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Saúde Indígena: Desafios Antropológicos

Este artigo analisa como profissionais de saúde reavaliam suas concepções sobre saúde e doença ao trabalhar em contextos indígenas em Pernambuco, Brasil. A pesquisa etnográfica observou profissionais de Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena e mostrou que suas experiências os afetam, provocando mudanças em como pensam e agem na saúde indígena, em um contexto de interação entre medicinas.
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Saúde Indígena: Desafios Antropológicos

Este artigo analisa como profissionais de saúde reavaliam suas concepções sobre saúde e doença ao trabalhar em contextos indígenas em Pernambuco, Brasil. A pesquisa etnográfica observou profissionais de Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena e mostrou que suas experiências os afetam, provocando mudanças em como pensam e agem na saúde indígena, em um contexto de interação entre medicinas.
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TEORIA E CULTURA

“Eu vou escutar esse povo!”: uma abordagem


antropológica sobre experiências de profissionais de
saúde em contextos indígenas, em Pernambuco, Brasil
Flávia Maria Martins Vieira1

Resumo

Neste artigo busca-se compreender como profissionais de saúde reelaboram suas concepções do
processo saúde e doença a partir do trabalho em contextos indígenas. O exercício analítico parte
de um entendimento sobre as experiências cotidianas dos profissionais de saúde. Essas experiências
são percebidas a partir de contextos de intermedicalidade onde se apresentam complexas relações
entre medicinas indígenas e biomedicina. Os dados utilizados são fruto de pesquisa etnográfica
desenvolvida com profissionais de saúde de Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) do
Distrito Sanitário Especial Indígena de Pernambuco (DSEI PE). Realizou-se observações participantes,
acompanhamento do trabalho das EMSI e entrevistas semi-estruturadas com os profissionais de
saúde. A partir dos conceitos de intermedicalidade, competência cultural e reflexividade, analisa-
se narrativas de interlocutores a respeito de situações de dilemas e limites vividas pelos mesmos no
contexto de atendimento aos povos indígenas. Destaca-se que os processos sobre como conduzir
tratamentos e encaminhamentos das pessoas atendidas também passam por negociações dos
profissionais de saúde com suas próprias concepções, formações e identidades. As situações relatadas
pelos interlocutores da pesquisa os afetam e provocam reafirmações, mudanças, hesitações sobre as
suas formas de pensar/agir na saúde indígena.

Palavras-chave: profissionais de saúde; antropologia da saúde; intermedicalidade

“I’m going to listen to these people”!: an anthropological approach about health professionals
experiences in indigenous context, at Pernambuco, Brazil.

Abstract

This essay discusses how health professionals re-elaborate their conceptions of health and illness
through their work in indigenous contexts. The analysis starts from an understanding of the daily
experiences of health professionals. These experiences are perceived from contexts of intermedicality
where there are complex relationships between indigenous medicines and biomedicine. The data
resulted from the ethnographic research developed with health professionals of the Multidisciplinary
Indigenous Health Teams (EMSI) of the Pernambuco Indigenous Special Sanitary District (DSEI
PE). The data were collected by participant and observations, semi-structured interviews with health
professionals and following the routine of EMSI work. Based on the concepts of intermedicality,
cultural competence and reflexivity, narratives of interlocutors are analyzed regarding situations of

1 Mestre em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco


(UFPE)

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dilemmas and limits lived by them in the context cotidianas de profissionais de saúde que atuam
TEORIA E CULTURA

of working with indigenous peoples. It should cotidianamente no atendimento a populações


be stressed that the dialogue on how to conduct indígenas. Entendo que conhecer de forma
treatments and referrals of the patients also go aproximada essas experiências pode trazer nova
through negotiations of health professionals luz para o debate antropológico sobre diferentes
with their own conceptions, formations and medicinas e concepções sobre processos de saúde
identities. The situations reported by the e doença.
research interlocutors affect them and provoke Especificamente para este artigo, apresento
reassertions, changes, hesitations about their dados e considerações que compuseram um dos
ways of thinking / acting on indigenous health. capítulos de minha dissertação de mestrado em
antropologia2. O trabalho de campo ocorreu
Keywords: health professionals; anthropology of ao longo dos anos de 2017 e 2018 a partir de
health; intermedicality. entrevistas e principalmente do acompanhamento
da rotina de profissionais que compõem Equipes
Introdução Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) de
postos de saúde indígena e polos base da região
Através de uma abordagem antropológica do sertão pernambucano. No presente artigo não
e de um diálogo muito próximo ao campo da serão apresentados minuciosamente os percursos
Saúde Coletiva, busco analisar neste artigo metodológicos escolhidos para a pesquisa de
como profissionais de saúde reelaboram suas mestrado, no entanto, devo salientar, que uma
concepções do processo saúde e doença a partir diversidade de técnicas de trabalho de campo
do trabalho cotidiano em contextos indígenas. foram utilizadas: observações participantes;
Podemos afirmar que existem vários trabalhos entrevistas qualitativas semiestruturadas; uso
no campo da Antropologia que se dedicaram intensivo do diário de campo; elaboração de
ao estudo das medicinas indígenas e à análise mapas georrefenciados de percursos e localidades
de como os povos indígenas compreendem do trabalho de campo; quadro esquemático
as noções de saúde, doença, morte e cura com informações sobre os lugares visitados, as
(BUCHILLET, 1991; LANGDON e GARNELO, respectivas distâncias em quilômetros e pessoas a
2004; FERREIRA e OSÓRIO, 2007; LANGDON serem contatadas; desenhos em diários de campo
e CARDOSO, 2015). No entanto, dentro do sobre os postos de saúde; quadro esquemático
campo da Antropologia da Saúde e da Etnologia elaborado para de análise de dados e auxílio na
Indígena merecem ainda serem exploradas as procura por padrões e conexões entre anotações
compreensões dos profissionais de saúde que dos diários de campo e entrevistas. Todas essas
também são atores no contexto de atenção à saúde técnicas foram cruciais para o desenvolvimento
dos povos indígenas no Brasil. Inspirando-me em e desfecho da pesquisa de dissertação e também
referências como Pereira (2012), Fóller (2004) e são parte do conteúdo que compõe este artigo.
Langdon (2004), proponho um descolamento do Seguindo leitura de Pereira (2012), afirmo
olhar antropológico em direção às experiências que profissionais de saúde advindos de uma

2 Do ponto de vista ético, todos os dados aqui apresentados fazem parte de pesquisa submetida e aprovada pelo
Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco (CEP UFPE/ CAAE: 90732818.4.0000.5208
/ Número do parecer: 2.776.660. e pelo Conselho Distrital de Saúde Indígena de Pernambuco (CONDISI PE). Após
todas as autorizações institucionais necessárias, realizei as entrevistas com profissionais de saúde do Distrito Sanitário
Especial Indígena de Pernambuco (DSEI-PE) e também acompanhei suas rotinas de trabalho. Respeitando os Termos de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLEs), utilizei nomes fictícios para me referir a todos os interlocutores da pesquisa.
Afirmo categoricamente que não foi propósito deste trabalho fazer qualquer tipo de avaliação moral sobre o trabalho dos
profissionais, suas rotinas e modos de agir. Também não competiu a este trabalho uma avaliação sobre a PNASPI ou o
sobre o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do Sistema Único de Saúde (SASI-SUS).

