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COMPOSIÇÃO LITERÁRIA ENQUANTO PÓS-PRODUÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A AUTORIA DE MARIA BETHÂNIA NO CADERNO DE POESIAS Roberta Guimarães Franco 1 Everson Nicolau de Almeida2 RESUMO: As concepções de autor e autoria que perpassam discussões do campo literário constituem, na pós-modernidade, um dilema quando pensadas no âmbito da produção criativa. A partir do conceito de autor como produtor, de Walter Benjamin, de pós-produção, cunhado por Nicolas Bourriaud, buscaremos compreender o processo de criação autoral da intérprete baiana Maria Bethânia na obra Caderno de Poesias (2015). Deste modo, versaremos sobre as formulações desses dois estudiosos, a fim de que possamos compreender o processo autoral de Bethânia à luz de discussões teóricas e conceituais. Este trabalho é resultado do projeto de iniciação científica intitulado Brasilidade mestiça em fragmentos: uma análise do Caderno de Poesias, de Maria Bethânia, realizado entre 2016 e 2017 na Universidade Federal de Lavras, que contou com o financiamento do programa PIBIC-CNPq. PALAVRAS-CHAVE: Apropriação; Autoria; Produção; Pós-Produção; Maria Bethânia. INTRODUÇÃO As discussões realizadas ao redor das percepções e das concepções acerca da produção literária possibilitaram a origem de conceituações teóricas que buscam compreender a figura do autor atrelada à sua criação estética. Tais conceituações podem ser caracterizadas por aproximações e afastamentos, concordâncias e discordâncias, uma vez que, enquanto um conceito moderno, a autoria ocupa o centro de inúmeras problemáticas resultantes de mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais ocorridas no final do século XIX e ao longo do século XX, chegando até os nossos dias. Foi no período que sucedeu a Primeira Grande Guerra que a figura do autor passou por um processo de reconhecimento mercadológico, aos moldes de uma ordem social que tem seus resquícios na atualidade e, ao mesmo tempo, foi submetida a uma série de investigações conceituais, oriundas das vicissitudes do mundo organizado pelas divisões no campo do trabalho. Levando em conta as problemáticas que se instauram em torno da produção estética (ou 1 2 Departamento de Estudos da Linguagem da Universidade Federal de Lavras (DEL-UFLA) Mestrando do PPG em Letras- Estudos Literários da Universidade Federal de Viçosa (UFV-Capes) Gláuks: Revista de Letras e Artes – jul./ dez. 2017 – Vol 17, Nº 2, ISSN 2318-7131 81 artística), principalmente quando se trata de um procedimento que se vale da apropriação de textos já existentes e redimensionados em outra obra, este artigo tem por objetivo compreender o processo de composição literária realizado pela intérprete baiana Maria Bethânia na obra Caderno de Poesias (2015). A obra em questão é resultado da participação de Bethânia no projeto “Sentimentos do Mundo", da Universidade Federal de Minas Gerais em 2009, no qual a cantora realizou a leitura de textos literários e interpretou canções sob o título Leitura de textos e poemas reunidos. Em 2015, quando Maria Bethânia completou cinquenta anos de carreira, a Editora UFMG publicou o livro Caderno de Poesias, uma coletânea de poemas e canções selecionados pela autora, bem como imagens de obras plásticas de artistas como Tarsila do Amaral, Calasans Neto, Candido Portinari etc., que passaram a integrar a versão impressa da obra. PRODUÇÃO E PÓS-PRODUÇÃO De acordo com o filósofo francês Rolland Barthes, o conceito de autor como hoje conhecemos surge na Modernidade, mais especificamente no Humanismo, com a valorização do trabalho e da produção industrial, alavancados pela ascensão da burguesia enquanto classe social inserida em uma nova ordem política e econômica. Deste modo, a ideia de que o autor determinava o sentido da obra passa a ser alvo de questionamentos. Já no fim da Idade Média, a valorização individual do ser humano fez com que a sociedade passasse a prestigiar os artistas. Entretanto, quando falamos especificamente do autor, o positivismo foi o maior responsável por estabelecer na sociedade a figura do escritor como profissão, e a partir disso, começaram a surgir as indagações sobre a “entidade” da autoria (BARTHES, 2004, p. 53). Em A Morte do Autor (1968), Barthes diferencia os conceitos