FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS DE SÃO PAULO
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC)
Povos indígenas e vulnerabilidade social
A integração dos saberes tradicionais nas políticas públicas de saúde indígena no Brasil
GABRIELA TACLA MARCONDES
FERNANDO BURGOS
São Paulo – SP
2021
Povos indígenas e vulnerabilidade social
A integração dos saberes tradicionais nas políticas públicas de saúde indígena no Brasil
Resumo
A presente pesquisa analisa como ocorre, na prática, a integração dos saberes
tradicionais e os chamados “saberes científicos” dentro das políticas implementadas pelo
governo federal, analisando projetos e políticas na área da saúde indígena para redução das
vulnerabilidades das comunidades beneficiadas. A partir disso, foram analisados os desafios na
formulação e implementação das políticas federais e locais de saúde indígena e a identificação
de boas práticas de integração de saberes tradicionais com “saberes científicos” no âmbito
federal e local. A partir da análise da literatura existente, realizamos um estudo de casos
múltiplos, com três experiências em diferentes estados brasileiros – Amazonas, Mato Grosso
do Sul e Paraíba. A coleta de dados foi feita através de análise documental sobre os programas
e entrevistas semi-estruturadas com lideranças indígenas e atores públicos que atuam nestes
programas. Como resultado, foi possível perceber que apesar da intenção positiva de se criar
uma política especial para os povos indígenas, há ainda muitos gargalos encontrados no
caminho, como falhas organizacionais dos DSEIs, ineficiência do controle social proposto, o
olhar cético para as práticas tradicionais e a acentuação do descaso governamental durante o
período da pandemia. Concluímos que há a necessidade de reformas e avaliações quantitativas
e qualitativas da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, com o objetivo de
reduzir essas falhas e implementar uma política mais eficiente. Para isso, demanda-se uma
transformação na forma que o Estado e sociedade olham para os povos indígenas e a cultura
tradicional, inserindo esses últimos no mundo acadêmico ou como profissionais de saúde dentro
do subsistema indígena.
Palavras-chaves
Políticas públicas; políticas de saúde; povos indígenas; saúde indígena; saberes tradicionais.
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1. Introdução
As populações indígenas brasileiras enfrentam condições de altíssima
vulnerabilidade. Dependendo de sua localidade – mais próximas ou não do convívio urbano –
ou etnia, os desafios enfrentados mudam, mas nunca cessam. Para quem acompanha o debate
sobre o tema, os casos de alcoolismo e suicídio chamam muito a atenção da mídia por estarem
crescendo rapidamente. Mas há muitos outros temas de saúde indígena que seguem sendo
fundamentais de serem lidados pela sociedade brasileira.
Um desses debates que precisa ser visibilizado é a relação entre os saberes
tradicionais dos povos indígenas e os ditos “saberes científicos”, de forma a ampliar o
atendimento contextualizado e a aderência dessa população aos tratamentos e processos de cura,
até mesmo no processo de tratamento da saúde mental dos indígenas. O debate acerca do resgate
das tradições indígenas no Brasil se dá de forma presente no debate da Administração Pública
e Ciências Sociais. Ainda assim, o tema é tratado de forma negligenciada por muitas autoridades
de poder, envolvendo embates políticos com as bancadas do agronegócio, por exemplo. No
entanto, é fundamental o investimento em políticas que visem o resgate dos saberes tradicionais
na sociedade e a sua inclusão na elaboração de políticas públicas.
Considerando que os hábitos culturais indígenas são diferentes do resto da
população que o sistema de saúde vigente atende, surge a necessidade de criar organizações
especiais para examiná-los, fazendo-se necessário uma contextualização do desenho das
instituições que formam a rede de serviços de saúde pública dos povos indígenas, como o
Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Brasil, 2002). A participação dos indígenas no
subsistema é entendida como premissa fundamental para a melhoria do controle e planejamento
dos serviços, valorizando-a como forma de reforço à autodeterminação desses povos.
A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, coordenada pela
Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), tem como objetivo garantir o acesso à saúde
seguindo as diretrizes do SUS, ao mesmo tempo que contempla a diversidade dessa cultura.
Assim, a organização dos serviços aos indígenas deve acontecer na forma de DSEIs, que conta
com postos de saúde, além das Casas de Saúde Indígena (CASAIs) e dos Pólos-Base, que
podem estar dentro das áreas indígenas ou nos municípios (Brasil, 2002). A rede de serviços
dos DSEIs segue um modelo de gestão descentralizado, o que inclui uma autonomia
administrativa e financeira, e tem como princípio a organização de sistemas de saúde nas aldeias
com a atuação do Agente Indígena de Saúde (AIS) com iniciativas ligadas a um posto de saúde.
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Em suma, o propósito de tal estrutura é garantir que os povos indígenas tenham
acesso à atenção integral à saúde, visando a superação dos fatores que os tornam mais
vulneráveis, reconhecendo a eficácia da medicina indígena e o direito desses povos a utilizarem
técnicas tradicionais de suas culturas. Além disso, entendendo a enorme complexidade e
especificidade de cada uma dessas tribos, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos
Indígenas se propõe a encarar o desafio de se projetar como uma resposta às demandas
indígenas, abarcando toda a diversidade do contexto federal.
As políticas de saúde que integram os saberes tradicionais indígenas podem seguir
inúmeros caminhos devido a enorme abrangência da área da saúde. Enquanto isso, os povos
indígenas apresentam também um enorme leque de diversidade em todas as suas
especificidades. Assim, o objetivo geral desta pesquisa foi analisar projetos e políticas públicas
na área da saúde indígena que articulam os saberes tradicionais dos povos indígenas e os
chamados “saberes científicos” para a redução das vulnerabilidades das comunidades
beneficiadas, analisando os desafios na formulação e implementação das políticas federais e
locais de saúde indígena. Buscamos também identificar as principais experiências de saúde
indígena ao longo dos anos, mostrando a importância de iniciativas que fomentam a inclusão
de tradições e especificidades de culturas diferentes das impostas pelos modelos oficiais
A partir delas, realizamos três estudos de casos de políticas de saúde indígena
buscando mostrar a pluralidade de temas. A primeira experiência é o programa Trabalhando
com Parteiras Tradicionais, que apesar de ser uma política federal, nosso foco será nos
indígenas Potiguaras da Paraíba, representando o contexto semiárido. A segunda experiência
tratada é o Projeto de Medicina Tradicional no Rio Negro, focado nos Baniwa e no contexto
amazônico. Já a terceira experiência é o programa Atenção Psicossocial aos povos indígenas,
com enfoque na política implementada no Mato Grosso do Sul, buscando lidar com o tema da
saúde mental. Os três casos permitiram um entendimento mais profundo e embasado acerca do
tema de estudos escolhido, promovendo maior reflexão e debate sobre a marginalização dos
povos indígenas e as medidas de integração da medicina tradicional nas políticas públicas de
saúde.
O presente relatório está estruturado em diversas seções. A primeira, logo após esta
introdução, consistiu em um compilado das principais contribuições teóricas acerca do tema,
que embasam toda a discussão. Depois disso, há uma seção que explicou o método que a
pesquisa foi realizada, seguida de uma contextualização sobre os três programas que recebem
o foco do estudo. A penúltima seção foi dedicada à descrição dos resultados obtidos durante o
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período de um ano de pesquisa. Por fim, a última seção foi a da conclusão, que amarra todo o
fluxo de pesquisa em suas linhas principais.
