PSICOLOGIA: COMPREENSÃO E INTERVENÇÃO EM CONTEXTO HOSPITALAR…
O IMPACTO DA QUEIMADURA NA RELAÇÃO
CONJUGAL E NA INTIMIDADE
JOSÉ MANUEL PINTO28
LUÍS MIGUEL MONTINHO29
PEDRO RICARDO GONÇALVES30
O impacto do acidente no Subsistema Conjugal
O subsistema conjugal é formado quando dois adultos se unem, com o propósito
expresso de formar uma família (Relvas, 2000). Têm tarefas ou funções específicas,
vitais para o funcionamento da família. A aceitação da interdependência mútua, numa
relação simétrico-complementar, pode ser prejudicada pela insistência de cada um dos
membros nos seus direitos individuais (Minuchin, 1990).
Os casais funcionais partem de “um eu e um tu” para a construção de um “nós”. Cada
um deles tem uma identidade e uma vida própria e nem o casal nem os cônjuges podem
esquecer-se de que autonomia, partilha e negociação são, se não palavras mágicas, pelo
menos instrumentos fundamentais de articulação (Alarcão, 2000).
O “eu” e “tu” correspondem a cada um dos sujeitos: aos seus desejos, às suas
necessidades, aos seus valores, às suas atitudes, às suas expectativas, aos seus
comportamentos, às suas aprendizagens; numa palavra, às suas características físicas,
cognitivas, emocionais e morais.
O “nós” emerge duma área de encontro do par e diz, desde logo, respeito ao projeto do
casal. O “nós” apela a uma construção cúmplice e protetora (Minuchin, 1990; Relvas,
2000) ou como referem Fekete et al., (2007) as perceções emocionais dos cônjuges
medeiam a capacidade de resposta na relação de apoio e bem-estar psicossocial,
28 PhD, Professor Coordenador da ESEnfC, Psicólogo, Membro da Associação Portuguesa Psicanálise e
Psicoterapias Psicanalíticas; Membro da Sociedade de Psicodrama Psicanalítico dos Grupos.
29
Enfermeiro no Serviço de Neurologia A dos Hospitais da Universidade de Coimbra, EPE.
30
Enfermeiro no Serviço de Neurocirurgia 1 dos Hospitais da Universidade de Coimbra, EPE.
Série Monográfica Educação e Investigação em Saúde
Psicologia em contextos de saúde: da compreensão à intervenção
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presumindo uma área de encontro onde cada parceiro funciona como caixa de
ressonância do outro. Nesta construção participam a história e a representação interna
de cada um dos cônjuges, bem como das histórias que a família cria e desenvolve sobre
a conjugalidade.
Em situação de crise, o casal pode-se tornar um refúgio para o stress interno ou externo
e ser a matriz para o contacto com outros sistemas sociais, mesmo em situações
mais desfavoráveis, por favorecer a aprendizagem, a criatividade e o crescimento. No
processo de acomodação mútua, o casal pode atualizar aspetos criativos dos seus
parceiros, que estavam latentes, e apoiar as melhores características de cada um. Mas
os casais também podem estimular aspetos negativos um do outro. O casal pode insistir
em aperfeiçoar ou salvar os seus parceiros e, por este processo, desqualificá-los. Neste
caso os casais tornam.se «uma arena íntima particularmente intensa de negociação
social» Weingarten (2013, p. 83). Como sabemos, algumas negociações estão mais
alinhadas do que outras em relação a quem nós pensamos que somos e quem
queremos ser (Alarcão, 2000; Watzlawick et al., 1998.; Weingarten, 2013). Ao invés de
aceitá-los como são, um dos cônjuges pode impor novos padrões a serem atingidos e
estabelecer padrões transacionais dependentes-protetores e por isso disfuncionais na
sua complementaridade rígida (Alarcão, 2000; Watzlawick et al., 1998).
Esses padrões rígidos podem existir em casais comuns, sem subentender uma patologia
extensiva ou uma motivação malevolente em cada membro.
Os casais necessitam de construir uma fronteira clara que os salvaguarde na sua
integridade individual e na de casal. Os adultos necessitam preservar um território
psicossocial próprio – um abrigo no qual possam dar apoio emocional um ao outro. Se
a fronteira em torno do casal é inadequadamente rígida, o sistema pode ficar stressado
pelo seu isolamento. Mas se o casal mantém fronteiras frouxas, outros subgrupos,
inclusive filhos e parentes afins, podem-se intrometer no funcionamento do subsistema
deles. Em termos humanos simples, marido e mulher precisam um do outro como um
refúgio das exigências múltiplas da vida.
