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ARTHUR C. DANTO – Crítica de arte após o fim da arte 82 CRÍTICA DE ARTE APÓS O FIM DA ARTE1 Arthur C. Danto2 Tradução Miguel Gally et al Por volta da metade do ano de 1984, eu publiquei um ensaio intitulado “O Fim da Arte”. Em outubro deste mesmo ano, comecei uma carreira como crítico de arte publicando meu primeiro trabalho na revista The Nation3. Por vezes tem sido expressa uma visão de que se o fim da arte chegou mesmo, não deve haver mais nada sobre o que escrever crítica de arte, de modo que minha nova prática estava de algum modo inconsistente com a tese de meu ensaio. Contudo, nunca foi parte de minha tese dizer que a arte deixaria de ser feita — eu não tinha proclamado a morte da arte! “O Fim da Arte” tinha mais a ver com a maneira como a história da arte tinha sido concebida enquanto uma sequência de fases de uma narrativa em desdobramento. Eu senti que esta narrativa havia chegado a um fim e, por conseguinte, qualquer arte que estivesse sendo feita agora seria pós-histórica. O único tipo de crítica que a tese descartou foi a da prática não rara de se elogiar algo mostrando o que seria a próxima fase da história da arte. Senti que a minha tese era liberacionista — que agora que o fim da arte havia chegado, os artistas estavam livres do fardo da história da arte. Eles já não eram mais forçados, por um imperativo, a levar essa narrativa adiante. Nada mais na arte podia ser invalidado pela crítica de que estivesse historicamente incorreto. Toda e qualquer coisa estava agora à disposição dos artistas. Apesar de ter levado um tempo para que o fato ficasse claro para mim, eu era, de algum modo, o primeiro crítico de arte pós-histórico. Havia, é claro, uma abundância de críticos de arte no período que nós havíamos agora entrado. O que era especial quanto a mim era que eu era o único cujos escritos foram orientados pela crença de não estarmos simplesmente em uma nova era da arte, mas em um novo tipo de era4. Isto significava que eu tinha que estar tão aberto quanto o próprio mundo da arte havia se tornado. Se nada estava descartado enquanto arte, eu não poderia descartar nada enquanto arte. 1 Introdução do livro Unnatural Wonders: Essays from the Gap between Life and Art, New York: Farrar, Straus and Giroux, 2005, pp. 3-18. Tradução de Miguel Gally, Clarissa Barbosa e Leandro Aguiar. Notas Miguel Gally. Revisão Pedro Paulo Pallazzo. Preferimos deixar entre colchetes no corpo do texto alguns termos que poderiam gerar ambiguidades; nas citações feitas por Danto dos trechos escritos por Hegel, os colchetes são intervenções de Danto, salvo quando indicado em nota. Agradecemos o autor por gentilmente ter permitido traduzir este texto. 2 Professor Emérito de Filosofia, Columbia University - Nova Iorque. 3 Revista nova-iorquina semanal supostamente de orientação liberal atuando, sobretudo, em temas relativos à cultura, política e economia. 4 Cf. DANTO, A. Após o fim da arte (1997), Trad. Saulo Kriger. São Paulo: Edusp, 2006. Capítulos 1 e 2. REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 1 P. 82-98 JAN./JUN. 2013. ARTHUR C. DANTO – Crítica de arte após o fim da arte 83 De fato, eu não era o primeiro filósofo a anunciar o fim da arte e, em seguida, escrever crítica de arte. No início de seus Cursos de Estética5, proferidos em Berlim pela última vez em 1828, o grande metafísico alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel reinvidicou que “a arte é e permanecerá para nós, do ponto de vista de sua destinação suprema, algo do passado6”. Entretanto, Hegel, assim como eu, não supôs que a prática da crítica de arte fosse invalidada por essa tese. De fato, no vigoroso texto que se seguiu, ele se mostrou um dos mais grandiosos escritores de crítica de arte. Sua crítica à Transfiguração de Rafael — até então considerada uma obra-prima profundamente falha — é um exercício sem paralelo na análise da arte. E as páginas que ele dedica à crítica da pintura holandesa nunca foram, em minha opinião, superadas. Eu ficaria muito grato, de fato, em crer que qualquer coisa que eu escrevi como crítico de arte tenha chegado ao nível do trabalho alcançado por Hegel nesse gênero. A diferença é que Hegel não tentou fazer crítica de arte do seu próprio tempo — da arte depois do fim da arte. Na verdade, sua filosofia da história da arte implicava, de fato, que ele estava vivendo em uma época na qual, pela primeira vez na história, a abordagem do crítico de arte era exatamente o que demandava a arte que estava sendo feita. A crítica de arte enquanto prática moderna não era muito antiga em 1828. O fato de que ela simplesmente tenha existido era quase uma prova de que a teoria do fim da arte de Hegel era verdadeira para seu tempo. Se eu tomar um tempo para explicar o que, realmente, era sua visão, isso vai ajudar a esclarecer a diferença entre a minha visão e a de Hegel – bem como entre a de nossa era e a dele. O que Hegel teria dito se o futuro real da história da arte tivesse-lhe sido revelado — a grande varredura da história da arte desde Goya, Ingres e Delacroix, passando por Manet, Courbet e os Impressionistas, os Pós-impressionistas e os primeiros Modernistas até a arte de nosso próprio tempo? Teria ele considerado que a sua declaração do fim da arte tivesse sido talvez apressada e, sem meias palavraspara ser mais preciso, falsa? Eu penso que ele teria dito que não, que ele simplesmente não estava fazendo, de maneira alguma, predições sobre a produção artística. Era, em vez disso, uma reivindicação sobre a nossa relação com a arte, seja qual fosse seu futuro efetivo. Seu ponto de vista, como ele diz explicitamente, era o de que a arte “perdeu para nós a autêntica verdade e vitalidade e está relegada à nossa representação, o que 5 As traduções usadas foram do livro Cursos de Estética (Vorlesungen ueber die Aesthetik), com tradução de Marco Aurélio Werle. São Paulo: Edusp, 2001. Vol. 1. 