na coleção Psalmorum selectorum… Liber primus (Nuremberg, 1553), e que segundo Elders (2013, pp. 135-136) “… revela o profundo sentido da construção musical, a criação de Deus sobre toda a Terra”, referindo-se ao processo de aumentação sucessiva de seu motto. 45 4 Mus.pr. 177(Secvndvs tomvs novi operis mvsici, sex, qvinqve et qvatvor vocvm. Nuremberg: Hans Ott.,1538). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitalesammlungen.de/view?id=bsb00074420>. Acesso em: 27 dez 2016. 46 A-KN 1011 (Antifonário. Klosterneuburg: séc. XIV). Klosterneuburg, Augustiner-Chorherrenstift Bibliothek. Disponível em: <http://www.ksbm.oeaw.ac.at/images/AT/5000/AT5000-1011/AT5000-1011_228v.jpg>. Acesso em: 27 dez 2016. 101 2.3.2. Composição sobre melodia concebida livremente Apesar das técnicas a seguir relacionadas também serem aplicáveis às melodias conhecidas, observa-se uma relação mais estreita do processo de perseguição por imitação e contraponto não imitativo (ou homofônico) quando aplicados a melodias concebidas livremente, ou ainda melhor, concebidas especificamente para tal fim. O que de fato não costuma se observar nestas peças são os procedimentos de elaboração métrica, mais próprios das melodias já compostas. As técnicas de imitação (entre as quais o cânone), antes praticadas no âmbito do treinamento elementar de composição, foram elevadas a um patamar de erudição tão sofisticado por compositores da geração de Josquin que tornam-se prediletas no planejamento de suas obras. Elas correpondem ao outro extremo da dicotomia técnica de Josquin, e são recorrentes em peças a quatro vozes do compositor. No caso das peças de Josquin selecionadas neste capítulo (ver Tabelas 15-18), aquelas a quatro vozes sobre os salmos do Velho Testamento parecem formar um grupo mais definido, incluindo “De profundis clamavi” (a 4), “Dominus regnavit”, “Domine, ne in furore tuo” e “Domine, exaudi orationem”, enquanto um percentual secundário é relacionado com antífonas marianas, representado por “Ave maria… virgo serena”, “Gaude virgo” e “Alma redemptoris mater”. Somam-se ainda as peças também a quatro vozes “In principio erat verbum” (Novo Testamento) e “Ave Christe immolate” (não inclusa na NJE). Contudo, as únicas peças deste grupo que se estruturam em seção única são “Ave maria… virgo serena” e “Gaude virgo”, ambas com texto baseado no livro das horas e dependentes apenas de procedimentos de imitação em suas construções, modelo este que se aproxima bastante daquele de ricercares de Willaert a quatro vozes. Outras peças do grupo que se constituem em duas seções e se utilizam de imitação são “Dominus regnavit”, “Domine, ne in furore tuo” e “Ave Christe immolate”. As peças de imitação simples são representativas da técnica de “imitação sintática”, onde a música mimetiza as articulações do texto como sendo suas próprias. Já as peças a cinco ou seis vozes tendem a apresentar padrões não imitativos, resultantes de seu papel complementar no contraponto acessório aos pares de duos imitativos que são a base de caracterização deste grupo. Entre elas figuram: “De profundis clamavi” (a 5, seção única), “Homo quidam fecit” (a 5, duas seções), “O virgo virginum” (a 6, duas seções), “Benedicta es coelorum” e “Responsum accepit” (ambas a 6, três seções). A seguir, algumas particularidades das técnicas de imitação são apresentadas. 102 Par de duos imitativos. Dentre as técnicas mais exploradas, o par de duos imitativos é a mais característica de obras produzidas no século XVI. A primeira voz, o dux, apresenta os elementos que serão transplantados na nova melodia, o comes; a distância entre eles em geral não é grande, variando de uma a três breves. Este primeiro duo sofre então imitação do próprio conjunto em outras duas vozes remanescentes, com uma distância maior entre os dux, a tempo do primeiro duo se estabelecer contrapontisticamente. Cânone. Esta técnica é recorrente na obra de Josquin. Além dos motetos canônicos de forte perfil imitativo mencionados na Tabela 18, outros procedimentos aliados ao cânone são encontrados nas peças “De profundis clamavi” e “Inviolata integra et casta”, ambas a cinco vozes. Na primeira, o cânone é sugerido pela inscrição “Les trois estas sont assembles / pour le soulas des trespasses”47 (Os três estão reunidos / para consolar aqueles que se foram) sobre a voz do superius (Figura 79), em clave de dó na primeira linha (ou apenas C1). Duas outras melodias, distintas por quebra de imitação, se apresentam no bassus em clave F4 e no secundus contratenor em clave C4 (Exemplo 8)48. As imitações canônicas são resolvidas sucessivamente ad longam (segundo os signae congruentiae na melodia principal) em subdiapason (tenor em clave F3) e subdiapente (primus contratenor em clave C3), obedientes ao contraponto. Figura 79. Josquin, “De profundis clamavi” (a 5), superius, inscrição canônica. MS Capp. Sist. 38, fol. 106v. Exemplo 8. Josquin, “De profundis clamavi” (a 5). Das Chorwerk, vol. 57, 1955, pp. 26. 47 Cf. inscrição canônica em: MS Capp. Sist. 38. Itália: J. Parvus, c.1550-63. Vaticano: Biblioteca Apostolica. Disponível em: <http://digi.vatlib.it/view/MSS_Capp.Sist.38>. Acesso em 20 dez 2016. 48 Josquin des Prés, op. cit., 1955, pp. 26-32. 103 O moteto simples é aquele que mais se assemelha à estrutura do ricercare; seu modelo de escrita é contínuo, com motivos contrastantes para cada subseção do texto, enaltecendo o efeito semântico de suas frases. Assim, cada início de frase corresponde a um ponto de imitação na polifonia, a passagem entre diferentes frases ocorrendo com ou sem imbricação de texto; no segundo caso, a articulação sonora é brusca e pode refletir mudança de discurso ou de narrador para orador, em uma articulação da sentença. A semelhança estrutural deste aspecto no ricercare – que mesmo desprovido de texto também é estruturado em seções articuladas e contrastantes – será ilustrada ao longo deste trabalho, assim como as particularidades relativas ao papel das cadências nas articulações intra e intersecionais. 104 2.4 Cadências Teóricos antigos como Zarlino, Dressler, Pontio, Aron e muitos outros desenvolveram estudos sobre cadências para fins de treinamento composicional. Eles produziram uma terminologia variada que foi criticamente compilada pelo musicólogo Bernhard Meier (1988, pp.89-122) visando estabelecer relações subsequentes com textura e análise. Tal conceituação foi generalizada em um um modelo a quatro vozes conhecido como a voce piena, e que inclui movimentos melódicos estereotípicos para vozes individuais, identificadas em vermelho, como descrito nos Exemplos 9 a 12. Exemplo 9. Cantizans, com a sensível sincopada Exemplo 10. Altizans, geralmente sustentando o quinto grau Exemplo 11. Tenorizans, sempre descendo um grau para a finalis Exemplo 12. Basizans, que alcança a finalis por salto descendente ou ascendente A interação entre cantizans e tenorizans é responsável por uma resolução de sexta maior em direção a uma oitava, o que consiste em um nível de referência primário que pode ser camado de “cadência C/T” (Exemplo 13, considerando apenas as notas em vermelho). 105 Dependendo do modo em questão, é neessário adicionar ficta em um destes movimentos para que se garanta o intervalo de sexta maior; quando isso acontece no cantizans, como no Exemplo 13, em modo hipodório transposto, isto é chamado de clausula vera. De acordo com Dressler, enquanto isto representa uma cadência semi-perfeita, uma cadência perfeita é formada quando o baixo é considerado, promovendo-o para um segundo nível referencial (Exemplo 14). Tal conjunto pode ser ainda promovido a uma cadêcia plena se o altizans for presente e complete na cadência, representando nosso terceiro nível referencial (Exemplo 15). Exemplo 13. Clausula vera, semiperfeita Exemplo 14. Cadência perfeita Exemplo 15. Cadência plena A inflexão ficta pode também ser adicionada ao tenorizans, fornecendo uma clausula frigia (Exemplo 16). Tal cadência não pode adotar um padrão perfeito, sendo restrita à cadência semi-perfeita, mesmo se o altizans for considerado (Exemplo 17). Vale lembrar que sem uma sexta maior (ou seja, sem nenhuma inflexão ficta) não haveria nenhuma sensível na cadência em ré, rebaixando-a a uma clausula doria. A coordenação entre clausula frigia e vera em articulações da estrutura musical podem formar uma cadência escalonada, o que consiste em um quarto nível de referência. Uma condição única para isto é haver uma nota comum compartilhada pelos dois processos (Exemplo 18). Qualquer pertubação nos níveis de referência provoca a fugacidade de sua percepção, na medida em que a cadência torna-se menos perene. Por exemplo, cadências ornamentadas são geralmente constituídas por um movimento cantizans diminuta (Exemplo 19), enquanto uma cadência incompleta depende de um desvio melódico em um movimento tenorizans, ou interrupção por pausa no mesmo. Quando isto acontece com o basizans ou mesmo com o altizans, esta cadência é chamada de fuggita (Exemplo 20). A inversão da cadência C/T também altera a sua percepção; ela permanece perene, mas não estereotípica (Exemplo 21). 106 Exemplo 16. Clausula frigia Exemplo 17. Cadência semiperfeita (sem ficta, clausula doria) Exemplo 18. Cadência escalonada Exemplo 19. Cantizans diminuta Exemplo 20. Todas as possibilidades de perturbação Exemplo 21. Inversão da cadência C/T Já o ranking cadencial depende do tipo de modo em que foi composta a peça. No caso do modo hipodório, transposto por padrão para Sol menor, tipos cadenciais são selecionados por especificidade a tons de resolução de acordo com teóricos antigos, indo da finalis em G para tons menos importantes como D e B♭, neste caso; elas poderiam ser chamadas de clausula primera, segunda e intermedia de acordo com Montanos. Cadências em C ou F são menos importantes para Pontio e Dressler, enquanto que cadências frígia e plagal são raramente incluídas nos rankings, apesar de serem tratadas por Zarlino, Burmeister e outros (MEIER, 1988, 105-116). 107 2.5 Convenções polifônicas para inflexão cromática Ao longo da idade média e do renascimento, convenções de inflexão cromática diversas em natureza, aplicação e concordância são ocorrentes em textos originais ou debates críticos, não sendo poucas as querelas entre teóricos registradas em cartas e tratados (BERGER, 1984, 415). Uma compilação de convenções (ROUTLEY, 1984, pg. 60) é sumarizada na Tabela 19. Dentre as convenções, causa pulchritudines relaciona-se à estrutura contrapontística e polifônica da composição, em especial às cadências (termo que ocorre como cadentia ou clausula, em tratados antigos) cuja tipologia, já constatada segundo MEIER (1988, pg. 89-101), pode ser aprimorada pelas definições de CASTILHO (2010, pg. 1-16). Segundo a autora, ‘cláusulas melódicas’ podem ser classificadas por fórmulas estereotípicas de movimento por graus: cantizans (I-VII-I), altizans (IV-V), tenorizans (II-I) e basizans (V-I). A relação entre duas destas vozes, cantizans e tenorizans, seria o ponto de partido histórico para as classificações. Alterações nestes quatro movimentos (por nota ou por pausa) podem ser categorizadas como cadência fuggita, em semelhança ao padrão adotado por Meier. Já as cláusulas polifônicas estruturam-se em arquiteturas discretas: cláusula simplex ocorre sem suspensão no movimento de sexta para oitava; quasi simplex (quasi sp) apresenta a clausula cantizans diluída em um movimento melódico. A cláusula formales, por sua vez, requer três elementos em sua componente cantizans, o primeiro gerando uma suspensão (em sétima com o tenorizans) que antecipa o intervalo de sexta envolvido na resolução; a clausula diminuta seria um padrão ornamentado por diminuição. A resolução de sexta para oitava, principal finalidade da cadência, também segue uma tipologia baseada em sua ocorrência histórica: a cláusula vera é aquela onde o sustentatio eleva em meio tom o sétimo grau, garantindo a resolução por sexta maior, e a cláusula frígia o contrário, ao diminuir em meio tom o segundo grau (cláusula remissa). Suas ocorrências têm ligação direta com as inflexões ficta e recta. O envolvimento de uma voz grave em adição à cláusula vera realizando o movimento basizans V-I a caracteriza ainda como cláusula perfeita; sem o movimento basizans, as cláusulas são semiperfeitas49 (MEIER, 1988, pp. 93-94). A cláusula plagal, representada pelo movimento IV-I do bassus e com menor compromisso com fórmulas melódicas, não propicia a dedução, por si só. 49 Dressler, Gallus. “Aliquot Psalmi latini et germanici…”. Heilbronn, Gymnasial-bibliothek. MS, 1560. 108 Convenções gerais para inflexão cromática Solmização Estabelece relações entre notas e sílabas do hexacorde compatível com um dado segmento melódico. A solmização de hexacordes pode influenciar o deductio em vozes concorrentes. Mutação Permite o trânsito entre hexacordes (ficta inclusive) desde que em coerência com as vozes concorrentes. Ocorre em nota comum a dois hexacordes (evitando mi sobre fa), em passagens com âmbito para além de seis notas ou quando há inflexão recta regendo a mutação entre hexacordes molle e durum. Saltos maiores que a sexta não exibem nota comum e a escolha se dá por adequação do hexacorde; pausas podem ser indicativo de mutação. Cláusula cromática Semitons consecutivos em linha melódica (ex. Eb-D-C#) são proibidos pela prescrição de não mutar entre mi e fa, mas poderiam ocorrer em passagens onde não há outra solução. Imitação Serve à solmização de passagens imitativas, desde que em obediência às convenções polifônicas, influenciando o deductio de hexacordes. Convenções por causa necessitatis Mi contra fa Deve ser evitado em consonâncias perfeitas para manter quintas e oitavas perfeitas. Falsas relações simultâneas são proibidas, mas falsas relações sucessivas não. O trítono é aceito se um sustenido ficta for requerido (cláusula subsemitonum modi). A regra mi contra fa vale para notas harmônicas no tactus; não se aplica a figurações melódicas. Fa super la Se uma linha melódica sobe além de um hexacorde por um grau e então retorna, esta nota é sempre cantada como fa, sem a necessidade de realizar uma mutação. Convenções por causa pulchritudines Cadentia Consonâncias perfeitas devem ser alcançadas pela consonância imperfeita mais próxima; as progressões mais comuns envolvendo esta regra são aquelas em que ambas as partes se movem por um grau. Se uma das vozes se move por salto, a que se move por grau conjunto é que sofre inflexão. Cadência terminando em 8ª ou uníssono é perfetta, senão é fuggita. Segundo Zarlino, cadência terminando em 5ª é sfuggita. Subsemitonum modi Em notas de bordadura (seja em cadências ou em outros pontos), a nota inferior pode ser elevada, especialmente se abaixo da final do modo. Tierce de picardie Este recurso, desenvolvido no séc. XV, era usado sempre que possível para adicionar uma 3ª a harmonias simples de 5ª e 8ª com as quais seções ou a obra toda normalmente acabavam. Tabela 19. Compilação de convenções para inflexões em polifonia, segundo Routley. As cláusulas ainda podem ser incompletas, quando o tenorizans ou o basizans se encerram por evasão em pausa, e invertidas, quando o cantizans se posiciona em voz mais grave que aquela do tenorizans. Em tabelas relativas à análise do moteto “Magnum haereditatis mysterium”, as deduções entre e♭ e e♮ estão explicitamente associadas à voz e cláusula em que ocorrem, e ainda em negrito caso se trate de um acidente inscrito. O símbolo †, se associado a uma nota na tabela (ex. †-e♮), revela sua posição no movimento de evasão. Resoluções sem o estereótipo sonoro do movimento de semitom são tratadas como cadência dória, com efeito reduzido e utilizada em casos especiais em pontos de articulação, especialmente no modo lídio. 109 2.6 O partitio gênero-differentia para cláusula e cadência, segundo Zarlino e Dressler Como visto no item 2.5, cláusula e cadência são dois termos com significados ambíguos nos séculos XV e XVI e cujo uso atual também gera dúvidas. Etimologicamente, clausula vem do verbo latino claudere (fechar) enquanto que cadenza tem origem no verbo italiano cadere (cair). Vale lembrar que tratados e álbuns diversos de música deste período foram escritos primeiramente em latim, adotando mais tarde o vernáculo ao longo do século XVI, como no caso dos dois primeiros tratados de Pietro Aaron, Libri tres de institutione harmonica (Bolonha: 1516, em latim) e Thoscanello de la musica (Veneza, 1523, já em italiano). Portanto, evidências de suas distinções poderiam emergir de seu uso em culturas distintas. Enquanto o vernáculo compete com o latim em tratados italianos, em território germânico prevalece o latim, a exemplo de dois tratados contemporâneos, Institutione armoniche (1558) de Gioseffo Zarlino e Praecepta Musicae Poeticae (1563) de Gallus Dressler. Em ambos os tratados, os termos se referem à cadência em seu sentido mais amplo, o que, contudo, requer especificação no que tange a características particulares das cadências, como as discutidas nos dois itens anteriores. Assim, tanto Zarlino como Dressler aplicam o partitio gênero-differentia ao considerar uma dada característica como perfeita ou não. Porém, cada um destes se ocupa com um aspecto distinto ao considerar o partitio, seja o tipo de resolução ou a estrutura polifônica da mesma. Para Zarlino, a cadenza é perfetta se tem resolução em oitava (Exemplo 17), tornando-se imperfetta caso a resolução seja em terça ou em quinta (Exemplo 18). Exemplo 22. Cadenza perfetta com resolução em 8ª de acordo com Zarlino Exemplo 23. Cadenza imperfetta com resolução em 3ª ou em 5a de acordo com Zarlino Já para Dressler, a clausulae é perfectae se a estrutura apresentar não só os movimentos tradicionais cantizans ou tenorizans, mas também o basizans (Exemplo 24); caso contrário é considerada semiperfectae (Exemplo 25). 110 Exemplo 24. Clausulae perfectae com movimento basizans de acordo com Dressler. Exemplo 25. Clausulae semiperfectae sem movimento basizans de acordo com Dressler. 2.7. Modos Da mesma forma que como para as cadências, modos são tratados como referência importante por tratadistas como Gaffurius, Aaron, Zarlino, Pontio, Dressler e Burmeister, entre outros. Vale lembrar que seus tratados, produzidos entre os séculos XV e XVII, tinham como finalidade principal apresentar regras de composição de uma forma didática, sendo os exemplos uma ferramenta importante para ilustrar características como modos e cadências, uma vez que ambos se correlacionam. Nos tratados, grupos de peças são discriminados por seus modos, e então são elencadas cadências ‘próprias’ (e ‘impróprias’) para cada um deles. Os modos são sistematizados, até meados do século XVI, em oito, sendo quatro deles autênticos (dório, frígio, lídio e mixolídio) e outros quatro como contrapartes plagais destes (hipodório, hipofrígio, hipolídio e hipomixolídio). A derivação entre modos autêntico e plagal se dá por meio da inversão da ‘espécie de oitava’, que nada mais é do que um pentacorde (‘espécie de quinta’) conjugado a um tetracorde (‘espécie de quarta’). Na polifonia, os modos autêntico e plagal operam associados em pares entre as vozes agudas e graves. Dessa forma, quando o cantus é autêntico, a voz inferior é plagal, e da mesma forma o par tenor/bassus exibirá relação autêntico/plagal. No modo dório, por exemplo, a voz do tenor se desenvolve em um âmbito de D até d, com a espécie de quinta de D até a conjugada à espécie de quarta, de a até d; já a voz do bassus, por convenção, se desenvolve em sua contraparte plagal, o modo hipodório, devido à sua tessitura mais grave; ali, o âmbito da espécie de oitava vai de de A até a, devido à inversão do modo autêntico (i.e. a espécie de quarta a–d é deslocada uma oitava abaixo, para A–D, conjugando-se com a espécie de quinta D–a, agora a mais aguda). Contudo, se a peça é escrita em modo hipodório, a voz do tenor protagoniza a extensão de A até a, e por consequência o bassus precisaria descer até um D uma quarta abaixo do sol mais grave (G). Devido à esta impossibilidade, o sistema todo é transposto per bemolle, 111 ou seja, uma quarta acima. O resultado desta operação é que o modo hipodório raramente é executado, na prática, em D, mas sim em G, com armadura de clave de um bemol. Em meados do século XVI, Glareanus publica o tratado Dodecachordon onde, através de uma reinterpretação de teorias de Boécio e Gaffurius (FENLON, 1994, pp. 86-87), promove o sistema de modos de oito para doze, pelo acréscimo dos modos eólio, hipoeólio, jônio e hipojônio. Tal reformulação contempla uma questão relativa aos modos lídio e hipolídio, que na maior parte do repertório ocorre com o acréscimo de um bemol. Esta questão será discutida em maior detalhe ao longo da análise de “Venit vox de coelo” (Cap. 3, p. 165). Relações entre modos, tons salmódicos (ou tons de recitação) e finalis também é importante na avaliação de notas de resolução cadencial (ou distinctiones) em uma peça polifônica, uma vez que cada modo tem um perfil característico para estas notas. Wiering (2001, p. 4) oferece uma visão sistemática desta relação, como transcrita a seguir na Tabela 20. modo tipo do âmbito finalis tom salmódico 1 autêntico D a 2 plagal D f 3 autêntico E c’ 4 plagal E a 5 autêntico F c’ 6 plagal F a 7 autêntico G d’ 8 plagal G c’ Tabela 20. Os oito modos e os tenores do tons salmódicos correspondentes, segundo Wiering. Segundo Wiering (ibidem, p. 5), o conceito de tom salmódico está também relacionado com aquele de repercussão. Em suas próprias palavras, “a repercussão [repercussio ou repercussa] é uma nota que ocorre com frequência na melodia. É usada especificamente para a quinta acima da final em modos autênticos, e a quarta naqueles plagais. O termo ainda pode indicar o intervalo entre a final e esta nota. A repercussio é idêntica ao tenor do tom salmódico em cinco modos (comparar com a tabela anterior) e o termo é, portanto, utilizado em algumas situações para o próprio tenor”. O autor ainda afirma que “as quintas acima das finais eram reconhecidas como finais alternativos dos modos (affinales ou confinales)”, resolvendo um problema de categorização de diversos cantos. Dessa forma, os modos 2, 3 e 6 irão possuir uma repercussa diferente de sua confinales, enriquecendo os planos cadenciais destes modos. 