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CRIME E CASTIGO A polêmica entre Gabriel Tarde e Émile Durkheim RESUMO Em 1895, Gabriel Tarde publicou na Revue Philosophique um artigo em que impõe severas restrições à distinção entre o normal e o patológico concebida por Émile Durkheim. No mesmo volume, Durkheim responde, rebatendo as críticas e esclarecendo sua posição. Os textos que compõem a discussão, fundamentais ao debate contemporâneo sobre pena e criminalidade, são publicados a seguir. PALAVRAS-CHAVE: Gabriel Tarde; Émile Durkheim; As regras do método sociológico; criminalidade; saúde social. SUMMARY In 1895, the Revue Philosophique published an article by Gabriel Tarde in which he criticizes the distinction between the normal and the pathological as proposed by Émile Durkheim. In the same volume, Durkheim writes his response, trying to clarify his position. Both texts, of great importance for contemporary debate concerning penalty and criminality, are published below. KEYWORDS: Gabriel Tarde ; Émile Durkheim; The rules of sociological method; criminality; social heahk Em 1895 Gabriel Tarde respondeu à "distinção entre o normal e o patológico " concebida por Émile Durkheim no terceiro capítulo de As regras [1] A seleção e a tradução dos dois artigos apresentados a seguir ocorreram no âmbito das atividades de produção de material didático para a disciplina Crime e Sociedade da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Ambos foram traduzidos do francês por J. B. Ghoubar. do m é t o d o sociológico, publicado em forma de artigos no ano anterior. O objeto central de seu texto não era o método formulado para distinguir saúde e doença, mas a sua aplicação à questão criminal ou, mais genericamente, a forma de Durkheim compreender a criminalidade. O mesmo volume da Revue Philosophique que contém o artigo de Tarde traz a réplica de Durkheim, na qual ele reforça ou esclarece sua posição sobre alguns pontos e recua e a matiza em outros1. Os três textos que compõem o debate lançam luz sobre temas da agenda contemporânea de sociólogos, criminólogos e juristas: a função da pena, a relação entre punição e consciência coletiva e a identidade entre crime e pena. E também sobre questões que contribuiriam para a redefinição dos termos do debate sobre políticas públicas penais. A percepção do crime como fenômeno normal, dada a sua existência em todos os grupos sociais em todas as épocas, e útil, tendo em vista seu potencial de anunciar as mudanças na moral dominante, constitui um exemplo. No pano de fundo da discussão entre Tarde e Durkheim sobre esse conjunto de temas é possível identificar um dissenso mais amplo e talvez mais profundo. Compartilhando interesse pelos aspectos puramente sociais dos fatos humanos, os autores discordam sobre a definição do social. Para Tarde, a generalização dos fatos sociais resulta das atividades individuais de imitação. Para Durkheim, tal fenômeno só pode ser explicado considerando-se o mundo social como entidade sui generis que, transcendente em relação aos móveis individuais da ação, acaba por moldá-la a partir de constrições que podem favorecer certos comportamentos ou reagir aos comportamentos não conformes ao esperado2. Nesse ponto, não deve passar despercebida a sutil mas eloqüente diferença nos títulos dos artigos. O emprego por Tarde do termo "criminalidade" remete o leitor a uma propriedade do sujeito, aproximando o estudo do crime ao estudo da especificidade do psiquismo do criminoso — recusa implícita da autonomia da dimensão social, cujo desdobramento pode ser observado no andamento da argumentação do autor. Durkheim faz questão de repetir o título escolhido por seu contendor, trocando o termo "criminalidade" por "crime" e assim reconduzindo o objeto do âmbito da consciência para o viés analítico do que antes existe fora dela: no limite, o crime define-se materialmente como conduta que implica punição, variável portanto com as épocas e os lugares. [2] Ver nesse sentido Steiner, Philippe. La sociologie de Durkheim. 3ª ed. Paris: La Découverte, 2000, pp. 30-31; Digneffe, Françoise. "Durkheim et les débats sur le crime et la peine". In: Histoire des savoirs sur te crime et la peine — vol. II: Perspectives criminologiques. Ottawa: Les Presses de L'Université d'Ottawa, 1998, p. 390. A polêmica assimilação entre o normal e o geral visa justamente afastar qualquer derivação moral ou finalista das considerações que a ciência faz em nome próprio. Mas essa operação desagrada a Tarde, pois traz o risco de que a indevida concessão à neutralidade implique escolha dissimulada na legitimação utilitária do crime. A trajetória intelectual dos autores oferece outros elementos para explorar os termos do debate apresentado a seguir. No momento da publicação da polêmica, Gabriel Tarde (1843-1904), que ganhara notoriedade com a publicação de Lois de l'imitation e Philosophie pénale, é um autor mais conhecido na França que Emile Durkheim (1858-1917). Sua visão da sociedade como conjunto de indivíduos que se imitam segue o modelo da hipnose e do sonambulismo, então em voga na Europa: no núcleo da vida social há um processo recíproco de magnetizações em cadeia, sobrando pouco espaço para a ação refletida (aspecto que não parece ser levado em conta por aqueles que, como Raymond Boudon, reivindicam sua obra como precursora do individualismo metodológico e alternativa ao holismo durkheimiano)³. Assim, a explicação de fenômenos sociais como a criminalidade não estaria na raça ou na hereditanedade — ponto convergente no debate —, mas nessa interpsicologia, para empregar um termo seu, ou na psicologia coletiva em que se dão os processos de repetição [3] Ver a esse respeito Mucchielli, Laurent. Mythes et histoire des sciences humaines. Paris: La Découverte, 2004. especificamente humanos. Ao lado de trabalhos desenvolvidos sobre essa base teórica, Tarde dedica parte relevante de sua atividade intelectual a discutir os resultados das pesquisas realizadas pelos criminólogos italianos, especialmente Cesare Lombroso e Enrico Ferri. Nesses estudos, em que o crime e o criminoso constituem o objeto central, Tarde busca afastar as causas essencialmente biológicas na explicação do delito, apontando os limites da relevância prática de conceitos como o "tipo criminal" lombrosiano. [4] A centralidade da questão penal em Tarde decorre ainda do desempenho do cargo de diretor da estatística judiciária do Ministério da Justiça da França de 1894 a 1904. Nesse período, Tarde coloca à disposição de Durkheim os dados necessários à pesquisa publicada em Le suicide (1897) (cf. Steiner, op. cit., p. 16). Enfim, é com a publicação das Regras do método sociológico, que dão origem ao debate, que Durkheim procura reverter a desvantagem estabilizando a concepção do objeto e do método da sociologia. Se de imediato o livro não tem a recepção esperada, nos anos seguintes a definição clara de um protocolo de pesquisa e a constituição de um grupo de colaboradores zelosos em levá-lo adiante serão decisivas para a progressiva supremacia da proposta. No livro há uma breve referência ao pensamento de Tarde, em que o fenômeno da imitação é tido como conseqüência e não causa da generalidade do fato social. Também a réplica de Durkheim é algo discreta, como se ele se recusasse a investir o debatedor de competência específica na matéria. Nesse sentido, vale sublinhar que o tema da criminalidade (ou do crime) não é central para Durkheim como é para Tarde, mas conquistá-lo como pertencente ao domínio ontológico de operação da sociologia é fundamental para garantir o império exclusivo de seu ponto de vista, que deveria coordenar toda disciplina que se voltasse à explicação do que é humano no homem4. Com a publicação do debate o leitor tem acesso ao momento em que o jogo não está decidido, podendo acompanhar algumas estratégias de disputa no campo intelectual. (Fernando Antônio Pinheiro Filho e Maíra Rocha Machado) CRIMINALIDADE E SAÚDE SOCIAL GABRIEL TARDE Em suas Regras do método sociológico, publicadas sob a [1] Nas citações d'As regras do método sociológico recorreu-se à tradução de Paulo Neves revista por Eduardo Brandão (São Paulo: Martins Fontes, 1999). Os respectivos números de páginas são indicados entre colchetes [N.E.]