Sabemos que a reação da família à doença vai depender, entre outras circunstâncias, do
familiar afetado. Não é a mesma coisa estar doente o marido, a esposa ou algum filho
(Minuchin, 1990).
Queimadura num dos cônjuges
A perturbação produzida pela doença vai por à prova a natureza dos laços afetivos
entre o elemento queimado e o seu cônjuge. A doença e a incapacidade subsequente do
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José Manuel Pinto, Luís Miguel Montinho & Pedro Ricardo Gonçalves
O impacto da queimadura na relação conjugal e na intimidade
doente queimado deste pode também provocar uma redução dos ganhos, implicando
isso uma necessidade de ajustamentos que provocam situações potenciais de stress
e mobilizam processos resolutivos, nomeadamente o diádico tentando perceber como
uma pessoa reage aos sinais de stress de outro. Os processos resolutivos comuns
colocados em marcha nos quais os casais se pensam em termos de um “nós”, com
as duas pessoas vendo-se como responsável pela manutenção do relacionamento e
da gestão compartilhada do seu esforço parece estar associada a um maior bemestar no relacionamento, apesar das tensões de lidar com as situações de doença
(Acitelli & Badr, 2005; Weingarten (2013). Esta conjugação pode exigir, em momentos
de crise e de doença, que um dos cônjuges tenha uma função substitutiva ou tão
só complementar, que pode implicar a renúncia a outros planos e projetos. Estas
mudanças podem gerar desencontros, tensões e/ou mau humor e raiva inconsciente
para com o doente (Bonilla, 1989). Nestas situações, quando os casais experimentam
o «nós», a qualidade conjugal é avaliada como mais satisfatória (Weingarten, 2013),
tal como quando o apoio emocional é recíproco e sentido como adequado (Fekete et
al., 2007).
A boa qualidade conjugal parece ter impacto sobre a saúde e uma melhor qualidade
de vida, tanto para a pessoa doente como para o parceiro. Se antes da doença as
responsabilidades eram partilhadas por ambos os cônjuges, quando uma pessoa adoece
pode sentir a sua autoridade diminuída ou anulada, gerando-se focos potenciais de
conflitualidade no casal. Ullrich, Askay, & Patterson, D. (2009) realizaram um estudo
prospetivo, com 64 adultos sobreviventes de queimaduras logo após a alta de pacientes
queimados com follow-ups ao ano e aos dois anos, em que analisaram a associação
entre dor, depressão e função física através da passagem e recolha de questionários
que avaliam a dor, depressão e funcionamento físico. Concluíram que havia melhoria
com o decorrer do tempo e que dor e depressão estão sempre associados a um pior
funcionamento físico, mas as associações variavam de acordo com o intervalo de
tempo considerado. Além disso, a associação entre dor e função física foi mais forte
entre as pessoas com scores de depressão mais elevados. Concluíram também que
a situação de doença e as mudanças que implicam podem provocar alterações na
relação conjugal, sobrecarregando o cônjuge. Estes resultados vêm ao encontro da
importância da existência de um “nós” conjugal sólido que funcione como protetor e
como “antidepressivo” face às situações stressantes existentes, por ser um sinal de
esperança e conforto na adversidade, um verdadeiro porto seguro.
Por outro lado, a queimadura, ao colocar em questão a imagem corporal do cônjuge
queimado e confrontar o outro cônjuge com essas mesmas alterações, instala um período
mais ou menos longo de cicatrização e recuperação funcional (Summer, et al., 2007),
dependendo da extensão e da profundidade das queimaduras. Este período conturbado
Série Monográfica Educação e Investigação em Saúde
Psicologia em contextos de saúde: da compreensão à intervenção
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na vida do casal questiona a intimidade dos cônjuges. O padrão intimo e as relações
sexuais dos cônjuges podem diminuir ou desaparecer, podendo gerar perturbação e
afastamento emocional e/ou perda de cumplicidade no casal. Em geral, a doença pode
produzir fenómenos de regressão comportamental provocando maior conflitualidade na
relação conjugal. Estes tornam os vínculos mais inseguros (Bowlby, 1993) e expõem o
casal a uma situação de crise que, por um lado incrementa o desencontro e/ou risco de
conflito mas que proporciona uma construção mais cúmplice do casal e da vivência da
sua conjugalidade.
