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1 14 Territórios do Poema Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900 2 Territórios do Poema ISSN 2525-7900 volume 7 | número 14 | jul.-dez./2022 Belo Horizonte - MG - Brasil Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900 EXPEDIENTE Organização deste número Mariana Pereira Guida Roberto Bezerra de Menezes Silvana Maria Pessôa de Oliveira Conselho Editorial Erick Gontijo Costa (CEFET-MG) Patrícia Chanely Silva Ricarte (UFMG) Raquel dos Santos Madanêlo Souza (UFMG) Roberto Bezerra de Menezes (UFMG) Silvana Maria Pessôa de Oliveira (UFMG) Valéria Soares Coelho (UFMG) Revisão Mariana Pereira Guida Roberto Bezerra de Menezes Silvana Maria Pessôa de Oliveira Projeto Gráfico e Diagramação Roberto Bezerra de Menezes Capa: a partir da obra La Bruja, de Cildo Meireles. Edição Centro de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais Avenida Antônio Carlos, 6627 – Sala 3049, CEP: 31270-910 – Belo Horizonte, MG (31) 3409-5134 jmitraudpessoa@gmail.com Polo de Pesquisa em Poesia Portuguesa Moderna e Contemporânea polopesquisapoesia@gmail.com ISSN 2525-7900 Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900 3 4 Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900 SUMÁRIO 8 Mariana Pereira Guida, Roberto Bezerra de Menezes, Silvana Pessôa de Oliveira Apresentação POESIA & FILOSOFIA 17 Erick Gontijo Costa Um estremecimento, ainda: a palavra començante entre poemas portugueses 35 Anna Silva Vitorino Nemésio e Jacques Derrida: diálogos zoopoéticos entre O bicho harmonioso e O animal que logo sou 51 Cristhiane R. Malaquias, Gustavo H. Rückert Desejo e comunicação: o afeto da alegria na poesia de Florbela Espanca PESSOA, PROBLEMA INFINITO 67 Marcelo Alves da Silva Álvaro de Campos negativo: uma poética belicosa 81 Sabrina de Farias Sales “O guardador de rebanhos” e “O regresso dos deuses”: Alberto Caeiro segundo 5 António Mora ENTRELAÇAMENTOS 95 Fadul Moura Anjos que caem: a profanação em Paula Rego e Maria Teresa Horta 109 Ingred Georgia de Sousa Silva Regressar à casa: leituras de Manuel António Pina e Sophia de Mello Breyner Andresen 123 Cíntia Paula Maciel Figurações da morte na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen e Hilda Hilst 143 Wendel Francis G. Silva O mar é maior nos Açores: a presença das ilhas em textos de Cecília Meireles e Sophia de Mello Breyner Andresen VOZES DO CONTEMPORÂNEO 167 Rodolpho Amaral “Os corpos pavoneavam”: a subjetividade como um conjunto de próteses na obra de Al Berto 183 Suelen Cristina Gomes da Silva Percursos do poema em Onde vais, Drama-Poesia?, de Maria Gabriela Llansol 197 Isabelle Ferreira Scalambrini Costa “Vale a pena escrever poemas”: notas sobre o livro Pardais, de Adília Lopes Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900 Álvaro de Campos negativo: uma poética belicosa Marcelo Alves da Silva Universidade do Estado do Rio de Janeiro Em 1950, Maria Helena da Rocha Pereira (1925-2017), professora portuguesa especialista em estudos clássicos, publica, em uma separata da revista Portvcale: revista ilustrada de cultura literária, científica e artística, do Porto, o primeiro estudo que correlaciona a poética dos heterônimos pessoanos com a poética da Antiguidade Clássica. Referimo67 nos ao artigo intitulado “Reflexos horacianos nas Odes de Correia Garção e de Fernando Pessoa (Ricardo Reis)”, republicado em Temas Clássicos na Poesia Portuguesa, em 1972. A investigadora buscava,no texto mencionado, demonstrar que, em primeiro lugar, o fundador, no século XVIII, da Arcádia Lusitânia, recepcionou o legado poético horaciano sem tecer significativas alterações, sem o enriquecer na língua portuguesa. Em segundo lugar, Pereira, motivada pela ideia de que Ricardo Reis revive o horacianismo no século XX, entende que este heterônimo, diferentemente de Corydon Erymantheo (pseudônimo de Correia Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900 68 Garção), consolidou Horácio (séc. I a.C.) em composições estritamente originais. A aproximação dialética entre Fernando Pessoa (Ricardo Reis) e Horácio, inaugurada pelo estudo de Maria Helena da Rocha Pereira, é levada a efeito por diversos trabalhos dedicados à