6 Cursos de Estética..., Vol. 1, p. 35. REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 1 P. 82-98 JAN./JUN. 2013. ARTHUR C. DANTO – Crítica de arte após o fim da arte 84 torna impossível que ela afirme sua antiga necessidade na realidade efetiva e que ocupe seu lugar superior7”. Em suma, isto é uma tese menos sobre arte do que sobre nós. Hegel continua no seu texto: Hoje, além da fruição imediata, as obras de arte também suscitam em nós o juízo, na medida em que submetemos à nossa consideração pensante o conteúdo e o meio de exposição da obra de arte, bem como a adequação e inadequação de ambos”. E ele conclui: “A ciência [filosofia] da arte é, pois, em nossa época muito mais necessária do que em épocas na quais a arte por si só, enquanto arte, proporcionava plena satisfação. A arte nos convida a contemplá-la por meio do pensamento e, na verdade, não para que possa retomar seu antigo lugar [criando arte novamente], mas para que seja conhecido cientificamente [filosoficamente] o que é a arte8”. Hegel acreditava que, em certo sentido, tínhamos superado a arte. Ela não nos dá mais o que necessitamos: Seja como for, o fato é que a arte não mais proporciona aquela satisfação das necessidades espirituais que épocas e povos do passado nela procuravam e só nela encontraram; uma satisfação que se mostrava intimamente associada à arte, ao menos no tocante à religião. Os belos dias da arte grega assim como a época de ouro da Baixa Idade Média passaram. (…) Pelo contrário, a natureza de toda a cultura [Bildung] espiritual faz com que [o artista] esteja justamente no centro desse mundo reflexivo e de suas relações. Ele não poderia abstraí-lo por vontade e decisão pessoais (…)9. Hegel acreditava que enquanto na Grécia antiga ou na Europa medieval a arte satisfazia a mais elevada necessidade espiritual, agora tínhamos evoluído para além disso e exigíamos o que ele chamou de “reflexão”, o que, na prática, ele entendia como filosofia. Nessas idades de ouro, a arte tornou vívida, através de imagens, o que os homens e as mulheres precisavam saber sobre si e sobre o mundo em que eles acreditavam viver. Nós, modernos, Hegel teria dito, temos que interpretar o que eles entenderam de modo imediato e intuitivo. Quando Hegel estava construindo sua visão sobre arte, ele podia ver da porta de sua casa o grande museu de Karl Friedrich Schinkel 7 Idem, p.35. Idem, p.35. Entre colchetes a tradução inglesa usada por Danto para Wissenschaft e wissenschaftlich. Nas páginas seguintes do mesmo livro, Hegel explica como entende filosofia e ciência em suas aproximações, daí a escolha do tradutor inglês por “filosofia” e “filosoficamente”, respectivamente. 9 Idem, p.35. 8 REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 1 P. 82-98 JAN./JUN. 2013. ARTHUR C. DANTO – Crítica de arte após o fim da arte 85 sendo erguido (hoje chamado de Altes Museum, “Antigo Museu”). Este deveria conter obras de arte de vários períodos históricos, as quais nos seus tempos poderiam ser entendidas por aqueles que viviam um modo de vida no qual sua arte lhes era suficiente, algo que Hegel acreditava poder ser agora derivado somente de uma reflexão filosófica. Estando no museu, temos que aprender o que a arte quer dizer — qual é o seu conteúdo — e por que apresenta aquele conteúdo da maneira como o faz. Nós somos externos àquela arte e a confrontamos enquanto críticos de arte ou historiadores da arte. A arte perdeu o poder de comunicar-se por si própria. De fato, não temos necessidade daquela arte. Nem temos, mais radicalmente, necessidade de qualquer arte. Nós agora passamos para um plano mais elevado, mais intelectual, do que o daqueles homens e mulheres para cujas necessidades espirituais a arte era suficiente. Mesmo se a arte de seu tempo tivesse sido próspera e deslumbrante, Hegel teria sentido que havíamos mudado para algo mais elevado - mais intelectual. Creio que essa foi a visão de Hegel, a qual tentei transmitir com suas próprias palavras. Sua tese era: o que quer que a arte pudesse fazer por nós agora, isso não poderia mais se comparar ao que ela fez uma vez para aqueles que vieram antes de nós. “(…) a arte (…) não é, seja quanto ao conteúdo seja quanto à Forma, o modo mais alto e absoluto de tornar conscientes os verdadeiros interesses do espírito”10. Pelo contrário, escreve Hegel, ‘o pensamento e a reflexão sobrepujaram a bela arte”11. E a razão pela qual a arte continua a ser, por assim dizer, terrena, é que ela exibe “mesmo a mais elevada [realidade] sensivelmente”12. Ela é atrelada à experiência de um ou outro objeto — o objeto material no qual a obra de arte é incorporada — ao passo que a reflexão filosófica nos envia para um reino do pensamento abstrato puro, o qual não pode, de modo algum, ser reduzido à experiência dos sentidos. Nós, na prática, temos que traduzir em pensamento, através da interpretação, o que os sentidos nos mostram. Nós temos que colocar a arte em palavras para apreender o que ela significa. Isso foi o que Hegel fez enquanto um crítico de arte, e devo confessar que é o que eu, da mesma maneira, tento fazer como um crítico de arte. Entretanto, a minha visão sobre o fim da arte é radicalmente diferente da dele. Eu não acredito, por exemplo, que tenhamos superado a arte. Acredito que, de algum 10 Idem, p.34. Idem, p.34. 12 Idem, p.34. 