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formação baseada no modelo biomédico passam dos povos indígenas, mas no âmbito da saúde

TEORIA E CULTURA
a questionar suas próprias concepções sobre pública no Brasil, cada vez mais o seu modus
processos de saúde e doença a partir de situações operandi vem sendo influenciado por uma
vividas no cotidiano de atendimento em contextos lógica e racionalidade advindas de um modelo
indígenas. Ao mesmo tempo em que esses biomédico hegemônico e da rede privada de saúde
profissionais percebem e vivenciam limites em (PEREIRA, 2008; FISCHBORN e CADONÁ,
suas atuações, eles também são afetados por elas 2018). Essas questões podem trazer implicações
(PEREIRA, 2012). A partir do trabalho de campo para o trabalho cotidiano dos profissionais de
realizado em Pernambuco, tornou-se necessário saúde, especialmente em contextos indígenas
complexificar o lugar e experiências desses onde se pretende a construção de uma atenção
profissionais de saúde, de forma a me afastar de à saúde que se intitula diferenciada (CARDOSO,
uma perspectiva dicotomizada (profissionais X 2015).
indígenas; medicinas indígenas X biomedicina). Apresento neste artigo relatos de experiências
Haja vista, por exemplo, que, dentro das próprias de alguns profissionais buscando reunir situações
EMSI também haverá indígenas (médicos, específicas em que eles apontam suas sensibilidades
enfermeiros, técnicos de enfermagem, Agentes e dilemas em casos vivenciados no atendimento
Indígenas de Saúde). às populações indígenas. A partir dos conceitos
Inspirando-me em Maj-Lis Fóller (2004), de reflexividade (MINAYO e GUERRIERO,
utilizo a categoria intermedicalidade para entender 2014) e competência cultural (Kleinman et al.
os contextos de trabalho dos profissionais de (1978) apud LANGDON, 2005, p. 129), busco
saúde de modo a perceber os diferentes sujeitos analisar algumas narrativas dos profissionais
e medicinas em suas negociações e relações no sobre reelaborações de suas compreensões sobre
que se refere aos processos de saúde e doença. os processos de saúde e doença. Ainda, a partir
Compreendo, ainda, que as relações entre as da categoria de intermedicalidade, trago alguns
medicinas indígenas e a biomedicina mantêm apontamentos sobre experiências de indígenas
relações históricas e dinâmicas com encontros, que são profissionais de saúde das EMSI.
equívocos, diálogos e relações de poder (DIEHL
e RECH, 2004, FÓLLER, 2004). Para inspirar o olhar: complexificando
Umas das políticas que lança diretrizes para experiências de profissionais de saúde
o trabalho em saúde com populações indígenas
é a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Segundo a antropóloga Cristina Dias da Silva
Povos Indígenas (PNASPI). Lançada em 2002, (2014), a prática dos profissionais de saúde em
a PNASPI propõe que os modelos e práticas relação aos povos indígenas vem se mostrando
biomédicas de saúde devem ser articulados com ao mesmo tempo contraditória e plena de
as medicinas indígenas (BRASIL, 2002). No significados que cambiam contextualmente
entanto, esta ainda seria uma tarefa desafiadora (DIAS DA SILVA, 2014, p. 206). Os profissionais
na realidade e prática dos profissionais que de saúde devem ser encarados como atores ativos
atendem às populações indígenas (CARDOSO, nos contextos de saúde indígena (PEREIRA,
2015). 2012). Nos relatos reunidos por PEREIRA
As experiências dos profissionais de saúde (2012), médicos (as) e enfermeiros (as) afirmam
estão circunscritas pelo histórico de relações que que também experienciam dilemas e dificuldades
o Estado brasileiro assumiu com as populações em seu cotidiano de atendimento. Esses mesmos
indígenas. A distribuição e uso de medicamentos profissionais ora se sentem como opressores, ora
entre populações indígenas fez parte, por sentem que nem existem (PEREIRA, 2012). Na
exemplo, do empreendimento colonial no Brasil perspectiva de Pereira (2012), estes profissionais,
(DIEHL e RECH, 2004). Deve-se ter em vista que por vezes são enclausurados em análises
ainda que, não só no âmbito da atenção à saúde que os colocam como “mocinhos” ou “vilões”,

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possuem, sim, críticas a respeito da própria e GUERRIERO, 2014; PEREIRA, 2012; TRAD,
TEORIA E CULTURA

biomedicina e sua objetificação da doença. 2012). Uso aqui o termo reflexividade porque,
Os interlocutores de Pereira (2012) se mesmo vindo de uma discussão de cunho
“recusavam a pensar suas atuações apenas como metodológico dentro da Antropologia e da
uma forma de operacionalização da reificação Saúde Coletiva (MINAYO e GUERRIERO, 2014;
da enfermidade” (PEREIRA, 2012, p. 513). TRAD, 2012), pode ser transposto para uma
As experiências de alteridade vividas pelos compreensão de experiências de profissionais de
profissionais no cotidiano mudaram as maneiras saúde, permitindo entender suas relações com
destes profissionais sentirem e atuarem em o campo empírico como um caminho de mão
campo. O fato de terem que lidar com outras dupla.
noções sobre saúde e doença, afetou (PEREIRA, Para Dias da Silva (2014, 2010) muito dos
2012) esses profissionais e a maneira de se casos vividos durante o seu trabalho de campo,
perceberem em suas atuações. Entretanto, suas realizado por ocasião da sua tese de doutorado
trajetórias de vida e formações profissionais (DIAS DA SILVA, 2010), “revelaram uma
implicariam em certas limitações para a prática pluralidade de ideias e valores na atuação dos
de trabalho em contextos indígenas. Pereira profissionais da biomedicina” (DIAS DA SILVA,
(2012) argumenta, portanto, ser necessário um 2014, p. 181). Se por um lado proponho-me a lançar
afastamento (por parte desses profissionais) de um olhar antropológico para as experiências
concepções biomédicas sobre saúde e doença cotidianas dos profissionais de saúde, por outro
para então poderem lidar com as situações me afasto de uma visão generalista sobre essas
apresentadas em seus cotidianos. experiências. As experiências etnográficas,
A partir de uma leitura de Maj-Lis Fóller entrevistas e observações que pude realizar em
(2004) e Pereira (2012), se torna terreno fértil o campo me direcionam a encarar o cotidiano
exercício de ultrapassar um debate dicotomizante e ações dos profissionais de saúde de forma a
e maniqueísta a respeito de experiências de percebê-las como dados ricos em pluralidade
profissionais de saúde e sobre as interações entre e complexidade. Essas experiências e situações
diferentes medicinas e/ou sistemas médicos. Por etnográficas não são homogêneas ou passíveis
mais que o “saber biomédico” (biomedicina) se de serem colocadas em “caixinhas fechadas” de
expresse também no “fazer biomédico” (prática classificação ou modelos.
cotidiana dos profissionais), as experiências Segundo, Maj-Lis Fóller (2004), as relações
destes profissionais não podem ser vistas de entre a biomedicina e as medicinas indígenas
forma generalizante (DIAS DA SILVA, 2014, não estão livres de relações de conflito, poder e
p.206). Torna-se interessante perceber uma equívocos entre os diversos sujeitos envolvidos.
polifonia (FÓLLER, 2004) em seus relatos e em Nesses encontros entre profissionais de saúde e
suas “posições” diante de uma proposta vista indígenas são criadas “zonas de contato” entre a
como desafiadora de articulação entre medicinas biomedicina e as medicinas indígenas. As “zonas
que encontramos na PNASPI. de contato” seriam os “encontros coloniais
Para uma análise antropológica sobre a entre povos que estavam separados histórica
questão a ser contemplada, é importante entender e geograficamente e passam a se relacionar de
a estrutura e o modelo da atenção à saúde indígena forma contínua, numa interação que envolve
agindo não como algo absoluto, sem resistências, coação, conflitos intratáveis e desigualdade
sem crises, sem dramas, sem reflexividade radical” (FÓLLER, 2004, p.132).
(MINAYO e GUERRIERO, 2014; TRAD, 2012). O conceito de intermedicalidade (FÓLLER,
Traçando uma analogia com o próprio trabalho 2004) é trazido para este artigo como uma
de antropólogos em campo, os profissionais categoria analítica e dialoga muito bem com uma
de saúde também são afetados pelo contexto compreensão de base antropológica a respeito
empírico que se encontram imersos (MINAYO do tema da saúde indígena e sua dinamicidade.