112 2.8 Tópico especial: a polifonia vocal imitativa de Adrian Willaert Adrian Willaert viveu entre cerca de 1490 a 1562 e é um dos principais representantes da quarta geração de compositores franco-flamengos. Sua obra envolve praticamente todos os gêneros composicionais correntes no século XVI, tanto nos estilos cultivados por compositores das escolas franco-flamengas da segunda e terceira geração como no estilo humanista vinculado aos madrigais italianos deste período, do qual Willaert também colaborou no desenvolvimento. Nascido em Rumbeke (Bélgica), estudou direito em Paris, mas decidiu-se por tomar o caminho da música, tendo estudado com Jean Mouton, compositor da capela real de Saint-Quentin's na França. Após sua ligeira passagem por Roma em 1515 (episódio relacionado à anedota envolvendo o seu moteto “Verbum bonem et suave” a seis vozes, vide Item 2.8.2, p. 114), Willaert segue para Ferrara no mesmo ano, onde presta serviço ao cardeal Ippolito I d’Este até sua morte em 1520 e, a seguir, ao duque Alfonso I d’Este (1476-1534), até 1525. Já em 1527 Willaert é apontado pelo doge Andrea Gritti de Veneza como mestre de capela da basílica de São Marco, onde produziu a maior parte de sua obra e foi mestre de numerosos e notórios pupilos, como citado no Item 1.9.3 (p. 71). É comum tratar a obra de Willaert, portanto, em duas fases, uma mais influenciada pelo estilo imitativo da terceira geração franco-flamenga, e outra, após seu apontamento para a Basílica de São Marco. 2.8.1 Motetos de Willaert Em 1539 ,Willaert torna-se o primeiro compositor a ter suas obras publicadas de forma exclusiva em um único álbum. Dois álbuns de seus motetos a quatro vozes são publicados neste ano, o Liber primus com o título Famosissimi Adriani VVillaert... mvsica qvatvor vocvm... (RISM AI: W 1106), por Gardano, e o Libro secondo de título Motetti de Adrian Willaert (RISM AI: W 1108). Ambos os álbuns incluem peças a quatro vozes compostas no seu período em Ferrara, o que pode ser demonstrado por três de seus motetos (entre eles Magnum haereditatis mysterium e Mirabile mysterium) inclusos no “manuscrito de Ferrara” (Royal College of Music de Londres, MS 2037) entre outros motetos de Willaert, em meio aos cerca de oitenta motetos desta coleção, copiada em Ferrara para o Tribunal Ducal de Alfonso I d'Este. Willaert ainda tem publicados álbuns exclusivos de motetos a cinco vozes em 1539 (RISM A/I: W 1110) e 1550 (RISM A/I: W 1111), além de republicações dos álbuns de motetos a quatro vozes, em 1545 (RISM A/I: W 1107 e W 1109). Motetos a seis vozes são publicados em 1542 (RISM B/I: 1542/10 ou RISM A/I: W1112), em álbum dedicado a Willaert mas 113 contendo peças de outros compositores como Berchem, Pieton, Verdelot e Jhan. Motetos a quatro, cinco, seis e sete vozes ainda são publicados no álbum Mvsica nova de 1559 (RISM B/I: 1559a ou RISM A/I: W1126), ondem também constam madrigais. Neste álbum seminal de Willaert, sua escrita própria caracteriza-se por texturas em tons graves, em uma escrita pouco ornamentada que privilegia a exatidão na colocação silábica, do que decorre o uso de notas em ligaduras em profusão. O álbum contém uma versão a cinco vozes de “Magnum haereditatis mysterium” posicionada com sétima e última peça do ciclo “O admirabile commertium”, que no arranjo de Josquin se detia a cinco partes, às quais Willaert incorporou também um arranjo a cinco vozes de “Mirabile mysterium”. Diversas diferenças entre as publicações a quatro vozes, e em certa medida a cinco vozes, de “Magnum haereditatis mysterium” serão discutidas no Item 3.3 desta tese. 2.8.2 Influência de compositores franco-flamengos sobre Willaert Como foi visto, parte da obra de Willaert tem influência de compositores francoflamengos, o que é visível no tratamento regular que confere à polifonia imitativa de suas peças precoces. A distinção de tais características pode revelar, por meio de sua segregação, as características próprias que o compositor tende a desenvolver no rumo de sua produção. Por outro lado, valeria conjecturar que algumas características da obra precoce de Willaert poderiam se assemelhar às observadas em peças cuja atribuição duvidosa poderia envolver o autor junto a compositores como o seu mestre Jean Mouton e outros que poderiam exercer influência sobre Willaert. Indícios de influências de Willaert emergem de sua própria obra – como nas missas baseadas em motetos de outros autores, e obras de autoria incerta por semelhança de estilo – e de aspectos cruzados de dados biográficos e cronologia de obras. A influência primária de Willaert seria Jean Mouton (c.1459-1522), mencionado por Zarlino50 como seu preceptor na corte real de Luís XII entre 1510 e 1515. Jean Mouton (c.1459-1522) atuou, por vezes como mestre de capela, em cidades francesas como Nesle, Amiens e Grenoble entre 1477 e 1501, antes de associar-se à corte real francesa em 1502, inicialmente a serviço de François I. Uma visita sua ao Papa Leo X é registrada em 1515, em Bolonha. Compôs chansons, missas, magnificats mas especialmente motetos (cerca de 100). Um álbum de missas, editado por Petrucci em 1515, e um livro de 50 Zarlino, G. Le institutione harmoniche. Veneza, 1558 114 motetos, editado postumamente por Le Roy & Ballard em 1555, figuram entre suas publicações de um único autor. Já a influência da escrita de Josquin Des Prez (c.1440/55-1521) sobre Willaert é menos precisa, apesar de evidências o sugerirem. Josquin estudou junto a Mouton na capela real de Saint-Quentin's na França, o que corrobora a hipótese de suas obras terem sido apresentadas por Mouton ao seu pupilo. A influência também é sugerida pela na citação anedótica de Zarlino51 sobre a passagem de Willaert por Roma em 1515, onde seu moteto Verbum bonum et suave foi lido como sendo obra de Josquin. Membro do coro da capela Papal em Roma entre 1489 e 1495, sua obra poderia ser referencial aos cantores do Papa; assim, o moteto poderia ser atribuído enganosamente a Josquin por semelhança de estilos52. Josquin também precedeu Willaert em Ferrara, servindo a família d´Este entre 1503 e 1504 como mestre de capela. Haveriam indícios portanto do contato de Willaert com obras de Josquin em diversas situações, desde seu período em Paris até seus dias em Ferrara. Um conjunto de missas-paródia de Willaert sobre motetos de outros compositores também acusa seu apreço por Josquin (“Missa Mente tota”) e Mouton (“Missa Queramus cum pastoribus”, “Missa Laudate Deum” e “Missa Gaude Barbara”). Estas missas também parodiam os motetos “Christus resurgens” de Jean Richafort (c.1480-c.1547) e “Osculetur me” de Mathieu Gascongne (período de vida incerto; muito estimado por Willaert, segundo Zarlino53), contemporâneos seus associados à corte real francesa de Luís XII54. Indícios de estilo compartilhado de escrita com outros compositores advém de obras de autoria incerta atribuídas a Willaert em pelo menos uma publicação. Tal aspecto pode ocorrer de duas formas: primeiro, a obra é atribuída em edições diversas a compositores distintos (inclusive o “anônimo”) e segundo, a obra anônima é atribuída a mais de um compositor, por análise de estilo e correlações históricas. Um conjunto destas obras arranjadas a três, quatro e cinco vozes é apresentado na Tabela 20, onde figuram além de Mouton alguns contemporâneos a Willaert. Jean L´Héritier (c.1480-p.1551), Jacquet da Mantua (1483-1559), Phillipe Verdelot (1480/5-1530/2) e Jean Conseil (c.1498-1534).; Verdelot estudou com Obrecht em Ferrara previamente a sua mudança para Florença em 1523; e Jacquet, que viveu em Ferrara entre 1525 e 1526, tornou-se um amigo próximo seu. 51 ibid. Veja a descrição da hipótese de fraude em: Wegman, R. The Josquin companion, vol. 1. ed. por Sherr, R. Oxford: Oxford University Press, 2000, pg. 25 a 27. 53 Zarlino, G. Le institutione harmoniche. Veneza, 1558 54 Kidger, D. The Masses Of Adrian Willaert: A Critical Study Of Sources, Style And Context. Ph.D thesis. Cambridge: Harvard University, 1998 52 115 moteto Dulces exulviae (a 3 ou 4) tipo fonte ano/RISM local atribuição MS LonBLR 8 G. vii 1516-22 Bruxelas Mouton MS SgallS 463 (Tschudi Liederbuch) p.1540 (Suíça) Willaert PT Symphoniae (...) quatuor vocum 1542/8 Wittenberg Willaert PT Tertia pars magni operis musici 1559/2 Nurenberg Mouton Beata Dei genitrix MS ModD 3 1520 Modena Anônimo (a 4) MS PadBC A17 1522 Padua Anônimo PT Liber cantus 39 motetos 1538/5 Ferrara L´Héritier PT Motteti del fiore 4 vc Lv 3 1539/10 Lyons Conseil PT W 1106 (Famosissimi Adriani) 1539 Veneza Willaert PT Selectissimarum mutetarum Lv1 1540/6 Nurenberg L´Héritier PT Moteti de la fama Lv1 4 vc 1555/15 Veneza L´Héritier Visita quaesumus MS LonRC 2037 1527-34 Ferrara Jacquet? (a 4) MS BolC Q 20 c.1530 (Itália) Anônimo PT Liber cantus 39 motetos 1538/5 Ferrara Jacquet/ Willaert MS StuttL 35 c.1540 Stuttgart Jacquet Deus in nomine tuo MS RomeV 35-40/I 1530-31 Florença L´Héritier (a 5) PT Motetti del fiore Lv2 1532/ 9 Lyons Willaert PT Tomus primus psalmorum 1538/6 Nurenberg Willaert PT Mottetti del fiore 5 vc Lv2 1539/6 Veneza L´Héritier MS HeilbS XCIII/3 p.1566 Heilbronn Anônimo MS StuttL 43 c.1540 Stuttgart Anônimo Tabela 21. Motetos de atribuição incerta entre Willaert e compositores influentes. Os compositores acima citados tiveram importante atuação em igrejas e capelas de cortes, o que responde por uma produção sacra majoritária à secular, no geral, especialmente em relação ao moteto (Tabela 21). Incluem-se aqui mais três compositores – Josquin, Obrecht e Brumel – cujas missas foram publicadas por Petrucci em volume exclusivo e cujos motetos circularam amplamente na Itália em manuscritos e impressos, possivelmente sendo copiados em Ferrara no tempo de Willaert, sugerindo portanto uma linha de influência secundária. compositor Josquin Des Prez Jacob Obrecht Jean Mouton Antoine Brumel Mathieu Gascongne Jean Richafort Jean L´Heritier Phillipe Verdelot Jacquet of Mantua Adrian Willaert Jean Conseil ano motetos missas magnificats hinos c. 1440/55-1521 105 c.30 ----1450/1-1505 27 30 1 4 c.1459-1522 100 15 9 --c.1460-p.1520 c.30 c.20 ----? 20 10 2 --c.1480-c.1547 50 3 3 --c.1480-p.1551 48 1 ----1480/5-1530/2 54 3 ----1483-1559 +100 25 diversos muitos 1490-1778 175 11 --c.100 c. 1498-1534 24 ------Tabela 22. Willaert e possíveis compositores influentes. chansons 80 30 25 18 15 18 2 4 1 65 10 madrigais --------------c. 145 2 55 --- Josquin Des Prez (c.1440/55-1521), já mencionado anteriormente no episódio do moteto “Verbum bonum et suave”, foi mestre de capela em Ferrara, servindo o duque Ercole I d´Este entre 1503-1504, quando um surto da peste negra forçou a remoção de toda a corte para um retiro nas lagunas de Comacchio. É provável que Josquin tenho produzido música sacra por 116 influência de Ercole, inclusive seu “Miserere mei, Deus” a cinco vozes55. Também atribui-se a esse período o moteto “Virgo salutiferi” a cinco vozes56. Quando Josquin deixou Ferrara, provavelmente devido à Peste, seu posto foi ocupado por Jacob Obrecht (1450/1-1505), que já havia visitado Ferrara a convite do duque Ercole I d´Este em 1487, período em que foi succentor (baixo) em Bruges, entre 1485 e 1491; após servir a catedrais neerlandesas até 1503, retornou a Ferrara para instalar-se definitivamente, mas veio a falecer da peste negra em 1505. Antoine Brumel (c.1460-p.1520), por sua vez, ocupa a posição em Ferrara logo em seguida, após passagens por várias cortes francesas entre 1506 e 1509, para servir a Alfonso d´Este. Entre os motetos acima, foram selecionados como modelos para comparação “Dulces exulviae” a 3 (Mouton / Willaert), “Visita quaesumus” a 4 (Jacquet da Mântua / Willaert) e “Deus in nomine tuo” a 5 (L´Héritier / Willaert), representando a própria geração de Willaert, além de “Miserere mei” e “O admirabile commercium” a 4 (prima pars) de Josquin, representativo de um estilo que influenciou toda a geração posterior. Estas peças são comparáveis não só com ricercares de Willaert como também com seus motetos publicados em Veneza. Entre os motetos a quatro vozes, selecionamos os descritos na Tabela 23. moteto claves O gemma clarissima G2-C1-C2-C3 Mirabile mysterium C1-C3-C4-F4 Saluto te, sancta Virgo Maria C1C3C4F3 b Magnum haereditatis mysterium C1C3C4F4 b Domine Jesu Christe C1C3C4F4 Dulces exuviae C1C3C4F4 Victimae Paschali G2C2C3F3 b Regina coeli laetare C1C3C4F4 b Tabela 23. Motetos a quatro vozes de Willaert tom F plagal G plagal F plagal G plagal A plagal E autentico G autentico F plagal Apesar da variedade de relações aqui apontadas, seu escrutínio mostrou-se inviável visto o foco dado ao desenvolvimento das ferramentas analíticas. Outras possíveis relações emergem de procedimentos transversais aos aqui apontados, como a análise comparativa de obras dentro de um mesmo modo, em especial aquelas citadas em tratados de Gallus Dressler, Glareanus e Zarlino, e devem ser o foco de trabalhos subsequentes, após o estabelecimento alcançado para a metodologia de análise cadencial reportado nesta tese. No capítulo a seguir, será descrito o desenvolvimento das ferramentas analíticas para o estudo de relações estruturais em obras de Adrian Willaert com base em planos cadenciais. 55 Macey, P., et al. "Josquin Des Prez" The New Grove Dictionary of Music and Musicians, eds. Stanley Sadie and J. Tyrrell (London: Macmillan, 2001). 56 Cuja terceira parte é transcrita por Cabezon em suas “Obras de mu[si]ca para tecla, arpa [y] vihuela”; a primeira publicação do original ocorre em MS VatS 16 (1507), o mesmo da Missa mente tota de Willaert. 117 3 ANÁLISE DE PEÇAS POLIFÔNICAS COM BASE EM PLANOS CADENCIAIS 3.1 Planejamento e desenvolvimento analítico Tendo em vista o grande debate por uma visão analítica menos anacrônica da música antiga e frente aos recentes avanços musicológicos sobre a praxis musical de época – incluindo pesquisas sobre tratados teóricos de composição ou acerca da demanda cultural via publicações manuscritas ou impressas – vislumbrou-se inicialmente estabelecer interrelações entre motetos e ricercares de Willaert por meio de técnicas descritas nestes tratados. Neste sentido, amplo amparo foi encontrado na descrição de Meier (1988, pp. 123-170) de técnicas antigas na análise de peças vocais polifônicas, com suporte adicional de métodos analíticos recentes como os de Powers e Nogueira, descritos adiante. A delimitação do repertório para análise baseou-se na premissa de que os aspectos de transição entre ricercares precoces e tardios de Willaert podem ter paralelos com o observado entre motetos precoces e tardios do mesmo autor. Contudo, a escrita a quatro vozes em seus ricercares é logo preterida por aquela a tre, arranjo este que é pouco comum entre seus motetos. Entretanto, a escrita a três vozes é um pouco mais frequente em seções de seus arranjos polifônicos para hinos, que podem ocorrem isoladamente em coletâneas de peças a três vozes, porém batizadas como motetos. Outros gêneros a três vozes como as chansons de Willaert possuem um caráter homofônico muito acentuado para possíveis comparações com o ricercare, e de seus madrigais apenas um é arranjado a tre. Ricercares e estrofes de hinos a três vozes também tem em comum sua publicação após 1540, em Veneza, o que poderia ser indício de uma fase de composição mais madura de Willaert. A avaliação preliminar de exemplares de motetos e ricercares de Willaert apontou para uma diferença nítida entre seus padrões imitativos, relativa a um maior aproveitamento temático no ricercare. A distinção entre os dois gêneros só é mais clara pela ausência de texto no ricercare, o que sugere que o aproveitamento temático seria o fator de estruturação musical que substituiria o suporte dado pelo texto à estrutura do moteto. Se de um lado existem diferenças nítidas entre moteto e ricercare, de outro há semelhanças em quantidade suficiente para que o ricercare fosse considerado uma espécie de “moteto sem texto”, como apontado por Cadwell (2001, p. 326). Entre as semelhanças, identificam-se a estrutura em imitação pervasiva, com entradas imitativas em pares de duos, em trio ou em quarteto, e a composição em fluxo contínuo, visitando seções com textura 118 polifônica distinta. Um aspecto em comum, contudo, chama a atenção: a envergadura do plano cadencial destes gêneros, no desempenho de sua função tanto estrutural como retórica. A seguir são descritas as importantes ferramentas analíticas aqui utilizadas ou até mesmo aprimoradas, como no caso do plano cadencial de Meier. As análises serão apresentadas na ordem cronológica em que foram realizadas ao longo deste trabalho, visando evidenciar suas etapas de aprimoramento. 3.1.1 O plano tonal de Powers Este importante trabalho desenvolvido por Harold Powers traz a idéia de ‘plano tonal’, no qual obras podem ser comparadas com base em sua posição em dada fonte primária em relação aos parâmetros ‘sistema’, ambitus, ‘final’ e ‘modo’, mostrando que em diversas coleções haveria uma distribuição deliberada das peças de acordo com seu modo. Desta forma, peças como as trinta e uma chansons de Premier livre des chansons à 3 parties (Antuérpia: T. Susato, 1544) são analisadas por Powers, como exemplificado na Tabela 24 para um caso observado em cada modo (POWERS, 1981, p. 445). As entradas aqui apresentadas são recorrentes para o conjunto completo de chansons analisadas, revelando configurações comuns e próprias a cada um dos modos, caracterizando ‘tipos tonais’ em número de até vinte e quatro, considerando todo o repertório analisado pelo autor (POWERS, ibidem, p. 438-440). chanson no. sistema ambitus final modo 1 ♮ c2 c4 F 4 d D D 1 5 ♭ g2 c2 F4 g G G 1 8 ♭ / ♭♭ / ♭ c1 c3 F 3 g G G 2 11 ♮ g2 c2 F3 aa a A 3 14 ♮ c1 c3 F 3 aa a A 4 21 ♭ c1 c3 F 3 f F F 5 26 ♮ c1 c3 c4 cc c C 6 30 ♮ c1 c3 F 3 g G G 8 Tabela 24. Premier livre des chansons à 3 parties. Seleção de entradas de uma tabela analítica de Powers, mostrando a configuração de cada tipo tonal. A técnica de Powers foi utilizada em adequação à análise comparativa de ricercares de Willaert, como descrito adiante. 119 3.1.2 O plano cadencial de Meier O plano cadencial consiste no perfil das cadências de uma dada peça, disposto cronologicamente e relacionado a qualidades estruturais selecionadas. Em sua seminal obra compreendendo os modos da música vocal polifônica, Meier lista uma série de planos cadencias para diversas peças vocais agrupadas por modos, apoiado em exemplos retirados de tratados antigos. Na tabela 25 é apresentado um destes planos, para o moteto “Exsultate Deo” a cinco vozes de Lechner, a título de comparação com o modelo desenvolvido neste trabalho. Meier (1988, pp. 130-131) apresenta inicialmente a tessitura das vozes, seguida do plano cadencial: C A T1 T2 B compasso c’–e’’ g–g’ (mais a’, uma vez) c–e’ d–e’ (mais c e f’, uma vez cada) G-a (mais subida para c’, uma vez) tom Voz com cáusula cantizans tenorizans 6 C altus tenor 2 ( ) 10 G altus tenor 1 11 f. C tenor 1 tenor 2 (fuggita) 13 f. G altus tenor 1 ( ) 14 f. G cantus tenor 1 (fuggita) 18 f. G altus cantus ( ) 22 D (sp.) altus tenor 1 (quarta abaixo) 25 f. D tenor 1 (quinta acima) altus ( ) 27 G (quase sp.) tenor 2 tenor 1 ( ) 31 G altus tenor 2 34 f. C cantus tenor 2 35-37 C cantus tenor 1 (fuggita) C tenor 1 altus ( ) G altus tenor 1 39 G (sp.) tenor 1 tenor 2 (fuggita) 43 G tenor 1 tenor 2 (fuggita) 45 f. G (+ sup.) altus tenor 2 Tabela 25. Plano cadencial de Meier para o moteto “Exsultate Deo” a cinco vozes de Lechner. Legendas: sp. clausula simplex; sup. - suplementum; - resolução do tenorizans dois graus acima do padrão. A elaboração do plano cadencial de Meier relaciona o tom de resolução da cadência com as vozes que efetuam os movimentos cantizans e tenorizans, este último qualificado por suas alterações melódicas. Com este plano simples, Meier discrimina as cadências por sua integridade, notadamente aquelas dos compassos 10, 31, 35-37 e 45, com o cantizans sendo conduzido pela voz do altus com resolução em G, e aquela no compasso 34, a única no cantus mas que, contudo, se resolve em C. 120 Segundo Meier (idem), o moteto é atribuído ao modo 8 por Maternus Beringer, sendo o tom de G (finalis) observado em dez cadências, além de outras cinco no tom de C, e duas em D; contudo, cláusulas primárias (cantizans e tenorizans se resolvendo em G) não ocorrem no soprano. A identificação do modo se baseia na tessitura do tenor e do soprano (plagal), e pela preferência nas alturas de G e C, que representam a repercussão ut-fa do modo 8. Meier ainda analisa uma enorme quantidade de peças polifônicas por meio destes planos, mas sua finalidade parece limitar-se à determinação do modo de uma dada peça, de maneira que tal modelo foi submetido a adequações para os fins analíticos deste trabalho, como descrito no item a seguir. 3.1.3 O plano cadencial ampliado Análises preliminares de materiais selecionados no âmbito desta pesquisa apontaram uma maior necessidade de considerar as vozes complementares do conjunto pleno (altus, bassus, quintus, etc.) em motetos e ricercares, na avaliação de planos cadenciais de grande envergadura. Tal adição de vozes não pareceu ser possível de forma direta sobre o plano cadencial Meier, que estabelece relações em função de apenas dois movimentos estereotípicos, cantizans e tenorizans. Experimentou-se, então, subordinar tais correspondências às vozes propriamente ditas da polifonia, visando qualificar os movimentos estereotípicos por parâmetros adicionais, como cláusulas polifônicas, tom de resolução e tipo de cadência. O protótipo inicial do plano cadencial ampliado tem como pressuposto um padrão cadencial conhecido como ‘cadência plena’, que se configura em notas longas ao final de uma peça polifônica. A intensidade da cadência deriva desta referência, em relação tanto ao número de vozes envolvidas como ao estereótipo dos movimentos vocais (Cf. item 2.4, p. 104), mas também quanto à sua dinâmica duracional (prolongamento temporal que aumenta a taxa de exposição sonora e sua ‘definição’ no processo perceptivo). Entende-se que, por uma questão arquetípica – a fixação deste modelo ao longo de séculos –, qualquer destes parâmetros que altere o estado da cadência plena diminuirá sua ‘intensidade’. A título de exemplo, é apresentado a seguir o plano cadencial ampliado da chanson a três vozes “Se la belle”, de Binchois. Na prática composicional dos séculos XV e XVI as cadências tem relação íntima com as articulações do texto de referência (Exemplo 26). 