poesia pessoana. Do ponto de vista textual, colabora para os variados exercícios desse teor o gênero praticado por Reis: a ode. Já do ponto de vista empírico, observemos, em princípio, que tanto João Gaspar Simões (1903-1987), em Vida e obra de Fernando Pessoa (1987 [1950]) quanto Alexandre E. Severino em Fernando Pessoa na África do Sul (1983 [1969]) comprovam através de documentos e de demais testemunhos que durante os anos iniciais de formação do poeta português, Fernando Pessoa era devotado à aprendizagem da língua latina, obtendo, através de sua dedicação, altas porcentagens, por exemplo, no School Higher Certificate Examination (1901). Durante a preparação para o ingresso à Universidade do Cabo da Boa Esperança, em 1904, Pessoa teve de ler A Guerra de Jugurta, de Salústio (séc. IV a.C.); e as Geórgicas, de Virgílio (séc. III a.C.). Ao vasculharmos a biblioteca particular do poeta, hoje digitalizada e hospedada no site da Casa Fernando Pessoa, notamos que a presença de obras literárias latinas, bem como de obras didáticas para a aprendizagem de latim, ao longo da vida de Fernando Pessoa, constituíram- Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900 se, decerto, como uma matriz para a formulação da poética de determinados heterônimos, cujos exemplares são Ricardo Reis e António Mora. Por um lado, está bem claro para nós – e para a comunidade de pesquisadores pessoanistas – que as obras literárias em língua latina tiveram papel importante na formação educacional e poética de Fernando Pessoa e de seus heterônimos, o que nos permite dizer, por exemplo, que a poesia latina configura-se, afinal, como seu lastro. Por outro lado – e é este aspecto que está no centro das motivações para esta investigação –, ainda não é cognoscível a correlação entre a poética de Fernando Pessoa e a poética grega arcaica, esta última representada por um conjunto de obras literárias gregas antigas que Pessoa, em suma, conheceu, leu, teve contato. Em artigo publicado no Jornal i, em 19 de novembro de 2009, e intitulado “Pessoa e a língua grega: o ‘murmurio humido das ondas’”, Patricio Ferrari, professor da Universidade de Rutgers, em Nova Iorque, informa que Fernando Pessoa havia se matriculado na cadeira de Grego no Curso Superior de Letras de Lisboa, em 1906. Richard Zenith, na sua mais recente biografia dedicada ao poeta, Pessoa: uma biografia (2022, p. 255), indica que embora esta inscrição tenha sido provisória, uma vez que Pessoa já havia considerado que a cadeira de Grego era demais para si, em verdade o poeta se interessou pela língua grega, Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900 69 70 a julgar pelas significativas marcações no seu exemplar de Prometeu Acorrentado (1884), de Ésquilo. Há também sublinhados e marginálias no exemplar de Grammaire Abregée de la Langue Grecque (1901), de Adolfe Kaegi. Além do já mencionado Ésquilo, uma conferência aprofundada na biblioteca particular também testemunha a presença de outros autores da Grécia arcaica, a saber, Apolônio de Rodes (séc. III a.C.), Eurípides (séc. V a.C.), Sófocles (séc. V a.C.), Píndaro (séc. V a.C.) e, sobretudo, Homero (séc. VIII a.C.). Quanto a este último, há, na biblioteca, cinco exemplares: Homer’s Odyssey (1911); The Odyssey of Homer (1915); L’Odyssée [s/d]; L’Iliade [s/d] e The Iliad of Homer (1912). Há, ainda, um estudo a respeito de Homero: La question d’Homère (1909), de A. Van Gennep e A. J. Reinach. Em Apreciações literárias de Fernando Pessoa (2013), Pauly Ellen Bothe, professora da Universidade Autônoma Benito Juárez de Oaxaca, no México, faz um levantamento dos manuscritos e dos datiloscritos pessoanos (muitos deles inéditos) com o propósito inicial de coligir as apreciações a respeito das literaturas em língua inglesa elaboradas por Fernando Pessoa. Ao longo da empreitada, contudo, a investigadora havia notado a necessidade de organizar o material de outra forma. Bothe, pois, estabeleceu 369 documentos de autoria de Fernando Pessoa, em que o poeta português trata de autores não somente de língua Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900 inglesa, mas também de língua portuguesa, francesa, alemã, italiana, espanhola, russa, latina e grega, sem