ISSN 2176 -7017
PROGRAMAS DE TEATRO
THEATER PROGRAMS
Walter Lima Torres Neto
Walter Lima Torres Neto
Professor Adjunto da Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Editor colaborador da Revista Folhetim.Traduziu e publicou
Conversas sobre a Encenação (Editora 7 Letras, 2001). Um
dos organizadores do livro Cena, Corpo e Dramaturgia:
entre tradição e contemporaneidade
(Pão e Rosas/CAPES, 2012).
Walter Lima Torres Neto
Associate Professor at Federal University of Paraná (UFPR)
Contributing editor Folhetim Magazine. He translated and
published Conversas sobre a Encenação (Editora 7 Letras, 2001).
One of the book’s editors Cena, Corpo e Dramaturgia: entre
tradição e contemporaneidade (Pão e Rosas/CAPES, 2012).
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RESUMO
Dentre os documentos-fontes, que ao longo do tempo adquiriram
o estatuto de patrimônio histórico, e que até então, pouco ou
modestamente, foram explorados encontram-se por exemplo: a
correspondência teatral; os livros de memórias; os cartazes dos
espetáculos; os cadernos de direção; os projetos de cenograia; os mapas
de iluminação; os croquis de igurinos; os projetos de produção; o próprio
material de divulgação; dossiers de imprensa; toda sorte de impressos
como cartazes e cartões postais; maquetes de cenários; entre outros
objetos. Percebe-se a subalternidade desses objetos se comparados
com os inúmeros estudos dedicados aos sentidos da dramaturgia, aos
procedimentos de atuação, às concepções da encenação, e à própria
história do espetáculo entre outras disciplinas como a crítica e a
estética teatral. Neste artigo, apresento, resumidamente, as funções
do programa de teatro no interior da cultura teatral ocidental. Essas
funções ou ênfases discursivas por mim veriicadas são: didascálica;
estética; histórica e genética.
Palavras-chave: Programa; Programa de Teatro; Programa de mão;
Recepção Teatral; Cultura Teatral;
ABSTRACT
Among primary sources, related to the history of theater, which have
received little or modest attention are correspondences; memories of
books; posters; notebooks direction; set of design projects; lighting
maps; sketches of costumes; production projects; promotional
material; press kits; all kinds of printed as postcards; scenarios;
among other objects. It is perceived the subordinated place of these
objects compared to numerous studies devoted to the senses of
dramaturgy, the performance of procedures, the concepts of staging,
and to the history of the scene among other disciplines such as critical
and theatrical aesthetics. In this article, I present briely the functions
of the theater program (playbill) within the Western theatrical culture.
These functions or discursive emphases are: didascalic; aesthetic;
historical and genetic.
Keywords: Playbill; Theater Programs; Program Souvenir; Theatrical
Reception; Theatrical Culture
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PROGRAMAS DE TEATRO
Walter Lima Torres Neto
Procurarei demonstrar, do ponto de vista da dinâmica da vida teatral, uma
hipótese sobre a origem do programa de teatro no teatro ocidental. Desde sua origem, o
programa de teatro seguiu algumas orientações em seu projeto editorial, o que geraria,
além de uma tipologia de discursos ou de ênfases atribuídas a esses mesmos projetos
editoriais, funcionalidades dentro da vida teatral. Nesse caso, destacam-se programas
para cerimônias teatrais especíicas: espetáculos de gala; apresentações em benefício;
temporadas anuais; espetáculos em turnê; além da permanente oposição entre o
teatro dito teatro comercial e o teatro público. No âmbito brasileiro, essa oposição
seria marcada pelo conjunto de programas do dito teatro comercial ou “teatrão”, em
oposição ao dito teatro de linguagem ou de pesquisa.
Como se sabe, são inúmeros os objetos periféricos à encenação e ao processo
criativo dentro do trabalho teatral que despertam, na atualidade, a atenção dos estudos
teatrais. Apresento aqui, brevemente, alguns resultados de minhas pesquisas, oriundas
em estágio pós-doutoral, sobre o programa de teatro e suas funções na cultura teatral
ocidental, de maneira geral, e na americana, francesa e brasileira, de forma mais detida.
O ponto de partida são as funções ou ênfases discursivas veriicadas, após a
consulta de uma grande quantidade dessas publicações. Em primeiro lugar, vamos
partir de deinições de programa emprestadas a dois exemplos da literatura, que nos
ajudam a perceber a extensão do enraizamento desse tipo de publicação. De passagem,
saliento que do ponto de vista dos estudos da iconograia do teatro, há muitos quadros
que incorporam o programa em suas composições.
Em segundo lugar, procuro demonstrar uma hipótese sobre a consolidação, no
século XIX, de um projeto editorial do programa de teatro desde o interior da cultura
teatral ocidental. Dois fatores, um de ordem econômica e outro de caráter informativo/
publicitário, são fundamentais.