2. Medicina Tradicional e Saúde Indígena: aspectos teóricos
Uma das definições mais aceitas de povos indígenas inclui a autoidentificação como
indígena, o envolvimento com território antes da conquista, uma história, idioma e cultura
comuns e que se diferenciam das culturas nacionais, além da marginalização na tomada de
decisões políticas (Mauro e Hardisone, 2000). Historicamente, o cenário indígena é marcado
por marginalização, exclusão e discriminação (Horton, 2006; Gracey and King, 2009; Anderson
et al., 2016 apud Pontes; Santos, 2020). Já a medicina tradicional, definida como “a soma total
de conhecimentos, habilidades e práticas com base nas teorias, crenças e experiências indígenas
de diferentes culturas que são usadas para manter a saúde, bem como para prevenir, diagnosticar,
melhorar ou tratar doenças físicas e mentais” (WHO, 2008 apud Giovanni, 2011) complementa
a implementação de políticas que são eficazes no aprimoramento dos sistemas de saúde do país,
que ainda dependem de atendimento marcado pela medicina tradicional (Giovanni, 2011).
Ainda que a Constituição Federal de 1988 seja considerada uma das mais avançadas,
com a existência de um capítulo especial dedicado aos povos indígenas, esses ainda não gozam
de plena cidadania. Quando é feita uma análise acerca dos direitos à saúde, descobre-se que, na
verdade, o processo deste direito se tornar realidade ainda ocorre (Langdon, 2004). Há muitas
questões e especificidades que desafiam o direito à saúde indígenas e integração das práticas
tradicionais em complemento. Green (1988) apresenta fatores de restrição para a integração do
sistema tradicional no sistema médico global hegemônico dos indígenas africanos, mas que
ainda sim podem ser aplicados no caso brasileiro. Entre eles, está a própria lógica de
desenvolvimento dos programas de saúde ao longo do tempo, já que os governos começam a
operar com a mão de obra que está imediatamente acessível, ou seja, os próprios funcionários
do governo, o que faz com que os praticantes indígenas não sejam provedores de serviço
primários e estejam em certa desvantagem, além da existência de uma distância cultural entre
a medicina indígena e a medicina nacional, que podem ter visões de mundo conflitantes entre
si. Além disso, Stephens, Porter, Nettleton e Willis (2006) trazem como um problema a
indisponibilidade e baixa de dados da saúde indígena, de forma que a coleta dos mesmos é
também afetada pelo isolamento geográfico desses povos, além da falta de investimentos nessa
área. Há evidências que mostram que os indicadores de saúde indígenas, em comparação com
os de comunidades não indígenas do mesmo país, são frequentemente mais pobres, surgindo a
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necessidade de expansão de pesquisa nessa área para que se possa implementar políticas
públicas, o que inclui a plena participação dos povos indígenas (Stephens et al., 2006).
No âmbito internacional, Ferreira (2019) comenta que desde 1970 a Organização
Mundial da Saúde, OMS, surge com recomendações na direção da integração das medicinas
tradicionais nos sistemas de saúde nacional, reconhecendo a importância dessas práticas nos
cuidados primários das respectivas comunidades, desde que os agentes aplicadores sejam
treinados. Assim, além da importância histórica e cidadã de preservação dos costumes
originários, as práticas de medicina tradicional podem ser consideradas alternativas
economicamente favoráveis, manifestando-se a necessidade de regular e validar tais práticas
pela ciência biomédica e de qualificar os praticantes que irão exercê-las para que as mesmas
possam ser incorporadas (Ferreira, 2019). No livro “Medicinas Tradicionais e Medicina
Oriental na Amazônia”, Dominique Buchillet indica que há uma indagação a ser feita acerca
das orientações da OMS. Na medida em que existe a necessidade de uma avaliação da eficácia
das práticas pelos governos, há um comprometimento na integração da medicina tradicional
nos sistemas de saúde oficiais, já que “a medicina ocidental outorga-se o direito de julgar a
eficácia e a legitimidade das medicinas tradicionais e de compartimentá-las em saberes e
práticas susceptíveis de serem melhorados e, em alguns casos, descartados, por serem, na sua
ótica, perigosos, ou ao menos, totalmente desprovidos de eficiência” (BUCHILLET, 1991).
Ainda assim, apesar das enormes dificuldades enfrentadas, muitos grupos indígenas apresentam
relevantes avanços em diferentes áreas, entre elas a de saúde, por organizações próprias ou pela
participação nas instituições políticas da sociedade, desenvolvendo experiências inovadoras
que garantem os seus direitos (Barboza e Craveiro, 2004).
Para Green (1988), muitos dos planejadores de desenvolvimento e de políticas
públicas têm uma tendência de categorizar as medicinas tradicionais como práticas arcaicas e
disfuncionais, superadas pelo progresso tecnológico e científico dentro da medicina, o que
expressa uma afirmação falha, já que os sistemas tradicionais podem ser opções adequadas e
eficientes para as necessidades sociais e psicológicas das comunidades, abordando no próprio
tratamento a percepção indígena do problema de saúde mental ou física, uma vez que os
praticantes tradicionais fazem pouca distinção entre corpo, mente e espírito. Dessa forma, essas
práticas surgem como fontes de conforto e de identidade em um contexto de rápida mudança
cultural, gerando sentimentos de continuidade e segurança em um mundo imprevisível, além
de serem serviços acessíveis à população (Green, 1988). Já Stephens et al (2006) relatam que
as ideias de saúde e bem-estar apresentadas pelos povos indígenas estão mais próximas da
definição aspiracional da Organização Mundial de Saúde do que a maioria das ideias ocidentais,
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já que a saúde para os povos indígenas não é somente a ausência de doenças, mas é também a
existência de um equilíbrio e bem-estar espiritual, comunitário e do ecossistema (Stephens et
al., 2006). Além disso, o mesmo artigo revela a ironia de se valorizar as terras e os recursos
naturais indígenas, enquanto os seus povos e muitas das suas tradições são olhados com
desprezo.
O Brasil vem cada vez mais adotando políticas e medidas que incentivem o uso da
medicina tradicional no sistema de saúde pública de forma integrada aos saberes da medicina
nacional e hegemônica, como por exemplo a acupuntura, homeopatia, fitoterapia e outros, o
que resulta na promoção do uso racional e integrado da medicina tradicional a esse sistema
(Zibetti, 2007). Além disso, as recomendações da OMS no país motivaram a construção da
Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), do Ministério da Saúde,
criada pela Portaria na 971, publicada em 03 de maio de 2006. Como aborda Ferreira (2007), o
objetivo é institucionalizar essas práticas no contexto do SUS, acatando os princípios da
universalidade, integralidade e equidade de acesso. Dos temas abordados pela PNPIC, o que
mais se relaciona com a medicina tradicional indígena é o das plantas medicinais e a fitoterapia,
com uma atenção especial para o potencial de desenvolvimento dessas terapêuticas, devido à
biodiversidade e à sociodiversidade brasileira.
Pontes e Santos (2020) argumentam, com base em entrevistas e documentos, que a
formulação de políticas de saúde indígena foi um processo de longo prazo embasado nas lutas
pelos direitos na década de 1980 e o encontro com as discussões sobre a reforma sanitária no
Brasil. Ainda na linha do percurso da consolidação da política indígena, o aumento da força
política das organizações indígenas no país foram essenciais para o resultado da Primeira
Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio, em 1986, que seguiu três caminhos
principais: a necessidade da implementação de um subsistema específico, com uma gestão
vinculada ao SUS; a necessidade de atenção diferenciada e que respeite as especificidades e
cultura de cada comunidade; e a inclusão das comunidades nas atividades de planejamento,
gestão, execução e avaliação das novas abordagens de serviços de saúde (Langdon, 2004). A
partir do que é trazido pelo autor, é notável o avanço no processo de constituição da política da
saúde indígena, já com um subsistema especializado dentro do SUS, como o Distrito Sanitário
Especial Indígena, além de serviços e terapias que de fato integram os saberes tradicionais
indígenas com o sistema nacional de saúde, como o programa das parteiras tradicionais. Ainda
sim, é inegável a necessidade de expansão e de maior oferta de serviços de saúde para
populações que se encontram em contextos de vulnerabilidade, como é o caso dos indígenas.