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Compreender os contextos de intermedicalidade com as narrativas dos pacientes. (LANGDON,

TEORIA E CULTURA
reitera a perspectiva da saúde e doença entendidas 2005, p.129).
como um processo. Tanto a biomedicina como
as medicinas indígenas devem ser entendidas No entanto, também deve ser pontuado que:
a partir de seus contextos socioculturais por mais que o exercício da escuta ou de uma
(LANGDON, 2004; LANGDON e WIIK, 2010). “competência cultural” seja fundamental para a
Nesse sentido, as interações entre biomedicina atuação dos profissionais em contextos indígenas
e medicinas indígenas não são entendidas aqui (LANGDON, 2005), como de fato colocá-los
como algo estático ou restrito, portanto, a certos em prática no cotidiano desses profissionais?
espaços, profissionais ou sujeitos. Mesmo não Como um exercício de reflexividade se dá nesse
perdendo de vista que essas interações estão contexto? Onde residiriam os limites e zonas de
entrecruzadas por questões de poder, conflito opacidade na compreensão dos profissionais de
e oposições entre a biomedicina e as medicinas saúde a respeito das medicinas indígenas e da
indígenas, elas possuem dinamicidade nas biomedicina?
relações que estabelecem. Buscando ir além da apresentação e
Além disso, não se trata aqui, como problematização dos conceitos que atravessam
afirma Dias da Silva (2014) de “classificar” os este artigo, a partir do tópico a seguir, reúno
profissionais como “pessoas insensíveis” a outras narrativas de diferentes interlocutores a respeito
culturas e consequentemente a outras medicinas de situações de dilemas, vitórias e limites vividos
e formas de se compreender os processos de saúde pelos mesmos no contexto de atendimento aos
e doença. Trata-se de considerar que, em suas povos indígenas em Pernambuco.
próprias formações profissionais, não se faz regra
o aprendizado sobre outros “modelos”, outras Nivaldo: exercício da “escuta”
formas de se entender concepções de morte,
vida, saúde, doença. Essa ausência do tema em A frase-título desse artigo foi dita por
suas formações pode trazer implicações para a Nivaldo, indígena da etnia Pankará e enfermeiro
ponta do serviço de atenção à saúde indígena no da CASAI-PE3, durante conversa que tivemos
Brasil. em Belo Jardim - PE, ocasião da reunião com os
Ao iniciarem o trabalho em áreas indígenas, enfermeiros do DSEI-PE. A frase provoca uma
via de regra, esses profissionais se deparam com reflexão sobre situações em que os profissionais
contextos e situações absolutamente novas a eles. de saúde vivenciaram uma reelaboração de suas
Faz-se necessário que os profissionais de saúde, compreensões sobre processo saúde-doença.
para além da competência clínica que aprendem Durante a conversa com Nivaldo, ele contou
nas faculdades, desenvolvam também uma ter podido participar do IV Encontro de Pajés
“competência cultural” (Kleinman et al. (1978) e Detentores de Conhecimentos Tradicionais
apud LANGDON, 2005, p. 129). O exercício da (ocorrido no território do povo Kapinawá em
escuta passa a ser fundamental, no entanto, não 2017 e promovido pela DSEI PE e lideranças
é tema apreendido nas formações acadêmicas indígenas de Pernambuco). A participação no
baseadas em um modelo biomédico de saúde. evento fez Nivaldo afirmar para si: “eu vou escutar
É necessário que o profissional ouça esse povo” (Nivaldo, Caderno 6, 09/08/2018).
o paciente, permitindo que o paciente fale sobre Em vários momentos de nossa conversa ele falou
sua experiência, expressando nas suas palavras o em “escuta”. A seguir, trecho de meu diário de
que está acontecendo e como ele está percebendo campo :
4

isso. (…) o método antropológico no atendimento Nivaldo falou demais em ESCUTA. Disse que
clínico implica uma postura de ouvir, aprendendo depois do Encontro em Kapinawá ele falou para si

3 Casa de Apoio à Saúde Indígena de Pernambuco.

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mesmo: eu vou escutar esse povo!. (...) Disse que: Nivaldo: então você vai fazer assim, vai tomar um
TEORIA E CULTURA