nos esquecermos, ainda, do persa Omar Khayyam. No que tange, por exemplo, a Homero, Fernando Pessoa menciona-o em dez textos: três deles são dedicados a analisar a obra de António Botto (1897-1959), outros dois são dedicados a Luís de Camões (c. 1524-1580); os quatro restantes contemplam, respectivamente, John Milton (1608-1674), Luís Pedro, Camilo Pessanha (18671926) e William Shakespeare (1564-1616). Embora sejam textos que mencionem Homero, isto é, não são totalmente dedicados a analisar a obra homérica, tais testemunhos são suficientes para que consideremos, em alguma medida, que o autor da Ilíada e da Odisseia era um ponto de reflexão estético-poético luminoso para que Fernando Pessoa pudesse tecer certos comentários críticos tanto a respeito dos seus contemporâneos quanto dos seus predecessores espirituais. Citemos um deles1: “Our intellect is Greek, our sensuality modern. Our intellect is as old as Homer, in whose Unity we learn; our sensuality is of the same ages as our verses, which may be but a moment old” (PESSOA, 2013, p. 445). O excerto acima demonstra que Homero é, para Fernando Pessoa, uma instância crítica. Metonímia Todas as lições das citações dos textos de Fernando Pessoa e dos seus heterônimos seguem o que está estabelecido nas edições críticas, inclusive a preservação da ortografia do início do século XX. 1 Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900 71 72 do fazer poético em contingências históricas arcaicas, o autor das epopeias Ilíada e Odisseia, bem como de Hinos dedicados aos deuses do Olimpo elucida, junto com outros nomes do cânone ocidental – por exemplo, Shakespeare, Dante, Milton, Virgílio, bastante citados por Pessoa –, as categorias concernentes ao artista moderno, à poesia épica, às formas poéticas, em suma ao substrato que orienta a confecção artística por excelência, especialmente em ambientes sob a égide da modernidade. A despeito dos itens bibliográficos, pertencentes ao poeta português, e das menções a Homero, localizadas, como pudemos notar, em alguns testemunhos textuais coligidos por Pauly Ellen Bothe, a bibliografia passiva do poeta nunca deu a devida atenção às possíveis associações entre a poesia de Homero e a poesia do autor de “Cancioneiro”2. Como forma de superar tal lapso, convém, pois, olhar com atenção um texto classificado como “Maybe Reis”, em que a referência a Homero é bastante sugestiva: R[icardo] R[eis]? Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero. A exceção é, neste caso, um item bibliográfico registrado por José Blanco na Pessoana – Bibliografia passiva, selectiva e temática (2008): o artigo do romancista francês Michel Host (1937-2021) publicado no Le Quotidien Parisien em 1988. Em “L’ocean Pessoa”, o articulista defende que a poesia pessoana desenvolve melhor as mitologias deste século; e que no coração do pensamento poético de Fernando Pessoa instauram-se novas ilíadas e odisseias. 2 Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900 A novidade, em si mesma, nada significa, se não houver nella uma relação com o que a precedeu. Nem, propriamente, ha novidade sem que haja essa relação. Saibamos distinguir o novo do extranho – o que, conhecendo o conhecido, o transforma e varia, e o que apparece de fóra, sem conhecimento de coisa nenhuma. Entre os escriptores que descendem com novidade da velha stirpe e os que apparecem por novos por pertencer a uma stirpe incognita há a mesma differença que ha entre o homem que nos dá uma sensação de novidade por phrases novas que diz o que nos dá uma sensação de novidade, por, fallando mal nossa lingua, nos dizer estropiadamente qualquer phrase d’ella (PESSOA, 2016, p. 349). Se pudéssemos sintetizar as palavras de Reis (?), duas são as proposições negociadas por este heterônimo: (1) fundamentalmente, Homero está em todo e em qualquer poema; (2) a novidade, no campo da arte, não prescinde da “velha stirpe”. As duas proposições são desdobramentos recíprocos. Afinal, Homero é a “velha stirpe” que, na defesa de Ricardo Reis, serpenteia a novidade (materializada, por fim, em um poema, um paradigma poético, uma obra de arte). Nesse sentido, Homero, no texto acima, é entendido como o teor poético que supera as