Como apontado em um editorial recente do The Lancet, em 2019, aproximadamente duas
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décadas após o estabelecimento do Subsistema de Saúde Indígena no Brasil, os povos indígenas
ainda estão diante de inúmeros desafios em diferentes direções, intensificados pela atual
situação política, além da enorme ameaça vinda do governo Bolsonaro.
Por fim, pesquisas antropológicas dos últimos anos têm demonstrado que a forma
que nossos corpos são vivenciados e as doenças são construídas está, em grande parte, bastante
ligada com processos culturais e sociais, e não com processos biológicos, o que faz com que
alguns analistas sociais afirmem que o conceito central para a compreensão da relação entre o
indivíduo e sociedade é o corpo (Langdon, 2004). Essa concepção está intimamente ligada com
a visão indígena de saúde, que enxerga os problemas – mentais e físicos – de forma holística,
em que o indivíduo não pode ser compreendido de forma isolada da comunidade e cultura em
que está inserido, surgindo a necessidade de utilizar-se métodos de tratamento que também
considerem essa perspectiva para que, de fato, surtam resultados.
3. Métodos
Para a realização da pesquisa, utilizamos o método do estudo de casos múltiplos. A
escolha do estudo de três casos que abordam problemas de saúde indígena diferentes e em
estados diferentes – e, consequentemente, com etnias diferentes – buscou trazer um pouco da
realidade diversa e da complexidade dos povos indígenas residentes do território brasileiro para
a pesquisa.
Em termos de coleta de dados, utilizamos duas estratégias. A primeira foi a análise
documental sobre as políticas e ações de saúde indígena implementadas pelo governo federal
nos últimos 20 anos. De acordo com Bowen (2009), os documentos podem ter formas muito
variadas, incluindo: anúncios; agendas, registros de presença e atas das reuniões; manuais;
documentos de referência; livros e brochuras; diários e revistas; programas de eventos; cartas e
memorandos; mapas e gráficos; jornais (recortes / artigos); comunicados de imprensa;
propostas de programas, formulários de candidatura e resumos; relatórios organizacionais ou
institucionais; dados de pesquisa; e vários registros públicos. Assim, analisamos o material
produzido pelo governo federal, incluindo aqueles distribuídos para os povos indígenas. Além
das políticas federais de saúde mental indígena e das parteiras tradicionais, analisamos a
experiência local do Projeto Medicina Tradicional Baniwa, integrado a outro projeto da
Universidade Federal do Amazonas e o Projeto Medicina Tradicional no Alto Rio Negro,
executado pela Associação Saúde sem Limites em parceria com a Universidade de Pernambuco
e a Federação Indígena do Alto Rio Negro.
9
Na segunda estratégia, realizamos entrevistas semiestruturadas (May, 2004) – cujo
roteiro está no Anexo - que são interessantes por permitirem uma comparação entre os
resultados obtidos em cada entrevista, mas ainda com um aspecto personalizado, com gestores
passados e presentes que atuaram direta ou indiretamente com o tema da saúde indígena ao
longa de suas experiências profissionais. Também buscamos entrevistar agentes
implementadores das Políticas e ações em territórios indígenas, além de lideranças de
comunidades indígenas específicas. As entrevistas foram realizadas de forma totalmente remota
devido ao contexto pandêmico e as tiveram duração de cerca de uma hora. As redes de contatos
utilizadas foram inicialmente através da rede pessoal do professor Fernando Burgos e de
professores e antropólogos que tive contato anteriormente, além de alguns outros nomes que
surgiram durante a primeira etapa da pesquisa. Em seguida, outros contatos foram surgindo por
indicação dos próprios entrevistados, o que é conhecido também como técnica da bola de neve.
Dessa forma, foi possível contatar diferentes profissionais e até mesmo usuários das diferentes
políticas para entender os impactos, dificuldades e a importância da integração dos saberes
tradicionais nas políticas públicas na prática.
Ao todo, foram entrevistados 9 participantes de diferentes estados brasileiros,
incluindo ao menos um representante de cada um dos três casos de políticas e projetos estudados.
Também entrevistamos especialistas no tema de saúde indígena e integração dos saberes
tradicionais como um todo – sem adentrar em um dos casos específicos - como antropólogos
ou agentes de saúde pública. Além disso, buscamos realizar entrevistas com pessoas de
diferentes posições a fim de analisar pontos de vista diversos. Com o objetivo de proteger os
participantes da fase de pesquisa de campo, os seus nomes foram omitidos na presente pesquisa,
mas o quadro a seguir traz um perfil resumido de cada um deles(as):
Nome Ocupação Gênero Raça/ Estado
Etnia
Entrevistado A Uma das principais lideranças Masculino Baniwa Amazonas
indígenas do Alto Rio Negro,
fez parte da diretoria da
Federação das Organizações
Indígenas do Alto Rio Negro
(FOIRN), além de ter sido um
importante ator na criação dos
projetos de organização
Baniwa
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Entrevistado B Indígena terena, técnico de Masculino Terena Mato Grosso
enfermagem e representante do Sul
indígena no Conselho
Nacional de Saúde,
responsável pela região
centro-oeste
Entrevistado C Agente da ponta como Feminino Branco Mato Grosso
psicóloga de diferentes Polos- do Sul
Base do DSEI Mato Grosso do
Sul
Entrevistado D Antropólogo com doutorado Masculino Branco São Paulo
na UFRJ, desenvolve há mais
de dez anos pesquisas com
povos indígenas no Mato
Grosso do Sul. Lecionou em
algumas universidades
públicas e privadas
Entrevistado E Atua na Secretaria de Estado Feminino Branco Mato Grosso
de Saúde, acompanhando do Sul
algumas ações de saúde
mental realizadas pelo Distrito
Sanitário Especial Indígena de
Mato Grosso do Sul (DSEI)
Entrevistado F Dirigente do CONDISI do Masculino Ofaye Mato Grosso
Mato Grosso do Sul e filho por do Sul
parte de pai de um guarani-
kaiowá
Entrevistado G Coordenadora do Projeto Feminino Branco São Paulo
Xingu/UNIFESP
Entrevistado H Cientista social formado pela Masculino Negro Amazonas
Universidade Federal do
Amazonas com experiência na
área de antropologia, atuando
principalmente nos temas de
controle social, saúde
indígena, educação em saúde,
formação profissional de
agentes comunitários
indígenas de saúde entre
outros
Entrevistado I Enfermeira Obstétrica, Feminino Pardo Paraíba
professora da Universidade
11
Federal da Paraíba. Atua no
projeto de extensão Roda Bem
Gestar, que tem como objetivo
a prevenção da violência
obstétrica
É relevante citar que o atual cenário de pandemia que exige o isolamento social
resultou em algum grau de perdas por não permitir uma imersão intensificada na fase das
entrevistas, como visitas às próprias comunidades indígenas ou outros órgãos institucionais de
pesquisa especializados no tema. Além disso, houve também um segundo fator que
comprometeu o resultado da pesquisa, já que por se tratar de um momento extremamente
delicado no campo da saúde e que exige uma atenção máxima dos agentes, focados no combate
à pandemia, muitos contatos – principalmente do alto escalão e linha de frente operacional –
não estavam disponíveis para a entrevista. Ainda assim, conseguimos uma amostra de
entrevistados que apresentam uma boa variedade de cenários e contextos e que muito agregaram
ao resultado.
4. Principais características de cada Programa
4.1 Os saberes tradicionais no parto
Pode-se compreender a tradição do parto domiciliar realizado por parteiras
tradicionais a partir de duas óticas: a preferência e a necessidade. Muitas famílias e mães
exprimem certa preferência pelo parto em casa pelo conforto, comodidade, ausência da
presença de estranhos, além do envolvimento de crenças e tradições no momento do parto.