O parceiro pode ver-se sujeito a profundas mudanças relacionais provocadas pela
doença do cônjuge com queimadura, que apelam à relação prévia entre os cônjuges e a
própria tolerância à frustração (Bion, 2004) de projetos de vida cuja situação de doença
impossibilita ou difere no tempo. Podem produzir-se sentimentos de mal-estar (mistura
de temor, angústia e repugnância) e de hostilidade. A doença pode tornar o cônjuge com
queimadura mais débil e frágil por ver questionada a complementaridade e o suporte na
relação, agora que o cônjuge exige esses cuidados para ele próprio.
Poderão também instalar-se a abnegação, a atenção e os cuidados para com o doente.
Ao nível afetivo, quando a queimadura afeta um dos cônjuges, poder-se-á instalar
após uma queimadura aguda, maior angústia que é consistentemente observada em
indivíduos que apresentam um padrão conflitual ambivalente entre enfrentar e evitar a
situação presente, tendendo a presentarem mais sintomas que os que usam padrões
claros para lidar com a situação acidental no cônjuge (Fauerbach et al., 2009).
O mau estar e a estranheza face ao corpo lesado do cônjuge pode levar à recusa de
proximidade e/ou apoio por existir zanga e revolta enquanto o cônjuge pode necessitar
de acompanhamento, carinho e amor por estar numa fase de recuperação tendente à
aceitação do ocorrido. No entanto, cada caso é único.
A intimidade poderá ficar afetada após a queimadura, apelando a uma reconstrução da
própria relação de intimidade. Esta far-se-á a par e passo no encontro e na confirmação
de cada um dos cônjuges numa recriação da intimidade onde a queimadura apela a uma
reformulação da imagem corporal do próprio e do cônjuge. Se a pessoa queimada ou
o seu cônjuge se desencontrarem poderá haver maior stress «dor crônica debilitante e
transtornos relacionados ao stress» (Summer et al., 2007). Este desencontro sofrido
pode instalar um período de crise e de desconfiança acerca de si, do outro, onde a
dor pode predominar e as capacidades de cada cônjuge serão questionadas. A não
aceitação do corpo, pelo próprio, após as lesões causadas pelo acidente, bem como do
cônjuge, poderá levar ao adiar do contacto íntimo que afasta o casal e potencia áreas de
conflito e desencontro.
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José Manuel Pinto, Luís Miguel Montinho & Pedro Ricardo Gonçalves
O impacto da queimadura na relação conjugal e na intimidade
Metodologia
O presente estudo qualitativo exploratório pretende compreender melhor a seguinte
questão de investigação:
- Quais as mudanças que ocorrem na relação conjugal face à queimadura de um dos
cônjuges?
O estudo foi realizado no Serviço de Consultas Externas da Unidade de Queimados dos
Hospitais da Universidade de Coimbra, EPE.
O método de colheita de dados foi a entrevista, semiestruturada, com perguntas abertas
para que o entrevistado pudesse falar abertamente da sua experiência, sem se perderem
os objetivos da mesma.
O guião final foi construído da seguinte forma: na primeira parte foram colhidos dados
pessoais, clínicos e, ainda, houve a aplicação da Escala de Graffar Simplificada. Na
segunda parte foram colocadas questões relativas à dinâmica conjugal (“Como sentiu
a reação do cônjuge ao seu acidente?”; “Sente que o acidente alterou a vossa maneira
de ser íntimo? Como?”) de forma a saber como é que o doente queimado vivência a
experiência interna e relacional de um acidente marcante na sua relação conjugal.
As entrevistas foram realizadas aquando da ida dos utentes às Consultas Médicas ou de
Enfermagem, para realização do tratamento à queimadura.
Caracterização da amostra
A amostra é constituída por 21 doentes, maioritariamente do sexo feminino, num total de
62% (13 mulheres), com uma média de idades de 44 anos. No que se refere à escolaridade,
a maior parte da amostra possui a instrução até ao Primeiro Ciclo (47%). Quanto ao
tipo de queimadura, 90% apresentam etiologia térmica, 52% são de espessura total e
67% são queimaduras ligeiras, atingindo membros superiores em 62% e inferiores em
43%, seguido da cabeça e pescoço em 33%. Do total de entrevistados, 57% apresentou
internamento hospitalar e 71% refere que não apresentou apoio psicológico. No que diz
respeito ao tempo de ocorrência da queimadura, verifica-se que 43% das queimaduras
ocorreram há menos de 2 meses. Da análise do tipo de família verifica-se que: 42%
pertence à Família de Classe Média, seguida da Família de Classe Média Baixa (29%).
