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150 anos Patrocinador oficial FUNDAÇÃO MILLENIUM BCP complexo industrial romano de preparados de peixe da baixa. sua abordagem a partir de dois novos equipamentos Clementino Amaro / Arqueólogo / clementinoamaro@gmail.com Cláudia Rodrigues Manso / IAP (Instituto de Arqueologia e Paleociências) Eurico Sepúlveda / Associação Cultural de Cascais RESUMO Um armazém de período romano, datado de século 5 d.C. foi encontrado durante escavações que ocorreram em Lisboa no Verão de 2011. Um conjunto de ânforas para armazenamento de produtos piscícolas, dos tipos Almagro 51C e 50, foram encontradas juntamente com terra sigillata clara africana. Esta unidade está localizada no cruzamento da Rua da Madalena com a Rua de S. Julião, na Baixa de Lisboa. ABSTRACT A storage house of Roman times with chronology of the 5th century was found during excavations that took place in Lisbon in the summer of 2011.A set of amphorae for storage of sauce and salt fish production, types Almagro 51C and 50, were found with ARSW. This unit is located in Rua da Madalena with Rua de S. Julião, in downtown Lisbon. A área histórica de Lisboa, a Baixa, tem-se destacado pela identificação de uma sucessão de unidades fabris de preparados de peixe do período romano, a partir de 1982, com o primeiro registo a acontecer na Casa dos Bicos. O registo em 2011 de estruturas identificáveis com a presença de um armazém no cruzamento das ruas da Madalena e de S. Julião, subsistindo ainda duas fiadas de vasilhame anfórico, e a detecção em 1991 de dois tanques de salga que integrariam uma unidade fabril na Rua dos Fanqueiros nº 51-57, da qual se apresenta agora um registo gráfico da mesma, constituem o ponto de partida para uma curta abordagem sobre esta indústria transformadora, sua dispersão e período de funcionamento, implantada ao longo do esteiro da Baixa até, pelo menos, à Casa dos Bicos, de acordo com os dados disponíveis. O complexo de transformação de preparados de peixe de Olisipo desenvolvia-se na zona baixa da cidade enquadrado por uma colina a poente e o morro do Castelo, ambos com vestígios já do período republicano, altura a partir da qual se terá esboçado algum 755 Arqueologia em Portugal – 150 Anos urbanismo, com uma via ligando a urbe ao território a ocidente (Est. I). Justino Maciel propõe mesmo, a partir do texto original grego, que Júnio Bruto terá mandado levantar uma fortificação fronteira ao oppidum (Maciel, 1994, pp. 33-34). A organização dos núcleos fabris ao longo do esteiro até à zona ribeirinha leva a que estes apresentem uma implantação em leque (cujo fulcro imaginário ficaria na alcáçova do Castelo). O registo destes dois equipamentos fabris vêm, em certa medida, concorrer para o gradual preenchimento de espaços vazios dentro da mancha de ocupação do complexo fabril de Olisipo (Est. I). No Verão de 1991 foi detectada a abertura de uma cave na Pastelaria “O Farnel” cuja intervenção foi realizada em dois dias, em que se procedeu apenas a um registo gráfico e ao salvamento de uma colecção de peças cerâmicas atribuíveis ao século XVI, depositadas num dos tanques, a anteceder o desmoronamento do perfil (Est. I). Quanto à implantação física dos dois tanques da Rua dos Fanqueiros e atendendo à sua presença a cerca de 1.50m abaixo do actual pavimento pombalino, estes encontram-se junto à praia fluvial e a jusante do núcleo fabril da Rua dos Correeiros (NARC). O segundo sítio arqueológico foi intervencionado durante a Primavera/Verão de 2011. O edifício confronta, ao nível do interior do quarteirão, com a igreja da Madalena. Localiza-se no troço final da pendente da rua que se desenvolve no sentido Noroeste/Sudeste e ficaria já próximo do designado esteiro da Baixa, localização que justifica a identificação de uma estrutura romana associada ao universo de preparados de peixe amplamente registado na zona ribeirinha. De entre outros vestígios romanos na envolvente, destaca-se o templo de Cíbele e as Termas dos Cássios. Na sequência da escavação da Vala 2 (PT – infraestruturas de telecomunicações) e após ter sido levantado um troço de calçada pré-pombalina, e da unidade de assentamento da mesma (depósito secundário que incluía o bordo de uma ânfora Dressel 14 e Almagro 50 – Est. V, 1 e 2), detectou-se a presença de um muro, com uma orientação aproximada Norte-Sul, sob a área do lancil e