. [2] Compare-se isso com o que escreve o senhor Durkheim: "Se ao menos, à medida que as sociedades passam dos tipos inferiores aos mais elevados, o índice de criminalidade [...] tendesse a diminuir, poder-se-ia supor que, embora permaneça um fenômeno normal, o crime tende, no entanto, a perder esse caráter. Mas não temos razão nenhuma que nos permita acreditar na realidade dessa regressão. Muitos fatos pareceriam antes demonstrar a existência de um movimento no sentido inverso. Desde o começo do século, a estatística nos fornece o meio de acompanhar a marcha da criminalidade; ora, por toda parte ela aumentou. Na França, o aumento é de cerca de 300%. Não há portanto fenômeno que apresente da maneira mais irrecusável todos os sintomas da normalidade, já que ele se mostra forma de artigos na Revue Philosophique, o senhor Durkheim tenta construir — no ar, creio eu — uma espécie de sociologia em si e por si, a qual, destituída de toda psicologia e de toda biologia igualmente, teria dificuldade de se manter em pé sem o notável talento do construtor. É certamente uma sociologia autônoma, mas que talvez compre um pouco caro sua independência: ao preço de sua realidade. Não pretendo aqui criticar esse sistema, mas uma vez que o autor fez algumas aplicações de seu ponto de vista, e deduzidas muito logicamente, vamos nos deter em uma delas, que particularmente nos impressionou e que nos permitirá julgar o princípio do qual deriva. Trata-se de seu modo, indubitavelmente novo, de encarar a criminalidade, o qual consiste em afirmar que na vida social o crime é um fenômeno totalmente normal, de modo algum mórbido, ou seja, "que não apenas [...] é um fenômeno inevitável, ainda que lastimável, devido à incorrigível maldade dos homens, [mas] um fator da saúde pública, uma parte integrante de toda sociedade sadia", mesmo quando está em via de crescimento, como atualmente, tendo quase triplicado nos últimos cinqüenta anos na França [pp. 67-68]1. Temos de conceder ao distinto sociólogo que essa concepção muito se distancia dos pensamentos "do vulgo", e ele mesmo não nos dissimula que não deixou de ficar um tanto "desconcertado" quando foi conduzido a essa conseqüência lógica mas "surpreendente" de sua regra geral sobre a distinção entre o normal e o patológico. Contudo, longe de ver nisso algum motivo para pôr em dúvida a verdade absoluta da regra em questão, ele apelou para toda a sua intrepidez de lógico e resolutamente abraçou esse corolário, o qual lhe pareceu até mesmo ilustrar e confirmar o alcance de seu teorema, mostrando "sob que luz nova os fenômenos mais essenciais aparecem quando são tratados metodicamente" [p. 66]. Mas não tão nova quanto se possa crer. Há uns doze anos esforcei-me em refutar um paradoxo muito semelhante, ou ao menos pouco diferente, do escritor Poletti. E certo que ele não concluía expressamente, como Durkheim, que "o crime é necessário", que "está ligado às condições fundamentais de toda vida social, e, por isso mesmo, é útil" [p. 71], mas pretendia que, tendo a atividade criminal duplicado ou triplicado enquanto a prosperidade industrial e financeira quadruplicou ou quintuplicou, o que importa é que esse crescimento absoluto da criminalidade eqüivale à sua diminuição relativa2, e no fundo de seu pensamento lê-se claramente que, ainda segundo ele, a coincidência atual dessas duas progressões, a malfazeja e a laboriosa, não é acidental e deplorável, mas inevitável, e denota que o crime e o trabalho, o crime e o gênio, buscam sua vitalidade nas mesmas fontes. Ora, a idéia de Poletti não logrou sucesso nem em sua pátria nem fora dela, o que não impede que de fato uma boa parte do público — desse público escandalizado por ele e, creio eu, pelo senhor Durkheim do mesmo modo — não esteja inconfessadamente imbuído de uma persuasão surda semelhante à dele e ainda mais perigosa, porque é vaga e inconsciente. Esses dois pensadores tiveram o mérito de expressar com muita originalidade uma impressão bastante banal, que se traduz todos os dias pela crescente indulgência de juízes e jurados e pela distensão das fibras da indignação e do desprezo públicos em face de certas afrontas. Se esse enfraquecimento da repressão penal e social só tivesse como causa um crescente sentimento da cumplicidade de tantos para com o crime de um só, eu me sentiria constrangido em combatê-lo; mas ele se funda também na idéia, cada vez mais aceita, de que o crime contemporâneo está ligado à civilização contemporânea como o avesso ao direito, sendo-lhe "parte integrante". Receio então que aqui o senhor Durkheim não esteja de acordo com o senso comum — ou melhor, vulgar — tão desprezado por ele. Seja como for, ele nos prestou o grande serviço de nos obrigar a um franco posicionamento diante deste problema capital: é verdade que o crime seja algo de bom, como maldade, e que sua extirpação não seja mais desejável que possível? A dúvida é cabível aqui, e faz-se necessário um exame rigoroso, uma espécie de exame de consciência coletivo. Bem sei que nosso autor se esforça em atenuar ou até mesmo suprimir o interesse prático da questão. A necessidade e a legitimidade da pena, segundo ele, se conciliam à perfeição com a utilidade e a necessidade do crime. "Se é normal — diz ele — que em toda sociedade haja crimes, não é menos normal que eles sejam punidos". Mas confesso que nesse ponto não mais reconheço a habilidade de sua dialética ordinária. Pois certamente as razões que ele alega para justificar essa identidade de contrários pareceriam fracas ao próprio Hegel. Notadamente, ele nos diz que os sentimentos de aversão e "de ódio" inspirados pelo crime são fundados porque este somente é salutar a despeito de si. Mas desde quando é lícito odiar um benfeitor mesmo que involuntário? Admito que deveríamos ainda mais reconhecimento aos assaltantes e assassinos se eles trabalhassem cientemente e de caso pensado cumprissem as belas funções que lhes são dadas: entreter-nos higienicamente em boa saúde nacional, fornecer-nos caracteres inovadores e empreendedores. Mas enfim, se está provado que eles nos prestam tais serviços, mesmo a contragosto, eu me pergunto com que direito poderemos não só lhes infligir um castigo como lhes recusar um agradecimento... "Objeção pueril", vá lá. intimamente ligado às condições de toda vida coletiva" [p. 67]. Vê-se que não se trata somente da ocorrência da criminalidade, mas também — pelo menos em certa medida — da própria progressão da criminalidade, que é algo essencialmente normal aos olhos do senhor Durkheim e conforme a seus princípios. Mas o que lhe responder? Não basta comparar a penalidade com as funções de excreção dos corpos viventes, e mesmo essa comparação é particularmente perigosa. Do ponto de vista do sábio professor de Bordeaux, é antes com as funções de secreção que se deve comparar a pena, pois o que é excretado é o inútil ou o nocivo, nunca o útil, salvo no caso de doença grave... "Também a dor — acrescenta ele — nada tem de desejável; o indivíduo a odeia assim como a sociedade odeia o crime, e não obstante ela tem a ver com a fisiologia normal" [nota 13, p. 160]. Ora, não, o indivíduo não tem razão em odiar a dor nos casos — aliás muito raros e talvez imaginários — em que ela está efetivamente associada à produção de um grande bem, e se estivesse provado que o êxito de uma operação cirúrgica ou um parto seria impossível sem um suficiente acompanhamento de dores atrozes constituiria um absurdo reprimir esses sofrimentos com o uso de anestésicos. A sociedade une então a loucura à ingratidão ao reprimir o crime se em parte é a ele que deve suas invenções e descobertas e se graças a ele, ainda, escapa ao perigo de rigores, de ferocidades extravagantes, como veremos mais adiante. Ocorre-me no entanto que os egípcios odiavam e por vezes maltratavam os