Em terceiro lugar, problematizo a questão da autoria do programa. Percebe-se
que desde sua origem, o programa de teatro seguiu algumas orientações em seu projeto
editorial, e nem sempre é possível airmar com exatidão quem é o seu real autor.
Porém, essas orientações editoriais, que em termos discursivos constituem o programa
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de teatro em si, é o que nos leva ao quarto ponto: a identiicação de uma tipologia
de discursos ou de ênfases discursivas veriicadas nesses mesmos projetos editoriais.
Essas funcionalidades discursivas enfatizam aspectos da prática social coletiva que é o
teatro. Veriicam-se desde aí sintomas tanto da vida prática do próprio teatro quanto
do imaginário compartilhado entre palco e plateia.
DEFINIÇÃO E FINALIDADE
Na literatura europeia há muitas alusões ao programa de teatro em autores como
Émile Zola, Guy de Maupassant, Anton Tchekhov e, igualmente, no Brasil. Em artigo
sobre o assunto publicado na revista Cena de Porto Alegre, eu me vali de uma alusão
muito oportuna sobre o programa de teatro feita por Machado de Assis. No conto
intitulado Programa, ele faz uma analogia entre o programa de teatro e o programa de
uma vida. A ação de sua narrativa neste conto se passa em 1850.
No tocante ao objeto, propriamente dito, Machado de Assis chama atenção para
o fato de que o programa é: “o rol das coisas que se hão de fazer em certa ocasião;
por exemplo, nos espetáculos, é a lista do drama, do entremez, do bailado, um passo
a dous, ou cousa assim... É isso que se chama programa” (Assis, 1994). No caso de
seu conto, a analogia que Machado explora é em função do programa metáfora de uma
trajetória de vida, que se distribui em etapas e metas ao longo de uma existência, e o
programa é importante para que se possa obter algum sucesso nessa caminhada.
Lanço mão agora, de uma citação um pouco anterior, mais prosaica talvez, e
apesar de sabê-la menos original, não é menos ilustrativa do que a de Machado de
Assis.
Tomou chá, sentou-se à mesa, pediu uma vela, sacou o anúncio
da algibeira, aproximou-se da luz e pôs-se a lê-lo, semicerrando
o olho direito. O tal anúncio nada dizia de interessante: falava
de um drama do senhor Kotzebu, no qual o senhor Papliovine
desempenhava o papel de Roll e a senhorita Zíablov o de Cora.
Os demais atores eram ainda mais desconhecidos. No entanto, leu
todos os nomes, chegou ao preço das poltronas, e até se inteirou
de que o anúncio provinha da imprensa oicial; então virou-o e
examinou lhe o reverso, porém nada descobrindo nele, esfregou os
olhos, dobrou o papel e guardou-o no cofrezinho onde costumava
enfurnar tudo o que lhe vinha às mãos (Gogol, 1982, p. 20).
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Esse é um fragmento de As almas mortas, de Gogol, publicado pela primeira vez
em 1842. O que nos interessa, rapidamente, é lembrar que a ação do romance, as
aventuras do picaresco Pável Ivánovich Chichikov, um tipo semelhante ao conhecido
vivaldino de o inspetor geral, transcorre pelos anos 1820. A literatura nos permite
observar, que nas distantes províncias do império russo, o uso que já se fazia desse
tipo de publicação era o mesmo que também conhecíamos por aqui, isto é, divulgar a
informação sobre um evento teatral e anunciar alguma mercadoria ou serviço.
Ainda perscrutando o que se entende por programa, temos agora uma opinião
cujo ponto de vista é estritamente do comércio teatral. A opinião de ninguém menos
do que o célebre empresário Antonio de Sousa Bastos, que no seu Dicionário do Teatro
Português de 1908, redige dois verbetes a propósito deste tipo de publicação.
O primeiro “Programa”, no singular, traz a seguinte deinição:
O delineamento de qualquer espetáculo, designando as partes de
que se compõe, os artistas que nele tomam parte e a ordem por
que é executado, chama programa do espetáculo (Bastos, 2006).
Essa deinição se refere ao que se denominou, sobretudo durante o século XIX,
como sendo um programa de mão, entregue ou comprado à entrada do teatro, um
pequeno folheto, prospecto especiicando a ordem do espetáculo e informado sobre
seus agentes criativos. Nada de muito novo se pensarmos na icha técnica do espetáculo
com a qual todos nós estamos familiarizados hoje.
Já no verbete seguinte “programas”, no plural, a preocupação de Sousa Bastos
já é outra:
A forma de anunciar os espetáculos por meio de programas é
talvez a menos útil, porque geralmente são mal distribuídos. Na
rua são entregues a torto e a direito, sendo os garotos os mais
contemplados. A muitos não chegam, e noutros ou embrulham nele
os gêneros ou os rasgam. Não é fácil fazer um bom programa, que
prenda a atenção do transeunte e o obrigue a ir ver o espetáculo
anunciado; mas quando é bem feito, a peça tem tudo a ganhar
com ele. Procurar uma forma nova de fazer programas tem toda a
vantagem, porque atrai as atenções (Bastos, 2006).