Quanto ao tipo de união, verifica-se que 95% dos indivíduos estão casados e apenas um
se encontra em união de facto. No que se refere ao tempo de união/casamento, verificase que a média de tempo de casamento decorrido é de 20 anos.
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Psicologia em contextos de saúde: da compreensão à intervenção
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Apresentação de resultados
O tratamento da informação recolhida foi realizado através da análise de conteúdo,
procedendo-se a uma categorização da informação. Desta resultaram duas grandes
categorias, a saber: a reação do cônjuge e a intimidade conjugal.
A reação do cônjuge
Os indicadores retirados das reações relatadas dos cônjuges resultaram em tês tipos de
subcategorias as reações positivas, as negativas e as ambivalentes (Tabela 1).
As reações positivas têm como indicadores a preocupação/culpa/apoio/proximidade
e a aceitação ou até a reaproximação dos cônjuges:
“Aceitou e apoiou desde o primeiro momento” (E8;)
“Sentiu-se culpado (…) está sempre muito preocupado pergunta-me sempre como é
que está como me sinto/” (E12)
“Apoio e proximidade” (E13) 0-2
“Aproximou-se mais de mim” (E15) 0-2
“Houve aceitação e muito apoio e proximidade” (E16) 0-2
“Ele não me culpou (..) está preocupado é que eu fique bem” (E17)
“Ela também me tem ajudado muito” (E19)
“Tivemos uns anos complicados. Agora voltou a ser como era” (E20)
“É mais amiga do qu era antes” (E21)
As reações negativas têm como indicadores comunicacionais a zanga/abatimento/pânico
“Ficou todo lixado (…) ficou de morrer” (E1)
“Ficou muito abatido a ainda está a ressacar” (E2) 0-2
“A reação do meu marido foi dizer que eu era parva” (E3)
“ Entrou em pânico completamente”(E7) 0-2
“Ela desmaiou depois de eu já ter ido embora” (E9)
“A minha esposa não aceitou muito bem o acidente e sentiu uma certa revolta” (E18)
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José Manuel Pinto, Luís Miguel Montinho & Pedro Ricardo Gonçalves
O impacto da queimadura na relação conjugal e na intimidade
As reações ambivalentes apresentam como indicadores expressivos a zanga/revolta
acomodadas com a proximidade sem deixarem de gerar desconforto na pessoa com
queimadura e decerto no outro cônjuge:
“Tenho o meu marido ao pé de mim (…) ele arrelia-se. ele ralha comigo” (E4)
“Meio refilão mas depois aceitou, olha o trabalho que tu fizeste” (E6)
“Ficou preocupado e disse “bem feito (…) só para tu saberes que n devias levar água
quente para a cama” (E10)
“Primeiro surgiu a revolta depois o apoio e a proximidade” (E14)
Tabela 1 – Reações do cônjuge a(o) companheira(o) com queimadura
CATEGORIA SUBCATEGORIA
INDICADORES
“Aceitou e apoiou desde o primeiro momento” (E8;)
“Sentiu-se culpado (…) está sempre muito preocupado pergunta-me
sempre como é que está como me sinto/” (E12)
“Apoio e proximidade” (E13) 0-2
“Aproximou-se mais de mim” (E15) 0-2
Positiva
“Houve aceitação e muito apoio e proximidade” (E16) 0-2
“Ele não me culpou (..) está preocupado é que eu fique bem” (E17)
“Ela também me tem ajudado muito” (E19)
“Tivemos uns anos complicados. Agora voltou a ser como era” (E20)
12+
“É mais amiga do qu era antes” (E21) 12+
Reação do
cônjuge
“Ficou todo lixado (…) ficou de morrer” (E1) 2-12
“Ficou muito abatido a ainda está a ressacar” (E2) 0-2
“A reação do meu marido foi dizer que eu era parva” (E3) 2-12
Negativa
“Entrou em pânico completamente”(E7) 0-2
“Ela desmaiou depois de eu já ter ido embora” (E9)
“A minha esposa não aceitou muito bem o acidente e sentiu uma
certa revolta” (E18)
“Tenho o meu marido ao pé de mim (…) ele arrelia-se. ele ralha
comigo” (E4)
Ambivalente
“Meio refilão mas depois aceitou, olha o trabalho que tu fizeste” (E6)
“Ficou preocupado e disse “bem feito (…) só para tu saberes que não
devias levar água quente para a cama” (E10)
“Primeiro surgiu a revolta depois o apoio e a proximidade” (E14)
Série Monográfica Educação e Investigação em Saúde
Psicologia em contextos de saúde: da compreensão à intervenção
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Podemos sintetizar que a paleta de respostas face ao cônjuge com queimadura é diversa
e pode estar relacionada com o resultado da queimadura, pois os padrões de relação
alterados parecem predominar ao longo do tempo, tendo como base a preocupação face
ao acidente. Verifica-se que nos discursos feitos no passado há mais reações positivas,
o que se confirma numa maior proximidade relatada entre o casal, provocada pela crise,
isto é, o acidente promoveu uma aproximação do casal.