Outra razão apontada pela preferência do parto domiciliar e o desestímulo do parto no hospital
é o medo que algumas mulheres têm de serem "cortadas" pela episiotomia (Buchillet, 1991).
Por outro lado, são muitas as regiões do país, principalmente em zonas rurais e ribeirinhas, em
que o acesso aos serviços de saúde promovidos pelo governo são quase ou totalmente
inexistentes. Nesse sentido, o parto domiciliar assistido por parteiras tradicionais é colocado
como a única opção viável, de forma que surge a necessidade de ações estatais que fortaleçam
essas práticas, promovam capacitações para aquelas que as realizam e forneçam o material
necessário para a realização de um parto seguro. Esse cenário fez com que o governo federal
lançasse o programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais, implementado em 2000.
12
O Programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais faz parte da política federal
Rede Cegonha que, segundo o site do Ministério da Saúde 1 , é uma estratégia para a
implementação de uma rede de cuidados focado na mulher e no seu direito ao planejamento
reprodutivo e atenção humanizada à gravidez, parto e puerpério, estruturando a atenção à saúde
materno-infantil. A Portaria nº 1.459, de 24 de junho de 2011, que institui a Rede Cegonha no
âmbito do Sistema Único de Saúde, propõe no artigo 6º uma organização a partir de quatro
componentes: pré-natal, parto e nascimento, puerpério e atenção integral à saúde da criança e
sistema logístico: transporte sanitário e regulação (Brasil, 2011). Dentro da Rede Cegonha, há
uma seção destinada às práticas de partos domiciliares, o que envolve a promoção de
capacitação e distribuição do kit parteiras, de forma que as praticantes podem ser indígenas ou
não.
O governo federal, conduzido pelo Ministério da Saúde, elaborou a cartilha que
descreve o programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais (Ministério da Saúde, 2012),
trazendo algumas experiências ao redor do Brasil entre 2000 e 2010 e uma contextualização
sobre a humanização do parto. A diversidade socioeconômica, cultural e geográfica exige a
elaboração de diferentes modelos de atenção à saúde da mulher e da criança, considerando ainda
que os índices de mortalidade materna e neonatal no Brasil ainda são altos. O programa, lançado
no ano de 2000, insere estratégias para o combate dessas taxas e para a promoção da equidade
do acesso à saúde, além da busca por reconhecimento das parteiras como parceiras e agentes na
atenção à saúde de comunidades mais remotas ou de famílias que expressam preferência ao
parto domiciliar e a articulação dos seus trabalhos ao SUS, com o apoio de gestores e
profissionais de saúde. (Ministério da Saúde, 2012).
4.2 A experiências de saúde no Alto Rio Negro
Os recursos de medicina da região do Alto Rio Negro e da sua capital “regional”
São Gabriel da Cachoeira, como o Posto Médico Municipal, instalado nos anos 70, não têm um
funcionamento regular. Observa-se que, em períodos eleitorais, os serviços médicos e
odontológicos nas comunidades ribeirinhas se tornam um pouco mais eficientes, o que o
político faz com o objetivo de conquistar mais votos da população e tentar uma reeleição. Ainda
sim, o atendimento médico é bastante inconstante, podendo ser razoável em alguns momentos,
e inexistente em outros. Devido a precariedade do serviço oferecido pelo governo, mas também
1
https://aps.saude.gov.br/ape/cegonha. Acesso em: 6 jan. 2021.
13
pela forte crença na medicina tradicional, os moradores da região de São Gabriel da Cachoeira,
principalmente os indígenas, dão preferências às técnicas tradicionais antes dos profissionais
de saúde da medicina ocidental (Buchillet, 1991).
O livro Na trilha da cidadania (Barboza e Craveiro, 2004) reúne 14 iniciativas que
foram premiadas durante o Programa Gestão Pública e Cidadania, entre 1996 e 2003. As
experiências foram desenvolvidas por suas próprias comunidades ou com sua fundamental
atuação, focalizadas no tema dos direitos dos povos indígenas. Há duas iniciativas relatadas no
livro que são especificamente interessantes para o caso em questão: a Trienal de Medicina
Baniwa-Kuripako, experiência premiada em 1998 e o projeto RASI – Rede Autônoma de Saúde
Indígena, premiada em 1999 (Barboza e Craveiro, 2004).
O Projeto Trienal de Medicina Tradicional do Povo Baniwa e Kuripako é um
movimento de responsabilidade de lideranças indígenas e equipes de agentes de saúde da região.
O Projeto, financiado pelo Comité Catholique contre la Faim et pour le Dévelopement (CCFD),
da França, visava a capacitação de uma rede de agentes indígenas de saúde para o uso de
medicamentos e plantas dos saberes da medicina tradicional dos Baniwa e dos Kuripako.
Portanto, a iniciativa não significa que os Baniwa e os Kuripako dispensem os serviços oficiais
de saúde, pelo contrário, ainda reivindicam melhor acesso a eles (Barboza e Craveiro, 2004). A
segunda experiência, que trata sobre a tentativa de alavancar a medicina tradicional sem apagar
as práticas ocidentais, é o Projeto Rede Autônoma de Saúde Indígena (RASI). Como não havia
definição clara sobre política de saúde indígena, os povos indígenas cobraram do governo
pautas ligadas ao acesso à saúde pública e, principalmente, a contratação de agentes indígenas
de saúde para atuar nas comunidades. O projeto RASI surgiu com o intuito de capacitar
lideranças indígenas para o exercício do controle social dos serviços de saúde, utilizando uma
proposta pedagógica que privilegia o saber tradicional e parte das vivências das próprias
lideranças. Assim, procura-se promover uma melhora na saúde pública da região, mas também
uma forma de preservar a identidade e autonomia das comunidades ao redor. A execução do
projeto é de responsabilidade da Fundação Universidade do Amazonas, mas com a parceria da
Secretaria Municipal de Saúde de São Gabriel da Cachoeira e apoio de instituições como a
FOIRN e Funasa, foi possível uma aproximação da de diálogo sobre a implementação dos
DSEIs (Barboza e Craveiro, 2004).
4.3 A saúde mental indígena em contexto rural-urbano
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O terceiro caso transparece a vivência no contexto urbano rural através da ótica
indígena, e foca em uma das principais reservas indígenas brasileiras, a Reserva Indígena de
Dourados, no Mato Grosso do Sul, que é habitada pelos subgrupos guarani kaiowá, guarani
nhandeva e pelos aruak-terena e segue uma estrutura militar de gestão com o apoio da igreja
evangélica Assembleia de Deus (Oliveira, 2016).
Para exemplificar a situação vivida na Reserva de Dourados, Tonico Benites,
guarani-kaiowá, pós doutor em antropologia e coautor da minissérie documental “O mistério
de Nhemyrõ”, diz em entrevista ao jornal Nexo que a tradição é que a autoridade é sempre de
um dos parentes, a pessoa mais querida da família ou o mais idoso. A presença militar na região
fez com que a estrutura se tornasse hierárquica, com o capitão indígena, a polícia indígena e o
sargento indígena, que acabam atuando no interior da família. Essa estrutura gerou violência e
humilhações públicas, o que resultou em tristeza, medo, raiva e desespero 2 . Outro fator
complicador de se viver dentro da Reserva de Dourados é a falta de policiamento, o que
transforma o ambiente da reserva em um lugar propício para ações criminosas e instalação de
pontos de drogas (Cimi, 2017). Segundo os dados obtidos pelo Conselho Indigenista
Missionário (Cimi) junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), em 2017, a cada dez
jovens indígenas, quatro já consumiram algum tipo de droga na Reserva.
