COMPOSIÇÃO LITERÁRIA ENQUANTO PÓS-PRODUÇÃO: CONSIDERAÇÕES
SOBRE A AUTORIA DE MARIA BETHÂNIA NO CADERNO DE POESIAS
Roberta Guimarães Franco 1
Everson Nicolau de Almeida2
RESUMO: As concepções de autor e autoria que perpassam discussões do campo literário
constituem, na pós-modernidade, um dilema quando pensadas no âmbito da produção criativa. A
partir do conceito de autor como produtor, de Walter Benjamin, de pós-produção, cunhado por
Nicolas Bourriaud, buscaremos compreender o processo de criação autoral da intérprete baiana
Maria Bethânia na obra Caderno de Poesias (2015). Deste modo, versaremos sobre as formulações
desses dois estudiosos, a fim de que possamos compreender o processo autoral de Bethânia à luz
de discussões teóricas e conceituais. Este trabalho é resultado do projeto de iniciação científica
intitulado Brasilidade mestiça em fragmentos: uma análise do Caderno de Poesias, de Maria
Bethânia, realizado entre 2016 e 2017 na Universidade Federal de Lavras, que contou com o
financiamento do programa PIBIC-CNPq.
PALAVRAS-CHAVE: Apropriação; Autoria; Produção; Pós-Produção; Maria Bethânia.
INTRODUÇÃO
As discussões realizadas ao redor das percepções e das concepções acerca da produção
literária possibilitaram a origem de conceituações teóricas que buscam compreender a figura do
autor atrelada à sua criação estética. Tais conceituações podem ser caracterizadas por
aproximações e afastamentos, concordâncias e discordâncias, uma vez que, enquanto um conceito
moderno, a autoria ocupa o centro de inúmeras problemáticas resultantes de mudanças sociais,
econômicas, políticas e culturais ocorridas no final do século XIX e ao longo do século XX,
chegando até os nossos dias. Foi no período que sucedeu a Primeira Grande Guerra que a figura
do autor passou por um processo de reconhecimento mercadológico, aos moldes de uma ordem
social que tem seus resquícios na atualidade e, ao mesmo tempo, foi submetida a uma série de
investigações conceituais, oriundas das vicissitudes do mundo organizado pelas divisões no campo
do trabalho.
Levando em conta as problemáticas que se instauram em torno da produção estética (ou
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Departamento de Estudos da Linguagem da Universidade Federal de Lavras (DEL-UFLA)
Mestrando do PPG em Letras- Estudos Literários da Universidade Federal de Viçosa (UFV-Capes)
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artística), principalmente quando se trata de um procedimento que se vale da apropriação de textos
já existentes e redimensionados em outra obra, este artigo tem por objetivo compreender o
processo de composição literária realizado pela intérprete baiana Maria Bethânia na obra Caderno
de Poesias (2015).
A obra em questão é resultado da participação de Bethânia no projeto “Sentimentos do
Mundo", da Universidade Federal de Minas Gerais em 2009, no qual a cantora realizou a leitura
de textos literários e interpretou canções sob o título Leitura de textos e poemas reunidos. Em
2015, quando Maria Bethânia completou cinquenta anos de carreira, a Editora UFMG publicou o
livro Caderno de Poesias, uma coletânea de poemas e canções selecionados pela autora, bem como
imagens de obras plásticas de artistas como Tarsila do Amaral, Calasans Neto, Candido Portinari
etc., que passaram a integrar a versão impressa da obra.
PRODUÇÃO E PÓS-PRODUÇÃO
De acordo com o filósofo francês Rolland Barthes, o conceito de autor como hoje
conhecemos surge na Modernidade, mais especificamente no Humanismo, com a valorização do
trabalho e da produção industrial, alavancados pela ascensão da burguesia enquanto classe social
inserida em uma nova ordem política e econômica. Deste modo, a ideia de que o autor determinava
o sentido da obra passa a ser alvo de questionamentos. Já no fim da Idade Média, a valorização
individual do ser humano fez com que a sociedade passasse a prestigiar os artistas. Entretanto,
quando falamos especificamente do autor, o positivismo foi o maior responsável por estabelecer
na sociedade a figura do escritor como profissão, e a partir disso, começaram a surgir as indagações
sobre a “entidade” da autoria (BARTHES, 2004, p. 53).