de autor e escritor, sendo este último caracterizado como um sujeito pertencente à linguagem, em que a escrita é por excelência o ato de sua gênese, enquanto o primeiro é a instância determinadora de uma obra. O filósofo frisa que a diminuição do autor enquanto provedor de seu livro ocasiona o aumento do poder de uma figura até então esquecida, o leitor, que emerge como sujeito que promove a significação e articula as múltiplas formas de ler um texto, diluindo as fronteiras entre leitura e escrita, pois o leitor “é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita” (BARTHES, 1984, p. 53). Assim, o escritor é o responsável por realizar a mistura de diferentes escritas realizadas, de modo a instaurar múltiplas intertextualidades através da linguagem. Sendo assim, a leitura de uma obra não parte mais da Gláuks: Revista de Letras e Artes – jul./ dez. 2017 – Vol 17, Nº 2, ISSN 2318-7131 82 preocupação com quem a produziu, ainda menos do fechamento da escrita em um único e último significado (que seria o autor), mas surge como resultado de um entrelaçamento entre diversas citações alocadas em um único texto, dotado de pluralidade significativa. Para tanto, deve haver a morte do autor e o nascimento do leitor, a fim de que a escrita recupere o seu devir e para que a linguagem seja de fato o espaço que possibilite a constituição simultânea da escrita e do escritor. Partindo da ideia de autoria atrelada às relações de produção, o filósofo alemão Walter Benjamin, no ensaio intitulado O Autor como Produtor (conferência proferida em 1934)3, transpôs para o campo literário algumas observações acerca das forças de trabalho impulsionadas pela revolução industrial e pela crítica marxista. Benjamin afirma que existe uma contradição dialética que se instaura no conceito de autor, pois a autoria enquanto produção só existiria até então na convivência com a classe burguesa, contra a qual o autor progressista deveria lutar. Em outras palavras, o filósofo inseriu a figura do autor produtor na luta de classes, considerando-o como um sujeito progressista que busca diluir as fronteiras sociais através do texto literário. Benjamin sugere como recurso estético aos autores progressistas a ideia de refuncionalização, do dramaturgo Bertold Brecht, como instrumento para uma nova produção baseada em uma inteligência socialista, na qual a autoria se estabelece pela relação entre teoria e intelecto. Deste modo, ocorreria a fusão dos compartimentos conceituais mantidos pela burguesia, por meio da palavra, entendida como nexo entre as funções estéticas e sociais, que as formas literárias seriam diluídas como possibilidade de superação dialética dos dilemas socioeconômicos, pois é a própria palavra que suprime as disjunções existentes na sociedade. Nesse ínterim, Walter Benjamim (1985, p. 127) afirma: Brecht criou o conceito de “refuncionalização” para caracterizar a transformação de formas e instrumentos de produção por uma inteligência progressista e, portanto, interessada na liberação dos meios de produção, a serviço da luta de classes. Brecht foi o primeiro a confrontar o intelectual com a exigência fundamental: não abastecer o aparelho de produção, sem o modificar, na medida do possível, num sentido socialista. Benjamin concebia a fusão refuncionalizadora como aquela que era capaz de ultrapassar as distinções convencionais entre os diversos gêneros literários, assumindo também um papel questionador frente às diferenças entre autor e leitor. Logo, a fusão desses dois sujeitos, no campo literário, proporcionaria a diluição de fronteiras sociais pré-estabelecidas a partir da compreensão 3 Embora saibamos da temporalidade da escrita Barthes e de Benjamin, optamos por deslocar a conceituação benjaminiana em decorrência de sua proximidade com a ideia de autoria compreendida a partir da obra de Nicolas Bourriaud. Gláuks: Revista de Letras e Artes – jul./ dez. 2017 – Vol 17, Nº 2, ISSN 2318-7131 83 de que ambos, antes de tudo, são produtores. Deste modo, podemos compreender o autor produtor ou autor progressista como aquele que realiza em sua obra literária a reordenação dos papéis sociais, ou seja, aquele que estabelece outras relações de trabalho, colocando a classe operária como protagonista pela via da palavra. Assim, é pela literalização da vida que