121 Exemplo 26. G. Binchois, “Se la belle”. Wilibald Gurlitt, Sechzehn weltliche lieder zu 3 stimmen1, p. 13. A análise do modo da peça leva em consideração os tons de resolução das cadências e seu posicionamento ao longo da peça. A última cadência pode revelar o modo, mas esta correspondência não é uma regra. No caso, observa-se uma cadência com três ‘longas’ ao final, em uma resolução característica da Ars nova. A voz superior (referida aqui por ‘cantus’, em geral) entoa um movimento cantizans ornamentado em direção à nota g, enquanto o tenor desenvolve seu papel prototípico, o de tenorizans caminhando para G. Já o ‘contra’ realiza um papel característico deste período, um salto de oitava entre D e d, estabelecendo o acorde de G sem terça, encerrando a forma. Esta cadência é muito semelhante às duas primeiras (cc. 4-5 e 8-9), exceto pelo contra que interrompe a resolução em uma pausa, e pelas notas de menor valor que permitem, de fato, que a peça tenha continuidade; caso as cadências fossem iguais, ambas dariam sensação de conclusão em sua atuação. Seguem-se cadências em F, em C e em D, das quais a primeira parece ser mais intensa devido à resolução ‘plena’ porém fugaz e com um movimento diferente no contra (cc.18-19). Já a cadência em D (cc. 22-23) apresenta um modelo diferente mas importante no desenvolvimento deste recurso que é o movimento sincopado 1 Wilibald Gurlitt (ed.), Sechzehn weltliche lieder zu 3 stimmen. Em: Friedrich Blume (ed.), Das Chorwerk, vol. 22. Wolfenbüttel: Möseler, 1933, p. 13. 122 paralelo (ainda que não perfeitamente), mas que desvia a atenção do aspecto estereotípico da cadência final. Observa-se, portanto, que a organização das cadências confere movimento a determinados segmentos da peça, provocando contrastes texturais e ‘gradientes de intensidade’ que devem estar associados ao texto da chanson, apesar da edição em questão não dispor de guarnição textual. Este tipo de ‘dinâmica cadencial’ evolui em direção ao fim de seções musicais, sendo característica compartilhada por diversos gêneros. A tabela a seguir demonstra a elaboração de um plano cadencial ampliado, relacionado a cada uma das vozes da polifonia. À esquerda, localiza-se o compasso em que ocorre a cadência. Nas colunas seguintes, especifica-se o tipo de cláusula e o tipo de movimento estereotípico, associado às vozes do cantus (C), contra (Co) e tenor (T). A seguir, relacionamse o tipo de resolução e o seu tom. cc. 4-5 8-9 10-12 18-19 20-21 22-23 26-27 Cláusula polifônica C Co T diminuta ‡ diminuta ‡ ---diminuta ‡ diminuta ‡ diminuta ‡ diminuta ‡ cantizans orn. cantizans orn. --cantizans orn. cantizans orn. cantizans orn. cantizans orn. contratenorizans-(#) contratenorizans-(#) altizans altizans altizans-(#) altizans orn. (≈) contratenorizans Tenorizans Tenorizans Basizans Tenorizans Tenorizans Tenorizans Tenorizans Resolução (cadenza) propria† propria† plagal° per transito per transito† segunda primera G G D F C D G Tabela 26. Plano cadencial para Se la belle, modo mixolídio. ° cláusula incompleta; † cadência fuggita; ‡ cadência semiperfeita; ≈ mov. paralelo. Observa-se que todas as cadências, exceto uma, possuem o cantizans ornamentado, em configuração do tipo ‘cadência Landini’, onde o sétimo grau ‘escapa’ para o sexto, que segue para a resolução no oitavo grau; além disso, o cantizans é sincopado, conferindo à cláusula a característica formales. Contudo, tais cadências são semiperfeitas por não possuir um movimento basizans, e como tais são características deste período. A voz do ‘Contra’, por sua vez, sempre se dirige ao quinto grau do tom de resolução, em dois tipos de movimento: o de grau ascendente, típico desta voz em cadências tanto na Ars nova como ao longo dos séculos XV e XVI, e o de salto de oitava ascendente, característico do contratenor durante o século XV. Tais cadências poderiam, por aproximação de conceitos, ser denominadas respectivamente de altizans e contratenorizans, a primeira por ser mais próxima do movimento uníssono definido para o altizans no Cap. 2, e a segunda, em contraste, em neologia a um movimento estereotípico que evoluiria à configuração do basizans, segundo Sachs e Dahlhaus (2001, pp. 555). 123 3.1.4 Estruturas de agrupamento: ferramentas gráficas e conceitos analíticos A análise estrutural aqui proposta está baseada em técnicas desenvolvidas por Nogueira (2014, pp. 31-57) para a descrição de processos imitativos e não-imitativos, na forma de ferramentas gráficas entituladas ‘estruturas de agrupamento’. Processos imitativos são descritos por padrões de configuração compartilhada de motivos (especialmente no que tange à duração das notas e suas relações de altura), assinalados por linhas conectadas por diagonais. Linhas horizontais sólidas indicam padrões imitativos regulares denominados ‘agrupamentos expositivos’ (Figura 80), enquanto que aqueles formados por linhas pontihadas indicam padrões menos estritos denominados ‘agrupamentos digressivos’ (Figura 81): Figura 80. Ferramenta gráfica para agrupamento expositivo Figura 81. Ferramenta gráfica para agrupamento digressivo Há ainda dois outros tipos de agrupamento, ambos com estrutura não imitativa. O primeiro, que pode ser indentificado como ‘agrupamento polirrítmico’, ocorre quando vozes têm o mesmo texto, mas em relação rítmica cruzada. Este agrupamento é indicado com um retângulo com ângulos retos, como exemplificado na Figura 82. O segundo, o ‘agrupamento homorrítmico’, ocorre quando vozes tem o mesmo texto e a mesma estrutura rítmica. Isto é indicado por retângulos com ângulos arredondados (Figura 83). Figura 82. Ferramenta gráfica para agrupamento polirrítmico. Figura 83. Ferramenta gráfica para agrupamento homorrítmico Outro tipo de agrupamento, o ‘constructo contrapontístico’, é uma ferramenta útil em três situações quasi ou não imitativas (Figura 84): a) quando um fragmento melódico não imitativo é usado como contraponto livre a outro, imitativo; b) quando as vozes formam um agrupamento não imitativo; e c) quando um agrupamento imitativo tem um prolongamento não imitativo. 124 (a) (b) (c) Figura 84. Ferramentas gráficas para o ‘constructo contrapontístico’. a) fragmento melódico não imitativo em contraponto livre a outro, imitativo; b) agrupamento não imitativo; e c) agrupamento imitativo com um prolongamento não imitativo. Algumas palavras são destacadas por duplicação, e estão indicadas por uma linha vertical pontilhada conectando um fragmento melódico a uma linha dupla inferior (Figura 85). Figura 85. Ferramenta gráfica para duplicação. Tal metodologia ainda poderia convergir com a análise cadencial, o que de fato foi realizado para as peças “Magnum haereditatis mysterium” de Willaert e “Venit vox de coelo” de Clemens non Papa, visando evidenciar o escopo e limites de tal acoplamento analítico. Contudo, devido à complexidade desta convergência analítica, sua aplicação ficou restrita a estas peças, sendo adotado o viés do plano cadencial no estudo de peças selecionadas. Um exemplo representativo da aplicação destas ferramentas se encontra no Exemplo 36, p. 159, desta tese. 125 3.2 Tópico especial: o ricercare 3.2.1 Do ricercare prelúdico ao imitativo A pesquisa sistemática sobre o ricercare inicia-se (até onde foi possível constatar) nos anos 1940 com os trabalhos de Sutherland2,3 e Apel4, seguidos de dissertações e teses dedicadas ao tema conduzidas por Murphy5, Slim6, Tappa7, Swenson8, Magliocco9, Ladewig10, Jensen11, e Yeung12 até os anos 80, sendo baixa a ocorrência de dissertações posteriores sobre o tema13,14. Paralelamente, a publicação de artigos dedicados ao ricercare também não é frequente15,16. O perfil destas publicações aponta uma tendência cronológica para a pesquisa circunscrita ou ao instrumento (órgão, teclado, ensemble, alaúde, violoncello) ou ao autor (Pietro Vinci, Antonio Il Verso, Frescobaldi, Froberger), e em geral utilizam a análise formal estilística como base para comparações de obras de um mesmo autor ou entre autores distintos. A rarefação nesta linha de publicações (mesmo considerando publicações sem o termo ‘ricercare’ em seus títulos) sugere um esgotamento dos métodos analíticos tradicionais, especialmente aqueles que se aplicam à música tonal. A ausência de atualização do verbete “ricercare” desde os anos 80 (CADWELL, 2001, 325-328) parece reflexir esta situação. 2 Sutherland, G.A. “Studies on the development of the keyboard and ensemble ricercare from Willaert to Frescobaldi”, Ph. D. Thesis, Harvard University, Massachussets, 1942. 3 Sutherland, G. “The ricercari of Jacques Buus”, The Musical Quartely, vol. 31, no. 4, 1945, pp. 448-463. 4 Apel, W. “The early development of the organ ricercar”, Musica Disciplina, III/2-4, 1949, pg. 139-50. 5 Murphy, R.M. “Fantasia and ricercare in the sixteenth century”, Ph. D., Yale University, 1954. 6 Slim, H.C. “The keyboard ricercar and fantasia in Italy, C. 1500-1550, with reference to parallel forms in European lute music of the same period”, Ph. D., Harvard University, Massachussets, 1961. 7 Tappa, R.J. “An analytical study of the use of imitative devices in the keyboard ricercar from 1520-1720”, Ph. D., Indiana University, 1965. 8 Swenson, M.A. “The four-part Italian ensemble recercar from 1540 to 1619”, Ph. D., Indiana University, 1971. 9 Magliocco, H.A. “The ricercare a tre of Pietro Vinci and Antonio Il Verso: a discussion and modern edition”, Mus. Mast., University of Oklahoma, 1972. 10 Ladewig, J.L. “Frescobaldi´s Recercari, et canzone franzese (1615): A study of the Contrapuntal Keyboard Idiom in Ferrara, Naples, and Rome, 1580-1620”, Ph. D., University of California, Berkeley, 1978. 11 Jensen, R. d´A. “The lute ricercar in Italy, 1507-1517”, Ph. D. University of California, Los Angeles, 1988. 12 Yeung, A.C.-W. “The ricercars for solo violoncello by G.B. Degli Antonii”, Mus. Mast., McGill University, Montreal, Quebec, 1989. 13 Garret, D.B. “The genesis of the solo cello: The Ricercate soprail violoncello o clavicembaloby Giovanni Battista Degli Antonii”, Ph. D., University of Houston, 1999. 14 Lee, W.H. “A comparative study of two single subject keyboard ricercareby Johann Jacob Froberger: Projections of sixteenth century practice combined with features that forecast baroque practice”, Mus. D., University of North Texas, 2011. 15 Haar, J. “The ‘fantasie et recerchari’ of Giuliano Tiburtino”, The Musical Quartely, vol. 59, no. 2, 1973, pp. 223-238. 16 Kirkendale, W. “Ciceronians versus Aristotelians on the ricercar as exordium, from Bembo to Bach”, Journal of the American Musicological Society, Vol. 32, No. 1, 1979, pp. 1-44. 126 O termo ricercare abrange uma variedade de formas que se caracterizam por um perfil mais improvisativo ou imitativo. A primeira metade do século XVI testemunha o estabelecimento de ambos, primeiramente o ‘ricercare prelúdico ou rapsódico’, cuja origem é a intabulação de peças polifônicas, especialmente chansons para alaúde ou teclado, acrescidas de componentes idiomáticos e improvisativos; e mais tarde o ‘ricercare imitativo’, para ensemble, alaúde ou teclado, cuja genealogia deve ser analisada com maior cuidado. Um fator importante neste processo é o estabelecimento da imprensa musical na França e na Itália. Editores da primeira metade do século XVI se preocuparam em explorar comercialmente suas publicações e, sendo dificultosa a colocação de texto em impressões de música vocal, poder-se-ia criar um mercado lucrativo com a música para instrumentos ou ensemble (o que incluía também conjuntos vocais). Por esta óptica, não é difícil conjecturar a busca por publicações de qualidade musical cada vez maior, o que implicaria em sua diferenciação frente a versões meramente instrumentais de música vocal polifônica. Este impulso teria ocorrido em Veneza, com a publicação do Musica Nova accomodata... em 1540. Além de ser editado em livros de partes, contrastando com publicações prévias de ricercares em intavolatura, o ricercare imitativo incorpora técnicas de perseguição como a imitação pervasiva, característica da terceira geração franco-flamenga e que se popularizavam no início do século XVI, adaptadas a uma estrutura musical com maior grau de reiteração motívica. 3.2.2 Ricercares de Adrian Willaert Um catálogo extensivo das obras de Willaert reúne os seus ricercares dentro da categoria ‘instrumental’ (indicada pela letra I), identificando-os em ordem numérica em função de seu número de vozes componentes (KIDGER, 2005, pg 284-287). A Tabela 23 é ordenada por cronologia de publicações, sua primeira ocorrência marcada em negrito. Das fontes históricas mencionadas na Tabela 27, três ricercares a quatro vozes do Musica nova, Accomodata... (RISM 1540/22) são republicados em Musicque de Joye, que nos serviu de fonte uma vez que apenas o bassus remanesce da única edição original sobrevivente (cf. Cap. 1, pp. 69-70). Já os ricercares a três vozes ‘Re’, ‘Mi’, ‘Fa’ e ‘Sol’ do Motteta trium vocum (RISM 1543/6) só são acessíveis na primeira reedição desse ábum (RISM 1551/3). Os ricercares ‘26’ até ‘33’ do álbum Fantesie, et recerchari a tre voci publicado por Tiburtino (1549/34) são republicados no álbum Fantasie Recercari Contrapunti de Willaert (1551/16), ordenados de ‘segondo’ à ‘ottavo’, e acrescidos de dois novos ricercares, ‘primo’ e ‘decimo’, além de uma ‘Regina coeli’ em duas versões, uma de Willaert e outra de Cipriano de Rore. 127 catálogo Kidger Musica Nova 1540/22 Motetta 1543/6, 1551/3, 1569/3 Fantesie 1549/34 (Tiburtino) Musicque de Joye 1550/24 Fantasie 1551/16, York 1559/25 (= Minster, fim séc. XVI 1593/8) I001 ‘26’ / ‘Re’ --- --- I002 ‘27’ / ‘Mi’ --- --- I003 ‘28’ / ‘Fa’ --- --- I004 ‘30’ / ‘Sol’ --- --- I005 --- 26 e 33** ‘quinto’† I006 --- 27 ‘sesto’† I007 --- 28 ‘quarto’† I008 --- 29 ‘ottavo’† I009 --- 30 ‘terzo’† I010 --- 31 ‘segondo’† I011 --- 32 ‘settimo’† I012 --- --- ‘Regina coeli’‡ I013 --- --- ‘primo’† I014 --- --- ‘decimo’† três vozes quatro vozes I015 ‘1’* ‘Tertius’ I016 ‘10’* ‘Quartus’ I017 ‘14’* ‘Vigesimus primus’ I018 --- ‘Septimus’● I019 ‘6’*, ● ‘Octavus’● I020 ‘13’*, ● ‘Decimusseptimus’● e ‘Vigesimo’** --- --- ‘Vigesimus quartus’º cinco vozes I021 ‘fantasio’ Tabela 27. Ricercares de Adrian Willaert ou atribuídos a ele, catalogados por Kidger. * apenas o bassus remanescente. ** ricercares idênticos; no.33 transposto uma quarto abaixo. † Ed. Zenck. ‡moteto desprovido de texto em 155116. ●Giulio da Modena ou Willaert. ºGabriel Coste ou Willaert. Para que os ricercares acima descritos possam ser comparados através de seus planos tonais, é necessário definir o modo em que cada ricercare foi escrito, por uma avaliação conjunta de tons de resolução, finalis, tessituras vocais, conjuntos de claves e armadura (que pode indicar transposição do modo per bemole), como descrito na Tabela 28. 128 RISM, index vozes Kidger claves tessitura resolução finalis repercussio modo S – C1 (a,b) c´ – f´´ ‘Tertius’ A – C3 (c) d – a´ 4 I015 a, d, g, f, e, c, b♭ d d-a 1 T – C4 d – g´ (a´) (1550/24) B – F3 (F) G – a ( b♭) S – C1 (c´) d´ – e´´ ‘Quartus’ A – C3 (f) g – a´ 4 I016 a, e, c, d, g e e-a 3 (1550/24) T – C4 d – e´ (f´) B – F3 (F) G – a S – C1 (♭) (g,a) b – e´´(f´´) ‘Vigesimus primus’ A – C3 (♭) (c) d – a´ 6 4 I017 f, a, c, d, g, b♭ f f-a T – C4 (♭) (a,b) c – f´ (per ♭) (1550/24) B – F4 (♭) (D,E) F – b♭ S – C1 (♭) a – d´´(e´´) ‘24’ 1 3 I001 T – C4 (♭) e – g´ (a´) g, d (f, c) g-re g-d´ (per ♭) 1551/3 B – F4 (♭) G – b (c´) S – C1 (g) a – e´´ (f´´) ‘25’ 3 I002 T – C3 (c) d – g´ a, e, g, c e e-c´ 3 1551/3 B – F3 A – g´ S – C2 (♭) (f) g – b´ (c´´) ‘26’ f-c´ ou 6 3 I003 T – C4 (♭) c – f´ c, f, (a) f 1551/3 f-a (per ♭) B – F4 (♭) (E) F – a (b,c´) S – C1 (g) a – c´´ (d´´) ‘28’ 3 I004 T – C4 c – f´ (g´) g, c, d, a g g-c´ 8 1551/3 B – F4 G – c´ S – C2 (♭) c´ – f´´ 1559/25 6 3 I012 T – C4 (♭) (e) f – d´ f, b♭, a f f-a (per ♭) ‘Regina coeli’ B – F4 (♭) F – b♭ S – C1 (♭) (a,b) c´ – d´´ 6 1559/25, ‘primo’ 3 I013 T – C4 (♭) (c) d – g´ c, f, a, d f f-a (per ♭) B – F4 (♭) F – c´ (d´) S – C2 (e,f) g – c´´ 1549/34, ‘31’; 3 I010 T – C4 d – g´ g, c, a, d, e g g-c´ 8 1559/25, ‘segondo’ B – F4 G –a S – C2 g – c´´ 1549/34, ‘30’; 3 I009 T – C4 (c) d – f´ c, g, d, c, f, (a) g g-c´ 8 1559/25, ‘terzo’ B – F4 G – a (b, c´) S – C2 (♭) g – c´´ 1549/34, ‘28’; 2 3 I007 T – C4 (♭) c – f´ b♭, d, g, f, a, c g-re g-b♭ (per ♭) 1559/25, ‘quarto’ B – F4 (♭) G – b♭ S – C3 (d) e – a´ 1549/34, ‘26’ T – F3 A – d´ (e´) g, a, e, b, d e e-a 4 B – F5 (!) E –a 3 I005 S – C1 (♭) (g) a – d´´ 1549/34, ‘33’; 4 T – C3 (♭) d – g´ (a´) (f), c, d, a, e, g a-mi a-d (per ♭) 1559/25, ‘quinto’ B – F3 (♭) A – d´ S – C2 (♭) (g) a – d´´ 1549/34, ‘27’; 4 3 I006 T – C3 (♭) (d) e – g´ (a´) (d, c), g, a, f a-mi a-d 1559/25, ‘sesto’ (per ♭) B – F3 (♭) A – d´ S – G2 (♭) d´ – g´´ 1549/34, ‘32’; 1 3 I011 T – C3 (♭) f – a´ d, f, g, a, g-re g-d´ (per ♭) 1559/25, ‘settimo’ B – F3 (♭) (B♭) c – d´ S – C1 a – d´´ 1549/34, ‘29’; 3 I008 T – C3 d – g´ a, d, c, (e, f), g d d-a 1 1559/25, ‘ottavo’ B – F3 A – c´ (d´) S – C1 (a,b) c´ – c´´(d´´) 1559/25, ‘decimo’ 3 I014 T – C3 e – g´ c, e, a, g e e-c´ 4 (no.9 em Zenck) B – F3 G – a (b♭) Tabela 28. Planos tonais e determinação de modos de ricercares a três e quatro vozes de Willaert 129 A análise modal revelou paralelos entre os ricercares a três e quatro vozes (Tabela 29), excetuando-se ricercares de autoria dúbia. Os ricercares publicados em 1543 (com títulos “Re”, “Mi”, “Fa” e “Sol”) refletem uma tendência já visível em 1540 por uma organização segundo sua finalis, recorrendo no mesmo modo dos precedentes. A publicação de 1559 segue uma tendência semelhante, pareando por modo os ricercares originais de 1549 e incluindo um par adicional, o moteto “Regina coeli” (instrumental) e o ricercar “primo”. Tal organização poderia revelar um caráter pedagógico aliado à escrita do ricercare, favorecendo o exercício da atribuição do modo. Já o manuscrito para ensemble a cinco vozes MS M91(S) da Biblioteca de York Minster não tem sua data definida, sabendo-se apenas que é do final do século XVI (Tabela 4); sem correspondência histórica, a atribuição a Willaert baseada na inscrição “Adrianus fantasio” na parte inferior esqueda do folio 127 é incerta. Sua análise, entretanto, identifica-o como ricercar monotemático, impróprio à escrita de Willaert; por outro lado, lembra os ricercares monotemáticos de Andrea Gabrieli. RISM, index vozes Kidger MS M91(S), 42 5 I021 claves Q – G2 (♭) S – C1 (♭) A – C2 (♭) T – C4 (♭) B – F4 (♭) tessitura g´ – g´´ d´ – d´´ g – b♭´ (c) d – f´ G – g (b♭) resolução finalis repercussio modo g, d, b♭, c g-re g-d´ 2 (per ♭) Tabela 29. Plano tonal e determinação do modo do ricercare a cinco vozes atribuído a Willaert A identificação dos modos permite agrupar conjuntos para a comparação de seus planos cadenciais, como é mostrado na Tabela 30, sendo potencialmente interessante o grupo de ricercares no modo 6 (hipolídio, per bemolle) por sua maior amostragem. vozes RISM B 4 1550/24 1551/3 1 1 (per ♭) 2 (per ♭) ‘Tertius’ ‘Re’ 3 1559/25 ‘ottavo’ ‘settimo’ ‘quarto’ 3 MODO 4 4 (per ♭) 6 (per ♭) ‘Quartus’ ‘Vigesimus quartus’ ‘Mi’ ‘Fa’ ‘decimo’ ‘quinto’ ‘sesto’ 8 ‘Sol’ ‘Regina coeli’ ‘segondo’ ‘primo’ Tabela 30. Conjuntos agrupados por relações de modos e número de vozes. ‘terzo’ 130 3.2.3 Análise do “Ricercar tertius” a quatro vozes de Willaert Para a análise de cadências do “Ricercar tertius”, uma terminologia mista foi compilada a partir de definições de diversos tratadistas, não sendo possível adotar um único tratado cuja terminologia contemple todo o plano cadencial. Como definido na Tabela 28, este ricercare está no modo 1, para o qual a terminologia a seguir poderia ser utilizada: • Clausula primera – classificada por Montanos para a conclusão de versos na finalis (cadência perfeita em D); • Cadenza própria – aplicada às resoluções na finalis, segundo Pietro Pontio, mas inespecífica quanto às cláusulas que a governam, sendo portanto aplicável para cadências “imperfeitas” (semiperfeitas ou fuggita por pausa ou imbricação) em D; • Clausula segunda – para a conclusão de versos na confinales, segundo Montanos; portanto, compatível com cadências em A, desde que vera (pois do contrário será tratada como cadenza frigia, ver a seguir); • Cadenza regolare – pode contemplar qualquer um dos ‘tons próprios ao modo’, segundo Zarlino, Tigrini e Pietro Aron; portanto, compatível com cadências em A. • Cadenza per transito – segundo Pontio, no caso da resolução não se dirigir à finalis nem à confinales; portanto, compatível com cadências em G e em C. A resolução cadencial também segue uma tipologia baseada em sua ocorrência histórica: • Cláusula vera – aquela onde o sustentatio eleva em meio tom o sétimo grau, garantindo a resolução em uma sexta maior; • Cláusula frígia – faz o contrário (cláusula remissa), ao diminuir em meio tom o segundo grau, via tenorizans no bassus, em geral; caso contrário, e havendo uma linha mais grave, não se pode estabelecer um movimento basizans V-I típico, devido a formação de um trítono abaixo da sexta maior. Tal movimento partirá então de outra nota, podendo ocorrer eventualmente o movimento I-IV, dando a falsa impressão de uma cadência plagal (CASTILHO: 2010, pg. 8). Devido à natureza desta cadência, não é possível atribuir a ela cláusula perfeita tampouco semiperfeita. A ocorrência das cláusulas vera e frígia tem ligação direta com inflexões ficta e recta que estarão ressaltadas na análise. 131 Na medida em que a análise deste ricercare baseou-se principalmente no plano cadencial, a abertura de seu exordium merece algum comentário não só por ser livre de cadências, mas por ser exemplar de uma construção formal em par de duos imitativos ao estilo de Josquin. O primeiro duo tem soggetto imbricado com a entrada da segunda voz uma quarta abaixo, enquanto que o segundo par se inicia em elisão ao fim do soggetto, todo transposto uma oitava abaixo, e mantendo a integridade da frase identificada como 1A, o próprio soggetto. Esta disposição configura um agrupamento expositivo, devidamente seguido por um agrupamento digressivo a partir do compasso 9. A configuração do soggetto aí já apresenta alterações suficientes para caracterizá-lo no cantus como 1B que, em par imitativo com o altus, concorre com fragmentos de 1A, provocando momentos homofônicos importantes que articulam sutilmente a peça sem a necessidade de uma cadência (Exemplo 27). Exemplo 27. Exordium do “Ricercar tertius” de Willaert. Agrupamentos expositivo e digressivo, e relações harmônicas que articulam a peça sem necessidade de cadência. Em direção ao encerramento do exordium, as melodias do agrupamento digressivo convergem em uma cadência em A, e a seguir, em uma cadência em D, conjugadas com fragmentos melódicos de 1A e 1B que reiteram a idéia inicial (Exemplo 28). 