Dada a complexidade e relevância do tema em questão, por abranger aspectos
culturais e sociais, surge uma necessidade de resposta e responsabilidade governamental de
trazer medidas que resolvam a situação observada com abrangência nacional. A cartilha
produzida pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), fruto da cooperação com a
Organização Panamericana de Saúde (OPAS), retrata as ações que foram elaboradas de acordo
com um processo construtivo entre indígenas, profissionais de saúde e gestores para a
consolidação das discussões e definições da política saúde mental. Intitulada “Atenção
Psicossocial aos povos indígenas – tecendo redes para a promoção do bem viver”, a produção
do documento foi guiada pela Portaria de consolidação Nº2, de 28 de setembro de 2017, Anexo
3 do Anexo XIV, publicada originalmente em 2007, que estabelece as diretrizes para a Política
de Atenção Integrada à Saúde Mental das Populações Indígenas (Brasil, 2019).
Existe uma preocupação por parte dos profissionais de saúde e da Equipe
Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) por não se sentirem aptos a se responsabilizar e
tratarem de situações nesse campo de saberes, ainda porque boa parte dos funcionários não
recebe a qualificação necessária para atender as demandas dos pacientes com problemas
2
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/09/11/Setembro-amarelo-por-que-a-taxa-de-suic%C3%ADdio-
é-maior-entre-ind%C3%ADgenas. Acesso em: 6 jan. 2021
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relacionados à saúde mental, além de que muitos procuram curar os sintomas ou resolver a raiz
do sofrimento, o que muitas vezes não é possível, resultando em sentimentos de angústia para
os profissionais. As iniciativas da saúde mental indígena ainda são recentes e requerem um
melhor treinamento dos atuantes. Por não se sentir preparada, a EMSI acaba transferindo o
trabalho para profissionais especializados, como psicólogos e assistentes sociais, o que é um
problema na medida que a quantidade dos mesmos não é suficiente para suprir as demandas.
Dessa forma, o documento em questão pretende suprir algumas das queixas apresentadas pelos
envolvidos no cuidado mental indígena, apresentar orientações básicas sobre as possibilidades
de atuação dos profissionais, regularizar a gestão nas DSEIs e mapear os indicadores. Por fim,
faz-se necessário também ressaltar que o cuidado da saúde mental indígena é sempre trabalhado
em rede, de forma que nenhum profissional é responsabilizado individualmente pelo cuidado
às pessoas em sofrimento psicossocial (Brasil, 2019).
5. Alguns desafios na implementação das políticas de saúde indígena
A partir das entrevistas, foram identificados dois desafios principais. O primeiro
deles refere-se ao chamado “gap da implementação” que é a diferença entre o que foi formulado
e aquilo que é implementado. O segundo desafio refere-se ao contexto atual da pandemia, onde
as vulnerabilidades da população indígena tornaram-se ainda maior.
5.1 O GAP DA IMPLEMENTAÇÃO
5.1.1 As falhas estruturais da organização do DSEI
O subsistema de saúde indígena foi pensado e organizado de acordo com as
características geográficas e etnológicas das tribos indígenas, ou seja, não é necessariamente
um Distrito Sanitário de Saúde Indígena (DSEI) para cada Estado e esses sistemas variam de
tamanho de acordo com a quantidade de usuários, como bem foi apontado pelo entrevistado C
e entrevistado F. Além disso, a proposta da política é que a Secretaria Especial de Saúde
Indígena (SESAI) costure as práticas tradicionais indígenas com as práticas originais do SUS.
Embora ela seja interessante e promissora, durante a fase das entrevistas foi possível perceber
que há alguns problemas estruturais nessa política. Focando na organização e estrutura do DSEI,
as falas dos entrevistados revelaram obstáculos que dizimam a eficiência e eficácia do modelo
pensado para a saúde indígena.
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O entrevistado D reforçou que a ideia é conveniente, mas que há problemas na
prática da implementação dessa política. Um problema central é a captura do DSEI nas relações
políticas locais e nacionais, pois ele se torna uma espécie de palco para as figuras políticas
influentes das regiões que destinam medidas para uma população ou outra e capturam
lideranças indígenas. Ou seja, a questão central, no seu ponto de vista, é a perversão e cooptação
do DSEI por um sistema de alianças que diz mais a respeito dos interesses políticos dos brancos
do que autodeterminação. Ademais, o entrevistado também apontou que os contratos na SESAI
são anuais, e, portanto, há uma rotação muito grande de funcionários que acarreta uma série de
complicações. Além de gerar grandes custos para o Estado - que deve pagar indenização por
mandar embora após um ano de trabalho e outros custos como novos processos seletivos -, há
ausência de engajamento com o tema gera um desinteresse da atuação profissional na área
indígena no futuro. Ou seja, um médico não indígena não tem interesse de permanecer pelos
sistemas de saúde indígena por muito tempo. Isso porque é um modelo de concessão da gestão
para organizações sociais. O modelo de contratação nessas organizações é sempre temporário,
sem profissionais de carreira ou expertise acumulada.
O entrevistado E afirmou que são poucos os profissionais de saúde indígena e como
alguns dos indígenas não falam português, isso acaba gerando inconveniências na comunicação.
O entrevistado D adicionou que poucos passam por treinamentos sobre a cultura que vão
trabalhar. O entrevistado E contou também que dentro do processo seletivo para a contratação
de profissionais, a experiência com população indígena não é um critério de escolha, ou seja,
não é necessário, mas é algo bastante desejável e os concorrentes com essa qualidade são
privilegiados, como o entrevistado F reafirmou. Um outro problema apontado pelo entrevistado
E, é que já faz alguns ciclos que o processo seletivo do DSEI do Mato Grosso do Sul foi extinto,
resultando na falta de funcionários que se observa internamente, já que os contratos são anuais,
mas não se repõe funcionários na maneira que deveria. Sobre os funcionários contratados pelo
DSEI do Mato Grosso do Sul, o entrevistado C adicionou que antigamente existia uma
capacitação para treinar os novos profissionais sobre a cultura da etnia que iriam trabalhar,
porém isso também veio ao fim nos últimos tempos.
O entrevistado I criticou que não há valorização dos saberes indígenas e que há uma
grande dificuldade de se compreender que a saúde, para eles, se trata de outra lógica e
racionalidade. Essa falta de valorização se agrava ainda mais quando os processos seletivos e
treinamentos são suprimidos. Na maioria das vezes, aquele que gere o DSEI é quem tem a
racionalidade contemporânea do homem branco. Nesse sentido, o entrevistado I reconheceu
que a intenção da política e dos envolvidos é positiva, mas que na prática isso não se traduz.
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Em suas palavras, “eles não pisam com cuidado, vão logo massacrando um campo que eles não
conhecem”. Os entrevistados A, C, G e H também trouxeram essa concepção em suas falas. A
exemplo de como as práticas tradicionais não recebem apoio dentro da organização do sistema
do DSEI, o entrevistado I relatou que muitas mulheres potiguaras têm medo de dizer que são
parteiras, isto é, se dizem doulas, pois o conceito de parteiras tradicionais indígenas carrega um
estigma social. O entrevistado B, no entanto, discordou da ideia e afirmou que nas condições
de implementação da saúde do DSEI, há respeito mútuo entre os profissionais não indígenas e
usuários indígenas nessa situação. Ainda que os medicamentos químicos sejam levados e
usados para fazer com que os indígenas não sejam pegos de surpresa por doenças como gripe e
caxumba, há o uso de ervas e plantas medicinais de tratamento indígena quando é de preferência
do paciente.