o autor progressista, em consonância com o pensamento benjaminiano, recoloca o ser humano no centro de suas experiências e resolve as incongruências sociais por meio de uma perspectiva em que a justiça social se estabelece como promotora de igualdade e do acesso à produção artística e intelectual (BERNAL, 2008, p. 39-42). Sendo assim, a promoção da igualdade, para Walter Benjamin, está na criação de uma nova consciência que seja capaz de equalizar as relações de produção. Neste caso, a literatura é dotada de um potencial libertador, por meio do qual as novas funções técnicas e refuncionalizadas acentuam a luta de classes, ao passo que buscam diluir as fronteiras da produção intelectual e cultural. Na obra intitulada Pós-Produção – Como a Arte Reprograma o Mundo Contemporâneo (2009), o crítico de arte e ensaísta francês Nicolas Bourriaud discorre sobre as inovações formais que inserem a função do autor em um plano reconfigurado, colocando-o em uma posição de pósprodutor, uma vez que ele se afasta do interesse de atingir a originalidade e passa a trabalhar com a matéria pronta, dotada de forma artística já produzida, ou seja a matéria terciária. Neste sentido, por pós-produção compreende-se o “conjunto de tratamentos dados a um material registrado: a montagem, o acréscimo de outras fontes visuais ou sonoras, as legendas, as vozes off, os efeitos especiais” (BOURRIAUD, 2009, p. 7). É interessante notarmos que a pós-produção é pensada pelo ensaísta como ligada à produção das artes plásticas como elemento constituinte do setor terciário, em oposição ao setor primário, que cuida da produção das matérias-primas. Neste contexto, a pós-produção é estabelecida por meio do trabalho com a matéria terciária, que encontra uma relação entre pressupostos estéticos e políticos progressistas, como se a instauração de novas formas de sociedade e uma verdadeira crítica às formas de vida contemporâneas passassem por uma atitude diferente em relação ao patrimônio artístico, pela produção de novas relações com a cultura em geral e com a obra de arte em particular. (BOURRIAUD, 2009, p. 9) Partindo da formulação de Bourriaud, podemos ir para além do campo das artes plásticas e transpor o seu conceito de pós-produção para a análise de outros objetos culturais, como a literatura. Deste modo, é possível compreendermos o modo pelo qual o setor terciário se constitui Gláuks: Revista de Letras e Artes – jul./ dez. 2017 – Vol 17, Nº 2, ISSN 2318-7131 84 como um espaço de reinterpretação das obras em diversos campos das artes, estabelecendo novas formas para sua utilização através da incorporação de obras canônicas em conjunto com produções artísticas que foram esquecidas ou desprezadas pela crítica e/ou pelo público. Nicolas Bourriaud acredita que a busca pela originalidade e criação são questões discutíveis e não se estabelecem mais como preocupação do autor. A seu ver, o processo criativo dos autores pós-produtores passa a ser compreendido como capacidade de inserir a obra em uma teia de signos e significações atemporais, que alcance a todos os seres humanos. A despeito do trabalho dos autores pós-produtores, Bourriaud afirma que Para eles, não se trata de elaborar uma forma a partir de um material bruto, e sim de trabalhar com objetos atuais em circulação no mercado cultural, isto é, que já possuem uma forma dada por outrem. Assim, as noções de originalidade (estar na origem de...) e mesmo de criação (fazer a partir do nada) esfumam-se nessa nova paisagem cultural [...] (BORRIAUD, 2009, p. 7) Percebemos assim que a apropriação do patrimônio cultural é estabelecida pelo modo de uso e pela manipulação da matéria, por meio de um reordenamento que produz um novo objeto artístico, colocando em convivência obras que já estão em circulação no mercado cultural. Bourriaud considera a arte como “uma atividade que consiste em produzir relações com o mundo, em materializar de uma ou de outra forma suas relações com o tempo e com o espaço” (BOURRIAUD, 2009, p. 110). Notamos que a composição de Bethânia não parte de um processo criativo convencional, como veremos mais adiante, tendo em vista o fato de que seu trabalho com a linguagem parte de apropriações, edições, fraturas textuais e redimensionamento de obras em outro suporte material. Portanto, a costura do