embalsamadores de cadáveres, acreditando que isso era eminentemente útil; mas ninguém, que eu saiba, terá pensado que eles dessem mostra de lógica com isso... Poder-se-ia acaso alegar — restringindo a tese para salvá-la — que a propriedade de ser socialmente higiênico e normal talvez não caiba ao crime isoladamente, mas ao simetricamente imortal e universal casal do crime e da pena? Mas é precisamente o crime não processado e não punido que desempenha um papel historicamente prestigioso e importante na formação e evolução dos povos; é desse crime — crime triunfante, sepultado com honras reais e ditatoriais, erigido em estátuas nas praças públicas, imortalizado — que talvez fosse lícito afirmar, com acabrunhantes aparências de razão, que esse flagelo é um aguilhão, esse veneno um necessário e indispensável fermento do progresso histórico. Sem ele, com efeito, não há mais anexação violenta do vizinho, não há mais opressão cruel do inferior e do vencido, e assim, por falta de conquista e de escravidão, não há mais império romano, não há mais cosmopolitismo e democracia modernas, não há mais ascensão sangrenta rumo à Justiça e à Paz. Eis o que se poderia dizer — de resto enganando-se, desconhecendo os verdadeiros agentes do aperfeiçoamento humano, que não são os conquistadores, mas os apóstolos, não os desbravadores de províncias, mas os descobridores de verdades, os inventores de utilidades, os entesouradores de belezas artísticas, os iluminadores de idéias percebidas em algum lugar e depois irradiadas por toda parte pela força do exemplo e não pela força da espada —, eis o que se poderia dizer, apesar de tudo, do crime glorioso, do crime que anda de cabeça erguida, como a serpente bíblica, audacioso sedutor e corruptor da humanidade e também de seus historiadores. Mas o crime baixo e rasteiro, odiado ou desprezado, o único de que se ocupa o senhor Durkheim, como é possível julgá-lo útil às sociedades onde ele se esgueira como um intruso, operário do vício, parasita do trabalho, implacável destruidor de colheitas, e onde não produz nada que não a contaminação de seu mau exemplo? Para que ele serve senão para ser perseguido pela polícia judiciária, que só serve mesmo para esse esporte? Para que serve ele? O senhor Durkheim nos elucidará. E, de fato, não o adivinharíamos facilmente. Suponham o caso impossível de uma sociedade em que não mais se cometa um só homicídio, um só roubo, nem o menor atentado contra os bons costumes. Isso só poderá haver, diz-nos ele, por um excesso de unanimidade e intensidade da consciência pública na reprovação desses atos; e a conseqüência deplorável será que, tomando-se mais exigente em razão mesmo das satisfações recebidas, essa consciência coletiva se porá a incriminar com um rigor exagerado os mais leves atos de violência, de indelicadeza ou de imoralidade; será como num claustro, onde, por falta de pecados mortais, é-se condenado ao cilício e ao jejum pelos mais venais dos pecadilhos. Por exemplo, os contratos indelicados ou indelicadamente executados, que implicam apenas uma reprovação pública ou reparações civis, se tornarão crimes [...]. Portanto, se essa sociedade estiver armada do poder de julgar e de punir, qualificará esses atos como criminosos e os tratará como tais [p. 70] Na verdade, não parece que o perigo assinalado pelo nosso moralista tenha um acentuado caráter de atualidade, e para quem conhece o avanço desastroso da indulgência a mais abusiva por parte dos juízes assim como dos jurados, levados a aplicar penas correcionais aos crimes, a civilizar os delitos e a absolver o mais possível, o perigo do momento presente certamente não é o excesso de escrúpulos da consciência pública intimidada, nem a tendência irresistível a penas desproporcionais para as futilidades. Ressalto que, enquanto em tais tribunais locais certos roubos são hoje punidos, após a aplicação da Lei Bérenger, com dezesseis francos de multa, há 150 anos os mesmos roubos teriam valido aos seus autores ser levados à forca pelo carrasco dessas mesmas localidades em virtude de uma sentença de um tribunal que julgava sem apelação e que no dia seguinte, é bem verdade, teria mandado rezar uma missa para o descanso de suas almas. Se fosse absolutamente necessário escolher entre essas duas exacerbações, admito que ainda preferiria a nossa. Mas é assim tão evidente que, no caso de não termos mais crimes graves a combater, retornaríamos pouco a pouco à ferocidade de outrora? Acredito antes, e me parece mais verossímil pensar que, tendo perdido o hábito de punir, nós nem mesmo já nos daríamos ao trabalho de castigar conforme as leis um grave delito cometido acidentalmente. Pura e simplesmente baniríamos o delinqüente excepcional, assim como nos limitamos a expulsar do círculo de jogadores honestos um escroque surpreendido em flagrante delito. Com mais razão, permaneceríamos judicialmente indulgentes com as pequenas faltas não prejudiciais à sociedade. Somente o tribunal da opinião é que se tornaria rigoroso, exigente, difícil. E onde residiria o mal? O erro, em todo caso, estaria em supor que por não mais haver o crime de adultério, por exemplo, os salões seriam tomados por um falso pudor ridículo, contrário a toda liberdade de conduta e de expressão nas relações entre os sexos. Longe disso, é nos meios onde essas relações são mais seguras que elas são mais livres, na América ou na Inglaterra, e se a pudicícia da linguagem fosse alguma vez exilada da Terra, é no salão de uma mulher galante de reputação comprometida que ela se refugiaria. O mesmo se daria no mundo dos negócios se não mais se praticasse nenhum estelionato, nenhum abuso de confiança: ficaríamos cada vez menos desconfiados, cada vez menos inclinados a ver fraude nas especulações um pouco arriscadas. Inversamente, lá onde um ramo de delito cresce com uma rapidez e um vigor alarmantes sucede amiúde que a consciência das pessoas honestas, em vez de continuar a se enfraquecer, acaba por se obstinar e reagir com um rigor excessivo contra essa invasão criminal — é tudo justamente o oposto das previsões do senhor Durkheim. Um outro erro muito mais grave é pensar que a produção das variedades criminais da natureza humana está indissociavelmente ligada à produção das variedades do gênio e que, por conseqüência, se extinguirmos o crime abateremos com o mesmo golpe o gênio, dois tipos de originalidades individuais igualmente distantes do "tipo coletivo", que dessa forma se tornaria uma regra sem exceção. E nesse ponto tenho grande dificuldade em conciliar o pensamento do autor consigo mesmo. Para ele, como veremos a seguir, não há outra pedra de toque da normalidade de um fenômeno senão sua generalidade; para ele, o tipo médio, o tipo coletivo, é o tipo normal; logo, tudo o que se desvia disso é uma anomalia. Em seguida, sua proposição volta a afirmar que a criminalidade é algo normal porque favorece a eclosão de anomalias, e que sua supressão seria uma anomalia porque teria como efeito o reino absoluto do estado normal... Mas deixemos de lado essa contradição. E verdade, sim ou não, que o crime e o gênio sejam solidários? Talvez não haja problema moral mais inquietante e que suscite tantas questões candentes. Também já foi alegada uma solidariedade da mesma ordem — ainda que muito mais especiosa e de resto jamais demonstrada — entre a loucura e o gênio. Mas seja lá em que sentido essa questão seja esteja definitivamente resolvida pelos alienistas, pouco importa, afinal de contas, à consciência moral. Já com a primeira não é assim. Essa questão inquieta a razão prática no mais alto grau, mais alto ainda que uma outra antinomia, não obstante muito temível, que surge diante dela quando um apologista da guerra, como o marechal-de-campo [Helmuth] Von Moltke ou o doutor [Gustave] LeBon recentemente, pretende demonstrar que não somente é impossível mas também indesejável suprimir a guerra, que a guerra, ela também, "é parte integrante da saúde social" e que sem sua cota periódica de massacres, pilhagens e abominações belicosas a humanidade