O empresário, que tantas vezes visitou o Brasil, dá sua opinião sobre os problemas
da distribuição dos programas enquanto um pequeno volante onde segue anunciado o
espetáculo, como uma ilipeta, que também nos é familiar.
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Ficam enfatizados aqui os modos, no início do século XX, para se alcançar o
transeunte que poderia vir a ser um espectador. Essa segunda modalidade descrita por
Sousa Bastos ilustra o prospecto descrito pelo narrador de Almas Mortas.
Sem precipitar nossas conclusões, podemos nos perguntar sobre o que diria o empresário
português da circulação de lyers e da convocação para eventos teatrais por meio do
facebook e das redes sociais, que em si tornaram-se o meio de comunicação, por
excelência, para uma divulgação dirigida.
Ainda um terceiro exemplo, referente à inauguração do Teatro Municipal de São
Paulo em 1911, com a presença do barítono italiano Titta Ruffo, mandado chamar
às pressas em Buenos Aires para a célebre data. O programa, para apresentação
desse rival de Caruso, teve na ocasião o formato de um leque ou de uma ventarola,
onde os espaços foram disputados pelos anunciantes que percebiam ali o potencial
publicitário para anunciarem suas mercadorias. No programa-leque havia o anúncio
de barbearias famosas como a casa Hudson, que igualmente mantinha um “salão para
senhoras”, alfaiatarias, luvarias, farmácias, mercearias, casas de comércio em geral.
As mercadorias anunciadas iam desde a perfumaria para senhoras até as cervejas e
conhaques e cigarros para os senhores; rebuçados, toucas, chapéus preparados para
conservar e recuperar a pele ou os cabelos, remédios para eczemas, caspas, suores,
etc.
A exemplo deste programa inaugural, os programas, do ponto de vista da prática
teatral, foram identiicados em centros de documentação e bibliotecas segundo algumas
situações especíicas como esta, de uma inauguração. Assim, destacam-se programas
para cerimônias teatrais especíicas com seus: programas de gala; programas de
inauguração; programas em benefício; programas para temporadas anuais; programas
para espetáculos em turnê (redigidos em mais de um idioma); entre outras especiicações
como memorabilias ou scrapbooks.
Essas denominações do evento teatral classiicam as cerimônias sociais ao
mesmo tempo que revelam o discurso que compõe as publicações. Nota-se aí uma
certa especiicidade ou oposição entre os argumentos de um teatro dito comercial e
outro dito público. No âmbito brasileiro, o projeto editorial dos programas é marcado
por distinções relativas ao caráter comercial do empreendimento teatral. O projeto
editorial do conjunto de publicações do dito teatro comercial se diferencia das iniciativas
de caráter público, contraste acirrado pelo dito teatro de linguagem ou de pesquisa.
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CARTAZ, ALMANAQUE E JORNAL
Minha hipótese, oralmente exposta e compartilhada em conversas com o professor
Marvin Carlson, é a de que a publicação programa foi ao longo do tempo ganhando
contornos distintos de acordo com o desenvolvimento dos processos tipográicos,
processos de aperfeiçoamento da composição e expressão gráicas associados às
possibilidades de reprodução em larga escala, pelas principais capitais ocidentais. Com
o passar do tempo, esse processo foi se incrementado, subordinado à exigência de
qualidade em termos de design, ao uso de ilustrações e à adequação de papel para o
miolo e para as capas dos diferentes tipos de publicação.
Esse movimento é concomitante à difusão da atividade teatral enquanto
mercadoria cultural, sempre associada ao entretenimento e muitas vezes associada
ao luxo. Associe-se ainda a esse fato o estabelecimento de uma indústria crescente
da publicidade e da propaganda que nos seus primórdios é expressa pelo réclame
(por meio de anúncios, cartazes, prospectos) de uma mercadoria ou serviço. Como
nenhum estudante de teatro ignora, a virada do século XIX para o XX é o momento
da modernidade teatral. Jean-Jacques Roubine e outros historiadores nos lembram da
consolidação do trabalho criativo do moderno diretor teatral, associado aos avanços
tecnológicos relativos à maquinaria cênica, sobretudo no que concerne à iluminotécnica
e à sonoplastia.
Associa-se a esse processo de modernização um fator pouco explorado pela
historiograia do espetáculo, que é o implemento da publicidade de mercadorias e serviços
de diversão associados à prática teatral. Na onda dessas transformações, o programa
vai ganhando, nas principais praças teatrais europeias e americanas, os contornos do
programa de teatro como o conhecemos. Minha hipótese é que o programa de teatro,
gestado desde o inal da segunda metade do século XVIII, e aperfeiçoado ao longo do
séc. XIX, até chegar à aparência com que o moderno teatro ocidental o consagrou, no
século XX, seria o resultado de uma lenta síntese de três outros tipos de publicações
teatrais: os cartazes de rua, os almanaques teatrais, bem como um terceiro tipo de
publicação, característico do séc. XIX e muito popular, os jornais programas. Essas
publicações, com inalidades diferentes, concorreriam para a difusão da informação
sobre o que denomino de cultura e prática teatral, compondo o que poderíamos chamar
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de uma imprensa teatral especializada.