11 REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 1 P. 82-98 JAN./JUN. 2013. ARTHUR C. DANTO – Crítica de arte após o fim da arte 86 modo, nós tenhamos superado certas visões da experiência artística que a tornam inadequada intelectualmente para nossas necessidades. E, consequentemente, acredito, nós superamos a infeliz visão de Hegel sobre a relação entre arte e filosofia. Ele percebeu que a arte era limitada por causa de sua dependência frente a objetos materiais apreendidos através dos sentidos. Seu desprezo pela matéria tem uma longa genealogia filosófica remontando à Antiguidade. Ele era um idealista filosófico, o que significava que ele via o universo como algo completamente espiritual. Ele viu que era possível pensar pela matéria [in the medium of matter] e sua concepção de arte reconhece isso tal e qual. Porém, ele acreditava que isto limitava a arte de uma maneira desfigurante, uma vez que na sua natureza, a arte tinha que pensar pela matéria. Sua filosofia da arte era refém da sua metafísica. Eu, ao contrário, acredito que a arte tem sido capaz, através da sua evolução, de nos levar ao coração de sua filosofia. Minha tese sobre o fim da arte não é, de fato, uma tese metafísica, mas sim uma tese histórica. Como eu disse, nós não superamos a arte, de maneira alguma. Contudo, a arte certamente superou qualquer coisa que Hegel tivesse sido capaz de conceber como arte na década de 1820! De fato, se a arte não tivesse tido o desenvolvimento interno que a conduziu para a arte que experimentei no início da década de 1960 — mais precisamente em 1964 —, minha visão sobre o fim da arte nunca teria surgido. Eu percebi, especificamente em conexão com aquela arte — Pop, Minimalismo e o Conceitualismo —, precisamente o que Hegel declarou: que a filosofia da arte tornara-se necessária de uma maneira particularmente urgente. Com certeza, a filosofia na segunda metade do século XX era completamente diferente da prática robusta que havia sido na época de Hegel. Esta filosofia surgiu em uma época muito distante de algo que pretendesse satisfazer as mais elevadas necessidades do espírito. A metafísica do tipo daquela que Hegel praticava havia sido declarada intelectualmente impostora, e as mentes filosóficas mais refinadas do meu tempo se dedicavam à sua superação definitiva. Ludwig Wittgenstein escreveu: “A maioria das proposições e questões que se formularam sobre temas filosóficos não são falsas, mas contra-sensos [unsinnig]. Por isso, não podemos de modo algum responder a questões dessa espécie, mas apenas estabelecer seu caráter de contra-senso [Unsinnigkeit].”13 Os principais movimentos filosóficos do século eram baseados num 13 WIITGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus (edição bilíngue). Trad. Luiz H. L. dos Santos, São Paulo: Edusp, 1994. 165 (4.003). Entre colchetes o termo em alemão, no original. Unsinn indica também “sem sentido”, “absurdo” ou “non-sense”. REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 1 P. 82-98 JAN./JUN. 2013. ARTHUR C. DANTO – Crítica de arte após o fim da arte 87 ceticismo radical quanto à própria filosofia e procuravam oferecer algo que os filósofos pudessem fazer, ao invés do que Hegel acreditava ser a “elevada vocação” da filosofia. A fenomenologia, ao contrário, buscava descrever a estrutura lógica da experiência da consciência. O Positivismo dedicou-se ao esclarecimento lógico da linguagem científica. “A filosofia recupera a si mesma”, escreveu o pragmatista John Dewey, “quando ela deixa de ser um dispositivo para lidar com os problemas dos filósofos, e se torna um método, cultivado pelos filósofos, para lidar com os problemas dos homens”. Nietzsche considerou a filosofia tão somente enquanto sendo as autobiografias disfarçadas de seus expoentes, e Derrida desenvolveu seu próprio conceito de desconstrução para desnudar os compromissos escondidos por detrás dos sistemas filosóficos. Se houve algum grupo de personagem que tentou lidar com as mais profundas preocupações do espírito, não foram, de maneira alguma, os filósofos profissionais, mas sim os grandes pintores da minha juventude: os expressionistas abstratos, que, nas palavras de um deles, Barnett Newman, aspiravam encontrar, através da pintura, rastros para o Absoluto. E quando, em um encontro lendário entre artistas e filósofos no Woodstock em 1952, os estetas ousaram sugerir que eles tivessem algo de interessante para dizer aos artistas, Newman declarou, desdenhosamente, que a estética estava para a arte assim como a Ornitologia estava para os pássaros. Eles não estavam mais na veneração da filosofia, se é que algum dia estiveram, e não sentiam mais necessidade dela. Em particular, em relação à pergunta pela natureza da arte, que por muito tempo preocupara a filosofia e constituía um tema tradicional na estética, considerou-se que ela não carecia de resposta. Naquela época havia uma visão na filosofia de que as definições de arte eram, ora inúteis, ora impossíveis. Essa visão também derivava de Wittgenstein, que tinha dado um exemplo quase paralisante em sua obra-prima publicada postumamente: Investigações Filosóficas. Como você definiria os jogos? Wittgenstein perguntou. Existe algo comum e peculiar ao conjunto de jogos, como os filósofos teriam suposto que o conceito de jogos precisasse? Não diga que tem de haver algo, Wittgenstein disse — Olhe e veja se há algo. Ele, então, listou vários jogos e o fez de tal maneira que realmente não havia nada óbvio quanto ao que todos eles tivessem em comum. No entanto, ele continua, todos nós sabemos o que são os jogos. Uma definição não fará nenhum de nós mais sábios. Para aqueles que se sentiram inseguros nesse ponto, Wittgenstein apresentou a ideia do que ele chamou de “semelhanças de REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 1 P. 82-98 JAN./JUN. 2013. ARTHUR C. DANTO – Crítica de arte após o fim da arte 88 família”. O conjunto dos jogos é uma classe de semelhanças de famílias. Seus seguidores propuseram