a pessoa não chega apenas com uma morbidade; banho de cabeça, vai me prometer que vai ficar
ela não é uma morbidade. Falou isso apontando uns 10 minutos com a cabeça debaixo do chuveiro.
para mais de um dedo da mão, complementando Depois disso, você vai bater um prato, vai encher a
e falando ainda que existem várias coisas, questões barriga (Nivaldo falou isso dando tapas sutis em sua
que aquela pessoa está vivendo, não apenas a própria barriga). Se depois disso sua dor de cabeça
morbidade (Nivaldo, Caderno 6, 09/08/2018). não passar, eu te dou o dipirona. A pessoa aceitou,
seguiu as orientações de Nivaldo e melhorou. Eu
O relato de Nivaldo durante nossa conversa perguntei para ele: e como foi que você se sentiu? Ele
aponta para uma mudança em sua atitude e disse: vitorioso. Ele se sentiu vitorioso por ter dado
reflexão pessoal em relação às pessoas atendidas certo. Ele também falou rapidamente que existem
por ele na CASAI. A frase: “eu vou escutar esse casos que a dor não passa e então ele dá o remédio
povo!” enfatiza uma decisão pessoal importante para a pessoa (Caderno 6, dia 09/08/2018).
do profissional a partir de uma experiência
vivida no IV Encontro de Pajés e Detentores Penso que o exercício da escuta, além de
de Conhecimentos Tradicionais. Em conversa, ser próximo do ofício antropológico, torna-
entendi que, para Nivaldo, o evento se mostrou se fundamental na experiência de Nivaldo e
como um espaço de diálogo para possibilidades sua compreensão sobre o processo de saúde e
de escuta sobre outros conhecimentos, saberes e doença ali vivido. Mas escutar o quê? Os outros
medicinas. problemas dos pacientes? Escutar os outros
O exercício da escuta, que o interlocutor tratamentos que a pessoa está seguindo e/ou
afirma ter incorporado em seu cotidiano, acredita? No relato, compreendo que Nivaldo não
passou a extrapolar uma visão restrita sobre considerou apenas a informação “dor de cabeça”
as morbidades de pessoas atendidas, como ele como suficiente para dar o “dipirona” solicitado
mesmo afirma: “a pessoa não é apenas uma pela pessoa. Ele perguntou e se dispôs a escutar
morbidade”. Ela é uma pessoa. Penso que isso o que aquela pessoa tinha vivido naquele dia.
é fundamental e extremamente fértil para A partir disso, prosseguiu com a orientação. A
lidarmos com o processo de saúde e doença. Em situação se apresenta como um movimento do
um caminho inverso ao de uma objetificação da interlocutor no sentido de compreensão ampla e
doença, presente na biomedicina (PEREIRA, contextualizada da “dor de cabeça”. Movimento
2012), Nivaldo opta pelo exercício da escuta esse que, segundo Nivaldo, foi engatilhado através
e diálogo e apresenta uma reflexão e atitude de sua participação no IV Encontro de Pajés
diante da realidade em que trabalha e, portanto, e Detentores de Conhecimentos Tradicionais.
convive. Quando perguntei a Nivaldo sobre Com a resolução positiva da situação, Nivaldo
experiências que haviam sido marcantes para ele, se sentiu “vitorioso”. Por mais hegemônico que
ele respondeu: “Nossa, têm vários, poderíamos se configure o modelo biomédico, a narrativa
passar a semana conversando” (Nivaldo, Caderno de Nivaldo aponta que, num processo reflexivo
6, dia 09/08/2018). (MINAYO e GUERRIERO, 2014), os profissionais
de saúde modificam o campo e são modificados
A pessoa estava na CASAI, procurou Nivaldo por ele.
e pediu dipirona. Nivaldo perguntou: Mas o que é
que você está sentindo? A pessoa: estou com dor de Juliana e o caso do bebê com malformação
cabeça. Nivaldo: você comeu o que hoje? A pessoa:
comi de manhã, saí bem cedo, passei o dia na rua. Outra interlocutora da pesquisa de campo

4 Nas citações de falas dos interlocutores ou trechos de diário de campo foram colocadas em “itálico” as falas de terceiros
que foram reproduzidas pelos interlocutores durante as entrevistas.

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foi Juliana. Ela não era indígena e há época A meu ver, aqui residiria uma situação de zona

TEORIA E CULTURA
atuava como psicóloga em uma das EMSI que de contato e intermedicalidade (FÓLLER,
prestava atendimento a etnia Pankararu. A certa 2004). Como pano de fundo, uma negociação
altura de nossa entrevista, perguntei a Juliana entre medicinas indígenas e biomedicina e,
se ela percebia em seu dia a dia que as pessoas visivelmente, um exercício de Juliana e equipe
utilizavam tanto os remédios “tradicionais” em articular os diferentes tratamentos, dialogar
como os remédios ditos “da farmácia”. Ela me com a pessoa atendida, entender e saber como
ofereceu uma resposta longa e detalhada sobre ela deseja prosseguir.
uma situação vivenciada por ela e a EMSI: Continuando a entrevista, perguntei a Juliana
como foi ter que lidar com esse tipo de situação.
Juliana: (...) você acredita que tem várias Ela comentou sobre o limite dessas situações e
situações que eles dizem: não dá pra tomar relatou o caso de um bebê com malformação.
medicação agora, que a gente já tá fazendo um O limite para Juliana não estaria numa falta de
tratamento tradicional. (…) a gente faz aquela compreensão dela sobre a situação vivida, mas
orientação: mas pode conciliar os dois e tal....mas a sim um limite em sua atuação como profissional,
gente tem certeza que a pessoa não vai começar... um limite de até onde a pessoa atendida aceita
(risos) (…) A gente faz o que é devido, mas a gente o tratamento ou instrução dada pela EMSI. Na
sabe que não vai ser feito, pelo menos naqueles narrativa, Juliana parece reconhecer um limite
três dias, geralmente três, quatro dias, aí alguns em seu lugar como profissional e também na
chegam dizem: não, termina no sábado. A gente já efetivação de uma articulação entre medicinas.
sabe que a medicação só vai começar no domingo
ou na segunda (risos). Isso acontece demais aqui Juliana: eu converso, eu falo quando oriento,
(…). Não aceitar ser socorrido porque está no mas eu acho que existe direito de você continuar seu
tratamento tradicional, não aceitar mesmo: não tratamento... entende? (...) E se não tiver passando
vou de jeito nenhum, não tem quem faça eu ir. E vai mal e dizer que: eu não vou pro hospital, eu não vou.
enfermeiro e muitas vezes a gente é chamado para Quantas e quantas pessoas sabem que não tão bem e
casos que não é nosso, vamo dizer, não faz parte não falam pra ninguém porque não vai pro hospital.
de pessoas que tem transtorno mental e a gente é É quase que um direito né, então é um limite...(...)
chamado por uma questão de conversar de tentar Teve um caso que (…) foi bem difícil esse caso, que
explicar por outro meio de outra forma, porque ela tava com um bebê muitas malformações, muitas
a enfermeira já tentou, a técnica já tentou. (...) mesmo e os médicos eles não tem preparação para
Chama a psicóloga, a psiquiatra pra conversar com conversar com a pessoa, alguns né? Aí o médico
essa pessoa vê se consegue, algumas vezes a gente acha de dizer a ela, na cara dela, na ultrassom que
consegue, com crianças já consegui, vários casos, ela foi pra fazer, pra provavelmente saber o sexo do
mas não é fácil não. (…) E eu vou, sento converso, bebê (...) que: o bebê dela só o milagre e são tantas
e eu gosto também de ir nesses casos. (Entrevista 8, más formações. O quê que acontece? Ela vai no
Juliana, dia 17/07/2018). rezador e o rezador diz que o bebê não tem nada,
que tá tudo bem. Aí entra a psicologia, veja: diante
Juliana afirma existirem casos em que as do meu desejo do meu filho estar bem, eu fico com
pessoas utilizam as diferentes medicinas, mas a opinião de quem? Fora que eu sou crente naquele
não simultaneamente. Juliana percebe isso em meu sistema tradicional de cura, uma coisa se junta
seu cotidiano e relata que as pessoas esperam a outra e fica extremamente forte, só que, aí veja a
acabar um tratamento para poder iniciar outro. complexidade disso. Pro médico, enfermeiro sabe
Ela, enquanto integrante da EMSI e psicóloga, que provavelmente ela ia sofrer um aborto porque
se coloca e é colocada por outros nesse lugar o bebê não ia se desenvolver... e aquele aborto podia
de dialogar com os pacientes para que utilizem matar ela, (…) sem uma assistência né? (…) uma
determinada medicação indicada pela EMSI. assistência adequada. E aí: chama Juliana. Nesse dia