Em A Morte do Autor (1968), Barthes diferencia os conceitos de autor e escritor, sendo
este último caracterizado como um sujeito pertencente à linguagem, em que a escrita é por
excelência o ato de sua gênese, enquanto o primeiro é a instância determinadora de uma obra. O
filósofo frisa que a diminuição do autor enquanto provedor de seu livro ocasiona o aumento do
poder de uma figura até então esquecida, o leitor, que emerge como sujeito que promove a
significação e articula as múltiplas formas de ler um texto, diluindo as fronteiras entre leitura e
escrita, pois o leitor “é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as
citações de que uma escrita é feita” (BARTHES, 1984, p. 53). Assim, o escritor é o responsável
por realizar a mistura de diferentes escritas realizadas, de modo a instaurar múltiplas
intertextualidades através da linguagem. Sendo assim, a leitura de uma obra não parte mais da
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preocupação com quem a produziu, ainda menos do fechamento da escrita em um único e último
significado (que seria o autor), mas surge como resultado de um entrelaçamento entre diversas
citações alocadas em um único texto, dotado de pluralidade significativa. Para tanto, deve haver a
morte do autor e o nascimento do leitor, a fim de que a escrita recupere o seu devir e para que a
linguagem seja de fato o espaço que possibilite a constituição simultânea da escrita e do escritor.
Partindo da ideia de autoria atrelada às relações de produção, o filósofo alemão Walter
Benjamin, no ensaio intitulado O Autor como Produtor (conferência proferida em 1934)3, transpôs
para o campo literário algumas observações acerca das forças de trabalho impulsionadas pela
revolução industrial e pela crítica marxista. Benjamin afirma que existe uma contradição dialética
que se instaura no conceito de autor, pois a autoria enquanto produção só existiria até então na
convivência com a classe burguesa, contra a qual o autor progressista deveria lutar. Em outras
palavras, o filósofo inseriu a figura do autor produtor na luta de classes, considerando-o como um
sujeito progressista que busca diluir as fronteiras sociais através do texto literário.
Benjamin sugere como recurso estético aos autores progressistas a ideia de
refuncionalização, do dramaturgo Bertold Brecht, como instrumento para uma nova produção
baseada em uma inteligência socialista, na qual a autoria se estabelece pela relação entre teoria e
intelecto. Deste modo, ocorreria a fusão dos compartimentos conceituais mantidos pela burguesia,
por meio da palavra, entendida como nexo entre as funções estéticas e sociais, que as formas
literárias seriam diluídas como possibilidade de superação dialética dos dilemas socioeconômicos,
pois é a própria palavra que suprime as disjunções existentes na sociedade. Nesse ínterim, Walter
Benjamim (1985, p. 127) afirma:
Brecht criou o conceito de “refuncionalização” para caracterizar a transformação de
formas e instrumentos de produção por uma inteligência progressista e, portanto,
interessada na liberação dos meios de produção, a serviço da luta de classes. Brecht foi o
primeiro a confrontar o intelectual com a exigência fundamental: não abastecer o aparelho
de produção, sem o modificar, na medida do possível, num sentido socialista.
Benjamin concebia a fusão refuncionalizadora como aquela que era capaz de ultrapassar
as distinções convencionais entre os diversos gêneros literários, assumindo também um papel
questionador frente às diferenças entre autor e leitor. Logo, a fusão desses dois sujeitos, no campo
literário, proporcionaria a diluição de fronteiras sociais pré-estabelecidas a partir da compreensão
3
Embora saibamos da temporalidade da escrita Barthes e de Benjamin, optamos por deslocar a conceituação
benjaminiana em decorrência de sua proximidade com a ideia de autoria compreendida a partir da obra de Nicolas
Bourriaud.
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de que ambos, antes de tudo, são produtores.
Deste modo, podemos compreender o autor produtor ou autor progressista como aquele
que realiza em sua obra literária a reordenação dos papéis sociais, ou seja, aquele que estabelece
outras relações de trabalho, colocando a classe operária como protagonista pela via da palavra.