que obras de arte constituem, precisamente, apenas tal classe. O que me impactou com a força de uma revelação em 1964 foi que essa visão estava inteiramente errada. Isto me atingiu, em particular, na exposição sobre a qual eu tenho tantas vezes escrito a respeito, em que Andy Warhol apresentou um grande número de fac-símiles de caixas de embalagens, dentre as quais a Brillo Box foi a estrela. O que foi emocionante para mim nessa exposição foi a maneira com que ela inaugurou, eu pensei, uma maneira de pensar filosoficamente sobre arte. Pareceu-me que até então, considerava-se que obras de arte eram pensadas para ter uma forte identidade antecedente. Elas tinham molduras douradas em torno de si ou eram postas sobre pedestais, e era de se esperar que fossem consideradas bem significativas. Todos sabiam dizer, mais ou menos, quando algo era uma obra de arte, a qual poderia ser identificada tão bem quanto se poderia identificar caixas para embalagens; ninguém confundiria as duas. E, agora, de repente, havia uma obra de arte que, curiosamente, não se poderia distinguir de uma caixa de embalagens. Contudo, isto significava que reconhecer algo como uma obra de arte era uma transação perceptiva mais complexa do que qualquer um poderia ter suposto antes. Que semelhança de família poderia ser maior do que entre a obra Brillo Box e as caixas de embalar Brillo14? Eram como gêmeos idênticos! E, no entanto, uma era obra de arte e a outra apenas um recipiente descartável. Num ensaio recente que escrevi sobre o movimento Fluxus15, eu ressaltei como os jogos se tornaram parte do conjunto da obra Fluxus. Não as belas e bem trabalhadas peças de xadrez, mas sim os joguinhos bobos do tipo “Made in Japan”, nos quais você mata o tempo colocando bolinhas de metal em um conjunto de furos com uma imagem barata de um palhaço impressa. Quem poderia ter escolhido estes como uma obra de arte? Entretanto, na Coleção Silverman de obras do Fluxus em Detroit, lá estão eles, juntamente com outros itens de lojas de brincadeiras que ostentam a marca do gosto Fluxus. De repente, pareceu-me que a definição de arte tornara-se urgente. Sim, de repente, ficou claro que a grande verdade filosófica que Warhol tinha nos presenteado era a de que não se pode basear uma definição filosófica da arte em algo 14 [“What family resemblance could be greater than that between Brillo Box and the Brillo boxes?”] Considerando que as obras Brillo são caixas (boxes) para condicionar palhas de aço, poderíamos utilizar também a tradução: “Que semelhança de família poderia ser maior do que entre a obra Caixa Brillo e as caixas de Brillo?”. 15 DANTO, A. “The World as Warehouse: Fluxus and Philosophy” (“O Mundo como armazém: Fluxus e Filosofia”). In HENDRICKS, Jon. What´s Fluxus? What´s Not! Why – O que é Fluxus? O que não é! O porquê (ed. biligue). Rio de Janeiro: CCBB, 2002, p.23-32. REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 1 P. 82-98 JAN./JUN. 2013. ARTHUR C. DANTO – Crítica de arte após o fim da arte 89 visual — ou sensível, no uso amplo que os filósofos fazem do termo — pois a maioria das propriedades visuais de suas Brillo Box é compartilhada com as das caixas de Brillo do supermercado, e aquelas que não são partilhadas — as de Warhol são feitas de compensado — não podem, de modo concebível, sustentar uma distinção tão radical quanto aquela existente entre arte e realidade. Mas isto tem a forma de uma pergunta filosófica clássica. O meu paradigma para isto é a questão perturbadora com a qual Descartes abre seu magnífico trabalho, Meditações Filosóficas. É uma filosofia caloura, mas de alguma maneira toda filosofia é uma filosofia caloura. O problema é aquela com a qual todos estão familiarizados. Descartes está sentado em seu escritório, com seu roupão, ao lado de uma lareira em um dia de inverno na Alemanha, escrevendo seus pensamentos numa folha de papel. E então lhe ocorre que ele poderia estar sonhando tudo isso e que ele estaria, de fato, nu, aconchegado sob o seu cobertor, sonhando que tudo está acontecendo como ele acabara de descrever. Não há nenhuma diferença interna entre as duas experiências. O que quer que se proponha pode facilmente ser realizada em sonho tanto quanto em vigília. Portanto, temos aqui duas imagens exatamente iguais, uma, um sonho e outra, um estar acordado. A diferença entre o sonho e a vigília é radical. No meu livro Conexões com o Mundo [Connections to the World] argumentei que todos os problemas filosóficos têm essa forma. Isto é o que torna a filosofia tão fascinante, tão difícil e tão diferente da ciência. É por isso que não se pode tratar questões filosóficas como se trata questões científicas, como meus professores, que eram positivistas lógicos, acreditavam ser possível. Eles pensavam que isso significava que as perguntas filosóficas eram sem sentido ─ ou pseudo-perguntas. Ao passo que foi minha a opinião de que o problema Brillo Box -- Brillo Box [ou Caixa Brillo – Caixa de Brillo] significa que podemos, enfim, começar a entender o que poderia se parecer com uma definição de arte. Meu livro de 1980, A Transfiguração do Lugar-Comum, discute esse problema na forma intratável que apresentei acima e maneja perspicazmente dois ou três componentes do que me pareceu ─ e ainda me parece ─ pertencer a uma definição de arte bem sucedida. Curiosamente, esta definição coincide precisamente com o que Hegel disse ter de ser agora nossa abordagem da arte: devemos nos preocupar com “(i) o conteúdo da arte, (ii) o modo de apresentação da obra de arte e se ambos são apropriados ou inapropriados um ao outro”. A visão à qual eu cheguei não apenas formulou uma definição provisória de arte, ela também formulou a abordagem que eu estava REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 