entraria em decomposição. Mas passemos por alto também essa eficácia da guerra: ela é o homicídio e o roubo por consentimento mútuo. Contudo, se o homicídio e o roubo unilaterais, e além disso a violação, são igualmente úteis, úteis ao vôo livre do espírito inventor, e se a teoria do bloco também é admissível aqui, do mesmo modo como foi invocada para absolver os massacres de setembro [de 1792], inseparáveis, diz-se, das glórias revolucionárias, então o que é que subsiste, eu vos pergunto, da velha distinção entre o bem e o mal? Ora, se para resolver a questão contamos com a estatística como fonte de informações essencialmente "objetiva", iludimo-nos. Os oráculos dessa sibila são freqüentemente ambíguos e requerem interpretação. Seus mapas, por exemplo, bem nos mostram que as regiões mais ricas, mais civilizadas, mais letradas são geralmente (não sempre) as mais fecundas em crimes assim como em casos de loucura. Seus gráficos e suas tabelas parecem às vezes testemunhar no mesmo sentido. Mas há exceções significativas: a de Genebra, onde a criminalidade, segundo a monografia do senhor Cuénoud, diminui à medida que a cidade se civiliza; a de Londres, mais notável ainda, cujo índice de criminalidade é duas vezes menor que o das cidades do interior inglês e até inferior, o que é extraordinário, ao índice das áreas rurais do país. Colhi esse curioso detalhe num estudo recente do senhor Joly, no qual está demonstrado ainda que na Inglaterra o crime, sob todas as suas formas, sobretudo entre as crianças, diminuiu de 10% a 12% em dez anos. Pobre Inglaterra! Está a caminho de se tornar bastante enferma! A bem dizer, as estatísticas oficiais ainda funcionam muito imperfeitamente e há muito pouco tempo para oferecer elementos decisivos ao debate que nos ocupa. Elas não permitem decidir se o avanço da criminalidade — quase em toda parte atualmente — está associado às energias duradouras e essenciais de nossa civilização e não somente a seus vícios acidentais e passageiros, à insuficiência de seu esforço moral em relação a seu esforço industrial e científico. Eu confiaria mais nas estatísticas especiais, circunscritas, produzidas por particulares para apreender de perto as causas do crime e as causas do gênio separadamente. As pesquisas do primeiro tipo são familiares aos criminalistas. Ora, toda vez que um deles se pôs a pesquisar os antecedentes hereditários e o modo de educação de cem criminosos tomados ao acaso encontrou aí muito mais devassidão e preguiça, alcoolismo e loucura, bem como ignorância, do que entre os ascendentes e os educadores de cem pessoas honestas pertencentes às mesmas raças e às mesmas classes. Mas mais gênio? Que eu saiba, não. Por outro lado, o senhor Candolle pesquisou longa, paciente e engenhosamente em quais condições de meio familiar e social é favorecido o aparecimento do gênio, especialmente o gênio científico, e constatou que entre as influências favoráveis deveria ser considerada em primeiro lugar aquela de um ambiente doméstico essencialmente moral, puro de todo delito e de todo vício, vinculado hereditariamente à honestidade tradicional. Em suma, é o minimum ou sobretudo o índice zero de criminalidade que lhe pareceu associado ao máximo de genialidade científica. Resulta daí que não há a menor relação entre as causas do crime e as causas do gênio, e por mais que tenham sido justapostas durante séculos permaneceram não menos estranhas e hostis umas às outras. Ressalte-se que o liame que se pretendeu estabelecer entre elas parece mais insustentável à medida que, com os avanços da reincidência, a criminalidade européia de nossos dias se torna mais profissional — profissão que certamente não tem nada de útil às outras — e se concentra nos meios pútridos, anti-sociais, impróprios a toda obra sã. E, de fato, raciocinemos um pouco. Em quê, eu vos pergunto, a maior segurança proporcionada às vidas e às propriedades pela supressão completa dos assassinos e ladrões seria de natureza a obstruir o trabalho genial dos inventores? Em quê a eliminação de todo espírito de chantagem e de especulação fraudulenta no jornalismo e nos negócios constituiria obstáculo à independência, à pujança, à livre diversidade da imprensa, à criação e ao sucesso de empreendimentos industriais viáveis e fecundos? Nessa hipótese, por certo não teríamos visto se constituir, com o sucesso que conhecemos, a sociedade para a abertura do Canal do Panamá. Em compensação, porém, sem o "panamismo" e sua catástrofe quantas sociedades úteis e prósperas seriam constituídas mas que não ousam nascer após o descrédito lançado sobre todos os negócios, bons ou maus?! Além do mal direto, efetivo, gerado pelo crime, há que lhe imputar não somente o mal indireto e visível das prisões a construir e a manter, da justiça criminal a fazer funcionar, mas também, e sobretudo, outros tantos males indiretos e que não são visíveis. Em primeiro lugar, o mal da insegurança pública, o mal da desconfiança que nos tolhe de valernos das coisas ou das pessoas de que desconfiamos, o tempo e o dinheiro perdidos a nos prevenir com revólveres, fechaduras, cofresfortes etc. contra a eventualidade de assassinatos e roubos ou contra a possibilidade de atos imorais, por uma excessiva e incômoda reserva nas relações entre os sexos. Em seguida, o mal do exemplo, a perversão do espírito público pelas manifestações anarquistas especialmente, o apequenamento do respeito pela vida humana e a diminuição da austera probidade entre pessoas honestas que se tornam um pouco menos honestas após a leitura da crônica policial, porque comparados aos feitos monstruosos os seus próprios pecados adquirem a cor de pecadilhos inocentes. Suponham, ainda, um Estado livre de todas as suas famílias de malfeitores, de todos os seus vagabundos, de todos os seus neófitos e seminaristas do delito. Que não me digam que isso é impossível, pois o mesmo poderia ser dito quanto à escravidão na Antigüidade e mesmo agora quanto à miséria e à mendicância nas ruas. Tampouco me digam que para tanto seria necessário um nivelamento completo dos espíritos e corações, unidos em um "sentimento coletivo" muito mais intenso e muito mais unânime que o de agora, de modo que a originalidade individual seria mortalmente lesada. Bastaria, creio eu, uma reforma radical, enérgica, de nossos sistemas judiciário e penitenciário. Seja lá como for, observamos que o crime é a violação não de todas as regras, mas somente das regras mais elementares e menos discutíveis da moral. Do fato de que todos estivessem de acordo em combater energicamente e punir severamente essas violações não se seguiria absolutamente que a rica florescência das diversidades individuais seria ceifada ou podada, nem mesmo que se reduziria a liberdade de pensar teoricamente não importa o quê. É possível, na verdade, que no tocante à liberdade de conduta a consciência pública se tornasse mais exigente, que o sentimento de justiça se desenvolvesse a tal ponto que as reformas sociais mais ousadas se realizariam sem derramamento de sangue, sob a pressão da moralidade generalizada. Na falta de crimes passionais, nossa literatura sem dúvida perderia uma de suas mais habituais fontes de inspiração; sem as bebedeiras, igualmente, jamais teriam existido as canções báquicas. Em compensação, não fazemos idéia dos tantos tipos de beleza artística e literária de que nos privam nossos crimes e nossos delitos, nossas imoralidades e nossos vícios; não imaginamos estas flores delicadas, estas novas formas de arte, mais puras e mais requintadas, que nosso gosto não deixaria de criar para nos deleitar em lugar das nossas estéticas putrefatas. Objetar-me-ão que já argumentei em demasia, que me equivoco em insistir. Não creio. Convém refutar um paradoxo que não passa da expressão viva de um preconceito surdo e inconfessado, negado até, do senso comum. O senso comum dissimula enormes desatinos nascidos de confusões de idéias, de que não tem consciência alguma, que lhe causam horror quando lhe são mostrados mas que lhe fazem agir. Mas é mais