O entrevistado I também colocou que por ser uma política nacional, acaba se
implementando sem profundidade as estratégias de consideração de diversidade e
especificidades étnicas que o contexto requer, dentro da sua estruturação e organização. O
entrevistado também afirmou que o estudo dessa diversidade ainda é pouco investido e sempre
aparece como alegoria nos estudos acadêmicos e nunca como centralidade, seja qual for a
posição em que se estuda. Apesar dessa consideração, o entrevistado G trouxe outra visão sobre
a questão. Ainda com esses desafios de captação das especificidades de cada lugar, a política
tinha, é e deve ser federal, pois quando se trata de pautas indígenas, é necessária a atenção de
não deixar que figuras que possivelmente almejem tomar as suas terras, estejam em posição de
tomada de decisões do futuro e cuidado desses povos. A proteção do sistema federal é muito
importante, pois a gestão tem que ser diferenciada de onde está o conflito. Dito isso, o
entrevistado G reconheceu a conveniência de uma nova divisão territorial para a construção
dessa rede, mas de forma muito conversada com os povos indígenas, além de que o subsistema
se encontra muito fora do seu berço, categoria inicial, já que o governo vem tentando um
desmonte dessa caracterização da saúde indígena especial.
Por fim, o entrevistado B acrescentou que existe a necessidade de um atendimento
24 horas dentro das reservas indígenas, porque os postos de saúde com esse tipo de atendimento
muitas vezes se encontram longe das aldeias. O entrevistado B e C concordaram sobre a
necessidade de contratação de maior número de profissionais – já que no Estado do MS, há
épocas em que são 8 psicólogos contratados para atender cerca de 80.000 usuários - e que mais
deles sejam indígenas.
5.1.2 A ausência da efetiva representação e voz indígena no controle social
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A elaboração de políticas públicas humanizadas e que almejam a integração de
diferentes culturas e práticas exige uma boa escuta daquele que se vai trabalhar. Diante disso,
o controle social dos indígenas dentro do DSEI, representado pelos Conselhos Distritais e
Locais, é uma poderosa ferramenta. Sobre essa questão, o entrevistado G contou, a partir de sua
experiência pessoal, que existe um modo de tomada de decisões muito próprio dos povos
indígenas, que a uma reunião cotidiana e em conjunto de muitos da tribo. No início da
implementação dos conselhos locais e distritais, os idealizadores fizeram questão de deixar o
sistema aberto para a participação e pautados na democracia, porém acabaram atropelando
alguns processos de tomada de decisão dos povos indígenas, pois existia uma hierarquia e jogo
de poder interno por parte desses últimos, que os implementadores não haviam percebido. Este
entrevistado também apontou que o controle social conta com estratégias formais e informais,
ou seja, controle social feito pelo diálogo oral, ao mesmo tempo que exige uma certa
formalidade para a construção de um subsistema especial de saúde com prestação de contas,
por exemplo. Outro ponto que dificultou o controle social feito pela população indígena é que
por mais que no momento de implementação dos conselhos distritais e locais houvesse uma
perspectiva positiva sobre a participação, ao longo do tempo os conselhos passaram a demandar
burocracias como regimento, publicação em diário oficial, ata, secretária e outras coisas. Assim,
foi se cristalizando e endurecendo o controle social, pois a composição dos conselhos locais e
distritais passou a ficar mais restrita a quem falava português, de forma que as lideranças
indígenas mais antigas ficaram de fora do processo e foram substituídos por jovens que já estão
distantes das tradições. O entrevistado G concluiu o seu raciocínio dizendo que isso gera
problemas como por exemplo a manipulação de algumas lideranças por cargos dentro dos
conselhos. Em contraposição, o entrevistado F declarou que a diretoria tenta ao máximo seguir
o regimento interno por estar pautado em leis, o que consequentemente serve de proteção aos
direitos e pautas indígenas.
Outro fracasso da saúde indígena é que o treinamento de conselheiros é da própria
instituição. Na opinião do entrevistado A, o papel do treinamento deveria ser de uma das
faculdades próximas das regiões de cada aldeia, que promoveria o ensino de avaliação de
resultados para os conselheiros, por exemplo. Fazer com que o treinamento dos conselheiros
seja feito pela própria instituição de saúde indígena é perigoso, pois pode acabar resultando em
um forte viés de opinião e limitar a capacidade do conselheiro de questionar, debater e discordar
com o que é implementado pelo gestor. A participação indígena precisa ser qualificada dentro
desses colegiados e os mesmos precisam compreender a máquina do Estado para que possam
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participar no nível que deveriam. O entrevistado G também coloca que existe uma
monetarização da economia local na saúde, que contribui com a descaracterização do controle
social. Muitas vezes, os porta-vozes passam a ter bastante visibilidade e prestígio social, de
forma que o problema não é a legislação que rege, mas a leitura que é feita e como a prática é
conduzida para afastar o controle social e a prestação de contas em uma tentativa de mascarar
os privilégios e desvios que acontecem na organização interna.
O entrevistado D considerou o controle social é um mecanismo pouco sério. Ao
longo de sua carreira, diz ter escutado dos povos indígenas com quem trabalhou como
antropólogo que esse não é o tipo de controle social que eles anseiam. Eles desejam um controle
e participação do ciclo completo de políticas públicas, e não somente um controle de qualidade
daquilo que é entregue. O entrevistado H também se questiona se, de fato, os indígenas são
escutados na elaboração das políticas públicas. Dentro do CONDISI (órgão de controle social
das ações do Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena), como dito anteriormente, os
membros são colocados em posição de prestígio e status social, por ocuparem um lugar de ponte
entre o mundo externo e comunidade, além de que a participação é paga e ganha-se benefícios
como vale transporte, como trouxe o entrevistado D. Nesse sentido, esses funcionários muitas
vezes podem acabar não sendo necessariamente as pessoas que a maioria indígena gostaria que
ocupasse o cargo por não privilegiarem as demandas indígenas, mas há a influência de jogos
políticos.
5.1.3 A desvalorização das tradições indígenas pela racionalidade dominante
Uma das principais discussões acerca dessa política é de que forma as práticas
tradicionais indígenas interagem com a medicina não indígena. Em muitos momentos de
conversas com os entrevistados, foi possível perceber que por mais que as práticas indígenas
sejam respeitadas – e mesmo assim nem sempre são – pouco são estimuladas ou implementadas
pelos serviços do sistema especial indígena. Pertinentemente, o entrevistado D relatou que tem
ouvido muito sobre a integração dos povos indígenas, mas é necessário saber o que eles
entendem e querem dessa integração. Em alguns casos, querem só o reconhecimento, em outros,
querem uma participação mais ativa.
No mundo da racionalidade dominante, o entrevistado D reiterou que falta para os
não indígenas um letramento, uma formação básica de sensibilidade para entender que são
pessoas complexas, que podem querer viver tanto nas florestas quanto nas cidades. É preciso
entender que alguns conceitos, para eles, são compreendidos de maneira diferente da que é
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pregada como a visão majoritária do resto do país e ainda de forma holística. O entrevistado H
trouxe uma experiência prática para exemplificar tal questão. Uma oficina que aconteceu no
Alto Rio Negro com o Projeto RASI na década de 90 que promovia uma troca de experiências
entre os que sabiam a técnica de dar aulas e os que detinham os conhecimentos tradicionais da
saúde dos Baniwa e Koripako estava prevista para ter duração de quatro dias, acabou durando
quinze. A razão é justamente pela complexidade que os indígenas entendem uma concepção
que para nós pode parecer simples. Não basta perguntar qual a planta boa para o sintoma X.
Para começar a falar dos remédios medicinais, é preciso falar da origem das doenças, e que para
é preciso falar da origem do mundo.