1 P. 82-98 JAN./JUN. 2013. ARTHUR C. DANTO – Crítica de arte após o fim da arte 90 assumindo na crítica de arte. Em primeira instância, uma obra de arte tem de ser sobre algo ─ ter um significado ─ e de alguma forma tem de incorporar o significado no modo como ela se apresenta à consciência do espectador. Eu tornei isso um slogan dizendo que as obras de arte são significados incorporados16. Como um crítico, pareceme, precisamos perguntar qual é o significado da obra; como a obra incorpora este significado; e se, nos termo de Hegel, o significado e sua incorporação são “adequados ou inadequados um ao outro”. Com a arte do passado, evidentemente, quando a obra de arte constituía parte da forma de vida daqueles para quem as obras eram feitas, seus usuários não tinham necessidade destas perguntas. As obras se dirigiam a eles de maneira tão imediata que não havia mais nada a se fazer, além de responder nas formas prescritas. Mas nós, nós não associamos e não podemos associar tais formas desta maneira internalizada. As obras não eram feitas para serem expostas em um museu. Elas não tinham a intenção de ser apreciadas, e sim, digamos, de servir como objeto de oração ou adoração. Não havia espaço para questões de expertise. Considere-se, por exemplo, o furor causado pela exposição “Primitivismo e Arte Moderna” de 1985, no Museu de Arte Moderna [MoMa], a qual justapôs obras modernistas com figuras da Oceania ou da África que as inspiraram. A questão trazida era se essa seria afinal uma maneira apropriada para olhar tais obras [da África e da Oceania], as quais desempenhavam um papel tão diferente em suas culturas quanto a pintura Fauvista ou Cubista desempenhava na Europa ou nos Estados Unidos. A ideia mesma de que elas são “primitivas” é o resultado de uma comparação forçada e distorcida. Não há nenhuma maneira de como nós poderíamos nos relacionar a esses objetos tal como o fazem aqueles cujas culturas os definem ou definiam. Quando Hegel disse que a arte nos convida a uma consideração intelectual, mas não com a finalidade de criar arte novamente, eu acho que ele sinceramente sentiu que não havia mais nenhuma maneira segundo a qual pudéssemos nos relacionar com a arte assim como, no passado, as pessoas tinham se relacionado a ela. Hegel pode muito bem ter suposto que a arte poderia continuar a ser feita para outros fins, o que ele descreve em uma passagem como “a indulgência e relaxamento do espírito”. Como tal, “arte 16 Para “embodied meanings” as traduções podem variar entre significados corporificados, incorporados ou, ainda, encarnados sem comprometer seu entendimento, porque está em questão indicar como aquilo que não é parte necessária de objetos ou corpos ordinários (seu significado) adere a esse corpo a ponto de transfigurar sua condição ordinária (common sense) em obra de arte. Assim incorpora-se, corporifica-se ou encarna-se um significado. REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 1 P. 82-98 JAN./JUN. 2013. ARTHUR C. DANTO – Crítica de arte após o fim da arte 91 aparece como algo supérfluo” e um luxo que ele francamente achou difícil de defender. Isto não é uma visão incomum — pense como, nos dias de hoje, a arte é apresentada nas seções “Arte e Lazer” e “Arte e Diversão” de jornais importantes. Pense na maneira ampla como ela é vista enquanto enfeite, quando o lugar das artes no currículo é tratado nos orçamentos escolares. O que Hegel, obviamente, não poderia subscrever é que as obras de arte pudessem desempenhar na vida moderna o papel central que ele atribuiu à filosofia! Mas é esse o papel, eu acredito, que a arte cada vez mais tem insistido em reivindicar para si, levantando a questão de sua identidade com tanta força quanto o que eu sinto que a Brillo Box o fez, exigindo um tipo de engajamento intelectual consigo. Na verdade, eu senti que a arte levou a responsabilidade da filosofia da arte mais longe do que os filósofos da arte teriam sido capazes de fazê-lo. Era como se os artistas tivessem se tornado seus próprios filósofos para poder ser levados a sério. Alega-se, às vezes, que eu tenha dito que a arte chegou ao fim em 1964 com o aparecimento da Brillo Box, e eu tenho que aceitar alguma responsabilidade por essa caricatura. A verdade é que minhas ideias sobre a filosofia da arte começaram há quarenta anos com esta experiência. Warhol me acordou ─ para usar uma frase de Kant ─ do meu sono dogmático. Esse sono deveu-se, acima de qualquer coisa, a minha completa ignorância sobre muito do que estava acontecendo no mundo da arte naquela época. Por toda parte, no mundo da arte no começo da década de 1960, havia tantos exemplos que se assemelhavam a coisas que não eram obras de arte, que teria sido difícil dizer qual era qual. Na música, John Cage estava subvertendo a diferença entre sons musicais, estritamente falando, e os ruídos da vida cotidiana. Muitos dos membros do movimento Fluxus eram estudantes de Cage em seus cursos de composição experimental na New School. O Judson Dance Center estava conduzindo experiências nas fronteiras da dança: por qual critério, se houver algum, podemos dizer quando um movimento é dança? Uma dança não pode consistir em alguém apenas andando no palco, ou sentando em uma cadeira durante um determinado período de tempo? Essa foi uma ambição para a vanguarda de Nova York: “superar o abismo entre arte e vida”, e muitos dos seus adeptos se inspiravam nos seminários do Dr. Suzuki sobre o Zen budismo, na Universidade de Columbia. Eu também acompanhei o Dr. Suzuki, e eu sei que quando escrevi meu primeiro ensaio de filosofia da arte, eu apliquei para a questão Brillo Box -- Brillo Box [ou Caixa Brillo – Caixa de Brillo] certos modos de pensar que eu derivei do Zen. A diferença