Caderno de Poesias só foi possível por meio de um processo em que a linguagem foi (e está) colocada em constante movimento, proporcionando o nascimento da Bethânia leitora-autora, indissociáveis por se constituir como ponto de inscrição de diversos textos (leitor) e de tessitura de citações (autor). Todo o processo de seleção de obras, apropriação de textos e a composição de um todo esteticamente (re)ordenado são atribuições de um autor pós-produtor. Diferentemente do que se compreende por criação artística e literária, a composição de Maria Bethânia parte de elementos já constituídos. É na singularidade no modo de alocar e costurar os textos presentes em sua obra que a baiana de Santo Amaro da Purificação une aspectos de sua cosmovisão e os associa à produção artística. Através da apropriação de textos já existentes e de sua utilização na composição do Gláuks: Revista de Letras e Artes – jul./ dez. 2017 – Vol 17, Nº 2, ISSN 2318-7131 85 Caderno de Poesias, Maria Bethânia se aproxima da técnica chamada ready-made. A referida técnica consiste no deslocamento do processo criativo, direcionando o olhar do autor pós-produtor sobre o objeto e atribuindo-lhe uma ideia distinta daquela que lhe foi atribuída a priori. Assim, o objeto da pós-produção é redimensionado, como explica Bourriaud (2009, p.22) Quando Marcel Duchamp expõe um objeto manufaturado (um porta-garrafas, um urinol, uma pá de neve...) como obra do espírito, ele desloca a problemática do processo criativo, colocando a ênfase não em uma habilidade manual, e sim no olhar do artista sobre o objeto. (...) Desse modo, Duchamp completa a definição do termo: criar inserir um objeto num novo enredo, considerá-lo como um personagem numa narrativa. Vista deste modo, a apropriação tem uma função transformadora que refuncionaliza os meios de produção. Cabe, pois, ao autor pós-produtor conferir meios de deslocamento e (re)utilização aos objetos apropriados. No caso da autoria Maria Bethânia, trata-se de uma composição que insere novas possibilidades de leitura do Brasil, capaz de lançar novos olhares sobre nossa cultura e nossa história, criando novas experiências a serem vivenciadas pelos leitores do seu Caderno. Abarcando os conceitos acima expostos, concordamos que a tessitura autoral de Maria Bethânia dialoga com as questões concernentes à produção e à pós-produção. Ao selecionar textos que reconfiguram “o espaço da cultura e expondo o Brasil à compreensão de si mesmo” (STARLING, 2015, p. 13), como veremos no exemplo a seguir, Bethânia se apropria dos fragmentos de O poeta come amendoim, de Mário de Andrade e da pinturas de Tarsila do Amaral (Antropofagia- 1929): Gláuks: Revista de Letras e Artes – jul./ dez. 2017 – Vol 17, Nº 2, ISSN 2318-7131 86 Neste primeiro exemplo, notamos que Bethânia expressa sua visão de Brasil a partir do poema de Mário de Andrade, que traz em si elementos de uma nacionalidade que abarca o modo de ser e de sentir do brasileiro, além de sua maneira de se relacionar com o mundo ao seu redor. O fragmento do poema modernista integra uma composição do junto ao quadro Antropofagia, de Tarsila do Amaral. As duas obras foram produzidas durante o Modernismo brasileiro, que, em linhas gerais, lançou novos olhares sobre a constituição do nosso país, proporcionando (re)interpretações de uma ideia de identidade nacional. Nas páginas seguintes, Maria Bethânia redimensiona um fragmento da canção popular De papo pro ar, de Joubert de Carvalho e Olegário Mariano, juntamente com o quadro O pescador (1925), de Tarsila do Amaral: Gláuks: Revista de Letras e Artes – jul./ dez. 2017 – Vol 17, Nº 2, ISSN 2318-7131 87 Como podemos notar no exemplo acima, Bethânia seleciona o fragmento de uma canção popular que aponta para a relação afetiva do sujeito poético com o espaço físico em que ele vive, através de sua atividade econômica de subsistência. Podemos observar igualmente a intertextualidade entre a canção e a pintura, elementos artísticos dos quais a autora se vale para realizar uma interpretação do Brasil através de obras que dizem dos sentimentos, anseios e dilemas do nosso povo. Em outras palavras, é pela linguagem que Bethânia imprime a ideia de que a literatura é um meio para que haja a compreensão da nossa história e das nossas identidades através de uma composição