O entrevistado E, através de sua experiência dentro da Secretaria de Estado de
Saúde, relatou a existência de atritos no dia a dia dos serviços prestados pelo subsistema
indígena de saúde. No caso dos psicólogos, por exemplo, ela considerou que a linha traçada no
atendimento era mais no sentido de uma tentativa de desmistificar os saberes tradicionais
indígenas do que uma tentativa de conciliação entre as crenças dos dois mundos, em sua
maioria. O entrevistado I trouxe um exemplo prático que ilustra a fala do entrevistado E. Em
um projeto do Ministério da Saúde nos anos 80/90, várias parteiras tradicionais ao redor do
Brasil foram mapeadas e alocadas para prestarem serviços de maternidade sob a justificativa de
ser um treinamento para redução de mortalidade materna. Porém, o projeto não teve como
objetivo uma troca de conhecimento na área da obstetrícia. As parteiras tradicionais aprenderam
as práticas dos brancos, como o uso de máscara, luvas e parto em cadeiras ou camas específicas,
mas em nenhum momento puderam compartilhar os seus próprios conhecimentos. Ademais,
quando essas parteiras voltaram para as aldeias na Paraíba, que é de onde o entrevistado I conta,
o temor da oficina tomou conta e elas deixaram de atender nas casas das grávidas, como é a
prática tradicional, para atender em centros de assistência indígena, condizente com a
maternidade dos brancos.
Há, porém, exceções: o entrevistado C, profissional da linha de frente do DSEI MS,
defendeu a importância de se colocar à escuta das questões de saúde mental indígena a partir
da perspectiva dos saberes tradicionais, adentrando ao contexto que eles estão inseridos, e não
apenas reproduzir as teorias de psicologia ocidental. Ainda sim, reconheceu que esse
entendimento da importância da conciliação entre os diferentes saberes dentro do DSEI é falho.
O entrevistado também reiterou que a integração dos saberes tradicionais em políticas do SUS
é algo visível e protegido por lei. Consequentemente, se esses saberes não forem abordados e
incorporados nos tratamentos, há uma violação de direitos e do próprio princípio de equidade
do SUS
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Para a correção desses problemas, muitos deles gerados pela falta de processo
seletivo e treinamento dos funcionários do DSEI sobre a respectiva etnia indígena que irão
trabalhar, o entrevistado G afirmou que não basta uma atenção diferenciada, é preciso uma
gestão diferenciada, e uma boa gestão vai além de disponibilizar medicamentos e mais pessoas
que seguem exclusivamente a biomedicina, concepção essa ainda muito disseminada por
estudiosos e práticos. O entrevistado A ainda adicionou a essa ideia que no sentido de valorizar
a saúde própria e tradicional indígena, tais ações não foram internalizadas pelo SUS no
subsistema da saúde indígena. A dificuldade vem porque os gestores e profissionais não são
indígenas, além da alta rotatividade nos cargos. O entrevistado H também julgou que há falta
de iniciativa do Estado sobre essa integração de saberes tradicionais e atenção diferenciada que,
na prática, muito pouco se diferencia de uma UBS em periferia. Um obstáculo no
desenvolvimento dessa atenção diferenciada é, para o entrevistado H, que os atuantes não
conhecem seus usuários e suas culturas em um nível de profundidade razoável.
5.2 A VULNERABILIDADE INDÍGENA PRÉ-PANDÊMICA E O
AGRAVAMENTO DESSA SITUAÇÃO PÓS PANDEMIA
A pandemia entre os povos indígenas agravou ainda mais o cenário de descaso
governamental com a saúde indígena. O entrevistado G descreveu como as principais
vulnerabilidades desse campo a falta de saneamento básico nas aldeias e reservas indígenas, as
altas taxas de insegurança alimentar, os constantes conflitos de demarcação de terra, a questão
identitária e o enfraquecimento do sentimento de pertencimento das novas gerações. Como dito
anteriormente, o entendimento do mundo pelos indígenas é feito de forma holística e
indiretamente outras esferas invadem o assunto da saúde indígena. Sobre a falta de saneamento
básico, o entrevistado D contou que a SESAI não se atenta a fazer políticas intersetoriais com
outros entes que participam dos ciclos de políticas públicas para elaborar um plano de gestão
de resíduos sólidos. Dessa forma, como não há locais apropriados para o descarte do lixo, em
muitos lugares a solução é queimar. A exposição à fumaça gerada por essa prática é também
bastante prejudicial para a saúde dos povos indígenas. O entrevistado D também relatou que as
infecções sexualmente transmissíveis são um problema, agravados pela falta de agentes
especializados para orientarem da maneira adequada sobre como se proteger dessas doenças
sexuais. O entrevistado B adicionou a essa lista o fato de que muitas aldeias se localizam em
lugares de difícil acesso, o que dificulta a chegada de atendimento médico até o local ou o
deslocamento do paciente indígena doente até os centros de atendimento especial indígena,
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principalmente em dias de chuva. Dessa forma, além dos problemas citados acima, a falta de
protocolos, treinamentos, infraestrutura, a fragilidade da Política Nacional de Atenção à Saúde
dos Povos Indígenas e o desmonte do programa “Mais Médicos” resultaram em um aumento
de casos e mortes entre o grupo dos indígenas desde o início da pandemia (APIB, 2020).
5.2.1 O agravamento do contexto de vulnerabilidade durante a pandemia
Sobre os impactos da pandemia na vida e saúde dos povos indígenas, muito foi
discutido. O entrevistado D considerou que o desaparecimento de lideranças indígenas mais
velhas foi um dos principais impactos. São conhecimentos insubstituíveis e os idosos tem o
importante papel de ditar as tradições milenares. Além disso, o entrevistado B também se
lamenta pelo luto e pela falta que o ente querido faz nas aldeias, principalmente se essa figura
for de uma liderança que ocupa um lugar de exemplo para toda a tribo. A perda do
conhecimento e dos conhecedores mais antigos das tradições foi algo citado pelo entrevistado
H, principalmente em um momento de fragilização das instituições educacionais indígenas que
teriam esse papel de preservar e dar seguimento a essas costumes e crenças de outras gerações
ancestrais. O entrevistado H comparou esse impacto com a perda de uma biblioteca humana
sobre os saberes tradicionais, que gera consequências negativas para o âmbito cultural e para
uma geração interna que sofre com o afastamento desses conhecimentos e de sua própria
identidade, pois essas lideranças ditavam e ditam o modo de se viver.
Diante da perda das principais figuras do culto às tradições, a situação se deteriora
ainda mais quando se trata da educação indígena. Em muitos lugares, a educação indígena pré-
pandêmica já não era a ideal, como contou o entrevistado D. Em história, por exemplo,
aprendem sobre o currículo comum – o que não deixa de ser importante, já que esse
conhecimento é necessário para colocar os indígenas em uma posição de competição por vagas
em universidades, por exemplo – mas omitindo a própria história dos povos indígenas
originários. Com a pandemia e necessidade de isolamento social, a implementação do ensino
online era uma realidade inviável para muitos dos alunos indígenas, de forma que a qualidade
de ensino caiu ainda mais. O entrevistado I também compartilhou dessa mesma opinião,
considerando um dos principais impactos da pandemia a desescolarização dos povos da aldeia.
Além das perdas e dos sustos com uma situação diferente de todas as vividas
anteriormente, o entrevistado G enxergou um impacto positivo da pandemia nas comunidades:
houve uma importante mobilização dos cestos de conhecimentos tradicionais que foram
mobilizados e um verdadeiro uso da medicina tradicional na cura de alguns sintomas gerados
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pelo vírus. Nessa mesma linha, os entrevistados F e H também reconheceram a importância do
movimento de resgate às memórias das tradições para lidar com o contexto pandêmico, e que
em muitos sentidos isso fortaleceu os povos indígenas nesse momento.