132 Exemplo 28. Exordium do “Ricercar tertius” de Willaert. Cadências nos tons de A e D. Enquanto o plano cadencial do exordium se resume a duas cadências, pode-se elaborar um plano baseado em suas articulações, obtidas apenas por conjugação de vozes, em detalhe no Esquema 4, onde traços pontilhados na vertical representam articulações da polifonia. Esquema 4. Plano articular do exordium do “Ricercar tertius”. (e) Elaboração; (f) fragmentação; (s) suspensão. Cláusulas melódicas: Cz, Az, Tz, Bz; motivo cadencial: cad; complemento de frase: cpl. Após a conclusão do exordium, seguem-se relações mais livres entre as vozes, comprometidas contudo com uma cascata cadencial que contempla principalmente os movimentos cantizans e tenorizans. Em consequência, módulos contrapontísticos são formados e reiterados até uma cadência mais intensa, com duas vozes em suspensão (cc. 38-39), que parece preparar uma articulação ainda mais intensa onde duas cadências estão conjugadas. A primeira (c. 41), uma variante de cadência frígia com resolução em intervalo de quinta (cf. cadenza imperfetta de Zarlino), tem uma de suas notas envolvida na próxima cadência. Este conjunto foi designado, inicialmente, como ‘agregado cadencial’, sem descrições na literatura até onde foi possível constatar. Mais tarde, o termo foi renomeado como ‘cadência escalonada’, 133 na medida em que percebeu-se sua ocorrência sistemática em peças com finalis em D. Na análise, foi utilizado o recurso de um colchete horizontal para identifica-la (Exemplo 29). Exemplo 29. Medio do “Ricercar tertius” de Willaert, cc. 26-54. Após esta cadência, um novo motivo é apresentado, ainda que com alguma semelhança aos motivos prévios. O trabalho de vozes em duos se destaca nesta seção, lembrando Josquin, mas é interrompido por uma cadência em c. 49-50 que, não fosse pela fugacidade da voz do cantus, seria uma cadência plena; a alternância dos duos se reconstitui a partir daí. 134 Frente à complexidade dos padrões imitativos deste ricercare, cadências servem como um guia para escuta e compreensão. Duas cadências escalonadas (cc. 65-66 e 69-70) delimitam mais uma seção musical, permitindo o desenvolvimento de um tema mais difuso (Exemplo 30). Exemplo 30. Medio do “Ricercar tertius” de Willaert, cc. 55-74. Observa-se então, nos compassos 78-79, uma cadência com o movimento cantizans ornamentado, a partir da qual seguem-se diversas deste mesmo tipo, constituintes da chamada clausula diminuta. O recurso é eficiente em seu papel de deslocar a atenção do ouvinte, preparando-o para sua seção final, ou finis. Duas ocorrências de contraponto sincopado em notas longas podem ser verificadas entre os compassos 85 e 93 – primeiro entre cantus e bassus, e depois entre altus e tenor –, gerando nova textura que precede o tema final, o mais claro e evidente em relação aos anteriores. Duas cadências escalonadas irão encerrar a peça, uma delas (a última) quase que biarticulada (Exemplo 31). Tal perfil cadencial não foi encontrado nos motetos estudados ou analisados. O plano cadencial completo é descrito na Tabela 31, a seguir. 135 Exemplo 31. Finis do “Ricercar tertius” de Willaert, c. 75 ao fim. 136 Tabela 31. Plano cadencial para o “Ricercare tertius” de Willaert. Cadencias: † fuggita; ° incompleta; * invertida; ‡ semiperfeita; •resolução em quinta. Quinta sustentada: (→); dupla suspensão: (≈); agregado cadencial: { . Imbricações: sj. (sujeito), csj. (contra-sujeito) e ¯(cantus do agregado cadencial). 137 3.3 Adrian Willaert e o moteto “Magnum haereditatis mysterium” O histórico de transmissão de “Magnum haereditatis mysterium” desde as fontes primárias de seu cantochão é traçado em direção às publicações de época dos motetos homônimos arranjados por Willaert. A análise do cantochão mostra que suas fontes podem seguir duas correntes, uma com o modo hipodórico transposto e outra sem a transposição. Estas fontes foram comparadas, paralelamente ao Liber usualis, aos correspondentes canti firmi de edições dos motetos de Willaert a quatro ou a cinco vozes, visando uma compreensão maior do padrão de variação entre fragmentos correspondentes dos motetos. Para este propósito, foi realizada a análise melódica e silábica do texto, de acordo com as regras de colocação silábica de Lanfranco e Stocker. Finalmente, a comparação de um manuscrito deste moteto, anterior à suas publicações, foi realizada, junto a uma discussão sobre cultura de impressão com o envolvimento de intérpretes, compositores, editores e teóricos neste processo. 3.3.1 Estudo comparativo de fontes primárias em “Magnum haereditatis mysterium” Durante a primeira metade do século XVI o moteto renascentista tornou-se uma das principais formas de escrita musical, consolidando em si as técnicas mais elaboradas, até então, de imitação e contraponto. A medida que ganhava a predileção de compositores de toda a Europa, sua escrita passa a influenciar a de gêneros instrumentais como o “ricercare ensemble”, modelo no qual a escrita em vozes individuais, separadas em livros de partes, reflete a tradição formal motetística. Descartado o texto, contudo, obras vocais podiam ser realizadas por conjuntos de violas, sopros ou vozes; instrumentos solistas como o alaúde ou o órgão também o fariam, mas por condensação das partes. Porém o ricercare atingia dimensões de técnica, imitação e contraponto que a escrita vocal não comportaria. Neste contexto, a intabulação de motetos para alaúde e órgão pode ter influenciado a evolução dos ricercari intabulati, como os de Andrea Gabrieli e Claudio Merulo. As mais numerosas transcrições para alaúde foram compiladas por reconhecidos alaudistas (como Gintzler e Phalesius) em coletâneas de peças selecionadas, dentre as quais destacamos o moteto “Magnum haereditatis mysterium” (a quatro vozes) de Adriaen Willaert. O interesse nesta peça deve-se à sua representatividade, sendo um dos motetos mais publicados deste compositor durante o século XVI. Ao lado de “Mirabile mysterium” (a quatro vozes), constitui um par exclusivo de motetos “mysterium” arranjados também a cinco vozes na seminal obra de Willaert, a coleção Mvsica nova de 1559. Foram constatadas, a partir de fontes 138 primárias, uma série de diferenças entre estas publicações de “Magnum haereditatis mysterium”, o que motivou um estudo específico acerca desta obra. 3.3.1.1 O cantochão “Magnum haereditatis mysterium” Na celebração da Octava nativitas domini (primeiro dia do calendário católico, dia da “circuncisão de nosso Senhor”), uma sequência de antífonas do ofício divino inclui os cantos “Mirabile mysterium” e “Magnum haereditatis mysterium”17, exaltando a pureza do Cristo nascido do ventre imaculado de Maria. Este cantochão posiciona-se na liturgia como antífona de Magnificat às segundas vésperas do Ofício Divino da Circuncisão. Historicamente, é registrado a partir de 870 d.C.18, passando por escritas neumáticas quironômica19, diastemática e finalmente quadrada (HOPPIN, 1978, p. 57-62). Nesta linha evolutiva, variantes do cantochão ocorrem, entre os séculos XII e XV, nos dois últimos sistemas. Uma das correntes – proveniente do breviário da catedral de Notre Dame (França)20 e de antifonários dos monastérios de St. Maur-des-Fosses (França)21, Einsiedeln (Suíça)22 e da abadia de Salzinnes (Bélgica)23 – apresenta a melodia em modo hipodórico transposto para Lá com âmbito de 6 notas (Fá até Ré; confinalis em Lá, tom recitativo em Dó), como em sua transcrição no Liber usualis (Exemplo 32, em anexo a uma tradução nossa do texto); no entanto não há uma correspondência exata entre esta transcrição e suas fontes primárias. A outra – proveniente do antifonário Franciscano (origem incerta)24 e dos antifonários da catedral de Marselha (França)25 e da abadia de St. Lambrecht (Áustria)26, e dos monastérios de Klosterneuburg (Áustria)27 e Augsburg (Alemanha)28,29 – apresenta o modo hipodórico sem transposição, porém com um âmbito de 7 notas (Lá até Sol; finalis em Ré, tom recitativo em Fá). Não há acidentes em nenhum dos casos, portanto a sexta é menor apenas no modo transposto, o que se justifica pela tradição do B molle 17 Este canto ainda ocorre na liturgia, porém de forma menos difundida, como um verso responsorial no ofício das matinas (Purificatio Mariae, 2 de fevereiro). O restante de seu texto é, no entanto, diferente. 18 Ms 2788, fol. 56r., c.870; Biblioteca Comunale 'Augusta', Perugia, Itália; 19 Mss CH-SGs 390, fol. 069, c.980; CH-SGs 388, fol. 075, sem data; Stiftsbibliothek, St. Gallen, Suíça; 20 Ms lat. 15181, fol. 160r, c.1300; Département des Manuscrits, Bibliothèque nationale de France, Paris, França; 21 Ms lat. 12044, fol. 024r, c.1100; Département des Manuscrits, Bibliothèque nationale de France, Paris, França; 22 Ms E 611, fol. 034r, c.1300; Musikbibliothek, Kloster Einsiedeln, Einsiedeln, Suíça. 23 Ms Hsmu M2149.L4, fol. 045r, 1554; Patrick Power Library, St. Mary’s University, Halifax, Canadá; 24 Ms CH-Fco 2, fol. 039r, c.1260; Bibliothèque des Cordeliers, Friburgo, Suíça; 25 Ms lat. 1090, fol. 022r, c.1190; Département des Manuscrits, Bibliothèque nationale de France, Paris, França; 26 Ms A-Gu 29, fol. 054v, c.1300; Universitätsbibliothek, Graz, Áustria; 27 Mss A-KN 1010, fol. 039r, c.1100; A-KN 1013, fol. 049r, c.1100; A-KN 1011, fol. 070v, c.1300; AugustinerChorherrenstift Bibliothek, Klosterneuburg, Áustria; 28 Mss Clm-4303, fol. 092v, 1459; Clm-4304, fol. 074v, 1519; Clm-4305, fol. 212v, 1459; Bayerische Staatsbibliothek, Munique, Alemanha. 29 Ms Gl.Kgl.S. 3449, 8o II, fol. 120v, c. 1580; Det kongelige Bibliotek Slotsholmen, Copenhague, Dinamarca. 139 no modos de Ré, protus maneria. A transposição para Lá seria apenas um artifício para evitar o bemol, quando desejado (HOPPIN, 1978, p. 64-71). Estas duas correntes do cantochão tem registro entre c. 980-1495 (transposta) e c.10001555 (não transposta)30, e não parecem exibir relação evolutiva entre si. Ocorrências anteriores referem-se à escrita Aquitaniana, com a qual a determinação do modo é dúbia31. “Ó grande mistério da herança (filiação): O templo de Deus se faz no ventre que nunca conheceu o homem: Não é corrompido aquele que assume a carne: todas as nações virão, dizendo: Glória a ti, ó Senhor.”32 Exemplo 32. Antífona “Magnum haereditatis mysterium” (Liber usualis, 1961, pg. 444) 3.3.1.2 Análise comparativa de motetos “Magnum haereditatis mysterium” de Willaert A publicação musical durante o Renascimento teve um importante marco em 1539, ano em que são impressos em Veneza os primeiros álbuns de motetos dedicados a um único compositor. A imprensa musical já estava bem estabelecida e coletâneas com autores diversos já eram bastante difundidas à época. Nesse ínterim observa-se um número expressivo de publicações de “Magnum haereditatis mysterium”, via coletâneas oriundas de Ferrara (Buglhat, 1538) e Augsburg (Kriesstein, 1540) ou álbuns dedicados exclusivamente à Willaert, produzidos em Veneza (Scotto, 1539; Gardano, 1545). A seguir é descrito uma série de diferenças entre algumas publicações de “Magnum haereditatis mysterium” de Willaert. 30 Ms I-Rv C.5, fol. 050r, prov. Roma, c.1000; Biblioteca Vallicelliana, Roma, Itália; Todas as fontes citadas foram identificadas através da base de dados de cantos em latim eclesiástico CANTUS. Waterloo: Universidade de Waterloo / Praga: Charles University. Disponível em: <http://cantusdatabase.org>. Acesso em 15 jun 2014. 32 Tradução nossa. 31 140 O cantus firmus no exordium do moteto localiza-se diferentemente em cada um dos dois arranjos por Willaert, no cantus e no altus dos arranjos a quatro ou a cinco vozes, respectivamente. Tais fragmentos são mostrados no Exemplo 33. Nota-se nos fragmentos tipo 1 a presença de uma nota extra, em relação ao fragmento 1A; tal nota é ocorrente, na verdade, em algumas fontes do cantochão sem transposição (antifonário Franciscano, catedral de Marselha e monastério de Augsburg). Nos fragmentos 1D e 1E esta mesma nota torna-se a primeira de uma ligadura e em 1F a última de uma multiligadura. Esta última estrutura ainda apresenta uma porção oblíqua, em intervalo de terça, que não inclui a semínima33 de passagem descendente (tom recitativo do modo), o que de fato aproxima 1F da escrita neumática das três fontes citadas. Já os fragmentos tipo 2 apresentam maior correspondência entre si, sendo 2E similar à 2A pela coalisão de duas semibreves em uma ligadura enquanto que 2F se distingue do conjunto (sua primeira nota assume o valor de semibreve e as duas últimas parecem se condensar em uma única breve). Fragmentos do tipo 2 exibem correspondência com as mesmas três fontes supracitadas; outras fontes diferem do tipo 2 ao apresentar a finalis (ou o tom de recitação) como nota inicial do fragmento. Os fragmentos tipo 3 apresentam uma alteração na leitura do podatus final contido em 3A (este neuma é coerente com todas as fontes de cantochão citadas, exceto a do breviário de Notre Dame), o que pode se justificar pelo movimento cadencial ao fim do primeiro verso nos motetos. O fato de ser inequívoca a disposição silábica da partícula -rium sobre as duas notas finais dos fragmentos 3C e 3F sugere que a segunda nota deste podatus é omitida nos motetos, a exemplo do breviário de Notre Dame. Já o último neuma em clivis presente em 3A (e em todas as fontes de cantochão citadas exceto a do monastério de Einsiedeln) parece corresponder às duas últimas semibreves de 3D e 3F (em ligadura neste último), das quais a primeira corresponde à diminuição em 3C, 3B e 3E (conjunto mínima pontuada / semínima). 33 Optou-se aqui por esta corruptela do termo “semimínima” como forma de contextualiza-la ao leitor moderno. 141 1A 2A 3A 1B 1C 3B 2B 2C 1D 2D 1E 1F 3C 3D 2E 2F 3E 3F Exemplo 33. Fragmentos 1, 2 e 3 em fontes primárias de “Magnum haereditatis mysterium”. Cantochão A, cantus B (Ferrara, 1538), C (Veneza, 1539), D (Augsburg, 1540), E (Veneza, 1545) e altus F (Veneza, 1559). 142 3.3.1.3 Disposição textual e silábica34 A comparação de manuscritos ou impressos de uma mesma obra tem levantado questões importantes nos últimos anos, como em motetos de Josquin Desprez (JUDD, 2000, p. 265) e Pierre de La Rue (SCHUBERT, 2012, pg. 3-13), relativas a alterações mensurais (fórmula de compasso), musicais (notas e notação) e textuais (disposição silábica e textual). A análise comparativa entre cantochão e motetos aponta para uma variação significativa da disposição silábica entre fragmentos correspondentes, em especial sob melismas; o mesmo vale para a repetição de texto por indicação ou simples dedução. Os fragmentos abaixo, reproduzindo o quarto verso no cantus, demonstram como a disposição e repetição de texto podem resultar em atribuições sílaba/texto diversas. Palavras da expressão “venient dicentes” ocupam fragmentos do tipo 5 e 6 (Exemplo 34) em diversas configurações, sendo possível deduzir a repetição nos fragmentos 6B, 5C e 6C. 5B 4B 6B 6C 5C 4C 4D 4E 5D 5E 6D 6E Exemplo 34. Fragmentos 4, 5 e 6 em fontes primárias de “Magnum haereditatis mysterium”. Cantus, B (1538), C (1539), D (1540), e E (1545). 34 Representando as expressões “text underlay” e “syllable-placement”, sem tradução exata para o português. 143 A repetição ostensiva de uma mesma palavra não foi observada em nenhum dos motetos “Magnum haereditatis mysterium”, portanto não parece caber improviso no fragmento 6E. Para expressões de duas ou mais palavras isso já é válido: a exemplo, “gloria tibi domine” (último verso do moteto) pode ocorrer até cinco vezes seguidas, integralmente, como no bassus da edição de 1539. Fragmentos do verso “omnes gentes venient dicentes” apresentados na Figura 3 apresentam alto grau de similaridade entre si, mas não compõem o cantus firmus, localizado momentaneamente no tenor, assim como o que ocorre com as palavras “nesciens virum”35. A análise também foi processada sobre o primeiro verso do moteto na voz do altus (Exemplo 35); observa-se aqui melismas complexos nos fragmentos 8 e 9, sob uma colocação silábica variável e imprecisa. A palavra “my(i)sterium” poderia ser atribuída tanto à última nota de 8C e 8E como à nota seguinte, como em 9B. O padrão de separação silábica do fragmento 9E é similar ao observado em 3D, e seria uma alternativa ao padrão de 3C e 3F. 7B 7C 7E 8B 8C 9B 9C 8E 9E Exemplo 35. Fragmentos 7, 8 e 9 em fontes primárias de “Magnum haereditatis mysterium”. Altus B (1538), C (1539), e E (1545). O altus D (1540) não tem remanescente histórico, assim como seu tenor e seu bassus. Apesar de atual (VELTMAN, 2006, pp. 73-89), a problemática da disposição textual e silábica sem dúvida ocupou, à época, mentes e discussões de intérpretes, compositores e teóricos em sua busca por soluções. Neste sentido, houve dois esforços históricos. De um lado, teóricos desenvolveram regras de colocação silábica, facilitando o trabalho que restava finalmente ao intérprete (HÁRRAN, 1973a, pp. 620-632), (HÁRRAN; 1973b, pp. 24-56). Do 35 No moteto a quatro vozes a melodia migraria momentaneamente do cantus ao tenor (RIVERA, 1993, p. 76). 144 outro, uma nova geração de compositores, atentos a esta questão, valeu-se do aprimoramento da imprensa tipográfica no terceiro quartel do século XVI para a preparação e impressão de obras vocais visando a uma leitura inequívoca (BERNSTEIN, 2001, pp. 9-22); à frente destes estava Willaert (seguido de Orlando di Lasso e Cipriano de Rore), que com o Mvsica nova atinge este patamar. Entre os teóricos dedicados ao assunto36 destacam-se Lanfranco e Stocker37 como representantes de duas gerações distintas, e abaixo são mencionadas suas principais regras (Tabela 32); algumas, como o uso de ligaduras, eram comuns à maioria dos autores e remetiam às regras do canto gregoriano. De outra sorte, cada autor dirigiu sua obra para fins específicos, para atender a demanda de cantores, compositores e editores; assim, fizeram-se exceções diversas às regras, o que teria culminado em divergências teóricas - o que poderia responder pelas diferentes abordagens entre gerações de compositores ou até mesmo por sutis diferenças entre edições de uma mesma obra. Lanfranco Stocker A. TEXTO - Divisões semânticas do texto devem coincidir com as cadências das frases musicais; B. MÍNIMA - Toda nota separada que for uma mínima (ou valor maior) deve receber uma sílaba; C. LIGADURA - Uma ligadura não deve receber mais do que uma única sílaba, em sua primeira nota; D. DIMINUIÇÃO - Semínima após mínima pontuada raramente recebe sílaba, e a próxima nota também não. E. SÉRIE - Em uma série de semínimas só a primeira aceita sílaba, seguindo sustentada pela série até a primeira nota de valor maior (inclusive); F. PENÚLTIMA - Se há mais notas que sílabas, é usualmente a penúltima sílaba que gera o melisma, a última sílaba sendo acentuada para a última nota; G. REPETIÇÃO - Palavras podem se repetir se houver notas suficientes para isto, desde que haja coerência semântica e sintática. A. A 1ª sílaba vai para a 1ª nota, e a última sílaba para a última nota; B. MÍNIMA - Todas mínimas e notas maiores recebem sílaba; C. TIPO LIGADURA - Duas mínimas ou semínimas podem durar uma sílaba a partir da 1ª nota; D. SEMÍNIMA - Semínima isolada pode receber sílaba, assim como a nota seguinte; E. SÍLABA ACENTUADA - Sílabas acentuadas podem perdurar por várias semimínimas; F. SÍLABA CURTA - Sílaba curta toma uma nota curta, sílaba longa uma nota longa; G. REPETIÇÃO - A repetição de palavras isoladas do texto deve ser evitada. Tabela 32. Algumas regras (selecionadas) de Lanfranco (1533) e de Stocker (1570). Um recurso importante para a colocação silábica é o uso de “ligaduras”, elementos que tem origem na escrita neumática, e que sugere alguma reverência ao stile antico medieval (APEL, 1953, p. 87-92). Há indícios de que o uso da ligadura se restringiu, ao longo do tempo, àquelas com “propriedade oposta” (significando duas semibreves). Os tratados de época 36 Em fontes primárias: LANFRANCO, Giovanni Maria. Scintille di musica. Brescia: 1533; VICENTINO, Nicola. L’antica musica ridotta alla moderna prattica. Roma: 1555; STOQUERUS, Gaspar: De musica verbali libri duo. Madrid: Biblioteca Nacional, Codex 6486, ca. 1570; ZARLINO, Gioseffo. L'Institutioni Harmoniche.Venezia: 1558; LUCHINI, Paolo. Della Musica. Pesaro: Biblioteca Oliveriana, MS 2004, ca. 1590. 37 Vale lembrar que Stocker utilizou como referência para sua obra o Mvsica nova de Willaert. 145 preconizam a aplicação de apenas uma sílaba na primeira das notas da ligadura, o que atenuaria atribuições silábicas incorretas; porém, sua utilização no século XVI estaria condicionada às limitações da imprensa em evolução. Observa-se, ao computar ligaduras em publicações de “Magnum haereditatis mysterium” de Willaert, um aumento de sua ocorrência em edições subsequentes. Ocorrências de ligaduras são listadas abaixo (Tabela 33). fonte no. de vozes ano (cantus no. de ligaduras altus tenor bassus total) Ferrara (?, ms.) 4 1527-1533 7 ? ? 