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Joice Andrade

As questões do multiculturalismo e da diferença tornaram-se, nos últimos anos, centrais na teoria educacional crítica e até mesmo nas pedagogias oficiais. Mesmo que tratadas de forma marginal, como "temas transversais", essas questões são... more
As questões do multiculturalismo e da diferença tornaram-se, nos últimos anos, centrais na teoria educacional crítica e até mesmo nas pedagogias oficiais. Mesmo que tratadas de forma marginal, como "temas transversais", essas questões são reconhecidas, inclusive pelo oficialismo, como legítimas questões de conhecimento. O que causa estranheza nessas discussões é, entretanto, a ausência de uma teoria da identidade e da diferença. Em geral, o chamado "multiculturalismo" apóia-se em um vago e benevolente apelo à tolerância e ao respeito para com a diversidade e a diferença. É particularmente problemática, nessas perspectivas, a idéia de diversidade. Parece difícil que uma perspectiva que se limita a proclamar a existência da diversidade possa servir de base para uma pedagogia que coloque no seu centro a crítica política da identidade e da diferença. Na perspectiva da diversidade, a diferença e a identidade tendem a ser naturalizadas, cristalizadas, essencializadas. São tomadas como dados ou fatos da vida social diante dos quais se deve tomar posição. Em geral, a posição socialmente aceita e pedagogicamente recomendada é de respeito e tolerância para com a diversidade e a diferença. Mas será que as questões da identidade e da diferença se esgotam nessa posição liberal? E, sobretudo: essa perspectiva é suficiente para servir de base para uma pedagogia crítica e questionadora? Não deveríamos, antes de mais nada, ter uma teoria sobre a produção da identidade e da diferença? Quais as implicações políticas de conceitos como diferença, identidade, diversidade, alteridade? O que está em jogo na identidade? Como se configuraria uma pedagogia e um currículo que estivessem centrados não na diversidade, mas na diferença, concebida como processo, uma pedagogia e um currículo que não se limitassem a celebrar a identidade e a diferença, mas que buscassem problematizá-las? É para questões como essas que se volta o presente ensaio. Identidade e diferença: aquilo que é e aquilo que não é Em uma primeira aproximação, parece ser fácil definir "identidade". A identidade é simplesmente aquilo que se é: "sou brasileiro", "sou negro", "sou heterossexual", "sou jovem", "sou homem". A identidade assim concebida parece ser uma positividade ("aquilo que sou"), uma característica independente, um "fato" autônomo. Nessa perspectiva, a identidade só tem como referência a si própria: ela é autocontida e auto-suficiente. Na mesma linha de raciocínio, também a diferença é concebida como uma entidade independente. Apenas, neste caso, em oposição à identidade, a diferença é aquilo que o outro é: "ela é italiana", "ela é branca", "ela é homossexual", "ela é velha", "ela é mulher". Da mesma forma que a identidade, a diferença é, nesta perspectiva, concebida como auto-referenciada, como algo que remete a si própria. A diferença, tal como a identidade, simplesmente existe. É fácil compreendel~ entretanto, que identidade e diferença estão em uma relação de estreita dependência. A forma afirmativa como expressamos a identidade tende a esconder essa relação. Quando digo "sou brasileiro" parece que estou fazendo referência a uma identidade que se esgota em si mesma. "Sou brasileiro"-ponto. Entretanto, eu só preciso fazer essa afirmação porque existem outros seres humanos que não são brasileiros. Em um mundo imaginário totalmente homogêneo, no qual todas as pessoas partilhassem a mesma identidade, as afirmações de identidade não fariam sentido. De certa forma, é exatamente isto que ocorre com nossa identidade de "humanos". É apenas em circunstâncias muito raras e especiais que precisamos afirmar que "somos humanos". A afirmação "sou brasileiro", na verdade, é parte de uma extensa cadeia de "negações", de expressões negativas de identidade, de diferenças. Por trás da afirmação "sou brasileiro" deve-ser ler: "não sou argentino", "não sou chinês", "não sou japonês" e assim por diante, numa cadeia, neste caso, quase interminável. Admitamos: ficaria muito complicado pronunciar todas essas frases negativas cada vez que eu quisesse fazer uma declaração sobre minha identidade. A gramática nos permite a simplificação de simplesmente dizer "sou brasileiro". Como ocorre em outros casos, a gramática ajuda, mas também esconde. Da mesma forma, as afirmações sobre diferença só fazem sentido se compreendidas em sua relação com as afirmações sobre a identidade. Dizer que "ela é chinesá' significa dizer que "ela não é argentiná', "ela não é japonesá' etc., incluindo a afim1ação de que "ela não é brasileira", isto é, que ela não é o que eu sou. As afim1ações sobre