interessante nos perguntarmos agora como um sociólogo como o senhor Durkheim pôde ser conduzido à proposição que eu combato — o mais logicamente possível, dada a sua maneira de conceber a distinção do normal e do patológico no mundo social. Mesmo no mundo da vida a definição de doença e de saúde é de uma dificuldade atroz, e nosso sábio consagrou as páginas mais interessantes de seu livro a remoer essa delicada questão. Ele mostra, ou crê mostrar, que o caráter distintivo do estado mórbido não consiste nem na dor que o acompanha, e que por vezes também acompanha o estado são, nem na abreviação da vida, pois há doenças compatíveis com a longevidade e há funções bastante normais, tais como o parto, que freqüentemente são mortais, nem enfim na oposição a um certo ideal específico ou social que é suposto, uma vez que essa hipótese finalista é totalmente subjetiva e, portanto, nada científica. Uma vez eliminados todos esses caracteres, não resta senão um, que é aquele inteiramente objetivo: o normal, que é o geral. Chamaremos normais os fatos que apresentam as formas mais gerais e daremos aos outros o nome de mórbidos ou patológicos. [...] o tipo normal se confunde com o tipo médio e todo desvio em relação a esse padrão de saúde é um fenômeno mórbido [p. 58] [3] Vitalmente como socialmente há males salutares, que impedem males maiores: é o caso da velhice, da menstruação, dos impostos etc. Porque mais vale envelhecer que morrer e pagar imposto que não ser protegido pela força pública. É também o caso da vacina, pequena doença que evita uma bem maior: a varíola. Ora, jamais se viu em lugar algum uma sociedade sem um certo contingente regular de crimes; logo, como não há nada de mais geral, nada há de mais normal. Tal princípio já está bastante comprometido por essa conseqüência, e há outras também estranhas. Todos os seres são defeituosos, imperfeitos sob algum aspecto; logo, nada mais normal que a imperfeição e a defectibilidade. Todos os animais ficam doentes algum dia, e não será senão por doença que morrerão; logo, nada mais normal que a doença... Cournot, em poucas linhas, fez justiça ao erro de confundir o tipo normal com o tipo médio. Suponham uma horda, uma espécie animal, e as há, cujo tempo de vida médio seja inferior à idade adulta, de modo que se todos os indivíduos cumprirem essa média de duração de vida, não apresentando nenhuma anomalia, nenhum deles se reproduzirá, e isso será normal. Tomem numa multidão a inteligência média, a instrução média, a moralidade média. A que nível a normalidade será rebaixada! No começo deste século, a instrução média consistia em não saber ler nem escrever. A cultura superior ainda consiste numa anomalia, pois é o que há de menos generalizado e menos difundido. Certamente, a ignorância (nesse sentido) e a imoralidade são coisas mais sãs e mais normais que a ciência e a virtude. Ao estudar esse tema, o senhor Durkheim omitiu as distinções necessárias. Diz ele que há sofrimentos saudáveis. Sim, na medida em que são úteis psicologicamente, úteis ao cumprimento de funções vitais tais como a regeneração ou a reparação dos tecidos. Mas psicologicamente são nocivos quando não servem para poupar maiores sofrimentos ao indivíduo3. Também o esforço psicológico e social tende a diminuí-los incessantemente, a lhes suprimir com freqüência, a torná-los cada vez menos necessários e salutares, graças a invenções como o emprego do clorofórmio ou da morfina. O que é especificamente normal pode ser individualmente patológico. O parto, quando causa a morte do indivíduo ou lhe abrevia a vida, é um mal e uma doença para ele mas um bem para a espécie, que sem esse acidente mortal morreria ela própria. Admira-me que o senhor Durkheim não tenha pensado aqui na famosa luta pela vida. A patologia não poderia ser definida como aquilo que diminui as chances de triunfo do indivíduo — ou da espécie, distingamos bem — nesse grande combate dos seres vivos? Ora, desse ponto de vista o sofrimento apareceria como um mal ou uma anomalia que, ao se prolongar, fatalmente acarretaria a derrota do indivíduo ou mesmo da espécie. Há doenças com as quais se pode viver fora do combate, mas não há doenças que permitam vencê-lo. Desse ponto de vista também se demonstra a utilidade de uma noção rejeitada com extrema desenvoltura pelo nosso autor: a de adaptação. Pode-se, com efeito, definir o normal como aquilo que é adaptado ao triunfo na luta. Acrescentemos que considerando a aliança pela vida, assim como a aliança pela luta, obtemos facilmente uma definição aceitável: o anormal não é aquilo que torna um ser impróprio ou menos próprio a integrar uma associação e a fortalecer seus laços? A teoria de Pasteur sobre a origem das doenças mais graves, mais temíveis, mais dignas desse nome, enseja uma concepção da doença que se pode considerar derivada de um caso singular e original da struggle for life e sobre a qual o senhor Durkheim também nada diz: a doença, se generalizarmos esta explicação microbiana, apresenta-se a nós como o combate entre um exército de células e um exército de micróbios no qual nosso organismo é ao mesmo tempo o campo de batalha e aquilo que está em jogo. Esses dois exércitos são compostos, separadamente, de combatentes saudáveis até o momento em que se exterminam, mas a relação entre eles é mórbida. Nenhuma noção de doença se aplica à criminalidade melhor do que essa. A criminalidade é o conflito entre a grande legião das pessoas honestas e o pequeno batalhão dos criminosos, e tanto estes como aquelas agem normalmente segundo o objetivo que cada qual persegue. Como esses objetivos são contrários, a resistência que se opõem mutuamente é sentida por uns e por outros como um estado patológico que, por ser permanente e universal, só pode ser doloroso. O parti pris do senhor Durkheim contra a idéia de finalidade, mesmo em ciência social, impediu-o de discernir a verdade em meio às obscuridades um pouco artificiais da questão que ele suscita. Como conceber uma idéia minimamente clara sobre o normal e o anormal obstinando-se em proscrever aquilo que aqui deve vir em primeiro plano: as considerações de ordem teleológica e também de ordem lógica? Como, quer dizer, sem considerar anormal ou mórbido antes de tudo aquilo que perturba a harmonia sistemática do ser, do ser orgânico, do ser mental ou do ser social, aquilo que impede que a comunhão de objetivos e de julgamentos seja suficiente para a realização do fim dominante? Isso tanto é verdade que, malgrado seu desprezo pelo finalismo, que vai até mesmo fazê-lo rejeitar a própria idéia de utilidade, o distinto professor o mobiliza ele mesmo sem querer. Ele entendeu que não basta definir a normalidade pela generalidade se não se remonta às causas desta última para poder-se distinguir as diversas generalidades, aceitar umas e rejeitar outras e não admitir certas conseqüências um tanto incômodas de seu próprio princípio. Ele também buscou as causas e acreditou tê-las encontrado naquilo que ele denomina "as condições de existência". Quando as condições de existência de uma sociedade vêm a mudar, o que até então era considerado normal — as práticas religiosas ou o caráter individual da propriedade, por exemplo — torna-se anormal, a despeito de sua generalidade persistente. E eis que o nosso autor, algumas páginas após ter escrito que o avanço da criminalidade em nossa época é algo normal, vem a escrever [nota 8, p. 159] que a diminuição do sentimento religioso também o é, de tal forma que um despertar desse sentimento, a mais universal das manifestações sociais, seria uma anomalia, ao passo que o avanço de nossos crimes não! Nosso estado econômico atual, diz ele ainda, "com a ausência de organização que lhe é característica", é na verdade universal, mas não é menos mórbido se se constatar que está ligado à "velha estrutura social segmentar" e não à nova estrutura que tende a lhe substituir [pp. 63-64]. O que são porém as "condições de existência", o senhor Durkheim não define. Definamos pois. São as idéias e as crenças que são