prolongando -se sob a estrada (Est. II, junto à Vala 1). O tramo identificado apresenta uma abertura (presumível porta) e no interior do compartimento subsistiam grandes áreas de um piso à base de argamassa de cal. Apresentava sinais de uma reparação do mesmo. O muro tem uma espessura média de 0.48m e conservou-se ainda com uma altura de cerca de 0.47m junto à abertura. É construído por blocos de pedra bem aparelhados e argamassados e insere-se numa tipologia romana. O estrato imediatamente sobre o pavimento corresponde presumivelmente à fase de abandono, com a presença exclusiva de materiais atribuíveis ao período tardio onde se destaca um fragmento de bordo de ânfora de Almagro 51c (Est. V, 3), um bordo de panela em cerâmica comum e um bordo de almofariz em terra sigillata clara D (Est. VI, 7). A Rua de S. Julião (com início na Rua da Padaria) apresenta uma acentuada pendente no sentido Nordeste/Sudoeste. A Vala 3 foi reaberta neste sentido, tendo atingido o substrato geológico. Na continuação da reabertura para Sudoeste detectou-se, por fim, um muro – U.E. [310] – adossado ao substrato geológico e que delimitava, a Nordeste, um compartimento – U.C. [002] – (Est. III). Um aspecto que se mostrou relevante foi o facto de se encontrar um conjunto anfórico ainda apoiado na parede constituído por duas fiadas: a primeira jun- to à parede com duas ânforas esmagadas da forma Almagro 51c e uma cortada pelo ombro Almagro 50; a segunda é constituída por três ânforas inteiras Almagro 51c (Est. III, pormenor). Após o levantamento do conjunto anfórico e escavação integral do pavimento do armazém – U.E. [308], cota média de 4.88m –, verificou-se que existia uma sétima ânfora na primeira fiada, embora esmagada, no seguimento do muro para Norte (no sentido do edifício) que, por razões de segurança, apenas se procedeu ao seu registo fotográfico. O armazém tem cerca de 2.50m de largura. O chão apresenta, tal como no caso detectado na vala 2, um pavimento em argamassa de cal, em razoável estado de conservação. O muro Sudoeste é feito com tijoleira, com cerca de 0.40m de espessura –U.E. [311]. Quanto ao conjunto anfórico exumado no interior do armazém, constituído por cinco exemplares de Almagro 51c, tem a particularidade de todos eles apresentarem um engobe aguado esbranquiçado e que ainda se revela uniforme em alguns casos. As três ânforas inteiras apresentam uma altura muito aproximada, entre os 69 e os 71cm (Est. IV). As 2 e 4 apresentam lábio extrovertido, asa sub-rectangular, bojo fusiforme, com pé cilíndrico bem diferenciado, alto e oco e de base com marcado omphalus central. Um outro exemplar de boca Almagro 51c, e um opérculo, (Est. V, 4 e 8) foi exumado no derrube do muro (Est. III, U.E. [305]). Em conjunto com uma outra fragmentada apresentam a particularidade de conterem uma marca com duplo círculo imediatamente abaixo de ambas as asas, presumivelmente de controlo de oleiro executada, como é sugerido, a partir de um marcador atribuível a uma pequena cana. O terceiro exemplar inteiro (Est. IV, 1), embora de características formais semelhantes, apresenta o bordo extrovertido e espessado externamente e sem qualquer marca junto às asas. A boca de uma das ânforas esmagadas apresenta igualmente um espessamento externo bem acentuado (Est. V, 5). O tipo de pé característico deste conjunto (Est. IV e V) tem paralelo na produção dos fornos do Porto dos Cacos (Raposo, 1990, p. 132 e p. 149, nº68). Por sua vez a forma Almagro 50 encontra-se fragmentada perto do ombro (Est. IV, 3) tendo um pé cónico, oco, de base em botão saliente. No complexo industrial do NARC, já no interior do esteiro e a cerca de 200m a Oeste do armazém, encontra-se bem representada a forma Almagro 51c e 756 ainda a Almagro 50 associadas à produção de preparados piscícolas pelo menos até ao século IV (Bugalhão, 2001). No entanto está ausente o tipo de pé bem diferenciado das Almagro 51c exumadas no armazém. A localização deste poderia sugerir, num primeiro momento, fazer parte da unidade fabril na loja Napoleão, que distam entre si 50/60m (Diogo & Trindade, 2000). A Sul do armazém, a cerca de 60m, foram identificadas quatro cetárias de outra unidade fabril no prédio de esquina da Rua dos Bacalhoeiros com a Rua da Padaria, com presumível abandono do sítio no decurso do século IV (Fernandes, 2006). No entanto parece-nos mais plausível que os compartimentos