Esses três meios, essas três publicações contêm, cada uma à sua maneira,
elementos que serão reciclados e transpostos aos programas vindouros. Os projetos
editoriais tanto do street-posters ou afiches quanto dos almanaques e jornais
programas possuem conteúdos e disposições formais no tratamento do evento teatral,
que migraram e se adaptaram ao projeto gráico e editorial do moderno programa de
teatro.
Dessa maneira, o programa de teatro, enquanto publicação independente, acaba
sendo estruturado graças a uma lógica advinda dos formatos e dos padrões anteriores
dessas outras publicações dedicadas à promoção e divulgação da informação sobre
a cultura teatral. O que o moderno programa fez foi sintetizar. Ele, em seu projeto
editorial, fez uma espécie de atualização dos conteúdos dos demais formatos.
O cartaz informa os principais dados sobre o evento teatral, procura instigar a
atenção do transeunte. Sua informação se adapta, por exemplo, à capa do programa,
parte de seu conteúdo é distribuído pelas páginas do programa, sobretudo seu discurso
didascálico. Pode ser um cartaz exclusivo para uma única peça ou apresentação ou para
o conjunto de uma programação.
O almanaque ordena, quantiica e enumera, repertoria ano a ano, em forma
de lista a informação de cunho histórico e prático relativo à vida teatral. Detalhando
informações tanto factuais quanto históricas acerca dos teatros, peças, gêneros,
artistas, técnicos, montagens, especiicações sobre os edifícios teatrais, a cenograia
etc, o almanaque é a publicação que lega ao programa o maior volume de informações
históricas ou pitorescas.
O jornal programa, publicação igualmente informativa baseada na atualidade
teatral, se detém sobre o movimento dos teatros e das companhias. Ele comenta a
vida elegante dos astros, a moda e outros dados, à maneira do velho Arthur Azevedo
na sua coluna de O Teatro em A Notícia, por exemplo. O jornal programa anuncia
a programação em cartaz, exibe comentários especializados, crônicas sobre textos,
artistas, trazendo ainda o resumo das peças e críticas dos espetáculos, carta dos leitores
entre outras rubricas.
O grande salto para modernização do programa está associado, a meu ver, a dois
incrementos no projeto editorial dos programas. O primeiro, e que acontece mais cedo,
ainda na primeira metade do século XIX, é no campo da publicidade e propaganda de
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produtos e serviços (a exemplo da ventarola citada acima). O segundo, já no século
XX, está relacionado ao incremento do conteúdo que se estabelece em torno de uma
redação autocrítica, gerando uma autorrelexão dos agentes criativos sobre a matéria
e a autoria do evento artístico.
A gênese desse incremento do ponto de vista empresarial, estaria associada ao
comércio do seu espaço publicitário como fora idealizado pelo tino comercial de Eugène
Rimmel. Deve-se a esse francês que imigrou para Inglaterra, criador de perfumes e
empresário do ramo de cosméticos, uma verdadeira revolução em termos publicitários.
Rimmel usava a propaganda para seus perfumes de maneira muito imaginativa
e nesse sentido se associou a diversos teatros londrinos para imprimir e distribuir
seus programas nas casas de espetáculos. Ele propôs, entre outras iniciativas, que os
programas fossem perfumados com as essências a serem lançadas, segundo a moda
da estação. O lançamento dos perfumes se dava tanto na encenação quanto por meio
de anúncios nos programas de mão mediante inserções publicitárias curiosas.
No
programa do espetáculo do dia 4 de janeiro de 1864, realizado no Theatre Royal New
Adelphi, em Londres, estabelecimento sob a direção do empresário Benjamin Webster,
pode-se ler como informação complementar à descrição da peça Lady Belle Belle!, or
Fortunio and his seven magic men, para sua cena 5: “Nesta cena o perfume Winter
Flowers será aspergido pelo Vaporizador Rimmel”. Ou ainda no programa de 25 de
outubro de 1873, no Dury Lane, pode-se ler no programa da peça Antonio e Cleópatra
na cena 1, do ato I, que se passa segundo, o programa na “Barca de Cleópatra” no Egito,
a inserção publicitária: “o perfume é produzido graças ao Persian Ribbon da Rimmel”.
Como nesse período os programas eram impressos exclusivamente para o espetáculo
do dia, a publicação se tornava excelente meio de divulgação dos produtos da irma de
perfumes. Muitas ilustrações para as propagandas dos perfumes eram encomendas ao
pintor Jules Chéret que se envolveria também na ilustração das capas dos programas e
não só de anúncios no seu interior.