entre mim e os artistas vanguardistas que eram meus contemporâneos, e em certo sentido meus pares, é que para eles era suficiente apagar as REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 1 P. 82-98 JAN./JUN. 2013. ARTHUR C. DANTO – Crítica de arte após o fim da arte 92 fronteiras entre as obras de arte que eles faziam e objetos da vida ordinária. Isso não era suficiente para mim. Meu problema era o que tornava tais obras de arte, arte, se os objetos aos quais elas eram tão exatamente semelhantes eram o que eu chamava de meras coisas reais? Tudo o que eu sabia é que as diferenças, quaisquer que fossem, não poderiam ser vistas pelo olho. O melhor que eu pude fazer nesse primeiro ensaio, cujo título era “O mundo da arte” [The Art World]17, foi tentar explicitar algumas diferenças não visuais. Eu pensei que para ver Brillo Box como arte, seria necessário ver como a história da arte tinha evoluído até que tal obra se tornasse então possível de existir. Ter-se-ia que conhecer algo sobre o estado do discurso do mundo da arte, dentro do qual essa possibilidade existia. Você teria que conhecer Duchamp, por exemplo. Você teria que saber algo sobre Clement Greenberg. E assim por diante. Nada disto se aplicava às caixas de Brillo. Essas estariam situadas na história de um modo muito diferente da Brillo Box, porém sendo ambas muito semelhantes na aparência. Imagine que uma pessoa querida morra. Suponha que alguém diz a você que há uma empresa que fabrica duplicatas de qualquer pessoa do mundo. Você pode encomendar uma segunda via do seu marido ou do seu filho. Leva algumas semanas e custa muito menos do que você poderia imaginar. Você encomendaria uma? Você amaria o duplicado tanto quanto seu indiscernível “original”? Esse é o mesmo tipo de problema. Pode-se muito bem perguntar o que isso tem a ver com o fim da arte, e eu me dou conta agora de como minha maneira de pensar naquela época era completamente filosófica, quando eu pondero qual era meu raciocínio. Eu tinha começado a pensar na história da arte moderna como uma espécie de Bildungsroman, usando o termo alemão para um tipo de romance no qual o herói ou heroína chega a um entendimento do que ele ou ela é. Há uma espécie de romance feminista, por exemplo, em que uma mulher chega a um entendimento interno ou consciência do significado de sua identidade enquanto pessoa e enquanto mulher. O fim da estória é este advento da autoconsciência. O que acontece depois deste ponto, o que ela faz à luz deste conhecimento, é da responsabilidade dela. Essa ideia é muito hegeliana, o que mostra como, de fato, meu pensamento tem estado em débito ao seu. Hegel sustentava uma posição na qual a história termina na autoconsciência, naquele estado de coisas no qual o que ele chama de Espírito conhece que é Espírito, conhece, isto é, que ele concebeu falsamente sua 17 DANTO, A. “O Mundo da Arte”. Trad. por Rodrigo Duarte, Revista Artefilosofia. Numero 1, Ouro Preto: UFOP, p. 13-25. REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 1 P. 82-98 JAN./JUN. 2013. ARTHUR C. DANTO – Crítica de arte após o fim da arte 93 natureza, mas que agora alcançou o conhecimento de si. Sua grande obra, Fenomenologia do Espírito, é apenas tal estória, na qual o Espírito passa por várias aventuras e desventuras de falso conhecimento até que, no final, em um clímax, ele abre caminho para essa espécie de autoconsciência, o que significa o fim desta história. O Espírito nunca mais terá de atravessar tal percurso de autoeducação. A estória está acabada, não obstante a história continue indefinidamente. Esse era meu ponto de vista em relação à história do Modernismo, a qual eu li enquanto uma série de esforços de autodefinição, em que cada um em uma série de movimentos sucessivos levantou a questão: o que é arte? Havia tantos movimentos, muitos deles acompanhados de manifestos nos quais a arte, por assim dizer, declara: isso é o que a arte é, isso é o que o passado foi e é o que o futuro será, agora que a arte conhece o que ela é. À medida que os anos sessenta avançavam, parecia-me que movimentos como os que então ocorriam tinham uma natureza cada vez mais filosófica. Uma das exposições que me afetou, embora menos marcante que as de Wahrol, foi uma exposição de caixas grandes, simples, pintadas em tons esmaecidos de cinza ou bronze industriais pelo artista minimalista Robert Morris, na Galeria Green. Em 1966, uma importante mostra de esculturas similares foi exibida no Museu Judaico — naquela época o principal local de encontro para a arte vanguardista — sob o título "Estruturas primárias". À medida que o minimalismo evoluiu enquanto um movimento autoconsciente, os objetos que o constituíam tornaram-se cada vez menos interessantes, visualmente falando, e cada vez mais dependentes de textos, filosóficos por natureza, escritos pelos artistas, que tinham muitas vezes seus próprios objetos fabricados em oficinas. Os objetos eram industriais: fiadas de tijolos, quadrados puros de metal, lâmpadas fluorescentes, módulos metálicos lisos e partes de construções pré-fabricadas. A menos que se lessem os textos, se poderia entender algo da arte, da qual quase tudo de interesse visual tinha sido expurgado. Quase se poderia supor que os objetos seriam dispensáveis, deixando apenas os textos. Em 1969, o Conceitualismo surgiu como um movimento. Ele, de fato, eliminou por completo os objetos — ou os objetos eram cada vez mais vestigiais, enquanto o pensamento se tornara fulcral para as artes. Um exemplo extremo foi uma obra sem título de Robert Barry, consistindo em “Todas as coisas que eu conheço, mas não estou pensando no momento — 13h36, 15 de junho de 1969”. O trabalho poderia ter consistido, entre outras coisas, no Empire State Building, nos Alpes