O entrevistado G relatou que em alguns lugares os povos conseguiram entender a
doença conversando com as pessoas que eles tinham confiança, o que possibilitou a elaboração
de desenhos estratégicos de isolamento social. Ainda sim, em algumas regiões o susto foi maior
e o número de infectados foi mais expressivo, inclusive devido ao contato com os próprios
agentes de saúde, que acabavam levando o vírus para aldeias mais isoladas. Os entrevistados A
e I colocaram que o isolamento social exigido nesse momento pode ser ainda mais desafiador
para as populações indígenas. Do ponto de vista da saúde indígena, não se fala do indivíduo, e
sim do conjunto. O tratamento e a preparação das ervas tradicionais envolvem rituais e rezas
que muitas vezes precisam ser feitas em conjunto. Além disso, a doença de um indígena é
sentida por toda a comunidade. Há uma grande perda nesse sentido, porque ou não conseguem
realizar os rituais da maneira como deveriam ser feitos ou quebram o isolamento social e
arriscam uma contaminação ainda maior em nome das práticas tradicionais da medicina.
Se a saúde indígena já não era uma das prioridades da agenda governamental antes
da pandemia, com o aumento de gastos durante esse momento, a situação ficou ainda pior. Um
dos impactos do contexto pandêmico foi também a redução do financiamento dos órgãos do
sistema de saúde indígena, que já se encontram em um quadro de escassez há alguns anos.
Assim, durante esse momento que demanda ainda mais das instituições de saúde, faltaram
insumos e equipamentos para tratar dos infectados, o que espelhou um atraso em outros serviços
de saúde também. Além do financiamento, há um problema de organização interna dentro dos
DSEIs. O entrevistado E relatou que atualmente não há um psicólogo referência do DSEI MS
e que a área da saúde mental se encontra bastante enfraquecida, com poucos psicólogos para
atender muitas pessoas. Tudo isso, em um momento pandêmico e de grande tensão emocional,
acarreta grandes danos.
A pandemia também impactou de forma significativa outros âmbitos da vida dos
povos indígenas para além da saúde. O entrevistado D refletiu sobre o cenário de asfixia de
participação democrática, que fez com que os indígenas saíssem de cena como agentes sociais
para serem vistos como pacientes. Ainda sim, perante os acontecimentos e atentados aos
direitos dos povos indígenas que acontecem frequentemente, eles são obrigados a se deslocarem
e se exporem aos riscos do vírus para lutarem e fazerem suas vozes serem ouvidas, como
também foi colocado pelo entrevistado B. Além disso, o entrevistado H expos uma outra
preocupação em relação ao campo político: com mais indígenas mortos devido ao coronavírus,
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ele acredita que o discurso de “muita terra para poucos índios” vai se tornar ainda mais intenso,
gerando uma urgente necessidade de políticas de demarcação de terras e proteção dos direitos
indígenas. Ainda sim, o entrevistado A entendeu a situação de uma perspectiva positiva: esse
momento de mobilização, mesmo em uma situação delicada e perigosa de pandemia, mostra a
força do movimento nacional indígena na justiça brasileira.
6. Considerações Finais
O presente trabalho buscou entender como as políticas públicas voltada para os
povos indígenas consideram a integração dos saberes tradicionais na medicina. Concluiu-se que
o Estado reconhece a necessidade e a importância da costura da medicina ocidental com a
medicina tradicional, de forma que implementa políticas que seguem esse objetivo, como a
Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Ainda assim, durante o período da
pesquisa foi possível entender que as expectativas não correspondiam a realidade.
Os povos indígenas ainda não gozam de plena cidadania e seus direitos são
contestados constantemente por diversas parcelas da sociedade, como a bancada do
agronegócio, motivada pelos conflitos de terra. Na área da saúde, não é diferente: a busca por
esse direito ainda ocorre e a desatenção é evidente. As práticas tradicionais se apresentam como
importantes soluções frente às precariedades de serviço governamental, se aplicadas
concomitantemente às práticas usuais do SUS, tanto em termos financeiros quanto em
resultados de qualidade de atendimento. Ainda sim, o descaso governamental e o preconceito
por parte do Estado e da sociedade como um todo, impedem a valorização, desenvolvimento e
aplicação desses conhecimentos medicinais tradicionais, por considerarem essas práticas
arcaicas ou folclóricas.
A implementação de uma política especializada indígena deve receber
reconhecimento por apresentar o mínimo de preocupação ao oferecer uma atenção médica
diferenciada, já que falamos de uma realidade diferente. Ainda sim, é provável que tenha
ocorrido algum erro de planejamento durante o ciclo de políticas públicas, pois é notável uma
falha da avaliação qualitativa durante a fase de implementação e de acompanhamento dos
resultados que parece ter contribuído para a causa de problemas observados nos dias de hoje.
A política em questão não promove a escuta e o incentivo a essas tradições e o controle social
foi considerado um mecanismo aparente e superficial. Além disso, foram encontradas outras
deficiências na implementação da política. Na maioria das vezes, a decisão sobre o tratamento
médico fica inteiramente nas mãos dos profissionais contratados pelo DSEI e o processo de
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decisão é bastante discricionário. Somado a isso, foram identificadas outras questões como
problemas políticos e organizacionais dentro dos órgãos do sistema de saúde especial indígena,
problemas de financiamento e má gestão, como por exemplo a falta de profissionais,
treinamento e processo seletivo, e um agravamento de toda a situação devido ao contexto
pandêmico.
Toda essa conjuntura estudada no presente trabalho explicitou o descaso
governamental e a necessidade de repensar a política. Ainda sim, se há uma visão negativa do
rumo que a saúde indígena deve tomar nos próximos anos, já que não há sinal de melhora há
tempos, há também uma visão positiva que muitos indígenas escolhem enxergar. As perdas e
as consequências são muitas, mas eles dizem não ser a primeira (e nem a última) vez que passam
por situações de dificuldade. Temos muitas maneiras de reagir ao luto e ao retrocesso, mas os
povos indígenas não têm o privilégio da melancolia, porque se pararem, desaparecem.
Junto a esse sentimento de pertencimento e fortalecimento da política indígena que
o governo precisa criar, a partir de métricas de avaliações quantitativas e qualitativas, por
exemplo, é necessário que a sociedade também transforme o seu olhar a respeito das agendas e
tradições indígenas. Um novo olhar pautado na união, respeito, e ações afirmativas. Nesse
sentido, a academia exerce um grande papel de formador de opinião, e o desafio está justamente
em fazer com que o espaço acadêmico leia as tradições indígenas de outra forma. Para que essa
mudança ocorra, é fundamental que os indígenas tenham a oportunidade de ocupar um lugar de
destaque nas produções científicas e instituições de saúde, para que possam ser escutados com
as suas próprias vozes.
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28
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Anexo
ROTEIRO DE ENTREVISTA
1. Poderia me contar um pouco da sua formação?
2. Você poderia me contar um pouco da sua trajetória até aqui?
3. Como você começou a se interessar por saúde indígena?
4. Como você analisa a trajetória das políticas de saúde indígena no Brasil?
5. Quais são as iniciativas mais marcantes de integração dos saberes tradicionais na área
da saúde?
6. Pergunta particular sobre os programas: Há poucas informações disponíveis que
relatam a situação atual do programa X. Como você avalia a atuação do programa nos
dias de hoje, em comparação com os primeiros anos de sua criação?
7. Como você observa a atual mudança que o Brasil passou de anos com governos de
esquerda para o atual governo de direita em relação à saúde indígena?
8. Quais os três principais impactos da pandemia na proteção da saúde indígena, visto que
esses povos já se encontravam em situações mais vulneráveis anteriormente?
9. Fora o contexto pandêmico, quais são os outros três principais desafios encontrados na
luta pelo reconhecimento da importância da integração dos saberes tradicionais?
10. Qual você acredita ser o rumo que a saúde indígena deve tomar nos próximos anos?
11. Se você pudesse voltar no tempo, o que você teria feito de diferente?
12. Quais foram os três principais erros na implementação desses programas ou da
implementação de políticas integrativas de saúde indígena integrativa, no geral?
13. Se você fosse chamado para ocupar um cargo no Ministério da Saúde, o que faria como
prioritário para a saúde indígena?