Esse recurso, que associa o texto publicitário ao texto didáscálico, mesclando a
propaganda e as informações sobre o local da ação ou o tempo da fábula, ou ainda a
especiicação do espaço onde transcorre a ação foi fortemente explorado pela máquina
publicitária de Rimmel. A irma Rimmel também inseria anúncios ou réclames de seus
produtos nos programas dos principais teatros de Londres como The Adelphi; Avenue
Theatre; Canterbury Theatre of Varieties; Covent Garden.; Dury Lane; Queen’s Theatre;
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Royal Alhambra Palace; Royal Aquarium; Royal Globe and Royalty.
O segundo incremento notado no início do século XX está na elaboração de uma
redação autocrítica e relexiva. O projeto editorial do programa passa a ser especíico
para cada espetáculo ou cada evento cênico em si, de forma a transformar o programa
numa pequena publicação de referência sobre esse mesmo evento.
Os programas passam a trazer uma maior densidade em termos de conteúdo com
a presença de escritos de críticos, jornalistas especializados e artistas. Da mesma forma,
já se pode notar neste período que os cenógrafos, não raro providenciam a ilustração
da capa, relacionando-a aos elementos visuais dispostos na cenograia, quando a capa
não passa a ser obra de um pintor ou ilustrador, especialmente destacado para essa
realização. A presença dos pintores-cenógrafos dá maior unidade visual ao projeto
editorial do programa.
Desde a iniciativa de Eugène Rimmel, os empresários teatrais que editam os
programas, já em formato revista, passam a vender espaço para outros anunciantes
e se estabelece, portanto, uma sistematização do programa de teatro como mídia.
Esse conjunto de anúncios e publicidade, inserido no projeto editorial do programa, é a
primeira etapa da associação entre o lucro comercial da atividade teatral e a publicidade
e propaganda que passam a acompanhar a publicação de programas até hoje.
Ao longo das análises de alguns programas é possível constatar a presença de
um verdadeiro discurso publicitário veiculado por meio do programa de teatro. Outro
dado fundamental é que, a exemplo da estratégia de Rimmel com seus perfumes,
de uma maneira geral os anúncios presentes nos programas tanto europeus quanto
americanos sugerem um público-alvo, majoritariamente, feminino.
AUTORIA E PROJETO EDITORIAL
Quanto à autoria do projeto editorial do programa, constata-se que num primeiro
momento ele esteve a cargo do empresário ou do produtor do evento teatral, como nos
sugere o exemplo de Rimmel. O programa é mais um negócio a ser administrado pela
empresa teatral. Mais recentemente os próprios artistas envolvidos no espetáculo são
convidados a escrever algumas linhas e a testemunhar sobre o seu processo criativo.
Como disse acima, uma das grandes modiicações no projeto editorial do programas
foi a presença dos pintores com a inserção da ilustração artística. Antes da presença
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dos pintores/ilustradores, os programas eram exclusivamente tipográicos. A partir dos
anos 1880 desenvolve-se o gosto por uma produção iconográica que se desenvolverá
com o paulatino emprego da fotograia como recurso para ilustração.
Nesse sentido, em 1888, André Antoine declarava que tinha tido a ideia de
reformular o que poderíamos chamar hoje de programação visual de seus programas.
Ele airma nas suas memórias:
Eu pensei solicitar, cada vez que fosse necessário, a um pintor ou
a um desenhista diferente que ilustrasse os nossos programas.
Desta vez foi, Willette quem me enviou um maravilhoso desenho.
Eu espero que este seja o primeiro de uma curiosa coleção
(Antoine, 1921, p. 117).
A ideia de coleção à qual Antoine faz menção advém da possibilidade de se
estabelecer uma série de ilustrações que incrementem um novo projeto visual associado
a uma nova linguagem para a cena. Desta forma, os desenhos das capas dos programas
seriam objeto de um conjunto de estampas, que também seriam comercializadas à
parte, e que, reunidas, seria objeto desta coleção citada pelo diretor.
Foi dessa forma que Paul Signac desenhou para Antoine o programa da temporada
do Theatre Libre em 1888-1889. Da mesma forma houve um estreitamento das
contribuições criativas entre os diretores simbolistas como Lugné Poe e Paul Fort e
os artistas nabis. Nesse caso, a colaboração não icou limitada ao plano da renovação
visual dos programas, mas se desenvolveu também no campo dos demais elementos
visuais da cena como igurinos, cenários, concepções de espaço, textura, luz e cor nas
encenações. Ainda no seu livro sobre o Theatre Libre, André Antoine comenta, em 24
de abril de 1894, a respeito da sua relação com os pintores parisienses na realização
dos programas para os espetáculos da sua companhia. Ele airma que:
Para Le Missionaire, Toulouse-Lautrec desenhou um admirável programa
colorido que os colecionadores um dia disputarão à unha. De resto, a
série que eu consegui estabelecer durante vários anos será única. Todos
os artistas daquele tempo colaboraram: Forain, Willette, Raffaelli, Henri
Rivière, Vuillard, Steinlein, Auriol, Signac, Luce, Charpentier, o escultor,
e muitos outros. Eu tive até mesmo o prazer de fornecer a um recémchegado, H.-G. Ibels, a oportunidade de se airmar de maneira original,
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com oito programas que eu lhe encomendei no ano passado. (Antoine,
1921, p. 303).