difundidas, os direitos e os deveres que os homens se atribuem, ou bem os novos objetivos que eles se põem a perseguir, ou sobretudo os novos objetivos e as novas idéias ao mesmo tempo. Portanto, a idéia de finalidade está implícita na própria idéia que o senhor Durkheim crê substituir a ela. Sem dúvida nenhuma "o que é normal para um molusco não o é para um vertebrado" e cada espécie tem sua normalidade própria [p. 59] — mas por que isso? Porque irresistivelmente atribuímos à espécie uma necessidade fundamental (nadar, voar etc.), um Desejo, uma Vontade própria, premissa maior e necessária do silogismo implícito do qual nós deduzimos a conclusão: "isto deve ser, isto é normal; isto não deve ser, isto é anormal". Ou melhor: para cada indivíduo as condições da normalidade mudam conforme o objetivo que se lhe conhece ou se lhe supõe. O autor nos diz que "o selvagem que tivesse o tubo digestivo reduzido e o sistema nervoso desenvolvido do civilizado sadio seria um doente em relação ao seu meio" [nota 2, p. 158]. Sim, seria um doente socialmente, uma vez que se constituiria em oposição às necessidades e vontades da tribo, mas não um doente individualmente se o seu ideal próprio, contrário ao de seu meio, exigisse esse desenvolvimento cerebral e essa redução da vida vegetativa. Ao escrever estas linhas, vem-me um pensamento de Stuart Mill que é bem distante desse do senhor Durkheim. Para todo ser, diz ele algures, o estado normal é o estado mais elevado que ele possa atingir. Quer dizer: o normal é o ideal e o mórbido é o mais freqüente, o geral, o comum, o "vulgar", esse vulgar que nosso autor tão fortemente despreza mas que não tem o direito de desprezar se quer se manter fiel a seu próprio princípio. O normal para uma sociedade é portanto a paz na justiça e na luz, é o completo extermínio do crime, do vício, da ignorância, da miséria, dos abusos. E bem sei que o perigo dessa definição é o de pender demasiadamente para o espírito de quimera, mas ainda prefiro esta à outra, que se gaba de ser tão científica. E por quê? Porque não posso admitir com o meu sutil contraditor — e esta não é minha menor divergência com ele — que a ciência, ou o que ele assim denomina, frio produto da razão abstrata, por definição estranha a toda inspiração da consciência e do coração, tenha sobre a conduta a mesma autoridade suprema que legitimamente exerce sobre o pensamento. Como os estóicos terão aprendido o caráter anormal da escravidão de seus tempos, malgrado sua generalidade, sua universalidade? Escutando não os geômetras, não os astrônomos nem os físicos de então, mas seu coração. Tivessem calado o seu coração, a escravidão estaria justificada para eles, assim como para Aristóteles. Acrescento que é o homem todo que deve pensar com seu coração, com sua alma, com sua imaginação até, e não somente com sua razão. Ele deve freqüentemente acionar o pedal da surdina sobre as primeiras cordas para deixar mais jogo livre às vibrações da última, às oscilações e às operações de sua inteligência. Assim é que prendemos a respiração por alguns instantes para não turvar a superfície de uma água pura onde procuramos ver o reflexo de suas bordas, e a razão é essa água pura. Mas é-o na qualidade desta abstração subjetiva de alguma forma aplicada à nossa própria realidade interna, assim como da abstração objetiva à qual submetemos artificialmente as realidades externas para chegar a compreendê-las melhor, analisando-as sucessivamente sob seus diversos aspectos. Não mais que esta, aquela não deve ser prolongada indefinidamente, e não deve ser tomada por uma coisa que não um artifício de método, uma ficção momentaneamente útil. De tempos em tempos, o pensador mais abstrato, o mergulhador mais profundo — sobretudo o mais profundo —, para não se afogar, deve recobrar sua integridade e subir à plena luz para respirar livremente, e é nesses momentos de repouso do coração, de embriaguez imaginativa, após uma reflexão calma, que por vezes lhe é dado ver com um pouco mais de clareza a intimidade das coisas, restituídas elas também na plenitude de sua existência, temporariamente fragmentada pela análise. O senhor Durkheim crê honrar a ciência ao lhe atribuir o poder de dirigir soberanamente a vontade, ou seja, não somente de lhe indicar os meios mais próprios para atingir seu objetivo dominante, mas também de comandar sua orientação em direção a essa estrela polar da conduta. Ora, é certo que a ciência exerce uma ação sobre nossos desejos, mas uma ação principalmente negativa: ela mostra o caráter irrealizável ou contraditório de muitos deles e com isso tende a enfraquecê-los, se não eliminá-los; mas entre aqueles que ela permite julgar realizáveis, em graus iguais ou mesmo diferentes, com que direito nos interditaria experimentar alguns e nos ordenaria provar outros? A ciência só tem poder absoluto sobre o nosso intelecto; no entanto, impõe-lhe seus ensinamentos apoiando-se tão-somente em evidências imediatas, em dados da sensação que ela não criou e que postula. Com mais razão, quando ela se dirige à vontade, da qual é apenas o conselho privado, por assim dizer, não pode lhe ordenar ou recomendar tais ou tais práticas a não ser fundando-se sobre certos desejos, que são a premissa maior do silogismo moral do qual ela é apenas a premissa menor e a conclusão. Se ela lida com um ambicioso, por que lhe prescreveria o amor? Se lida com um apaixonado, por que lhe prescreveria a ambição? Por que ela ordenaria mesmo ao sábio sua apaixonada sede de verdade em vez da sede de ouro e de honras? Nascemos, indivíduos ou povos, com uma força de projeção particular assim como os astros, com uma impulsão própria que nos vem do coração, do fundo subcientífico, subintelectual de nossa alma: esse é um fato como qualquer outro para que a ciência o constate; é o postulado necessário de todos os conselhos, sempre condicionais, que a ciência pode nos dar. E quando se tratar de modificar seja a intensidade, seja a direção dessa energia interior, não é um teorema nem uma lei física ou psicológica, tampouco sociológica, que terá esse poder, mas sim o encontro individual ou nacional, em qualquer rua da vida ou da história, de um novo objeto de amor ou de ódio, de adoração ou de execração, que, do fundo agitado de nosso coração, suscitará novos elãs. É demandando à ciência além do que ela pode dar, é lhe atribuindo direitos que ultrapassam os seus domínios, já bastante vastos, que damos ocasião de se crer em sua suposta falência. A ciência jamais descumpriu suas verdadeiras promessas, mas circularam em seu nome milhares de falsas promissórias revestidas com sua falsa assinatura e que ela está impossibilitada de quitar. É inútil aumentar-lhe o número. CRIME E SAÚDE SOCIAL ÉMILE DURKHEIM Peço permissão para responder brevemente ao recente artigo do senhor Tarde intitulado "Criminalidade e saúde social", pois muitas das proposições que me atribui o meu eminente crítico não são minhas. Eu as julgo falsas tanto quanto ele. 1) Não afirmei que o avanço da criminalidade constatado pela nossa estatística fosse normal. Não se encontrará uma só frase em meu livro em que essa idéia esteja expressa. Aceito tão pouco a teoria do senhor Poletti que a refutei publicamente, numa aula do curso de sociologia criminal que recentemente ministrei em Bordeaux. Em um livro que estou preparando, sobre o suicídio, se encontrará uma refutação da mesma tese, uma vez que ela é aplicável às mortes voluntárias. Eis então um primeiro ponto estabelecido. Com essa declaração, o senhor Tarde não poderá pôr em dúvida que nessa questão me atribuiu um sentimento que não é o meu. Ademais, o próprio senhor Tarde parece ter tido algum escrúpulo, pois sentiu a necessidade de acrescentar a seu texto uma nota para demonstrar que essa proposição está "conforme a meus princípios". Esse método de discussão, que consiste em fazer um autor dizer o que não disse, era muito honroso antigamente, sendo depois abandonado. Percebeu-se que era muito fácil extrair de um sistema todas as conseqüências que se