11 ? Ferrara (Buglhat, ed.) 4 1538 2 0 6 2 10 Veneza (Scotto, ed.) 4 1539 4 5 12 7 28 Augsburg (Kriesstein, ed.) 4 1540 5 ? ? ? ? Veneza (Gardano, ed.) 4 1545 6 7 13 13 39 Veneza (Gardano, ed.) 5 1559 10 15 10 12 47 Tabela 33. No. de ligaduras em motetos “Magnum haereditatis mysterium” de Willaert. A título de comparação, adicionamos à esta tabela a contagem de ligaduras do “Manuscrito de Ferrara” (1527-1533)38 e da versão a cinco vozes do “Mvsica nova” (1559) de Willaert (exceto a voz do quintus). Interrogações representam vozes que não foram encontradas nas fontes primárias. A inscrição de ligaduras menos convencionais (como a obliqua, a recta com saltos de até uma oitava, e as ligaduras múltipla e com coloração) no Mvsica nova de Willaert é exemplar de um modelo preciso. A obra, revisada pelo próprio Willaert para a publicação de Gardano, não deixa sombra de dúvida quanto à disposição silábica em todas as cinco vozes de “Magnum haereditatis mysterium”, atendendo à regras de disposição claras. Em vista dos fragmentos apresentados e seus padrões de fragmentação, percebemos que o nível de complexidade da atribuição aumenta quanto maior o número de notas contra o de sílabas. A tendência é balancear esta relação de modo a reduzir as possibilidades de colocação silábica. O monossílabo “ex” (pertencente ao terceiro verso), por exemplo, sofre todo tipo de colocação, chegando a se tornar o apoio de um melisma no tenor (edições de 1538 e 1539), mas atinge um maior grau de exatidão na edição de 1545 (que poupa a sílaba do melisma prolongado), refletindo a regra F da “sílaba curta” de Stocker. Dissílabos sob melismas, como a palavra “magnum”, geram dúvidas de atribuição solucionáveis pela combinação do uso de 38 Localizado ao Royal College of Music de Londres, MS 2037. Contém 60 motetos de diversos compositores (incluindo os três motetos mysterium de Willaert) copiados em Ferrara para o Tribunal Ducal de Afonso I d'Este (1476-1534). Outras fontes manuscritas contendo “Magnum haereditatis mysterium” são também coletâneas, oriundas de Roma (1536, localizado à Biblioteca Apostolica Vaticana, MS Capp. Giulia XII.4), Königsberg (15371544, localizado à Geheimes Staatsarchiv Preussischer Kulturbesitz de Berlim, MS 7), Heilsbronn (1541, localizado à Universitätsbibliothek de Erlangen, MS 473/1 [olim 792]). 146 ligaduras, diminuições e “séries” (ver regras C, D e E de Lanfranco), formando sistemas de prolongamento complexo, a exemplo dos fragmentos 1D e 1E. O padrão de separação da palavra “mysterium”, como em 3C e 3F (a exemplo do fragmento 3A do cantochão) combina as regras C (“tipo ligadura”), D (“semínima”) e E (“nota acentuada”) de Stocker; no entanto, a regra válida para 9E é a da “penúltima” (regra F de Lanfranco). A análise de fontes primárias diversas do cantochão “Magnum haereditatis mysterium” sugere que os motetos homônimos de Willaert sejam provenientes da corrente sem transposição do modo hipodórico, especialmente as fontes franciscanas, de Marselha e de Augsburg. Neste caso, a forma pura do modo (com a sexta maior) seria preservada, o que vem de encontro a observações de notação na transcrição do moteto em tablatura por Gintzler. A comparação entre o manuscrito de Ferrara e a edição de 1545 aponta para uma grande similaridade entre ambos, o que poderia indicar que a versão produzida por Gardano seria oriunda do próprio manuscrito. Sua maior diferença são as ligaduras oblíquas, substituídas pelo tipo recta na edição de Gardano; nesta, o texto ainda aparece fragmentado em sílabas, segundo regras de Lanfranco. A ocorrência sucessivamente maior de ligaduras nas publicações citadas pode representar um avanço no diálogo entre compositor e editor, visto que manuscritos de Willaert já traziam tais detalhes. Já o aprimoramento na disposição textual em motetos parece acompanhar a discussão sobre relações agógicas e semânticas da poesia latina; mesmo os manuscritos de Willaert não parecem ser tão coerentes nesse sentido. Observou-se também que a utilização de regras combinadas de Lanfranco ou de Stocker parece conduzir a uma interpretação mais realista do processo de colocação de texto e sílaba e sua posterior atribuição por intérpretes renascentistas, o que à época certamente serviu ao refinamento de performance. Do contrário, a livre interpretação silábica seria a alternativa para a solução de tais problemas (ATLAS, 1998, p. 286-292). Por indícios do impacto que teve na audiência do século XVI e pelas questões levantadas em relação às suas edições antigas, “Magnum haereditatis mysterium” (a quatro) chama a atenção para o corpo de obras de Willaert que aguardam uma revisão tanto musicológica quanto interpretativa, compensando o distanciamento das edições e gravações realizadas no séc. XX. 3.3.2 Musica ficta e recta e análise por hexacordes No ítem anterior, impressões de época do moteto “Magnum haereditatis mysterium” a quatro vozes de Willaert foram submetidas a uma análise comparativa visando compreender 147 discrepâncias gráficas relativas ao emprego arbitrário de ligaduras de escrita mensural, disposição silábico-textual e acidentes de inflexão. Além das fontes impressas em livros de partes e em intavolatura para alaúde, também foi analisado um dos quatro conhecidos manuscritos deste moteto, datado como o mais antigo entre as fontes primárias, no qual a presença significativa de ligaduras reforçou a idéia de sua aplicação crescente em impressos (visando incorporar tantas ligaduras quanto as dispostas em manuscrito) como consequência da melhoria técnica da impressa, na medida em que a disposição silábico-textual nos impressos estaria atrelada ao uso combinado de regras de Lanfranco e de Stocker. O estudo detalhado de acidentes de inflexão, entretanto, só foi possível à luz dos outros três manuscritos obtidos mais recentemente, analisados a seguir. 3.3.2.1 Fontes primárias e a edição moderna de Zenck O moteto “Magnum haereditatis mysterium” a quatro vozes de Willaert foi analisado a partir de dez fontes primárias, entre elas duas coletâneas manuscritas em livros de partes (WILLAERT, 1527, 1537), mais duas em livros de côro (ibidem, 1536, 1541), duas coletâneas impressas em livros de partes (ibidem, 1538, 1540), e mais dois álbuns impressos exclusivos de Willaert (1539, 1545), além de duas coletâneas impressas (GINTZLER, 1547; PHALESIUS, 1552) de intavolature para alaúde (Tabela 34). Parte destas fontes históricas apresenta-se incompleta, devido ao desaparecimento ou má conservação dos livros de partes; de outra sorte, livros de côro mantém as vozes agrupadas, sendo mais provável seu resgate integral. data cidade editor/copista tipo de edição formato cantus altus tenor bassus 1527-33 Ferrara (?) MS, coletânea livro de partes x (?) (?) x 1536 Roma Parvus MS, coletânea livro de côro x x x x 1537-44 Königsberg Krüger MS, coletânea livro de partes x (?) x x 1538 Ferrara De Buglhat impr., coletânea livro de partes x x x x 1539 Veneza Scotto impr., exclusiva livro de partes x x x x 1540 Augsburg Kriesstein impr., coletânea livro de partes x (?) (?) (?) 1541 Heilsbronn Hartung MS, coletânea livro de côro x x x x 1545 Veneza Gardano impr., exclusiva livro de partes x x x x 1547 Veneza Gintzler impr., coletânea intavolatura 1552 Lovaina Phalesius impr., coletânea intavolatura Tabela 34. Cronologia de “Magnum haereditatis mysterium” em manuscritos (MS) ou impressos (impr.) Uma edição moderna (ZENCK, 1950, pg. 32) baseada nas publicações de 1539 e de 1545, foi utilizada como referência para as análises, sendo a única versão em partitura (ANEXO I). 148 Entre as fontes manuscritas, um livro de partes pode ser a edição mais antiga do moteto, gerando indícios inclusive de seu local de composição. Trata-se do ‘manuscrito de Ferrara’, como é chamado aqui neste trabalho, cujas imagens aqui apresentadas foram gentilmente cedidas para uso não comercial pela biblioteca da Royal College of Music de Londres por intermédido de Mr. Michael Mullen e Mr. James Harper (Figura 86a-b). (a) (b) Figura 86. “Magnum haereditatis mysterium” (a 4), livro de partes manuscrito (Ferrara: c. 1527-33). a) cantus; b) bassus. Incompleto (altus e tenor perdidos). Outra fonte manuscrita, desta vez um livro de coro publicado em Roma, foi adquirido comercialmente (para fins não comerciais) com a Biblioteca Apostolica Vaticana. O estado de conservação é ruim, sendo que muitos dos álbuns ali armazenados tiveram suas folhas corroídas pelo efeito da tinta, ao longo dos anos (Figura 87). Já o manuscrito em partes de Königsberg foi cedido gentilmente pela Staatliches Institut für Musikforschung - Preußischer Kulturbesitz, por intermédio de Mr. Carsten Schmidt (Figura 88). As outras edições impressas do moteto foram produzidas em Ferrara (1538) e Veneza (1539, reeditado em 1545), apontando para uma complexa rede de transmissão de fontes. Tal aspecto foi estudado em detalhes em trabalho publicado em anais de congresso internacional em Madrid (trabalho completo, ver anexo IV). 149 Figura 87. “Magnum haereditatis mysterium” (a 4), livro de coro manuscrito (Roma: Parvus, 1536). Completo. Figura 88. “Magnum haereditatis mysterium” (a 4), livro de partes manuscrito (Königsberg: Krüger, 1537-44). Voz do cantus. Incompleto (falta a parte do altus) Um estudo preliminar destas fontes logo indicou a edição de Heilsbronn de 1541 (Figura 89) como uma possível cópia manuscrita da edição de Augsburg, impressa um ano antes por Kriesstein (Figra 90). Seu autor, Johannes Hartung, teria copiado um grande repertório de 150 motetos e peças luteranas a partir de fontes impressas de Rhau, Petreius, Formschneider e outros, visando ao treinamento vocal de alunos na abadia cistercience de Heilsbronn entre 1538 e 1548 (HAMM, CALL, 1980, pg. 924). Semelhanças do cantus nas edições de Hartung e Kriesstein - inclusive a idêntica inscrição de pausas, um dos aspectos mais variáveis entre as fontes - reforçariam a hipótese de que as outras vozes disponíveis da edição de Heilsbronn representariam, da mesma forma, cópias das partes desaparecidas de Augsburg, validando assim as considerações sobre a edição de 1541 também para sua suposta precursora, de 1540. Por consequente, a edição do moteto em 1540 (Kriesstein) não será tratada nesta análise (assim como a intavolatura de Phalesius, uma cópia perfeita de Gintzler, apenas adaptada de tablatura italiana para francesa). Figura 89. “Magnum haereditatis mysterium” (a 4), livro de coro manuscrito (Heilsbronn: J. Hartung, 1541). Completo, porém com alterações. Provável cópia manuscrita da edição de Augsburg. Figura 90. “Magnum haereditatis mysterium” (a 4), livro de partes impresso (Augsburg: Kriesstein, 1540), voz do cantus. Incompleto (apenas o cantus sobrevive). 151 (a) (b) (c) Figura 91. “Magnum haereditatis mysterium” (a 4), livros de partes impressos em Ferrara e Veneza, completos, voz do cantus. a) Ferrara: De Buglhat, 1538; b) Veneza: Gardano, 1539; c) Veneza: Gardano, 1545. 152 3.3.2.2 Inflexões recta por inscrição de acidentes, deductio e intabulação A ocorrência de acidentes inscritos nas diversas fontes de “Magnum haereditatis mysterium” foi registrada em associação a palavras cuja localização é indicada pelo número de compasso da transcrição moderna de Zenck (ANEXO I). Já as intavolature foram analisadas por outro procedimento, devido à incorporação de notas com inflexão à sua escrita. Nenhuma das edições do moteto apresenta inscrições de acidentes ficta, sendo e♭ o único acidente recta ocorrente (devido à transposição do sistema, como visto anteriormente). A voz do cantus não apresenta inscrição de acidente, em doze ocorrências da nota e; já o tenor apresenta inscrição de acidente em uma das quatro notas e ocorrentes, junto à palavra pollutus (Tabela 35). Para o altus pode haver até três inscrições dentre trinta e três notas e ocorrentes, junto às palavras uterus, pollutus e tibi, como em impr. Ferrara e MS Roma, outras edições apresentando menor índice. Por fim a voz do bassus apresenta, ao longo de vinte e quatro ocorrências da nota e, até dez acidentes inscritos como em MS Königsberg, onde não figuram cinco diferentes inscrições ocorrentes em outras fontes; a inflexão destas se dará, no caso, por repercussão de acidentes precedentes no mesmo ambitus (salvo um único caso, associado à palavra nesciens). compasso (Zenck) impr. Ferrara 1538 impr. Veneza 1539 impr. Veneza 1545 MS Ferrara 1527-33 MS Roma 1536 MS Königsberg 1537-44 MS Heilsbronn 1541 tenor, c.43 pollutus pollutus pollutus (?) pollutus pollutus pollutus altus, c.23 " , c.40 " , c.74 uterus pollutus tibi uterus pollutus --- uterus pollutus --- (?) (?) (?) uterus pollutus tibi (?) (?) (?) ----tibi misterium repercussão uterus virum repercussão --ex ea est ex ea assumens gentes tibi repercussão gloria repercussão ------------ex ea --ex ea --gentes ----gloria domine bassus, c.14 " , c.15 " , c.25 " , c.27 " , c.28 " , c.31 " , c.37 " , c.41 " , c.43 " , c.53 " , c.57 " , c.71 " , c.74 " , c.81 " , c.84 ------------misterium misterium misterium misterium --------------------uterus uterus uterus uterus uterus ----nesciens nesciens nesciens ex ea ex ea ex ea ex ea ex ea --est est --est --ex ea ex ea ex ea ex ea --------------------------------domine domine --domine gloria gloria gloria gloria gloria repercussão repercussão repercussão repercussão repercussão Tabela 35. Palavras associadas a um e♭ inscrito no tenor de “Magnum haereditatis mysterium” (a 4) de Willaert. O símbolo (?) indica que não há remanescente histórico deste livro de partes, nesta e nas próximas tabelas. 153 Já a intavolatura para alaúde, livre de acidentes de inflexão, tem suas notas definidas por digitação in loco na tablatura. Assim, foi possível comparar inflexões e♭ desta fonte (exceto diminuições) com as inscrições de acidentes já contabilizadas, além daquelas indicadas em edição moderna (ed. Zenck), dispostas na Tabela 36; para isto, foi necessária a transcrição da intavolatura em partitura a quatro vozes, por aproximação à ed. Zenck (ANEXO II). inflexões para e♭ ocorrentes 1527 MS Ferrara 1536 MS Roma 1537 MS Königsberg por acidentes inscritos 1538 impr. Ferrara 1539 impr. Veneza 1541 MS Heilsbronn 1545 impr. Veneza por acidentes + (deductio) 1950 ed. Zenck em tablatura 1547 Intavolatura cantus 0 0 0 0 0 0 0 altus (?) 3 (?) 3 2 1 2 tenor (?) 1 1 1 1 1 1 bassus 6 8 10 3 7 5 8 0 + (4) 2 + (14) 1 + (1) 8 + (7) 0 4 2 17 12 39 3 24 total de notas e ocorrentes Tabela 36. Inflexões ocorrentes por acidentes inscritos, deductio ou em tablatura, e total de notas e ocorrentes. Intabulações refletem não só os acidentes inscritos em fontes históricas mas também aqueles interpretados por repercussão e deductio39. A exemplo, o acidente avulso inscrito no tenor em diversas edições, repercutindo em uma nota e localizada no mesmo ambitus (c. 43, ed. Zenck), é representado em duplicidade na tablatura (bem como em c. 28 do bassus) em uma correta leitura da fonte (Tabela 37, “repercussão”). As correspondências entre as fontes históricas mais recentes e a edição de Zenck explicitam o ônus da intabulação de S. Gintlzer em julgar entre e♭ e e♮, por vezes opostas às atribuições de H. Zenck. voz vs. inflexão por: deductio (intav. Veneza vs. ed. Zenck) tenor repercussão reprodução c. 43 c. 65 (somente e♮) c. 15, 31, 37, 41, 42, 74, 81 c. 60, 61 c. 25, 27, 53, 57, 83 c. 55 c. 36, 77 impr. Veneza, 1545 e e e e♭, e e♭ intav. Veneza, 1547 e♭* e♭ e♮* e♭, e♭ e♭ ed. Zenck, 1950 e♮ e(♭) e(♭) e♭, e e♭ bassus c. 28 Tabela 37. Inflexões de e relativas ao tenor e ao bassus, por deductio entre e♭ e e♮, repercussão de acidente no mesmo ambitus (compasso) e reprodução de acidentes inscritos (*tablatura em oposição à H. Zenck). Atribuições de Zenck em outras vozes ainda geram discrepâncias. No cantus, apresenta inflexões por deductio sem indicação em outras fontes e sem correspondência com a tablatura; 39 A deductio vale para qualquer inflexão seja recta ou ficta, estando necessariamente associada a um hexacorde. 154 para o altus o número se eleva a quatorze inflexões, uma em correspondência à tablatura (c. 74) e outras treze (incluindo repercussões em dois compassos) em oposição à mesma (Tab. 38). Já na tablatura só ocorre inflexão no altus, duas por deductio (uma em oposição a Zenck) e duas por reprodução (com alteração adicional). A partir destes dados, foi realizada uma análise detalhada do moteto com base em convenções de polifonia. voz vs. inflexão por: deductio (intav. Veneza vs. ed. Zenck) cantus altus repercussão reprodução c. 41, 42, 54, 79 c. 59 c. 74 c. 3, 7, 26, 30, 36, 48, 52, 81, 82 c. 17, 44 c. 23 c. 40 impr. Veneza, 1545 e e e e, e e♭ e♭ intav. Veneza, 1547 e♭* e♭ e♮* e♮, e♮* (e♮), e♭ e♭ ed. Zenck, 1950 e♮ e(♭) e(♭) e(♭), e(♭) e♭ e♭ Tabela 38. Inflexões de e relativas ao cantus e ao altus, por deductio entre e♭ e e♮, repercussão de acidente no mesmo ambitus (compasso) e reprodução de acidentes inscritos (*tablatura em oposição à H. Zenck). Nas tabelas, as deduções entre e♭ e e♮ estão explicitamente associadas à voz e cláusula em que ocorrem, e ainda em negrito caso se trate de um acidente inscrito. O símbolo †, se associado a uma nota na tabela (ex. †-e♮), revela sua posição no movimento de evasão. Resoluções sem o estereótipo do movimento de semitom não foram tratadas como cadênciais. 3.3.2.3 Análise de inflexões ficta e recta por causa pulchritudines A análise apontou um total de 39 inflexões cadenciais, das quais 18 ficta e outras 21 recta. A cadência é perfeita exceto na ausência do basizans (semiperfeita) e incompleta se o tenorizans alterar sua fórmula; se é o basizans que se altera a cadência é apenas fuggita, ou ainda caso caminhe em grau conjunto paralelo ao cantizans, a cadência é de engano. Inflexões f♯ ficta em cláusula vera têm resolução em g (Modo 2 plagal transposto), ocorrendo sob fórmula cantizans – condição exclusiva para a convenção subsemitonum modi – livres de intervenção mi contra fa e majoritariamente no cantus, exceto por uma cadência no altus (semiperfeita) e uma outra no tenor (incompleta e invertida). Apenas uma nota f♯ em terça de picardia representa cláusula frígia (Tabela 39). Uma única cláusula simplex ficta seria possível para f♯, em cadência de engano, mas que é deduzida como recta tanto por Zenck como por Gintzler (c. 73). Já em oposição a este, Zenck ignora a formação da terça de picardia (c. 31). Ambos os casos ocorrem em relação oblíqua com notas e♭ de outras vozes; tal situação não impede a Zenck, contudo, realizar uma dedução ficta se o sustentatio for provido por uma convenção subsemitonum modi (c. 40). 155 cc. cláusula C A T B resolução 15-16 formalis cantizans (f♯) altizans (→) tenorizans basizans G perfeita 83-84 formalis cantizans (f♯) altizans (→) tenorizans basizans G perfeita 45-46 formalis cantizans (f♯) altizans (→#) tenorizans basizans G perfeita 49-50 formalis cantizans (f♯) altizans (→#) tenorizans --- G semiperfeita 19-20 formalis altizans (†) cantizans (f♯) tenorizans --- G semiperfeita 53-54 formalis cantizans (f♯) altizans (→) tenorizans (°-#) basizans G incompleta 77-78 formalis cantizans (f♯) altizans (→) tenorizans (°-#) basizans G incompleta 32-33 formalis --- tenorizans (°-b♭) cantizans (f♯)* basizans G incompleta 27-28 formalis cantizans (f♯) tenorizans altizans (→#) basizans (†-#) G fuggita 40-41 formalis cantizans (f♯) altizans (→) tenorizans basizans (†) G engano ( e♭) 73-74 simplex cantizans (f♯) altizans (→†) tenorizans basizans (†) G engano ( e♭) 30-31 formalis 3ª picardia (f♯) cantizans altizans (†) tenorizans (e♭) D frígia Tabela 39. Ocorrências de f♯ ficta para “Magnum haereditatis mysterium” (a 4) de Willaert. Cadências: † fuggita; ° incompleta; * invertida. Quinta sustentada: (→). O negrito indica bemóis inscritos em Zenck. Inflexões c♯ ficta por sua vez sofrem resolução em d, em cadência perfeita no cantus (porém fuggita, por pausa na resolução do basizans) e semiperfeita no altus. Para inflexões b♮ ficta as resoluções ocorrem em c, por cadência perfeita incompleta, com o cantizans invertido no altus ou no tenor, e em cadência semiperfeita no tenor, sob cláusula diminuta (Tabela 40). Cadências com cantizans ficta podem agregar inflexões recta em fórmulas concorrentes: na Tabela 39, basizans em engano (d-e♭, cc. 41 e 74), e na Tabela 40, tenorizans em resolução regular (e♮-d, cc. 65 e 71) ou incompleta (d-e♭, c. 42), e altizans em resolução fuggita (f-e♮, cc. 10 e 70). cc. Cláusula C A T 65-66 formalis cantizans (c♯) tenorizans (e♮) 71-72 formalis --- altizans (→) cantizans (c♯) 41-42 formalis tenorizans (°-e♭) cantizans (b♮)* --- basizans C incompleta 21-22 formalis altizans (→) cantizans (b♮)* basizans C incompleta 9-10 diminuta altizans tenorizans (°-#) altizans (†-e♮) cantizans (b♮) tenorizans C semiperfeita 69-70 diminuta --- altizans (†-e♮) cantizans (b♮) tenorizans C semiperfeita altizans B resolução basizans (†-#) D tenorizans (e♮) D fuggita semiperfeita Tabela 40. Ocorrências de c♯ e b♮ ficta para “Magnum haereditatis mysterium”. Cadências: † fuggita; * invertida; ° incompleta;. Quinta sustentada: (→). Negrito nos compassos indica atribuição contrária na tablatura. Inflexões recta sob cláusula formales ou diminuta semiperfeita podem atuar como cantizans na resolução e♮-f ou como altizans fuggita em cadências para b♭, como na Tabela 41. Inflexões e♭ em cadência frígia ou plagal ocorrem no altus e no tenor como tenorizans (sob cláusula simplex invertida) ou no bassus como tenorizans ou basizans (Tabela 42). 156 cc. cláusula C A T B resolução 20-21 formalis altizans (†) cantizans (e♮) tenorizans basizans F perfeita 56-57 formalis cantizans (e♮) basizans (†) tenorizans basizans (†-d) F engano (d) 11-12 diminuta altizans (†) cantizans (e♮, e♮) altizans tenorizans F semiperfeita 75-76 diminuta altizans (†) cantizans (e♮, e♮) altizans tenorizans F semiperfeita 58-59 formalis cantizans altizans (f- e♮)° tenorizans B♭ fuggita 81-82 formalis cantizans altizans (e♭-†) tenorizans basizans (†-#) basizans (†-g) B♭ engano (g) ‡ 55-56 formalis tenorizans (†) cantizans altizans (e♭-†) tenorizans B♭ semiperfeita‡ 79-80 diminuta altizans (e♭, †-#) tenorizans (†) cantizans tenorizans B♭ semiperfeita‡ Tabela 41. Ocorrências recta no cantizans e no altizans de “Magnum haereditatis mysterium”. † cadência fuggita; ° abstenção do f do altus na tablatura; ‡ sem ornamentação ou cláusula diminuta na tablatura. Nas tabelas 40 a 42, números de compasso em negrito indicam que a atribuição recta de Zenck é oposta à de Gintzler, cujas ornamentações no tenorizans envolvendo e (ou no basizans, influenciando o tenorizans sem ornamentação, c. 7, ANEXO II) em cadências frígias e plagais (Tabela 42) inviabilizam correspondências de deductio molle com Zenck uma vez que notas de curta duração não se sujeitam a inflexão recta. Em tais cadências, correspondências ocorrerão quando e♭ estiver desvinculado de ornamentação, mas regido por restrição mi contra fa, convenção fa super la (c. 53) ou acidente inscrito (c. 15 e 43); ornamentações em tablatura podem ainda ocorrer no cantizans de cadências frígia ou vera (com ficta ou e♮ recta, exceto simplex, c. 76), além da resolução fuggita em b♭ (c. 58-59, Tabela 41) seguida de atribuição molle contrária à Zenck, no altus. cc. cláusula C A T B resolução 3-4 simplex altizans (†) tenorizans (e♭) ‡ cantizans (†) cantizans D frígia* 44-45 simplex altizans (†) tenorizans (e♭)° altizans (†) cantizans D frigia* 17-18 simplex altizans (†-#) tenorizans (e♭) ‡ cantizans (†) basizans (IV-I) G plagal* 74-75 simplex altizans (†) tenorizans (e♭) cantizans (†) basizans (IV-I) G plagal* 7-8 simplex altizans (→) tenorizans (e♭) cantizans (†) basizans (IV-I) ‡ G plagal* 43 simplex altizans (†) altizans (→) tenorizans (e♭) cantizans (IV-I) G plagal* 83-84 formalis altizans (†) cantizans ‡ altizans tenorizans (e♭) D frigia 24-25 formalis altizans (†) cantizans ‡ altizans (†) tenorizans (e♭) D frígia 52-53 formalis altizans (†) cantizans altizans tenorizans (e♭) D frigia 77 quasi sp altizans (†) cantizans altizans tenorizans (e♭)° D frigia 15 quasi sp altizans (†) altizans cantizans ‡ tenorizans (e♭) D frígia 27 simplex altizans (†) altizans cantizans ‡ tenorizans (e♭) D frígia 57-58 formalis altizans (†) cantizans altizans (†) basizans (e♭ - b♭) B♭ plagal Tabela 42. Ocorrências recta no tenorizans e no basizans de “Magnum haereditatis mysterium”. Cadências: † fuggita; * invertida; ‡ com ornamentação na tablatura; ° já ornamentado no moteto. Quinta sustentada: (→). 