Assim, é pela literalização da vida que o autor progressista, em consonância com o pensamento
benjaminiano, recoloca o ser humano no centro de suas experiências e resolve as incongruências
sociais por meio de uma perspectiva em que a justiça social se estabelece como promotora de
igualdade e do acesso à produção artística e intelectual (BERNAL, 2008, p. 39-42).
Sendo assim, a promoção da igualdade, para Walter Benjamin, está na criação de uma
nova consciência que seja capaz de equalizar as relações de produção. Neste caso, a literatura é
dotada de um potencial libertador, por meio do qual as novas funções técnicas e refuncionalizadas
acentuam a luta de classes, ao passo que buscam diluir as fronteiras da produção intelectual e
cultural.
Na obra intitulada Pós-Produção – Como a Arte Reprograma o Mundo Contemporâneo
(2009), o crítico de arte e ensaísta francês Nicolas Bourriaud discorre sobre as inovações formais
que inserem a função do autor em um plano reconfigurado, colocando-o em uma posição de pósprodutor, uma vez que ele se afasta do interesse de atingir a originalidade e passa a trabalhar com
a matéria pronta, dotada de forma artística já produzida, ou seja a matéria terciária. Neste sentido,
por pós-produção compreende-se o “conjunto de tratamentos dados a um material registrado: a
montagem, o acréscimo de outras fontes visuais ou sonoras, as legendas, as vozes off, os efeitos
especiais” (BOURRIAUD, 2009, p. 7).
É interessante notarmos que a pós-produção é pensada pelo ensaísta como ligada à
produção das artes plásticas como elemento constituinte do setor terciário, em oposição ao setor
primário, que cuida da produção das matérias-primas. Neste contexto, a pós-produção é
estabelecida por meio do trabalho com a matéria terciária, que encontra uma relação entre
pressupostos estéticos e políticos progressistas,
como se a instauração de novas formas de sociedade e uma verdadeira crítica às formas
de vida contemporâneas passassem por uma atitude diferente em relação ao patrimônio
artístico, pela produção de novas relações com a cultura em geral e com a obra de arte
em particular. (BOURRIAUD, 2009, p. 9)
Partindo da formulação de Bourriaud, podemos ir para além do campo das artes plásticas
e transpor o seu conceito de pós-produção para a análise de outros objetos culturais, como a
literatura. Deste modo, é possível compreendermos o modo pelo qual o setor terciário se constitui
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como um espaço de reinterpretação das obras em diversos campos das artes, estabelecendo novas
formas para sua utilização através da incorporação de obras canônicas em conjunto com produções
artísticas que foram esquecidas ou desprezadas pela crítica e/ou pelo público.
Nicolas Bourriaud acredita que a busca pela originalidade e criação são questões
discutíveis e não se estabelecem mais como preocupação do autor. A seu ver, o processo criativo
dos autores pós-produtores passa a ser compreendido como capacidade de inserir a obra em uma
teia de signos e significações atemporais, que alcance a todos os seres humanos. A despeito do
trabalho dos autores pós-produtores, Bourriaud afirma que
Para eles, não se trata de elaborar uma forma a partir de um material bruto, e sim de
trabalhar com objetos atuais em circulação no mercado cultural, isto é, que já possuem
uma forma dada por outrem. Assim, as noções de originalidade (estar na origem de...) e
mesmo de criação (fazer a partir do nada) esfumam-se nessa nova paisagem cultural [...]
(BORRIAUD, 2009, p. 7)
Percebemos assim que a apropriação do patrimônio cultural é estabelecida pelo modo de
uso e pela manipulação da matéria, por meio de um reordenamento que produz um novo objeto
artístico, colocando em convivência obras que já estão em circulação no mercado cultural.
Bourriaud considera a arte como “uma atividade que consiste em produzir relações com o mundo,
em materializar de uma ou de outra forma suas relações com o tempo e com o espaço”
(BOURRIAUD, 2009, p. 110).
Notamos que a composição de Bethânia não parte de um processo criativo convencional,
como veremos mais adiante, tendo em vista o fato de que seu trabalho com a linguagem parte de
apropriações, edições, fraturas textuais e redimensionamento de obras em outro suporte material.