b) Intimidade conjugal
A intimidade conjugal, mostra-se predominantemente alterada. Esta alteração deve-se
ao elemento acidental que se interpôs entre os cônjuges. O receio de tocar e magoar e
as limitações físicas funcionam como limitadores da relação conjugal.
Constituíram-se três subcategorias: a alterada, a imutável e a ambivalente para a relação
que pode ter sido alterada positiva ou negativamente (Tabela 2). As alterações negativas
têm como indicadores a predisposição, as limitações físicas e o evitamento.
“A minha predisposição foi-se (…) e ele respeita” (E2) 0-2
“É diferente pois tenho assim os pés/” (E5)
“Durante a noite vira-se ao contrário para não me magoar” (E6)
“Há movimentos que não posso fazer” (E7) 0-2
“Alterou nos primeiros dias (…) dois meses sei lá” (E8)
“Tenho medo. Parece que te estou a aleijar” (E9)
“Após a queimadura (…) naquela altura foi mau” (E16)
“A minha esposa no início tinha nojo de me tocar, de me abraçar…”(E18)
“As coisas já não são as mesmas” (E21)
As alterações positivas têm como mote uma maior aproximação dos cônjuges após o
acidente, parecendo haver um estreitamento emocional entre os cônjuges, como se o
acidente tivesse permitido uma resolução criativa e íntima do casal.
“É cada vez mais amor” (E15)
“Agora até estamos a tentar ter um filho” (E20)
A relação também foi relatada como imutável por algumas das pessoas sujeitas a queimadura,
parecendo ter na base uma relação de proximidade e cumplicidade entre o casal.
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José Manuel Pinto, Luís Miguel Montinho & Pedro Ricardo Gonçalves
O impacto da queimadura na relação conjugal e na intimidade
“A expressão de carinho é a mesma coisa” (E1)
“O meu marido foi sempre para mim como dantes” (E3)
“Não foi assim grave a esse ponto” (E10)
“ Não mexeu nada”(E12)
“Não mexeu nada antes pelo contrário” (E14)
“Continuamos com a mesma vida” (E19)
Tabela 2 – A intimidade conjugal com a(o) companheira(o) com queimadura
CATEGORIA
SUBCATEGORIA
INDICADORES
“A minha predisposição foi-se (…) e ele respeita” (E2) 0-2
“É diferente pois tenho assim os pés/” (E5)
“Durante a noite vira-se ao contrário para não me magoar” (E6)
(0-2
“Há movimentos que não posso fazer” (E7) 0-2
“Alterou nos primeiros dias (…) dois meses sei lá” (E8)
Alterada
“Tenho medo. Parece que te estou a aleijar” (E9)
“É cada vez mais amor” (E15)
“Após a queimadura (…) naquela altura foi mau” (E16)
“A minha esposa no início tinha nojo de me tocar, de me abraçar…”
(E18)
Intimidade
conjugal
“Agora até estamos a tentar ter um filho” (E20)
“As coisas já não são as mesmas” (E21)
“A expressão de carinho é a mesma coisa” (E1)
“O meu marido foi sempre para mim como dantes” (E3)
Imutável
“Não foi assim grave a esse ponto” (E10)
“Não mexeu nada” (E12)
“Não mexeu nada antes pelo contrário” (E14)
“Continuamos com a mesma vida” (E19)
Ambivalente
“É perfeitamente igual. A pessoa que não está aleijada tem
sempre a preocupação” (E11)
“Na nossa vida íntima não noto diferenças (…) Temos algumas
limitações” (E17)
Série Monográfica Educação e Investigação em Saúde
Psicologia em contextos de saúde: da compreensão à intervenção
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Discussão
Os resultados permitem-nos dizer que a relação conjugal e íntima se alteram quando
um dos cônjuges sofre uma queimadura que implique um período de recuperação mais
ou menos longo, mesmo no caso de queimaduras consideradas moderadas e ligeiras.