De fato, a ilustração para esse programa da peça Le Missionaire tornou-se uma
gravura bastante popularizada graças às suas cores e aos traços inconfundíveis de
Toulouse-Lautrec.
Este programa-estampa informa que se trata do quinto espetáculo da temporada
1893-94. Ele exibe o título do espetáculo: Le Missionnaire, romance teatral em cinco
atos, seguido da distribuição dos personagens, informando que a parte da leitura era
feita pelo próprio Antoine. Gostaria de observar que neste caso, a imagem do programa
nos levou a compreender um procedimento narrativo da encenação de Antoine, quando
continuamos a ler seu livro de memórias. Especiicamente, ainda sobre a montagem de
Le Missionnaire, Antoine relata um procedimento, em parte estimo que pouco usual, e
que sugere uma certa epicização da encenação, quando informa que:
Le Missionnaire, o qual acabamos de encenar ganhou uma forma
verdadeiramente inesperada. Trata-se de uma história em cinco
quadros, entremeada de comentários de um leitor localizado na
avant-scène, folheando um livro que ele vai virando as páginas.
Depois de alguns fragmentos lidos em voz alta, ele continua
enquanto que sobre o palco certos episódios se desenvolvem.
Isto, que é novo, coloca o público em estado de graça. Eu mesmo
iz o difícil papel do leitor, e todas as noites, eu icava a mercê das
brincadeiras e das provocações do público. Num certo momento,
no meio da confusão, ganhei até um soco na cara. Este fato foi
extremamente simbólico. Este gesto brutal me fez decidir, naquele
instante, a abandonar o Théâtre Libre. Os infelizes que lá estava
não sabem de nada, e se eu revelasse a eles o subtexto das coisas,
é provável que eles acabassem envergonhados (Antoine, 1921,
p. 303).
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http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b52503936q/f3.item
Essa descrição de Antoine, na sua primeira parte quando menciona o leitor na
avant-scène, se relaciona com a imagem concebida por Toulouse-Lautrec. O pintor
idealiza uma ilustração que de sua parte retoma o tema da loge, onde esta é visualizada
agora em contra-plongé. Na loge é possível ver um casal, cuja igura masculina seria
a do pintor Charles Conder que acompanha uma espectadora portando binóculos e
que olha para a plateia ou para o palco. A imagem também sugere uma relação com
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a ideia da narrativa, descrita na segunda parte da citação, que se encadeia entre os
acontecimentos lidos por Antoine e que transcorrem sobre o palco criando uma espécie
de estranhamento em relação à quarta parede, atritando a narrativa entre o dramático
e o épico.
AS ÊNFASES DISCURSIVAS
Para se estabelecer um estudo morfológico do programa de teatro, adotei um princípio
organizacional que observei em Umberto Eco, no seu livro A vertigem das listas. No
caso especíico do programa de teatro, estaríamos diante de um catálogo, que está
associado à apresentação de uma obra cênica, não importando aqui se se trata de uma
representação convencional, isto é a encenação de uma peça, ou se diante de uma
exibição de um teatro performativo, ou pós-dramático.
O foco é sempre o programático presente no programa. Não me interessa
relacionar o descrito no programa com a cena, do ponto de vista comparativo entre
seus discursos, isto é, estabelecer um atrito entre o discurso enunciativo do projeto de
uma montagem e os diversos sistemas signiicantes presentes na encenação da obra
anunciada pelo programa. Não é tampouco o objetivo chamar atenção para o que seria
prometido, em termos programáticos na redação do programa e que pode não ser
efetivamente materializado pela encenação. Em tese, o leitor do programa, presumido
espectador do espetáculo, é confrontado a um opúsculo, organizado graças às listas
que enumeram conteúdos initos referentes ao universo do evento cênico.
Considero que na sua função de catálogo de uma encenação, o programa é
constituído por listas, inicialmente, oriundas da informação pré-existente nos cartazes de
rua, ou daquilo que Gilbert David salienta como “o conjunto de informações estritamente
factuais, as quais permitem a identiicação do objeto espetacular em questão e designa
a responsabilidade e a identidade de todos que deste ato espetacular participam, bem
como as coordenadas do produtor e as informações práticas” (David, 2003, p. 102).
Os programas constituídos por enumerações estabelecidas segundo listas contêm
listas práticas, initas e conjuntivas, segundo a terminologia empregada por Umberto
Eco. Lista de dados gerais e dados especíicos; lista dos números ou partes a serem
apresentadas; lista de títulos; lista de autores; lista de personagens; lista de atores;
lista de artistas colaboradores; lista de técnicos; lista de textos referentes ao universo
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da obra; lista de imagens promocionais ou do processo criativo; lista de propagandas;
lista de funcionários do teatro; lista de colaboradores artísticos; lista de agradecimentos;
lista de patrocinadores; lista de textos críticos e analíticos que comentam a obra ou sua
autoria; entre outras tantas modalidades de enumerações.