diferença também dependem de uma cadeia, em geral oculta, de declarações negativas sobre (outras) identidades. Assim como a identidade depende da diferença, a diferença depende da identidade. Identidade e diferença são, pois, inseparáveis. Em geral, consideramos a diferença como um produto derivado da identidade. Nesta perspectiva, a identidade é a referência, é o ponto original relativamente ao qual se define a diferença. Isto reflete a tendência a tomar aquilo que somos como sendo a norma pela qual descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos. Por sua vez, na perspectiva que venho tentando desenvolver, identidade e diferença são vistas como mutuamente determinadas. Numa visão mais radical, entretanto, seria possível dizer que, contrariamente à primeira perspectiva, é a diferença que vem em primeiro lugar. Para isso seria preciso considerar a diferença não simplesmente como resultado de um processo, mas como O
Tlradentes, 392-para a Editora Céi up Pará-Trav. Rui Barbosa, 726-6605.-260-Belém-PA Fone: (091) 225-0355 / Fax: 241-3184 São Paulo-Alameda Campinas, 20-01404-000-São Paulo-Fone / Fax: (011) 288-2794 / 284-4263
Agradeço a oportunidade de participar mais uma vez num curso da Escola Paulista de Medicina com a temática de saúde indígena. Ao largo dos anos o Professor Baruzzi e sua equipe vêm realizando seminários de antropologia médica com o... more
Agradeço a oportunidade de participar mais uma vez num curso da Escola Paulista de Medicina com a temática de saúde indígena. Ao largo dos anos o Professor Baruzzi e sua equipe vêm realizando seminários de antropologia médica com o objetivo de orientar profissionais trabalhando com a saúde do índio. Em parte, os cursos têm se dedicado à problemática de como "atender ou tratar o índio" nos diversos contextos em que se encontram: nas regiões isoladas aonde o impacto do contato com a sociedade envolvente vem trazendo várias epidemias devastadoras; nas regiões com uma história de contato contínuo resultando numa degeneração geral das condições sanitárias; e finalmente nas áreas urbanas onde casos sérios de doença são tratados nos hospitais ou nas casas do índio. Podemos dizer que estas preocupações ficam dentro de questões epidemiológicas ou de prestações de serviços, onde o papel do antropólogo seria de ajudar, mediar e traduzir o encontro de membros de culturas diferentes. Porém, nos últimos anos tenho observado um esforço destes cursos para abrir um espaço de diálogo entre antropologia e medicina. Neste espírito de dialogar, quero abordar hoje alguns conceitos mais atuais circulando entre os antropólogos trabalhando na área de saúde. Repensando a relação saúde/cultura, há uma proposta de um modelo alternativo ao da biomedicina. [2] A biomedicina é relativizada, vista como um modelo médico entre vários outros modelos, seja este dos chineses, hindu, ou índios. O enfoque principal da biomedicina, em seu sensu strito, é a biologia humana, a fisiologia ou a patofisiologia, onde a doença é vista como um processo biológico universal. As novas discussões em antropologia questionam a dicotomia cartesiana presente no modelo biomédico e concebem saúde e doença como processos psicobiológicos e socioculturais. Nesta abordagem a doença não é vista como um processo puramente biológico/corporal, mas como o resultado do contexto cultural e a experiência subjetiva de aflição. Para aprofundar esta nova discussão na antropologia, é necessário entender a cultura como dinâmica e heterogênea e a doença como processo e como experiência. Após uma resenha crítica do uso do conceito de cultura e a visão de medicina primitiva entre os pioneiros da antropologia médica, pretendo examinar a relação saúde/doença dentro desta nova ótica para levantar algumas implicações que esta visão tem para a noção de saúde e para a prática clínica em populações indígenas. Histórico da Antropologia Médica: A relação íntima entre saúde e cultura não é um tema novo na Antropologia. O primeiro antropólogo de renome a analisar a medicina como categoria de pesquisa nas culturas não-européias, chamadas "primitivas" naquela época, foi W.H.R. Rivers (1979, original 1924) [3]. Com formação em medicina, ele se preocupava com a caracterização ou a classificação da medicina primitiva segundo categorias de pensamento, identificado na época como pensamento mágico, religioso, ou naturalista. Estabelecidas por Frazer, Tylor, e outros, estas categorias foram comuns nos vários debates sobre o pensamento primitivo. Rivers empregou-as para classificar as crenças sobre etiologia das outras culturas, afirmando que "Partindo da etiologia, nos encontraremos guiados naturalmente ao diagnóstico e tratamento, como é o caso no nosso próprio sistema de medicina" [4] (Rivers 1979: 7). Assim, Rivers se preocupava em identificar as medicinas primitivas como manifestações de modos de pensamento lógico no qual o tratamento da doença logicamente seguiria a identificação da causa (1979: 29, 51). A medicina mágica seria um sistema de crenças