157 Ocorrências não-cadenciais de e♮ na tablatura devem-se a ornamentações (c. 3, 7,36, 41, 44,54, 77, 81), ou a associação direta com a nota dó grave (c. 17, 23, 26, 30, 42,44, 48, 52, 55, 79, 82), enquanto que e♮ é preterido por e♭ em ocorrências anômalas por associação direta com a nota sol grave (cc. 23 e 59), e b♮ contra b♭ em uma diminuição do cantizans no que seria uma cadência em Dó, para Zenck (c. 22). Já este leva em consideração a interpretação direta do moteto, a partir das edições de Veneza, sendo mais fiel às convenções de inflexão cromática de época, especialmente a concordância de hexacordes. 3.3.2.4 Análise de inflexões recta por outras convenções Mi contra fa. Relações harmônicas regidas por esta convenção ocorrem de forma direta (mesmo tempo) ou oblíqua (por prolongamento de uma das notas), com influência variável na dirigência por e♮ (frente a Lá ou Mi♮) ou por e♭ (contra Si♭ ou Mi♭), formando intervalos de quinta ou oitava. Inflexões e♮ nesta convenção ocorrem no altus por relação direta com o bassus (c. 5) e por relação oblíqua com o bassus (cc. 5 e 50), tenor (cc. 4 e 13) e cantus (c. 47, talvez c. 30). Outras relações durum diretas ocorrem no bassus (com o altus, c. 14) e no tenor (com o bassus, c. 65). Uma relação durum oblíqua ocorre no cantus (com o tenor, c. 63). Inflexões e♭ regidas por mi contra fa são marcadas por inscrição de bemol no bassus em relações com o tenor (cc. 28, 42, além de c. 28, sem inscrição), cantus (cc. 31 e 81, este último em relação direta) e altus (c. 74); no altus a inscrição ocorre uma única vez, com o cantus (c. 23). O altus apresenta ainda uma relação direta com o bassus (c. 36) e uma relação oblíqua com o tenor (c. 26); já o tenor apresenta uma relação oblíqua com o cantus (c. 43). Fa super la. A atuação desta convenção é exclusiva ao hexacorde natural, com ocorrências no altus, sempre em relação de 3ª menor com uma nota Dó grave (cc. 3, 26, 30, 48 e 52), além de uma possível ocorrência no bassus (c. 53). Na tablatura de Gintzler, apenas esta última é ocorrente; atribuições durum impedem que o altus adote fa super la, e sem recorrer à figuração (exceto na primeira delas). Figuração melódica. Já se mostrou importante nas tablaturas de Gintzler, permitindo a inflexão durum mesmo em ambiente molle. Além das ocorrências cadenciais, outras quatroze figurações podem influenciar deduções por e♮ exceto no tenor, sempre em posição submétrica (com uma exceção no tactus, c. 19). Concordância hexacordal. Entre vozes, pode determinar inflexões cromáticas molle (cc. 23, 44, 74, 81 e 82) ou durum (c. 7, 12, 59 e 70) do altus em concordância com o bassus; relações do cantus com o bassus também são comuns (cc. 41, 42, molle; cc. 73, 61, durum), 158 dentre outras. O hexacorde também influencia inflexões em seu próprio ambitus, como uma espécie de convenção mi contra fa melódica (cc. 17, 36, 43, molle; cc. 61 e 63, durum). Os diversos aspectos relacionados podem atuar conjuntamente a favor de um dedução, como em cadências apoiadas por fa super la (cc. 3, 30, 53), mi contra fa (cc. 12, 31, 65) e concordância hexacordal (cc. 7, 12, 31, 43, 55). Também podem gerar dúvidas de atribuição, como observado no altus (cc. 7, 12, 19, 30), cantus (c. 54) e bassus (c. 77). Na medida em que seria mais acurada a análise de “Magnum haereditatis mysterium” de Willaert a partir do conjunto completo de suas edições, deparou-se com a questão de partes sem remanescentes históricos em alguns casos, impossibilitando um parecer conclusivo sobre a ligação entre manuscritos e edições impressas com base no perfil de acidentes inscritos. Das partes com mais remanescentes, pouco se extrai do cantus por não apresentar nenhuma inscrição de acidente; já para o bassus (faltante apenas na edição de 1540), a ocorrência de acidentes inscritos nas palavras “misterium”, “est”, “ex ea” (segunda vez) e “domine” distancia os impressos de Veneza (1539 e 1545) daquele de Ferrara (1538), ao mesmo tempo que os aproxima do manuscrito de Roma (1536). A questão da filiação estemática destas edições é retomada nos estudos do ANEXO IV, levando em consideração padrões de disposição silábica e de ocorrência de ligaduras mensurais. O estudo de inflexões cromáticas por deductio revelou a íntima ligação das inflexões ficta com cadências de diferentes categorias. Eventualmente, cadências envolverão notas do universo recta em inflexões molle e durum, atuando ao longo da peça segundo diversas convenções de época aqui tratadas, permitindo um estilo de interpretação “teoricamente informado” como o da edição de Zenck, onde a opção por um amplo uso de inflexões molle sugere que consonâncias melódicas se estabeleçam em uma ou mais vozes. Já a tablatura de Gintzler sugere uma prática que evita inflexões molle pelo uso sistemático de diminuições, porém fazendo uso de deduções menos convencionais ou antagônicas àquelas de Zenck em diversos casos. Chamam a atenção as deduções de Gintzler para e♮ ou e♭ em relação harmônica direta a Dó ou Sol graves respectivamente, mesmo em ambiente envolvendo b♭, o que se alinharia a uma visão harmônica em desenvolvimento na metade do século XVI. 159 3.3.3 Análise motívica e cadencial de “Magnum haereditatis mysterium” Diferentemente da peça que será analisada adiante, “Magnum haereditatis mysterium” é composta sobre cantus firmus, de tal modo que as convenções de análise serão particulares para cada peça. Neste caso, a extensão dos versos será delimitada por colchetes vermelhos em cada voz, amarelo indicando terminação prévia e cinza indicando articulação de fragmento do verso, enquanto que o cantus firmus terá cor sempre vermelha e palavras deduzidas estarão entre parêntesis. O verso de abertura é um exordium tanto para poesia como para música. Seu cantus firmus correlato tem padrões melismáticos e silábicos emprestados do cantochão, e é inteiramente desenvolvido na voz do cantus em todos os versos da antífona, com algumas exceções notadas por Rivera (1993, p. 76). Para a primeira palavra, “Magnum”, nota-se que um segmento de melisma é duplicado uma terça abaixo na voz imediatamente inferior, o altus. Esta duplicação é precedida por uma imitação transposta uma quinta abaixo, no altus e no tenor, dando à palavra “Magnum” uma dimensão mais ampla e refletindo o seu significado. O próximo fragmento, “haeretitatis”, é afirmado como um motivo parafraseado no tenor formando um constructo contrapontístico com uma linha de baixo que conduz a uma cadência ornamentada em C (per transito); o constructo é imitado então uma quarta acima, levando a uma cadência em F (também ornamentada e per transito), porém com o motivo no altus, enquanto o baixo realiza um contraponto idêntico. Os formatos contrastantes dos fragmentos do cantus firmus “magnum” e “hereditatis” estão relacionados com as diferentes texturas imitativas que evoluem delas próprias (Exemplo 36). Exemplo 36. “Magnum haereditatis mysterium”, análise do segmento “Magnum hereditatis” do exordium. 160 Esta passagem conduz à palavra “mysterium”, onde um agrupamento não-imitativo se desdobra em um padrão polirrítmico melismático nas vozes graves, seguido por uma cadência escalonada que finaliza o exordium de uma maneira quase completa (Exemplo 37). O próximo verso se inicia com “templum Dei factus est” na forma de um duo expositivo à oitava entre tenor e cantus, o ultimo portando o cantus firmus (CF daqui em diante). Este processo é reforçado pela duplicação do tenor uma terça acima no altus, e por meio de imitações digressivas no bassus que funcionam virtualmente como um base de construção (Exemplo 37): Exemplo 37. “Magnum haereditatis mysterium”, análise do segmento “misterium and templum Dei factus est”. O verso se estende através da seção “uterus nesciens virum” mudando sua textura por meio de múltiplos recursos polifônicos. Um constructo contrapontístico parafraseia o CF no cantus, estabelecendo correlação cadencial com um agrupamento polirrítmico. Este ultimo é seguido por uma imitação do constructo, coordenado por um duo expositivo não imbricado entre cantus e tenor. Ambos os constructos imitativos são similares e tem a mesma finalis. De acordo com Rivera, neste momento o fragmento do CF “nesciens virum” migra para o tenor, apesar da falha do autor em não mencionar a palavra “uterus”. De um certo ponto de vista isso pode estar certo, uma vez que uma pausa desliga os dois fragmentos relacionados; sobretudo, “uterus” no cantus poderia resolver em uma forte cadência com o bassus, considerando ali uma inflexão ficta. Por outro lado, o critério de Rivera poderia levar à ambiguidade, uma vez que todas as vozes pronunciam o texto completo até o fim do motivo do cantus; mas o fato de que Rivera localiza-o no tenor coincide com sua ocorrência final na seção completa. Esta conclusão 161 ocorre com um constructo contrapontístico adicional logo acima, envolvendo apenas as palavras “nesciens virum”. Como consequência, as palavras “uterus” e “nesciens” estão parcialmente sobrepostas, criando um cenário textural diverso que poderia simbolizar a pureza de Maria (Exemplo 38). Exemplo 38. “Magnum haereditatis mysterium”, análise do segmento “uterus nesciens virum” O próximo verso, “non est pollutus ex ea” (Exemplo 39) poderia também ser um simbolismo de pureza, mas agora relativa à encarnação de Jesus. Como um meio de alterar a textura prévia, Willaert cria uma série de motivos parafraseados em stretto, começando com o tenor imbricado com o verso prévio, mas ainda não como um motivo completo; isto acontecerá, de fato, no primeiro duo imitativo entre altus e bassus, incluindo o fragmento “ex ea”. Isto parece ser um agrupamento expositivo, devido à similaridade com o ultimo agrupamento desta seção, que apresenta o CF no cantus, parafraseado no tenor uma quinta abaixo. O segundo duo desta seção é digressivo, com imitação na oitava, enquanto que o terceiro é o mais digressivo, devido à sua larga distância temporal e paráfrase modificada; apesar disso, mantém um importante papel na cadência escalonada que termina a seção. Este maior conjunto de agrupamentos indica o valor retórico da repetição nesta seção. 162 Exemplo 39. “Magnum haereditatis mysterium”, análise do segmento “non est pollutus”. O próximo fragmento (Exemplo 40), “Carnem assumens”, passa por agrupamento imitativo em stretto com duplicação no tenor. Um agrupamento em stretto similar ocorre por meio de contraponto inversível, implicando em rotação espacial com um eixo no altus. Após o segundo duo, um motivo digressive entra na voz do cantus, coordenando uma cadência escalonada que conclui esta seção de forma similar à anterior. O procedimento todo dá à palavra “carnem” um sentido ainda mais dramático como o núclo central do verso. Exemplo 40. “Magnum haereditatis mysterium”, análise do segmento “carnem assumens”. 163 Como revelado pela estrutura do moteto, cadências escalonadas criam grandes articulações principalmente no final dos versos. Contudo, elas irão ocorrer novamente apenas ao fim do moteto. Isto poderia refletir uma mudança no tom do discurso, uma vez que os versos dramáticos já foram expostos. Nenhuma cadência forte é encontrada para os termos “omnes gentes” e “venient dicentes”, que apresentam apenas cadências regulares (segunda e intermedia) fora da finalis. “Omnes gentes” é entoado por dois duos imitativos imbricados, cada um com um motivo diferente, mas fortemente correlatos por conexões cadenciais. Por força de relações de imbricação, o CF não pode estar em outra voz que não a do tenor, como presumido por Rivera. Estes aspectos imitativos podem sugerir o senso de multiplicidade inerente à esta expressão. Diferentemente, "venient dicentes" (Exemplo 41) apresenta uma rede imitativa diversa pelo entrelaçamento de um duo expositivo com um digressivo, além de um duo homorrítmico entre altus e bassus. Tal diversidade favorece o senso apelativo da repetida expressão. Exemplo 41. “Magnum haereditatis mysterium”, análise do segmento “venient dicentes”. A fraca articulação produzida pelas cadências antes de “Gloria tibi Domine” sugerem que esta é consequente à seção anterior, ao invés de ser um verso isolado. Isso é organizado por meio de um eixo triplo de exposições articuladas envolvendo altus, cantus e altus novamente (Exemplos 41 e 42). 164 Exemplo 42. “Magnum haereditatis mysterium”, análise do segmento “Gloria tibi domine” A primeira seção conduzida pelo altus coordena um constructo contrapontístico com as vozes graves, terminando em D sobre uma clausula vera fraca (Exemplo 42). A seção em que o cantus conduz o CF termina em uma intensa cadência escalonada em G. Sob o CF, dois processos sobrepostos replicam o texto (Exemplo 42). Um deles, um agrupamento homorrítmico, é composto por tenor e bassus. O outro, um constructo contrapontístico, é feito por cantus e altus. O motivo final do altus leva a uma cadência frígia em D, esta por sua vez sendo apenas um componente da cadência escalonada de encerramento. Dois constructos contrapontísticos sucessivos dialogam com esta última parte, o primeiro formado por tenor e bassus, o outro consistindo em uma imitação à oitava por cantus e altus. O grande eixo expositivo (Exemplos 41 e 42) e o arranjo simétrico dos agrupamentos finais são uma solução musical que favorece a reiteração desta expressão de piedade. As palavras estão distribuídas igualmente através da textura polifônica por meio de uma sólida estrutura que conclui o moteto. O plano cadencial completo do moteto encontra-se no ANEXO III. Uma análise de filiação estemática deste moteto também segue, como ANEXO IV, incluindo as definições de Grier (1996, p. 4 e outras) sobre o assunto. 165 3.4 Clemens non Papa e o moteto “Venit vox de coelo” “Venit vox de coelo” é um moteto de Clemens non Papa referente à passagem bíblica da conversão de Paulo, que ao atravessar o deserto em direção a Damasco, escuta uma voz que vem do céu. O moteto é constituído de duas partes, das quais apenas a primeira foi analisada extensivamente, sobre os versos: “Venit vox de coelo” (Veio uma voz do céu) / “cum luce superna” (com uma luz celestial) / “super Saulum dicens” (sobre Paulo, dizendo) / “Saule, Saule” (Saulo, Saulo) / “quid me persequeris?” (por que me persegue?) / “durum est tibi contra stimulum calcitrare” (É difícil para ti recalcitrar contra os aguilhões). Em seu arranjo polifônico para o texto sacro o compositor combina fragmentos do Ato dos Apóstolos (Cap. 9, versículos 3 e 4) na prima pars no moteto (“Venit vox de celo cum luce superna super Saulum dicens: Saule, Saule, quid me persequeris?”) e versículo 5 na secunda pars (“Respondit miles: quis es tu Domine? et vox desuper ait: Ego sum Iesus sus quem tu”) com um trecho adicional retirado do capítulo 26, versículo 14 (“durum est tibi contra stimulum calcitrare”) similar a um estribilho, encerrando cada uma das partes. Clemens cria para esta seção do texto uma textura polifônica e imitativa especialmente densa acompanhando a frase mais emblemática do texto do moteto: “Saulo, Saulo por que tu Me persegues? É difícil pra você recalcitrar contra os aguilhões”. A estrutura básica do texto como arranjada por Clemens non Papa se estabelece como exordium, medio e finis (segundo Dressler, ver adiante). Embora a questão especificamente retórica não seja objeto deste trabalho é tomada como ponto de partida para a análise exposta mais a frente. Esta estratégia se refere a princípios retóricos aplicados por Gallus Dressler em seu “Praecepta musicae poeticae”, trabalho não publicado e escrito por volta de 1564, cujo texto em latim só foi editado por Bernhard Engelke em Geschichtsblätter für Stadt und Land Magdeburg, XLIX-L, entre 1914 e 191540. Os conceitos de Dressler definem estruturalmente os motetos daquela geração de compositores que o tratadista denomina de “geração pósJosquin”, na qual, segundo ele, pontua destacadamente a produção de motetos de Clemens non Papa. O tratado oferece também importantes referências analíticas quanto ao plano cadencial (clausula), principalmente no Caput XII em que o autor define detalhadamente uma tipologia de cadência para cada uma das vozes de motetos. Não sendo viável a adoção de um único modelo tratadístico para a análise do moteto “Venit vox de coelo” foram selecionadas as cláusulas primera e segunda de Montanos para 40 Uma nova edição crítica e traduzida para o inglês foi publicada em 2007 pela University of Illinois Press. 166 resoluções de articulação na finalis (F) e confinalis (C). Se uma cláusula na finalis articula seções intermediárias, o termo mais relacionado é cadenze regolare, usado por Zarlino, Tigrini e Pietro Aron; já Pietro Pontio preocupa-se especialmente com a resolução na finalis, caracterizando-a como cadenza propria (própria ao modo). Pontio ainda utiliza o termo per transito se a resolução não se dirige à finalis nem à cofinalis. 3.4.1 Fontes primárias de “Venit vox de coelo” “Venit vox de celo” de Clemens non Papa é encontrado em diversos álbuns durante a segunda metade do século XVI. Tais fontes primárias encontram-se em forma impressa ou manuscrita, como livros de coro e de partes, bem como em tablaturas para órgão. A circunspecção do moteto foi limitada a edições publicadas até 1559, a maioria delas impressa em livros de partes, além de duas tablaturas tardias. Devido a uma série de diferenças entre as fontes, foi editada uma partitura baseada em edição rotuladas com letras gregas (na Tabela 43). Algumas fontes não foram consideradas por serem incompletas ou indisponíveis. ano tipo livro de procedência editor título fonte Antuérpia (Bélgica) Plantin “Stonyhurst partbooks” WhalleyS 23 Munique (Alemanha) Steydl “Munich choirbook” MunBS 13 PR partes Louvain (Bélgica) Phalèse Lib. 1 cantionum sacrarum RISM 1554/1 PR partes Geneve (Suíça) Du Bosc Secundum liber modulorum RISM 1554/13 b PR partes† Veneza (Itália) Scotto Motetti del laberinto Lib. 4 RISM 1554/16 1555 g PR partes Antuérpia (Bélgica) Phalèse Lib. 1 cantionum sacrarum RISM 1555/2 /após d MS partes Kassel (Alemanha) Heugel “Kassel partbooks” KasL 91 1556 MS côro‡ Pirna (Alemanha) Weissenberger “Pirna choirbook” DresSL Pirna MS partes° H. Krávolé (Boêmia) (?) “Hradec Krávolé partbook” HradKM 29 PR partes° Geneve (Suíça) Quartus liber modulorum RISM 1559/5 1552 MS partes /após a MS 1554 côro 1559 e PR partes Nuremberg (Alemanha) j MS côro Leiden (Holanda) 1575 PR tablatura Leipzig (Alemanha) 1585 MS tablatura Tübingen (Alemanha) Sylvius Berg & Neuber De Blauwe 2a pars magni operis musici RISM 1559/1 “Leiden Choirbooks” LeidGA 1439 Ammerbach / Beyer Ein new kunstlich Tabulatur RISM 1575/17 diversos “Tübingen tablature” BasU F.IX.44 Tabela 43. Relação das fontes primárias consultadas para o preparo da transcrição de referência para a análise. MS – manuscrito; PR – impresso. * Apenas a voz do quintus e do septimus remanescentes41. † Parte do contratenor perdida. ‡ Condições muito precárias. ° Apenas a voz do bassus remanescente. Como indicado na Tabela 43, quatro livros de parte contendo este moteto estão incompletos. Para o mais antigo deles, “Stonyhurst partbooks”, apenas o quintus e o septimus sobrevivem. Mas, apesar do contratenor do “Motetti del laberinto” estar perdido, esta fonte 41 Cf. FENLON, 1984, pp.224-225. 167 continua sendo útil. As outras duas, HradKM 29 and RISM 1559/5, possuem apenas a voz do bassus; portanto, foram desconsideradas na seleção das fontes. Já entre as fontes selecionadas com letras gregas, não há uma certeza de que MunBS 13 (“Munich choirbook”) seja a mais antiga (Figura 92). Os três livros de parte de Veneza, Antuérpia e Kassel (Figuras 93-95) são contemporâneos, apesar de distantes. As fontes de Nuremberg e Leiden (Figuras 96 e 97) são as mais tardias do grupo. Figura 92. “Venit vox de coelo” (a 5), livro de coro manuscrito (PAPA, após 1552) Figura 93. “Venit vox de coelo” (a 5), livro de partes impresso (PAPA, 1554) 168 Figura 94. “Venit vox de coelo” (a 5), livro de partes impresso (PAPA, 1555) Figura 95. “Venit vox de coelo” (a 5), livro de partes manuscrito (PAPA, após 1555) Figura 96. “Venit vox de coelo” (a 5), livro de partes impresso (PAPA, 1559) 169 Figura 97. “Venit vox de coelo” (a 5), livro de coro manuscrito (PAPA, 1559) A observação mais detalhada destas fontes primárias indica algumas diferenças quanto à guarnição textual e o arranjo das notas. Deste modo foi possível classificar as fontes com base em aspectos conjuntivos e separativos, e propor uma relação estemática, ainda sob avaliação. (Esquema 5). Dois ramos distintos, “σ” e “ρ”, acomodariam fontes selecionadas por meio de “erros significantes” (i.e. erros separativos, conjuntivos ou não distintivos). De acordo com Iain Fenlon (op. cit., idem), todas as peças contidas no livro de coro de Munique circularam em impressos antes de 1552; com isso, o número de hiperarquétipos deve ser maior. Esquema 5. Sugestão de filiação estemática com base em aspectos conjuntivos e separativos. 