especificidades arcaicas, pois habita, ocupa o novo, ao passo que o novo, sem esta reminisciência de caráter transformador (homérica, por excelência), está fadado a caducar, a estropiar-se. Fernando Pessoa é herdeiro da Antiguidade Clássica. Essa herança, longe de ser passiva, não se restringe ao evidente registro latino, de que Ricardo Reis é a mais Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900 73 74 popular espécie; nem ao imaginário grego arcaico, de que os escritos de António Mora serão capazes de articular3. Nas nossas investigações, buscamos demonstrar que Homero (Ilíada) é fundador da poética de Álvaro de Campos ao mesmo tempo em que é fundado por essa mesma poética. Quais são, porém, as pistas que motivam as análises deste trabalho investigativo? A estética camposiana, no campo da produção poemática, sob o influxo do Sensacionismo, acolhe, com atenção, toda a miserabilidade humana, resultante de um fracasso da Filosofia da História que se quer progressista. Esta perspectiva prometeu, no seio da razão, a superação das contradições modernas. Campos, afinal, será o irônico estandarte a apontar, coetaneamente, o esforço para a aniquilação do outro nos ambientes da virada do século. Não devemos, porém, confundir esta proclamação como uma simples forma de exaltar a dinâmica daqueles tempos. Destaquemos o “irônico” nesse lugar: a poesia camposiana apropria-se da dor, da dor do outro em si mesmo, como maneira de lembrar o sofrimento de todos os homens, que, por fim, a poesia não será capaz de sanar. A poesia camposiana não cumprirá a redenção da alteridade. Já tivemos a oportunidade de estudar melhor os escritos ensaísticos de António Mora, representante do neopaganismo em modalidade prosaica. A leitura de Obras de António Mora (IN-CM, 2002), de O Regresso dos Deuses e outros escritos de António Mora (2013), bem como de nossos trabalhos – “Exercícios de Estética em Fernando Pessoa, 2022”; “Rivalidade ensaística: Álvaro de Campos e António Mora, 2022” – poderá fornecer recursos para compreender a posição e a matéria deste heterônimo. 3 Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900 No nosso entendimento, a miserabilidade humana é fruto das contingências socio-históricas, num feixe temporal, embora não se restrinja a elas. Será oportuno lembrar que na virada do século XIX para o século XX se forjou, em Portugal, o Republicanismo revolucionário, que derrubara, com uso de armas, a Monarquia, tanto em Lisboa quanto nos arredores norte e sul do Tejo. Esta nova configuração se deveu, em parte, a um arruinamento: os sistemas liberais oligárquicos começaram a ser minados por uma dinâmica de transformação capitalista, de teor econômico e de feição tecnológica. Como assinala o historiador Fernando Rosas em História da Primeira República Portuguesa (2009), naquele período, o capitalismo concorrencial dava lugar ao capitalismo financeiro, à Segunda Revolução Industrial e à época de um imperialismo das guerras mundiais, que redividiam o mundo sob o fundo de novas revoluções sociais. O investigador comenta que a crise dos sistemas liberais derivava de uma irrupção inédita das massas na política e de uma inquietação dos setores mais tradicionais da oligarquia, bem como de outros mais modernizantes. Na esteira dessas causas, há ainda a redescoberta do nacionalismo passadista aliada à busca por soluções autoritárias. Rosas ilustra a derrocada do sistema liberal a partir do que ele chama de pressão de “cima” e pressão de “baixo”, Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900 75 76 identificadas, respectivamente, pela intelectualidade republicana e pelo operário fabril. A pressão de “baixo” nos interessa porque representa as alterações que se sucedem no território português nos primeiros anos do século XX e que são, em alguma medida, dimensionadas pela poesia camposiana. Como nos lembra Rosas, a industrialização fazia crescer as cidades, especialmente Lisboa e Porto, e gerava as modernas indústrias de ponta, tais como a construção civil, os transportes urbanos, os telefones, o telégrafo, a iluminação pública, o gás da cidade. Nesse processo, a industrialização e a urbanização arrastavam um novo e diversificado setor de serviços complementares: bancos, seguradoras, empresas de importação/exportação, casas de comércio, escolas, alargamento e complexificação da burocracial estatal. A vertigem dessas transformações, sabemos, é capturada tanto pelas “cousas navais”, a partir da reiterada velocidade do volante expressa na “Ode Marítima”: E vós, ó cousas, meus velhos brinquedos de sonho! Componde fora de mim a minha vida interior! Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens, Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas, Galdropes, escotilhas, caldeiras, colectores, válvulas, Caí por mim dentro em montão, em monte, Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no [chão! Sêde vós o tesouro da minha avareza febril, Sêde vós os frutos da árvore da minha imaginação, Têma de cantos meus, sangue nas veias da minha [inteligência, Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética, Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900 Fornecei-me metáforas, imagens, literatura, Porque em real verdade, a sério, literalmente, Minhas sensações são um barco de quilha pró ar, Minha imaginação uma âncora meio submersa, Minha ânsia um remo partido, E a tessitura dos meus nervos uma rêde a secar na praia! Sôa no caso do rio um apito, só um. Treme já todo o chão do meu psiquismo. Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim (PESSOA, 2015, p. 78-79). A poética de Álvaro de Campos, afinal, é um traço na superfície dos primeiros anos do século XX português, compartilhando, com a Ilíada, de Homero, pontos de contato no que se refere ao esforço em revitalizar a condição humana quando domina o cenário do horror. Theodor Adorno (2008), ao tratar do conteúdo temático das obras artísticas, assinala que é este mesmo fundo que arrasta a arte para a sua queda. O crítico, porém, ao observar que as obras de arte se voltam para o seu declínio, não negligencia o latente caráter autônomo delas, posição social que as coloca antiteticamente ao status quo do contexto em que foram produzidas. Registrada por escrito por volta do século VIII a.C., a Ilíada é uma das primordiais manifestações da literatura ocidental. Seu escândalo nota-se quando verificamos que se trata de um canto de guerra. Afinal, quanto a esta natureza, isto é, a deliberada destruição entre os homens, devemos nos interrogar: por que a Ilíada é tão valorizada Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900 77 78 na república ocidental das letras? Por que os heróis da Ilíada são modelares, ainda que sejam provocadores e, simultaneamente, vítimas das próprias misérias bélicas? Por que não horroriza àqueles que leem a Ilíada que a obra é uma coletânea de violências perpetrada pelos deuses e pelos homens? Por que, nos trabalhos de crítica artística, ainda tomam a Ilíada como artefato histórico, para cumprir o desejo pela personalidade de Homero e pela Troia histórica? E por que não se lê a Ilíada como uma provocação perene, como uma espécie de denúncia da miserabilidade humana chancelada pelos deuses, isto é, pelas palavras mitográficas? Uma aparente resposta pode estar no contraste entre o tempo de fixação da Ilíada e a Grécia dos tempos homéricos. Marcel Detienne (1935-2019), tratando do estatuto da verdade, em Os mestres da verdade na Grécia Arcaica (1988) convida-nos a pensar, a partir dos poemas homéricos, a dualidade da poesia, uma vez que sua palavra parece celebrar, ao mesmo tempo, o feito humano e a história dos deuses. Este lógos a que se refere Marcel Detienne, porém, é a palavra que cumpre o destino dos homens, representados na Ilíada pelos guerreiros gregos e troianos. E, nesse sentido, tanto a obra poética de Campos quanto a Ilíada deslindarão, nos ambientes em que foram produzidas, a mesma questão: em face da força que mobiliza os homens na sua deliberada destruição, o lógos da obra poética cumpre as etapas da sua sina. Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900 Referências Bibliográficas ADORNO, T. Teoria estética. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2008. BLANCO, J. Pessoana: bibliografia passiva, selectiva e temática referida a 31 de Dezembro de 2004. Porto: Assírio & Alvim, 2008. 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