DOS CANIBAIS Michel de Montaigne (1533-1592) Capítulo XXXI do Livro 1 dos Ensaios Tradução de J. Brito Broca e Wilson Lousada Fonte: Clássicos Jackson Quando o rei Pirro passou à Itália depois de ter reconhecido a organização do exército... more
DOS CANIBAIS Michel de Montaigne (1533-1592) Capítulo XXXI do Livro 1 dos Ensaios Tradução de J. Brito Broca e Wilson Lousada Fonte: Clássicos Jackson Quando o rei Pirro passou à Itália depois de ter reconhecido a organização do exército com que os Romanos iam defrontar o seu: "Não sei, disse, que género de bárbaros são estes (pois assim chamavam os Gregos a todas as nações estrangeiras) mas a disposição do exército que vejo não é de forma alguma bárbara". O mesmo disseram os Gregos daqueles que Flamínio introduziu no seu país, bem como Filipe ao contemplar do alto de um cerro, a ordem e a distribuição do acampamento romano, em seu reino, sob Públio Sulpício Galba. Isto prova que nos devemos guardar das opiniões vulgares e julgar pelo caminho da razão e não pela voz geral. Tive muito tempo comigo um homem que vivera dez ou doze anos nesse outro mundo que foi descoberto no nosso século, num lugar onde Villegaignon tocou terra, que denominou a França Antárctica. Esta descoberta de um país infinito parece ser coisa de muita consideração. Ignoro se, no futuro, outras se farão, visto que tantas pessoas que valem mais do que nós se têm enganado nisto. Receio que tenhamos os olhos maiores que o ventre, e mais curiosidade que capacidade. Abarcamos tudo, mas abraçamos apenas vento. Platão aprésenta-nos Solon contando haver sido informado pelos sacerdotes da cidade de Sais, no Egito, que, em tempos remotos de antes do dilúvio, existia uma grande ilha chamada Atlântida, à entrada do estreito de Gibraltar, que continha mais território que a Africa e a Ásia juntas; os reis daquele país, que não possuíam apenas essa ilha, mas cujos domínios por terra firme se estendiam tanto para o interior que eram senhores da largura da África até ao Egipto, e da longitude da Europa até à Toscana, quiseram chegar à Ásia e subjugar as nações banhadas pelo Mediterrâneo até ao golfo do Mar Negro: para isso, atravessaram as Espanhas, a Gália e Itália, chegando até à Grécia, onde foram detidos pelos Atenienses, mas que, pouco tempo depois, os mesmos Atenienses, a própria ilha e os seus habitantes foram tragados pelo dilúvio. É muito verossímil que essa extrema devastação das águas tenha produzido estranhas alterações nas diferentes regiões da terra, e diz-se que o mar separou a Sicília da Itália: Hoec loca, vi quondam et vasta convulsa ruina, Dissiluisse ferunt, cum protinus utráque tellus Una foret; 1 Chipre da Síria, a Ilha de Negroponto 2 da terra firme de Beoce 3 ; e, por outra parte, juntou terras que estavam separadas, cobrindo de limo e de areia os fossos intermédios, sterilísque diu palus aptáque remis Vicinas urbes alit, et grave sentit aratrum. 4 Mas não é muito provável que essa ilha fosse o mundo novo que acabamos de descobrir; tocava quase com a Espanha e seria uma convulsão incrível que a inundação a fizesse retroceder tanto, estando a mais de mil e duzentas léguas de distância; além disso, as navegações modernas já demonstraram que não se trata de uma ilha, mas de terra firme formando um continente com a Índia oriental de um lado e os territórios que ficam sob os dois pólos, do outro; ou que, se alguma separação há, o estreito ou intervalo é tão pequeno que não merece o nome de ilha. Parece que há movimentos, uns naturais e outros febris, nesses grandes corpos como no corpo humano. Quando considero a pressão que o meu rio da Dordonha faz actualmente sobre a margem direita do seu curso, e que, em vinte anos, comeu tanto terreno que chegou a absorver os alicerces de alguns edifícios, avalio bem quão extraordinária foi aquela comoção, que, a continuar assim, ou a aumentar de intensidade, modificaria a configuração do mundo. Mas esses acidentes tanto se produzem numa direcção como em outra, como ainda se contêm. Não falo das inundações repentinas, cujas causas conhecemos. Em Medoc, ao longo do mar, meu irmão, o Senhor de Arsac, viu uma de suas terras engulida pelas areias vomitadas pelo mar; ainda se vêem os restos de algumas construções; suas rendas e domí nios são hoje miseráveis terras de pasto. Dizem os seus habitantes que, de algum tempo a esta parte, o mar tem avançado tanto que já perderam quatro léguas de ter reno. As areias formam as vanguardas; e vêem-se grandes montões de areia movediça, a meia légua do mar, que se vão acumulando sobre a região. Outro testemunho da antiguidade, que alguns pretendem relacionar com esta descoberta, vamos encontrá-lo em Aristóteles, se é que esse livrinho das raras maravilhas a ele se deve. Conta-se nessa obra que alguns Cartagineses,