170 3.4.2 Análise motívica e cadencial de “Venit vox de coelo”, prima pars O moteto apresenta uma complexa textura polifônica imitativa, e para esclarecer as relações entre texto e polifonia imitativa foram usadas para análise duas ferramentas concorrentes e complementares: 1) o plano cadencial, que correlaciona articulações entre texto e música; e 2) a identificação dos materiais motívicos utilizados em cada segmento de texto, diferenciando processos imitativos expositivos daqueles digressivos. Para a análise estrutural foram essenciais os conceitos de “análise modular” (Schubert, 2007), “célula de fuga” (Milson, 2006) e “motivicidade” (Rifkin, 1997). A maior parte das análises de cláusulas melódicas nas cadências estão baseadas na terminologia de Meier, descrita anteriormente. Fórmulas cantizans, altizans, tenorizans e basizans são indicadas nas análises por setas ilustrando seu movimento. O basizans, por exemplo, pode diferir do tenorizans pela interseção com a primeira linha da pauta, como indicada pela seta cruzada (Esquema 6). Esquema 6. Padrão gráfico das setas em arranjo a voce piena. C, cantus; A, altus; T, tenor; B, bassus. As convenções a seguir descritas, relativas ao texto guarnecido na partitura em análise, são de maior especificidade, demandada pela complexidade da peça. Quando o verso está inscrito na fonte primária, sua cor será o preto nesta edição analítica, e do contrário, a cor será cinza. Se a ocorrência do verso for a sua primeira exposição, ocorrerá em negrito nesta edição, para facilitar o raciocínio analítico; mas, caso se trate de uma repetição do texto – seja inscrita, indicada por algum símbolo (comumente por ‘haspas’ na fonte primária) ou mesmo inferida –, ocorrerá sem a tal marcação em negrito, como discriminado na Tabela 44: ocorrência na fonte primária Cor, efeito (texto em itálico) exposição do verso (inscrito) repetição do verso (inscrito) repetição do verso (não inscrito) preto, negrito preto, normal cinza, normal Tabela 44. Convenções indicativas do posicionamento dos versos do texto, como utilizadas na análise. 171 Também optou-se por um protocol sutilmente diferente do anterior para relacionar a disposição silábica do conjunto vocal com a evolução das cadências, evidenciando a extensão de cada verso (incluindo suas repetições) com colchetes de uma mesma cor, que se altera apenas ao início de um novo verso na mesma voz. Neste contexto, colchetes em cor cinza representam articulações para a repetição do verso (ou de seus fragmentos) antes de seu encerramento. A aplicação desta metodologia é exemplificada no Esquema 7, onde pode-se observar o exordium do moteto sob a ótica da extensão dos versos em cada voz, e a conjunção ou disjunção de suas sílabas finais em terminações oblíquas ou concorrentes, estas últimas podendo ainda ser homossilábicas ou heterossilábicas. Esquema 7. Distribuição dos versos nas cinco vozes do moteto, ao longo do exordium. Legendas são relativas ou às pausas ou ao tom de resolução das cadências. C, cantus; CT, contratenor; Q, quintus; T, tenor; B, bassus. O principal elemento na constituição das cadências é a relação entre cantizans e tenorizans (ou cadência C/T, de forma abreviada), ainda que alterações sejam presentes, tais como na primeira terminação. Esta é seguida por outra cadência C/T, reforçada por um altizans fuggita ao final do verso e pelo movimento basizans sob o colchete horizontal representando a ligadura de semibreve. Linhas verticais coloridas indicam duas cadencias subseqüentes em Fá (azul escuro), e servem também para destacar a concorrência silábica entre as vozes, promovendo articulações textuais em níveis distintos. Seguem-se duas outras cadências com resolução em Dó reforçadas pelo movimento basizans, pleno apenas na segunda vez, na medida em que na primeira vez a resolução é evadida. Isto resulta em uma terminação oblíqua na voz 172 grave e impede a concorrência silábica na articulação; tal impedimento também ocorre anteriormente, por efeito da ligadura. Assim, deduz-se que padrão modular destas articulações pode ser controlado pelo perfil de concorrência, seja homo ou heterossilábica. O esquema fornece ainda um panorama qualitativo do plano cadencial do exordium, e de sua relação com os versos cujo padrão imitativo poderá ser visualizado a seguir. A cadência C/T está conjugada às quatro terminações relacionadas à “Venit vox de coelo”, a última delas, contudo, sendo heterossilábica devido à participação concomitante do verso “cum luce superna…” imbricado às tres vozes que concluem o exordium. Destas quatro terminações, ganharia mais evidência a terceira, que além de apresentar a cadência C/T em suas vozes próprias (cantus e tenor) também está livre de imbricação textual, ainda que cadenciando em C (clausula secundaria). É curioso notar que Clemens non Papa programa a cadência C/T neste período de imbricação justamente para vozes que conduzem textos diferentes, na medida em que o duo cantus/tenor conduz apenas o novo texto. Tal arranjo parece depor pelo domínio da segunda seção (“Cum luce superna…”) sobre o período de imbricação, o que garantiria à terceira terminação do Esquema 7 o papel de encerrar o exordium tecnicamente. Ali, a cadência a voce piena registra atenuação no contratenor e no bassus, enquanto o quintus participa do exordium nos papéis de cantizans na segunda terminação e de tenorizans na quarta terminação, conduzindo o verso inicial até ali, sob reforço do basizans. Trata-se portanto de um engenhoso jogo de forças, que não permite identificar-se de fato em que momento o primeiro vero se extingue. Para esclarecer a estrutura imitativa do moteto, agrupamentos estruturais foram definidos de acordo com suas configurações mínimas compartilhadas (o que tecnicamente corresponde ao soggetto) entre as vozes em imitação, com a ajuda de ferramentas gráficas apropriadas para este fim, definidas no item 3.1.4, p. 123, desta tese. Assim, linhas sólidas foram desenhadas sob cada pentagrama, com linhas diagonais conectando a entrada inicial ao começo de cada imitação envolvida no agrupamento. As estruturas de agrupamento que seguem um padrão regular de imitação são definidas como ‘expositivas’, enquanto estruturas de agrupamento indicadas por linhas tracejadas são ‘digressivas’ por definirem padrões menos estritos de imitação. No exordium, esses grupos são ordenados segundo cadências C/T nas quais se concluem, eventualmente reforçadas por outras fórmulas melódicas (Exemplo 43). 173 Exemplo 43. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, início do exordium (primeiro verso). Análise imitativa indicando os agrupamentos expositivos e digressivos, e suas respectivas cláusulas cadenciais. Já no fragmento transcrito no Exemplo 44, ocorre uma intensificação em direção a próxima articulação, correspondente a uma cadência em Dó envolvendo uma fechamento de verso por meio de uma cadência C/T e concorrência silábica. O início de um grupamento digressivo adicional antecipa a cadência e as novas entradas referentes ao novo verso, “cum luce superna”, sobrepostas às vozes do verso anterior, para alcançar a cadência plena que finaliza a seção “venit vox de coelo”. Este período de imbricação corresponde à transição do exordium para a seção medio do moteto. Neste ponto é notável que somente a edição Scotto (β) apresenta a clausula formalis típica, enquanto outras edições preferem conduzir esta articulação com diminuições na cadência C/T. Este procedimento editorial atenua o efeito da cadência e causa o deslocamento silábico no Quintus, em que o fechamento do verso se torna oblíquo na cadência. No mais, o livro de partes de Kassel (d) sugere a terminação oblíqua para o Bassus obscurecendo o ponto de articulação. Depois do período de imbricação com o novo texto, grupos expositivos e digressivos em stretto articulam-se de forma homossilábica em Fá, mas sem a participação do tenor (tenorizans no bassus), criando uma reverberação apropriada para o verso “cum luce superna” até esse ponto. O verso “cum luce superna” então se dilui em melodias livres que preparam uma nova cadência homossilábica em F, intensificada pela participação do tenorizans prototípico. Este, em seguida, portará o próximo verso, “super Saulum dicens”, enquanto as vozes superiores encerram o verso atual em C, delimitando com isso um segundo período de imbricação (Exemplo 45). 174 Exemplo 44. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, fim do exordium / imbricação / início do segundo verso (“cum luce superna”). Alterações significativas da cadência plena em C nas fontes primárias. Exemplo 45. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, fim do segundo verso / imbricação / início do terceiro verso (“super Saulo dicens”). Alteração significativa do padrão textural. 175 O plano cadencial dos dois versos iniciais torna evidente sua semelhança estrutural, com cadências em F precedendo as cadências em C que limitam as imbricações (Tabela 45). Tal relação poderia expressar a função textual acessória de “cum luce superna” ao sujeito “vox de coelo”. Sua relação com o verso “super Saulum dicens”, por sua vez, será contrastante tanto no plano cadencial como no imitativo e no sintático. No exemplo musical prévio, a cadência heterossilábica em F é seguida por outra, homossilábica, com C/T prototípico e resolução em G (clausula peregrina), indicando uma alteração de tom na própria narração, organizada sobre uma estrutura imitativa digressiva. Do ponto de vista sintático, “super Saulum dicens” exerce função de predicado na oração e encerra a narração desenvolvida até aqui em uma destacada articulação, plenamente homossilábica, devida a um par de cadências C/T paralelas (porém semiperfeitas) que segmenta a prima pars do moteto em duas grandes seções, a narrativa e a discursiva, esta última se iniciando com Saulo sendo chamado por vozes celestiais. cc. cláusula (1. Venit vox de celo) 3-4 formales* 7-8 formales 10-11 formales 13-14 formales C A Q tenorizans° altizans† cantizans cantizans cantizans altizans† altizans† altizans† cantizans altizans† tenorizans altizans cantizans altizans cantizans altizans† altizans† tenorizans° altizans† tenorizans° cantizans altizans† altizans† tenorizans° T basizans† tenorizans tenorizans altizans tenorizans cantizans B resolução basizans basizans† basizans propria ° propria segunda† segunda f f c c tenorizans basizans basizans propria propria segunda° f f c tenorizans propria per transito propria f g f (2. cum luce superna) 16-17 18-19 20-21 formales‡ formales formales* (3. super Saulum dicens:) 23-24 25-26 27-28 formales‡ formales‡ formales‡ altizans cantizans altizans (≈) cantizans tenorizans altizans† tenorizans Tabela 45. Plano cadencial para Venit vox de coelo, versos 1, 2 e 3. ° cláusula incompleta; * cláusula invertida; † cadência fuggita; ‡ cadência semiperfeita; ≈ mov. paralelo. Imbricações dos versos em regiões sombreadas. Vista em maior detalhe, esta cadência forma uma clausula vera em F entre quintus e bassus, enquanto cantus e tenor esboçam uma clausula frigia em A, ambas sendo formalis. O movimento paralelo resultante é replicado em meio aos versos “Saule, Saule”, criando um mosaico de cadências plagais e autênticas em uma sugestão alegórica das vozes celestiais, indicadas em verde e azul no Exemplo 46. 176 Exemplo 46. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, fim do terceiro verso / início do quarto verso (“Saule, Saule”). Passagem da seção narrativa para a discursiva; complexidade imitativa para representar o chamamento celestial de Saulo. No Exemplo 46, o arranjo tem estrutura imitativa mais densa e complexa: a continuada repetição de “Saule, Saule” é tratada por Clemens com dois agrupamentos contrastantes, um expositivo e um digressivo, imbricados entre si. Este procedimento intensifica o efeito das vozes celestiais, projetando o nome Saulo em dois planos diferentes. Segue-se então um curto período de imbricação entre “Saule Saule” e o novo verso “quid me persequeris”, junto a uma cadência plagal em C, na cor marrom. Entradas de verso adicionais se seguem em imitação estrita, fornecendo um tom mais inquisitivo ao discurso para esta seção. Três grupos expositivos sequenciais para “quid me persequeris”, cada um envolvendo quatro a cinco vozes, estão separadas pela mesma distância temporal (18 mínimas). Os dois primeiros são mais simétricos, diferenciando-se apenas por uma entrada adicional no segundo grupo; eles são seguidos por cadências em C com terminações homossilábicas, que servem para coordenar pares de entradas em cada grupo (linhas vermelhas pontilhadas). Este processo cria um novo rearranjo para a estrutura de agrupamento, permitindo uma interpretação funcional de seu arranjo, vinculado a articulações desmembradas (Exemplo 47). 177 Exemplo 47. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, fim do quarto verso / início do quinto verso (“quid me persequeris”). Duas análises alternativas para o mesmo fragmento. Para o ultimo grupo “quid me persequeris” (Exemplo 48), um único par é governado por uma cadência C/T, reforçando um encerramento de verso concorrente no tenor, que a partir dali assume um novo verso. A voz do cantus introduz uma variação rítmica do motivo “quid me persequeris” (cc. 50- 53) em direção à cadência final desta seção em C, que imbrica com os versos “durum est tibi” que abrem o núcleo dramático do texto. Exemplo 48. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, continuação do quinto verso com análises alternativas. 178 A sentença “durum est tibi contra stimulum calcitrare” (Exemplo 49) está dividida em três fragmentos, articulados por cadências intensas em C no cantus. Dois motivos expositivos homorrítmicos – apesar de heterotextuais – sobrepostos nos compassos 54 a 60 (sob uma articulação fraca em C) criam um módulo com outro par de vozes. Isto se repete ao longo da seção em uma cascata cadencial deste modulo, primeiramente de forma homotextual mas daí em diante sempre como módulos heterotextuais, no padrão mais complexo desta peça. Exemplo 49. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, exposição do verso final “contra stimulum calcitrare”. Este processo tem um ponto culminante em uma articulação homosilábica única em F com caráter conclusivo, apesar de obscurecida por terminações oblíquas (Exemplo 50). De forma pouco convencional, o ultimo verso é recorrente, desta vez sob dois textos alternativos no cantus derivados das diferentes linhagens “σ” e “r”, corroborando a hipótese estemática proposta no esquema 5. Na seção final (Exemplo 50 e 51) a imitação ocorre de forma diferente, de maneira pacífica, criando um par altamente organizado de grupos expositivos e digressivos sem nenhuma cadências entre eles, e evitando articulação de texto para “contra stimulum calcitrare”, em oposição à precedente complexidade de padrões cadenciais e imitativos. 179 Exemplo 50. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, exposição secundária de “contra sitimulum calcitrare”. Logo à frente, um par adicional de grupos expositivos e digressivos (Exemplo 51) do mesmo tipo ocorrem sob imbricação, de forma similar ao prévio “cum luce superna”. Da mesma maneira, nenhuma cadência coordena as estruturas de agrupamento; contudo, o quintus encerra o verso junto à última frase "contra stimulum calcitrare" do tenor sobre uma cadência–C/T em cadenza perfetta em F. Este evento é sucedido por uma cadência plagal que encerra os versos remanescentes sob clausula octophona em F, resolvida apropriadamente em terça pelas vozes do cantus e do bassus. O plano cadencial (Tabela 46) para cada verso desta segunda seção – a de vozes celestiais – permite notar ainda o uso consciente dos contrastes cadenciais no manejo das texturas em sua função retórica de expressar o sentido do texto. A brusca queda de seu cotingente no peroratio atua no arrefecimento do clímax obtido por seu uso ostensivo. 180 Exemplo 51. Clemens non Papa, Venit vox de coelo, final do verso “contra sitimulum calcitrare”. cc. cláusula C A Q T B resolução (4. Saule, Saule) 31-32 32-33 33-34 34-35 35-36 formales formales formales‡* formales formales tenorizans° cantizans altizans† altizans altizans (≈) altizans tenorizans altizans† altizans† altizans† tenorizans° altizans (≈) altizans† cantizans tenorizans basizans tenorizans°(≈) cantizans cantizans cantizans tenorizans° altizans cantizans basizans† cantizans basizans basizans† segunda° segunda propria propria propria c c f f f basizans† tenorizans basizans segunda° segunda° segunda segunda° c c c c basizans cantizans basizans† cantizans basizans basizans† cantizans basizans basizans segunda° segunda° segunda° segunda° segunda° segunda° segunda° segunda° propria c c c c c c c c f basizans basizans† propria plagal f f (5. quid me persequeris) 41-42 47-48 50-51 52-53 formales formales formales formales cantizans altizans altizans† cantizans tenorizans° basizans tenorizans° altizans (≈) altizans† (6. durum est tibi contra stimulum calcitrare) 53-54 54-55 55-56 56-57 57-58 58-59 59-60 60-61 62-63 diminuta formales formales diminuta formales formales diminuta formales formales tenorizans° tenorizans° tenorizans° cantizans tenorizans° tenorizans° cantizans altizans† tenorizans° altizans† tenorizans° altizans tenorizans° altizans† tenorizans° cantizans altizans† tenorizans° altizans† tenorizans° altizans tenorizans° altizans tenorizans° altizans† cantizans basizans cantizans basizans† tenorizans cantizans tenorizans cantizans basizans (7. durum est tibi contra stimulum calcitrare) 73-74 76 formales simplex altizans cantizans° altizans tenorizans Tabela 46. Plano cadencial para Venit vox de coelo, versos 4, 5, 6 e repetição. ° cláusula incompleta; * cláusula invertida; † cadência fuggita; ‡ cadência semiperfeita; ≈ mov. paralelo. Imbricações dos versos em sombreado. 181 3.4.3 Concordâncias observadas a partir da prima pars de “Venit vox de coelo” Como é possível observar pelas análises de obras vocais acima descritas, as relações entre texto e música sugerem que o texto deve influenciar o compositor no inventio de seu arranjo, isto se não se tratar de uma prática até mesmo protocolar. A seconda pars de “Venit vox de coelo”, entitulada “Respondit miles”, apresenta um caso onde as melodias da prima pars são reutilizadas. Isto acontece porque a segunda exposição do último verso, “durum est tibi contra stimulum calcitrare”, é recorrente na seconda pars, novamente como segunda exposição, dando um aspecto de ‘refrão’ para o segmento, cuja única diferença para a prima pars é a troca das melodias pelas vozes do contratenor e do quintus, sem custo algum para o resultado musical neste dado momento, exceto o timbre de voz (Exemplo 52). Exemplo 52. Clemens non Papa, “Respondit miles”, exposição final do verso “contra sitimulum calcitrare”. Já o motivo inicial de “Venit vox de coelo” deve ser, visto sua estrutura muito particular, recém concebido, o que vai de encontro com a prática composicional em estilos com vocação predominantemente imitativa. No capítulo 2 foi discutida uma série de conceituações acerca do processo imitativo em música, onde a idéia de ‘módulo’, tão plenamente observado na escrita polifônica, sugere um grau de influência tão significativo deste tipo de contraponto imitativo sobre o processo composicional que sua extrapolação permitiria uma ressignificação da prática através da qual a música serve o texto. Assim, a frutificação de melodias por meio do raciocínio contrapontístico acusa a inversão da relação causa-consequência, garantindo ao contraponto um protagonismo na criação musical. Em Clemens non Papa isso é tanto verdade que, ao realizarse uma busca por motetos de sua autoria contendo as palavras “vox” ou “coelo” no título, visando apenas observar o tipo de figura melódica utilizada nestes casos, foi encontrada uma 182 peça de título “Vox de coelo sonuit”42 cuja similaridade no arranjo do exordium é óbvia, como pode ser visto no Exemplo 53. A diferença entre os dois motetos se encontra nos tempos de entrada do segundo grupamento expositivo, tanto em relação ao primeiro grupamento como internamente. O grupamento digressivo, por sua vez, tem mais partícipes, mas o que vem em seguida quebra por completo a semelhante antes notada, muito pela mudança do texto. Mas de qualquer forma, as “vozes” continuam vindo do céu, em ambos os casos no modo lídio. Exemplo 53. Clemens non Papa, “Vox de coelo sonuit”, com o mesmo motivo de terças no exordium. Por fim, vale observar ainda que a peça ocorre na forma de intabulação para órgão no álbum “Ein new kunstlich tabulaturbuch” de Ammerbach (1575), onde evita-se o uso de B♮ sistematicamente em favor de B♭, em cadências no tom de C em geral, com coloraturen (ornamentação adicionada pelo intabulador, segundo a tradição alemã), como descrito no Exemplo 54. 42 contida em fontes primárias como o manuscrito MunBS 13 ou “Munich choirbook” (1552, ver tabela x) ou as coleções impressas Evangeliorum Lib. IV (Nuremberg: Berg & Neuber, RISM 1555/12) e Liber secundus cantionum sacrarum (Louvain: Phalese, RISM 1555/3), além do Tabulaturbuch auff Orgeln und Instrument (Leipzig: Beyer, RISM 1583/24) 183 Exemplo 54. Clemens non Papa, “Venit vox de coelo”, cc. 10-14, em arranjos vocal e intabulado para órgão (acompanhado de transcrição). Parte inferior: E.N. Ammerbach, “Ein new kunstlich tabulaturbuch”, segmento inferior central entre os fols. 66v-67r43. 43 2 Mus.pr. 106#Beibd.4 (“Ein new kunstlich tabulaturbuch”. Nuremberg: Beyer, 1575). Munique: Bayerische Staatsbibliothek. Disponível em: <http://stimmbuecher.digitale-sammlungen.de/view?id=bsb00083821>. Acesso em: 28 dez 2016. 