Percebe-se que a relação de casal – relacional e íntima - fica predominante alterada
devido aos efeitos da própria queimadura. Esta situação acidental apela a uma reação
positiva que mobilize um “nós” no casal, uma área de encontro do par, cúmplice e
protetora (Minuchin, 1990; Relvas, 2000) onde as perceções emocionais dos cônjuges
em relação à parceria seja positiva, uma vez que estas medeiam a capacidade de
resposta na relação de apoio e bem-estar psicossocial (Fekete et al., 2007). Esta área
de encontro do casal pode, nesta situação de crise do casal, tornar-se um refúgio para
o stress interno ou externo e ser a matriz para o contacto com outros sistemas sociais,
mesmo em situações mais desfavoráveis, por favorecer a aprendizagem e o crescimento,
potenciando uma aproximação e enlace criativo do casal.
Quando as reações dos cônjuges são negativas e/ou desadequadas aos olhos do outro,
os casais podem estimular e amplificar aspetos negativos que afastam os cônjuges e os
impedem de um enlace mais intimo. Um dos cônjuges pode insistir em aperfeiçoar e/
ou criticar o outro, desqualificando-o. Nesta situação de desencontro, os casais tornamse «uma arena íntima particularmente intensa de negociação social» (Weingarten,
2013, p. 83), podendo estabelecer-se padrões transacionais dependentes-protetores
disfuncionais na sua complementaridade rígida (Alarcão, 2000; Watzlawick et al., 1998)
ou uma luta simétrica em que cada casal se “enche de razões” que o afastam do outro
e enredam numa luta que dificulta a própria recuperação (Ullrich, Askay, & Patterson,
2009). Confirma-se que a manutenção de um relacionamento e da gestão compartilhada
do seu esforço parece estar associada a um maior bem-estar no relacionamento, apesar
das tensões de lidar com as situações de doença tal como referem Acitelli & Badr
(2005) e Weingarten (2013).
As alterações positivas possibilitam que o casal se reinvente e estabeleça projetos onde
o envolvimento do par se revela. Uma boa qualidade conjugal parece ter impacto sobre a
saúde e uma melhor qualidade de vida, tanto para a pessoa doente como para o parceiro.
A intimidade do casal também parece ficar predominantemente alterada com a situação
de queimadura de um dos cônjuges, embora se tenham constituído três tipos de resposta:
a alterada, a imutável e a ambivalente.
A relação pode ser alterada positiva ou negativamente. As alterações negativas têm
como indicadores a predisposição, as limitações físicas e o evitamento. De acordo com
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José Manuel Pinto, Luís Miguel Montinho & Pedro Ricardo Gonçalves
O impacto da queimadura na relação conjugal e na intimidade
Ullrich, Askay, & Patterson (2009) a associação entre dor, maiores níveis de depressão
e função física provocam alterações na relação conjugal, sobrecarregando o cônjuge.
Podem produzir-se sentimentos de mal-estar (mistura de temor, angústia e repugnância)
e de hostilidade. A doença pode tornar o cônjuge com queimadura mais débil e frágil por
ver questionada a complementaridade e o suporte na relação, agora que o cônjuge exige
esses cuidados para ele próprio.
As alterações positivas têm como mote uma maior aproximação dos cônjuges após o
acidente, parecendo haver um estreitamento emocional entre os cônjuges, como se o
acidente tivesse permitido uma resolução criativa e íntima do casal.
Uma relação funcional e íntima também parecem predizer uma imutabilidade na relação
em situação de crise por queimadura de um dos elementos do casal. Uma relação
de proximidade e cumplicidade entre o casal. Estes resultados vêm ao encontro da
importância da existência de um “nós” conjugal sólido que funcione como protetor e
como “antidepressivo” face às situações stressantes existentes, por ser um sinal de
esperança e conforto na adversidade, um verdadeiro porto seguro.