desejasse. Creio que haveria vantagem em não retomarmos isso. Mas é justo que ao menos em nome da lógica eu deva aceitar esse erro? Que se julgue. Após ter constatado que a ocorrência da criminalidade é um fato universal, e por conseqüência apresenta o critério de normalidade, julguei dever fazer-me uma objeção. Se, dizia eu, os fatos nos permitissem ao menos crer que quanto mais se avança na história mais a criminalidade, sem desaparecer, se aproxima de zero, poderíamos supor que essa universalidade e, portanto, essa normalidade seriam temporárias. Mas justamente ocorre que as informações de que dispomos nos mostram um crescimento ao invés de um decrescimento. Deve-se então descartar a hipótese, já que não tem fundamento nos fatos. Mas se essa marcha ascendente dos crimes não nos permite admitir que eles diminuem, não se segue que ela seja normal. A questão permanece inteira e comporta muitas soluções, de modo que não estamos encerrados no dilema imaginado pelo senhor Tarde. Pode efetivamente ocorrer que seja normal que certos delitos progridam junto com a civilização, mas que o enorme crescimento produzido pelos nossos tempos seja mórbido. Enfim, estou tão longe de absolver o que se passa atualmente que, ponderando sobre o triste espetáculo que nos oferecem nossas estatísticas, escrevi na mesma página em que se encontra a passagem incriminada: "Pode ocorrer que o próprio crime tenha formas anormais; é o que acontece quando, por exemplo, ele atinge um índice exagerado. Não é duvidoso, com efeito, que esse excesso seja de natureza mórbida" [p. 67]. 2) Não afirmei que a utilidade do crime consistisse em impedir a consciência moral de incriminar com demasiado rigor os atos de ligeira indelicadeza, como se isso fosse um mal deplorável a ser coibido a todo custo. Não vejo uma só palavra de meu livro que possa justificar semelhante interpretação. Afirmei simplesmente que, de fato, se a consciência moral se tornasse forte o bastante para que todos os crimes, inclusive os moderados, desaparecessem completamente, classificaria mais severamente os atos que antes julgava com mais indulgência, e que por conseqüência a criminalidade, desaparecida sob uma forma, reapareceria sob outra. Daí a contradição em se conceber uma sociedade sem crimes. Mas não afirmei que essa demasiada severidade na maneira de considerar os atos morais fosse um mal, assim como não disse que fosse um bem. E se não coloquei a questão, ela não pode ser colocada assim em abstrato. Restaria ainda saber com relação a qual tipo social se trata de decidir se esse recrudescimento do rigor é desejável ou não. Na cidade romana primitiva, como a vida social só era possível se a personalidade individual fosse absorvida em ampla medida pela personalidade coletiva, teria sido nocivo que a consciência moral se tornasse sensível demais às ofensas dirigidas contra os indivíduos. Hoje em dia, porém, se o sentimento de deferência e respeito que nutrimos pelas grandes religiões contemporâneas — e que ainda conta com sanções jurídicas na maior parte dos códigos europeus — excedesse um certo grau de intensidade, veríamos o que seria feito do nosso livre-pensamento. Dou esses exemplos apenas para mostrar que a questão não é tão simples. 3) Não afirmei que se certos crimes se tornassem mais raros as penas correspondentes necessariamente se elevariam. De que fossem incriminados com mais rigor não se seguiria que seriam punidos com mais rigor. Falei da incriminação, não da repressão. São dois problemas diferentes que o senhor Tarde pareceu confundir. O que faz que essas duas ordens de fatos não variem uma como a outra é que muito freqüentemente o sentimento coletivo afrontado pelo crime é igualmente afrontado pela pena. Estabelece-se assim uma espécie de compensação em que ao castigo não é dado aumentar à medida da intensidade da repreensão. É o que acontece com todos os crimes que ferem os nossos sentimentos de simpatia pelo homem em geral. Como essa simpatia se torna mais viva com o avanço da civilização, tornamo-nos mais sensíveis aos menores atentados que o ser humano possa sofrer. Dessa forma, as ofensas leves, que ainda há pouco eram tratadas com indulgência, parecem-nos hoje escandalosas e são punidas. Por outro lado, toda repressão gera igualmente violência conforme essa mesma tendência, que, por conseqüência, se opõe a que a punição se torne mais rigorosa. Temos mais piedade pela vítima, mas também temos mais piedade pelo culpado. Durante um tempo até mesmo se julgou — por razões que não podemos expor aqui — que essa transformação beneficiaria mais o culpado do que a vítima. Eis como, no que concerne a essa criminalidade especial, a penalidade diminui à medida que a consciência moral se torna, acerca do mesmo ponto, mais exigente. 4) Não afirmei em lugar algum que o crime e o gênio fossem tãosomente dois aspectos diferentes de um mesmo estado mental. Toda essa parte da discussão do senhor Tarde me cansa. Afirmei que em qualquer sociedade seria útil e mesmo necessário que o tipo coletivo não se repetisse identicamente em todas as consciências individuais. Entre as divergências que assim se produzem, umas fazem o criminoso e outras o homem de gênio, mas nunca identifiquei as segundas às primeiras. O criminoso tanto pode ter gênio como pode estar abaixo da média. Em todo caso, as razões pelas quais eu disse que o crime é normal, a um certo grau, são independentes das aptidões intelectuais que se atribuam ao delinqüente. 5) É particularmente incorreto dizer que "o crime baixo e rasteiro, odiado ou desprezado, é o único do qual se ocupa o senhor Durkheim". Quando tentei mostrar como o crime poderia ter uma utilidade propriamente direta, os únicos exemplos que citei foram os de Sócrates e dos filósofos heréticos de todos os tempos, precursores do livre-pensamento [pp. 72-73], e sabe-se que eles são numerosos. É a partir desses fatos e de outros análogos — e mesmo estes são inúmeros — que se deveria conduzir a discussão para que ela chegasse à minha argumentação. Em face das proposições que me foram incorretamente atribuídas, permitam-me retomar brevemente aquelas que realmente quis formular. O leitor decidirá se elas foram refutadas. 1) Afirmei primeiramente que, útil ou não, o crime é normal na medida em que está ligado às condições fundamentais de toda vida social. Assim é porque não pode haver uma sociedade em que os indivíduos não divirjam mais ou menos do tipo coletivo, e entre essas divergências há não menos necessariamente aquelas que apresentam um caráter criminoso. Um nivelamento material completo é materialmente impossível. Não vejo nada no artigo do senhor Tarde que responda a esse argumento, salvo a seguinte frase: "Que não me digam que isso é impossível [o desaparecimento de toda criminalidade], pois o mesmo poderia ser dito quanto à escravidão na Antigüidade e mesmo agora quanto à miséria e à mendicância nas ruas". É-me impossível perceber a relação entre o desaparecimento do crime e o da escravidão, a escravidão não sendo um crime. Quanto à miséria, não estamos em muita condição de saber se está destinada a desaparecer: uma esperança não é um fato. E de resto, também nesse ponto, qual a relação com a criminalidade? 