e na ponte do Brooklyn, a menos que Barry estivesse pensando neles no momento, pois estas estavam entre as coisas que ele claramente conhecia. REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 1 P. 82-98 JAN./JUN. 2013. ARTHUR C. DANTO – Crítica de arte após o fim da arte 94 Agora, o Minimalismo e Conceitualismo eram ambos mais filosóficos em sua intenção do que a Arte Pop jamais o foi. A intenção da Pop era mais social do que filosófica — ela estava preocupada inicialmente em superar a diferença entre arte erudita [high art] e arte popular ou vernácula. Efetivamente, Lawrence Allloway, que cunhou o termo “Pop Art”, estava convencido de que a arte popular — sua música, filmes, literatura e arte — é absolutamente tão carente de análise crítica quanto a arte erudita. Mas todos esses três movimentos da metade para o fim dos anos sessenta serviram para livrar a concepção de arte de muitas características que ela tinha adquirido no decorrer de sua história. A arte não precisava mais ser feita por pessoas com dotes especiais — o Artista — nem exigia nenhum conjunto especial de habilidades. A arte não precisava mais ser difícil de fazer. E não precisava mais, como mostra o trabalho sem título de Robert Barry, ser algum objeto especial. Uma escultura poderia ser um buraco no chão, como em uma obra de Lawrence Wiener. Começando com Fluxus, foi como se os anos sessenta fossem um período de experimentação filosófica radical, no qual se procurou descobrir o quanto poderia ser subtraído da ideia de arte. Tal como acontece com o problema Brillo Box -- Brillo Box [ou Caixa Brillo – Caixa de Brillo], os artistas estavam fazendo o trabalho filosófico que os filósofos não eram capazes de fazer ou não queriam fazer por eles, de modo que não era inteiramente uma caricatura dizer que a arte, pelo menos a arte das vanguardas, tinha se transformado em filosofia por volta da década de 1960 e até a década seguinte. Na década de 1970 tornou-se possível dizer, com Warhol, que qualquer coisa poderia ser arte, ainda que o Conceitualismo tivesse dito quase a mesma coisa. Tornou-se possível dizer, com Beuys, que qualquer um poderia ser um artista. Não que isso significasse que tudo fosse arte, mas que qualquer coisa poderia sê-lo. Já não era mais necessário perguntar se isto ou aquilo poderia ser uma obra de arte, pois a resposta seria sempre sim. E com isso, parece-me, não havia mais nenhuma necessidade para esse tipo de experimento. O conceito de arte tinha se purifcado de tudo que não lhe era essencial. Permanecia para a filosofia dizer o que tinha restado, se os filósofos se interessassem pelo problema. Os artistas estavam agora livres para fazer arte a partir de qualquer coisa e do modo que eles escolhessem. Essa era a situação no início da década de 1980, quando publiquei “O fim da arte”. Eu, de fato, tinha tentado identificar, em A transfiguração do lugar comum, as poucas e bastante frágeis condições remanescentes do conceito ou da “definição” de arte. Elas eram tão frágeis e tão gerais que podiam ser compatíveis com qualquer obra REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 1 P. 82-98 JAN./JUN. 2013. ARTHUR C. DANTO – Crítica de arte após o fim da arte 95 de arte, tradicional ou contemporânea, ocidental ou não ocidental. A definição era suficientemente ampla [nonexclusive] para ser compatível seja com o reconhecimento de que não havia nenhuma restrição em torno de qual aparência a obra teria, seja com a situação em que não haveria nenhuma maneira de se saber quando e se alguém estava na presença da arte. Uma vez que tudo pode ser arte, pareceu-me que estávamos dentro do que se poderia chamar de situação do fim da arte. Foi a primeira vez que a civilização chegou a tal situação. Foi uma situação de perfeita liberdade. Artistas poderiam fazer da arte o que quisessem. Essa foi, no mínimo, para usar uma expressão filosófica da época, a estrutura profunda do mundo da arte no qual vivíamos. A razão de o “Fim da Arte” não ter sido imediatamente aceito foi a de que, por um tempo, a estrutura de superfície parecia bastante diferente da estrutura profunda. Isso requer algum comentário. No início dos anos 1980, houve um grande ressurgimento da pintura. Havia um sentimento de alegria de ter a pintura de volta, sob a forma do que foi rotulado como Neoexpressionismo. Colecionadores, por exemplo, que acharam que tinham perdido a oportunidade de adquirir arte nos anos cinquenta, na época em que a escola de Nova York foi despejando obra-prima atrás de obra-prima, não quiseram perder a oportunidade de adquirir um exemplar da nova arte para vê-la se valorizar monetariamente ao longo dos anos. Uma pintura com o mesmo pigmento pesado, grande, com pinceladas visíveis, e além de tudo figurativa! As pinturas combinavam com os espaços enormes dos lofts que definiam uma nova visão da vida urbana, do tipo de lofts que artistas tomaram de fábricas quando o mundo da arte colonizou SoHo ao longo dos anos 1970. As ruas de SoHo ficavam lotadas nos vernissages de figuras como Julian Schnabel e David Salle. E o estilo parecia internacional — a exposição inaugural do redesenhado Museu de Arte Moderna [MoMa] em 1984 fez com que o Neoexpressionismo parecesse um fenômeno mundial. Foi um momento de transformação institucional no mundo da arte, como mostraram duas edições recentes da ArtForum dedicadas aos anos 80. O dinheiro fluía no mundo da arte e artistas começaram a viver como príncipes soberanos, frequentando os melhores restaurantes, cruzando o mundo, com ateliês em espaços grandes o suficiente para abrigar uma força de trabalho considerável quando tinham sido fábricas. O rótulo de Neoexpressionista disfarçava profundas divergências, é claro. O estilo teve causas políticas na Alemanha