em que ocorre a equivalência entre a chamada “alta literatura” e as criações populares, entre o culto à soberania da abordagem literária em sua inesgotabilidade de sentido e de permanência, e o nosso hábito meio distraído de fazer da canção o complemento natural da atividade cotidiana de viver (STARLING, 2015, p. 16). A opção de Bethânia, pela interação entre modalidades distintas da linguagem, não somente no aspecto formal, como também no tratamento temático que perpassa sua composição, faz uso das manifestações populares, sejam elas na literatura ou na música e coloca sua produção como uma maneira de compreender a posição dos sujeitos construtores da nossa história em face dos desdobramentos políticos que interferem nas relações de poder. Gláuks: Revista de Letras e Artes – jul./ dez. 2017 – Vol 17, Nº 2, ISSN 2318-7131 88 Por isso, é preciso que nos atentemos para o contexto de desenvolvimento da composição do Caderno de Poesias. A obra em questão é o aprimoramento de um modo de dizer que tem sua afirmação demarcada em 1971, com o espetáculo Rosa dos Ventos 4 . No referido espetáculo, dirigido pelo diretor teatral e escritor Fauzi Arap, houve a inserção de textos, alguns escritos exclusivamente para este show, e isso se tornou uma das marcas dos trabalhos de Bethânia (SILVA, 2010, p. 91). O impacto de Rosa dos Ventos foi tão grande que o show é considerado até hoje como “o acontecimento cultural que desmantelou a ideia de show musical no Brasil”. (STARLING, 2015, p. 14). Classificado como um espetáculo, Rosa dos Ventos nasceu da cultura popular, de onde emergiram os mais variados modos de intercalar literatura, música e teatro. A força dramática de Bethânia chamou a atenção de críticos e isso lhe rendeu espaço em colunas de diversos jornais e revistas da época. Dentre tantas impressões sobre o espetáculo em questão, trazemos a de Walter Silva que, em 1972, escreveu na Folha de São Paulo a coluna intitulada “Ela é um grito!” Não há possibilidade nenhuma de se enquadrar Bethânia entre as cantoras ou atrizes que militam em nossos palcos. Ela não é musical. Não precisa e não faz questão de demonstrar isso. Não assume compromisso nenhum com a música, nem com a melodia, a harmonia, a divisão, a respiração ou o ritmo. Ela parece que está no palco com o único intuito de se doar. E quanta coisa dá Bethânia durante todo o espetáculo! Bethânia também não é atriz e seus gestos que insinuam teatro são até primários, mas, como ela comunica. (SILVA, 1972 apud SILVA, 2010, p. 92-93) Segundo a professora e pesquisadora Heloisa Maria Murgel Starling, que foi responsável pela coordenação geral das pesquisas iconográficas e dos autores das obras utilizadas por Bethânia em seu Caderno de Poesias (2015, p. 16), “a originalidade inconfundível da forma de composição que ela (Maria Bethânia) enunciou em Rosa dos Ventos e que reaparece finamente elaborada neste Caderno de Poesias é o resultado mais visível” de uma aposta na tradição literária não somente como um passado, mas como um início. Ainda de acordo com a historiadora, Bethânia mescla o erudito e o popular sem que haja sobreposição, a fim de colocar em convivência elementos tratados em oposição e buscou Investir na ambivalência dessa tradição em que nem o erudito nos vigia impassível do alto do controle do ato puro de fazer música, nem o popular nos espia zombeteiro enquanto se lambuza na desordem sonora do Brasil é um traço característico da obra de 4 Bethânia já havia inserido poemas em espetáculos anteriores, como em Comigo me desavim (1968). Neste espetáculo, Bethânia intercalava músicas românticas com textos de Clarice Lispector e Bertold Brecht (Cf. SILVA, 2010, p. 91). Gláuks: Revista de Letras e Artes – jul./ dez. 2017 – Vol 17, Nº 2, ISSN 2318-7131 89 Maria Bethânia (...). A dinâmica de uma tradição funciona como um ponto de transmissão e interpretação de mensagens no tempo- e com a canção popular não seria diferente. (STARLING, 2015, p. 16) A essência da composição de Maria Bethânia está na canção popular e, a partir dela, a literatura é inserida como parte constituinte do seu modo de dizer sobre o Brasil. É por meio de um trabalho intuitivo que a intérprete desenvolve sua composição realizando migrações entre os gêneros literários e musicais, construindo um mosaico de textos