2) Afirmei em seguida que a ocorrência da criminalidade teria uma utilidade geralmente indireta e às vezes direta: indireta, porque o crime só poderia deixar de existir se a consciência coletiva se impusesse às consciências individuais com uma autoridade de tal forma inelutável que toda transformação moral se tornaria impossível; direta, na medida em que às vezes, mas somente às vezes, o criminoso seria um precursor da moral por vir. Para derrubar a primeira parte dessa proposição teria sido preciso ou bem provar que um arranjo fixo não torna impossíveis, ou ao menos dificílimos, os rearranjos ulteriores e que, por conseguinte, uma moral tão fortemente organizada e enraizada poderia ainda evoluir, ou bem negar que aí haja e que deva continuamente haver uma evolução moral. Em vez disso, o senhor Tarde se contenta em enumerar as conseqüências deletérias do roubo, do estupro, do assassinato, da chantagem. É necessário dizer que eu as conhecia e que não pensava em contestá-las? Não afirmei que o crime não produziria males: disse que ele teria o efeito útil que tornei a evocar aqui. Os resultados nefastos que o crime possa ter não demonstram que ele não tenha tal utilidade. Indagar-se-á como ele pode ser normal se é nocivo em todo lugar? Mas estou justamente empenhado em estabelecer que seria um erro crer que um fato normal é todo utilidade: não há nada que não seja nocivo sob algum aspecto. Ademais, deve-se lembrar que o mal social causado pelo crime é compensado pela pena e que o que é normal — para usar a feliz expressão do senhor Tarde, da qual gostaria de me apropriar porque traduz muito bem o meu pensamento — é o inseparável casal do crime e da pena. Para derrubar a segunda parte da minha proposição seria preciso provar que se pode inovar em moral sem ser, quase inevitavelmente, um criminoso. Pois como mudar a moral se não se desvia dela? Dir-se-á que se pode agregar-lhe princípios novos sem suprimir os antigos? A solução seria puramente verbal. As regras que se agregam necessariamente recha çam as outras. Uma moral não é uma grandeza matemática que pode crescer ou decrescer sem mudar de natureza: é um sistema orgânico no qual as partes são solidárias e a menor mudança que se introduz afeta toda a economia. Em todos os tempos, os grandes reformadores da moral condenaram a moral reinante e foram condenados por ela. Enfim, nessa discussão seria preciso não fixar os olhos exclusivamente nas formas presentes da criminalidade, pois os sentimentos que elas inspiram a todos nós pouco nos permitem falar objetivamente. Ademais, não é a partir de espécies de tal modo particulares que se pode julgar o papel e a natureza do crime em geral. Olhemos para o passado, e a normalidade do crime não mais terá nada de paradoxal; ao considerarmos a moral anterior da humanidade percebemos melhor o quanto lhe convinha não se fixar em demasia a fim de poder evoluir. Isto posto, para negar que essa necessidade se impõe igualmente à nossa moral atual seria preciso admitir que a era das transformações morais está encerrada. E quem ousaria dizer de qualquer uma das formas do devir que não deve ir mais longe? 3) Em terceiro lugar, a moral é uma função social, e como toda função ela deve ter um grau de vitalidade limitado. O equilíbrio orgânico tem esse preço. Se a moral lhe subtrair uma fração de energia vital que excede sua justa parte, as outras formas de atividade coletiva sofrerão. Se nosso respeito pela vida humana excedesse certa intensidade, não toleraríamos a idéia da guerra, e no entanto, nas condições atuais das relações internacionais, é necessário que possamos fazê-la. Nada mais moral que o sentimento da dignidade individual, mas a partir de um certo ponto ele torna impossível a disciplina militar, que é indispensável, e mesmo toda disciplina. O excesso de piedade pelos sofrimentos dos animais, opondo-se às práticas da vivissecção, se torna um obstáculo ao progresso da ciência etc. A máxima "ne quid nimis" [nada em demasia] é válida para a consciência moral e para a sua autoridade. Mas se essa autoridade tem seus limites, é inevitável que em certos casos seja dominada pelas forças contrárias e desconhecidas, e, inversamente, é necessário que seja às vezes desconhecida para que não extrapole os seus limites naturais. Enfim, se eu disse do crime que era normal foi por aplicação de uma regra geral que eu buscava formular para distinguir o normal do anormal. A discussão dessa regra talvez devesse constituir o fundamento do debate, visto que posta a regra resta segui-la. O senhor Tarde só toca a questão muito brevemente, e me faz duas objeções. Primeiramente ele diz que o tipo normal não pode ser confundido com o tipo médio, pois como todo mundo é mais ou menos doente a doença seria normal. Respondo: se todo mundo é doente, cada um tem a sua doença diferente, e essas características individuais se apagam mutuamente no seio do tipo genérico, que não carrega vestígios. Dirse-á que devemos reencontrar aí, se não tais doenças, pelo menos a propensão à doença em geral? Consinto; mas não nos contentemos com palavras vãs. Em que consiste essa propensão? Muito simplesmente no fato de que o ser médio, como todo ser, tem uma força de resistência limitada, que portanto está permanentemente sujeita a ser vencida por forças antagônicas maiores. O que há de contraditório no fato de que o estado de saúde implica uma energia vital limitada? Não vejo nisso nada mais do que um truismo. Em segundo lugar o senhor Tarde objeta que um povo constituído tão-somente por homens médios do ponto de vista físico, intelectual e moral estaria num nível de tal forma inferior que não poderia se manter — como admitir que esse povo seria são? Que estranha confusão cometeu meu engenhoso contraditor! Na teoria que formulei, um povo que compreendesse somente indivíduos médios seria essencialmente anormal; pois não há sociedade que não contenha inúmeras anomalias individuais, e um fato assim universal não é sem razão de ser. É então socialmente normal que em toda sociedade haja indivíduos psicologicamente anormais, e a normalidade do crime não é senão um caso particular dessa proposição geral. Com efeito, como expressamente ressaltei em meu livro, as condições da saúde individual e as da saúde social podem ser muito diferentes e mesmo contrárias umas às outras. É o que se admitirá sem dificuldade se se reconhecer comigo que há uma profunda linha de demarcação entre o social e o psíquico. Para além de qualquer sistema, os fatos provam diretamente essa oposição. Uma sociedade só pode viver se se renova periodicamente, ou seja, se as gerações antigas dão lugar a outras, de modo que é preciso que aquelas morram. Assim, o estado normal das sociedades implica a doença dos indivíduos: uma certa taxa de mortalidade, assim como um certo índice de criminalidade, é indispensável à saúde coletiva. De resto, como diz por fim o senhor Tarde, a origem de nossa divergência está alhures. Está acima de tudo no fato de que eu acredito na ciência e o senhor Tarde não acredita. E acreditar na ciência não é reduzi-la a nada mais que um entretenimento intelectual, bom quando muito para nos instruir sobre o que é possível e impossível, mas incapaz de servir à regulação positiva da conduta. Se ela não tem outra utilidade prática, não vale a pena que custa. E se acreditamos que assim desarmamos seus recentes adversários, estamos redondamente enganados; na verdade, entregamos-lhes as armas. Assim entendida, a ciência certamente não mais irá frustrar as expectativas dos homens, mas é que os homens não mais lhe confiarão grande coisa. Ela não mais estará sujeita a ser acusada de bancarrota, mas é que será declarada menor e incapaz de se perpetuar. Não vejo o que ela ganha e o que nós ganhamos com isso. Pois o que dessa forma colocamos acima da razão é a sensação, o instinto, a paixão, todas as partes baixas e obscuras de nós mesmos. Que nos servem quando não conseguimos fazer de outra forma nada de melhor. Mas quando as vemos como algo que se aceita por falta de coisa melhor e que deve pouco a pouco ceder lugar à ciência, quando lhes outorgamos uma preeminência qualquer, ainda que não nos refiramos francamente a uma fé revelada, somos teoricamente uns místicos mais ou menos conseqüentes. Ora, o misticismo é o reino da anarquia na ordem prática, pois é o reino da fantasia na ordem intelectual. centro de estudos da metrópole Saiba mais sobre a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) no site www.centrodametropole.org.br Crie seus próprios mapas temáticos com mais de 300 variáveis sobre a realidade social, política, demográfica e econômica da RMSP. As variáveis estão organizadas por distrito administrativo e permitem inúmeras configurações de mapas. Bases de dados disponíveis para pedidos no site Conheça também a revista eletrônica do CEM www.centrodametropole.org.br/divercidade