Portanto, a costura do Caderno de Poesias só foi possível por meio de um processo em que a
linguagem foi (e está) colocada em constante movimento, proporcionando o nascimento da
Bethânia leitora-autora, indissociáveis por se constituir como ponto de inscrição de diversos textos
(leitor) e de tessitura de citações (autor).
Todo o processo de seleção de obras, apropriação de textos e a composição de um todo
esteticamente (re)ordenado são atribuições de um autor pós-produtor. Diferentemente do que se
compreende por criação artística e literária, a composição de Maria Bethânia parte de elementos
já constituídos. É na singularidade no modo de alocar e costurar os textos presentes em sua obra
que a baiana de Santo Amaro da Purificação une aspectos de sua cosmovisão e os associa à
produção artística.
Através da apropriação de textos já existentes e de sua utilização na composição do
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Caderno de Poesias, Maria Bethânia se aproxima da técnica chamada ready-made. A referida
técnica consiste no deslocamento do processo criativo, direcionando o olhar do autor pós-produtor
sobre o objeto e atribuindo-lhe uma ideia distinta daquela que lhe foi atribuída a priori. Assim, o
objeto da pós-produção é redimensionado, como explica Bourriaud (2009, p.22)
Quando Marcel Duchamp expõe um objeto manufaturado (um porta-garrafas, um urinol,
uma pá de neve...) como obra do espírito, ele desloca a problemática do processo criativo,
colocando a ênfase não em uma habilidade manual, e sim no olhar do artista sobre o
objeto. (...) Desse modo, Duchamp completa a definição do termo: criar inserir um objeto
num novo enredo, considerá-lo como um personagem numa narrativa.
Vista deste modo, a apropriação tem uma função transformadora que refuncionaliza os
meios de produção. Cabe, pois, ao autor pós-produtor conferir meios de deslocamento e
(re)utilização aos objetos apropriados. No caso da autoria Maria Bethânia, trata-se de uma
composição que insere novas possibilidades de leitura do Brasil, capaz de lançar novos olhares
sobre nossa cultura e nossa história, criando novas experiências a serem vivenciadas pelos leitores
do seu Caderno.
Abarcando os conceitos acima expostos, concordamos que a tessitura autoral de Maria
Bethânia dialoga com as questões concernentes à produção e à pós-produção. Ao selecionar textos
que reconfiguram “o espaço da cultura e expondo o Brasil à compreensão de si mesmo”
(STARLING, 2015, p. 13), como veremos no exemplo a seguir, Bethânia se apropria dos
fragmentos de O poeta come amendoim, de Mário de Andrade e da pinturas de Tarsila do Amaral
(Antropofagia- 1929):
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Neste primeiro exemplo, notamos que Bethânia expressa sua visão de Brasil a partir do
poema de Mário de Andrade, que traz em si elementos de uma nacionalidade que abarca o modo
de ser e de sentir do brasileiro, além de sua maneira de se relacionar com o mundo ao seu redor.
O fragmento do poema modernista integra uma composição do junto ao quadro Antropofagia, de
Tarsila do Amaral. As duas obras foram produzidas durante o Modernismo brasileiro, que, em
linhas gerais, lançou novos olhares sobre a constituição do nosso país, proporcionando
(re)interpretações de uma ideia de identidade nacional.
Nas páginas seguintes, Maria Bethânia redimensiona um fragmento da canção popular
De papo pro ar, de Joubert de Carvalho e Olegário Mariano, juntamente com o quadro O pescador
(1925), de Tarsila do Amaral:
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Como podemos notar no exemplo acima, Bethânia seleciona o fragmento de uma canção
popular que aponta para a relação afetiva do sujeito poético com o espaço físico em que ele vive,
através de sua atividade econômica de subsistência. Podemos observar igualmente a
intertextualidade entre a canção e a pintura, elementos artísticos dos quais a autora se vale para
realizar uma interpretação do Brasil através de obras que dizem dos sentimentos, anseios e dilemas
do nosso povo. Em outras palavras, é pela linguagem que Bethânia imprime a ideia de que a
literatura é um meio para que haja a compreensão da nossa história e das nossas identidades através
de uma composição em que ocorre a
equivalência entre a chamada “alta literatura” e as criações populares, entre o culto à
soberania da abordagem literária em sua inesgotabilidade de sentido e de permanência, e
o nosso hábito meio distraído de fazer da canção o complemento natural da atividade
cotidiana de viver (STARLING, 2015, p. 16).