Nestes casos, se as relações sexuais dos cônjuges podem diminuir ou desaparecer, a
intimidade pode manter níveis satisfatório pela manutenção duma proximidade carinhosa,
atenta e responsiva relatada pelo cônjuge sujeito a queimadura.
Esta situação acidental provoca mudanças relacionais que parecem apelar à relação
prévia entre os cônjuges e a própria tolerância à frustração (Bion, 2004a, 2004b)
relativamente a projetos de vida cuja situação de doença impossibilita ou difere no tempo.
As respostas ambivalentes apontam sobretudo para uma má integração da situação
presente instalando, após a queimadura do conjuge, maior angústia devida a um
padrão conflitual ambivalente entre enfrentar e evitar a situação presente, tendendo a
apresentarem mais sintomas que os que usam padrões claros para lidar com a situação
acidental no cônjuge (Fauerbach, et al., 2009).
O mau estar e a estranheza face ao corpo lesado são relatados como fonte de
desencontro, evitamento e/ou conflito e podem levar à recusa de proximidade e/ou apoio
por existir zanga e revolta enquanto o cônjuge pode necessitar de acompanhamento,
carinho e amor por estar numa fase de recuperação tendente à aceitação do ocorrido.
Em síntese, podemos concluir que uma intimidade satisfatória só se fará a par e passo
no encontro e na confirmação de cada um dos cônjuges numa recriação da intimidade
onde a queimadura apela a uma reformulação da imagem corporal do próprio e do
cônjuge. Se a pessoa queimada ou o seu cônjuge se desencontrarem poderá haver
maior stress «dor crônica debilitante e transtornos relacionados ao stress» (Summer et
al., 2007). Este desencontro sofrido pode instalar um período de crise e de desconfiança
Série Monográfica Educação e Investigação em Saúde
Psicologia em contextos de saúde: da compreensão à intervenção
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acerca de si, do outro, onde a dor pode predominar e as capacidades de cada cônjuge
serão questionadas. A não-aceitação do corpo pelo próprio, após as lesões causadas
pelo acidente, bem como do cônjuge, poderá levar ao adiar do contacto íntimo que afasta
o casal e potencia áreas de conflito e desencontro.
Conclusão
Podemos concluir que a queimadura num dos cônjuges introduz uma crise no sistema
conjugal que questiona e desafia os alicerces e limites da relação conjugal. Os cônjuges
vêem-se impelidos a reconstruir uma área de enlace, agora diferente da anteriormente
imaginada e/ou negociada. Os processos de perda e de luto, originados pela queimadura
de um dos cônjuges, obriga a repensar a relação, obriga a uma recriação que se
mostra, na maioria das vezes, com uma reação positiva do cônjuge com o decorrer
do tempo, embora no início possam existir manifestações de choque, afastamento e
outras manifestações negativas. Concluímos, pelos padrões inalterados de relação
antes e depois do acidente, que a funcionalidade e o enlace emocional do casal podem
facilitar uma relação boa e satisfatória no casal onde o carinho e a proximidade possam
ser a manifestação íntima e confirmatória de um enlace criativo num tempo em que a
queimadura e o seu processo, colocam a relação num nível diferente, onde a intimidade
parece ficar alterada após a queimadura.
Realçamos pois a importância de equipas multidisciplinares para, caso a caso, poderem
intervir neste nível de potencial desencontro do casal, facilitando a sua aproximação e/
ou recriação da sua intimidade abalada.
Referências bibliográficas
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Acitelli, L.K., & Badr, H.J. (2005). My illness or our illness? Attending to the relationship when one
partner is ill. In T.A. Revenson, T., K. Kayser, K., & G. Bodenmann, G. (Eds.), Couples coping
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Bion, W. (2006). Atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago.
Bonnilla, A. (1989). A família do doente: leitura psicológica. Hospitalidade. 53 (208), 20-48.
Fauerbach, J. & Una D. (2009). Traumatic burn injury: Neuropsychiatric perspectives on risk,
outcomes and treatment. International Review of Psychiatry, 21 (6), 501–504.
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José Manuel Pinto, Luís Miguel Montinho & Pedro Ricardo Gonçalves
O impacto da queimadura na relação conjugal e na intimidade
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Série Monográfica Educação e Investigação em Saúde
Psicologia em contextos de saúde: da compreensão à intervenção
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