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eu fui só. Vamo tentar convencer ela a ir pro hospital
TEORIA E CULTURA

porque Ivete já tinha trabalhado na ultrassom e Juliana falou ainda sobre uma sensibilidade
necessária para lidar com situações como essa do
disse: esse bebê aqui não tem condições não, é nascer
e chegar nos nove meses. Nasce e morre. Aí eu sei bebê:
que a gente foi lá (…) porque o rezadeiro disse que Juliana: são essas coisas que a gente se depara,
não tinha nada então ela nem pré-natal queria fazer mas se você não tivesse sensibilidade pra isso… não
mais, tava tudo bem, aí vamo lá, conversa, e ela rola não. E eu vou ser sincera assim, que o fato de
muito nervosa, se percebia que tava num conflito gostar da saúde indígena da questão indígena muito
mental na cabeça dela... em quem ela acredita e antes deu entrar, eu penso, que pra mim faz toda
qual nosso papel? Não tinha que você ficar ali: tem a diferença, é diferente de alguém entrar na saúde
que ir, tem que ir, nem psicologicamente isso faz indígena com outras intenções, que é um emprego
sentido.... e aí eu expliquei tudinho que: acreditava federal... e, mas eu acho que você...isso também
na questão da medicina tradicional, achava que era não impede, claro, de outra pessoa entrar com
muito importante, mas que também não impedia outros objetivos e ter sensibilidade né? Lógico, vai
dela ir ser referenciada no IMIP pra fazer só uma de pessoa pra pessoa. Mas tem pessoas que não
avaliação. Ela: não vou, não, não vou. Depois a mãe se adaptam, eu acho, tanto que não fica. Eu acho
chegou arretada. (…) e aí quando eu vi o tanto de que é importante você ter essa visão antropológica
resistência, eu disse assim: veja, quando a gente que muita gente também não se interessa, entra
procura um médico que a gente não acredita nele, a faz seu trabalho ali como só existe aquilo e não dá
gente não procura um outro?, eu não tô dizendo que importância pra questão antropológica, cultural, de
você não acredita no outro, o benzedeiro, mas porque tempo, de memória, de tanta coisa.... não tem (...)
você não procura um outro rezador da aldeia pra esse objetivo. Você vim reproduzir uma medicina
você escutar segunda opinião e você ficar cada vez ocidental e só? eu acho isso prejudicial. (…) Eu saí
mais tranquila e também tranquilizar a gente, mas depois conversando até com a gente de saúde daqui.
que seria muito importante. Aí ela ficou assim e não Isso é muito mais importante que a gente acolha,
disse nada. Eu disse: a gente não vai forçar você a ir dizendo que a gente está aqui pra decisão que ela
pra lugar nenhum porque isso é um direito seu, mas quiser, porque ela vai se sentir segura quando for
eu quero que você saiba que a gente tá a disposição, o momento dela do que a gente sair dizendo: que
não é porque você disse que não ia, que a gente nunca fez o nosso papel que agora não tem mais nada por
mais vai se interessar por você. Isso é importante, fazer. A gente sabe que tem esse discurso. E é claro
porque eles acham isso: ah, eu não fui, não fui também que a gente usou da questão: olha, você
naquele momento, agora elas não vai querer que eu tem o direito de seguir a decisão que você quiser,
vá. (…) Eu percebi isso, venho percebendo isso: mas de fato você vai ter que assinar um termo
mas isso não quer dizer que se amanhã de manhã de responsabilidade. Porque é um jogo de mão
você chegar e dizer: eu quero ir, chama a gente que dupla sabe, porque, se essa mulher morre, cadê a
a gente vem e lhe levo. Eu senti que ela ficou mais assistência? Cadê a enfermeira? Cadê a equipe de
tranquila, sabe, quando a gente disse isso, porque saúde mental, Cadê... Cadê todo mundo? (…)Mas
fica aquela coisa de sair com raiva da gente e não o discurso que é importante: não a gente tá aqui pra
tem nada a ver né? (…) Aí eu sei que.... ela: não sei, lhe ajudar no que você quiser, não se preocupe. Se você
não sei. Toda resistente. Eu disse: bora simbora, o que disser não vai, não vai! Mas a gente continua aqui,
a gente tinha a fazer já foi feito. Ela foi de fato pra na hora que você quiser, na hora que você precisar e
outro rezador seguiu o conselho e o rezador que ela tal...Isso deixou ela muito mais aliviada pra pensar
foi disse: vá agora imediatamente ao hospital. E ela já com tranquilidade do que pensar pressionada.
veio abortando, foi simbora pra Recife porque aqui (Entrevista 8, Juliana, dia 17/07/2018).
não fazia. (…) E aí depois ela veio falou com a gente
bem. Até hoje ela fala com a gente bem simpática e Ainda relatando o caso do bebê com
tal. (Entrevista 8, Juliana, dia 17/07/2018). malformação, os limites e negociações entre

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EMSI e a gestante, Juliana aponta ser necessária precisam se respaldar acerca da decisão da

TEORIA E CULTURA
uma sensibilidade para lidar com esses contextos. gestante. Esse seria um “jogo de mão dupla” nas
Compreendo que uma competência cultural palavras de Juliana. É um jogo, a meu ver, entre
(Kleinman et al. (1978) apud LANGDON) é essa sensibilidade que ela tem que acionar para
acionada por Juliana através de sua sensibilidade lidar com a situação e as cobranças institucionais.
a situação. Ao mesmo tempo em que existe o “Quem” cobra o resultado no final do mês? São
limite como profissional de respeitar a decisão da as instituições e modelos de atenção a saúde
paciente, Juliana afirma acionar essa sensibilidade permeados pela lógica de um modelo biomédico.
para saber como a questão deve ser conduzida. A Não será um rezador pertencente àquele povo
gestante já havia sido consultada por um médico indígena que cobrará alguma meta ou planilha
(o que afirmou que o seu bebê “só milagre”), de Juliana ao final do mês.
pelo rezador e depois estava sendo orientada Perguntei a Juliana se haveria outra experiência
pela EMSI a ir ao hospital novamente. O limite marcante que ela gostaria de compartilhar e ela
que o lugar de profissional impõe a Juliana anda relatou:
de mãos dadas com a sensibilidade que ela diz
acionar nessas situações. Compreendo que o Juliana: essa que eu contei foi muito marcante
fato de Juliana conduzir a situação com o que pra mim assim, porque...da bebê...porque é
denomina de sensibilidade, a fim de conseguir complicado você tá ali querendo fazer a pessoa
êxito da resolução do caso, se torna possível na ir pro hospital, mas ao mesmo tempo querendo
medida em que ela se distancia (PEREIRA, 2012) respeitar a decisão dela. Né fácil não....(…) É bem
de concepções estritamente biomédicas sobre o complexo, assim, e você fica naquela de: o que fazer,
processo saúde e doença. né? E assim, a forma que eu achei na hora, na hora
Talvez, se a EMSI fosse seguir a rigor um viu? não tem essa coisinha de se preparar não, quem
protocolo de condução do caso, a gestante seria sabe faz ao vivo (risos) (…) Na hora é que você
levada imediatamente para o hospital. Mas não tem que ficar vendo a reação da pessoa, vendo as
era essa ação que Juliana considerava que deveria possibilidades que ela dá, se ela dá alguma brecha,
ser realizada. Uma compreensão sobre o contexto se aquela emoção não é um conflito. (…) Não é
daquela gestante, o itinerário que ela já havia fácil não, porque não tem essa historinha de receita
percorrido, suas frustrações, tudo isso parece de bolo e você chegar lá e agora você...nada disso.
ter sido considerado por Juliana e EMSI. Sua Ou você é sensível a tudo aquilo que ela está ali
narrativa evidencia uma abordagem contextual demostrando ou então nada feito. E é por isso que
e específica através do diálogo e também de um muitas vezes é que chama a psicóloga, porque já foi
exercício em entender os limites do seu lugar tentado e muitas vezes é tentado de uma forma não
como profissional de saúde. adequada, não é nem por nada, porque obviamente
Para Juliana, sua sensibilidade não está as pessoas não tem o curso de psicologia né? A
atrelada a sua formação como psicóloga, baseada gente não pode exigir, isso é fato né? (Entrevista 8,
no saber biomédico. A sensibilidade estaria Juliana, dia 17/07/2018).
atrelada, como ela afirmou durante a entrevista,
ao seu “gosto” e interesse antigo e pessoal pelo Juliana também se referiu ainda a “conflitos”
tema da saúde dos povos indígenas. Para ela não vivenciados por ela como profissional ao lidar
é suficiente, como profissional, simplesmente vir com situações que são vistas pela população
e “reproduzir a medicina ocidental”, pois isso como “espirituais”, mas que em sua visão como
seria “prejudicial”. psicóloga, a medicação (do saber biomédico)
Juliana também destaca a importância do ajudaria aquele paciente:
acolhimento da gestante para se sentir segura
com a condução da EMSI. Ao mesmo tempo, Juliana: é como eu falei mesmo, a gente vê esses
outra questão está em jogo: Juliana e EMSI conflitos na resistência né? (…)Na resistência à