sem correspondências em Nova York. Os artistas alemães deliberadamente pintavam pessimamente na esperança de frustrar o mercado, mas apesar do fato de ser ruim, a REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 1 P. 82-98 JAN./JUN. 2013. ARTHUR C. DANTO – Crítica de arte após o fim da arte 96 “Bad Painting” foi colecionada e estimada por sua originalidade. Nos Estados Unidos, a ideia de qualidade era de qualquer modo considerada politicamente incorreta e inaceitavelmente elitista. Os principais teóricos da época, escrevendo majoritariamente, mas não exclusivamente, para a revista October, defendiam que a pintura estava morta, em grande parte porque se acreditava que a mesma sociedade que a patrocinou — o “capitalismo tardio” — estivesse no seu último suspiro, a caminho de ser substituída por uma nova sociedade socialista, cuja arte seria monótona o suficiente para ser aceitável à estética maoista, na qual nenhum daqueles autores poderia viver por cinco minutos que fossem. Embora eu acreditasse que a arte tinha chegado a um fim, eu não acreditava que a pintura estivesse morta. Eu apenas percebi que a nova cultura da pintura do mundo não era um momento do desdobramento da história da arte, já que para mim essa estrutura da história tinha se esgotado. Estávamos vivendo, depois me dei conta, numa situação de fim da arte que era profundamente pluralista. Naturalmente, a pintura era esperada em tal situação. Ela estava profundamente enraizada na nossa ideia de arte para ficar fora de cena. A pintura fora fortemente contestada na década de 1970, em grande parte por razões ideológicas. Na psicologia associacionista da política radical, a pintura tinha sido identificada com o homem masculino branco, o colonialismo e tudo o que é ruim. E no esforço de limpar do discurso da arte conceitos como os de obra-prima, gênio e até mesmo o de talento como inaceitavelmente elitistas, a pintura foi alvo de muitos ressentimentos para continuar sendo aceita como o meio [medium] definidor da arte. Mas não havia razões inerentes ao conceito de arte para que a pintura deixasse de existir, e se os artistas estavam preparados para enfrentar o fogo da crítica radical, não existia nada que os impedisse de pintar, e havia grandes negócios para incentivá-los — tudo aquilo que os radicais entendiam ser repugnante: dinheiro, aquisição de acervos, o orgulho de ser proprietário, o mercado de arte. O fato de estas forças subverterem até a Bad Painting da Alemanha é uma evidência do quão poderosas elas são. Não obstante essas considerações, o Neoexpressionismo não durou até a segunda metade da década de 1980. Em vez disso, os artistas começaram a trabalhar com a ideia do fim da arte, como eu tinha formulado, começaram a definir sua consciência de fazer arte no mundo contemporâneo. Isso obviamente não significa, de modo algum, que eu era responsável pelas coisas estarem acontecendo desse modo. Meu texto sobre o fim da arte, embora me tenha dado certa fama, não foi muito lido. Não foi um texto influente, REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 1 P. 82-98 JAN./JUN. 2013. ARTHUR C. DANTO – Crítica de arte após o fim da arte 97 de maneira alguma. O que eu tinha feito é o que Hegel disse que os filósofos fazem idealmente. Somos todos filhos de nossos tempos, ele escreve, mas é tarefa dos filósofos apreender seus tempos enquanto pensamento. Acredito que é isto o que fiz em “O fim da arte”. O que eu não esperava era ver que o que eu tinha entendido como pensamento tornara-se tão palpável na maneira como a arte começara a ser praticada, quando a estrutura profunda que eu tinha intuído começou a modular a estrutura superficial — não porque eu tinha intuído isso, mas porque ela tinha finalmente emergido na consciência geral. Era essa arte criada nos termos dessa consciência que eu enfrentei como um crítico de arte. Minha prática como crítico foi a de me dirigir à arte depois do fim da arte do mesmo modo como Hegel dirigiu-se à arte antes do fim da arte — procurando o sentido da arte e, em seguida, determinando como este significado se incorpora no objeto. Da perspectiva dessa prática, escrever sobre Leonardo ou Artemisia Gentileschi não é diferente de escrever sobre Gerhard Richter ou Judy Chicago. Toda arte é arte conceitual (com c minúsculo) e sempre foi. Mesmo naquela Idade de Ouro que Hegel sentimentalizou tinha de haver um discurso que se assemelhasse exatamente ao que ele entendia como crítica de arte. Esse teria sido o discurso dos próprios artistas, que precisavam ser capazes de discutir o que eles faziam em referência ao efeito que eles pretendiam que sua arte tivesse. O que falta na discussão de Hegel é a concepção de arte feita por artistas com certos propósitos em vista. O crítico ocupa hoje uma dupla perspectiva, a do artista e a do espectador. O crítico é aquele que tem de recuperar qual efeito a arte tem sobre o espectador — qual significado o artista quis trazer — e, em seguida, como este significado deve ser lido no objeto no qual ele foi incorporado. Eu vejo a minha tarefa como mediação entre o artista e o espectador, ajudando os espectadores a apreender o que foi intencionado. Pode ter havido tempos em que críticos não precisavam interpretar a arte para os espectadores, mas da maneira como a história da arte se desenvolveu o crítico é cada vez mais requisitado a explicar ao espectador o que está sendo visto. Nós temos que tratar a arte de hoje à maneira que Hegel tratava a arte do passado, quando o artista e espectador constituíam — pelo menos idealmente — uma comunidade real. O que o fim da arte significa é somente que estamos, finalmente, conscientes dessa verdade. REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 1 P. 82-98 JAN./JUN. 2013.