184 Tal observação se deu ainda em outras peças deste álbum contendo a finalis F, como Ego dormio et cor meum vigilat (do próprio Ammerbach) e Si me tenes (de Crecquillon). Contrariamente às regras de inflexão melódica difundidas ao longo dos períodos medieval e renascentista, o autor do álbum opta, em alguns casos, por cadenciar no tom de C (quinto grau em relação à finalis F) a partir da sexta menor (cadência dória) em vez da sexta maior (cadência vera ou frígia), dispensando possíveis inflexões melódicas (recta ou ficta) justificáveis por causa pulchritudines (no caso, por cláusulas de cadentia ou subsemitonum modi). O uso consciente desta solução por parte do intabulador deveria representar, contudo, requisitos de solmização, mutação, imitação ou de causa necessitatis (regras mi contra fa, fa super la ou cláusula cromática). A evidência oferecida por Ein new kunstlich tabulaturbuch poderia refletir o entendimento de época e, ainda mais especificamente, de tradições regionais sobre a utilização de recursos recta e ficta na interpretação de arranjos vocais polifônicos; entretanto, está sujeita a interferências decorrentes das ornamentações adicionadas aos modelos vocais intabulados, estratégia que visava servir ao virtuosismo instrumental. No caso das peças com finalis em F (sejam em modo lídio ou hipolídio), a ornamentação por “diminuição” permitiria a contraposição à cadência dórica por utilização de B♮ em vez de B♭ nas resoluções em C, na inoperância de regras de musica recta e ficta em posições submétricas do sistema mensural representado nas tablaturas; portanto não seria possível afirmar em todos os casos uma postura reticente quanto ao uso do B♮ nestas intabulações com finalis em F. As diminuições (ou coloraturen) observadas em Ammerbach também são correntes em toda uma geração de “coloristas” na Alemanha, cujas obras impressas são descritas a seguir (EPPELSHEIM, 1974, p. 64). • 1571 – Elias Nicolaus Ammerbach, Orgel oder instrument tabulaturbuch (…); • 1575 – Elias Nicolaus Ammerbach, Ein new kunstlich tabulaturbuch (…); • 1577 – Bernhard Schmid (“o pai”), Zwei Bücher einer neuen Kunstlichen (…); • 1583 – Elias Nicolaus Ammerbach, Orgel oder instrument tabulaturbuch (…); • 1583 – JakobPaix, Ein Schön Nutz und Gebreüchlich Orgel Tabulaturbuch (…); • 1589 – JakobPaix, Thesaurus motetarum tabulaturbuch (…); • 1607 – Bernhard Schmid (“o filho”), Tabulaturbuch (…); • 1617 – Johann Woltz, Nova Musices Organicae Tabulatura (...). 185 Contudo, aparte aos “coloristas” alemães, Rühling publica em 1583 um álbum contendo 85 motetos intabulados sem nenhuma ornamentação (Tabulaturbuch auff Orgeln und Instrument). O texto em sua página de título indica que sua intabulação é “arranjada como pelos autores, sem ornamentação, de tal forma que cada organista possa realizá-la como desejar e utilizá-la apropriadamente” (PATTON, 1969: pg. 26)44. Tabela 47. Motetos com finalis em F contidos no Tabulaturbuch auff Orgeln... de Rühling (1583) e correlações. 44 “…arranged as by the authors in settings without ornamentation so that each organist can do with them as he wishes and can use them suitably.” 186 As composições de diversos autores foram ali agrupadas segundo uma seleção que contemplasse uma correlação semântica entre o tema do moteto e a data litúrgia a ser comemorada, em um ciclo cobrindo o ano eclesiástico do primeiro domingo do advento até o vigésimo sétimo dia após a Trindade (CROOK, 2015, p. 259). Em uma avaliação prévia do conteúdo deste álbum, foram identificados 12 motetos com a finalis em F, como descrito na Tabela 47, dos quais apenas dois, “Ein Kindelein so löbelich” (W. Thalman) e “Tempus est ut revertar” (O. de Lasso) apresentam notas B♮ em algumas poucas situações. A peça de Thalman não apresenta (até onde se sabe) concordante histórico remanescente, mas é possível observar em sua tablatura três importantes cadências em C envolvendo as notas B♮ ali ocorrentes, em mesmo número de cadências que envolvem B♭. A peça de Lasso, por sua vez, tem concordantes históricos limitados aos arranjos vocais em álbuns de autoria própria (Sacrae cantiones, Selectissimae cantiones) além da antologia Magnum opus musicum (livro 7, no. 340), publicada por seus filhos em 1604 (dez anos após sua morte). A ocorrência de B♮ em sua intabulação deve-se em última instância a alterações previstas nos modelos vocais. Na prima pars, o verso “ut ipse vos custodiat” ocorre em duplicata, primeiramente para quatro vozes agudas (cc. 43-45), e em seguida para quatro vozes graves (cc. 45-47), incorrendo em cadências em C conduzidas por movimento cantizans no sextus e no altus, respectivamente (Exemplo 55). Há divergência entre os modelos vocais neste ponto: enquanto um acidente inscrito no altus (c. 46, edições de 1566 e 1604) permite uma resolução vera para o segundo bloco, só é garantida esta mesma resolução no primeiro bloco se em conformidade com a edição de 1604 (acidente inscrito no c. 44 do sextus), em oposição à edição de 1566, livre de tal acidente. Ainda assim, este acidente poderia ser deduzido por causa pulchritudines na edição mais antiga, mas Rühling julga o contrário, intabulando B♭ neste ponto. Sua deliberação, contudo, não representa propriamente uma cadência dória, uma vez que a resolução do primeiro bloco é incompleta (o movimento tenorizans segue paralelo ao cantizans, obstruindo a oitava), contrariamente à resolução completa do segundo bloco que aceita a inflexão por sustentatio no cantizans. O gesto de Rühling representaria, desta forma, um entendimento que poderia estar refletido em boa parte de sua obra. Finalmente, vale observar que estes mesmos dois blocos são similarmente recorrentes na seconda pars do moteto (cc. 37-42), e que Rühling nos frustra ao intabular incorretamente B♮ no lugar de G (c. 66 da prima pars e c. 61 da seconda pars, igulamente) e no lugar de E♭ (c. 54, seconda pars). 187 Exemplo 55. Orlando di Lasso, “Tempus est ut revertar”, cc.43-47 (sextus e altus: 2a e 3a vozes). Setas com um vértice representam movimentos cantizans, enquanto que a setas simples representam o movimento tenorizans. A seta tracejada indica que a resolução é incompleta por escapar ao intervalo de oitava. A análise modal dos motetos “Venit vox de coelo” e “Tempus est ut revertar” os relaciona aos modos Lídio e Hipolídio, respectivamente, mas principalmente devido à tessitura das vozes mais externas – cantus e bassus – que, segundo Meier (1988, pp. 84-86), formam um par de antípodas autêntico-plagal (ou plagal-autêntico) no modelo de composição a voce piena. A tessitura autêntica no cantus a projeta mais para o agudo, enquanto que a plagal faz com que todo o conjunto vocal (cantus, altus, tenor e bassus) fique relativamente mais grave, levando o bassus ao extremo de sua tessitura. Ainda segundo Meier (1988, pp. 157-165), peças com finalis em F são das mais difíceis para se distinguir o modo próprio. A tradição de adotar-se o bemol na armadura de clave nos modos com finalis em F implica em uma controvérsia quanto ao fato do modo estar transposto ou não. A aplicação do modelo de espécies de quinta e de quarta em suas combinações para estruturar a espécie de oitava tem como corolário dos modos 5 e 6 o entendimento de que a espécie de quinta ut-sol acopla-se ao modo apenas quando B (que poderia ser molle ou durum) assume a posição fa do hexacorde, própria do B♭. Este é o único caso (além dos modos jônio e hipojônio de Glareanus) em que B não pode assumir a função mi, e conversivamente B não poderia assumir a função fa nos modos 7 e 8. Vem ao caso lembrar que a mutação de um hexacorde para outro ao longo de uma melodia se dá sem restrições entre hexacordes molle e natural ou entre hexacordes natural e durum, sendo portanto necessária uma indicação formal que possibilite a mutação direta do hexacorde molle para o duro. Nos modos 1 a 4 a espécie de quinta assume logo o hexacorde natural, indicando sua predisposição para mutação tanto para o agudo como para o grave; já 188 nos modos 5 a 8 as mutações partiriam de um hexacorde molle ou durum para um hexacorde natural, o que restringiria seu campo de atuação (Esquema 8). Esquema 8. Possível inflexão da nota B nos oito modos, segundo seus hexacordes (cantus mollis, durus ou naturalis) e suas mutações. Uma vez que o escopo deste trabalho não permite um estudo exaustivo de peças em outros modos para confirmação desta hipótese, entende-se que estudos futuros sugerem uma perspectiva ampla para esta área, e que, se a implicação desses resultados não atinge a esfera da performance musical, no mínimo contribui para o entendimento filosófico da matéria ao longo do Renascimento, entre outros inúmeros questionamentos pertinentes ao período. 189 3.5. Análises adicionais Em adição às análises de peças a quatro e cinco vozes, foi realizada a análise, adicionada de seu plano cadencial, de duas peças a três vozes, a peça “Beata viscera Maria virginis” de Willaert e o seu “Recercar quarto”. Para a primeira peça, foi experimentada uma terminologia que pudesse ser aplicada à articulações independentes de cadências, como ocorrem aqui (Exemplo 56-57). Esta terminologia está baseada nas relações já discutidas no Esquema 7 (p. 171), e foi aplicada na constituição do plano cadencial de “Beata viscera Maria virginis” (Tabela 48). Apesar de não estar plenamente desenvolvida e refinada (estando sujeita a inconsistências), esta terminologia é resultado de uma demanda pouco estudada na pesquisa analítica destes gêneros: o papel das ocorrências homo ou heterossilábicas na articulação musical de peças polifônicas, e espera-se que possa servir para estudos futuros. Já para o “Recercar quarto” apenas dois pontos de imbricação foram localizados, em uma peça que parece se distanciar dos planos cadenciais para peças a quatro ou cinco vozes. Ao observar seu plano cadencial, é difícil dizer quantas seções de fato a peça tem, mas em se tratando do modo hipodórico transposto, a frequência de resoluções em tons per transito parece apenas distanciar seu perfil da escrita regular de Willaert em seu período precoce de composição. Não observou-se, também, nenhuma cadência escalonada, o que seria bastante possível para uma peça no Modo 2. Talvez a importância dada por Willaert aos procedimentos cadenciais em motetos e em peças precoces seja substituído por um maior grau de liberdade, uma vez provado o domínio sobre o uso das técnicas cadenciais. Já para “Beata viscera Maria virginis”, que deve estar no Modo 1 pela tessitura mais aguda do cantus, apresenta uma cadência escalonada (cc. 14-15), o que é compatível com a curta extensão da peça. Chama muito mais a atenção, contudo, a cadência entre os compassos 21 e 22, uma forte articulação homossilábica seguida de pausas e mudança de verso, ao fim da seção “Maria virginis”, sem contudo haver nenhum movimento estereotípico das vozes e, além de tudo, resultar em uma estrutura triádica, um acorde de Ré menor, fechado, na fundamental. 190 Exemplo 56. Willaert, “Beata viscera Maria virginis”, análise cadencial 191 Exemplo 57. Willaert, “Beata viscera Maria virginis”, análise cadencial (continuação) 192 Tabela 48. Willaert, “Beata viscera Maria virginis”, plano cadencial 193 Exemplo 58. Willaert, “Recercar quarto”, análise cadencial 194 Exemplo 59. Willaert, “Recercar quarto”, análise cadencial (continuação) 195 Exemplo 60. Willaert, “Recercar quarto”, análise cadencial (continuação) 196 Exemplo 61. Willaert, “Recercar quarto”, análise cadencial (continuação) 197 Tabela 49. Willaert, “Recercar quarto”, plano cadencial 198 CONSIDERAÇÕES FINAIS Grande parte deste trabalho se deteve no desenvolvimento da metodologia analítica, que contemplou a técnica do plano tonal de Powers na definição de modos tanto dos ricercares de Willaert como de outras peças polifônicas. Neste caso, nem sempre foi necessário construir uma tabela para determinação, o que se torna mais premente no caso de comparações entre conjuntos dentro de uma mesma obra, assim como o próprio Powers desenvolveu a ferramenta. Powers, assim como tantos outros pesquisadores, entre eles Frans Wiering, referenciam Bernhardt Meier pela sua seminal obra “The Modes of Classical Vocal Poliphony”, que é de fato a grande inspiração deste trabalho e que culminou com o desenvolvimento do plano cadencial expandido. Ao considerar todas as vozes do conjunto polifônico em sua atuação, foi possível evidenciar a gradação cadencial, processo que quase sempre culmina com o fim de uma seção musical. Isso foi constatado muito mais claramente em peças vocais, uma vez que o próprio texto gera indícios de onde podem se encontrar as grandes articulações entre as seções de uma peças polifônica. Em peças instrumentais, contudo, a evidência destas articulações é menos nítida, considerando a profusão em que as cadências ali se desenvolvem. Ou seja, a presença de poucas cadências mais intensas, bem como sua conjugação em movimentos de gradação cadencial, são necessárias para que haja tal distinção. Aqui encontramos a primeira grande distinção entre moteto e ricercare. Nos motetos, tal distinção entre as seções é muito bem vinda, uma vez que os versos do texto já vem imbuídos de contrastes, sejam de função sintática, retórica ou expressiva, e o arranjo musical busca não muito além da própria representação destas características. Já o ricercare, enquanto forma instrumental partícipe do processo de emancipação da música em relação ao texto, deve seguir o caminho contrário, buscando uma maior unidade em sua grande forma, o que pode ser observado na estrutura bastante reiterada de motivos do “Ricercar tertius” a quatro vozes de Willaert. Seu plano cadencial, contudo, é mais acentuado que o do seu “Recercar quarto” a três vozes, obra posterior e, pelo que se vê, mais madura. Uma das premissas do projeto em que se fundamentou o presente trabalho era a de que entre obras vocais ou instrumentais de Willaert, enquanto precoces ou tardias, poderia haver algum paralelo evolutivo. Os resultados aqui apresentados mostram que sim, houve evolução, mas de maneira particular para cada gênero. No caso da obra vocal, o moteto a três vozes revelou uma postura bastante distinta do autor em relação às obras anteriores, como pode ser visto na análise de “Beata viscera Maria virginis”. Ali, a cadência incompleta entre os 199 compassos 8 e 9 é devida a um movimento cantizans fuggita, que é característico de alguns ricercares a três vozes como o “Ricercar decimo”. Contudo, na maior parte do período em que a pesquisa foi conduzida, vislumbrava-se a comparação de dados de obras de Willaert com as obras de seus alunos Andrea Gabrieli e Claudio Merulo, o que demandou tempo para a aquisição de materiais para análise, uma parte deles importados, e para a preparação de edições próprias para análise como as produzidas aqui. Tal direcionamento foi, então, colocado em ‘xeque’, uma vez que aspectos diferenciais da obra de Willaert não poderiam ser afirmadas como de sua própria invenção – como no caso do movimento cantizans fuggita. Foi necessário então, neste momento, olhar para trás, no tempo. Considerando a vastidão de obras e compositores pregressos a Willaert, optou-se por realizar um levantamento de peças de Josquin, baseado em sua possível influência sobre Willaert e pela vasta amostragem, de onde seria mais provável encontrarmos alguma evidência de ‘técnica avançada’ similar ao movimento cantizans fuggita; em caso positivo, seria necessário rever o planejamento analítico, mas do contrário, restaria a dúvida quanto ao uso desta técnica por algum outro autor. De fato, entre quatro peças de Josquin analisadas, encontramos duas ocorrências desta técnica, uma em “Domine ne in furore” (cc. 17-18, no bassus) e outra em “O bone et dulcis Jesu” (cc. 53-54, no soprano), ambas evitando a terminação de um verso em complexo–C/T. Pode-se considerar, portanto, que houve uma falha no planejamento deste projeto, uma vez que tal problema não foi previsto. No sentido de rever o planejamento desta pesquisa, descartou-se a parte do projeto que focaria em compositores do círculo de Willaert, para contemplar um outro direcionamento, o do desenvolvimento da música instrumental desde o século XV. Este segmento do trabalho foi condensado ao material obtido previamente, o que constituiu o Capítulo 1 desta tese após uma uniformização de seu tratamento, como descrito na Introdução. Tal estudo mostrou o quanto foi oportuno o desenvolvimento da música instrumental, especialmente no século XV, sendo resultado da própria evolução dos instrumentos musicais, aliada à guarnição de texto ausente em vozes da polifonia. Ou seja, o que era para ser cantado de ‘memória’, acabou sendo tocado por instrumentos, o que os impeliu a tocar mais do que isso, em referência às partes com guarnição de texto. Porém esta é só uma hipótese, que contudo ganha força com o desenvolvimento das Carmina, transcritas na Alemanha para uso certamente instrumental, visto a quantidade de informações que suportam esta afirmação. Neste sentido, o item dedicado à “defesa de um repertório exclusivamente instrumental” reafirma esta tendência, contudo por uma abordagem que busca os limites do conceito. 200 Como apontado na Introdução desta tese, os capítulos se configuraram em panoramas distintos do estudo musicológico, ou seja, o histórico, o teórico e o analítico, em relação aos capítulos 1, 2 e 3, respectivamente. A aplicação de diversos aspectos da teoria de época, como apresentados no capítulo 2, nas análises, reflete-se no desenvolvimento de uma série de modelos que são, um a um, elencados ao longo do capítulo 3, a cada análise apresentada. O modelo de plano cadencial, por exemplo, é exibido de forma já acoplada à edição analítica de “Magnum haereditatis mysterium” (cuja tabela de plano cadencial se encontra segmentada ao longo do item 3.3.2, Musica ficta e recta e análise por hexacordes) na forma de legendas que correspondem a linhas em cores representando cada tipo de resolução cadencial, o que não dispensa sua visualização completa, como apresentada para o “Ricercar tertius”, “Recercar quarto” e “Beata viscera Maria virginis”, todas obras de Willaert. Clemens non Papa foi selecionado para este projeto por ser, assim como Willaert, um compositor da quarta geração franco-flamenga, estando contudo isento da influência italiana em sua obra. As diferenças em os motetos de Clemens non Papa e Willaert aqui analisados são muito claras, o que é ainda reforçado pela abordagem temática nestas análises, somada à cadencial. Não se sabe em que extensão Josquin ou qualquer outro compositor realmente influenciou Clemens non Papa e/ou Willaert, mas a distinção entre os motetos “Venit vox de coelo” e “Magnum haereditatis mysterium” aponta para modelos mais próximos de Josquin, na medida em que “Venit vox de coelo” não se compatibiliza com os mesmos, o que se conclui com base no tratamento mais uniforme de seções musicais em Josquin e Willaert. A maior evidência desta distinção são as ‘estruturas de agrupamentos’ de Nogueira (item 3.1.4, p. 123), que se perfilam em arranjos bem mais uniformes em “Magnum haereditatis mysterium” do que em “Venit vox de coelo”, a julgar, especialmente, por sua seção “durum est tibi contra stimulum calcitrare” (cf. Exemplo 49, pg. 178). O fato dos motetos de Willaert e Clemens non Papa se constituirem sobre modos diferentes (hipodório e lídio, respectivamente) permite visualizar aspectos diferentes de seus planos cadenciais como característicos de cada modo, para além das descrições comuns por autores como Meier, Powers e Wiering. Para o modo hipodório de “Magnum haereditatis mysterium” foi possível evidenciar a ‘cadência escalonada’, estrutura agregada de duas cadências compartilhando a resolução de uma com a preparação de outra. A aplicação desta estrutura por Willaert está relacionada com as grandes articulações observadas neste moteto, ou seja, fim do exordium e conlusão do finis, potencializando a cadência plena no final da peça. Esta estrutura também foi reconhecida em pelo menos uma obra pregressa, o “Benedictus” com finalis em D, contido no álbum de A. Schlick (cf. Figura 47, p. 46), e foi determinante na análise 201 do “Ricercar tertius”, este no modo dório. Já o moteto “Venit vox de coelo” revelou um hábito comum a organistas alemães de interpreter a clausula segonda isenta do sustentatio, ao menos que indicado pelo compositor original. A base para esta discussão também foi estabelecida (cf. item 3.4.3, p. 181). Por fim, foi possível localizar importantes relações estruturais por meio da conjugação de estruturas de agrupamento com a ‘cadência–C/T’, o que possibilitou a determinação de agrupamentos complexos, revelando uma faceta da composição do período que é comum às peças de Willaert e Clemens non Papa aqui analisadas. *** O redirecionamento deste projeto de pesquisa, ao contrário do que possa parecer, é entendido aqui como uma grande implementação, mesmo com o custo de relegar uma parte do projeto original. Mostra também que um projeto de pesquisa emerge de um questionamento, não de uma convicção, e que a resposta não é previsível, seja positiva ou negativa. Conclui-se esta esta tese com a consciência de que não foram obtidas todas as respostas, principalmente por análises não terem sido conduzidas para todas as peças inicialmente propostas. Contudo, é comum se dizer que “mais valem os meios do que os fins”, e é por este viés que poderá se dizer que o trabalho teve resultados positivos, ou mesmo relevantes, para pesquisas futuras na área. 202 REFERÊNCIAS APEL, Willi. “The Early Development of the Organ Ricercar”. Musica Disciplina, 3, 1949, p. 139-150. __________, “Imitation Canons on L’homme Armé”. Speculum, 25, 1950, pp. 367-373. __________, The notation of Polyphonic Music, 900-1600. Cambridge: The Medieval Academy of America, 5a ed., 1953. __________, “Solo Instrumental Music”. Em: New Oxford History of Music Vol. IV: The Age of Humanism, 1540-1630, cap. 10, ed. Gerard Abraham. Londres: Oxford University Press 1968, pp. 602-708. ___________, The History of Keyboard Music to 1700. Bloomington: Indiana University Press, 1997. 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Ein new kunstlich tabulaturbuch, darin sehr gute Moteten und liebliche Deutsche Tenores iekiger zeit vornehmer Componisten auff die Orgel unnd Instrument abgesetzt, bendes den Organisten unnd der Jugendt dienstlich. Nuremberg: J. Beyer, 1575. ________________. Orgel oder Instrument Tabulatur, in sich begreiffende eine notwendige unnd kurtze anlaitung, die Tabulatur unnd application zuverstehen, auch dieselbige auss gutem grunde recht zu lernen. Nuremberg: Johannes Beyer, 1583. PAPA, Clemens non. “Venit vox de caelo”. In: STEIDL, Peter. MunBS 13 (Mus.ms.13). Munique, após 1552. __________________. “Venit vox de caelo”. In: SCOTTO, Girolamo. Motetti del laberinto, a cinque voci libro quarto. Veneza, 1554. __________________. “Venit vox de caelo”. In: PHALÈSE, Pierre (Ed.). Liber primus cantionum sacrarum, (vulgo moteta vocant) quinque et sex vocum. Louvain, 1555. __________________. “Venit vox de caelo”. In: HEUGEL, Johannes (Ed.). KasL 91. 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