fragmentados a partir da transposição desses elementos para seu livro. É pelo uso das obras inspiradas na vida cotidiana do povo brasileiro, dos elementos oriundos da nossa vasta produção cultural que Maria Bethânia toma posse das formas literárias e musicais e as coloca em funcionamento, estabelecendo deslocamentos, que segundo Bourriaud (2009, p. 16) consiste, “em primeiro lugar, saber tomar posse delas e habitá-las”. Portanto, é através da apropriação e da (re)utilização textos literários e das canções que Bethânia encontra uma maneira de interpretá-los a partir de uma ótica cujo enfoque é a brasilidade mestiça5. Ler é agir sobre o texto lido, de modo a expandir as possibilidades de interpretação e, consequentemente, de enunciação sobre aquilo que foi dito no texto. É a linguagem, que nos ajuda na construção das sentenças e dos significados que estabelecemos sobre os atos da vida cotidiana, como se realizássemos uma tessitura a partir da apropriação e da articulação dos elementos culturais na produção de novos enunciados. Assim, a sociedade pode ser entendida como um texto lexicalmente regrado pela produção e nós somos colocamos nesta configuração enquanto locatários da cultura, que ao ler as práticas de produção e utilizá-las somos considerados pósprodutores. A leitura e a interpretação não se limitam a inserir o leitor no plano da habitação de uma obra, mas o redimensionam ao papel de autor pela sua maneira de reorganizar, recompor e recortar os elementos da produção. CONSIDERAÇÕES FINAIS A autoria, retomando Benjamin, é uma postura política. Maria Bethânia, enquanto autora progressista e pós-produtora, ao reutilizar poemas e canções, amplia seus horizontes no campo da O conceito de brasilidade mestiça, presente no ensaio intitulado “Maria Bethânia: intérprete do Brasil”, escrito pela professora Heloisa Starling, foi desenvolvido no projeto de pesquisa mencionado no resumo deste artigo. Contudo, neste trabalho, optamos por discutir as questões referentes à autoria de Maria Bethânia em seu Caderno de Poesias e, por este motivo, não discorreremos sobre o referido conceito. 5 Gláuks: Revista de Letras e Artes – jul./ dez. 2017 – Vol 17, Nº 2, ISSN 2318-7131 90 produção artística. Bourriaud, ao tratar das questões políticas da representação da vida por meio da arte, por meio de uma leitura marxista feita à luz de Althusser diz que “interpretar o mundo não basta, é preciso transformá-lo” (BOURRIAUD, 2009, p. 86). O Caderno de Poesias é uma composição antológica e autoral que emerge de um olhar profundo para as questões mais complexas da constituição histórica do nosso país ao mesmo tempo que propõe um meio de compreensão e atuação sobre as forças políticas e econômicas que agem diretamente sobre as produções culturais, intelectuais e nos modos de vida da nossa gente. O Caderno de Poesias é um contrapoder, por ser uma obra literária, ou, ainda nas palavras de Bourriaud: “Toda arte é engajada, qualquer que seja sua natureza ou finalidade” (BOURRIAUD, 2009, 109). O desvelar literário dos dilemas sociais do Brasil só pode se apresentar na obra de Bethânia ao mesmo tempo que propõe uma mudança de postura a começar pelo olhar que temos do nosso país. Parece-nos ser este o ponto-chave para a compreensão da autoria de Bethânia fundamentada principalmente nos escritos de Benjamin e Bourriaud. Referências BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ______. O Rumor da língua. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1984. BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: ______. Magia e técnica, arte e política. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 120-136. BERNAL, César C. O conceito de autoria em Walter Benjamin. Cadernos Walter Benjamin, Fortaleza, v. I, 30 dez. 2008.p. 35-46. BETHÂNIA, Maria. Caderno de Poesias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. SILVA, Marlon de Souza. No que eu canto trago tudo o que vivi: a tradição e o popular em Maria Bethânia (1965-1978). São João del-Rei, 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de São João del-Rei, 2010. STARLING, Heloísa Maria Murgel. Maria Bethânia: intérprete do Brasil. In: BETHÂNIA, Maria. Caderno de Poesias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. 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