de apoio agora identificados pertençam a um centro de preparados de peixe compreendido entre as duas anteriores, e igualmente junto à margem do esteiro. Esta interpretação, para além da existência de espaço disponível, baseia-se no facto de a unidade fabril da loja Napoleão apresentar indícios de prolongamento para poente. Por sua vez a da Rua dos Bacalhoeiros, não deve ter laborado no período tardio dada a total ausência de vasilhame anfórico daquela fase (Filipe, 2008). Fora do esteiro, a unidade fabril da Casa dos Bicos, sobranceira à antiga margem (Amaro & Miranda, 2002), permite-nos antever uma continuidade de estabelecimentos fabris (e até de cais/ancoradouros) na antiga zona ribeirinha, à semelhança de Tróia onde foi identificado um armazém de ânforas do Alto Império, dispostas na vertical e assentes num piso de saibro (Etienne, Makaroun & Mayet, 1994; Pinto, 2011, pp. 135-137). O espólio obtido de materiais romanos, na escavação das Valas 2 e 3, apresenta-nos uma característica pouco vulgar na medida em que, para além do material anfórico e de alguma cerâmica comum, é constituído, no que diz respeito à cerâmica fina de mesa, apenas por terra sigillata africana nos fabricos A, C e D, importações de origem tunisina. Para além destas constam também peças de cerâmica de cozinha que fazem parte do reportório dos mesmos centros oleiros magrebinos. O conjunto de sigillatae é constituído por 33 fragmentos que proporcionaram a identificação de 7 formas, enquanto as cerâmicas de cozinha totalizam, apenas 2 fragmentos a que correspondem formas diferentes. Pertencentes aos centros oleiros do Norte da Tunísia, na fase de produção da sigillata africana A, 757 Arqueologia em Portugal – 150 Anos identificaram-se duas formas - a taça Hayes 15, com um exemplar, e a Hayes 26 ou 27, com dois exemplares, as quais possuem diacronias que irão definir um intervalo que se irá estender desde meados do séc. II até meados do III (Hayes, 1972, pp. 49-50). A continuação do consumo de produtos norte africanos verifica-se pela aquisição de louça fina fabricada, agora, na zona centro daquela região, o que se traduz em mais duas formas da sigillata africana C. Uma das formas será possivelmente uma taça forma Hayes 46 que corresponde a um fragmento de um bordo em aba, enquanto outros dois fragmentos são identificáveis com o prato Hayes 50, que é tão característico desta produção durante a 2ª metade do séc. IV até inícios do V (Quarema, 2012, p. 177). Finalmente, a produção da sigillata africana D, também se encontra presente no espólio da Vala 2, no cruzamento da rua da Madalena com a de S. Julião, com 3 formas, a grande travessa Hayes 59/variante El Mahrine 2.1 ou 2.2 (Mackensen, 1993, tafel 52), a taça pequena Hayes 78 e a taça com aba e bico vertedouro/almofariz Hayes 91B/Bonifay 51, variante tardia (2004, pp. 178-179, fig.95). Todas estas formas apresentam cronologias que, quando conjugadas, podem variar desde 320 até meados do séc. VI. No que diz respeito às cerâmicas de cozinha as formas encontradas referem-se a uma caçarola do tipo Hayes 23B, com origem provável em Cartago durante os flávios/inícios do séc. II e com final da produção para finais do séc. III (Quarema, 2012, p. 216), e a uma tampa Hayes 196/Bonifay tipo 11, que possivelmente, serviria para tapar a caçarola com uma diacronia, portanto do séc. III. Pensamos que as cronologias apontadas são um contributo fiável para se poderem apresentar intervalos mais finos para o conjunto das ânforas Almagro 51C que foram exumadas, conjuntamente, com o espólio constituído pela sigillata africana. Assim, e conjugando as cronologias atrás apresentadas, com as características tardias evidenciadas pelas ânforas do tipo Almagro 51c, e algumas semelhanças com o vizinho sítio da loja Napoleão, tudo aponta para um abandono da unidade fabril, na qual se insere o presente armazém, já na segunda metade do século V. BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, I. M. (2004) – Caracterização geológica do esteiro da Baixa. Monumentos. 21. Direcção Geral de Edifícios e Monumentos. RAPOSO, J. (1990) – Porto dos Cacos: uma oficina deprodução de ânforas romanas do vale do Tejo. 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Hayes 26 ou 27. C – 3. Hayes 46; 4. Hayes 51. D – 5. Hayes 59; 6. Hayes 78; 7. Hayes 91B. 8. Hayes 23B; 9. Hayes 196. 763 Arqueologia em Portugal – 150 Anos