Essas listas são estruturadas segundo os conteúdos que advém do que Gilbert David
propõe em seu estudo como l’avant-texto e meta-texto. Segundo esse pesquisador,
com o avant-texto “entra-se no vasto âmbito da autopromoção e do jogo narcísico mais
ou menos explícito, o qual não deixa de dar um certo colorido especial ao conjunto de
elementos do avant-texto”(David, 2003, p. 104).
A designação estabelecida por Gilbert David para a análise de programas de
espetáculos do teatro contemporâneo do Quebec, se resumiria assim a conteúdos
informativos e descritivos (co-texto); comemorativo e promocional (avanttexto); exegético (meta-texto).
Esses conteúdos são percebidos no interior dos programas graças a uma
organização hierarquizada por meio de listas. Essas listas, por sua vez, designariam
as partes de que se compõe, globalmente, o projeto editorial da publicação-programa,
que o espectador ganha ou compra, quando vai assistir a um espetáculo. Essas diversas
listas funcionam, na minha opinião, como uma espécie de unidade padrão, unidade
mínima organizacional do projeto editorial da publicação-programa. A constituição dos
programas seria assim distinta e variável segundo a natureza e o conteúdo das listas
que são dispostas dentro de um regime hierárquico, proposto pela instância autoral,
responsável pela publicação. Dessa maneira, a lista funcionaria como uma unidade
mínima organizacional reguladora e hierarquizante que acaba por constituir pequenas
seções no interior de um mesmo programa.
É esse conjunto de seções, aliado ao layout da publicação, com destaque
para o tratamento dado à capa do programa, que acaba diferenciando, em parte, os
programas uns dos outros ao longo do tempo. Diferenciando-os, sobretudo, em relação
às suas intenções editoriais não se trata unicamente de uma questão de formato físico.
O leitor há de perceber as características distintas mais marcantes entre um
programa do inal da metade do século XIX e outro oriundo da metade do século XX.
Os primeiros eram muito mais voltados para função informativa sobre o evento do
que os segundos. Essas seções, organizadas por listas, consequentemente, acabam
como suporte para discursos diversos: discurso institucional; discurso criativo; discurso
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publicitário; discurso comercial; discurso individual; discurso coletivo; etc. Essa massa
discursiva da qual o programa é o meio e o suporte é que deve ser interrogada na
tentativa de se diagnosticar e interpretar as intenções
dos agentes criativos e dos
agentes produtores do espetáculo em relação ao papel do espectador, potencial leitor
do programa.
Esse discurso, engendrado pelos agentes criativos e pelos produtores do
espetáculo, em suma, pela instância autoral do programa, independentemente do grau
de sua elaboração, outorga a este mesmo programa, por mais simples que seja sua
composição, a um só tempo, uma função compensadora e/ou reparadora. “Reparar”
ou “compensar” signiica a possibilidade de indução do leitor do programa a conhecer
ou a se familiarizar com as três etapas atinentes ao trabalho teatral: concepção/
criação; realização/execução; fruição/recepção. Dessa forma os agentes criativos e os
produtores do espetáculo pressupõem catalisar a fruição no momento da apresentação
e num segundo instante prolongar a experiência estética do espectador para além do
ato da recepção em si.
Para alcançar esse efeito “compensador” ou “reparador”, a publicação-programa
seria portadora de certas ênfases associadas a essas três etapas do trabalho criativo.
Além do discurso comunicacional natural dos programas, essas ênfases a meu ver
seriam: didascálicas; históricas; estéticas e genéticas. No programa didascálico,
por exemplo, percebe-se a característica de um programa que além das informações
de base, ele se preocupa em apresentar ao espectador uma extensão da dramaturgia
no intuito de elucidar a apreciação da encenação. Isto acontece, hoje em dia com
maior regularidade, com os programas de óperas ou de balés, ou com os programas
de textos dramáticos cuja intriga é complexa, repleta de qüiproquós recheada por
inúmeros personagens. Esses programas oferecem ao espectador um resumo dos atos
da peça ou do libreto da ópera; reproduzem parte do texto didascálico do início de
cada ato da peça; apresentam as vezes sinopses ou trechos do diálogo extraídos da
peça. Aportando essas e outras extensões da dramaturgia à leitura do espectador, essa
tendência dos programas procura alcançar uma funcionalidade que poderíamos estimar
como didascálica.
As duas outras ênfases são, por vezes, complementares: a histórica e a estética
estão vivamente associadas à encenação ou ao projeto de montagem. Parte do conteúdo
de um programa pode ser considerado como histórico quando sua redação, além de
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seus aspectos visuais (iconograia) seus textos citados, desejam sinalizar uma espécie
de trajetória histórica da peça encenada ou de sua substância fabular, considerada
como algo essencial, mormente de fundo humanista.