A opção de Bethânia, pela interação entre modalidades distintas da linguagem, não
somente no aspecto formal, como também no tratamento temático que perpassa sua composição,
faz uso das manifestações populares, sejam elas na literatura ou na música e coloca sua produção
como uma maneira de compreender a posição dos sujeitos construtores da nossa história em face
dos desdobramentos políticos que interferem nas relações de poder.
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Por isso, é preciso que nos atentemos para o contexto de desenvolvimento da composição
do Caderno de Poesias. A obra em questão é o aprimoramento de um modo de dizer que tem sua
afirmação demarcada em 1971, com o espetáculo Rosa dos Ventos 4 . No referido espetáculo,
dirigido pelo diretor teatral e escritor Fauzi Arap, houve a inserção de textos, alguns escritos
exclusivamente para este show, e isso se tornou uma das marcas dos trabalhos de Bethânia
(SILVA, 2010, p. 91).
O impacto de Rosa dos Ventos foi tão grande que o show é considerado até hoje como “o
acontecimento cultural que desmantelou a ideia de show musical no Brasil”. (STARLING, 2015,
p. 14). Classificado como um espetáculo, Rosa dos Ventos nasceu da cultura popular, de onde
emergiram os mais variados modos de intercalar literatura, música e teatro. A força dramática de
Bethânia chamou a atenção de críticos e isso lhe rendeu espaço em colunas de diversos jornais e
revistas da época. Dentre tantas impressões sobre o espetáculo em questão, trazemos a de Walter
Silva que, em 1972, escreveu na Folha de São Paulo a coluna intitulada “Ela é um grito!”
Não há possibilidade nenhuma de se enquadrar Bethânia entre as cantoras ou atrizes que
militam em nossos palcos. Ela não é musical. Não precisa e não faz questão de demonstrar
isso. Não assume compromisso nenhum com a música, nem com a melodia, a harmonia,
a divisão, a respiração ou o ritmo. Ela parece que está no palco com o único intuito de se
doar. E quanta coisa dá Bethânia durante todo o espetáculo! Bethânia também não é atriz
e seus gestos que insinuam teatro são até primários, mas, como ela comunica. (SILVA,
1972 apud SILVA, 2010, p. 92-93)
Segundo a professora e pesquisadora Heloisa Maria Murgel Starling, que foi responsável
pela coordenação geral das pesquisas iconográficas e dos autores das obras utilizadas por Bethânia
em seu Caderno de Poesias (2015, p. 16), “a originalidade inconfundível da forma de composição
que ela (Maria Bethânia) enunciou em Rosa dos Ventos e que reaparece finamente elaborada neste
Caderno de Poesias é o resultado mais visível” de uma aposta na tradição literária não somente
como um passado, mas como um início. Ainda de acordo com a historiadora, Bethânia mescla o
erudito e o popular sem que haja sobreposição, a fim de colocar em convivência elementos tratados
em oposição e buscou
Investir na ambivalência dessa tradição em que nem o erudito nos vigia impassível do
alto do controle do ato puro de fazer música, nem o popular nos espia zombeteiro
enquanto se lambuza na desordem sonora do Brasil é um traço característico da obra de
4
Bethânia já havia inserido poemas em espetáculos anteriores, como em Comigo me desavim (1968). Neste
espetáculo, Bethânia intercalava músicas românticas com textos de Clarice Lispector e Bertold Brecht (Cf. SILVA,
2010, p. 91).
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Maria Bethânia (...). A dinâmica de uma tradição funciona como um ponto de transmissão
e interpretação de mensagens no tempo- e com a canção popular não seria diferente.