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adesão ao tratamento da medicina ocidental... (...) de intermedicalidade, sobre o cotidiano dos
TEORIA E CULTURA

de ir pro atendimento no consultório, a gente tem profissionais e suas experiências sobre o processo
vários casos. (...) Muitos casos de pessoas, às vezes de saúde e doença.
até, assim, que tem o conhecimento bom, que, não Através de entrevistas e conversas informais
tô negando que exista influência espiritual, não tô. com os profissionais, percebi que alguns
Eu acredito mesmo, mas eu também acredito que deles associam a identidade indígena como
pode haver as duas coisas. (...) Sendo que pra gente, determinante para as orientações e relações de
minha filha, botar na cabeça que pode ter as duas confiança que estabelecem com a população
medicinas às vezes não funciona porque na cabeça indígena atendida. Kaio, enfermeiro e indígena
das pessoas é só espiritual. Então, esse é um dos Pankararu, fez referência a importância do
conflitos que a gente vivencia, e como eu disse, tem fato de ser indígena no momento de diálogo
vezes que é só espiritual mesmo, mas tem vezes com as pessoas atendidas e decisão sobre como
que a gente percebe que uma medicação ajudaria... prosseguir com os tratamentos. Esse lugar
bastante… e às vezes, por exemplo, tem casos que ocupado pelos profissionais indígenas, a meu ver,
a pessoa resistiu, resistiu, resistiu... quando viu talvez possa ser visto como um elo de confiança
que realmente precisava da medicação aí chega e legitimação, por parte dos indígenas atendidos,
até a gente, acontece muito. (Entrevista 8, Juliana, ao sistema público de saúde ofertado a eles. Nas
17/07/2018). palavras de Kaio, ser indígena e profissional de
saúde:
As falas de Juliana são longas, no entanto,
compõem o seu entendimento e maneira É uma responsabilidade enorme, porque é
escolhida para lidar com processos de saúde e você ter uma responsabilidade maior, porque
doença, mas especificamente, com os diálogos você tem que fazer aquilo acontecer, entendeu?
e negociações com a paciente e seu bebê com Não tem aquela coisa de você dizer: não, eu não
malformações. Nas palavras de Juliana, também estou entendendo ou eu não quero ou não aceito,
não existe uma “receita de bolo”, é tudo na (...) porque tanto a instituição quanto a população
hora. A sensibilidade a esse tipo de situação é deposita uma confiança em você. E espera de você
acionada por Juliana mediante sua afeição pela uma atitude diferente de outros, que já passaram,
temática, pelas pessoas. Essa sensibilidade que, a que não eram indígenas, enfim...entendeu…? É
meu ver, em alguma medida lhe afasta do saber muita responsabilidade, é você ter esse olhar de
biomédico, lhe abre brechas diante das limitações indígena, de conviver mesmo, de entender, de saber
de sua posição como profissional de saúde, como as pessoas esperam e até onde você poder ir.
aproximando-lhe, como pessoa, da situação, da (…) Agora mesmo, semana passada, estávamos em
gestante e da comunidade. Recife como eu te disse, na luta pela terra entendeu?
Então... é você tá também atuando em outros
Ser indígena e profissional de saúde setores, inclusive como liderança, representando
a saúde, é tá na luta da terra né...porque eu não
Além de Nivaldo, outros profissionais de posso me fechar só: sou polo base, sou saúde e não
saúde interlocutores da pesquisa também se tenho nada haver com isso, tá tudo ligado, e como tá
identificaram como indígenas. Não foi objetivo tudo ligado você acaba extrapolando essa questão
específico da pesquisa desenvolvida para minha de referência, você acaba se tornando mesmo uma
dissertação de mestrado analisar as experiências referência para tudo e para todos, então é uma
dos profissionais indígenas, no entanto, a partir responsabilidade muito grande, mas graças a deus
do trabalho de campo, considero oportuno tá dando certo aí, esses 4 anos que..., a deus e aos
destacar neste artigo algumas questões que essa encantados né. Eu sempre digo que quando eu
intersecção (profissional de saúde e indígena) recebi a ligação dos meninos me chamando para
permitiu para a reflexão sobre a categoria vim, eu disse: é uma convocação. (Entrevista 5, Polo

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Pankararu, dia 27/06/2018) ligação com o fato dela ser indígena. Ela afirmou