Ao espectador-leitor é oferecida uma espécie de retrospectiva de referências
acerca de outras montagens daquele mesmo texto, acompanhado de comentários críticos
ou anedóticos sobre essa mesma trajetória. Essa substância histórica acabaria por
instrumentalizar a percepção do espectador em relação ao espetáculo, convencendo-o
do valor “permanente” que reside na obra, fato que legitimaria o espetáculo apresentado.
O leitor pode constatar este tipo de comportamento veriicando o conteúdo dos
programas, sobretudo, de autores que vão sendo canonizados pela crítica especializada
e vão se destacando como exemplares de uma tradição que é construída sobre esse
tipo de discurso.
Já a condição de uma ênfase estética se veriica quando a inalidade de parte
do conteúdo do programa está centrada numa discussão teórica, resumidamente
apresentada ao espectador. Isto é, quando o programa enfatiza o desenvolvimento de
idéias referentes à proposta de montagem do espetáculo. O programa faz sobressair
temas e problemas atinentes ao universo poético da obra encenada ou ao conjunto de
obras de um determinado autor.
Trata-se ainda da presença de uma espécie de comentário acerca dos critérios
da passagem da escrita dramática para a escrita cênica. Enfatiza-se, nesse caso, o
pensamento poético, as escolhas estéticas do autor da peça, apresenta-se o olhar
interpretativo dos artistas da cena sobre esse material. O programa de teatro de caráter
estético articula, por vezes, um discurso engajado do ponto de vista político, cujo teor
está fortemente associado ao trabalho de transposição cênica. Por último, a ênfase
de um discurso sobre a gênese da obra cênica. Este tipo de programa está focado em
descrever ao espectador a gênese da obra cênica apresentada, e não a narrativa que se
dá sobre o palco. Isso acontece, normalmente, com os espetáculos ditos de linguagem
ou que não trabalham com uma dramaturgia convencional, ou que são ainda tributários
da chamada dramaturgia colaborativa.
Esse tipo de programa explicita as origens, expõe as motivações e, sobretudo,
descreve na íntegra ou parcialmente as etapas do processo criativo vivido pelo conjunto
de agentes criativos da cena. Trata-se de uma espécie de discurso sobre a origem da
obra cênica, considerando esta obra como um texto cênico. A crítica genética, que vem
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sendo amplamente adotada nos estudos literários, é uma ferramenta importante na
análise desses programas de teatro.
Constatei essa tipologia, que revela as ênfases na redação dos programas, ao
folhear, manipular, descrever e analisar centenas de programas franceses, americanos
e brasileiros, e passei a entender essas mesmas ênfases como quatro intenções que
esses opúsculos manifestam.
Essa tipologia não está fechada nem me parece concluída. Ela relete um estágio
desse trabalho que foi meu modo de ler os programas e analisá-los. Essa tipologia não
é conclusiva nem excludente, tão pouco quer sugerir que haja qualquer teleologia ou
hierarquia de um tipo de programa sobre o outro, mas muito ao contrário, veriicase uma complementaridade entre as ênfases observadas. Trata-se da narrativa que
os agentes criativos e/ou os produtores do espetáculo estabeleceram para si e para
os espectadores de seus espetáculos. É possível encontrar combinações entre essas
intenções programáticas, pois as ênfases na redação de um programa se misturam. O
que iz foi observar e chamar atenção para cada uma dessas ênfases isolando-as, mas
é certo que num programa contemporâneo essas ênfases tendem a se fundirem.
Trata-se, unicamente, de ênfases ou tendências veriicadas até o momento junto
a um conjunto bastante diversiicado e heterogêneo de programas do teatro francês,
norte americano e brasileiro, que datam sobretudo da segunda metade do século XIX
ao século XXI.
CONCLUSÃO
Não foi minha intenção dedicar-me aos aspectos da produção editorial, em si,
nem de me deter em aspectos tributários ao design gráico do programa de teatro.
Minha intenção foi permanecer, estritamente, dentro do campo dos estudos
teatrais, me detendo, particularmente, no conteúdo dessas pequenas publicações e
sua pertinência em termos de porta-voz dos agentes criativos em relação à audiência.
Ou seja, como os agentes criativos da cena pensam, ou melhor se expressam em
relação às suas realizações cênicas. Trata-se de procurar entender o comportamento
criativo desses artistas.
Percebo que a análise dos programas pode gerar boas discussões que contribuirão
para os estudos da estética da recepção, agora pensando-se do lado de cá, do lado da
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fruição do evento, isto é, que tipo de munição os agentes criativos e os produtores do
espetáculo oferecem à audiência.
Como se pode perceber o programa é uma publicação mediadora. Não tendo
sido feito, originalmente, para durar, essa publicação com um projeto editorial às vezes
despretensioso, pode ser lido antes, durante ou até mesmo depois do evento teatral. O
programa permanece como uma peça fundamental para também ser relido agora como
fonte primária para se problematizar os modos de ser espectador.
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