(STARLING, 2015, p. 16)
A essência da composição de Maria Bethânia está na canção popular e, a partir dela, a
literatura é inserida como parte constituinte do seu modo de dizer sobre o Brasil. É por meio de
um trabalho intuitivo que a intérprete desenvolve sua composição realizando migrações entre os
gêneros literários e musicais, construindo um mosaico de textos fragmentados a partir da
transposição desses elementos para seu livro. É pelo uso das obras inspiradas na vida cotidiana do
povo brasileiro, dos elementos oriundos da nossa vasta produção cultural que Maria Bethânia toma
posse das formas literárias e musicais e as coloca em funcionamento, estabelecendo
deslocamentos, que segundo Bourriaud (2009, p. 16) consiste, “em primeiro lugar, saber tomar
posse delas e habitá-las”.
Portanto, é através da apropriação e da (re)utilização textos literários e das canções que
Bethânia encontra uma maneira de interpretá-los a partir de uma ótica cujo enfoque é a brasilidade
mestiça5. Ler é agir sobre o texto lido, de modo a expandir as possibilidades de interpretação e,
consequentemente, de enunciação sobre aquilo que foi dito no texto. É a linguagem, que nos ajuda
na construção das sentenças e dos significados que estabelecemos sobre os atos da vida cotidiana,
como se realizássemos uma tessitura a partir da apropriação e da articulação dos elementos
culturais na produção de novos enunciados. Assim, a sociedade pode ser entendida como um texto
lexicalmente regrado pela produção e nós somos colocamos nesta configuração enquanto
locatários da cultura, que ao ler as práticas de produção e utilizá-las somos considerados pósprodutores. A leitura e a interpretação não se limitam a inserir o leitor no plano da habitação de
uma obra, mas o redimensionam ao papel de autor pela sua maneira de reorganizar, recompor e
recortar os elementos da produção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A autoria, retomando Benjamin, é uma postura política. Maria Bethânia, enquanto autora
progressista e pós-produtora, ao reutilizar poemas e canções, amplia seus horizontes no campo da
O conceito de brasilidade mestiça, presente no ensaio intitulado “Maria Bethânia: intérprete do Brasil”, escrito pela
professora Heloisa Starling, foi desenvolvido no projeto de pesquisa mencionado no resumo deste artigo. Contudo,
neste trabalho, optamos por discutir as questões referentes à autoria de Maria Bethânia em seu Caderno de Poesias e,
por este motivo, não discorreremos sobre o referido conceito.
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produção artística. Bourriaud, ao tratar das questões políticas da representação da vida por meio
da arte, por meio de uma leitura marxista feita à luz de Althusser diz que “interpretar o mundo não
basta, é preciso transformá-lo” (BOURRIAUD, 2009, p. 86).
O Caderno de Poesias é uma composição antológica e autoral que emerge de um olhar
profundo para as questões mais complexas da constituição histórica do nosso país ao mesmo tempo
que propõe um meio de compreensão e atuação sobre as forças políticas e econômicas que agem
diretamente sobre as produções culturais, intelectuais e nos modos de vida da nossa gente. O
Caderno de Poesias é um contrapoder, por ser uma obra literária, ou, ainda nas palavras de
Bourriaud: “Toda arte é engajada, qualquer que seja sua natureza ou finalidade” (BOURRIAUD,
2009, 109).
O desvelar literário dos dilemas sociais do Brasil só pode se apresentar na obra de
Bethânia ao mesmo tempo que propõe uma mudança de postura a começar pelo olhar que temos
do nosso país. Parece-nos ser este o ponto-chave para a compreensão da autoria de Bethânia
fundamentada principalmente nos escritos de Benjamin e Bourriaud.
Referências
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ______. O Rumor da língua. Lisboa, Portugal: Edições 70,
1984.
BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: ______. Magia e técnica, arte e política. Tradução:
Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 120-136.
BERNAL, César C. O conceito de autoria em Walter Benjamin. Cadernos Walter Benjamin,
Fortaleza, v. I, 30 dez. 2008.p. 35-46.
BETHÂNIA, Maria. Caderno de Poesias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.
SILVA, Marlon de Souza. No que eu canto trago tudo o que vivi: a tradição e o popular
em Maria Bethânia (1965-1978). São João del-Rei, 2010. Dissertação (Mestrado em
História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de São João
del-Rei, 2010.
STARLING, Heloísa Maria Murgel. Maria Bethânia: intérprete do Brasil. In: BETHÂNIA, Maria.
Caderno de Poesias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
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