TEORIA E CULTURA
ficar em dúvida sobre a questão e afirmou: “essa
Para Kaio, o fato de ser um indígena profissional confiança que eles pegaram em mim, foi pela
de saúde implica em maior responsabilidade na sua minha pessoa, (…) o meu jeito de ser no meu
atuação e, tanto a instituição, como a população trabalho, em ser aquela pessoa atenciosa a eles,
atendida, depositam uma confiança nele. Dessa aquela pessoa de respeitar eles, aquela pessoa que
forma, compreendo que as responsabilidades nunca mentir pra eles.” (Entrevista 7, Francisca,
profissionais e indígenas estão interligadas por 11/07/2018). Mais a diante ela conta que pelo fato
uma relação de confiança com a população e uma de ser indígena não haveria diferenças entre ela e
expectativa da instituição. Não haveria espaço a população atendida. O fato de ser indígena lhe
para Kaio dizer que “não entendeu”. Segundo atribuiria um conhecimento sobre os costumes
Kaio, não existiria uma separação entre ele ser da população:
um representante da saúde e ao mesmo tempo
ser uma liderança e estar na luta pela terra, está Aqui a gente é... a comunidade é indígena e o
“tudo ligado”. Nesse ponto, há um entendimento profissional é índio também, indígena também...
sistêmico de Kaio sobre o contexto indígena em aí não tem uma diferença de um pro outro até
que se situa e atua como profissional de saúde. porque eu sou índia e minha comunidade é índia.
Outra interlocutora, Francisca (indígena da Então eu já sei os costumes deles, como eu sei o
etnia Pipipan, técnica de enfermagem e AIS), meu que é o mesmo deles, então eu não tenho uma
também se referiu a sua relação de confiança com diferença, um problema pra enfrentar com eles
a comunidade. Quando a perguntei sobre uma sobre essa questão indígena, meus conhecimentos
experiência profissional marcante, ela contou: indígenas. Agora pra você que vem de fora, você
vai ter essa dificuldade, porque você vai ter que ter
Na minha rotina tem muitas... o que mais me conhecimento indígena para poder você trabalhar
marcou foi quando eu cheguei numa casa que uma com eles. Se você não trouxer esse conhecimento,
pessoa (...) doente e ela disse pra mim: eu não vou essa experiência é difícil. (Entrevista 7, Francisca,
pra o hospital, vou fazer minha medicação caseira e 11/07/2018).
quero seu apoio. tudo que você pedir pra mim fazer
eu aceito fazer. Só não quero ir para o hospital. Através dessa relação de confiança, Francisca
Agora daqui, se você mandar eu beber veneno, eu contou ainda que é consultada pelas pessoas
bebo. Eu entendi dessa pessoa que ele dedicou uma atendidas quando estas ficam em dúvida sobre
confiança em mim, que só não aceitava nada que tomar a “medicação” ou “remédio caseiro”:
viesse do branco. E ele tinha uma confiança em
mim, quando ele disse: se você me der veneno, sendo E eles ficam com aquela dúvida de não tomar
da nossa medicina eu considero como remédio. A a medicação, aí eles vêm a mim: eu tou fazendo tal
confiança que ele tinha em mim, e dentro da minha remédio pra mim tomar pra tal problema, eu posso
comunidade me marcou também a confiança que tomar os dois? Aí tem pessoas que me faz essa
meus idosos depositaram em mim, era quando pergunta e se eu disser: tome, não tem problema
eles diziam pra mim assim: eu só tomo esse remédio de você tomar o remédio de pressão, eles tomam, se
se você disser que eu posso tomar, muitas vezes o eu disser: não tome, eles não tomam e tem outros
médico passava a medicação pra eles e eles não que não tomam de jeito nenhum. Só tomam um e
tomavam. Se eu passasse um mês sem ir na casa, depois passa para o outro. Eles pode até fazer dois
era um mês sem tomar o remédio. (Entrevista 7, tratamentos. Eles faz o indígena e depois vai pro
Francisca, 11/07/2018). branco, mas não misturam um com o outro não.
(Entrevista 7, Francisca, 11/07/2018).
Perguntei ainda a Francisca se ela achava
que essa confiança depositada nela teria alguma A relação de confiança entre Francisca e a

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população atendida possui conexões com o fato Então eu tinha que respeitar também, mesmo minha
TEORIA E CULTURA

dela também ser indígena e, portanto “não ter visão científica dizendo que ela poderia piorar e ter
uma diferença de um pro outro”. A frase: “se você um processo de infecção. Enfim, veio um monte de
mandar eu tomar veneno, eu tomo” é significativa coisa na minha cabeça na hora. Mas aí eu parei e
de uma relação de extrema confiança no trabalho disse: não. Meu lado indígena também pensou e eu
e condução de Francisca na situação narrada. disse: tá certo, quando terminar o tratamento de reza,
Enquanto indígenas e profissionais de saúde, a senhora fala para fazer a limpeza do ferimento no
compreendo que Francisca e Kaio, num contexto hospital. (Entrevista 5, Kaio, dia 27/06/2018).
de intermedicalidade, tornam-se protagonistas
de uma articulação diária entre as medicinas Neste relato de Kaio, destaco alguns pontos:
indígenas e a biomedicina. A partir dessas ele se refere ao fato de “ter que compreender” o
narrativas, compreendo que a intermedicalidade processo de cura da senhora; ter que respeitar
pode estar no próprio lugar e vivência desses esse processo; e ainda se refere ao fato de parar
profissionais de saúde que são indígenas. Tanto e pensar entre seu “lado indígena” e sua “visão
em suas relações institucionais como em suas científica”. Durante a entrevista Kaio não
relações com as próprias comunidades. Através apontou essa situação como um divisor de águas
da confiança, eles transitam entre os limites e em sua conduta como enfermeiro, ou como um
compreensões das medicinas indígenas e da momento que interferiu nos atendimentos que se
biomedicina. Ser indígena lhes confere uma seguiram. No entanto, a própria situação vivida
determinada leitura sobre os processos de por Kaio e a forma como ele agiu e contou ter
saúde da população atendida. Por mais que em refletido acrescentam elementos para a discussão
relatos como o de Kaio apresentem dilemas e que proponho aqui.
hesitações nessa intersecção entre ser indígena Na narrativa de Juliana destacou-se a
e profissional, é o que lhes garante pessoal, negociação que ela realizou junto com a equipe,
institucional e comunitariamente a compreensão com a paciente e sua família. Já nesta narrativa de
do que deve ser feito. Kaio, destaco o diálogo que ele “travou” consigo
mesmo, com o lugar de profissional de saúde e
Kaio: entre a “visão científica” e o “lado indígena, ao mesmo tempo. Ele não se referiu
indígena” a essa situação como “dilema”, “desafio”. No
entanto, pela maneira como ele relatou a situação
Kaio relatou um caso de atendimento que durante a entrevista, compreendo que houve
havia sido marcante para ele e ocorrido dias antes uma hesitação no momento entre seguir com o
de realizarmos a entrevista. modo de agir do saber biomédico ou respeitar
a decisão da senhora em não ir ao hospital
Kaio: essa indígena que eu visitei esse final de devido ao tratamento com reza que ela estava
semana (…) estava com o ferimento no pé. (…) submetida. De modo a articular a biomedicina e
eu tive lá na residência dela e disse: olha...precisa ir medicina indígena, Kaio equacionou a situação
no hospital onde tem mais suporte, para desbridar aconselhando a senhora a, quando terminasse
esse tecido que estava morto aqui e fazer a limpeza. o tratamento da “reza”, ir ao hospital “fazer a
E aí ela no primeiro momento concordou (…) í limpeza do ferimento”.
na sequência ela disse: não posso ir. Eu disse: oxe, Compreendo que nas experiências dos
porque você não pode ir? É final de semana, o posto profissionais aqui analisadas, talvez em especial
tá fechado, a gente só vai abrir na segunda, então... aqueles que são indígenas, os diálogos e
Ela disse: eu não posso ir porque mandei rezar nele... negociações ocorrem para além de relações
e aí tem que completar os três dias. E aí eu tive que entre: profissionais indígenas X não indígenas;
compreender que ela tava no processo de cura e profissionais X protocolos; profissionais X
tratamento ali... que ela tava respeitando aquilo. instituições; profissionais X pessoas atendidas.

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Os diálogos e negociações se dão também a um diferentes sujeitos e medicinas, assim como as

TEORIA E CULTURA
nível pessoal que os fazem reconfigurar, para negociações e reflexões sobre o processo saúde
além das concepções biomédicas, a condução e doença se fazem presentes no cotidiano dos
dos processos de saúde e doença. profissionais. As “zonas de contato” referidas
A meu ver, os interlocutores em suas por Fóller (2004) entre a biomedicina e as
narrativas enquanto indígenas e profissionais de medicinas indígenas puderam ser percebidas
saúde se mostram como agentes ativos dentro nas experiências particulares dos profissionais
de um contexto de intermedicalidade. Eles se de saúde interlocutores desta pesquisa,
tornam ativos numa situação de negociação entre principalmente nas experiências dos profissionais
a “visão científica” e o “lado indígena”. de saúde que são indígenas.
Os relatos aqui reunidos elucidam justamente
Considerações finais uma dinamicidade das relações entre diferentes
medicinas e sujeitos no campo na saúde
Ao longo deste artigo, tive como objetivo indígena o que possibilitou percebermos, assim
compreender como profissionais de saúde como apontou Pereira (2012) que ocorrem
reelaboram suas concepções do processo saúde rebatimentos a um nível mais pessoal e subjetivo
e doença a partir do trabalho em contextos das experiências dos profissionais de saúde.
indígenas. Para isso, foram reunidas narrativas Concordo com Pereira (2012) e Fóller (2004)
de diferentes profissionais de saúde que atuam no e afirmo que essas situações relatadas pelos
atendimento a povos indígenas em Pernambuco profissionais os afetam e provocam reafirmações,
que, por sua vez, tornaram-se interlocutores mudanças, hesitações sobre as suas formas de
da pesquisa que desenvolvi para elaboração pensar e agir na saúde indígena. Mesmo não
de dissertação de mestrado. As narrativas passando por um processo formativo específico,
trazidas neste artigo foram de interlocutores esses profissionais relatam experiências em que
com diferentes formações: uma psicóloga, dois se sensibilizaram, se sentiram, por exemplo,
enfermeiros e uma técnica de enfermagem e vitoriosos. Nesse sentido, o aprendizado sobre
agente indígena de saúde. a saúde dos povos indígenas parece se dar de
A partir das narrativas e dos dados aqui fato no cotidiano, e é neste cotidiano que estes
reunidos, reitero que as experiências dos profissionais se deparam com situações de
profissionais de saúde não podem ser vistas limites, como nos fala Pereira (2012), encontros
de forma generalizante ou homogeneizadora. e diálogos entre suas compreensões sobre os
Através do trabalho de campo e das entrevistas processo de saúde e doença e também sobre as
em profundidade apresentadas, considero que próprias relações entre as medicinas indígenas e
uma compreensão dicotomizante sobre as a biomedicina.
relações entre profissionais de saúde X povos Para entender os limites e para agir com
indígenas e entre as medicinas indígenas X a sensibilidade, parece que os profissionais se
biomedicina, de fato, não supre a complexidade afastaram, em alguma medida, das concepções
e profundidade que um debate antropológico da biomedicina, afastaram-se de uma mera
permite à questão. Nesse sentido, a categoria de objetificação da doença, por exemplo. Em um
intermedicalidade proposta por Fóller (2004) foi movimento que chamei aqui de reflexividade
de fundamental importância, desde a construção (MINAYO e GUERRIERO, 2014; TRAD,
de nosso referencial teórico, como também para 2012) e dialogando com o fazer antropológico
a análise atenta às narrativas dos profissionais. (DAMATTA, 1978), percebo que os profissionais
A categoria de intermedicalidade possibilitou ao mesmo tempo em que interferem no campo
um entendimento sobre os contextos de trabalho em que atuam, eles também são modificados e
dos profissionais de saúde de forma a perceber questionados por esse campo. Nesse sentido,
como são construídos e perpassados por mais uma vez, uma compreensão polarizada

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entre profissionais de saúde e indígenas não daria
TEORIA E CULTURA

conta do debate. Referências bibliográficas


No grupo de profissionais que se tornaram
interlocutores desta pesquisa, especialmente os BRASIL, Fundação Nacional de Saúde.
que se identificaram como indígenas, a relação Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos
de confiança com a população foi apontada como Indígenas. 2 ed. Brasília: Ministério da Saúde.
uma questão importante no cotidiano de trabalho. Fundação Nacional de Saúde, 2002. 40 p.
Ser profissional de saúde e indígena se tornou Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/
um elemento crucial na experiência de alguns bvs/publicacoes/politica_saude_indigena.pdf >.
interlocutores para a articulação e diálogo entre Acesso em: 16 abr. 2017.
as diferentes medicinas. A partir do momento em
que esses profissionais indígenas estão num lugar BUCHILLET, Dominique. Medicinas
de mediação e articulação entre as medicinas, tradicionais e medicina ocidental na Amazônia.
entendo que eles são atores ativos nesse contexto Belém: CEJUP, 1991.
de intermedicalidade. A confiança depositada
neles, pela população, contribui para que eles CARDOSO, Marina D. “Políticas de Saúde
respeitem as escolhas de tratamento das pessoas Indígena no Brasil: do modelo assistencial à
e também sigam com orientações provenientes representação política”. In: LANGDON, Jean
do modelo biomédico. Através da relação de Langdon; CARDOSO, Marina D. (Org.) Saúde
confiança, esses profissionais transitariam nas Indígena: políticas comparadas na América
fronteiras, limites e zonas de contato entre as Latina. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2015. cap. 3,
medicinas indígenas e a biomedicina, mas não p. 83-106.
sem hesitações e dilemas. Eles não estariam,
portanto blindados, mas, a meu ver, adquiriram DIAS DA SILVA, Cristina. Cotidiano, Saúde e
com a experiência uma competência cultural Política: uma etnografia dos profissionais da saúde
(extrapolando uma competência meramente indígena. Brasil. 2010. 276f. Tese (Doutorado em
clínica) corroborando com uma articulação entre Antropologia) – Departamento de Antropologia,
as medicinas no trabalho cotidiano. Universidade de Brasília, Brasília, Distrito
É possível afirmar, para trabalhos futuros que, Federal, 2010.
um olhar mais específico sobre os indígenas que
são profissionais de saúde pode contribuir para ______. “De Improvisos a cuidados: a
este campo de investigação na Antropologia. saúde indígena e o campo da enfermagem”. In:
Sobre isso, faço coro às observações de Fóller TEIXEIRA, Carla. E GARNELO, Luiza. Saúde
(2004) e Pereira (2012) quando afirmam que a Indígena em Perspectiva: explorando suas matrizes
partir dos contextos de intermedicalidade, das históricas e ideológicas. Rio de Janeiro: Editora
afetações dos profissionais de saúde e também FIOCRUZ, 2014.
da presença de indígenas nos cargos e funções
nos postos e nos polos, a própria biomedicina DIEHL, Eliana. e RECH, Norberto.
e o modelo médico hegemônico podem ser “Subsídios para uma assistência farmcêutica
incitados a transformações. Por fim, reitero que no contexto da atenção à saúde indígena:
as experiências de profissionais de saúde em contribuições da antropologia”. In: LANGDON,
contextos indígenas merecem ser analisadas em Esther Jean.; GARNELO, Luiza. (Org.) Saúde
sua complexidade, trazendo contribuições mais dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia
aprofundadas para o campo da Antropologia no participativa. Rio de Janeiro: Contracapa; ABA,
que se refere às interações que sujeitos e medicinas 2004. cap.8, p.149-169.
estabelecem historicamente, politicamente e
cotidianamente. FERREIRA, Luciane Ouriques; OSÓRIO,

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